R@U v.5 n.2

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O campo e a escrita: Relações incertas

Hélène Clastres !

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La Sangre no Miente: Memória, identidade e verdade na Argentina pós-Ditatorial

Tânia Stolze Lima

PPGAS - UFSCar

Pat Garret & Billy the Kid: Conservação e Risco Jorge Mattar Villela

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Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa Jean Tible

Entrevista

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Liliana Sanjurjo

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Homenagem aos mortos: O Egitsü entre os Kalapalo do Alto Xingu

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Marina Pereira Novo


R@U

Revista de Antropologia da UFSCar volume 5, número 2 Julho - Dezembro de 2013 ISSN: 2175-4705

Editores

Clarissa Martins Lima Felipe Ferreira Vander Velden

Comissão editorial

Amanda Danaga (discente), Anna Catarina Morawska Vianna (docente), Bruna Potechi (discente), Clarice Cohn (docente), Geraldo Andrello (docente), Igor José de Renó Machado (docente), Jorge Luiz Mattar Villela (docente), Luiz Henrique de Toledo (docente), Marcos Lanna (docente), Messias Basques (ad hoc), Piero de Camargo Leirner (docente), Thais Mantovanelli (discente)

Conselho editorial

Adam Reed (University of St. Andrews), Ana Claudia Marques (USP), Celso Castro (FGV), Christine de Alencar Chaves (UNB), Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP), David Graeber (LSE-UK), Débora Morato Pinto (UFSCar), Edward MacRae (UFBA), Fernando Rabossi (IFCS/UFRJ), Fraya Frehse (USP), Frederico Delgado Rosa (Universidade Nova de Lisboa), Gabriel de Santis Feltran (UFSCar), Guillaume Sibertin-Blanc (U. de Toulouse II), Guilherme José da Silva e Sá (UNB), João Biehl (Princeton University), João Valentin Wawzyniak (in memorian UEL), John Collins (Queens College-NY), Jorge L. Mattar Villela (UFSCar), Magnus Course (University of Edinburgh), Marco Antonio T. Gonçalves (UFRJ), Marcos Lanna (UFSCar), Maria Catarina C. Zanini (UFSM), Mariza Gomes e Souza Peirano (UNB), Olívia Cunha (Museu Nacional), Pedro Peixoto Ferreira (UNICAMP), Rebecca Empson (University College London), Rose Satiko G. Hikiji (USP), Simoni Lahud Guedes (UFF)

Nominata de assessores ad hoc

Antonio Guerreiro Junior (Unicamp), Danilo César Souza Pinto (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), Edgar Teodoro da Cunha (Unesp), Edmundo Peggion (Unesp), Iris Moraes Araújo (USP), Lígia Rodrigues de Almeida (USP), Maria Catarina Zanini (UFSM), Misia Reesink (UFPE), Paulo Santilli (Unesp), Rodrigo Bullamah (Unicamp)

Universidade Federal de São Carlos

Reitor: Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Vice-Reitor: Prof. Dr. Adilson Jesus Aparecido de Oliveira

Centro de Educação e Ciências Humanas

Diretora: Profa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann 
 Vice-diretor: Prof. Dr. Arthur Autran Franco de Sá Neto

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Coordenadora: Prof. Dr. Igor José de Renó Machado Vice-coordenador: Prof. Dr. Felipe Vander Velden

Projeto gráfico e editoração Messias Basques

Fotografia da capa

Marina Pereira Novo © Todos os direitos reservados


R@U Revista de Antropologia da UFSCar Volume 5, Número 2 | ISSN: 2175-4705


SUMÁRIO Artigos 9

O campo e a escrita: relações incertas Tânia Stolze Lima

24

Mulher-fiel: o dia de visita numa prisão paulista Jacqueline Ferraz de Lima

37

Pat Garret & Billy the Kid. Conservação e Risco

46

Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa

Jorge Mattar Villela

Jean Tible

57

O que a Reforma Psiquiátrica Brasileira produziu? Sobre tecnologias psicossociais e categorias antimanicomiais Martinho Silva

70

A elaboração dos documentos na medida Sara Regina Munhoz

83

“A burocracia não acaba nunca”: reflexões sobre a composição do sujeito refugiado por entre documentos, programas de assistência e organizações Vanessa Perin

96

Agentes de transformação indígena: os aerofones Yreru e Yrua Gabriel Garcêz Bertolin

111

Relato etnográfico sobre a escola dos Xikrin do Bacajá

126

A arte afro-brasileira e a circulação das identidades contemporâneas

145

Imagens Trans: a fotografia como foco da pesquisa antropológica com travestis e transexuais

Camila Boldrin Beltrame

Nelma Cristina Silva Barbosa de Mattos

Marcela Vasco


158

Uma perspectiva de gênero sobre o diagnóstico de depressão nas práticas clínicas e nas práticas cotidianas Laura Cremonte

175

¿Cómo y cuándo puede un antropólogo dejar de ser arquitecto? Encuentros y desencuentros interdisciplinares Ion Fernandéz de las Heras

200

La Sangre no Miente: memória, identidade e verdade na Argentina pós-ditatorial Liliana Sanjurjo

Relatos de pesquisa 226

Sobre a fabricação da materialidade do crime: uma etnografia da perícia criminal no Instituto de Criminalística do Paraná Joelcyo Véras Costa

Resenhas 237

FONSECA, C.; ROHDEN, F.; MACHADO, P. S. Ciências na vida: antropologia da ciência em perspectiva Marcos Castro Carvalho

244

BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas João Henrique da Silva & Adriano São João

251

Entrevista com Hélène Clastres Caderno de Imagens

270

Homenagem aos mortos: o Egitsü entre os Kalapalo do Alto Xingu (Brasil)

280

Teses e Dissertações defendidas

Marina Pereira Novo



Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.5, 2013

R@U

Nota Editorial

!

Eis!mais!um!número!de!R@U!–!Revista!do!Programa!de!Pós7Graduação!em!Antropologia!Social!

da!Universidade!Federal!de!São!Carlos,!cuja!qualidade!vem!chancelar!o!modelo!de!gestão!comparFlhada! –!pioneiro!em!sua!oficialização!e!modo!de!funcionamento!–!vigente!desde!o!úlFmo!número!editado,!em! que!docentes!e!discentes!do!PPGAS!da!UFSCar!trabalham!juntos!para!o!crescimento!e!consolidação!da! revista.! !

Este!número!traz!muitas!das!contribuições!apresentadas!durante!o!II!Seminário!de!Antropologia!

da!UFSCar,!ocorrido!entre!11!e!14!de!Novembro!de!2013!no!campus!de!São!Carlos!da!UFSCar,!além!de! trabalhos! recebidos! em! fluxo! conXnuo.! Entre! os! excelentes! materiais! aqui! publicados! –! e! que! falam! eloquentemente!do!sucesso!do!evento!–,!gostaríamos!de!destacar!a!entrevista!que!muito!genFlmente! nos! concedeu! Hélène! Clastres,! e! que! marca! definiFvamente,! com! sua! publicação,! um! momento! histórico!feito!do!retorno!da!pesquisadora!ao!Brasil,!de!seu!reencontro!com!questões!americanistas!e! com!São!Carlos,!cidade!que!esteve!na!rota!do!casal!Clastres!pela!amizade!que!os!uniu!a!Lúcia!e!Bento! Prado.!A!R@u!tem,!assim,!o!privilégio!de!veicular!outro!retorno,!qual!seja,!o!de!Hélène!Clastres!–!e,!por! intermédio!dela,!o!de!Pierre!Clastres!–!às!páginas!da!antropologia!brasileira.!

Os!Editores!

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artigos


Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 R@U

O campo e a escrita: Relações incertas 1

Tânia Stolze Lima Universidade Federal Fluminense/UFF

Resumo A partir de uma rápida análise de alguns aspectos do conto “A Carta Roubada”, de Edgar Allan Poe, este texto aborda a relação entre o campo e a escrita na antropologia. Para isso, articula os trechos de “Bruxaria Oráculos e Magia entre os Azande”, onde Evans-Pritchard narra as artimanhas que utilizou para penetrar nos segredos das artes mágicas zande, com as ideias levistraussianas acerca das relações entre sujeito e objeto na antropologia, e com os conceitos de “imersão” e “momento etnográfico”, de Marilyn Strathern. Articulação que objetiva recuperar do estatuto de clichês temas cruciais do trabalho antropológico: a observação participante, a identificação com outrem e a imaginação etnográfica. Palavras-chave: Trabalho de campo, escrita etnográfica, observação participante, identificação com outrem, momento etnográfico.

Abstract Fieldwork and writing: uncertain relations Starting with a quick review of some aspects of Edgar Allan Poe’s “The Purloined Letter”, this article examines the relationship between fieldwork and writing in anthropology. In order to do this, it articulates the passages where Evans-Pritchard describes, in “Witchcraft Oracles and Magic among the Azande”, the tricks he used to reach some of the secrets of Zande magical arts, with Levistraussian’s ideas about the relationship between subject and object in anthropology, and with Marilyn Strathern’s concepts of “immersion” and “ethnographic moment”. This articulation aims to recover from the status of clichés some crucial issues of anthropological work: the participant observation, the identification with others and the ethnographic imagination. Keywords: Fieldwork, ethnographic writing, participant observation, ethnographic moment.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado na conferência de abertura do II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013

Quero agradecer o convite dos alunos para fazer a abertura deste II Seminário de Antropologia dizendo que é uma grande honra estar aqui para participar de um evento em cuja organização os estudantes têm um papel ativo. Isso me faz tomar o convite não só como uma honra, mas também como um gesto de carinho.2 O tema da minha intervenção é “o campo e a escrita”, e a ele eu gostaria de associar o nome de um quadro do pintor paraibano Antonio Dias: Relações Incertas. Esse título me parece mais ou menos apropriado para descrever os tão heterogêneos vínculos constitutivos da atividade antropológica em sua dupla face de campo e de escrita. E também chama a atenção para o fato de que esses vínculos são (ou precisariam ser) recriados por cada um de nós. São mutantes, e dependemos, creio, visceralmente dessa variância. O que pretendo fazer não é, porém, um relato pessoal sobre minhas experiências de campo e escrita. Pensei em compor minha fala como uma colagem a partir de três trechos antropológicos, os quais serviriam como uma espécie de figuras sobre uma tela representada por um conto de Edgar Allan Poe, A Carta Furtada. São esses os trechos: Na ciência, como na vida, só se acha o que se procura. Não se pode ter as respostas se não se sabe quais são as perguntas. (Evans-Pritchard) [Na antropologia, como na psicanálise] é o mesmo problema que se coloca, o de uma comunicação buscada, ora entre um eu subjetivo e um eu objetivante, ora entre um eu objetivo e um outro subjetivado. (Lévi-Strauss) [A] imersão… fornece exatamente a habilidade e portanto um método para ‘achar’ o não procurado. (Strathern) Quero agradecer igualmente aos alunos do PPGAS-UFSC por seu convite para participar das Jornadas Antropológicas de 2013, e por proporem justamente que falasse sobre o tema desta intervenção. 2

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Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 R@U

Quanto à Carta Furtada de Poe, me parece desde vários anos que esse conto poderia ser lido como uma espécie de alegoria da prática etnográfica, na qual ocuparíamos sucessiva mas também oscilantemente a posição de seus quatro personagens: o narrador, que é um homem de capacidades intelectuais medianas; seu amigo e detetive amador Auguste Dupin, que é um sujeito arguto, com uma rara capacidade de análise da intriga humana e um tanto esnobe também; seu adversário, um ministro da corte, inteligente, trapaceador, digno e indigno ao mesmo tempo; e, por último, o chefe de polícia de Paris. Esse último personagem encarna um contraste entre a competência no emprego de uma sofisticada tecnologia investigativa e uma mentalidade tacanha e estúpida: ele age como se o princípio de suas investigações fosse inquestionável, como se fosse inimaginável a possibilidade de alterar o método para ajustá-lo às circunstâncias e às pessoas. Na realidade, o ministro e Dupin também personificam contrastes: o ministro é um homem digno e indigno como já disse, é matemático e é poeta; já Dupin cultiva a arte do raciocínio abstrato e tem uma intuição sobrehumana. Poe oferece um estudo literário primoroso de um fenômeno que interessa à antropologia por ser uma de suas questões mais fundamentais: a identificação com outrem, distinguindo o que poderíamos chamar de identificação autêntica de uma outra, espúria. A suposição de que os outros são como nós seria um sinal de completa incapacidade de identificação com outrem, pois a identificação verdadeira vem a ser condicionada, primeiro, por uma avaliação da distância entre si e os outros e, depois, pela disposição para assumir as expressões dos outros. Trata-se, assim, de um tratamento aparentemente paradoxal da identificação, uma vez que sua precondição é o reconhecimento da diferença de outrem. O que o detetive amador defende é que a um sujeito tolo só é possível a ideia de assimilar o outro a si; a própria tolice seria falta de imaginação quanto à diferença do outro. E a tese desse protagonista de Poe é sutil: ele não sustenta unicamente que o sujeito menos dotado intelectualmente fracassa sempre que seu adversário é mais bem dotado; ele também fracassaria quase sempre se seu adversário fosse menos dotado ainda do que ele. Pois bem, depois que reli o conto de Poe, fiquei mais ou menos confiante de que minha intuição poderia ser levada avante. Só que mal botei a mão na massa fui percebendo que jamais leria Evans-Pritchard ou Lévi-Strauss como antes. O conto havia se imposto como uma perspectiva para minha leitura. Quer dizer, antes de tomar esses antropólogos como meus adversários era preciso uma quase infinita cautela: eu não poderia adotar o princípio de ação do chefe de polícia de Paris. O percurso imaginado para minha fala se modificou de um modo imprevisto: exigindo um investimento de trabalho bem além do tempo disponível. O esquema de composição da minha fala, se me parece ainda interessante, é de execução mais difícil do que previ, e tanto seu desenvolvimento como o

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 tratamento do conteúdo ainda exigem mais elaboração e firmeza. Então conto com a paciência de vocês por apresentar hoje o que é ainda um esboço. A inquietação que está na origem de minha fala é a de que precisaríamos recuperar o tempo todo coisas importantes da nossa vocação e do nosso ofício, coisas que, voluntária ou involuntariamente, contribuímos para que que se tornem clichês: refiro-me, basicamente, à observação participante, à identificação com outrem e à imaginação etnográfica.

Só se acha o que se procura Já declarou Mary Douglas que a invenção do trabalho de campo é um marcador tão distintivo de um novo período na pesquisa do fenômeno humano como o desenvolvimento do telescópio o é na astronomia (1980: 39). Uma tal revolução se definiu, como se sabe, pela superposição da observação e da análise em uma mesma pessoa, a propósito de quem, aliás, Lévi-Strauss já sugeriu que ela atuava como seu próprio telescópio. É claro que, além de si mesmo e da escrita, outras tecnologias de campo foram aparecendo desde então, e não poderiam deixar de imprimir a sua marca nos fatos etnográficos que produzimos. Um ponto intrigante, a meu ver, é, justamente, como era possível fazer etnografia no tempo em que não havia fita cassete. Tenho, aliás, uma montanha delas… Evans-Pritchard merece ser considerado um dos grandes mestres do tempo em que não havia sequer fita cassete. Foi ele, como se sabe, quem realizou o primeiro trabalho de campo intensivo entre um povo do continente africano, os Azande, junto a quem viveu durante vinte meses no fim dos anos 1920 (Evans-Pritchard 1978a). Recordemos sua percepção de que o fenômeno que revolucionou a antropologia consistiu basicamente na transformação da matéria-prima da nossa disciplina: no passado, usavam-se documentos, frisava ele, ao passo que agora — isto é, para os de sua geração — “a matéria-prima é a própria vida social.” (Evans-Pritchard 1978b: 121) Meu objetivo é modesto: quero mostrar como isso se acha transposto na monografia sobre os Azande, tentando depreender ou, pelo menos, circunscrever alguns dos efeitos muito concretos de alguns dos muitos princípios de trabalho de campo, tais como formulados por Evans-Pritchard, a saber, e entre muitos outros, múltiplas exigências de imersão na vida social imediata,; da identificação tanto quanto possível com os outros; e a de se assumir uma posição de dependência em relação aos outros, tal como um aprendiz em relação ao mestre ou mestra. É um aspecto em particular que pretendo focalizar: a investigação que Evans-Pritchard conduziu junto aos adivinhos Azande, por ele caracterizados como uma espécie de detetives da bruxaria. Para situar minimamente esses detetives, lembremos que o sumário da monografia de 1937 apresenta uma divisão em quatro partes, três delas dedicadas a cada um dos tópicos mencionados no !12


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título da edição abreviada por Eva Gillies (1951), Bruxaria, Oráculos e Magia, e que são formadores do que Evans-Pritchard tratou como um triângulo ritual Zande. A parte que não é representada no título concerne aos adivinhos (os witch-doctors). Competia-lhes exercer uma atividade divinatória da bruxaria, combatê-la e curar suas vítimas. Se adotássemos o idioma de Mauss, diríamos que os adivinhos eram a totalização viva ou concreta do sistema, uma vez que Evans-Pritchard mostrou que em um só e mesmo lance os adivinhos são oráculos, são mágicos, são feiticeiros, são bruxos… e detetives Os adivinhos formavam uma corporação esotérica de especialistas em drogas mágicas, e rejeitavam decididamente de seu círculo os não iniciados. Foi devido a esse aspecto de sua prática, a vida esotérica, que Evans-Pritchard sentiu-se inclinado a conceber modos de investigação pouco ortodoxos, uma vez que os métodos convencionais não lhe eram permitidos. Naturalmente, o que primeiro lhe veio à mente foi iniciar-se, mas a divinação sendo uma arte estritamente plebeia, e o estatuto de europeu sendo associado ao da nobreza Zande, a iniciação poderia, ponderou ele, não render vantagem alguma. Se não se levava a sério o pertencimento de um europeu a um grupo mágico, era possível então esmerar-se na conquista da amizade de um ou dois adivinhos. Mas isso também foi em vão: ninguém se deixou persuadir a entregar os conhecimentos mágicos. EvansPritchard entretanto, estava disposto a empenhar-se agonisticamente na investigação de suas atividades. Kamanga, criado e amigo do antropólogo, tornou-se aprendiz de Badobo, quem assim contava com duas fontes de pagamento por seus ensinamentos, e a quem foi informado com franqueza que Kamanga confidenciaria tudo ao antropólogo. Badobo, narra Evans-Pritchard, achavase em maus bocados: se dissesse mentiras para Kamanga, seria pior para sua fama de mestre, uma vez que o conhecimento de Kamanga seria posto à prova pelos demais adivinhos, de modo que, para manter sob controle o antropólogo curioso, Badobo adotou a tática de enrolar Kamanga, adotou “técnicas sutis de procrastinação”. É a um acaso que o antropólogo atribuiu o sucesso de sua investigação etnográfica. A chegada de um adivinho famoso para quem as pessoas transferiram a reverência que tinham por Badobo, e que tratava os práticos locais — a Badobo inclusive, senão especialmente — com arrogância, desprezo e condescendência. Foi em uma tal circunstância que Evans-Pritchard engajou a sua pesquisa: “Quando os informantes se desentendem, o antropólogo sai ganhando. A rivalidade entre esses dois práticos transformou-se em uma amarga e mal disfarçada hostilidade.” (1978a: 112) Sem romper o contrato com Badobo, Evans-Pritchard propôs um bom pagamento a Bögwözu (o forasteiro) pelo treinamento de Kamanga. O que, como ele bem calculava, estimulou o orgulho do adivinho. É a uma demonstração de jactância entre os dois rivais que o antropólogo atribuiu a rapidez e a riqueza das lições dispensadas a Kamanga. E não só a ele, pois também o antropólogo se tornou !13


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 um alvo para a ostentação dos saberes mágicos — sem contar que a disputa atraía a atenção dos outros adivinhos. Se Evans-Pritchard instava com Kamanga para que lhe contasse os ensinamentos de seus mestres, é digno de nota que esses mestres não deixaram por menos, interessados cada um em apropriar-se do conhecimento revelado pelo rival ao seu aluno comum. É importante notar como Kamanga atuava como um mediador complexo da transmissão do conhecimento mágico ao antropólogo e entre os próprios especialistas. Quer dizer, se o antropólogo obtinha conhecimento mágico por meio de Kamanga, os adivinhos obtinham conhecimentos um do outro por meio do antropólogo. Nem por isso Kamanga se mostrava inteiramente satisfeito com as informações que afluíam para ele, e nem totalmente confiante na boa vontade de seus mestres. Suspeitava que podiam estarlhe sonegando ensinamentos importantes. E quando começou a participar das sessões públicas de divinação e das refeições mágicas, começou a checar com os outros adivinhos o seu saber, para certificar-se de seu valor. O grande foco do segredo profissional dos adivinhos eram as plantas mágicas — e não é improvável que a reticência de Kamanga quanto aos seus mestres concernisse principalmente a tal conhecimento. Naturalmente, como um detetive de primeira, também Evans-Pritchard não se deixaria iludir quanto a sua capacidade de dobrar os adivinhos Azande, extraindo-lhes até a última palavra. E ele frisou que, apesar de seus esforços, certos departamentos da ciência dos mágicos não lhe foram franqueados. Além disso, talvez seja mesmo próprio do regime do segredo mágico deslocar incessantemente seus limites. Era provável, conjeturava o antropólogo, que o treinamento de Kamanga só fosse finalizado por seus mestres depois que ele próprio regressasse a seu país. Evans-Pritchard tinha certeza de que sua presença era um obstáculo para a completa capacitação de Kamanga para efetuar curas. Presumia que o ponto alto dessas curas era nem mais nem menos que um truque: a pretensa extração do objeto da bruxaria do corpo dos pacientes. A Kamanga tinham ensinado simplesmente que a ingestão de drogas mágicas capacitava o curador para efetuar uma incisão no corpo do doente, sobre a qual era preciso primeiro fazer um cataplasma, e depois uma massagem, suscetíveis, ambos, de provocar o aparecimento e a tangibilidade do objeto da bruxaria. Evans-Pritchard temia, parece, o fracasso envergonhador de Kamanga, caso ele contasse apenas com esses recursos. . E quando Bögwözu decidiu voltar para casa e foi cobrar-lhe as dez lanças que ele ainda lhe devia, Evans-Pritchard aproveitou a oportunidade para preparar-lhe uma peça: condicionou o pagamento da dívida ao sucesso de Kamanga na cura de um menino doente. Bögwözu aceitou aparentemente sem hesitação o desafio, mas prepararia ele mesmo o cataplasma da cura e encarregou Kamanga da tarefa de fazer a incisão no abdome da criança. !14


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De um blefe a outro, o antropólogo, que estava sentado entre o mestre e o aprendiz, tomou das mãos de Bögwözu o cataplasma para passá-lo a Kamanga, removendo antes, porém, o objeto da bruxaria: Não tenho certeza se Bögwözu viu o que eu tinha feito, mas acho que suspeitou de minhas intenções ao pegar o cataplasma, pois ele certamente pareceu desconfiado. Kamanga teve uma desagradável surpresa quando, depois de massagear o abdome de seu paciente por sobre o cataplasma, ali não encontrou nenhum objeto de bruxaria. Enquanto Kamanga procurava identificar qualquer pedacinho de matéria vegetal no cataplasma como um objeto de bruxaria, vi com o canto do olho Bögwözu movendo a palma da mão no solo, procurando outro pedaço de carvão para sanar a deficiência. (1978a: 147)

Bögwözu não era menos enérgico e autoconfiante que o seu adversário, e, tendo o antropólogo interrompido a cura e chamado os dois homens a sua cabana para uma acareação, Bögwözu mal esboçou inocência e rapidamente “admitiu sua impostura”. De uma impostura a outra, o antropólogo pagou-lhe somente a quinta parte da sua dívida. Já quanto a Kamanga, a revelação foi desoladora, e ele desejou seriamente desistir da profissão. Nada indica, porém, que se entregou a dúvidas existenciais como teria acontecido ao seu colega ameríndio, Quesalid. Afinal, dois dias mais tarde, já se mostrava recuperado do incidente, e passou a manifestar, para enorme surpresa de Evans-Pritchard, uma autoconfiança que não tinha antes. Talvez não seja de todo improvável, imagino, que a reconciliação de Kamanga com os ensinamentos de seus mestres e consigo mesmo se devesse ao sentimento de que finalmente haviase cumprido a sua formação. A reconciliação imaginada por Evans-Pritchard para os aprendizes, após a decepção pela descoberta do truque inerente ao seu ofício conviria talvez, acredito, mais ainda ao próprio antropólogo. O que tenho em mente é que se Evans-Pritchard não acreditava em bruxaria, ele acreditava no poder das plantas, segundo uma oposição que remete ao próprio esquema de base que sustenta sua monografia: de um lado a prestidigitação, pela qual os adivinhos poderiam se desculpar (ou ser desculpados); de outro lado, a eficácia das plantas mágicas — esquema que foi sintetizado na e pela célebre fórmula em que Evans-Pritchard escreveu: “Se sua cirurgia é falsa, sua clínica é honesta.” (1978a: 148) Pois bem. É minha opinião que não há razão para criarmos um drama com o fato de que o conhecimento que produzimos mantém uma significativa continuidade com a matéria mesma da vida social. E me parece digno de nossa admiração o fato de que a complacência definitivamente não fosse uma marca das relações de Evans-Pritchard com os adivinhos (ele não usava luvas para lidar com esses admiráveis especialistas Azande). Já uma questão a meu ver intrigante é o seu empenho !15


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 em lançar mão, em sua investigação da cirurgia mágica, de artimanhas, cuja continuidade ontológica com a dinâmica da socialidade feiticeira não basta para esclarecer. Seria, creio, bem pouco suficiente nos contentarmos com a conjetura de que o interesse de Evans-Pritchard se restringia às informações sobre as substâncias que compõem o conhecimento mágico. Seria igualmente insuficiente nos contentarmos com a suposição de que o desafio que propôs a Bögwözu se reduzisse a uma presunção, senão a uma atitude de arrogância colonialista. Tais interpretações seriam insuficientes justamente por pressuporem que as razões da conduta de Evans-Pritchard poderiam ser interpretadas única e exclusivamente por uma dinâmica própria às suas relações com os adivinhos (que são, antes de tudo, parte da relações dos adivinhos uns com os outros), como se o campo fosse um domínio fechado e autônomo, quando, na realidade, e parafraseando Strathern, o campo etnográfico também se define por sua abertura ao que vem depois, e o que vem depois é a escrita. Me parece, assim, que um foco do interesse de Evans-Pritchard que não poderíamos subestimar é a pessoa de Kamanga. Kamanga colocava um enigma intelectual ou mesmo existencial para ele. Os únicos signos que decifrava em Kamanga apontavam para uma “confiança absoluta” na magia. A fé de Kamanga era sublime — ressaltou o antropólogo. Não tenho uma resposta para a questão que me parece ser intrigante. Exceto que EvansPritchard, ao se pôr tão enfaticamente à procura de uma coisa, estava se pondo à procura de uma outra que ele próprio não sabia bem o que era. Dado que tinha conhecimento, desde o início de sua pesquisa, da prestidigitação utilizada entre outros povos africanos, se ele fez o possível e quase o impossível para investigar seu mecanismo e seus efeitos, era talvez porque ele próprio não chegasse a se convencer inteiramente que o que chamou de ‘truque’ mágico pudesse ser por ele reduzido a uma trapaça, e que o complicado regime de segredo do conhecimento mágico se deixasse fundar em uma trapaça. Evidentemente, o que estou sugerindo não é que Evans-Pritchard no fundo acreditasse na bruxaria, mas que, tendo partido o agenciamento mágico em duas bandas, o senso comum e as noções místicas, apenas o truque poderia responder por sua conexão. Mas com essa linha de raciocínio estou talvez simplesmente conjeturando a importância da monografia Zande para a teoria do pensamento humano proposta por Lévi-Strauss; uma teoria que, como se sabe, afirma que um conceito como o de objeto da bruxaria — esse membro da grande família do mana — corresponderia a uma forma universal do pensamento. Não é a um Evans-Pritchard ancestral que quero chegar, mas a uma potência da escrita etnográfica ilustrada por sua monografia. Meu objetivo ao narrar aqui essas histórias, ou ao trazê-las à lembrança de vocês, foi recuperar do estatuto de clichê uma faceta importante de nosso ofício. E o que reivindico ser digno de nota é como a escrita de Evans-Pritchard projeta a figura de uma observação participante radical. Se ele, supostamente, não parece ter imaginado a necessidade de refletir sobre a diferença de natureza entre segredo e trapaça, ele soube se avir com uma discrepância, !16


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parcial mas profunda, entre o regime do conhecimento mágico e os métodos convencionais da pesquisa etnográfica (observação, conversa, pergunta-e-resposta e registro de discursos tradicionais). A chamada observação participante é um aspecto de nosso ofício que, acredito, deve ser celebrado: a imersão nas relações sociais em que consiste o campo nos capacita a restituir por meio da escrita aspectos da vida estudada que não colocamos na linha de frente de nossa narrativa. Nos capacita a fazer mais do que aquilo que pretendemos. Falei antes em potência da escrita etnográfica de Evans-Pritchard. E serei sucinta, pois o meu ponto já foi antecipado com elegância por Mary Douglas: Depois que esse estudo [Witchcraft among the Azande] foi publicado, não deveria ter sido possível fazer afirmações filosóficas sobre o pensamento sem reconhecer que o pensamento faz cortes e conexões entre as ações. Questões sobre racionalidade deveriam ser questões sobre a coerência de ações particulares no interior de instituições articuladas. (1980: 54)

O paradoxo de Robinson O devir-feiticeiro de Evans-Pritchard nos aproximou de certos aspectos do agenciamento etnográfico em sua variável campo, especialmente a circulação de afetos, paixões, investimento de desejo e decifração de signos mundanos. Evans-Pritchard declarou que a batalha decisiva não se travava no campo, mas depois que se voltava de lá. Se o campo põe o problema da identificação com outrem, poderíamos nos perguntar qual o correlato disso para a variável escrita do nosso agenciamento. A essa pergunta gostaria de justapor outras. Por que é tão difícil o processo da escrita etnográfica? Seria ou não seria vã a percepção de que nos falta como que um truque, um segredo, ou, quando nada, uma charada para que ao menos possamos buscar decifrá-la? A escrita tem por locação nossa mesa de trabalho, onde muitos de nós se sentem um pouco como Robinson em sua ilha deserta. O que quer que a escrita etnográfica possa ser, por onde poderíamos começar senão pela organização, pelo procedimento de pôr os dados em ordem?, de pôr ordem nos dados?, em outras palavras, pela criação de um segundo campo? Parece-me que poderíamos extrair de certas páginas de Lévi-Strauss um desenvolvimento sobre a identificação com outrem que mostraria como esse problema tem um lado do avesso ao qual poderíamos reportar a dificuldade anteriormente mencionada. A antropologia de Lévi-Strauss talvez pudesse ser definida como uma tentativa de libertar o eu e o outro, a relação entre o eu e o outro — e eu cito aqui suas palavras em Jean-Jacques Rousseau, Fundador das Ciências do Homem “(…) de um antagonismo que só a filosofia procurava estimular” (1976: 48). Penso que essa observação é muito interessante. E justamente porque, em !17


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 nossa existência, o antagonismo em questão é bem mais do que um problema filosófico, uma vez que ele é parte essencial do clima individualista, relativista, pluralista, da modernidade e pós modernidade. Em sua Introdução à Obra de Marcel Mauss, Lévi-Strauss (2003) coloca uma discussão das relações de conhecimento na antropologia que as caracteriza como rebeldes à distinção entre sujeito e objeto. Não posso aqui resumi-la nem mesmo de um modo minimamente satisfatório. Permitamme, assim, lembrar apenas dois pontos. Primeiro: tendo sustentado, inicialmente, que uma consequência importante do conceito maussiano de fato social total era, não apenas que “tudo o que é observado faz parte da observação, mas também e sobretudo, que (…) o observador é ele próprio uma parte de sua observação”, Lévi-Strauss (2003: 28) avança com a ideia de que a comunicação é o problema fundamental da nossa disciplina e que, por isso mesmo, um risco trágico (o mal-entendido) inelutavelmente nos espreita em nosso empreendimento de identificação. Segundo: em um ato de imaginação certamente admirável, Lévi-Strauss desdobra o problema de comunicação; ou seja, ele reivindica que a questão não concerne unicamente à relação entre o eu e o outro mas afeta identicamente a relação entre eu e mim. E condiciona, em seguida, o conhecimento antropológico a uma auto-objetivação. Daí, creio, a trama intrasubjetiva sobre a qual repousa ou da qual depende o conhecimento etnográfico, que só poderia ser desditosa, entre um eu subjetivo e um eu objetivante, um eu objetivo e um outro subjetivado, que buscam comunicar-se um com o outro. Foi em uma reflexão motivada por Rousseau que Lévi-Strauss elaborou esse ponto de um modo mais elucidativo. Rousseau, que preconizava o estudo dos povos mais distantes (Ensaio sobre a Origem das Línguas), dedicou-se, no entanto, ao estudo de si mesmo (Confissões). Isso por um lado; por outro lado, em toda a obra desse filósofo: “(…) a vontade sistemática de identificação com o outro caminh[a] lado a lado com uma recusa obstinada de identificação consigo mesmo.” (1976: 43) E Lévi-Strauss propôs uma justaposição desse duplo paradoxo de Rousseau ao que seria uma contradição intrínseca ao nosso ofício (enquanto manifestamos pelos outros modos de existência um interesse e uma paixão que não devotamos ao nosso), reivindicando que ambos se explicariam ou se solucionariam caso aceitássemos a hipótese de existir uma implicação recíproca entre a recusa da identificação consigo mesmo e a busca da identificação com outrem. A desditosa busca de comunicação antropológica de que se fala na Introdução à Obra de Marcel Mauss encerraria, então, se dela compreendo algo que mereça ser comunicado a vocês, a proposição de que nossa ambição de subjetivação do outro e de comunicação com o outro subjetivado (que nos compete restituir na escrita) não é separável de uma recusa de aspectos da nossa própria subjetividade. A escrita seria em alguma medida o preço que teríamos de pagar pelo campo; e ela seria a batalha, decisiva porque teria de passar por essa auto-objetivação. !18


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Foi assim que Lévi-Strauss procurou se convencer, e talvez também nos convencer que não somos absolutamente os servos da distinção entre objetivo e subjetivo, que esta é uma distinção altamente fluida e relativa, e que existe um desequilíbrio dinâmico entre esses polos do conhecimento antropológico, da mesma maneira como a distinção entre o eu e o outro é eminentemente instável, visto que, se for verdadeiro que o outro é um eu, como de fato o é, então, e essa foi a aposta de Lévi-Strauss, o eu é um outro (“Je est un autre” — como declarado no verso de Rimbaud). Com sua série de desdobramentos do eu (eu subjetivo, eu objetivante, eu objetivo, outro subjetivado), Lévi-Strauss deixou-se conduzir a uma caracterização da etnografia como um método próprio a realizar “sob uma forma concreta esse processo ilimitado de objetivação do sujeito” (2003: 27). O que, almejava ele, poderia vir um dia a favorecer a emergência de um novo humanismo.3 Se Lévi-Strauss propôs que a relação entre o eu e o outro é uma relação que está contida no eu, ou que a relação entre sujeito e objeto está contida no sujeito, ou que a relação entre observador e observado está contida no observador, Strathern, como veremos a seguir, propôs que a relação entre o campo e a escrita está contida em cada um desses termos.

Como achar o que não se procurou Até aqui minha intervenção teve um intento retrospectivo. Compartilho, junto a muitos colegas, espero, (mas certamente não com todo mundo, a convicção de que: “(...) a antropologia social nem sempre faz justiça ao seu próprio passado. Ela contribuiu de um modo único para o conhecimento humano por meio de seus estudos do conhecimento humano.” (Strathern 1999: 11) Mas dizer que meu intento é retrospectivo não significa que pretendi resgatar uma certa trajetória histórica do método etnográfico. Meu exercício é antes de um tipo etnográfico, em que nos é dada a liberdade de produzir um sentido ‘atual’, e ‘pessoal’, para um material a partir do qual selecionamos informações em benefício de um insight, um plano que permanece relativamente vago ou pré-consciente, pois seu contorno, para ganhar alguma nitidez, depende inteiramente do material que o nutre e com o qual se avém. Mas esse plano é autônomo para decidir o que selecionar.

Essas ideias de Lévi-Strauss fazem vizinhança com uma outra relacionada a uma contradição fundamental entre o simbolismo e o conhecimento. Por abranger a ideia de que o mundo significou muito antes de que soubéssemos o que ele significava, ou seja, a ideia de que o significado é dado sem ser por isso conhecido, a argumentação de Lévi-Strauss foi denominada “paradoxo de Robinson” por Deleuze (1975: 51-54), uma vez que Robinson vê-se de posse de todas as regras e leis, dadas de uma só vez e desprovidas ainda de objetos de aplicação. Um tal paradoxo poderia talvez nos servir de ponte para fortalecer a vizinhança entre o argumento de Lévi-Strauss - tudo significa mas não sabemos o quê - e a escrita etnográfica. Mas aqui terei de me restringir a uma simples sugestão: tem ou não tem uma tal situação o poder de fazernos pensar em uma máquina infernal? É isso evocativo ou não da situação em que nos descobrimos depois do campo, na hora da escrita? 3

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 Voltando a Strathern, podemos perguntar o que fundamenta o seu convite a uma outra relação com o passado? A questão importa aqui porque quero comunicar-lhes minha surpresa. Em páginas que fazem as vezes de introdução a uma coletânea publicada em 1999 (Property, Substance & Effect), lemos no primeiro parágrafo: Se ao fim do século 20 se estivesse inventando um método de investigação com o qual compreender a complexidade da vida social, se poderia desejar inventar alguma coisa como a prática etnográfica do ou da antropóloga social. (Strathern 1999: 1)

Uma variante é oferecida cinco páginas adiante: Se ele não existisse, teríamos que estar inventando o método etnográfico do ou da antropóloga social e suas estratégias de imersão. (Strathern 1999: 5)

Parece-me que aqui não vale a pena perder a redundância: O método etnográfico tal como foi desenvolvido por antropólogos ou antropólogas sociais, com a sua insistente demanda por imersão, começa a se mostrar extremamente promissor. (p. 25-26)

É a ninguém menos que a geração de vocês que, com certeza, essa fala é dirigida. Era muito outro o discurso que afetou minha própria geração - e do qual me mantive razoavelmente afastada por contingência do modo como em minha trajetória pessoal se articularam meu campo e minha escrita de mestrado e doutorado. Favorecia esse afastamento a sensação de que questionamentos que podiam ser interessantes a propósito dos aspectos políticos e poéticos da escrita etnográfica não eram suficientemente isentos do que a muitos de nós pareciam ser signos de uma máquina judiciária (cf. Michel Serres 1992). Entre outras coisas, é possível acompanhar nesse texto de Strathern a criação de dois conceitos, o de imersão e o de momento etnográfico. É verdade que a imersão mantém, como a própria palavra indica, alguma afinidade com a noção de observação participante, mas dela diverge significativamente, pois nem é secundária em relação à observação (como acontece à noção clássica de observação participante), nem é o complemento ‘subjetivo’ de procedimentos objetivos da pesquisa (como também parece se dar com a noção clássica). Voltarei a esse ponto mais adiante. A imersão, eu diria, é um conceito marcado por uma ambivalência constitutiva, mas essa ambivalência é positiva. A imersão é total, enquanto consiste em nosso envolvimento e comprometimento com as relações sociais que as pessoas nos propõem. E é parcial, pois também depende de outros compromissos que ocupam nosso pensamento, a escrita sendo um deles, e o !20


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principal que importa aqui. Se bem compreendi a autora, é por essa parcialidade que a escrita se faz presente no campo, e que, ao mesmo tempo, o campo se caracteriza como “um exercício antecipatório” da escrita que virá. Se o trabalho de campo nos coloca um desafio, este, na descrição proposta por Strathern, passaria menos por nossa possível relutância em nos deixar envolver nas relações do que pelo fato de conservarmos na mente a outra coisa que virá. A imersão, interessantemente, é mais do que a marca da variável campo do agenciamento etnográfico. E isso pela seguinte razão: uma vez que as coisas, as histórias, as ideias, os eventos que faziam seu sentido no campo precisam ser rearranjados em um texto que deve conter seus próprios argumentos e ser endereçado a outros interlocutores, a escrita torna-se criadora de um segundo campo, cujo desafio é, justamente, a recriação, que só pode ser imaginativa, de uma parte dos efeitos do trabalho de campo. O ponto de Strathern é, então, que não fazemos um único, mas dois campos. E se algo não é atribuído a eles pela autora é espelharem-se um ao outro. Pois vejam bem: suas relações recíprocas, argumenta Strathern, remeteriam a uma complexidade do mesmo tipo — pasmem! — que a das estruturas complexas de parentesco tal como descritas por Lévi-Strauss. Note-se que eu até poderia não dar destaque a esse ponto de sua argumentação, caso a mim mesma nunca tivesse ocorrido a associação do par campo e escrita a um princípio dualista que organizaria a nossa prática, associação esta que poderia ter sido estendida a uma imagem das estruturas elementares de parentesco do tipo troca restrita ou casamento com a prima cruzada bilateral. O que justifica uma tão inesperada associação é a escolha de Strathern de chamar a atenção para uma abertura para a imprevisibilidade implicada pela própria diferença, a seu ver, crucial, entre os dois campos: cada um é uma dimensão da nossa existência, cada um tem sua trajetória e seu dinamismo próprios, e que a nós compete ligar e justapor em uma operação etnográfica aberta à surpresa e à imprevisibilidade. O que impõe ou favorece tal situação é a natureza mesma do método etnográfico: retratado aqui como um modo aberto de coletar informações (isto é, ao sabor das relações sociais que travamos no trabalho de campo) e como um modo igualmente aberto de analisar essas informações. Nessas páginas apologéticas sobre a imersão etnográfica, Strathern não deixou de reafirmar a importância da recomendação das pessoas da geração de Evans-Pritchard quanto à necessidade de registrar tudo, recomendação que era então vinculada aos postulados holistas. Os dados, afirmou Strathern, devem ser coletados por si mesmos. E a razão que ela invoca para justificar isso é que não nos é possível saber antecipadamente o que vai desempenhar um papel importante na descrição que a escrita vai se propor a estabelecer. Ou seja: os dados valem por si mesmos porque sua significância só se impõe durante a escrita. Não dá pra saber antecipadamente o que vai casar com o quê. A imersão significa, ainda, que as relações devem ser valorizadas por si mesmas. As informações que delas e sobre elas derivam são residuais. Na realidade, o próprio campo (o primeiro !21


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.9-23, 2013 campo) se define por essa primazia das relações sobre as informações. Mas — e é isso que é crucial ressaltar — o rearranjo necessário à constituição do segundo campo (produzido na e pela escrita) é um movimento em que devemos fazer as informações passarem para o primeiro plano. O segundo conceito que mencionei, o de momento etnográfico, corresponde a uma imersão nos dois campos ao mesmo tempo, é um momento em que habitamos os dois campos simultaneamente. Melhor dizendo, o momento etnográfico é imersão mais movimento. É quando se cria uma relação de sentido — esta mola da escrita etnográfica. Rearranjando ao meu modo as palavras da autora, é o momento em que se articula o já entendido à necessidade de entender, o já analisado no momento da observação ao observado no momento da análise. Momento em que se conjugam o já apreendido no campo à demanda de apreensão que é inerente à escrita. A linguagem de Strathern não é dramática como a de Evans-Pritchard, que fala em batalha decisiva, nem como a de Lévi-Strauss, que fala em recusa de identificação consigo próprio. Ela preferiu dar prioridade aos efeitos de surpresa que são suscitados por ligações imprevistas entre pontos dos dois campos. Eu diria que esses efeitos de surpresa são como que os pequenos fachos de luz que nos fascinam durante a escrita e que procuramos restituir na medida de nosso talento para a imaginação etnográfica. E, assim, encerro minha intervenção. Não foi de meu interesse extrair algo como um mínimo denominador comum de minhas três figuras, menos ainda pressupor a existência de um progresso entre elas. Minha intenção não foi a de apresentar-lhes um artigo, nem mesmo um paper. Quis fazer uma fala, simplesmente, e uma fala que não se pretendeu argumentativa, ainda mais que a ideia que me veio se resumia a um esquema de composição. Mas gostaria, sem dúvida, de produzir um efeito, isto é, de provocar a presença de uma memória.

Bibliografia DELEUZE, Gilles. 1975. Lógica do Sentido. São Paulo: Editora Perspectiva. DOUGLAS, Mary. 1980. Evans-Pritchard. Glasgow: William Collins Sons & Co. Ltd. EVANS-PRITCHARD, Edward E. 1937. Witchcraft among the Azande. Oxford: Oxford University Press. _______, 1978. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Edição resumida por Eva Gillies. Rio de Janeiro: Zahar. _______, 1978b. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70. LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003. “Introdução à Obra de Marcel Mauss”. In: Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify. pp. 11-46 !22


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_______, Claude. 1976. “Jean-Jacques Rousseau, Fundador das Ciências do Homem”. In: Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. pp. 41-51 POE, Edgar Allan. 1980. A Carta Furtada. In: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira & Paulo Rónai (orgs.), Mar de Histórias, 3º Volume: Romantismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. pp. 192-211 SERRES, Michel. 1992. Éclaircissements. Cinq Entretiens avec Bruno Latour. Paris: Flammarion. STRATHERN, Marilyn. 1999. “The Ethnographic Effect I” In: Property, Substance and Effect: Anthropological Essays on Persons and Things. London: The Athlone Press.

Recebido em 8 de Novembro de 2013 Aprovado em 15 de Dezembro de 2013

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Mulher-fiel: O dia de visita numa prisão paulista Jacqueline Ferraz de Lima Mestre em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos/UFSCar

Resumo Este texto é sobre mulheres fiéis, não fiéis, talvez fiéis. É um esforço de tornar inteligível, num curto espaço, o que se diz sobre mulheres de presos, por mulheres de presos. O que as cunhadas, como são denominadas as mulheres que visitam seus maridos presos em cadeias de domínio do Primeiro Comando da Capital (PCC), dizem sobre as mulheres que têm o dia de visita nos presídios paulistas como um evento rotineiro de suas existências? Em outros termos, o que dizem as cunhadas sobre as mulheres que estão na caminhada? Entre muitas coisas, dizem que é indispensável ser mulher-fiel. Este texto é, portanto, sobre a produção da mulher-fiel. Uma tarefa irrealizável, como se verá, sem que se produzam mulheres de proceder, disciplina, mulheres que enfrentam os sacrifícios; mulheres do preso, mulheres do cara, mulheres que gosta do ladrão; talaricas, recalcadas, mulheres que gostam de cadeia, mulheres que gostam do crime. Palavras-chave: Mulher, família, prisão.

Abstract Fiel-woman: visiting day in a prison in São Paulo This text is about faithful, unfaithful, perhaps faithful women. It is an effort to render intelligible, in a short time, what is said about prisoners´ women, by prisoners´ women. What the cunhadas, as are called the women visiting their imprisoned husbands in jails whose domain belongs to Primeiro Comando da Capital (PCC), say about women having the visiting day in prisons in São Paulo as a routine event of their existence? In other words, what the cunhadas say about women who are on the caminhada? Among many things, they say that it is essential to be a fiel-woman. Therefore, this text is about the production of the fiel-woman. As will be seen, an impossible task without giving rise to women with proceder, disciplina, women facing the sacrifícios; inmate´s women, women who like thief; talaricas, recalcadas, women who like jail, women who like crime. Keywords: Woman, family, prison.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.24-35, 2013 Esta apresentação1 é sobre mulheres que visitam seus maridos presos em cadeias de domínio atribuído ao Primeiro Comando da Capital (PCC) ou, em seus termos, sobre as cunhadas. Nenhuma relação de aliança baseada em consanguinidade prescreve essa nomeação, mas, certamente, esse é o solo referencial de onde essa nomeação germina, afinal, é em decorrência dos membros batizados do PCC serem denominados irmãos que suas mulheres são nomeadas cunhadas. Contudo, também são chamadas de cunhadas as mulheres dos companheiros.2 Isso porque, entre as visitantes dos presos, não se sabe precisamente quem é mulher de irmão ou de companheiro. Salvo por alguns acontecimentos que, como efeito, tornam públicas essas informações. Em geral, evita-se a produção de diferenças entre as mulheres (fiéis) que visitam seus maridos em cadeias do PCC. Mais especificamente, a intenção desta fala é voltar-se à produção da mulher-fiel. Conceito que, de acordo com as análises provenientes de meu encontro-etnográfico com as cunhadas que experimentam o evento-prisão (expressão que se refere ao encontro entre cadeia, preso e mulher), marca uma forte distinção entre as mulheres que visitam seus maridos em complexos penitenciários paulistas. Essas diferenças são, sobretudo, evidentes na produção de mulheres contrárias à fiel e suas adjacências, como mostro a seguir. Ser mulher-fiel, seu contrário e suas adjacências, são as três partes que dão forma a este texto. Apresento esses conceitos separadamente, antes, como uma proposta analítica para tornar inteligível as diferenças produzidas pelas cunhadas acerca das mulheres que estão na caminhada, do que uma sugestão de que essas conceituações possam existir umas sem as outras.3 Em resumo, a partir da viagem das cunhadas ao dia de visita nas penitenciárias de Cerejeira4 (que será descrita no passado de modo a realçar o momento etnográfico e evitar generalizações), esta apresentação centraliza-se nos enunciados (linguísticos e não linguísticos) sobre a imagem da fiel, sobre as mulheres não consideradas fiéis, além dos demais “tipos de mulheres” na caminhada que, assim como as não fiéis, contrastivamente, contribuem com a construção da mulher-fiel.

Texto apresentado no Evento Hybris, realizado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, em novembro de 2013. Esta fala é parte da dissertação defendida no segundo semestre de 2013, intitulada: “Mulher Fiel. As famílias das mulheres de presos relacionados ao PCC”. Agradeço ao Renan Martins Pereira pela leitura atenta deste texto, não sem sublinhar que todos os problemas são de minha exclusiva responsabilidade. 1

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Companheiros são os presos não batizados, mas que seguem as orientações do PCC.

Durante a pesquisa de campo, o termo caminhada apareceu com diferentes sentidos. Para esse caso específico, caminhada significa ação. Está relacionada à realização de alguns procedimentos como visitar, levar o jumbo (alimentos, produtos de higiene pessoal e limpeza), preparar a comida, cuidar do próprio comportamento, etc. Estar na caminhada é o terreno propício para a produção da mulher-fiel. 3

Cidade localizada no oeste paulista. Todos os nomes de pessoas e cidades são fictícios de modo a preservar a identidade das mulheres que colaboraram com a pesquisa. 4

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A imagem da fiel Vinte e três horas era o horário marcado para saída do ônibus de São Paulo rumo ao dia de visitas nas penitenciárias de Cerejeira. Do mesmo ponto de encontro, partiam ônibus para diversos estabelecimentos penais do interior paulista. Ao menos vinte ônibus deixavam a localidade por volta do mesmo horário, e entre 45 e 50 passageiras era o limite de cada veículo. Eles estavam quase sempre lotados, o que mostrava o fluxo intenso de mulheres que tinham como destino a cadeia às sextas-feiras à noite. Somente para a cidade de Cerejeira saiam quatro ônibus (sempre lotados) a cada final de semana. Após uma viagem fria e desgastante até Cerejeira, fortemente prejudicada por uma batida policial e problemas mecânicos com o ônibus, conversava com uma cunhada na cozinha da pensão em que se hospedavam a maioria das visitas provenientes da capital paulista. O relógio já marcava sete horas da manhã e os portões das penitenciárias costumavam abrir às oito. Prevendo a longa fila que as aguardavam, apressadamente as mulheres esquentavam as comidas para os apenados, se produziam para o encontro com os maridos e tomavam café da manhã. Em meio a tamanha correria, a cunhada falava-me sobre seu desejo pela liberdade do “preso”, pelo fim do sofrimento decorrente da situação de cárcere do marido e sobre a vontade de ter sua “família completa”. A plenitude da “família”, ainda que muitas vezes distante no tempo, recorrentemente aparece nos discursos das cunhadas como justificativa à caminhada. É igualmente recorrente a ideia de que “só quem é fiel para ir até o fim” da caminhada. E, do mesmo modo que “só quem é fiel para ir até o fim”, a formulação “aqui quem fecha é a fiel” constantemente compõe as narrativas das cunhadas na porta da cadeia (para fazer referência a outro espaço onde passava muito tempo com as cunhadas, além da pensão e do ônibus). Assim, logo pude perceber que ser fiel diz muito mais do que a simples ideia de fidelidade conjugal, ainda que esta seja essencial para a construção da mulher-fiel. Para que a mulher seja considerada fiel, ainda de modo geral e provisório, é preciso evitar falhas em um espaço “ético e moral” que se desenha no encontro entre mulher, preso e cadeia (evento-prisão). De modo específico, e é sobre o que me deterei a seguir, para ser fiel é preciso combinar uma série de elementos práticos e discursivos experienciados na caminhada. Em primeiro lugar, para que se reconheça a fiel, é essencial visitar em “cadeia do Comando”. Em outras palavras, visitar em cadeias de domínios não atribuídos ao PCC torna inacessível a possibilidade da mulher ser reconhecida como fiel. Visitar o marido em prisões de outros comandos confere às mulheres a denominação de coisa, como mostrarei à frente. Assim, fiéis são mulheres de irmão ou companheiro e, impreterivelmente, visitam em estabelecimentos penais do PCC. Além de visitar em cadeia considerada favorável (modo como as cunhadas também se referiam às cadeias do Comando), ser fiel relaciona-se às visitantes publicamente reconhecidas como mulheres !26


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.24-35, 2013 dos presos. Este reconhecimento é garantido pelo nome inscrito no rol do preso (o rol é o registro institucional de visita dos apenados), assim como pela possibilidade de presença no “ônibus da família” (ainda que pudessem optar por viajar de carro ou ônibus particulares). As mulheres que visitam presos e não são reconhecidas publicamente como suas mulheres, em geral, visitam, com o nome no rol de outro apenado e viajam em ônibus de rodoviária ou veículos particulares. Estas, por não terem a caminhada (aqui também no sentido de trajetória de vida) “transparente”, não poderiam ser consideradas fiéis. Enfatizam ainda as cunhadas que fiel é quem está disposta a compartilhar “o sofrimento da cadeia com o preso”, “pedalar com o preso”, “estar lado a lado”, “estar junto no veneno”. Entende-se dessas formulações que ser fiel significa desempenhar os procedimentos “éticos e morais” efeitos da adesão à caminhada. Entre eles, a frequência nos dias de visita, o jumbo (alimentos, produtos de higiene, papelaria e limpeza destinados ao preso) e a comida, conformam seus pontos de maior visibilidade. Durante minha permanência em campo, não conheci sequer uma cunhada que não se preocupasse com o jumbo e a comida de seu marido. Ou que não cuidasse de sua qualidade assídua em relação à visita. A realização destes procedimentos que chamei de visível, certamente demonstram os cuidados das mulheres com o marido. Mesmo que estes cuidados não se constituam sem desvios, variações, alternativas ou eventualidades. De todo modo, o que importa para os fins desta apresentação é que as efetivações desses procedimentos contribuem para a composição da imagem da mulher-fiel, a despeito de não serem realizados exclusivamente pelas fiéis. Afinal, a frequência na visita, o jumbo e a comida são preocupações generalizadas entre as mulheres que visitam seus homens no sistema.5 Também os sacrifícios da caminhada, o que confere sacralidade à família, como, por exemplo, o cansaço causado pelas longas e desconfortáveis viagens, o peso das bagagens, as noites mal dormidas, a responsabilidade sobre a criação dos filhos, a veiculação de más notícias, as graves e recorrentes humilhações decorrentes do tratamento institucional, os gastos com o apenado e sua ausência no cotidiano familiar, são igualmente elementos que compõem a imagem da mulher-fiel. Do mesmo modo, ter proceder, estar na/ter disciplina alimenta o que se entende por fiel, em virtude do conteúdo predicativo condicionado à ideia de ter proceder e ter disciplina que brotavam do “estar na disciplina”, o solo referencial que orientava o comportamento das cunhadas. Retomando o argumento, para a composição da imagem da mulher-fiel compreende-se elementos como a circunscrição de um espaço relacionado à visita, visto que só pode ser fiel quem realiza visita em “cadeia do Comando”; o reconhecimento público do relacionamento amoroso com o apenado, visibilizado pela inscrição do nome da cunhada no rol do marido e a possibilidade de sua 5

Sistema era como as cunhadas se referiam de modo generalizado aos estabelecimentos prisionais.

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presença no “ônibus da família”; e a produção de um comportamento esperado das mulheres que aderiram e, portanto, estavam na caminhada. Não obstante, ser fiel não se esgota nisso. Não utilizar um vocabulário considerado grosseiro e evitar tornar públicos assuntos de conteúdo íntimo, sobretudo concernentes às relações com o marido durante a visita, eram algumas das orientações destinadas às cunhadas. Sempre se ressalta a necessidade de cuidado com o que se fala ou, como ouvi outras vezes, a importância dada “ao cuidado com a palavra”. Seja referente a um vocabulário ofensivo, seja referente à descrição pública de intimidades com os maridos. Para ser reconhecida como uma mulher-fiel, portanto, é preciso estar atenta ao que se diz. Não obstante, repetidas vezes participei junto às cunhadas de conversas sobre relações íntimas com o preso durante a visita. Após determinado tempo de convivência com as mulheres, senti-me à vontade em perguntar se não constituía um problema falarmos sobre tais intimidades, vistos os inúmeros comunicados proferidos em nossas viagens sobre a desaprovação destes assuntos. Explicaram-me as cunhadas que o problema não estava relacionado propriamente ao que se fala, ou seja, ao conteúdo das narrativas simplesmente. Três outras variáveis entram em cena quando o assunto é o “cuidado com a palavra”, a saber: modo de dizer, pessoas envolvidas e espaço ocupado. Como mencionado, o “cuidado com a palavra” não está simplesmente relacionado ao conteúdo narrativo. Antes, ele abrange a maneira como as mulheres apresentam o argumento considerado íntimo, a quem se expõe tais assuntos e o lugar ocupado pelas participantes da conversa no momento da fala. Desse modo, é possível dizer que a fiel preocupa-se com seu ato discursivo. “O cuidado com a palavra” alude à atenção prestada às possibilidades de ofensas propagadas face às maneiras, aos momentos e aos lugares em que se expõem as palavras. Ser fiel é estar sempre atenta aos seus próprios atos discursivos. Logo, espera-se da fiel uma circunspecção enunciativa. “Respeitar o marido na rua” é outra variável intrinsecamente ligada à noção de fiel. Sair com as amigas, frequentar festas (“baladas”) sem a presença do marido, não é uma atitude bem avaliada entre as mulheres dos presos. Não raramente mobilizam-se narrativas acerca da possibilidade da aproximação de outros homens em situações em que a mulher circula, sem seu marido, por territórios desconhecidos. Enfatizam as mulheres que a aparente disponibilidade da mulher, decorrente da ausência física do preso, resultaria em graves infortúnios. Nesse sentido, ser uma mulher fiel que respeita o marido envolve, antes do que a proibição em frequentar festas ou bares, a produção de um território de frequentação próprio às cunhadas. O cuidado em evitar um infortúnio iminente, como a circulação por territórios usuais que garantisse o reconhecimento da cunhada como cunhada, não raramente estende-se ao vestuário das mulheres e a um tipo específico de gênero musical, o funk (amplamente conhecido por suas coreografias sensuais). Assim, além da produção de um território de frequentação, o respeito ao

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.24-35, 2013 marido expressa-se mediante a preocupação com um conjunto de peças a vestir e com um gênero musical a escutar, de modo a esquivar-se da ostentação do corpo e tentação latente. Além da produção de um território de frequentação, das condicionantes do vestuário e dos limites musicais, apontam as cunhadas que espera-se da fiel (que de modo categórico afirma que é preciso respeitar o marido), que não se comunique com homens e tampouco se relacione com “más companhias”. Disse-me uma cunhada: “Não combina ser mulher do preso e ficar saindo ou tendo amizade com homens”, continua, “não dá pra ficar saindo, usando roupas insinuantes, escutar funk e andar em más companhias”. Essas premissas, que intentam configurar respeito ao apenado, também conferem às mulheres um perímetro de convivência, uma vez que demarca as possíveis companhias das mulheres. As linhas que fracionam um território de frequentação em perímetros de convivência (por exemplo, a porta da cadeia), evidenciam a distinção fortemente marcada pelas cunhadas a respeito das mulheres que estão na caminhada. Por exemplo, aparecem as mulheres contrárias às fiéis.

O contrário da fiel Com o passar das semanas durante a pesquisa de campo, pude notar que qualquer nova visita, quando não conhecida entre as cunhadas, potencialmente era considerada uma talarica ou um gadinho. Potencialmente considerada, por meio de comentários discretos, mas nunca acusada (afinal, é preciso ter cuidado com a palavra!). De qualquer modo, é evidente que um clima de desconfiança se espalha no ar quando um novo rosto se faz presente. Eu pude sentir isto na pele quando a novidade de minha presença gerou comentários curiosos a respeito das minhas “intenções na porta da cadeia”, como disseram as cunhadas. “Tenho certeza de que logo você vai tá vendo um preso”, ouvi algumas vezes. “Ah! fala a verdade, você tá aqui para arrumar um preso!”, ouvi outras tantas. É certo que o tom misturava brincadeira e ironia. O que talvez torne mais claro o recado de que não são vistas com bons olhos as mulheres que “procuram marido na cadeia”. De antemão, portanto, nenhuma mulher pode ser considerada fiel. Antecipadamente ao conhecimento de suas caminhadas (no sentido de trajetória de vida), as mulheres poderiam ser consideradas coisa, talarica, gadinho, recalcada, safada, ponte ou estes predicativos combinados. Exploro, a seguir, essas nomeações. Como rapidamente mencionado acima, a denominação coisa é atribuída às mulheres que visitam presos em “cadeias desfavoráveis”, ou seja, de população carcerária não relacionada ao PCC – presos também conhecidos como coisa. As cunhadas enfatizam com frequência que “mulher que fecha com coisa também é coisa”. As talaricas são avaliadas pelas cunhadas como “interesseiras”, “atrás do status de ser mulher de ladrão” e que, portanto, “nunca vão até o fim na caminhada”. De todo modo, a singularidade !29


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característica das talaricas diz respeito ao fato de que essas mulheres relacionam-se amorosamente com presos casados. Costumam manter contato com os apenados por meio dos perrecos (paqueras) no celular e, recorrentemente, ouve-se falar que iniciam seus relacionamentos via “disque amizade”. As talaricas constituem uma ameaça iminente aos relacionamentos das cunhadas, já que são amplamente conhecidas pela tentativa de “roubar” os maridos das cunhadas. Diferentemente da talarica que, momentaneamente, sustenta uma relação com o marido de outra cunhada, a gadinho é vista como uma mulher que o preso “jamais levaria a sério”. A gadinho “é mulher de uma noite”, ouvi algumas vezes. Assim como também ouvi que a gadinho “é mulher pra fazer sexo e não pra casar”. Logo, a mulher considerada gadinho não constitui uma ameaça aos relacionamentos das cunhadas, a despeito de sua existência não ser ignorada entre as mulheres. À recalcada associa-se o sentimento de inveja. De acordo com cunhadas, a mulher recalcada tem desgosto pelas conquistas alheias (“a recalcada morreu de inveja que a cunhada se formou na faculdade. Tinha que ver a cara dela”), além de desejo em possuir o que era de outra (“Sai fora, recalcada! Maior inveja porque meu marido vai sair de saidinha. Ainda bem que recalque aqui bate e volta”). A recalcada pode ser associada à mulher-coisa, também à talarica. Em potência, qualquer mulher pode ser considerada recalcada. Salvo, talvez, as gadinho, que, conforme as elucidações das cunhadas, são vistas como mulheres sem qualquer resistência. Contrárias à fiel, as cunhadas identificam também as safadas, que, potencialmente, caracterizam qualquer mulher. Considera-se safada a mulher que estabelece relação amorosa com um preso a despeito de ser publicamente reconhecida como sua mulher. Safada, igualmente, é a mulher que se relaciona com presos casados, ou/e que mantém relações com outros homens na rua ou mesmo com outros presos (por cartas ou perreco no celular). As safadas dizem respeito, ainda, às mulheres que não pagam suas dívidas corretamente e que não têm “palavra”. Por último, contrastivamente à fiel, evidenciam-se as pontes. Ponte é o nome que se confere às mulheres contratadas para levarem contravenções para dentro dos estabelecimentos penais. Drogas, celulares, carregadores e chips. Esses são os principais produtos transportados pelas pontes, que não são consideradas, pelas cunhadas, ameaças diretas aos seus relacionamentos. Ainda que se reconheça a possibilidade da efetivação de relações íntimas com os apenados, as pontes são identificadas como prestadoras de serviço e, seja como for, jamais confundidas com as mulheres dos presos. À imagem da fiel não se atribui os predicativos de coisa, talarica, gadinho, recalcada, safada ou ponte. Ser fiel é antagônico a isso tudo. Sendo assim, o oposto da fiel não é ser infiel. Não obstante, ainda que ser fiel e seu contrário estabeleçam claras diferenciações entre as mulheres, esses enunciados reiteram um aspecto um tanto consistente. De modo a explorar um panorama mais heterogêneo e inconsistente, viabilizado pelas variedades de definições elucidadas pelas cunhadas

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.24-35, 2013 sobre a noção de fiel, exploro a seguir as contiguidades em ser uma mulher-fiel, suas adjacências. Ou, nas palavras das cunhadas, “os tipos de mulheres que estão na caminhada”.

As adjacências da fiel Em um dos sábados, às 15h30, saí da pensão na companhia de uma cunhada e o motorista para buscar as visitas no estabelecimento penal. 15h30 era o horário em que soava o primeiro apito na cadeia para que as visitas começassem a deixar a instituição prisional. O segundo apito da cadeia soava às 15h45 e, ao som dele, nenhuma visita deveria permanecer no complexo penitenciário. Às 15h55 tocava o terceiro e último apito, e nesse momento já não deveria haver nenhuma visita no prédio. Caso isso ocorresse, “o preso vai pro pote e a visita pega um gancho”, o que, em outras palavras, significa dizer que ao apenado era submetido um castigo e à mulher uma suspensão nas visitas. Visivelmente cansadas, após saírem da cadeia as mulheres formavam grupos cujos assuntos geralmente diziam respeito à visita. Hidratavam-se, alimentavam-se, até que o seu meio de transporte chegasse (ônibus, vans, carros, táxis). Ao fim da visita, minhas colaboradoras de pesquisa deixavam o marido tomadas por ansiedade. Não exclusivamente pelo desejo de estarem com ele novamente no dia seguinte, mas por todos os procedimentos que envolviam a realização da visita do domingo. Chegamos à pensão e rapidamente as mulheres trocaram de roupa e pegaram suas carteiras para que o ônibus as levasse ao mercado no centro da cidade de Cerejeira. Outras cunhadas haviam levado dinheiro para a visita, cientes de que era preciso apressar-se com as compras a fim de assegurar uma vaga na cozinha da pensão para prepararem a comida da visita de domingo. Ignoraram o fato de vestirem a “roupa da cadeia”6 ou portarem a sacola do jumbo, e pararam no mercado antes que o ônibus chegasse à pensão. O ônibus aguardava o retorno das mulheres na praça para levá-las de volta com as compras. Algumas delas optaram pelo caminho a pé até a pousada, de modo a chegarem antes das mulheres do ônibus para, especialmente, garantirem as panelas. Na cozinha, em meio ao intenso falatório e à altíssima temperatura ambiente (veementemente alterada em virtude dos fogões industriais que, em certos momentos, faziam um barulho assustador), conversava com uma cunhada que me dizia existirem três “tipos” de mulheres na caminhada: “as que amam o ladrão [...] mulher fiel. As mães [...]. E as mulheres que gostam de cadeia [...] do crime e só querem status”. Das diferenças entre as mulheres na caminhada, a figura da mãe não será devidamente explorada, visto que não constituiu os esforços centrais da pesquisa. Vale, no entanto, dizer que é

Segundo as mulheres, as roupas que vestiam para a visita (calça legging, camiseta e chinelo) claramente as identificavam como familiares de preso. Algumas delas diziam não gostar dessa identificação. 6

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sempre enfatizado que as mães dos apenados são mulheres que estão na caminhada por amor incondicional ao filho. Logo, concernente às cunhadas, marcam-se diferenças, por exemplo, entre as mulheres que “gostam do ladrão” e mulheres que “gostam de cadeia”, “do crime” e “só querem status”. Apesar de reunidas em um único “tipo” de mulher à medida que contrasta da fiel, gostar de cadeia, de ladrão, do crime e desejar status operam algumas diferenças, exploradas mais abaixo. De volta às diferenças entre “gostar do ladrão” e “gostar de ladrão”, o primeiro relaciona-se com ser “a mulher do cara”, já o segundo com “gostar do crime”. Da mesma maneira, “gostar do ladrão” condiciona-se à esfera do “amor” e “gostar de ladrão” à esfera do “status”. Mais especificamente, justifica-se a caminhada com o fato de “gostar do ladrão”, por meio de sentimentos como o “amor”, afeição, apreço, que não permitem às mulheres “abandonar [o preso] no sofrimento”. O “amor” tem como efeito a incapacidade das mulheres, que por ele são afetadas, em não aderir a caminhada até o fim. As mulheres que “gostam de ladrão” muitas vezes têm uma história anterior à cadeia com o apenado. O que, em geral, identifica-se como atributo das mulheres que “gostam do ladrão”. Mas não são raras as histórias de mulheres que “gostam de ladrão” e que partilham momentos anteriores ao evento-prisão com o preso, contudo, de acordo com as cunhadas, fundamentado em dinheiro, “status” e bens materiais. O que, em outras palavras, significa dizer que não aguentam o sofrimento da cadeia até o fim. Desse modo, o que as distingue de fato (as mulheres que “gostam do ladrão” e as que “gostam de ladrão”) é que, como disse uma cunhada, “estas minas saem fora na primeira oportunidade. Quem gosta do crime, não aguenta o sofrimento”. Mulheres que “gostam de ladrão”, portanto, não suportam a caminhada até a liberdade do apenado. Dessa maneira, elas não podem se confundir com a fiel. As mulheres que “gostam do ladrão”, estas, sim, podem ser fiéis. Outro “tipo de mulher” que, a partir das narrativas das cunhadas, está na caminhada é a que “gosta de cadeia”. Gostar de cadeia liga-se ao ato de visitar o apenado a despeito de nutrir um forte sentimento por ele ou mesmo desejar uma posição privilegiada e benefícios materiais. Sendo assim, será possível dizer que somente o fato de ter o homem “atrás das grades” é o que instiga as mulheres que gostam de cadeia a visitar? Mas o que há “atrás das grades”? Muitas justificativas, por mulheres diferentes, em momentos diversos, foram-me elencadas a respeito dos possíveis motivos que conduzem as mulheres a gostarem de cadeia. Seria descuidado, desse modo, dizer que simplesmente a prisão lança algum tipo de feitiço sobrenatural sobre as mulheres (ainda que muitas vezes tenha sido assim justificado). Disseram-me as cunhadas, por exemplo, que o “cheiro da cadeia”; o “cuidado”, a “dedicação”, o “carinho” do apenado com a mulher; as “provas de amor”, sobretudo, a marca sobre o corpo, as tatuagens; os presentes; a “paixão” excepcional !32


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.24-35, 2013 dos homens por suas mulheres; a segurança diante da possibilidade de traições etc., é o que garante a possibilidade de existência de mulheres que “gostam de cadeia”. Diante de tantas vantagens, as mulheres que “gostam de cadeia” dificilmente abandonam a caminhada. Nesse sentido, elas poderiam ser consideradas mulheres fiéis, afinal, como mencionado, é, sobretudo, esta omissão das mulheres que “gostam de ladrão” ou do crime que inviabiliza seus reconhecimentos como fiéis. Não obstante, o fato de não estabilizarem o relacionamento na rua e a recorrência na caminhada, em certos casos com presos diferentes, não garantia a qualidade de fiel às mulheres que “gostam de cadeia”. Diferente disso, ser considerada “mulher do cara”, “mulher do preso”, pode conferir às mulheres a qualidade de fiel. As cunhadas marcam claras diferenças entre ser a “mulher do preso” e ser “esquema”. Às mulheres consideradas “esquema de preso”, diferentemente das “mulheres dos presos”, falta disciplina, um modo “ético e moral” de agir frente ao evento-prisão. E, desse modo, não poderiam se identificar com as mulheres-fiéis. Colocar o marido a par de todos os acontecimentos cotidianos e carecer de seu consentimento nas decisões diárias a serem tomadas são também formulações sensíveis à ideia de fiel que evocam claras divergências entre as cunhadas sobre o que se entende por “mulher” do preso (fiel): Não posso arrastar o meu marido. Ele está preso, preciso manter a sua reputação na rua. E não só na rua. Dentro da cadeia também. Não olho e não converso com nenhum outro preso. Não entro com roupas que marquem meu corpo [...]. A cadeia aqui é fora do ar e não dá pra saber nada dos que acabam de chegar de bonde, não se sabe se é talarico, estuprador, vai saber... eu tenho que fazer o meu papel como mulher do preso. Não devo andar com roupas insinuantes. Além de manter a reputação do meu marido, como sua mulher, tenho que contar tudo o que acontece do lado de cá da muralha. Conto tudo o que acontece para ele, pelas cartas, pelas visitas. Tem oito anos que ele está preso, mas sabe de tudo, tudo, tudo que acontece aqui fora. E mais, ele tem participação em todas as decisões da minha vida. É como se ele estivesse em casa. Não tomo nenhuma decisão sem a sua opinião.

A fala da cunhada sugere que, na condição de “mulher” do apenado, deve compartilhar todos os acontecimentos do mundão (a vida fora da cadeia) com o marido, além de consultá-lo sobre as diretrizes cotidianas. Este é o “papel” da mulher como “mulher” para a cunhada. Todavia, uma segunda cunhada pensava diferente: Eu sou a mulher do preso, não sou o seu lagarto [aquele que atende a todas as disposições de outro]. Venho aqui porque eu gosto de dar pra ele, e não pra passar caminhada da rua. Quer saber da rua? Então não faz coisa errada e seja preso. Não saio com carta, não passo recado. Aí fica muito fácil tirar cadeia.

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Ser “mulher” do apenado, de acordo com essa narrativa, ganha sentido mediante o contraste com a formulação “não sou o seu lagarto”. Assim, para a cunhada, contar ao preso tudo o que se passa na “rua”, partilhar seus impasses diários, configura, antes, uma relação de interesse do preso sobre ela, do que um “papel” de “mulher”, como sugerido na fala da cunhada anterior. Ser a “mulher do preso”, nesse caso, condiciona-se aos próprios desejos e anseios da cunhada. Uma terceira interlocutora contribuiu com sua opinião: As mulheres só perdem com isso de contar tudo pro preso. Quanto mais elas falam do que acontece aqui fora, mais elas perdem. São cada vez maiores e mais graves as cobranças dos maridos para colocar as suas mulheres na disciplina. Uma vez eu precisava entrar com uma situação na cadeia, que na verdade a gente tinha pagado pra uma ponte que correu em cima da hora. Os meninos precisavam da situação, então resolvi eu mesma entrar. Pra tomar coragem fui com uma amiga, que também ia visitar, até um bar. Tomamos uma cachaça. Pra dar coragem, sabe? Quando cheguei no barraco do meu marido ele já estava sabendo que eu estava no bar. Como? Alguma mulher que entrou antes passou a caminhada pro marido que passou pro meu. Ele não questionou nada, nem perguntou da situação. Pegou uma faca improvisada, cortou todinho o meu cabelo e saiu do barraco. Eu fiquei muito nervosa. Quebrei o barraco inteirinho, peguei as minhas coisas e fui embora. Eu não podia fazer isso. Arrasta o preso, sabe? Mas eu fiquei cega. Quando ele viu que eu tinha saído do barraco ficou furioso. Você sabe que a mulher não pode sair do barraco sem o marido, né? Aqui nessa cadeia é assim. Ele foi atrás de mim, eu saí correndo, ele correu. Quando entrei na gaiola7 e o funcionário fechou o portão, mostrei os dois dedos do meio e disse ‘aqui ladrão’. O funcionário queria que eu fizesse um B.O. contra o preso, mas você acha? Disse que não seria necessário que, em menos de dois meses, já estaria lá dando pro ladrão de novo. E não é que tava mesmo? O que eu quero dizer com isso, é que as próprias mulheres dos caras se arrastam. Já entram na cadeia contando tudo o que acontece aqui fora. Desse jeito, cada vez mais as mulheres dos presos vão ser podadas. Ninguém ia saber que ouvimos funk aqui fora ou bebemos, se elas mesmas não levassem lá pra dentro.

O comentário da cunhada mostra que falar tudo para o marido tem como efeito alguns constrangimentos às mulheres. “As mulheres dos caras”, em seus termos, são prejudicadas por dividirem todos os acontecimentos do mundão com o preso. Para a cunhada, este estímulo para que falem tudo sobre elas não significa que são usadas pelo apenado (que são seus lagartos). Tampouco confere qualquer positividade à mulher, como sugere a fala da primeira cunhada, que se orgulha da atitude de contar tudo ao marido. Diferentemente disso, a terceira cunhada indica que ser “mulher” do apenado corresponde a pensar em benefício das mulheres em contraposição à formulação de que é preciso passar a caminhada da rua para o preso.

Gaiola são os portões que separam os raios das sessões administrativas da prisão. É como uma gaiola, com dois portões (o que dá acesso ao raio e o que dá acesso às sessões administrativas). Um portão só é aberto quando o outro está fechado. 7

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.24-35, 2013 Em suma, diante das variações a respeito do que se entende por “mulher”, o que chamei de adjacências da fiel, compreende-se que ser mulher-fiel, ainda que se estabeleça retoricamente uma imagem bastante sólida (a partir de elaborações sobre seu contrário e sua imagem), é um efeito do que as cunhadas absorvem e liberam face às circunstâncias do evento-prisão. Logo, é possível dizer que as cunhadas matizam suas concepções e atuações mediante a imagem da fiel. Imagem desenhada como o âmago de onde se produzem os enunciados mais heterogêneos à medida que dele se afasta, e mais homogêneos quanto mais dele se aproxima. As concepções e as atuações matizadas pelas cunhadas, a existência de mulheres contrárias às fiéis e adjacências, é o que constitui a mulher-fiel na caminhada.

Recebido em 30 de maio de 2014 Aprovado em 11 de junho de 2014

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Pat Garret & Billy the Kid. Conservação e Risco1 Jorge Mattar Villela Professor Adjunto Universidade Federal de São Carlos/UFSCar

Resumo O ensaio que se segue leva a efeito a discussão do filme Pat Garret & Billy the Kid, do diretor Sam Peckinpah visando à reflexão de dois grandes caminhos percorridos pela vida em sua evolução criadora: imobilidade e segurança e mobilidade e risco. A tese, bem como os conceitos, são sobejamente conhecidas e foram desenvolvidos pelo filósofo francês Henri Bergson. A idéia geral é presidida pela história trágica de dois foras da lei cujas vidas foram atravessadas pela célebre “Guerra do Gado” decorrida no último quarto do século XIX, no estado norte americano do Novo México, no condado de Lincoln. O roteirista e o diretor do filme, baseados num livro do próprio Garret, mostram o momento em que este último escolhe a via da adaptação, do envelhecimento e da imobilidade, tornando-se um homem da lei. Doravante inimigo de Billy, Pat encara as suas novas opções em face de um oponente cuja via é a do risco, da mobilidade e da consciência. Palavras-chave: Antropologia, western, vida, revolução. Abstract Billy The Kid and Pat Garret: Conservatism and risk This essay discusses the movie Pat Garret & Billy the Kid, directed by Sam Peckinpah, taking into account two great paths threshed by life in its Creative Evolution: imobility and security on the one hand, and mobility and risk, on the other. The main thesis, as well as the concepts, are wildly known and was developed by French philosopher Henri Bergson. The main argument is traced by the tragic story of two outlaws whose lives were crossed by the famous “Cattle War” in the New Mexico, at Lincoln county. The screenplay shows the moment when both men disrupt their friendship. Pat Garret chose the adaptive way, making himself elected sheriff of the county, while Billy keep his old fashioned way of live in movement against authorities. From then on Billy’s enemy, Pat faces his new options in face of an opponent whose live is that of risk, mobility and conscience. Key words: Anthropology, western, life, revolution.

Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, na mesa redonda Revolta e Contracultura. 1

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.37-45, 2013 Gostaria de agradecer aos organizadores da mesa; precisava saber o nome da mesa, não sei mais onde procurar. Podia entrar como nota (mesa tal, evento qual) por me terem aceito e terem aceito a proposta feita pelo professor Piero Leirner. Uma proposta que eu aceitei por vaidade e que os organizadores aceitaram por generosidade baseada na ideia primeira lançada por meu vizinho de apresentação, o professor Amir Geiger, de montar uma conversa sobre Contra-Cultura.2 Essa apresentação, agora publicada sob a forma de ensaio, visa estabelecer ligações entre alguns temas do filme Pat Garret & Billy, the Kid, dirigido por Sam Peckinpah. A primeira versão do filme, do roteiro e da montagem, data de 1973. O roteiro foi escrito por Rudolph Wurlitzer e reescrito pelo diretor para a versão de 1976. A rigor, existem quatro montagens do filme, embora, até onde vão os meus conhecimentos, apenas duas, a de 1973 e a de 1976 (uma espécie de “versão do diretor”) sejam acessíveis ao grande público. Apesar desses dados sumarizados acima, esta apresentação isola um par de temáticas que dizem respeito a políticas existenciais, correspondentes ao que será dito adiante concernente a uma tese do filósofo francês Henri Bergson. Para levar esse critério às últimas consequências, em virtude dos meus próprios interesses e da limitação de tempo de uma apresentação em mesa redonda, que deu origem a este ensaio, deixei de fora vários aspectos decerto interessantes: os cênicos, os de interpretação, os de profundidade dos personagens. Todos muito discutidos e criticados nos EUA.3 Deixei de fora, não sem um certo pesar, a lindíssima trilha sonora composta por Bob Dylan, sendo que uma das músicas, Knocking on Heavens Door, tornou-se um clássico do folk rock. As questões que geraram este texto partem de apenas um aspecto que me parece insistentemente sublinhado no filme e que eu gostaria de sintetizar por meio da leitura de um trecho de uma conferência proferida pelo filósofo francês Henri Bergson, na Universidade de Birmingham, 62 anos antes do lançamento do filme (a tradução é minha): Quer a encaremos no começo ou ao cabo de sua evolução, a vida é sempre um duplo trabalho de acumulação lenta e gasto brusco: trata-se para ela de fazer a matéria armazenar, por meio de uma operação lenta e difícil, uma energia potencial que se tornará de um golpe energia de movimento. Ora, como procederia de outro modo uma causa livre, incapaz de quebrar a necessidade à qual a matéria está submetida, Gostaria também de agradecer ao meu colega Messias Basques por ter disponibilizado os arquivos digitais dos diálogos do filme. Não custará acrescentar que o texto que se segue é a reprodução do que foi dito, não havendo entre o dito e escrito nenhuma alteração substantiva. 2

Por ter escolhido o formato de ensaio antes que o de artigo, considero-me livre de citar autores e de precisar os debates que eventualmente aparecerão ao longo do texto. Há uma longa lista de referências bibliográficas que qualquer interessado poderá encontrar na internet. Por ter escolhido este formato, abri mão de divisões do texto pois considero que o seu estado de confusão colabora para enfatizar as íntimas relações entre modo de vida, a teoria bergsoniana e a alegoria criada por Peckinpah. A leitura inteligente e ácida feita por meu amigo, o historiador Raul Goiana foi fundamental para a reafirmação do estilo ensaístico. 3

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capaz, no entanto, de fleti-la, e que quereria, com a mínima influência da qual dispõe sobre a matéria, obter dela, numa direção cada vez mais bem escolhida, movimentos cada vez mais poderosos... utilizando uma energia que a matéria acumulou durante todo o tempo que se fez necessário. Porque, para que a matéria viva, cresça e evolua duas vias se abrem a ela. Ela pode se orientar no sentido do movimento e da ação – movimento cada vez mais eficaz, ação mais e mais livre: isto é o risco e a aventura, mas é também a consciência, com seus graus crescentes de profundidade e intensidade. Ela pode, ao contrário, abandonar a faculdade de agir e escolher que ela carrega em si, em forma de esboço, arranjar-se para obter, parada, o que lhe é necessário em lugar de ir procurar: é a existência segura, tranquila, burguesa, mas é também o torpor, primeiro efeito da imobilidade... e a inconsciência.

Enfim, este é o ponto que, segundo me parece, é o crucial em Pat Garret & Billy the Kid, sobre o qual passarei a falar. Um problema que é a vida e que transcrevo para uma questão da política da existência. Para insistir com Bergson, a vida coloca problemas de um modo que eles já trazem as suas soluções. Eles não se solucionam pela liberdade de escolha. As vias liberadas pela “evolução criadora” muitas vezes abrem agulhas, como nas vias férreas, em que um caminho diverge lentamente do outro, correndo paralelamente, ambos, para diferirem radicalmente ao longo do tempo. Esse esquema de diferenciação e mistura é mesmo o trilho sobre o qual correm as vidas dos protagonistas do filme e de alguns outros personagens secundários. Pat Garret & Billy the Kid é um caminho de diversas possibilidades. Em primeiro lugar, é um aglomerado de justas que se misturam umas às outras, que se desfiam em algumas sequências do filme. O roteiro é baseado na história de dois fora-da-lei do Novo México, de Santa Fé, condado de Lincoln, no momento imediatamente posterior à célebre Guerra do Gado, que opôs o mega-rancheiro John Chisum ao advogado e comerciante James Dolan. Essa guerra fez recrutar e trazer de outras regiões dezenas de pistoleiros, cowboys armados e, coextensivamente, a lei e seu executores, que foram, como de costume, arregimentados por uma das partes da contenda. Pat Garret e Billy the Kid, que eram assaltantes e ladrões de cavalos, lutaram quer de um lado, quer de outro. E o fim da guerra os fez aliados durante algum tempo. A esse fundo histórico, a figura do roteiro não faz senão umas poucas referências ou alusões, como quem conversa com um interlocutor que conhece previamente o assunto; a quem, enfim, nada é preciso explicar. O filme trata da separação de Pat e Billy, cada um de um lado da lei. A lei, essa coisa engraçada, como diz Billy em certo momento do filme, que um dia, quando lutava contra Chisum, fez de Garret um fora-da-lei. As primeiras sequências do filme são, quase em simultaneidade, o princípio da diferença e o seu resultado final. Uma separação sob a forma de uma agulha os mantêm juntos, embora separados no território e em lados distintos do combate. Pat e Billy partilham de uma das vias assumidas pela vida. Uma via da qual o futuro xerife Patrick J. Garret está prestes a diferir. !39


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.37-45, 2013 Pat Garret fora eleito xerife do condado, encarregado de expulsar ou matar Billy e seu bando. Primeira grande temática, então, a amizade rompida. Um tema já enfrentado por Peckinpah em um filme anterior, outro western, chamado Wild Bunch. Um filme célebre pela sequência final, até então a de maior número de quadros por minuto na história do cinema. Um tiroteio em que todos os participantes morrem. Morrem os membros do bando selvagem, movidos pela vergonha que os mataria em vida: a covardia de abandonar um dos seus à mercê da sanha sanguinária de um chefete local do exército mexicano. Esse tema da amizade rompida está presente num dos raros diálogos entre os protagonistas do filme de 1973, mas também na versão de 1976: Pat comunica a Billy que o eleitorado quer que ele parta. “Mas eles estão me pedindo ou me mandando?”, pergunta Billy. “Eu estou pedindo. Mas em cinco dias eu vou te obrigar. É quando assumo o cargo de xerife de Lincoln”, diz Pat. “Velho Pat. Ao xerife Pat Garret, vendido para Aliança de Santa Fé”, ou, no roteiro original, filmado em 1976, “vendido para Chisum e para os bancos”. Billy ergue um brinde ao velho amigo. E pergunta em seguida: “Como você se sente?”. E recebe como resposta: “Eu me sinto como se os tempos estivessem mudando”. “Os tempos, talvez”, retruca Billy, “mas não eu”. A “Aliança de Santa Fé” (Santa Fé Ring), não custa abrir um parêntese a esse respeito, era um grupo formado por advogados e especuladores fundiários cujo poder de julgar, incriminar, dissuadir, assassinar e tornar legal todo tipo de crime dominou o estado do Novo México entre o final do século XIX e o início do XX, quando do assassinato de Pat Garret. Esse era o eixo das críticas dos antigos amigos de Pat. Voltar as costas às antigas alianças, vender-se, estar em companhia desse tipo de gente, fazer concessões e acordos. Amizade rompida em função da modificação do território, em função do acirramento das leis que apoiavam o interesse comercial que é representado pelo governador do estado, pelos grandes rancheiros e pelos barões do comércio. Gente com a qual Pat terá de conviver doravante. Gente que o repugna, com a qual não conviveria não fosse a sua adesão às vias da conservação, da imobilidade, do envelhecimento. Repulsa expressa por Billy no momento de sua prisão: “you are in poor company”, Pat. Ao que Garret responde, enfatizando a sua escolha pela conservação, “Yeah, but I’m alive, though”. Mas Billy reproduz a pergunta de Richard Deshayes, redigida num texto interrompido pela explosão de uma granada sobre a qual Deshayes teria se lançado: “sobreviver, é isso que queremos?”. Isso é o que Pat deseja. Um desejo que declara amplamente como justificativa das suas ações, percepções e concepções. Envelhecer, desacionar a sua consciência, como deixa muito claro o que diz a um de seus velhos companheiros: “chega uma hora em que um homem já não quer [ou não pode mais] saber o que acontecerá a seguir”. A função da consciência em Bergson, não custará lembrar, é lidar com o que virá imediatamente, com o futuro iminente e com o presente imediato, baseada que está num passado que não para de crescer indefinidamente às expensas do presente. Pat abriu mão !40


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da mobilidade, da aventura e do risco, escolhendo o torpor e a inconsciência. Tornando-se o que Billy pretendia evitar ao negar-se a fugir para o México, onde seria, como diz um de seus parceiros, mais um gringo velho e bêbado, cagando chilli e esperando por nada. Abrir mão, decidir, querer, escolher, são todas palavras imprecisas, decerto. Elas remetem a uma liberdade, para usar os argumentos de um outro filósofo, Espinoza, que é uma ilusão da consciência quando vítima da imaginação. Pat Garret apenas segue uma solução para um problema. O território está mudando. A essas mudanças oferecem-se diversas soluções, mas não muitas. “You guys are playing a loosing game”, diz aos companheiros de Billy um dos ajudantes do futuro xerife de Lincoln. Seguir a antiga solução, a da luta contra a lei e as autoridades, é fadar-se à extinção, segundo sua avaliação. A avaliação, como dirá sobre si mesmo a Billy, de um homenzinho com um trabalho a fazer. Aderir aos novos tempos é a solução da segurança e do conforto. Mas também a do envelhecimento, da tristeza, da imobilidade e do torpor. Ambos, Pat e seu ajudante, estão prontos a pagar esse preço. Billy e seus comparsas declaram não poder acompanhá-los. Garret pode, embora Garret revele-se entristecido e envergonhado por sua escolha, talvez motivado pelo contraste da repugnante presença de John W. Poe, o deputy nomeado para acompanhá-lo na caçada a Billy, na limpeza do território, nas possibilidades abertas pelos novos empreendimentos. Poe é o anti-Billy. É simultaneamente o Pat do amanhã imediato, o Pat do dia seguinte, do instante seguinte à morte de Billy. Mas Poe é precisamente o modo de vida que Pat, esse personagem trágico, rejeita. É a imagem que Pat prefere não ver e reconhecer. A vergonha de si mesmo, da nova imagem de si mesmo, o faz atirar em seu reflexo no espelho, logo após matar seu antigo companheiro. Ali, Pat mata duas figuras simultaneamente. Mata o Poe que o habita, que o domina. Mas aniquila também o seu passado, o homem de ação, o aliado de Billy, o homem da aventura, do dispêndio, do gasto brusco. O que lhe sobra é a vergonha, eles nos diz claramente em 1910, momentos antes da emboscada que sofreu; a boca saburrenta e a vida oprobriosa convivendo lado a lado, a convivência ignominiosa a discutir sobre propriedade fundiária, sobre a lei, a recordação abjeta dos pactos vis que havia feito com Chisum e com os banqueiros invadindo-lhe uma consciência doravante povoada de traços e imagens. A lembrança, esses traços que emergem, disse um dia Bergson, de contrabando pela porta entreaberta de uma consciência que se esforça em recalcá-las. E que surgem em grande número sempre que a consciência relaxa a sua prontidão, que afrouxa a sua patrulha, como no sonho e na velhice. E, no envelhecimento e na trapaça, Pat só encontra a morte. A sua vida segura é capaz, quando muito, de assegurar a existência de uma consciência: a má consciência, repleta de traços, de arrependimentos e de culpa. Repleta e portanto incapaz de preparar-se para a ação, para a apreciação do instante que se segue. Num jantar em que se alude à presença da cúpula da Aliança de Santa Fé, o governador do estado disserta sobre o futuro da região: “este território é vasto e primitivo. Há dinheiro aqui, !41


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.37-45, 2013 investimentos crescentes e interesses políticos. Devemos proteger estes investimentos”. É a vergonha de estar a serviço desses compromissos, desses interesses, que faz Garret dar tempo a Billy, que faz Garret desejar que Billy viva, já que ele, Pat, ruma já ao torpor. Como observa a senhora Garret, entre a vergonha das atitudes de seu marido (“meu povo já não fala comigo”, ela lhe conta) e a constatação de que ele “está morto por dentro”. O asco e a repulsa que Poe desperta em Pat revelam-se desde o primeiro encontro e são explicitadas no seguinte diálogo: Poe: “O condado precisa escolher. Acabou o tempo dos bandidos e foras da lei e dos pobretões”. E Pat responde: “Eu vou te dizer isso uma vez e espero não ter de repetir. Esse lugar está envelhecendo e eu quero envelhecer com ele. Agora, Billy não quer assim. Ele deve ser um homem melhor para isso. Não estou julgando. Mas não quero que me expliques nada. Não te quero dizendo nada sobre ele e sobre mais ninguém em meu maldito condado”.

Pat Garret, doravante um homem casado, com residência fixa, quer envelhecer, embora a possibilidade aberta por Billy, sua resistência, a beleza de sua juventude e de seu frescor ainda o defendam contra o veneno que suas novas alianças inoculam em sua existência. A velhice, de resto, ter envelhecido, melhor ainda, é uma crítica que lhe fazem diversas vezes. “Ótimo tiro, principalmente para um velho casado”, diz Billy num dos primeiros diálogos do filme. O próprio Pat lamenta a sua sorte quando hesita tristemente diante do pequeno portão da casa onde a Sra. Garret o aguarda para jantar. Para retomar Deshayes, não são os velhos o alvo da abjeção, é o que os faz envelhecer, o que os faz se fixar, o que os arrasta para a imobilidade. Porque, como diz o velho xerife que morre lentamente com uma bala no ventre ao som de Knoking on Heavens Door, à beira de um lago sob o olhar de sua mulher, uma índia mexicana, é preferível tornar-se um fora-da-lei do que se aliar a Chisum e aos banqueiros. Porque, para retomar ainda uma vez Deshayes, se a lei conduz ao envelhecimento, é preciso rejeitá-la e reconhecer que toda juventude é fora da lei. Se a lei é o que conduz à espera, aos braços cruzados, que leva ao torpor e à inconsciência, que permite que os canalhas nos governem, que os policiais no controlem, que os patrões nos explorem, é preciso rejeitar veementemente a lei. “Aos cumpridores das leis”, diz Espinoza no Tratado teológico político, “prometeram-lhes... aquilo que mais ama o vulgo, enquanto que a seus infratores os ameaçaram com o que mais temem”. A lei, essa encomenda monárquica, dirá Foucault, é a forma de se “sujeitar o vulgo como a um cavalo com um freio”, segue Espinoza. Lei, completa ele, é “um modo de vida que é imposta aos homens por mandato de outros”. Consequentemente, “os que obedecem às leis vivem (...) sob a lei e parecem seus escravos”. Será preciso rejeitar, ou, como diz Isabelle Stengers, é preciso “cultivar a deslealdade em relação aos que nos governam”. Ao menos é esse o recado que Pat Garret, o homem envelhecido e casado, ouve de vários de seus antigos parceiros e amigos. !42


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Envelhecido, cansado, desistente, trapaceiro, covarde, é com essas palavras que os personagens que Pat vai encontrando em seu caminho o enxovalham sem réplica possível. Garret sabe que segue a via do torpor e da sobrevivência. Sabe que precisa doravante recolher o que lhe é necessário sem ir buscar. No lugar do butim, o imposto. No lugar dos cavalos, as charretes. No lugar do campo aberto, a cerca. No lugar do movimento, a inconsciência. Mas em 1881, Pat precisa ainda da mobilidade e da vida. O animal prepara o terreno para que a árvore lance as suas raízes. Uma mariposa nostálgica do casulo, ele precisa ainda de suas asas para reentrar em sua cápsula. A exemplo de Billy, Pat quase não come. Ao longo de todo o filme, o primeiro come uma colherada de feijão e uma lasca de torta; o segundo, uma dentada numa coxa de galinha e uma fina fatia de bacon torrado. Bebem, no entanto, muito. No caso de Billy, o acúmulo lento da pilhagem é despendido abruptamente em festas e orgias. “Are you guys having a fiesta here?”, perguntou Pat ao chegar ao velho Fort Sumner enquanto o bando divertia-se atirando nas cabeças das galinhas vivas enterradas até o pescoço. Não, nós vivemos sempre assim, recebe a frase como resposta e a seguinte pergunta: “It’s gotta be pretty hard to turn your back on all that, isn’t it?”. Esse homem, seu amigo, a quem Billy se recusa a matar quando tem a possibilidade, ele reconhece, no entanto, não é mais o mesmo homem. Assim como os seus ajudantes, vários deles antigos companheiros de assalto e pilhagem. “I never figured you for the Law either”, diz Billy a Pat. E recebe a justificativa da conservação: “It’s just a way of staying alive”. E conclui: “And I aim to live to be rich, old and grey”. Sobrevivência e adaptação contra o risco do movimento e da resistência. Diversos outros personagens declaram a sua resistência aos novos tempos que deformam as tramas vividas e revividas no território. Que desmancham, por conta de anseios e ambições exóticos e exógenos, as existências formadas pela alegria do combate. Que substituem o roubo pelo comércio, a dívida pela troca, a palavra pelo contrato e pela lei. Partir, deixar o território é a alternativa adotada por vários deles. Inclusive por Billy em certo momento do filme. “You can live anywere. Depends on who you are”, assevera Alias, Vulgo, apenas Vulgo,4 o personagem de Bob Dylan, acrescentando que uma estadia no México não seria mal, pois ofereceria a Pat a possibilidade de não ter de persegui-lo e matá-lo. Pois, como Billy e Alias constataram, assim como Poe e os investidores comerciais, Pat fazia o possível para dar a Billy a possibilidade de retirar-se do território. Billy, que rejeitava a ideia de partir, enfim, rumou para o México. E é então que se encontra com outro ex-fora da lei doravante a serviço de Pat: Alamosa Bill. Esse encontro nos revela, outra vez, o dilema da vida e da sobrevida; e da impossibilidade da livre escolha. Mas sublinha o problema do guerreiro concernente à memória, à morte em combate e ao envelhecimento. Ao se depararem um 4

- What’s your name? – Alias. – Alias what? – Alias whatever you please. – Then, Just alias. – So, Alias it is!

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.37-45, 2013 diante do outro, o ladrão e o distintivo, os dois homens sabem que apenas um duelo pode repor as forças, agora em desequilíbrio, em seu devido lugar. Ambos recusam a sobrevida em favor do modo como serão lembrados. Ambos perguntam-se, em dois momentos, se não haveria outra forma de resolverem o problema. Não havia. Alternadamente, um pergunta ao outro: “You ain’t thought of another way, have you?”. Não, eles não tinham outro meio. A não ser que seguissem a via da adaptação, da imobilidade, da sobrevivência e, consequentemente, da infâmia. E Alamosa Bill, após ser baleado numa justa de dez passos, às portas da morte, diz a Billy: “ao menos eu serei lembrado”. Eles preferem, diria talvez Jean-Pierre Vernant, a kléos áphthiton à léthé, a glória imortal ao esquecimento. Após triunfar no duelo, antes de cruzar a fronteira, Billy the Kid depara-se com um bando de pistoleiros a serviço de Chisum torturando um de seus companheiros, um velho mexicano que se decidira pela migração e que assistia ao estupro de sua filha, ao mesmo tempo em que era impiedosamente açoitado. Billy mata todos os inimigos e resolve voltar para o Novo México. Constata o seu equívoco, mantém-se em movimento, afirma o seu conflito contra a lei que tortura e estupra, contra as autoridades, contra os banqueiros, contra o governador, contra os investidores, contra a ferrovia; contra todas as fantasmagorias que assombram o território, que fazem fugir os homens e as mulheres que ali mobilizavam o que lhes estava disponível. Billy está em guerra contra todos os que pretendiam substituir e confundir a vida com a sobrevida. Billy é o homem que esclarece e que sublinha, categoricamente, que viver não é sobreviver. Billy rejeita o desalojamento que a apropriação mercantil do território lhe impõe. Rejeita a desterritorialização promovida pelos banqueiros, pelos senhores da terra e interessados na guerra, nas artimanhas da política, na captura pela Lei. Billy, o homem da segunda função, é o triplo pecador do ponto de vista da civilização: pecador contra a lei dos homens, pecador contra os princípios do capital, pecador contra as exigências da adaptação, da imobilidade e do torpor. Pat Garret & Billy the Kid foi dirigido por Sam Peckinpah, o diretor que “sempre me empurrou para o abismo. E saltou sempre atrás de mim”, disse um dos atores com quem trabalhou. Sam Peckinpah morreu aos 59 anos e, segundo seus próximos, parecia vinte anos mais velho. De acordo com depoimentos dos amigos, Peckinpah viveu no limite de suas forças. Despendeu bruscamente a energia acumulada na matéria durante todo o tempo necessário. De alguma forma que me é difícil precisar, mas que talvez seja mesmo necessário permanecer difusa, a vida de Sam Peckinpah e seu Pat Garret & Billy the Kid falam de nós; desse tempo que é o nosso, dessa nossa contemporaneidade. Dessa contemporaneidade em que assistimos às maiores trapaças, às alianças mais surpreendentes. Em que testemunhamos gente deixando tudo para trás em nome da sobrevivência, assim como fez Pat Garret. Em que todas as forças se voltam para a conservação e para a acumulação. Em que se tende a desapossar e desalojar as possibilidade de vida !44


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e de existência. Em que se pretende transformar o planeta num território proibido para os pobretões e foras da lei, como queria J. W. Poe. Em que se planeja reduzir os modos de vida ao seu grau mais baixo de intensidade. Será preciso seguir uma das vias. Pois ambas estão disponíveis. É preciso saber se, como Richard Deshayes, desejamos uma emancipação coletiva ou se pretendemos continuar mais “600 anos vivendo os nossos contratos individuais e individualizantes”. Talvez, desde há décadas, tenhamos raramente vivido um momento em que as oportunidades estejam dadas como no presente, neste presente. E não custa notar: sempre em que elas se apresentam com mais vigor, mais ferozes tornamse os homens da lei, da autoridade, do envelhecimento. Tanto mais quantidade de liberação existe, mais raivosos tornam-se os escravos, os tiranos e os sacerdotes. Porque Peckinpah fala para nós desde os anos 1970, usando uma alegoria do século XIX. Mas talvez ele fale para todos os tempos, para toda a eternidade. Para falar como Bergson, e concluir a minha breve participação neste belo evento, Billy e Pat trilham as duas vias possíveis diante das quais a vida se desenvolveu. A das possibilidades do espírito, a da evolução criadora, por um lado. Por outro, a da adaptação orgânica. Espírito e organismo, dois caminhos possíveis. A subserviência à matéria e à reprodução simples. A criação de formas novas. Para Bergson, parece-me, nunca a criação esteve tão à disposição de uma forma de vida como no homem. Sabemos, no entanto, o que fizemos dela. O humano que se construiu para nós, ao menos desde há três séculos, sabemos que caminho preferiu trilhar. Será preciso descobrir se é desejável que construamos novas armas, com a matéria e com os conceitos, para abandonar esta grande via e seguirmos pelas veredas, cheias de risco, mas também de movimento e consciência. Uma questão resta ainda. Uma dúvida a ser tirada antes que eu agradeça a bondade e a paciência de me terem ouvido. Por que é que puseram uma fala como essa que acabei de fazer num evento de antropologia? Preciso reconhecer que, para além da simpatia, da generosidade e da gentileza dos organizadores, não me sinto capaz de explicar. Mas se me perguntarem o motivo pelo qual eu compus um texto como esse para ser dito num evento de antropologia, eu intuiria o seguinte: gosto de pensar que a antropologia pode ser uma arma interessante e completamente original de luta. Ela pode se transformar esporadicamente, não importa onde e nem sob que circunstâncias, numa força que incomoda e envergonha a tolice; como um dia o fez uma certa filosofia. Mais ainda do que isso, em certos casos, ela pode se transformar numa máquina antienvelhecimento que se põe em movimento contra os mais diversos aparelhos de conservação e de resignação, apática ou entusiasta, para usar o esquema de Stengers. Essa seria, para insistir ainda uma última vez no vocabulário deleuziano, uma grande traição. Recebido em 31/03/2014 Aprovado em 03/06/2014 !45



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Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa1

Jean Tible Fundação Santo André e Diretor de projetos na Fundação Friedrich Ebert

Resumo Como lutas, cosmovisões e perspectivas ameríndias perturbam, interpelam e dialogam com Marx? Como pensar Marx no contexto de uma América Indígena? Faz sentido? Não se situam em mundos radicalmente distintos, inviabilizando tal diálogo? Existem pontos de contatos? Como conceitos caros a Marx tais como capitalismo, produção, luta de classes se transformam nesse encontro? Palavras-chave: Davi Kopenawa, Karl Marx, capitalismo, lutas indígenas, cosmologias.

Abstract Cosmologies against capitalism: karl marx and Davi Kopenawa How Amerindian struggles and perspectives disturb, interpellate and dialogue with Marx? How to think Marx in the context of an Indigenous America? Does it makes sense? Are not both in radically different worlds, preventing such a dialogue? Are there points of contacts? How important concepts for Marx such as capitalism, production, class struggle change in this encounter? Keywords: Davi Kopenawa, Karl Marx, capitalism, indigenous struggles, cosmologies.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, na mesa redonda Revolta e Contracultura.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.46-55, 2013 Como lutas, cosmovisões e perspectivas ameríndias perturbam, interpelam e dialogam com Marx? Como pensar Marx no contexto de uma América Indígena? Faz sentido? Não se situam em mundos radicalmente distintos, inviabilizando tal diálogo? Existem pontos de contatos?

Fantasmagorias Talvez um surpreendente ponto de contato situe-se nas relações entre duas fantasmagorias. De um lado, o líder Yanomami no Brasil Davi Kopenawa. De outro, o pensador revolucionário europeu Karl Marx. Como se relacionam esses dois anti-capitalismos? Davi Kopenawa explicita uma crítica social e ecológica ao capitalismo desde a Amazônia, opondo um saber Yanomami a uma cultura branca vinculada à mercadoria. De acordo com o líder Yanomami, os brancos dizem: “Somos os únicos a nos mostrar tão engenhosos! Somos realmente o povo da mercadoria! Poderemos ser cada vez mais numerosos sem jamais passar necessidades!”. Abriu-se, assim, um ímpeto de expansão: “Seu pensamento se enfumaçou e a noite o invadiu. Ele se fechou às outras coisas. Foram com estas palavras da mercadoria que os brancos começaram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar as águas”. Começaram em suas próprias terras, as quais, agora, que não tem mais florestas nem água do rio para beber: “É por isso que eles parecem refazer a mesma coisa aqui.” (Kopenawa e Albert 2010: 432) Percebe a escrita como “um simulacro de 'visão' que só remete ao domínio dos manufaturados e das máquinas” dos brancos, para quem a floresta é inanimada. Contrapõem-se ao “pensamento 'esquecido' e mortífero dos brancos” (Albert 2002: 249) os Yanomami, que “bebem o pó das árvores yãkoãna hi que é o alimento dos xapiripë”. Estes “levam então nossa imagem no tempo do sonho. É por isso que somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças durante nosso sono. Eis nossa escola para realmente conhecer as coisas”. Ao contrário da cultura da escrita, “Omama não nos deu livro onde estão traçadas as palavras de Teosi [Deus] como as dos brancos. Ele fixou suas palavras no interior dos nossos corpos” (Kopenawa e Albert 2010: 52). Tais palavras renovam-se constantemente: “Não precisamos desenhá-las nas peles de papel. Seu papel está em nosso pensamento, que tornou-se tão longo quanto um livro muito grande sem fim” (Kopenawa e Albert 2010: 87). Engenhosos, mas ignorantes das coisas da floresta. Usam muito as “peles de papel” (livros) onde “desenham suas próprias palavras” (Kopenawa e Albert 2010: 50). No entanto, “os antigos brancos desenharam o que eles chamam suas leis nas peles de papel, mas são mentiras para eles! Eles só prestam atenção às palavras da mercadoria!” (Kopenawa e Albert 2010: 465), permitindo um paralelo com a crítica de Marx da constituição como constituição da propriedade privada (1844a) e quando este coloca que “o primeiro direito humano é a igualdade frente à exploração” (Marx 1867: !47


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327). Eis, segundo Kopenawa, o povo das mercadorias: “Eles acabaram com suas florestas e sujaram seus rios […] Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar” (1998). Kopenawa narra a violência existente nas cidades por conta do dinheiro e das disputas pelos minérios e petróleo arrancados da terra. A terra dos brancos é vista como uma terra de desigualdades e de “muita gente pobre”, porque “os brancos ricos prendem suas terras, pegam seu dinheiro e não dão de volta. Índio não. Não temos pobres. Cada um pode usar terra, pode brocar roça, pode caçar, pescar” (1991). E alerta que “eles não parecem preocupados de nos fazer todos morrer com as fumaças da epidemia que escapam. Eles não pensam que estão assim estragando a terra e o céu e que eles não poderão criar outros” (Kopenawa e Albert 2010: 446). Em sua compreensão do capitalismo, Kopenawa articula os modos de produzir e pensar, quando diz que “os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seus pensamentos estão cheios de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias” (1998). Existe um excesso de poder predatório por parte dos brancos, reforçado pelo contexto da corrida pelo ouro na Terra Yanomami. Imagens que Marx mesmo usa em O Capital, ao colocar que o capital, trabalho morto, “só se anima ao sugar como um vampiro o trabalho vivo” (1867: 259), tendo “uma sede vampírica de trabalho vivo. É o porquê de sua pulsão imanente da produção capitalista de se apropriar do trabalho a cada uma das 24 horas do dia” (1867: 287). Kopenawa sentiu, ademais, o poder de sedução do mundo dos brancos, chegando a optar em sua juventude por virar branco quando morava em Manaus e não queria mais retornar para sua aldeia: “Eu queria ser branco. Sou Yanomami, mas pensei: quero virar branco. Tô na cidade, sei andar na rua, de bicicleta, de carro. Tô olhando televisão, comendo comida 'de plástico', usando colher, garfo, tudo. Eu tinha uns 14 anos” (Kopenawa: 2012). É a mesma sedução que opera nos jovens de hoje. No garimpo, os brancos “se matam uns aos outros para possuir o ouro e atiram os cadáveres ao frio da terra”, enquanto “os Yanomami fazem guerra para vingar os seus mortos, cujas cinzas funerárias eles dão aos seus aliados para enterrar na fogueira doméstica: 'Os Yanomami pranteiam os homens generosos porque as suas cinzas valem mais do que ouro'”. Frente “a essa ordem de reciprocidade simbólica em que a morte e a destruição dos bens alicerça a troca” na economia Yanomami, “está a ordem do valor e da acumulação da economia privada”. Nesse contexto, eles temem e inquietam-se frente à alteridade radical que os brancos encarnam e que vêem “refletir-se nas macabras caçadas do espírito xawarari que assombram as visões dos xamãs”. Isso tomaria a figura de um “ouro canibal” que “seria, assim, uma forma de crítica xamânica do fascínio letal daquilo que Marx designou como 'o deus das mercadorias'” (Albert 2002: 254). !48


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.46-55, 2013 A crítica de Kopenawa aproxima-se da crítica marxiana do fetichismo da mercadoria. À primeira vista, diz Marx em O Capital, a mercadoria parece uma coisa autoexplicativa, mas ao analisála com mais atenção, percebe-se que se trata de uma coisa “extremamente confusa, cheia de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos”. Ao encará-la como valor de uso não se avista seu mistério, sendo perceptíveis sua satisfação das necessidades humanas e o fato de ser fruto do trabalho (não residindo nisto seu caráter místico). No entanto, continua Marx, “assim que ela entra em cena como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível suprassensível” (1867: 81). Tal mistério se liga ao fato da mercadoria indicar aos homens o caráter social do seu trabalho – como “características objetivas dos frutos do trabalho em si mesmo, como qualidades sociais que essas coisas possuiriam por natureza” – e lhes dar a imagem da relação social dos produtores como relação exterior, feita entre objetos: “É esse quiproquó que faz os produtos se transformarem em mercadorias, coisas sensíveis suprassensíveis, coisas sociais”. Marx relaciona isto com as “zonas nebulosas do mundo religioso” (1867: 82-83), onde os produtos humanos parecem figuras autônomas, possuindo vida própria. O que ocorre no mundo mercantil com os produtos humanos, Marx propõe chamar de fetichismo, fetichismo dos produtos do trabalho, das mercadorias. O valor transforma “todo produto do trabalho em hieróglifo social” (1867: 85). Trata-se de uma relação social de produção, embora tente se apresentar sob a forma de “coisas naturais estranhamente providas de propriedades sociais”. Nesse sentido, Marx imagina o ponto de vista das mercadorias. Se elas pudessem falar, “diriam: nosso valor de uso pode interessar os homens. Mas nós, enquanto coisa, ele não nos toca nem um pouco. E sim, de nosso ponto de vista de coisa, é o nosso valor: o comércio que nós mantemos enquanto coisas mercantis o mostra suficientemente” (1867: 94-95). A troca é decisiva, já que é nesta que o valor dos produtos do trabalho se realiza. Marx recorre à linguagem teatral na forma da aparição da mercadoria como uma entrada em cena e “a autonomia dada às mercadorias responde a uma projeção antropomórfica. Esta inspira as mercadorias, sopra nelas um espírito, um espírito humano, o espírito de uma palavra e o espírito de uma vontade” (Derrida 1993: 250). O capitalismo como produção de fantasmas, ilusões, simulacros, aparições. Marx recorre a todo um vocabulário espectral – a palavra espectro já aparecia três vezes na primeira página do Manifesto –, descrevendo o dinheiro “na figura da aparência ou do simulacro, mais precisamente do fantasma” (Derrida 1993: 80). A emissão de papel-moeda por parte do Estado é vista como “magia do dinheiro” (Marx 1867: 106), levando em conta sua transformação do papel em ouro. O Estado é percebido como “aparição” e o valor de troca como “visão, alucinação, uma aparição propriamente espectral” (Derrida 1993: 82). Derrida lê A Ideologia Alemã como a mais gigantesca fantasmagoria de toda a história da filosofia. !49


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Deve-se ver no capitalismo uma religião, diz Walter Benjamin (Löwy 2006: 204). Se uma matriz mais racionalista predomina no Manifesto, como na dessacralização do mundo moderno, em O Capital, Marx opera um deslocamento, ao aproximar as “auréolas e o encantamento do reino espiritual da religião do reino da renda, do interesse, do capital, do dinheiro, dos valores e, em última instância, de sua geografia mais profunda, o embriagador, mágico e sedutor mundo das mercadorias” (Kohan 1998: 224). Isso se liga, igualmente, à leitura da acumulação primitiva como o pecado original da economia e da voracidade canibal do capital em sua extração da mais-valia. Não são somente Davi Kopenawa e Karl Marx que percebem este caráter fantasmagórico do capitalismo. O antropólogo australiano Michael Taussig trabalha “as exóticas ideias de alguns grupos rurais da Colômbia e da Bolívia acerca do significado das relações capitalistas de produção e troca as quais eles são coagidos”. Esses grupos camponeses as pensam, ao entrar em contato direto com elas, como “intensamente antinaturais, até mesmo diabólicas, práticas que a maioria de nós – que vivemos em sociedades baseadas na mercadoria – passa a aceitar como naturais no funcionamento da economia diária e, portanto, do mundo em geral.” (Taussig 1980: 23) Nesse contexto, Philippe Pignarre e Isabelle Stengers defendem que não é no âmbito dos conceitos modernos que se deve buscar caracterizar o capitalismo, pois “a modernidade nos fecha em categorias demasiado pobres, tendo como eixo o conhecimento, o erro e a ilusão”. Quem pode conjugar sujeição e liberdade? Para, os autores, “é algo que os povos mais diversos, exceto nós os modernos, sabem a natureza temível e a necessidade de cultivar, para se defender, dos meios apropriados. Este nome é feitiçaria” (2005: 54). O capitalismo configura-se como um sistema feiticeiro que não tem feiticeiros, “operando num mundo que julga que a feitiçaria só é uma 'simples crença', uma superstição e não necessita então de nenhum meio adequado de proteção” (2005: 59), tendo em vista a divisão entre os que acreditam (bárbaros, selvagens) e os que sabem (modernos). Marx mesmo trata o capitalismo como “mundo enfeitiçado” (Deleuze e Guattari 1972: 17) e tal “hipótese feiticeira” não lhe seria estranha, ao levar em conta que seu objetivo foi precisamente o de mostrar como as categorias burguesas são falsas sob os véus de abstrações e consensos. Opiniões livres, supostamente sem escravidão, num mundo no qual o trabalhador vende livremente sua força de trabalho, remunerada de acordo com seu preço (justo) de mercado. Um sistema que envolve, ao contrário, menos “um pseudo-contrato – teu tempo de trabalho contra um salário –” e mais “uma captura do 'corpo e alma’. ” (Pignarre e Stengers 2005: 182) A crítica marxiana baseou-se no questionamento das categorias tidas como normais e racionais. E, também, na denúncia das abstrações capitalistas, ficções “que enfeitiçam o pensamento” (Pignarre e Stengers 2005: 72). O papel de uma crítica e prática inspirada em Marx leva, assim, a “diagnosticar o que paralisa e aprisiona o pensamento, e nos deixa vulneráveis a sua

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.46-55, 2013 captura” (Pignarre e Stengers 2005: 62). O capitalismo como mestre das ilusões, sendo o objetivo marxiano o de explicitar seus processos.

Lutas, produção, espaços, tempos A crítica selvagem de Kopenawa e Marx nos leva a outras compreensões de luta e produção. Walter Benjamin, em suas teses Sobre o Conceito de História, coloca que “o conceito mais essencial do materialismo histórico não é o materialismo filosófico abstrato: é a luta de classes” (Löwy 2001: 45). Benjamim afirma que o marxismo não tem sentido se não for herdeiro de séculos de lutas e sonhos emancipadores, cada luta dos oprimidos questionando não somente a dominação de hoje, mas igualmente as vitórias de ontem. Bem diferente de um certo evolucionismo marxista, busca “arrancar a tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la” (1940: 224), recusando-se a se juntar ao cortejo triunfal. Propõe, ademais, pensar a luta de classes não pela interpretação dos vencedores, mas dos vencidos. Benjamin rejeita a divisão civilização/barbárie, mesclando ambos os conceitos, pois “nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim, como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de transmissão na qual ele passou de um vencedor a um outro”. Nesse sentido, o pensador marxista deve “escovar a história a contrapelo.” (1940: 225)2 Toda época vive a possibilidade de libertar os seus e os outros. Benjamin pensa, neste âmbito, o papel do proletariado, como a “última classe escravizada, a classe vingadora que, em nome de gerações de derrotados, leva a termo a obra de libertação. Esta concepção que, por um momento, deverá reviver nas revoltas de Spartacus” (1940: 228). Não por acaso, no “Questionário Proust” (Marx 1868: 140) – que Benjamin certamente não conhecia – o herói preferido de Marx é… Spartacus! As leituras marxianas de Benjamin permitem outra compreensão da luta de classes. Estamos num sistema mundial híbrido e, assim, não faz sentido opor “tradição” e “modernidade”, pois “civilizações pré-coloniais são em muitos casos muito avançadas, ricas, complexas e sofisticadas; e as contribuições dos colonizados à assim chamada civilização moderna são substanciais e em grande medida não-reconhecidas” (Hardt e Negri 2009: 68). Além disso, com a No contexto da conquista da América, não havia um solo institucional para o evangelho. Logo, para converter torna-se imperativo primeiro civilizar: “Para inculcar a fé, era preciso dar ao gentio lei e rei” (Viveiros de Castro 2002: 190). É pertinente notar que a mesma fixação etnocêntrica pelo divisor entre civilização e barbárie e seu elo com a existência ou não de um Estado aparecem não somente em relação às sociedades indígenas. Marx o identifica no episódio da Comuna de Paris. Seu esmagamento, um massacre e vingança sangrentos contra a população parisiense, – que une os antigos adversários, a saber, os governos de Versalhes e da Prússia – ocorre em nome da civilização e do progresso (nas palavras mesmo de Thiers: “A ordem, a justiça, a civilização foram vitoriosas” (Marx 1871d: 179). Ademais, na repressão à Comuna é retomado um hábito abandonado, a execução de prisioneiros desarmados, Marx ligando esta às ocorridas na Índia no mesmo período, indicando ironicamente um “progresso da civilização!” (1871d: 184) 2

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expansão – quase ao limite do planeta – do modo de produção capitalista, todos estamos inseridos numa mesma contemporaneidade. Isto está também presente nos elos entre comunismo primitivo e comunismo por vir. Para Marx e Engels, o sistema capitalista “criou pela primeira vez a história mundial” (Marx e Engels 1845-1846: 60). Esta nem sempre existiu. Trata-se de um resultado e o comunismo é entendido nesse contexto, pois “pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento” (Marx e Engels 1845-1846: 39). Na visão de Marx – e de vários marxistas – haveria um elo entre comunismo primitivo e o comunismo moderno que resolveria essa contradição, unindo pré e o pós-capitalismo.3 O capitalismo tem como pressuposto a separação do trabalhador dos meios de produção. Isto é, a separação do trabalhador de sua terra, ou seja, “a propriedade fundiária” como “raiz da propriedade privada” (1844b: 75), salientando que juristas, filósofos e economistas “disfarçam esse fait initial da conquista sob o argumento do 'direito natural'” (Marx 1872: 1476), evidentemente direito natural de alguns. É a propriedade comunal como o início da trajetória de todos os povos. Em suas lutas, Kopenawa pleiteia uma ecologia que é “tudo que veio a existir na floresta, longe dos brancos; tudo que ainda não está cercado” (Kopenawa e Albert 2010: 519-520), colocando, assim, novamente a questão da propriedade coletiva. E, ao pensar nos contatos com os brancos, o líder Yanomami desenvolve um relato que se liga às construções comuns: "Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras das pessoas da floresta para se pôr a devastá-las. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta: "Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!". Mas eu, sou filho dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo!". Ela existe desde sempre, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri o céu!". Também não clamo: "Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!". Eles Como isso se colocaria para os índios? Seria possível para eles conciliar (pois estão dentro do capitalismo contemporâneo) a formidável capacidade técnica dos brancos com suas relações sociais outras? De acordo com certa mediação antropológica, os ameríndios vêem os brancos em "sua gigantesca superioridade cultural (técnica ou objetiva) [que] se dobra de uma infinita inferioridade social (ética ou subjetiva)". Seus desafios seriam o de intentar "utilizar a potência tecnológica dos brancos, isto é, seu modo de objetivização, sem se deixar envenenar por sua absurda violência, sua grotesca fetichização da mercadoria, sua insuportável arrogância, isto é, por seu modo de subjetivização – sua sociedade" (Viveiros de Castro 2000). É possível? 3

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.46-55, 2013 sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos. Digo simplesmente que também os como, isso é tudo (Kopenawa 1998). Esta compreensão Yanomami do comum liga-se a outra. Marx, tanto nos Manuscritos Parisienses quanto nos Grundrisse nota no capitalismo “uma despossessão dos saberes tradicionalmente ligados ao trabalho” e, nesse sentido, “uma das tarefas da revolução comunista é de proceder a uma reapropriação da inteligência coletiva” (Renault 2009: 146). Isso se liga à reflexão acerca das enclosures (condição do surgimento do capitalismo), pois “o que foi destruído com os commons não foram somente os meios de viver dos camponeses pobres, mas também uma inteligência coletiva concreta, ligada a esse comum do qual todos dependiam” (Stengers 2009:108). A filósofa belga propõe, assim, um deslocamento da famosa frase do Manifesto sobre a história das lutas de classes, pensando que descendemos ou das bruxas – isto é, das criações coletivas pré-capitalistas – ou de seus caçadores; do pensamento dominante e unificador capitalista ou dos múltiplos comuns. O que uniria estas relações sociais pré-capitalistas tão distintas? Ao menos o fato da expansão capitalista buscar destruí-las todas (Stengers, 2009b). Em termos marxistas, a oposição destas diferentes formas sociais e econômicas à apropriação privada. Juntam-se caça às bruxas, escravidão e conquista da América nos primórdios do capitalismo (Federici 2013). A reapropriação tem um sentido clássico, de reapropriação dos meios de produção, na forma de que “o proletariado tenha livre acesso a, e o controle de máquinas e materiais que usa para produzir”. Entretanto, no contexto das transformações contemporâneas, isto toma novo aspecto, no sentido de “ter livre acesso a, e controle de, conhecimento, informação, comunicação e afetos” (Hardt e Negri 2001: 430), entendo-os como meios de produção. Isto leva a uma apreensão de produzir como “criação de significação, de mundo” (Cocco 2009: 205). Aproxima, assim, formas de inteligência coletiva, tanto mitos ameríndios quanto criações dos trabalhadores. A produção assume, assim, um caráter cosmopolítico (por questionar a divisão natureza/ cultura). Os mitos não devem ser apreendidos como representação das relações reais, mas como determinação “das condições intensivas do sistema (inclusive do sistema de produção)” (Deleuze e Guattari 1972: 185). E o saber-fazer técnico se liga à capacidade de conectar subjetividades, de criar relações intersubjetivas (Descola 2005: 22), por exemplo, entre pessoas, plantas e espíritos (das plantas) ou pessoas, caças e espíritos (das caças), permitindo a produção. Marx pensou, como vimos, o proletariado como “representante geral”, que a partir do seu sofrimento universal representaria a abolição do Estado, da sociedade, das classes, da propriedade, do trabalho. A Comuna, “forma enfim encontrada”, seria um tipo concreto de “particular universal”. É nesse sentido que Löwy, lendo Benjamin, coloca que “a verdadeira história universal, fundada na rememoração universal de todas as vítimas sem exceção – o equivalente profano da ressurreição dos mortos – só será possível na futura sociedade sem classes” (2001: 79). !53


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Em carta a Ruge, em setembro de 1843, Marx escreve: Veremos, então, que o mundo possui faz tempo o sonho de uma coisa da qual bastaria tomar consciência para a possuir realmente. Perceberemos que não se trata de traçar uma distância entre o passado e o futuro, mas de realizar as ideias do passado. Veremos, enfim, que a humanidade não começa uma obra nova, mas que ela realiza sua obra antiga com consciência. (1843b: 46)

Deleuze e Guattari afirmam em outro momento que, “de uma certa maneira, o capitalismo assombrou todas as formas de sociedade, mas ele as assombra como um pesadelo aterrorizante” (Deleuze e Guattari 1972: 164). Por sua vez, Marcel Mauss defende, no Ensaio sobre a Dádiva, que as “sociedades arcaicas” não são privadas de mercado, pois “o mercado é um fenômeno humano que, para nós, não é estranho a nenhuma sociedade conhecida” (1925: 67), a distinção se dando no regime de trocas e na invenção da moeda. Lendo esta carta de Marx, podemos nos perguntar, será que o comunismo também esteve sempre presente? No Manuel d'Ethnographie, Mauss defende que, quase por toda parte, “todas as possibilidades sociais já estão presentes, simultaneamente. Ao menos numa forma embrionária” (Graeber 2010: 53). Nesse sentido, o espectro de Marx (reiteradamente – há mais de um século – declarado morto) poderia estar bem vivo, nas Américas. Vivo em diálogo e em contato com as resistências indígenas (no Brasil, Bolívia, México, Chile, Equador, Venezuela...), talvez dando um novo significado ao espectro do comunismo que abre o famoso manifesto…

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Recebido em 14/05/2014 Aprovado em 25/07/2014 !55


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O que a Reforma Psiquiátrica Brasileira produziu? Sobre tecnologias psicossociais e categorias antimanicomiais1 Martinho Silva Doutor em Antropologia Social Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Resumo Este ensaio sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira procura compreendê-la a partir de uma perspectiva foucaultiana, destacando o que esse processo sócio-histórico produziu, e não o que deixou de fazer. Principalmente com base nos resultados de pesquisas desenvolvidas pelo autor na última década, na interface entre saúde mental, justiça criminal e direitos humanos, são apresentadas algumas transformações tanto nas práticas em curso nos serviços quanto nas propostas elaboradas no âmbito das políticas públicas de saúde mental, particularmente as técnicas de poder nos Centros de Atenção Psicossocial e as nomeações oficiais criadas para abordar populações e estabelecimentos no Ministério da Saúde. Tecnologias psicossociais, tais como a referência do usuário e do familiar ao serviço, e categorias antimanicomiais, tais como a de pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei, ganham relevo neste tipo de análise, mais do que a presença ou ausência de serviços extrahospitalares, leitos e lógicas manicomiais no território nacional. Palavras-chave: Saúde mental, categorias sociais, políticas públicas. Abstract What has the Brazilian Psychiatric Reform produced? On psycho-social technologies and anti-asylum categories This paper addresses the Brazilian Psychiatric Reform on a Foucaultian perspective, i.e., instead of what it failed to accomplish, it highlights the effects it produced as a socio-historic process. Based on research carried out by the author over the past decade on the interface between mental health, criminal justice, and human rights, some of the transformations taking place at public services, and in public policy on mental health are presented. Rather than on the presence or absence of outpatient services, beds, and asylum logics in the country, the analysis is focused on the techniques of power involved at two particular sites: Psycho-Social Service Centers and official names created to address populations and national health institutions. At those, psycho-social technologies such as users’ and family members’ referrals, as well as anti-asylum categories such as ‘adult person with a mental disorder in conflict with the law’ gain relevance. Keywords: Mental health, social categories, public policy.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, na mesa redonda Reforma Psiquiátrica no Brasil e na Itália.

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Introdução Antes de mais nada, gostaria de agradecer o convite da Prof.ª Marina Cardoso para participar desta mesa-redonda, e assim conversar com vocês sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira. É importante destacar, desde já, que faço parte do movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil, e que trabalhei alguns anos como psicólogo em uma equipe multiprofissional e interdisciplinar de um Centro de Atenção Psicossocial. Também fui consultor técnico em um departamento do Ministério da Saúde, chamado saúde no sistema penitenciário, no qual participei da elaboração de políticas públicas voltadas para o atendimento de internos dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Meus estudos sobre o campo da saúde mental levaram em conta não apenas as perspectivas dos usuários e profissionais dos serviços, mas também as dos familiares, vizinhos e demais moradores das cidades nas quais acontecem descredenciamentos de hospitais psiquiátricos conveniados ao Sistema Único de Saúde, os fechamentos de hospícios. Gostaria de começar a palestra retomando um assunto que o Maxmiliano mencionou, que é a visita do Franco Basaglia ao Brasil. Eu diria que ele continua entre nós, em um certo sentido, pois um livro chamado Holocausto Brasileiro (Arbex 2013) acabou de ser publicado, e o título parece inspirado justamente nas palavras de Basaglia, quando o mesmo conheceu a Colônia de Barbacena (MG) na década de 1970. Ele compara o hospício com um campo de concentração nazista. O livro também poderia ter outro nome, como Trem de Doido, já que o crescimento do número de internos no referido hospício tinha estreita ligação com um trem que passava por algumas cidades do estado de Minas Gerais, recolhendo pessoas rejeitadas por suas famílias e comunidades, despejando-as no estabelecimento e tornando-o um grande depósito de indesejados. Embora a autora mencione em seu livro o trem e as pessoas que transitaram por ele, ela optou por nomear sua obra a partir de uma alusão ao genocídio do povo judeu na Europa. Sobre o Trem de Doido – esse fenômeno brasileiro e propriamente mineiro –, há um amplo trabalho de documentação realizado no citado livro, bem como em outros estudos (Jabert 2001). Já conhecemos a importância da Nau dos Loucos para a história da loucura, fenômeno descrito por Michel Foucault (Foucault 1978), bem como da noção de instituições da violência (Basaglia 1985) para a compreensão das reformas psiquiátrica do pós-Guerra. Contudo, há muito por se fazer para compreender a importância do Trem de Doido no interior da história da psiquiatria e do asilo no Brasil, já que grande parte dos estudos concentram-se nas instituições asilares, nos estabelecimentos, no surgimento das colônias, hospícios e manicômios no país, como por exemplo os estudos de Teixeira (1998). Desta maneira, gostaria de sublinhar que falarei sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira neste contexto da produção acadêmica nacional sobre o tema, no qual dispomos de mais informações !58


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sobre alguns assuntos do que sobre outros. Gostaria também de convocar vocês, estudantes desta universidade, para colaborar no processo de transformação desse contexto, empenhando-se no estudo desses assuntos que têm sido pouco alvo de investimento intelectual até o momento. Também nesta direção de estimulá-los a realizar as próprias pesquisas sobre a história da psiquiatria e do asilo no Brasil, como também de produzir outras interpretações sobre o processo de reforma psiquiátrica nacional além das que virão a escutar nesta palestra, eu gostaria de acentuar como as compreensões sobre o que acontece no campo da saúde mental atual são, muitas vezes, não só diferentes, mas também divergentes. Uma das teses sobre a constituição deste campo aponta para a centralidade da psiquiatria biológica como saber, em disputa com outros de ordem ‘psi’ e ‘social’, sendo que estaria em processo uma biologização do mental nas últimas décadas, uma hegemonia de saberes fisicalistas. Essa tese é compartilhada por vários autores, entre eles Duarte (2010), Russo e Venâncio (2006). Ao mesmo tempo, quando nos afastamos das iniciativas centradas na metrópole carioca e deitamos nosso olhar sobre experiências locais no estado do Rio Grande do Sul, percebemos que outros autores indicam processos distintos que se encontram em curso neste mesmo campo, como a sociologização do sofrimento e a desbiologização da patologia (Biehl 2005). Neste último caso, o acolhimento de pessoas com suspeita de portar um transtorno mental nos estabelecimentos do SUS terminaria por colocar em primeiro plano as condições de vida e determinantes sociais da doença, ao mesmo tempo em que deixa de investigar outros agravos e doenças além daquelas consideradas de ordem psiquiátrica. Essas perspectivas sobre o campo da saúde mental são divergentes, embora não excludentes, já que ambos os processos, biologização do mental e sociologização do sofrimento, podem estar acontecendo em paralelo. Um exemplo do rendimento desta última perspectiva teóricometodológica na descrição e análise etnográfica do atendimento em saúde na própria metrópole carioca pode ser conferido em Assis (2014), ao acompanhar o itinerário terapêutico de uma pessoa portadora de transtorno mental em situação de comorbidade, e notar o quanto o cuidado ofertado na rede de atenção em saúde local atende às necessidades de uma usuária diagnosticada como hanseniana e alcoolista. O que estou procurando ressaltar é a possibilidade de levar em conta esses contrastes entre interpretações do campo da saúde mental nos estudos que porventura venham a ser conduzidos sobre a reforma psiquiátrica brasileira, bem como a possibilidade de não partir exclusivamente de uma das perspectivas apresentadas no desenho do projeto de pesquisa. Enfim, vamos à minha interpretação sobre a reforma psiquiátrica brasileira (RPB), em grande parte inspirada nas obras produzidas pelo e no Instituto de Medicina Social da UERJ, no qual realizei meu mestrado em saúde coletiva, e onde atualmente sou professor. Vou começar por uma das conferências proferidas por Michel Foucault no Instituto em 1974, a única das quatro que não foi !59


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.57-68, 2013 publicada no conhecido livro ‘Microfísica do Poder’ (Foucault 1979), nomeada ‘La Crisis de la Medicina o la Crisis de la Antimedicina’ (Foucault 1976). Nela, o autor realiza um debate com outro autor muito relevante no campo da saúde coletiva, Illich, cujos estudos mostravam o quanto a medicina poderia ser iatrogênica, ou seja, produzir doenças mais do que curá-las. Illich, na leitura que Foucault faz dele, enfatiza o quanto a própria atividade terapêutica hegemonicamente hospitalar pode desdobrar-se em mortes mais do que preservar vidas. Ao contrário de Illich, Foucault defende que não é só pelos fracassos da medicina que devemos encontrar uma via privilegiada para compreendê-la, mas, principalmente, pelos seus sucessos: “(...) es el hecho de que la medicina podria ser peligrosa, no em la medida de su ignorancia y falsedad, sino em la medida de su saber, em la medida em que constituye una ciencia.” (Foucault 1976: 156). Em outras palavras, não é pelo que a medicina deixa de fazer, mas pelo que faz que devemos nos preocupar com ela, é isso que Foucault vai chamar de uma “iatrogenia positiva da medicina”, cujas conquistas – antibióticos, entre outros avanços citados – já estão alterando os seres humanos enquanto espécie, de certo modo tornando-nos mais frágeis na mesma medida em que aumenta nossa longevidade: En cambio lo que resulta mucho más interessante y plantea el verdadero problema es lo que podria denominarse no la iatrogenia, sino la iatrogenia positiva, los efectos médicamente nocivos debidos no a errores de diagnóstico ni a la ingestión acidental de essas substancias, sino a ala propia acción de la intervención médica en lo que tiene de fundamento racional. (Foucault 1976: 157)

Pretendo realizar aqui o mesmo procedimento teórico-metodológico com a reforma psiquiátrica brasileira, de modo que possamos nos perguntar sobre o que ela produziu, mais do que sobre aquilo que deixou de realizar. Basicamente, proponho que nos concentremos nas tecnologias psicossociais em curso nos serviços de atenção diária, bem como nas próprias categorias antimanicomiais criadas ao longo do processo de implantação desses estabelecimentos para se referir aos mesmos, como o próprio termo “serviço de atenção diária”, nem tanto um “ambulatório” ou mesmo um “hospital”, ou, ainda, um “hospital-dia”, entre outras expressões. Essa perspectiva sobre a RPB diferencia-se de outras em vigor. Delgado (2013) apresenta os resultados de sua gestão na Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde, grifando a diminuição dos leitos psiquiátricos e a expansão dos estabelecimentos que compõem a rede de atenção em saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), bem como a inversão no financiamento das ações e serviços de saúde mental, do predomínio do investimento na modalidade hospitalar em direção ao ambulatorial. Os efeitos da RPB dizem respeito à presença ou ausência de leitos e serviços extra-hospitalares no estudo desse autor, de modo que a diminuição do porte dos !60


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hospitais psiquiátricos – do número de leitos – é colocada em destaque como estratégia governamental para garantir uma transformação da assistência psiquiátrica pautada pela proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental. Embora consideremos muito relevantes esses efeitos reformistas no âmbito da formulação de políticas públicas, aqui apresentaremos os produtos da RPB a partir de outro ponto de vista, no qual a formulação e implantação de políticas públicas também têm lugar, embora tecnologias psicossociais e categorias antimanicomiais criadas nesse processo adquiram maior relevo na análise.

Tecnologias psicossociais Em primeiro lugar, gostaria de falar sobre a atenção diária, diferenciada tanto da modalidade ambulatorial quanto da hospitalar de atendimento em saúde mental. Um dos marcos da RPB é a criação do CAPS Luiz Cerqueira em São Paulo (SP), no ano de 1987 (Golberg 1996). Neste momento, assim como a psicoterapia institucional francesa, as comunidades terapêuticas inglesas e a psiquiatria preventiva norte-americana, um dos principais modelos de reforma psiquiátrica cujos representantes encontravam-se em interlocução com os brasileiros envolvidos na RPB era a psiquiatria democrática italiana (Amarante 1995). Já na década de 1950, o debate era principalmente com a anti-psiquiatria inglesa, por meio dos ateliês no Museu de Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro (RJ) e da interlocução entre a psiquiatra Nise da Silveira e o psiquiatra Ronald Laing (Bezerra Jr. 1992). Então, temos um diálogo entre representantes da psicologia analítica e da antipsiquiatria inglesa antes da ditadura militar no Brasil, resultando em uma prática nos ateliês dentro do Centro Psiquiátrico Pedro II no município do Rio de Janeiro, chamada pela própria Nise da Silveira de “terapia ocupacional”: nem propriamente uma internação, nem necessariamente uma consulta, embora dentro do hospício, foram designadas posteriormente por Melo (2012) de “atividades expressivas”. Após a ditadura militar, um diálogo entre representantes da psicanálise – muitas vezes, embora nem sempre, lacaniana – e a psiquiatria democrática italiana, desdobrando-se em uma prática nos grupos e oficinas dentro do CAPS Luiz Cerqueira no município de São Paulo, chamada pelo próprio Jairo Golberg de “clínica da psicose”, e reconhecida por Jurandir Freire Costa no prefácio do livro sobre essa clínica de modos de gerenciar a vida como uma alternativa entre a consulta no ambulatório e a internação no hospital psiquiátrico, agora fora dos muros deste estabelecimento asilar. Em ambos os casos, a convivência mais do que o confinamento ocupam um lugar fundamental, bem como o que passamos a chamar de “atenção diária”, inclusive chamando os estabelecimentos nos quais essa prática era realizada de “serviços de atenção diária” (Delgado e Weber 2003) mesmo quando a portaria 224/1992 já estava em vigor, ou seja, mesmo quando a terminologia “Centro de Atenção Psicossocial” já vigorava para nomear serviços extra-hospitalares de saúde mental. !61


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.57-68, 2013 Essa perspectiva da atenção diária, diferentemente da modalidade ambulatorial ou hospitalar, aponta para os graus de intensidade do cuidado, não para o tratamento e cura de doenças, sendo que isso está bem caracterizado na portaria 336/2002, na qual a “responsabilidade do serviço pelo território” – presa in carico segundo os italianos – apresenta-se como uma diretriz mais contundente no desenho da rede de atenção em saúde mental. Demanda espontânea não seria mais a lógica hegemônica, com as infinitas listas de espera, mas a garantia de acesso de todos os moradores de uma dada área geográfica ao serviço, com posterior definição da permanência ou não em atendimento, sempre dependendo do caso. Um alto grau de intensidade do cuidado pode se colocar no horizonte da atenção psicossocial em algumas situações, os atendimentos das pessoas com os ditos “transtornos severos e persistentes”, podendo envolver visitas domiciliares e acompanhamento de longo prazo, ou grupo de recepção e acolhimento apenas, inclusive com encaminhamentos para ambulatórios ou postos de saúde. A atenção diária, portanto, é um desses produtos da RPB, ou seja, um acerto e não um erro, um sucesso e não um fracasso, uma conquista e não um desafio, algo que pode indicar a reforma em sua positividade, de uma perspectiva foucaultiana. E o que mais a reforma produziu? Quais foram os arranjos entre clínica e política construídos ao longo dessas últimas décadas, como propunha Bezerra Jr. (1992), conjugando diminuição do sofrimento com aumento das possibilidades de existência no tecido social? A reforma mudou o lugar social da loucura em nossa sociedade, como propunha Birman (1992)? E os avanços em cada uma das quatro dimensões do processo sócio-histórico de reforma psiquiátrica formuladas por Amarante (1995), a epistemológica, a técnico-assistencial, a jurídico-política e a sociocultural? Sobre as articulações entre clínica e política sugeridas pelo professor Benilton Bezerra Jr, a reforma sanitária já produziu as suas, como sugerem os três “Is” do Sistema Único de Saúde, segundo Andrade (2006): interdisciplinariedade, integralidade e intersetorialidade, com a possibilidade de atuar em equipes multiprofissionais de modo que os saberes mobilizados colaborem para garantir o acesso da população às ações e serviços de saúde, para não dissociar a prevenção de agravos da assistência aos que já se encontram enfermos e, enfim, na direção de uma articulação com a assistência social, a educação e outros setores nos quais os usuários possam transitar ao longo de sua trajetória de vida. A reforma psiquiátrica também, como sugerem os três ‘As” da avaliação de CAPS segundo Schmidt e Figueiredo (2007): acesso, acolhimento e acompanhamento, garantindo o direito à saúde para todas as pessoas portadoras de transtorno mental de uma maneira que sejam pelo menos recebidas nos estabelecimentos que compõem a rede de atenção em saúde mental, embora poucas delas venham a permanecer em atendimento regular nos serviços mais especializados, como os CAPS. Mas gostaria de falar particularmente de três “ências” nesse momento: a transferência, a

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referência e a preferência no manejo dos casos em acompanhamento no regime de atenção diária nos CAPS. Acho que a relevância do manejo da transferência na clínica da psicose é algo consensual no campo da saúde mental, pois penso que quando estamos no cotidiano de estabelecimentos extrahospitalares como os CAPS e outros, lidando com os ditos “transtornos mentais severos e persistentes”, a organização do trabalho em equipe costuma caminhar na direção de colocar um dos membros nesse lugar de escuta do sujeito e condução do caso. Na perspectiva de estabilização de sintomas e inserção social, mais do que de extinção dos sintomas e cura, essa “ência” é fundamental para que, além da observação do comportamento dos egressos de internação psiquiátrica, também se instale uma audição de sua fala, com os conflitos ditos “intrapsíquicos” também se tornando objeto de intervenção, e não apenas os ditos “sociais”. Eis uma das contribuições da psicanálise para a clínica antimanicomial. Do mesmo modo, a instalação de equipes de referência articuladas às de apoio matricial (Campos 1999) também se tornou consensual não só no campo da saúde mental como também da saúde coletiva, já que a proliferação da função “técnico de referência” nos CAPS e a própria distribuição dos usuários entre os mesmos – e não exclusivamente entre os profissionais por conta de suas especialidades, tais como psiquiatria, psicologia, serviço social etc. – é uma demonstração do quanto se tornou comum essa forma de atuação, cujo objetivo é aumentar a adesão do usuário ao serviço e garantir a continuidade do cuidado. Pensada a partir da experiência do sanitarista Gastão Campos em Campinas (SP), a perspectiva de constituição de referências nos serviços difundiu-se por outros municípios e estados da federação. Ao chegar para trabalhar em um CAPS, inclusive um terapeuta ocupacional vai se ocupar de um determinado número de usuários, independente dos mesmos necessitarem de sua expertise ou mesmo de gostarem dele: um vínculo de confiança precisa ser estabelecido entre profissionais e usuários para que a continuidade do cuidado seja garantida e, deste modo, o destino do usuário não volte a ser a internação psiquiátrica de longa duração nos hospícios, embora possa continuar sendo uma internação temporária nos hospitais gerais, acompanhada por seu “técnico de referência”. Trata-se de um gerenciamento de caso, uma atividade de acompanhamento em longo prazo, de busca ativa do usuário no território, atividade bastante ligada à diretriz de responsabilidade do serviço pelo território, presente na portaria 336/2002. Essa “ência” não depende de um endereçamento do sujeito ao analista como no caso da transferência, mas de uma disponibilidade do profissional em se ocupar do controle da circulação espacial dos usuários cadastrados nos serviços (Silva 2007), mantendo-os próximos dos CAPS e longe dos asilos. Enfim, além da referência e a transferência também há que se levar em conta a preferência, a ideia segundo a qual um usuário pode se vincular a um serviço por gostar de vir conversar com o segurança, com a cozinheira, com algum agente administrativo, estejam esses funcionários !63


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.57-68, 2013 disponíveis ou não para atuar como técnico de referência ou mesmo tenham sido eles ou não convocados a manejar a transferência. Esta “ência”, pouquíssimo valorizada em muitos CAPS, mas, certamente, muito presente no cotidiano dos mesmos, aponta para a manutenção do usuário na convivência e da sustentação do mesmo em atenção diária, mais do que consultas, grupos e oficinas ofertadas pelas especialidades atreladas, na maioria das vezes, a uma modalidade ambulatorial de prestação de serviços. Essas três “ências”, a articulação entre transferência, referência e preferência na organização do trabalho em equipe dos serviços extra-hospitalares de saúde mental, também é um produto da RPB, como a atenção diária. Sobre a mudança no lugar social da loucura indicada como necessária no processo de RPB pelo professor Joel Birman, deve-se levar em conta que o estatuto de incapacidade, periculosidade e inimputabilidade do louco ainda se encontra vigente em nossos códigos civil e penal. Levando-se em conta as diversas iniciativas de geração de renda no país, bem como a tentativa de instaurar uma curatela parcial e não total na rotina dos tribunais (Diaz 2001), sem falar na dispensa do rito da curatela para receber o Benefício de Prestação Continuada por parte do governo federal, percebe-se que pelo menos a incapacidade foi colocada em xeque, bem como a própria instauração da bolsa auxílio-reabilitação no âmbito do Programa de Volta para Casa e convocação para que cada um dos beneficiados, egressos de internação psiquiátrica, adquiram um cartão em um banco e possa gerenciar sua própria conta. A desestabilização do estatuto da incapacidade do dito “doente mental” é outra conquista da RPB, mas para conversarmos mais acerca da periculosidade e inimputabilidade precisaremos gradativamente nos afastar desse terreno da assistência nos quais a atenção diária e a articulação entre transferência, referência e preferência na organização do trabalho em equipe dos CAPS se colocam, em direção ao plano menos da implantação do que da formulação de políticas públicas. Das tecnologias psicossociais em direção às categorias antimanicomiais.

Categorias antimanicomiais O próprio professor Paulo Amarante, um dos protagonistas do processo de RPB, ator e autor central no campo da saúde mental, veio a inovar na articulação das quatro dimensões formuladas por ele, particularmente entre a epistemológica, a jurídico-política e a sociocultural: dos “loucos de todo gênero” em nosso Código Civil para os “loucos pela vida” que é, justamente, o título de seu livro (Amarante 1995), e destes para o projeto Loucos pela Diversidade no Ministério da Cultura, efetivamente tornando a loucura uma questão de médico e de todo mundo um pouco, retirando a

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exclusividade do setor saúde e inserindo-a no de cultura, do ponto de vista governamental mesmo. É aquilo que o jurista Salo de Carvalho vai chamar de “nova gramática da loucura”: Dentre as mudanças estratégicas que redimensionam o trabalho dos profissionais e dos cientistas na área, a criação de uma nova gramática da loucura ultrapassa o mero simbolismo e se constitui como um importante mecanismo de mudança. As formas de nominar o louco e a loucura expõem o que é encoberto nas práticas psiquiátricas e a mudança da linguagem constitui um importante passo na desconstrução da lógica manicomial. A redesignação do louco – louco de todo gênero era a expressão utilizada pelo Código Civil de 1916 – como sujeito portador de sofrimento psíquico ou usuário do sistema de saúde mental carrega consigo, portanto, uma nova postura perante estas distintas construções de subjetividade. (Carvalho 2013: 518)

De paciente a usuário, de doente mental a pessoa portadora de transtorno mental, de manicômio a serviço de atenção diária, de tratamento a atenção psicossocial, entre muitas outras mudanças terminológicas em curso ao longo das últimas três décadas de movimento da luta antimanicomial no país, cunhando essas e outras categorias antimanicomiais. Uma iniciativa como Loucos pela Diversidade retoma justamente a utopia de uma sociedade sem manicômios, lema presente na emergência da causa antimanicomial no Brasil, momento no qual era a sociedade normatizada o alvo da crítica e não o indivíduo desviante o alvo da exclusão. A sociedade que não tolera a diferença agora seria aquela que não convive com a diversidade. Enquanto convive com a diversidade, a sociedade da utopia antimanicomial também vai imergindo em vulnerabilidades, mais do que em periculosidades. Como pude recentemente sinalizar no debate sobre formulação de políticas públicas, uma série de categorias são criadas no governo federal com o intuito de ao mesmo des-institucionalizar e des-estigmatizar populações, como é o caso de “jovem em conflito com a lei” ao invés de “adolescente infrator” e mesmo “menor infrator”, justamente para distanciar-se da perspectiva que costuma identifica-los como “trombadinhas”, sendo que ao longo desse processo de mudança terminológica também se sugeriu como expressão adequada e politicamente correta “criança/adolescente autor de ato infracional” (Silva e Costa-Moura 2013). A combinação entre essa mudança e a nova gramática da loucura apontada anteriormente, segundo a qual na Lei 10.216/2001 – a lei antimanicomial - utiliza-se a expressão “pessoa portadora de transtorno mental” em vez de “louco de todo gênero” e mesmo “alienado mental”, desdobra-se em outra categoria: “pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei” ao invés de “louco infrator” e mesmo de “paciente judiciário portador de sofrimento mental”. Sem falar na expressão “pessoa em uso nocivo e/ou prejudicial de álcool e outras drogas” em vez de “dependente químico” e o altamente pejorativo termo “viciado”. Todas essas mudanças terminológicas acontecem na tensão entre o movimento antimanicomial e o governo federal, entre porta-vozes do movimento que atuam no sentido de !65


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.57-68, 2013 pressionar representantes da gestão e, assim, redirecionar o modelo de atenção em saúde mental e, principalmente, o financiamento das ações e serviços. É deste modo que podemos compreender uma certa mudança no lugar social da loucura em nossa sociedade: de incapazes a cada vez mais inventivos, os ditos “doentes mentais” são apresentados em cerimônias de premiação por exemplo, por meio do Loucos pela Diversidade e outras iniciativas, com esses

espaços tornando-se

fundamentais na consagração dessa nova gramática da loucura e na circulação das novas categorias para se referir às pessoas e aos estabelecimentos que conformam essa nova linguagem. Afinal, são pessoas e também estabelecimentos, como os “hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico” em vez de “manicômios judiciários”, até mesmo os “programas de atenção integral ao paciente judiciário” (PAIPJ-MG) e mesmo, mais recentemente, os “serviços de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis a pessoas com transtorno mental em conflito com a lei”. Mas não só de incapazes a inventivos, como também de perigosos a vulneráveis, como é o caso das “pessoas adultas portadoras de transtorno mental em conflito com a lei” no lugar de “loucos infratores” e dos anteriormente vistos como “degenerados”, “monstros”, “anormais”: cada vez mais necessitados de proteção e considerados privados de direitos, vítimas mais do que agressores no contexto da formulação de políticas públicas intersetoriais entre a saúde, a justiça e a assistência social, como no caso da Política Nacional de Atenção Integral em Saúde para Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Essas pessoas se mantêm inimputáveis certamente, ou seja, irresponsabilizados pelos seus atos perante o direito, mas levando-se em conta a perspectiva de responsabilidade diferenciada defendida até mesmo por juristas (Carvalho 2013), embora não se saiba até quando. É por meio desse assunto que podemos voltar ao tema dessa mesa redonda, que é a reforma psiquiátrica no Brasil e na Itália, pois a questão do atendimento às pessoas diagnosticadas com um transtorno mental que cometem atos infracionais – estando ou não em cumprimento de medidas de segurança – também é um desafio na reforma psiquiátrica italiana, pelo menos na perspectiva de Venturini e Casagrande (2012). Embora comumente se considere apenas a influência da psiquiatria democrática italiana sobre a RPB, há assuntos nos quais mais do que uma relação assimétrica – tentar implantar no Brasil o que se encontra em curso na Itália –, torna-se mais importante estabelecer uma troca, como quando está em jogo uma relação entre saúde mental, justiça criminal e direitos humanos, ou quando políticas intersetoriais e não exclusivamente de saúde estão em construção. A articulação entre os setores saúde, justiça e assistência social no Poder Executivo e entre este poder e o Judiciário, algo que acontece há mais de uma década no estado de Minas Gerais por meio do PAIPJMG, é uma iniciativa nacional que aponta para a viabilidade do atendimento a essa parcela da população ao mesmo tempo psiquiátrica e penitenciária, sendo que não podemos nesse caso falar de uma influência da reforma italiana sobre a RPB, mas, certamente, de uma troca a ser estabelecida. !66


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Voltamos, assim, ao Trem de Doido, que desembocava no hospício de Barbacena, também nesse mesmo estado da federação, Minas Gerais. Enfim, embora talvez tenha apresentado uma visão um pouco ‘cariococêntrica’ da RPB, espero que tenha estimulado todos a produzir uma visão da história da psiquiatria e do asilo, e também do processo sócio-histórico de reforma psiquiátrica, com base em outros pontos de partida, como é o caso dos citados estudos desenvolvidos em municípios dos estados do Rio Grande do Sul, de São Paulo e Minas Gerais. Assim talvez a interlocução entre Brasil e Itália no que tange à descrição e análise da reforma psiquiátrica possa variar e se diversificar também, mais do que reforçar as citadas assimetrias.

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Recebido em 13/04/2014 Aprovado em 23/07/2014 !68


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A elaboração dos documentos na medida1 Sara Regina Munhoz Mestre em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos/UFSCar

Resumo Proponho apresentar neste artigo os resultados da etnografia que recentemente desembocou em minha dissertação de mestrado. A pesquisa foi realizada em um núcleo de atendimento (MSE-MA) a adolescentes autores de práticas infracionais na Zona Leste de São Paulo e privilegiou as percepções que os profissionais do núcleo têm da construção do atendimento, e as relações que estabelecem com os adolescentes, com o Poder Judiciário e com outras instâncias governamentais. Neste texto etnográfico, sugiro uma apresentação das formas como a equipe lida, por um lado, com a rigidez das metas estabelecidas pelos juízes e descritas nas legislações e, por outro, com a exigência também legal de que os atendimentos sejam individualizados. Para lidar com essas duas lógicas distintas e apresentar aos juízes os saberes que só podem ser construídos no núcleo, os técnicos utilizam a escrita e a interpretação dos documentos como suas principais armas. Trata-se de um exercício cotidiano de construção de argumentos que justifiquem os caminhos tomados a cada atendimento. Descreverei, ainda, os momentos corriqueiros em que os técnicos não conseguem estender ao Judiciário suas percepções, provocando visões divergentes sobre o andamento dos casos. Argumento, deste modo, que a relação entre a equipe e os juízes é sempre marcada pela incerteza, e que a definição de atendimento precisa ser negociada caso a caso. Esta incerteza se manifesta através da convivência, no núcleo, de diferentes saberes e diferentes formas de governo dos meninos. Palavras-chave: medidas socioeducativas, documentos, políticas públicas

Abstract The documents elaboration in a socio-educational assistance nucleus I propose in this article to present the results of the ethnography which recently culminated in my dissertation. The survey was conducted on a assistance nucleus for adolescents infractional authors (MSE-MA) in the East Zone of São Paulo and privileged the perceptions that the assistance nucleus professionals have of the construction of assistance, and the relationships they establish with the adolescents, with the judiciary and other government agencies. In this ethnographic text, I suggest a presentation of the ways the team handles, on the one hand, with the rigidity of the goals established by judges and described in the legislation and, on the other hand, with the requirement, also legal, that assistances are individualized. To deal with these two different logics, and present to the judges the knowledge that can only be built from the nucleus, technicians use the writing and interpretation of documents as their main weapons. It is a routine exercise of building arguments that justify the paths taken in each assistance. I also describe the frequent moments that the technicians can not extend their perceptions to the judiciary, causing divergent views on the progress of the cases. I argument, therefore, that the relationship between the team and the judges is always based on the uncertainty and the definition of assistance needs to be negotiated in each case. This uncertainty manifests itself by the coexistence, in the nucleus, of different knowledge and different forms of governance of the adolescents. Keywords: socio-educational measures, documents, public policies

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Política e Saberes Técnicos.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.70-81, 2013 A Obra Social Dom Bosco Itaquera atende cerca de 120 meninos e meninas que precisam cumprir suas medidas socioeducativas (MSE), estipuladas judicialmente, em meio aberto.2 Trata-se de uma organização não-governamental salesiana, fundada e dirigida por um sacerdote espanhol que há quase 40 anos iniciou seus trabalhos na região de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Inicialmente, as atividades oferecidas pela obra social eram lúdicas e recreativas, tentando atender a um público considerado vulnerável, mas que ainda não tinha sido mordido pelo crime e pelas drogas. Crianças que frequentavam a rede pública de ensino em um dos períodos do dia e que, no período contrário, encontravam nas atividades da Obra uma alternativa aos perigos da rua. Com o tempo, a obra se expande e passa a oferecer cursos profissionalizantes, abrigos, creches, atividades para a terceira idade, mutirões para a construção de casas populares etc. Ainda que o público tenha se diversificado, a preocupação explícita do padre e dos funcionários continuou sendo a de prevenção, em consonância com o espírito salesiano3 e com uma tendência dos movimentos sociais que se instalaram nas regiões periféricas das grandes cidades entre as décadas de 1970 e 1990. O atendimento aos adolescentes infratores aparece como uma necessidade posterior, uma consequência direta da amplitude que os outros trabalhos oferecidos atingiram. A equipe de funcionários da Dom Bosco lutou pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e sempre defendeu a necessidade de uma atenção especial àqueles que são considerados por essa legislação como pessoas em desenvolvimento. No entanto, percebeu que suas ações não poderiam se limitar à prevenção de um contato com o mundo infracional. Muitos meninos que já haviam frequentado as oficinas da obra e seus cursos acabavam sendo pegos, anos depois, pelo sistema judicial. A abrangência da ideia de prevenção se transforma para incluir os adolescentes que, se já haviam experimentado o contato com a polícia e com o tribunal, ainda não tinham sido encaminhados para o sistema penitenciário. Agora, prevenir também é oferecer um atendimento que evite o encontro com um sistema punitivo que, na concepção da equipe de MSE, pode transformar experiências passageiras com o crime em uma realidade permanente de delinquência.4 Sobre as notações utilizadas neste trabalho para apresentar os termos acionados por meus interlocutores como centrais às suas atividades cotidianas, adianto: será utilizado o itálico na primeira vez em que cada um desses termos for apresentado. Para não sobrecarregar o texto, nas aparições subsequentes, utilizarei a grafia normal. 2

Uma das principais características do carisma, ou espírito salesiano, é o Sistema Preventivo de Educação que aposta em um apelo para “as fontes da inteligência, do coração e do desejo de Deus, que cada homem traz nas profundezas de seu ser” e na associação “em uma única experiência de vida” dos educadores e jovens, “em clima de família, de confiança e de diálogo”, procurando manter os seus atendidos longe das práticas consideradas ilegais ou criminosas. Para mais informações sobre o Sistema Preventivo salesiano, conferir http://www.domboscoitaquera.org.br/dbosco/sisprev.htm. 3

Foucault (2009) demonstra como a crítica a um sistema penitenciário como o “grande fracasso da justiça penal” que multiplicava as taxas de criminalidade, provocava a reincidência e fabricava delinquentes foi contemporânea às tentativas de superposição entre a técnica corretiva e a detenção punitiva ainda no século XIX (: 251). Para ele, no entanto, a delinquência não é um defeito resultante do sistema penitenciário, mas uma composição de efeitos deste dispositivo disciplinar específico. Considera a prisão, seu “fracasso” e suas tentativas constantes de reforma como um sistema simultâneo, um conjunto complexo que constitui e torna possível o próprio funcionamento do sistema carceral (: 257). 4

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O atendimento aos adolescentes em LA envolve uma série de atividades que devem ser feitas conjuntamente pelos técnicos, pelos próprios adolescentes e por suas famílias. Em resumo, trata-se do oferecimento de oportunidades apresentadas de maneira impositiva, que se manifestam, principalmente, pela inserção desses adolescentes e de suas famílias nos serviços públicos de educação, de saúde, de profissionalização e no controle dos documentos que esses adolescentes têm. A medida é estipulada pelo juiz da Vara de Execuções da Infância e da Juventude (VEIJ), mas sua aplicação escapa aos domínios do tribunal. Em geral, o juiz determina qual das medidas disponíveis deve ser aplicada e por quanto tempo. Em seguida, o adolescente é encaminhado para um núcleo que esteja localizado dentro da área de abrangência de sua residência. A partir daí, um conjunto de documentos deve ser produzido pelo técnico5 responsável para que o adolescente entre no sistema¸ dê início ao seu atendimento e, em determinados momentos, seja comprovada a sua iniciativa e seu avanço. Enviar relatórios, construir registros e interpretar documentos são, portanto, tarefas das mais cotidianas nas MSE. Como pretendo demonstrar, os técnicos se esforçam por fazer com que os documentos tenham agência quando circulam entre o núcleo e o Poder Judiciário, que funcionem como armas essenciais na comunicação dos saberes produzidos no núcleo. A equipe da Dom Bosco lida com vários documentos encaminhados pelo Poder Judiciário ou por órgãos que controlam e orientam as atividades do núcleo, a exemplo da Coordenadoria de Assistência Social da Zona Leste (CAS-Leste) e da

Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social (SMADS). São documentos que precisam ser interpretados, catalogados e respondidos em tempos e de formas específicas. São Termos de Entrega, que determinam de maneira genérica qual a medida socioeducativa que deverá ser cumprida caso a caso; orientações sobre a área de abrangência do núcleo, que informam os bairros que devem ser atendidos pela Obra; documentos informativos sobre a forma como as atividades devem ser conduzidas ou como seus textos precisam ser escritos. Além disso, os técnicos redigem Relatórios Inicias (RI), de Acompanhamento e Sugestões de Encerramento para cada adolescente atendido. Elaboram também o Plano Individual de Atendimento (PIA) para todos os meninos que passam pelas medidas. Preenchem Fichas de Movimentação de Caso, com as informações resumidas dos adolescentes, do ato infracional cometido e seu histórico familiar e institucional; Instrumentais que descrevem todas as atividades desenvolvidas pela equipe mensalmente; Prestações de Contas para a própria Obra Social e para os órgãos fiscalizadores governamentais. Preenchem cotidianamente declarações, atestados, informativos, encaminhamentos e tantos outros documentos. Esses inúmeros documentos circulam dentro da própria Obra Social, entre a equipe e os serviços públicos aos quais os meninos são encaminhados, entre a MSE e o Poder Judiciário, entre os técnicos e as famílias dos adolescentes. A equipe de técnicos era composta por oito profissionais na época de meu trabalho de campo. Quatro deles eram formados em pedagogia e quatro em psicologia. Apesar de suas formações acadêmicas, a ideia difundida na equipe é a de que ali todos eram técnicos e que sua missão era a de orientar, sensibilizar e encaminhar os adolescentes. 5

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.70-81, 2013 Através dos documentos que circulam com tanta frequência e velocidade pelo corredor do núcleo, pelas mãos dos funcionários das medidas e pelos metrôs de São Paulo, sujeitos muito específicos passam a existir e a ser governados. Neste artigo, descrevo brevemente dois tipos de documentos produzidos pelos técnicos da Dom Bosco: o Relatório Inicial (RI) e o Plano Individual de Atendimento (PIA). Embora se apresentem como documentos padronizados, com uma linguagem direta e uso de frases prontas, a elaboração desses papéis demanda muito tempo e exercício da equipe. Os técnicos gastam dias da semana debruçados sobre eles, procurando as melhores maneiras de transmitir aos juízes aquilo que consideram adequado para cada atendimento. Trata-se de um esforço de domínio de uma técnica de argumentação e escrita que funciona como o modo de se fazer política para aqueles que trabalham com as MSE. Por outras palavras, saber controlar aquilo que deve ser mostrado e o que pode ou precisa ser eclipsado é o que constrói, para os juízes, o menino que seu técnico quer revelar. Portanto, os documentos são mais do que versões ou resumos do que foi trabalhado nos vários atendimentos. São, eles mesmos, parte fundamental na gestão desses adolescentes.6 O Relatório Inicial é um dos primeiros documentos que precisam ser construídos pelo técnico e enviados ao juiz. Ele deve ser elaborado durante a primeira semana de atendimento, o que limita o tempo de convivência do técnico com o atendido e, consequentemente, os saberes sobre o adolescente que ele consegue reunir. Além disso, no momento da elaboração desse relatório, o técnico não tem, em geral, acesso à pasta do adolescente, que reúne os dados construídos em outras instâncias (tribunais, núcleos de atendimento, unidades de internação) desde sua apreensão. O acesso restrito a essas informações torna a escrita do RI extremamente delicada, como veremos. O modelo do RI passou por algumas transformações durante meu trabalho de campo, mas os dois tipos de relatório a que tive acesso apresentavam informações sobre a situação do adolescente (em relação aos seus documentos, à sua família, à escola e aos eventuais problemas de saúde) e pincelavam as propostas de encaminhamento sugeridas pela equipe. Ambos, ainda, se encerravam com um Parecer/Avaliação do Orientador/Técnico, espaço em que as primeiras impressões técnicas são descritas. Essa descrição é feita através de um ou dois parágrafos que informam ao juiz os encaminhamentos realizados, as resistências que os técnicos já encontram nos adolescentes e a proposta de atendimento apresentada durante a elaboração do PIA.

Meu argumento não é o de uma manipulação deliberada dos relatórios, como Feltran (2011: 18-19) afirma ter encontrado em seu campo. Não tive acesso a dados como estes, nunca vi os técnicos da Dom Bosco discutindo os problemas da escrita nestes termos. Defendo que os documentos produzidos pela equipe, embora sejam fabricações, não são, de modo algum, falsificações (Villela 2011). Os técnicos constroem textos mobilizando saberes que julgam adequados para cada atendimento, e praticando um exercício constante de controle do que é escrito e da forma como as coisas são escritas. Sabem, no entanto, os efeitos que supostas mentiras podem ter, e não avaliam que este é um artifício que possa ser utilizado nas redações. 6

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Há uma padronização considerável nas frases que descrevem a proposta de atendimento. Em geral, os registros informam que os adolescentes serão “acompanhados de forma individual, grupal, e visitas domiciliares”. No entanto, no trecho que antecede essa descrição, a variação entre os relatórios é maior. Os técnicos apresentam algumas impressões que têm em relação ao comportamento do atendido ou informações que o adolescente lhes revele e que julguem interessante registrar. Usam frases curtas, como por exemplo, o adolescente “portou-se educadamente”, ou “quanto ao ato infracional o adolescente verbaliza que fora influenciado pelo meio em que vive”, ou ainda “durante a acolhida o adolescente apresentou uma postura impaciente e um pouco imatura para sua faixa etária, já a genitora apresentou fragilidade perante a situação”. Em seguida, apresentam brevemente os encaminhamentos e a sensibilização realizados ao descreverem, por exemplo, que “salientamos sobre a importância da escolarização, responsabilização e comprometimento com a medida”, ou “discutimos sobre o ato infracional e a reinfração, além de suas expectativas futuras”. Aquilo que é escrito e enviado no primeiro relatório é crucial. Como argumenta um personagem de Kafka (2005: 116), “a primeira impressão que a defesa produz muitas vezes define o processo”. Embora os técnicos não se considerem (ao menos na maior parte do tempo) defensores dos adolescentes, a exposição adequada do modo como veem cada atendimento pode definir seu sucesso ou fracasso, medido pelo aceite da Sugestão de Encerramento. O juiz, em geral, recorrerá ao que foi proposto no início da medida, e à forma como essas propostas foram trabalhadas ao longo dos meses no momento em que o prazo da medida expirar. Esse primeiro Relatório é o que descreve o adolescente que precisará se ressocializar, amadurecer e demonstrar iniciativa durante o atendimento. É ele que descreve o adolescente que chegou à medida levado pelo envolvimento com o meio infracional. Esse menino, apresentado pelo documento a partir de algumas categorias e um parecer técnico, é o que precisará passar pelas transformações implicadas em uma medida socioeducativa ao longo dos meses. Ao apontar as dificuldades que a mãe enfrenta ao lidar com o problema da drogadição do adolescente, os motivos de sua evasão escolar, a maneira como ele encara o ato infracional cometido, ou a falta de expectativas que apresenta para seu próprio futuro, o técnico já sinaliza suas impressões em relação aos limites do que poderá ser trabalhado nos meses da medida. O esforço maior é o de não realizar grandes promessas de adesão aos encaminhamentos para que os parâmetros usados pelo juiz ao longo do atendimento não sejam muito elevados. Portanto, o preenchimento dos RI é um dos mais automatizados e, ao mesmo tempo, um dos mais delicados. As semelhanças entre os Relatórios eram inúmeras, mas há um esforço sutil de inserção de detalhes de uma realidade a que somente o técnico tem acesso. Isso é feito, principalmente no campo do Parecer/Avaliação, espaço em que qualquer especificidade observada pelo técnico pode ser adicionada, desde que ele julgue

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.70-81, 2013 que esta informação seja relevante para a relação com o Judiciário meses depois, quando o encerramento for sugerido. Além do próprio Relatório, alguns anexos são enviados ao juiz. São cópias dos documentos que o adolescente já possui, de possíveis declarações de matrícula escolar, ou diplomas de cursos profissionalizantes. Ao longo do atendimento, a cada relatório enviado, outros anexos poderão ser acrescentados, demonstrando de maneira ainda mais palpável os avanços do adolescente. Os anexos são documentos não legais, saberes dos mais corriqueiros e variados, emitidos por outras instituições que não diretamente ligadas ao núcleo de medidas socioeducativas. Ainda assim, a presença desses anexos nos relatórios enviados é fundamental para que os julgamentos a respeito dos atendidos possam ser construídos pelos técnicos e pelos juízes, em diferentes lugares, a partir de diferentes escalas. Como afirma Latour (2010: 75), se sozinhos esses documentos são simples peças de informação, elementos de rotina, ali, por terem sido mobilizados daquela maneira especifica, anexados àqueles relatórios específicos, tomam um formato legal, ainda que retroativamente. Os relatórios tornam-se mais confiáveis com esses documentos que lhes são exteriores. A elaboração e envio do primeiro relatório, que envolve um empenho em selecionar as impressões e informações que serão registradas e em reunir os documentos que serão anexados, elucida um modo de fazer política que é profundamente técnico. Política do sentido de tornar o seu ponto de vista visível, possível, palpável ao juiz que, repito, analisa os atendimentos a partir de outra escala. Como observou Feltran (2011: 18), os relatórios “pautam a decisão do juiz. Ter a pauta é ter a política”. Explicitar o nível de saber produzido no núcleo através do registro de impressões sobre o comportamento do adolescente, sobre o respaldo familiar, sobre as possíveis resistências que serão enfrentadas ao longo do atendimento, é um procedimento que encontra ressonâncias no uso dos colchetes nos documentos produzidos em conferências intergovernamentais descritos por Riles (2001). A autora demonstra como esse artifício é utilizado para que agendas regionais possam ser incluídas nos debates, para que diferentes níveis de ação estejam à vista em um único texto. Da mesma forma, as breves frases dos técnicos com a seleção de suas impressões e informações procuram apresentar ao juiz um nível distinto de saber produzido sobre os meninos. O esforço em escrever relatórios concisos e diretos, com uma linguagem extremamente padronizada, demonstra que a estrutura estilística dos textos é tão importante quanto o próprio significado do que é escrito. Os relatórios podem ser lidos muito rapidamente, frases podem ser replicadas de uns aos outros sem que isso implique em prejuízos para o adolescente atendido ou para o núcleo. Ainda assim, depois de esboçadas as frases padronizadas, organizada a estrutura do texto, cabe ao técnico demonstrar pela escrita que ao lado desse domínio da redação e do conhecimento enciclopédico das legislações, existe outro tipo de saber fabricado naquele núcleo pela convivência cotidiana com os meninos, saber exclusivo que não pode ser negligenciado. Afinal, como afirmou a !75


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coordenadora do núcleo a um grupo de pais, o juiz não conhece a realidade deles, não sabe como as coisas funcionam naquele espaço. Portanto, da mesma forma como o juiz, sob o ponto de vista da equipe, não tem acesso à realidade cotidiana dos adolescentes e de suas famílias, eles também não têm acesso à forma como os atendimentos precisam ser postos em prática. O conhecimento legal e operacional da organização dos núcleos ou das atividades oferecidas não deixa de obliterar uma série de práticas incertas, definidas caso a caso, adaptadas a cada atendimento, levando em conta cada adolescente. Enfim, ainda que os técnicos estejam sujeitos a “serem processados se mentirem ou esconderem as coisas do juiz”, como também alertou a coordenadora, o domínio daquilo que é escrito e da forma como é escrito escapa à lógica e aos saberes legais. Os técnicos abastecem-se de termos corriqueiros na legislação, de referências aos artigos do ECA ou do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), de uma organização textual que privilegie a descrição das áreas que mais exigem encaminhamentos. Mas ainda assim julgam ter em mãos o poder de, ao menos, sinalizar ao juiz aquilo que só eles podem ver. O segundo documento aqui tratado é o Plano Individual de Atendimento. O PIA é uma exigência judicial para todos os núcleos que oferecem as medidas em meio aberto. Sua necessidade já está prevista no ECA e no SINASE.7 Assim como o RI, o PIA é elaborado pelo técnico no primeiro encontro individual que tem com o adolescente atendido e seu responsável. Trata-se de uma espécie de questionário em que se encontram os dados pessoais, as informações sobre a configuração familiar (quem vive na casa, quantos anos tem cada um, qual o emprego ou o grau de escolarização, qual o salário), a religião, o histórico de parentes que tenham passagem pela Fundação CASA ou pelo sistema carceral, “as expectativas do adolescente para o futuro” e um Contrato de Compromisso (com os prazos em que as exigências do juiz devem ser cumpridas). Os dados registrados no PIA devem servir de base para todo o atendimento do menino durante o tempo da medida. Até meados de 2012, o preenchimento do PIA era restrito ao núcleo e o documento ali permanecia durante todo o atendimento do adolescente. A tabela do Contrato de Compromisso era preenchida de maneira frouxa, deixando vários campos em branco e muito raramente era atualizada ao longo dos meses. Mudanças exigidas pela implementação efetiva do SINASE fizeram com que os técnicos passassem por uma série de cursos de formação para que transformassem a maneira de elaboração deste plano individual. Foi necessário criar novos modelos, novas técnicas. Foi necessário todo um exercício de reflexão na equipe sobre os próprios objetivos das MSE. O modelo antigo de Contrato de Compromisso era composto por uma tabela dividida da seguinte maneira: seis “áreas /prazos” na primeira coluna (documentação pessoal, educação, profissionalização, trabalho, saúde e família), e duas colunas laterais com as “ações” e os “resultados”

As referências ao Plano Individual de Atendimento foram incluídas no ECA em 2009 (ECA, capítulo 2, artigo 101, parágrafos 4º, 5º e 6º). No SINASE, o capítulo IV também é todo dedicado ao PIA. 7

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.70-81, 2013 esperados. Detalhar o modo como os técnicos costumavam preenchê-lo está fora do escopo deste artigo. É importante dizer, no entanto, que eles procuravam levar em conta possíveis exigências explícitas que os juízes tivessem apresentado no Termo de Entrega. Caso o juiz tivesse exigido escolarização ou inserção no mercado de trabalho, por exemplo, o caráter de obrigatoriedade desses tópicos era salientado pelos técnicos como uma necessidade para o sucesso no pedido de encerramento. No caso de Termos de Entrega em que o juiz se limitava a dizer se a medida a ser cumprida era LA ou PSC e sua duração, havia, para os técnicos, possibilidades mais maleáveis de preenchimento do quadro e, inclusive, a viabilidade de deixar campos em branco. O formato do quadro do Contrato de Compromisso foi largamente debatido durante meu trabalho de campo, e passou por reformulações. Fica muito evidente, ao acompanhar as discussões da equipe sobre o preenchimento da tabela, que o seu próprio desenho padronizava procedimentos e estabelecia “o formato em que a informação deveria ser armazenada” (Vianna 2010: 259). A troca de experiências entre a equipe para que esse preenchimento se dê da maneira mais adequada são esforços para lidar com o descompasso entre um modelo de atendimento estabelecido por eles mesmos a partir de orientações exteriores ao núcleo, e dominar uma escrita extremamente sintética no preenchimento dos campos da tabela. Eles sabem, no entanto, que um atendimento, em geral, implica em uma série de imprevistos que farão com que o PIA, se levado ao pé da letra, se consultado cotidianamente, seja considerado constantemente obsoleto, como Reed (2006) descreve para o caso dos formulários de uma prisão de segurança máxima em Papua Nova Guiné.8 Quando os técnicos precisam preencher estes documentos, enfrentam o desafio de prever de antemão as possibilidades que aquele atendimento específico lhes propiciará, evitando, através de uma escrita sucinta e generalizante, a obsolescência exagerada do documento ao longo dos meses. Nas MSE, não há um lugar de chegada definido como aquele em que elas possam ser consideradas bem cumpridas. No entanto, quando um PIA é preenchido à caneta, em um desenho de tabela que permite pouquíssimas alterações ao longo do tempo da

Figura 1: Modelo antigo do Contrato de Compromisso.

Reed (2006: 165) demonstra como a maneira incompleta de preenchimento de formulários e os padrões fracos que encontrava ao analisá-los podem indicar a percepção que os funcionários responsáveis por estes preenchimentos têm da distância existente entre a natureza do questionário e as práticas que devem ser descritas em suas lacunas, ou da impossibilidade de que os termos fixos de um documento coincidam com a natureza variada dos eventos. 8

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medida, o modelo de atendimento fica estabelecido, e as metas e os prazos estão estipulados. As mudanças contínuas que um PIA implicaria não preocupavam tanto a equipe porque esta tabela não era enviada ao Judiciário. Como já vimos, o esforço de não fixar excessivamente o atendimento se dava na escrita do Relatório Inicial. Os técnicos que completavam, modificavam ou incluíam informações ao Contrato ao longo da medida, quase exclusivamente precisavam fazê-lo recorrendo à rasura ou à escrita em espaços exteriores aos limites da tabela. Com as novas exigências impostas a partir da promulgação do SINASE, a equipe se depara com um debate que envolvia, fundamentalmente, reflexões sobre as mudanças naquilo que deveria ser revelado e no que era eclipsado na construção dos saberes (através dos registros escritos) sobre os meninos e sobre o atendimento. A partir desse momento, entram em cena novos agentes que devem participar da elaboração do PIA, e esse Plano ganha um novo estatuto. A exigência de que o PIA saísse dos limites do núcleo e fosse enviado para uma apreciação do tribunal (que poderia aprová-lo ou exigir revisões), fez necessária a introdução de mudanças em seu modelo, em especial no Contrato de Compromisso. Os técnicos desenvolveram uma nova tabela, com maiores espaços e divisões para que pudessem registrar de maneira mais detalhada as suas propostas. Neste novo modelo, cada uma das áreas (documentação pessoal, educação, profissionalização, trabalho, família e saúde) foi subdividida nos tópicos metas, ação, prazo e resultado. A distinção entre metas e ações é descrita no SINASE. De maneira muito resumida, é possível dizer que as metas são os objetivos mais gerais e fixos que devem ser alcançados ao longo da medida, e as ações são as atividades que podem ser realizadas para que essas metas sejam cumpridas. Essa é a descrição mais corriqueira que os técnicos me ofereciam, mas em meio a tantas mudanças, o preenchimento de uma tabela distinguindo esses dois campos não era sempre tão claro para eles. Um dos problemas centrais levantados pelos funcionários de vários núcleos de atendimento diz respeito ao fato de que o estabelecimento de metas excessivamente fixas logo nos primeiros atendimentos, que seriam consultadas no momento de pedido de encerramento, não era viável. Principalmente porque os técnicos não teriam acumulado informações suficientes sobre o adolescente até o momento de envio do PIA, informações estas que seriam essenciais para poderem acessar até onde aquele adolescente poderia ir durante o atendimento, quais suas resistências, quais as limitações que seriam impostas pelo seu envolvimento com as drogas, pelos problemas familiares etc. Com poucos dados nas mãos e pouco tempo de convivência com os meninos, estabelecer metas fixas parecia, para os técnicos, um grande risco que poderia implicar, depois dos meses de medida, em um não encerramento ou até mesmo em uma internação. Os modelos de documentos da Dom Bosco são elaborados pelo método de tentativas e recusas. Quando conseguem que uma de suas propostas seja elogiada pelo Departamento de Execuções da Infância e da Juventude (DEIJ) ou pela Coordenadoria de Assistência Social (CAS), transformam-na !78


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.70-81, 2013 em modelo fixo. No caso do PIA, mesmo quando os técnicos passaram a enviar sua nova tabela juntamente com os RI, alguns problemas permaneceram. O que são as metas? O que são as atividades? Qual o grau de objetividade que se pode dar a um prazo? Quando não cumprido, deve-se rapidamente avisar o Judiciário, ou há uma possibilidade de flexibilização das datas-limite para as ações dos meninos? Em cursos de formação, os técnicos receberam alguns exemplos de metas fixas e de atividades maleáveis. Escolarização formal, cursos profissionalizantes e inserção no mercado de trabalho são exemplos dessas metas, e como já salientado, muitas vezes já vêm delimitadas no Termo de Entrega. É só a partir daí que os educadores podem individualizar seu atendimento, escolhendo, por exemplo, o melhor período na escola, o melhor curso profissionalizante, as melhores opções de atividades lúdicas e culturais na medida, as alternativas para a família, os possíveis encaminhamentos para pleitearem vagas de emprego etc. As metas do PIA, portanto, podem ser pensadas como uma moldura ou um quadro de regras básicas e comuns, que ditam os caminhos na medida, embora permitam (ou exijam) diferenciações caso a caso. Mas, nem tudo está resolvido com essas orientações.9 Mesmo a rigidez do quadro de metas parece ser dotada de certa porosidade. A tarefa central dos técnicos parece ser a de lidar com essa porosidade nos atendimentos, e saber lançar mão de argumentos que permitam que a rigidez reapareça no momento de escrita dos relatórios. Apesar de ser possível encontrar um padrão, ou o desenvolvimento de uma estratégia de preenchimento do quadro, as variações não devem ser desprezadas. Justamente porque elas revelam a maneira dinâmica como se constroem os saberes nas medidas socioeducativas. Reve-

Figura 2: Novo modelo do Contrato de Compromisso (com três páginas)

Ouvi muitas vezes em campo, dos próprios funcionários, opiniões como a manifestada por uma das técnicas, de que “o problema das MSE é que é muito aberto. O juiz fala uma coisa, o promotor fala outra, o defensor outra, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) outra… E quem tá no meio é a gente e a família. A gente fica meio perdida às vezes”. 9

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lam ainda o esforço dos técnicos na busca de uma escrita que não possa ser acusada de subjetiva ou pouco técnica por um lado, mas que também não se padronize a ponto de serem encaradas como sintoma de uma “massificação dos atendimentos”. Esse equilíbrio precisa ser trabalhado a todo momento, justamente através dos cursos, das formações, do diálogo entre os membros da equipe, mas, principalmente, através do desenvolvimento de estratégias de escrita, de um exercício linguístico da redação dos documentos (Vianna 2010: 278). É preciso aprender – e isso leva certo tempo – a escrever relatórios e documentos bem fundamentados. Para encerrar, uma última questão: além de produzirem documentos no núcleo, os técnicos precisam interpretar e responder àqueles que são enviados pelos

Figura 2: Novo modelo do Contrato de Compromisso (com três páginas)

juízes. O embate por escrito entre juiz e técnico faz com que a medida, em determinados momentos, se transforme em um jogo de retórica e arguição. Porque os relatórios, longe de serem simples versões resumidas ou relatos daquilo que foi trabalhado com o menino, são tratados como parte fundamental do que se entende por MSE. São ferramentas em que, dentro de um modelo fixo de escrita e de tópicos a serem abordados, registram e constroem ações que afetarão diretamente os adolescentes e suas famílias. Os próprios documentos de formação para as equipes desses núcleos consideram que “a criação e preenchimento destes instrumentais de registro não devem ser concebidos como uma mera formalidade burocrática, mas como instrumento de gestão, planejamento e avaliação do programa de liberdade assistida” (ILANUD 2004: 132). Sob o ponto de vista dos técnicos, cabe a eles a tarefa de gerir e avaliar o atendimento, sua eficácia e o seu tempo. Eles são os que convivem com os meninos, conhecem suas histórias e suas famílias. Eles são os que conhecem os limites da própria medida. Para que esse seu saber possa se transformar em ação, uma das únicas armas possíveis é a escrita. Portanto, no diálogo travado com os juízes, os termos padronizados podem ser acionados das mais diferentes maneiras, com os mais diferentes propósitos. Escrever sempre funciona como uma tentativa de convencer o juiz (a quem o técnico descreve como detentor do poder de decisão final) de que o trabalhado, dentro das especificidades de cada caso, é o aceitável quando em comparação com o que é exigido nas leis e diretrizes que orientam os atendimentos. O que pretendi mostrar com isso é que mesmo com a ampliação recente nas diretrizes e legislações manifestada, principalmente, através do SINASE (ou ainda por causa dessa ampliação), !80


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.70-81, 2013 pouca coisa parece determinada de antemão nas medidas socioeducativas. Se há mais leis, há mais possibilidades de interpretação, de manejo, de argumentação. No limite, os técnicos não concebem – e entendem que os próprios juízes também não concebem – caminhos fixos para o que seria uma boa medida socioeducativa. Sob o ponto de vista dos técnicos, as dúvidas sobre aquilo que o juiz julgará adequado para cada caso caminham lado a lado com a certeza de que os saberes produzidos pela equipe são os mais legítimos para auxiliarem o Poder Judiciário nessa decisão. Todas as atividades desenvolvidas durante os meses de LA e toda a atenção da equipe aos índices que consideram necessários e suficientes para que uma medida socioeducativa seja considerada adequada, são saberes produzidos exclusivamente no núcleo. Embora informados pelo Judiciário através das diretrizes e legislações, a natureza do atendimento socioeducativo não é jurídica e, portanto, não pode ser acessada pelo juiz sem o auxílio dos técnicos. É somente através desses funcionários e da circulação dos documentos que os efeitos jurídicos podem ser sentidos na vida dos meninos das medidas.

Bibliografia FELTRAN, Gabriel de Santis. 2011. “Diário intensivo – a questão do adolescente em conflito com a lei em contexto”. Revista Brasileira de Adolescência e Conflitualidade, n.4: 01-44. FOUCAULT, Michel. 2009. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. ILANUD e UNICEF. 2004. Guia Teórico e Prático de Medidas Socioeducativas. KAFKA, Franz. 2005. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras. LATOUR, Bruno. 2010. Making the Law. An ethnography of the conseil d’état. Cambridge: Polity Press. REED, Adam. 2006. “Documents Unfolding”. In A. Riles (org). Documents. Artifacts of modern knowledge. Ann Arbor: University of Michigan Press. pp. 158-177. RILES, Anelise. 2001. The Network Inside Out. Ann Arbor: University of Michigan Press. VIANNA, Anna Catarina Morawska. 2010. Os Enleios da Tarrafa: Etnografia de uma parceria transnacional entre ONGs através de emaranhados institucionais de combate pobreza. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo. VILLELA, Jorge Mattar. 2011. Ordem pública e Segurança Individual: política e polícia no sertão de Pernambuco. São Carlos, EDUFSCar.

Recebido em 23/01/2014 Aprovado em 02/05/2014

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“A burocracia não acaba nunca”: Reflexões sobre a composição do sujeito refugiado por entre documentos, programas de assistência e organizações1 Vanessa Perin Mestre em Sociologia Universidade Federal de São Carlos/UFSCar Resumo A partir de trabalho etnográfico realizado em um dos programas assistenciais da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, o Centro de Acolhida para Refugiados (CAR), busco traçar algumas reflexões sobre o percurso documental e institucional realizado pelos solicitantes de refúgio que acessam tal organização para a obtenção de documentos – protocolos, encaminhamentos, formulários, declarações, etc. – e modos de assistência oferecidos pelos programas do CAR – proteção, assistência e integração. Busco compreender como o solicitante de refúgio torna-se um sujeito apreensível como um tipo particular de pessoa em meio à população nacional, não só para o CAR, mas também para o aparato estatal envolvido nesta problemática, a Polícia Federal e o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) principalmente, para o próprio Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e para uma série de outras organizações da chamada sociedade civil. A partir da análise da malha de relações que estes sujeitos têm de estabelecer com diversas dimensões institucionais ao solicitarem refúgio, meu objetivo é descrever as formas de funcionamento de um mecanismo de governo e a maneira como esse torna legíveis e, consequentemente, visíveis os sujeitos que poderão ser classificados como refugiados. Em meio a um percurso de pessoas, de documentos e de formas de assistência por entre organizações, a cada nova documentação que obtêm – seja o termo de declarações da Polícia Federal, o protocolo provisório do CONARE, o CPF da receita federal, ou um encaminhamento para albergue feito no CAR – os solicitantes de refúgio são produzidos como sujeitos singulares perante o Estado brasileiro: sujeitos passíveis de serem reconhecidos e categorizados dentro do status jurídico de refugiado. Assim, da análise do trabalho destas organizações territorializado no CAR, procuro compreender como opera tal mecanismo que compõe e torna sujeitos apreensíveis a um aparato institucional, de modo que sobre eles se possa exercer um determinado tipo de intervenção – um governo – seja assistencial, burocrática, humanitária, administrativa ou de controle. Palavras-chave: refugiados, documentos, organizações, mecanismo de governo.

Abstract "The bureaucracy never ends": reflections on the composition of the refugee subject among documents, assistance programs and organizations From fieldwork in one of the assistance programs of Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, the Centro de Acolhida para Refugiados (CAR), I seek to trace some reflections on the documental and institutional way taken by asylum seekers accessing such organization to obtain documents – protocols, referrals, forms, statements, etc. – and kinds of assistance offered by the CAR – protection, assistance and integration. I seek to understand how the asylum-seeker becomes a graspable subject as a particular kind of person amid the national population, not only for the CAR, but for the state apparatus involved in this problematic, the federal police and the Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) mainly, for the High Commissioner of the United Nations for Refugees (UNHCR) and for a number of others civil society organizations. From the analysis of the mesh of relationships that these 1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Política e Saberes Técnicos. Pesquisa realizada com o apoio da FAPESP.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.83-94, 2013 subjects have established with several institutional dimensions to request refuge, my objective is to describe the forms of operation of a government mechanism and how this makes it readable and hence visible subjects that may be classified as refugees. Among a course of people, documents and forms of assistance through organizations, for each new documentation obtained– the term of statements from the federal police, the interim protocol from CONARE, the CPF, or a referral to hostel done by CAR – asylum-seekers are produced as singular subjects before the Brazilian State: subjects that can be recognized and categorized within the legal refugee status. Thus, from the analysis of the work of these organizations in CAR territorialized, I try to understand how operates this mechanism that composes and makes graspable subjects to an institutional apparatus, so that it can exercise a particular kind of intervention – a government – whether this be a assistance, bureaucratic, humanitarian, administrative or a control one. Keywords: refugees, documents, organizations, government mechanism.

Escolhas metodológicas Este trabalho parte de uma experiência metodológica. Busco compreender como a produção e circulação de documentos entre organizações levam à composição de um saber singular sobre determinados sujeitos, de modo que os tornam apreensíveis a um mecanismo de governo,2 além de permitir que sobre eles se possa exercer uma intervenção. Tal reflexão se deu a partir do trabalho etnográfico que realizei acompanhando os atendimentos de um dos programas da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP),3 o Centro de Acolhida para Refugiados (CAR). No entanto, busquei acessar redes mais amplas do dispositivo de gestão da população alvo desse programa, que envolve a CASP em sua estreita articulação com instituições como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), a Polícia Federal, outras muitas organizações denominadas parceiras da sociedade civil. Compreendido por seus próprios funcionários enquanto um “centro de referência” para refugiados já reconhecidos pelo governo brasileiro e para aqueles que ainda passam por um processo de solicitação de refúgio, o CAR atua como uma etapa de triagem dos casos que acessam tal malha institucional. Desse modo, o programa de atendimento da CASP pôde se apresentar como entrada para a compreensão dos modos de operação desse aparato mais amplo. Sendo a proposta da pesquisa a de compreender como instituições como aquela em que eu estava inserida estabilizavam concepções e práticas específicas sobre a população à qual ofereciam determinado cuidado, assistência e, ao mesmo tempo, sobre a qual exerciam certo controle, assumi em campo uma posição na qual me era permitido acompanhar, principalmente, o trabalho dos Entendido aqui como um tipo de exercício de poder, como uma técnica de direção das condutas, que incide sobre as populações e é possibilitado por um complexo de saberes, instituições, cálculos, táticas, análises e práticas, a que Foucault (2008) define como governamentalidade. 2

Organização não governamental (ONG) católica ligada à rede Caritas Internationalis, que desenvolve e financia projetos de ajuda humanitária e de desenvolvimento social em todo o mundo. É atualmente um dos principais organismos responsáveis pelo trabalho de recepção, assistência e integração dos refugiados e solicitantes de refúgio que chegam ao país. 3

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gestores do programa. Isso não significa, no entanto, que os refugiados estivessem fora ou alheios a esta configuração, mas sim a adoção de uma perspectiva metodológica e analítica. Outras coisas poderiam ser vistas de outros pontos e a partir de outros métodos de pesquisa, mas tratava-se de um imperativo tático ou condicional (Foucault 2008): de indicar algumas possíveis linhas de força a se seguir, alguns pontos chave, alguns bloqueios, ou, ainda, um determinado regime de visibilidade e o que se pode ver a partir daí. Neste sentido, uma das coisas que me foi permitido visualizar foi o funcionamento de um mecanismo de governo da população alvo do programa de assistência e de sua burocracia. Procurei refletir, então, sobre como tal mecanismo operava através do aparato burocrático e assistencial que o CAR colocava em funcionamento. Assim, ao invés de partir da categoria estanque de refugiado dada pela normativa jurídica,4 procurei chegar às múltiplas relações de poder que constituíam aqueles sujeitos enquanto tais, produzindo-os como um grupo alvo de determinados saberes que deveria receber um cuidado particular, ou como uma população que precisaria ser gerida.5 O foco desse trabalho, portanto, não está nos sujeitos refugiados, mas antes no modo como ao se institucionalizar, definir, normatizar o refúgio como uma problemática social e política e ao fazer funcionar práticas de cuidado e de controle sobre determinados sujeitos, estes se tornam visíveis para o Estado e para uma série de organizações tanto como um problema social, quanto como sujeitos que precisam ser governados. Pode se dizer que se trata não da etnografia de uma organização, mas de um mecanismo e de como determinados sujeitos são feitos visíveis para as práticas de governo. Este é um primeiro momento do experimento metodológico. Outra parte do experimento se dá na tentativa de realizar tal empreendimento a partir da análise da circulação dos documentos produzidos nesta malha de organizações que se territorializa no atendimento do CAR e do que estes mesmos documentos são capazes de criar. Os documentos, assim, foram entendidos com artefatos etnográficos particulares: Documents provide a useful point of entry into contemporary problems of ethnographic method for a number of reasons. First, there is a long and rich tradition of studies of documents in the humanities and social sciences. Second, documents are Um refugiado, de maneira geral, é caracterizado como aquela pessoa que tem de sair de seu país de origem, em razão de um fundado temor por sua vida, segurança ou liberdade, uma vez que tal país não quer ou não pode mais oferecer-lhe proteção (Moreira 2006). Conforme a Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados da Organização das Nações Unidas (ONU) as causas reconhecidas para a solicitação de refúgio são baseadas em um fundado temor de perseguição por raça, etnia, religião, grupo social ou político. A legislação brasileira também reconhece como refugiado aquela pessoa que devido a contextos de grave e generalizada violação de direitos humanos teve de deixar seu país de nacionalidade. 4

Partindo de uma perspectiva foucaultiana, compreendo gestão como uma nova forma de intervenção estatal que vai fazer com que regulamentações necessárias e encaradas como naturais possam atuar. Gerir consistiria, simultaneamente, em deixar fazer, manipular, facilitar, suscitar as condutas dos sujeitos no nível da população, modulando os fenômenos desta, para mantê-los próximos a uma curva de normalidade (Foucault 2008). 5

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.83-94, 2013 paradigmatic artifacts of modern knowledge practices (...). Documents thus provide a ready-made ground for experimentation with how to apprehend modernity ethnographically. (Riles 2006: 2)

Compreendendo-os como artefatos das práticas e conhecimento moderno, logo, do próprio conhecimento etnográfico, procurei olhar para os efeitos da circulação dos documentos a partir de uma imagem que não fosse a de um modelo matéria-forma, que analisaria seu conteúdo, forma ou função, mas de um modelo material-força (Deleuze; Guattari 1995), isto é, partir de seu caráter produtivo. Observá-los, assim, antes a partir do documentar (e assistir, organizar, institucionalizar) e do que este pode criar. Enquanto um “centro de referência”, o CAR é estruturado como um escritório onde se lida principalmente com assuntos burocráticos – solicitação de documentos, encaminhamentos, recursos, atendimento jurídico, legislações, prazos, formulários, relatórios. Seus funcionários têm de lidar com a esfera da administração burocrática que envolve a entrada e estabelecimento de uma pessoa em um país que não é o de sua nacionalidade. Ao mesmo tempo, no trabalho da organização está presente todo um caráter assistencial de atendimento. Há uma preocupação constante para que o atendimento seja “acolhedor e solidário”, marcando um elemento fundamental no trabalho da entidade: ela lida com uma esfera de assistência humanitária, expressa, por exemplo, nos ditos valores da Caritas – caridade, solidariedade e justiça. Segundo os funcionários, estes são valores que orientam o trabalho da instituição, muitas vezes descrita por eles como “o braço assistencial da igreja católica”. Administração burocrática e assistência humanitária são dimensões entrelaçadas e intrínsecas à problemática que caracteriza o refúgio no Brasil. Neste artigo procuro caracterizar e apontar efeitos do entrelaçamento entre essas esferas, enquanto um mecanismo de governo que vai produzir o refugiado como um sujeito legível a um aparato institucional, e analisar como os documentos são parte fundamental da conexão entre estas dimensões, mobilizadas por um saber técnico-burocrático que as perpassa.

O aparato burocrático-administrativo e assistencial-humanitário de governo: Um “campo de refugiados sem cercas” Segundo as advogadas do CAR, a entrada de imigrantes buscando solicitar refúgio no Brasil tem se dado através de quatro maneiras principais: ilegalmente via fronteira terrestre; legalmente de avião, com um visto de turista ou de estudante; ilegalmente de avião; ilegalmente de navio. Nesse primeiro momento, é o passaporte com um visto válido que determinará o que acontecerá com o imigrante. Para aqueles que entraram legalmente no país, ou que conseguiram passar por alguma zona de fronteira sem serem detidos (com uma documentação falsa ou com a ajuda de agentes !86


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atravessadores), o que deveria acontecer é que contatassem a Polícia Federal para a solicitação de refúgio. No entanto, segundo uma das advogadas, mesmo que o solicitante vá diretamente à Polícia Federal, de qualquer modo esta o encaminha primeiramente para a CASP. E isto tem uma razão: o CAR lhe fornecerá uma documentação – um encaminhamento – com o qual esse imigrante poderá se apresentar à Polícia Federal já como uma categoria específica de pessoa, como solicitante de refúgio e não como um imigrante genérico. Por outro lado, aqueles que chegam ilegalmente nos aeroportos ficam retidos no setor de imigração deste, enquanto seu caso é avaliado pela Polícia Federal e se conseguem chegar a solicitar o refúgio, esta os encaminha à CASP ou à outra ONG também responsável por este tipo de atendimento.6 Quando chega à CASP e informa ao atendente da recepção que deseja solicitar refúgio, o caso novo tem uma primeira conversa rápida com uma das advogadas que, tendo identificado um possível caso de refúgio,7 pede que ele preencha uma ficha com informações básicas (nome, origem, filiação, um telefone para contato, local em que está residindo no país), para que possa ser cadastrado no sistema da CASP. Ele, assim, terá uma ficha nos arquivos do programa, na qual ficarão registrados todos os procedimentos pelo qual passará tendo por intermédio o atendimento da agência. Alguns dias depois da realização deste cadastro, a secretária do CAR entra em contato com esse solicitante para informá-lo sobre o dia em que deverá comparecer na Polícia Federal para “prestar declarações” sobre as razões pelas quais solicita o refúgio, as circunstâncias de sua entrada no Brasil e para fornecer uma série de informações pessoais. Ao final dessa entrevista lhe será concedido um termo de declarações, sem o qual o caso não pode ser encaminhado para o CONARE,8 onde começa de fato o processo de solicitação de refúgio perante o Estado brasileiro. No dia de sua entrevista na Polícia Federal, o solicitante precisa ir antes ao CAR para buscar o encaminhamento feito pelas assistentes sociais. Feito o termo de declarações, ele deve retornar à agência, agora para preencher um questionário mais detalhado sobre sua situação, que será enviado ao CONARE. Nenhuma orientação sobre como se portar na entrevista com a Polícia Federal pode ser feita pelos funcionários. Mesmo no questionário, não se pode orientar os solicitantes sobre o que

As Cáritas de Manaus e Rio de Janeiro também prestam assistência a refugiados, assim como o Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH) em Brasília. Os reassentados, refugiados que são transferidos pelo ACNUR a um terceiro país por continuarem em risco, são atendidos pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) de Guarulhos e pela Associação Antônio Vieira (ASAV) em Porto Alegre. 6

Com base na Convenção de 1951 da ONU, no Estatuto do Refugiado de 1967, ou na Lei 9474/97 da Constituição Federal brasileira. 7

Comitê Nacional para Refugiados, órgão governamental deliberativo responsável pela análise e julgamento dos pedidos de refúgio no Brasil, composto por representantes dos ministérios da justiça, trabalho, relações exteriores, saúde, educação e esporte, pelo departamento de Polícia Federal e por um órgão representante da sociedade civil – no momento de realização dessa pesquisa, a CASP. Ao ACNUR é permitido participar das reuniões do CONARE, com voz, mas sem direito a voto. 8

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.83-94, 2013 escrever.9 É preciso “aparecer a situação real” da motivação do pedido de refúgio, pois não é raro, segundo fui informada, que os solicitantes façam um relato na Polícia Federal e outro no questionário. Na Polícia Federal é importante que o caso não se apresente como algo que possa pôr em risco a “segurança nacional”. Já no CONARE ele precisa ser apreendido como passível de ser categorizado juridicamente como um caso de refúgio. Tendo preenchido o questionário, as assistentes sociais podem dar entrada no pedido de um protocolo provisório, que será sua documentação no Brasil até que seja promulgada a decisão final sobre seu pedido de refúgio. Quem expede este documento é a Polícia Federal, mas antes ele deve ser autorizado pelo CONARE. É a CASP que entra em contato com este órgão pedindo tal autorização, e é para a CASP que ela é enviada. Quando esta chega, as assistentes agendam um horário para que o solicitante venha buscá-la e já lhe entregam também um encaminhamento, carimbado e assinado por um funcionário do CAR, para que possa novamente retornar à Polícia Federal. Com o protocolo em mãos é agendado para esse solicitante um horário com a assistente social do Setor de Integração do escritório, que lhe dará um outro encaminhamento para que possa fazer uma Carteira de Trabalho e posteriormente um CPF, nos órgãos responsáveis por esta documentação. Enquanto documentos provisórios, tanto a Carteira de Trabalho quanto o protocolo precisam ser renovados a cada três meses, até que seja deferido ou negado o pedido de refúgio. Para cada renovação, o mesmo procedimento: agendar um atendimento, pegar o encaminhamento, ir ao órgão responsável pela emissão do documento, voltar ao CAR para o próximo procedimento. Em meio a este percurso de pessoas e de documentos por entre instituições, os solicitantes de refúgio, a cada nova documentação que obtêm – seja o termo de declarações da Polícia Federal, o protocolo provisório ou o CPF – são produzidos como sujeitos específicos perante o Estado brasileiro: sujeitos passíveis de serem categorizados e reconhecidos dentro do status jurídico de refugiado. E cada organização pela qual passam os solicitantes de refúgio acessa uma parte apenas da composição que conforma o sujeito refugiado. Por isso tais organizações precisam trabalhar em interdependência. Sem o encaminhamento do CAR, a Polícia Federal não compreende, na maioria das vezes, este sujeito como um solicitante de refúgio, mas genericamente como estrangeiro e o que orientará sua forma de atendimento será possivelmente a noção de “segurança nacional”. Sem o termo de declarações, enviado pela CASP, o CONARE não inicia o processo de solicitação de refúgio, pois tal estrangeiro genérico não se inclui em sua alçada administrativa específica. E, enfim, sem a autorização do CONARE para a emissão do protocolo provisório, em papel timbrado, carimbado e

Segundo as advogadas do CAR, muitas vezes a falta de uma orientação mínima pode ser um problema, pois o solicitante nem sempre tem a dimensão do que aquele questionário representa: um documento que vai compor o parecer sobre seu caso dentro do CONARE. Acabam “preenchendo de qualquer jeito” e a falta de informações precisas e detalhadas, por exemplo, pode refletir no parecer final sobre o caso. Neste sentido os funcionários procuram orientá-los: que forneçam o máximo de informações e detalhes possíveis sobre as motivações para o pedido de refúgio. 9

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assinado pela CASP, a Polícia Federal não emitirá o documento para esse solicitante. Consequentemente, esse sujeito não existirá enquanto solicitante de refúgio perante o Estado brasileiro e não poderá receber a assistência humanitária da CASP ou do ACNUR. Durante este percurso para obtenção de documentos, o solicitante precisa passar ainda por duas entrevistas: com uma das advogadas e com a psicóloga ou a psiquiatra do CAR. Na entrevista com as advogadas, novamente ele será questionado, agora mais detalhadamente, sobre as motivações que o levaram a solicitar o refúgio no Brasil. Tais informações vão compor o parecer de elegibilidade,10 a posição da CASP sobre o caso na reunião plenária do CONARE para julgá-lo. Já a entrevista/consulta com a psicóloga ou a psiquiatra é justificada pela necessidade de se criar um vínculo, desde o início do processo de solicitação de refúgio, entre estas e o solicitante, possibilitando que este sinta confiança em procurar o CAR em caso de alguma necessidade posterior. Com uma ficha no CAR, com o termo de declarações, o protocolo provisório, uma Carteira de Trabalho e um CPF, já entrevistado, cadastrado e diagnosticado, ele ganha existência como um sujeito singular. É produzido como um solicitante de refúgio em situação regular no país, aguardando que seu caso seja julgado. Os solicitantes esperam, então, que um advogado representante do CONARE venha ao CAR realizar outra das partes do parecer sobre seu caso. Aguardam, em média, oito meses para que seu nome entre na lista das entrevistas que o CONARE envia previamente à CASP para que esta possa contatá-los. Posteriormente, esse advogado leva seu parecer ao Grupo de Estudos Prévios (GEP), formado por representantes dos ministérios que compõem o CONARE, por um representante do ACNUR e um representante da sociedade civil. As partes do GEP elaboram o parecer final sobre o caso e o apresentam na reunião plenária do CONARE. No momento de realização dessa pesquisa, todo o processo até a decisão final sobre o pedido de refúgio durava em média um ano. No entanto, durante o período em que acompanhei os atendimentos, as assistentes e os próprios solicitantes de refúgio comentavam que muitos casos estavam chegando a quase um ano e meio de espera. Além de toda a burocracia que envolve o processo de solicitação de refúgio em si, outros fatores, que são uma constante no cotidiano destas pessoas, contribuíam para isso: muitos documentos vinham com nomes e datas de validade errados; os solicitantes frequentemente confundiam o dia e o horário das entrevistas; a demora no atendimento no CAR, em razão do grande número de atendimentos para uma estrutura física relativamente pequena, levava-os a chegarem atrasados nas entrevistas com a Polícia Federal, a qual Esse parecer é composto por três partes: um resumo do questionário com os dados pessoais do solicitante e da entrevista feitos no CAR, apontando os aspectos relativos ao pedido de refúgio (porque deixou seu Estado de origem ou de residência habitual e porque está solicitando refúgio no Brasil); a descrição da situação objetiva do Estado de origem do solicitante, para corroborar a descrição subjetiva do “fundado temor de perseguição” feita por este; a recomendação ou não do reconhecimento do solicitante como refugiado. 10

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.83-94, 2013 atendia pouquíssimas pessoas por dia, e, muitas vezes, não atendia nem os que já estavam agendados, por falta de funcionários habilitados para tal tarefa, como, por exemplo, a falta de intérprete. Como me disse um solicitante, “a burocracia não acaba nunca”. O atendente da recepção do CAR tem uma justificativa: “Essa burocracia toda dá muito trabalho para a gente, mas é uma forma de se ter um controle. Senão eles desaparecem”. Uma voluntária também fez uma observação interessante sobre a presença constante dos solicitantes no escritório, por conta da documentação e da assistência que esse oferece, que ajuda a entender um pouco o que caracteriza este mecanismo de governo: “É como se fosse mantido um campo de refugiados, só que sem cercas. Só através da burocracia”. Estas falas destacam um problema para as organizações que lidam com refugiados: como enxergá-los como uma população específica em meio à população nacional? O efeito produzido por esta malha burocrático-administrativa é o de criar sujeitos apreensíveis, que são mantidos não em um campo de refugiados com cercas, mas em um campo de visibilidade determinado. Este é seu mecanismo de governo. Como destaca Scott (1998), a produção de um mecanismo de legibilidade é condição primordial para qualquer intervenção estatal – desde a vacinação de uma população até a captura de criminosos, passando pela uniformização de medidas e de um idioma. Esse tipo de mecanismo requer a invenção de unidades que sejam visíveis e padronizáveis, como acontece com o processo de documentação dos casos de solicitação de refúgio que chegam ao CAR. Um documento de identidade ou uma ficha de cadastro confere essa existência a um sujeito perante o Estado. A documentação é uma forma de tornar os sujeitos legíveis em meio a uma realidade complexa que o aparato estatal por si só não consegue acessar diretamente. Trata-se de um processo de simplificação da complexidade desta população, que, no entanto, torna o fenômeno que está no centro do campo de visão mais acessível e ainda mais suscetível a uma mensuração cuidadosa. O procedimento burocrático produz um mapa cadastral: uma forma de escalonar e categorizar uma população não por um processo de redução de sua complexidade, mas recortando-a, estabilizando-a e fixando-a (Scott 1998). Tal procedimento permite que esta população se torne visível e governável. Se aprovado o pedido de refúgio, o solicitante precisa se registrar junto à Polícia Federal para receber seu Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) e assinar um termo de responsabilidade vindo do CONARE – ele já é legível como refugiado. Porém, se o pedido é indeferido o solicitante tem um mês, desde sua notificação, para sair do país ou entrar com um recurso perante o Ministério da Justiça. Uma das advogadas do CAR explica o que acontece “na prática”, quando um pedido é indeferido:

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Aí, dizem que ele não é refugiado. Ele volta aqui e eu o ajudo a preparar um recurso para ser enviado ao Ministério da Justiça. A palavra final é do Ministro da Justiça. Se também é pelo indeferimento, aí qual é a situação do refugiado? Ele é comunicado pela Polícia Federal que tem um prazo para deixar o território brasileiro. [...] Eles recebem esse comunicado: “Se você não deixar o país, você vai passar por um processo legal de deportação”. E o que acontece na prática? Na prática, essa pessoa acaba sumindo no território brasileiro, porque o governo não tem verba para fretar um avião e deportar todo mundo que está numa situação ilegal [...]. Essa pessoa fica aqui em uma situação de limbo jurídico.

Ficar no “limbo jurídico” é não ser visto pelo mecanismo descrito acima. “Na prática” esse sujeito “desaparece” porque a burocracia acionada por este aparato de governo, apesar de constituir um determinado mapa de visibilidade, é um mecanismo que enxerga parcialmente. Não é todo recorte da “prática” que a burocracia consegue estabilizar e administrar, mantendo a visibilidade de seus elementos organizados. Há dimensões do “real” como chama Scott, ou da “prática” como diz a advogada, que lhe escapam o tempo todo. Seu mapa é sempre parcial e representa apenas a parte do real que interessa à observação estatal (Scott 1998). A dimensão burocrático-administrativa precisa de outros mecanismos que operem juntamente a ela para produzir o sujeito plenamente visível e, logo, melhor governável. Documentos, relatórios, fichas, jogam luz e permitem acessar apenas uma parcela da complexidade que conforma a população específica que procuram categorizar e padronizar a partir das simplificações que estabilizam. Outra dimensão fundamental deste mecanismo de constituição do sujeito refugiado visível é a esfera assistencial-humanitária. Essa não é externa ou oposta ao aparato burocrático – uma vez que documentos são a todo momento mobilizados para acessar auxílios e benefícios –, mas sim complementar e, nesse caso específico, inerente. Na CASP a assistência aos refugiados e solicitantes de refúgio é dividida em três setores: proteção, assistência e integração. Como destaca o representante do ACNUR no Brasil, “ao ser reconhecido, o refugiado recebe inicialmente a proteção expressa de maneira formal em um documento. É o reinício de sua cidadania” (Vareze 2006: 9). Porém, é no atendimento dentro dos programas assistenciais da CASP que a dimensão burocrático-administrativa descrita se cruza e se conecta com os valores da dimensão assistencial-humanitária, compondo em seus encontros sujeitos visíveis a partir de outra categorização que não a jurídica apenas (expressa em uma documentação), mas como sujeitos de direito, passíveis de se tornarem cidadãos plenos.11 Sujeito de direitos e cidadãos plenos são duas categorias constantemente acionadas por militantes de uma série de organizações da “sociedade civil organizada na causa do refúgio” no Brasil, como costumam se denominar, da qual a Cáritas faz parte. Seu trabalho consistiria, de modo geral, em “reatar laços que foram rompidos” e em integrar os refugiados na sociedade local, a partir da recuperação de seus direitos primordiais. Ver, por exemplo, o artigo “Refugiados e Políticas Públicas: pela solidariedade, contra a exploração”, elaborado pela Irmã Rosita Milesi e Flávia Carlet, disponível em www.migrante.org.br/refugiados_e_politicas_publicasout06.doc 11

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.83-94, 2013 O processo de assistência se inicia no Setor de Proteção, que é basicamente o setor de atendimento jurídico aos refugiados e solicitantes, composto pelas duas advogadas do CAR. Como foi dito, elas são responsáveis por realizar a entrevista que vai compor o parecer sobre cada caso, por defendê-los na reunião plenária do CONARE e, em caso de pareceres negativos, por auxiliar o solicitante na elaboração de um recurso. O setor é onde primeiramente as dimensões burocráticoadministrativa e assistencial-humanitária se atravessam, criando em seus encontros o compósito de relações que é o sujeito refugiado. Este programa legitima a categoria jurídica refugiado e confere a este sujeito a possibilidade de uma documentação que o identifica e permite ainda que seja incluído como beneficiário dos demais auxílios oferecidos pela CASP. É a partir do momento em que esse sujeito é categorizado como refugiado, ou provisoriamente como solicitante de refúgio, que ele poderá ser visto como um alvo da intervenção assistencial e humanitária do CAR. Já o Setor de Assistência é procurado pelos solicitantes e refugiados por três necessidades principais: saúde, moradia e alimentação.12 A CASP oferece ainda um auxilio de subsistência financeira de trezentos reais13 durante três meses, a partir da verba dos projetos com o CONARE. Os beneficiários deste auxílio, ao qual os gestores se referem como “sub”, são pessoas cujo caso caracteriza-se como de “alta vulnerabilidade”. Pelo que pude observar através dos relatórios de prestação de contas, as principais categorias de “vulneráveis” são: mulheres desacompanhadas; mulheres desacompanhadas que são chefes de família; idosos; portadores de doenças crônicas ou em tratamento; famílias cujos pais estão desempregados; grupos com maior dificuldade de integração. Porém, são as assistentes sociais, em conjunto com as advogadas, psicóloga e psiquiatra, que determinam os critérios de distribuição do auxílio, conforme as situações e os casos que se apresentam no momento em que chega “o dinheiro do projeto”. Proporcionando-lhes assistência com questões como alimentação, moradia e saúde, mais do que simplesmente oferecer um auxílio, um efeito do programa é o de criar sujeitos de direito perante o Estado brasileiro. Porém, se o Setor de Proteção confere determinados direitos civis a estes sujeitos e se o Setor de Assistência busca prover seus direitos sociais, os direitos políticos que conformariam o cidadão pleno almejado pelos gestores da CASP, por militantes da sociedade civil e pelo próprio aparato estatal, só são alcançados depois de anos e do trabalho constante do Setor de Integração para que este sujeito de direitos não volte a “desaparecer”, se tornando ilegível para o mecanismo de governo operado pela organização. O Setor de Integração tem duas frentes de ação principais: trabalho (formal) e educação. Segundo a assistente social responsável por esse programa, sua tarefa também consiste em “trazer a

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O setor também distribui roupas, sapatos e cobertores, fraldas e leite em pó.

Este valor varia conforme o número de casos que vão receber o auxílio. Como medida de comparação, o valor de um salário mínimo durante o período de pesquisa era de 622,00 reais. 13

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sociedade para junto da gente”. E isto fica claro quando se observa o principal modo de operação deste programa: as parcerias fechadas através de um intenso e constante trabalho de negociação, conscientização e solidarização com os possíveis parceiros da sociedade civil. O processo de integração se inicia uma vez que o solicitante esteja com sua documentação em dia. O refugiado que já pode ser integrado é aquele que enfim já é compreendido como um sujeito de direitos e que poderá vir a ser um cidadão pleno, enfim, que é visível a este aparato burocrático. O programa também vai tratar de mantê-lo assim, gerindo o que escapa a este mecanismo de governo, os seus pontos cegos14 – o trabalho informal, a rua, a deriva, a ilegalidade. O trabalho de integração busca criar novos vínculos para esse sujeito em conformidade com a curva de normalidade estabelecida pelo aparato: o sujeito de direitos pleno. Ele deve ser integrado como trabalhador, como alguém que tem acesso a moradia, alimentação, saúde, educação, e como uma pessoa documentada. Ao final do processo, enfim, é o laço de cidadania que lhe poderá ser conferido.

Considerações finais Mas como esse sujeito pode permanecer visível, se, como foi apontado, o aparato burocráticoadministrativo que o torna legível, mesmo com a dimensão assistencial-humanitária operando, possui ainda o que chamei de pontos cegos? Isto é, dimensões da “prática” que esse mecanismo de governo não consegue acessar. É neste momento que o processo de integração vai adquirir características de um dispositivo de gestão diferencial.15 Para manter os sujeitos legíveis, para que não fiquem no “limbo jurídico”, os atendimentos no setor de integração trabalharão cada caso singular para mantê-

A noção de ponto cego, no contexto específico deste trabalho, refere-se às dimensões do real (Scott 1998) que não são legíveis ao mecanismo de governo descrito, por não poderem ser mapeadas e estabilizadas por este. Aproxima-se da noção de “limbo” mobilizada pelos funcionários do CAR para se referirem às relações que não são apreendidas pelo aparato burocrático e assistencial que operam, uma vez que não se encaixam nas categorias e normas particulares que este produz. Neste caso, portanto, não se trata da mesma mobilização da noção de ponto cego feita por Vianna (2010), que a compreende como a forma pela qual “a relação oficial entre organizações revela-se, no exame etnográfico, o efeito de alianças firmadas entre seus fragmentos, que se engancham a emaranhados institucionais de alcance em geral muito mais longo do que aquela simples relação pode levar a crer” (Vianna 2010: 32). Segundo a autora, um campo de visão específico é produzido a partir de cada ponto de um emaranhado institucional. Neste movimento certos aspectos da relação entre os fragmentos de unidades compactas que compõem os emaranhados institucionais tornam-se visíveis ou são eclipsados. No contexto desta pesquisa, tal mecanismo descrito por Vianna pode ser percebido no modo como questões burocráticas que só podem ser resolvidas na relação com “Brasília” (modo como os solicitantes de refúgio costumam se referir ao CONARE) se apresentam distantes e ilegíveis para os solicitantes de refúgio, que só acessam diretamente dimensões do trabalho cotidiano realizado no CAR. A organização CONARE fica assim eclipsada pelo CAR, que constitui seu ponto cego nesse trecho do emaranhado institucional que pode ser observado pelos solicitantes de refúgio. 14

Compreendendo dispositivo de gestão diferencial enquanto um mecanismo que identifica diferentes curvas de normalidade e operações de normalização, fazendo as funcionar uma em relação à outra, de modo que as mais desfavoráveis sejam trazidas às mais favoráveis. (Foucault 1995; 2008). Não a repressão da norma, mas uma economia das diferentes curvas de normalidade. 15

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.83-94, 2013 los próximo da curva de normalidade determinada para caracterizar o sujeito de direito pleno e visível que o aparato descrito busca produzir. Portanto, o sujeito passível de integração e, no limite, de gestão, passa por duas etapas. Primeiramente passa pelo cadastro burocrático, tornando-se um sujeito inteligível ao mecanismo de governo. Em segundo lugar, ele é produzido como sujeito de direitos, visível como alvo da intervenção desse mecanismo. Com o fim do processo de integração, uma gestão diferencial dos casos particulares buscará evitar que estes se afastem das codificações visíveis ao aparato institucional, gerindo seus pontos cegos. Por isso a “burocracia não acaba nunca”, como colocou o solicitante de refúgio. Os documentos atuam como máquinas de captura e codificação destes sujeitos, produzindo-os constantemente como categorias visíveis a um mecanismo de governo.

Bibliografia DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1995. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de janeiro: Editora 34, v.1. FOUCAULT, Michel. 2008. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes. FOUCAULT, Michel. 1995. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes. MOREIRA, Júlia Bertino. 2006. A Questão dos Refugiados no Contexto Internacional (de 1943 aos dias atuais). Dissertação de Mestrado, UNICAMP. RILES, Annelise. 2006. Introduction: in response. In: RILES, Annelise (org.). Documents: artifacts of modern knowledge. Michigan: University of Michigan Press: 3-38. SCOTT, James. 1998. Seeing Like a State: how certain schemes to improve the human condition have failed. London: Yale University Press. VAREZE, Luís. 2006. Três Elos da Corrente dos Direitos Humanos. In: Refúgio, Migrações e Cidadania – Caderno de Debates. Brasília: IMDH, pp. 33-51. VIANNA, Anna Catarina Morawska. 2010. Os Enleios da Tarrafa: etnografia de uma parceria transnacional entre ONGs através de emaranhados institucionais de combate à pobreza. Tese de Doutorado, USP.

Recebido em 12/02/2014 Aprovado em 01/05/2014

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Agentes de transformação indígena: Os aerofones Yreru e Yrua1 Gabriel Garcêz Bertolin Mestrando do PPGAS-UFSCar Universidade Federal de São Carlos

Resumo Neste texto pretendo articular, por meio da etnografia do Mboatawa, festa que ocorre anualmente entre os Tenharim, o conceito de transformação acionado por meio de cantos e danças. Neste sentido, será dada atenção a dois agentes associados nestes processos: as flautas Yreru e Yrua. A partir das suas semelhanças e diferenças pretende-se estabelecer os diferentes modos de alterações acionados pelos agentes presentes na festa. Os Tenharim são um grupo Tupi-Kagwahiva que habita os afluentes do rio Madeira. Palavras-chave: Ritual, flautas, transformação, Kagwahiva.

Abstract Agents'of'indigenous'transforma0on:'the'aerophones'Yreru'and'Yrua'' In#this#paper#the#intent#is#to#ar-culate,#through#the#ethnography#of#Mboatawa#feast#held#annually#among# Tenharim,#the#concept#of#transforma-on#triggered#by#means#songs#and#dances.#In#this#regard#a:en-on# will#be#paid#to#two#transforma-on#agents#associated#in#these#processes:#the#flutes#Yreru#and#Yrua.#From# there#similari-es#and#differences#the#inten-on#is#to#establish#the#different#way#of#altera-on#triggered#by# agents#in#the#feast.#The#Tenharim#are#group#Tupi@Kagwahiva#that#inhabits#the#tributaries#of#the#Madeira# river.## Keywords:##Ritual,#Flutes,#Transforma-on,#Kagwahiva.

1. Este texto é resultado de uma apresentação realizada no Grupo de Trabalho denominado Estudos Ameríndios, o qual ocorreu no Segundo Seminário de Antropologia na Universidade Federal de São Carlos, no ano de 2013. Agradeço, desde já, aos coordenadores Felipe Ferreira Vander Velden e Clarice Cohn, e ao debatedor Antonio Guerreiro Júnior que se propuseram a ler e debater este texto. Também agradeço os comentários dos demais participantes do Grupo de Trabalho. Este texto também foi apresentado ao Grupo de Etnologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), agradeço pela leitura minuciosa e pelos apontamentos realizados por Amanda Danaga, Clarissa Martins, Marina Pereira Novo, Lígia Rodrigues de Almeida e Thais Mantovanelli. As reflexões aqui apresentadas são fragmentos do exame de qualificação de mestrado. Trata-se, especificamente, da elaboração preliminar do que será o terceiro capítulo da dissertação no qual pretendo elaborar uma leitura etnográfica sobre os aerofones e os cantos acionados durante o Mboatawa. A dissertação tem como tema a festa Tenharim.

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Trato aqui da transformação ritual que ocorre a partir do acionamento de dois distintos aerofones.2 O contexto desta ação ritual é o Mboatawa, festa que ocorre anualmente entre os Tenharim, grupo Tupi-Kagwahiva que se localiza no rio Marmelos, afluente do rio Madeira ao sul do estado do Amazonas.3 A partir da descrição do contexto de produção e de acionamento da Yreru (clarineta) e da Yrua (flauta) elaboro um conjunto de oposições entre estes dois mediadores que permitem pensar determinados temas como a transformação e a temporalidade ritual. Todas estas ações têm como pano de fundo o Mboatawa, uma festa Tenharim. Os dados etnográficos aqui apresentados são fruto de três breves inserções em campo que ocorreram a partir de 2011. Desde a primeira viagem para o sul do amazonas, ainda na graduação, meu interesse foi etnografar a festa Tenharim. Participei da festa na aldeia Água Azul, na aldeia Marmelos e na aldeia Marmelos IV. Não há uma etnografia especificamente centrada na festa Tenharim, ainda que Edmundo Peggion (2011) descreva a festa e elabore uma excelente leitura do Mboatawa à luz do dualismo em perpétuo desequilíbrio das metades Kagwahiva.4 O que apresento aqui são fragmentos etnográficos, lacunas que ainda estão distantes de qualquer fechamento, tanto teórico quanto em relação aos dados de campo. A etnografia de festas, de um modo geral, demanda um grande esforço e tempo, e neste longo processo ainda estou dando os primeiros passos. Ainda assim penso que os dados aqui apresentados apontam para um determinado caminho para se refletir sobre as festas e suas conexões com a paisagem amazônica. Faz-se necessário, antes de apresentar os elementos da sonoridade Kagwahiva, uma breve apresentação da festa, dos seus contornos, e também situar o arcabouço conceitual no qual venho me atentando para pensar este contexto festivo. Esta festa está associada ao calendário agrícola do

Utilizo o termo aerofone, pois ele é amplo o bastante para tratar das distintas características dos instrumentos utilizados pelos Tenharim. Trata-se de qualquer instrumento que soa através de uma coluna de ar posta em vibração. Quando trato da especificidade de cada um dos aerofones utilizo o termo clarineta ou flauta. A clarineta refere-se à Yreru e é assim classificada, pois é um instrumento de sopro que possui em seu interior uma palheta. A vibração desta palheta em consonância com o tubo sonoro é que permite o som da Yreru. A flauta refere-se à Yrua, em que o som é produzido por um tubo sonoro sem a necessidade de palhetas. Trata-se muito mais de uma distinção arbitrária, para facilitar a leitura do texto, do que necessariamente uma classificação dos instrumentos de sopro. Quero deixar claro que não tenho conhecimento musical para descrever as especificidades sonoras com alguma relevância. 2

Kagwahiva significa “nós”, “a gente”, e constituem uma variedade de grupos localizados na região do rio Madeira e seus afluentes. Os Kagwahiva setentrionais são constituídos pelos Tenharim, Parintintin e Jiahui. Os Kagwahiva meridionais são compostos pelos Amondawa, Jupaú (Uru-eu-wau-wau) e Karipuna. Existem determinados fatores que conectam estes diferentes grupos: a língua, a história (de suas migrações) e a organização social. Os Kagwahiva possuem uma característica comum aos grupos Jê, e que os fazem um caso particular junto aos Tupi, qual seja, a presença de metades patrilineares e exogâmicas: Mutum (Myty Nhãgwera) e Taravé (Kwandu). A relação entre as metades é intensa durante a festa, há diversas trocas cerimoniais: apresentação da caça, na cerimonia de luto, durante a distribuição dos alimentos. 3

Utilizando o conceito lévi-straussiano de dualismo em perpétuo desequilíbrio, Edmundo Peggion (2011) elabora uma análise da assimetria entre as metades Mutum e Taravé, e como esta assimetria funda uma relação dinâmica que atravessa o contexto da organização social, a onomástica e o ritual. Peggion (2011) ainda analisa cada um destes contextos. 4

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grupo, ocorre entre os meses de junho e agosto, período no qual há a derrubada da capoeira para elaboração de novos roçados, chamado de verão amazônico, momento propício para a constituição dos grupos de caça. Durante este período os diferentes grupos domésticos se organizam para caçadas coletivas, as quais fornecerão a base material para a opulência de alimento durante a festa. A festa tem uma duração de aproximadamente cinco dias, enquanto que sua preparação, em termos ideais, é de, pelo menos, um ano. Ela ocorre anualmente numa aldeia distinta, e assim a própria festa opera enquanto dádiva, circulando nas distintas aldeias que se localizam na margem da rodovia Transamazônica. A circulação da festa entre as aldeias ocorre no domínio da relação entre chefes, ainda que não chefes tenham a possibilidade de realizá-la. O dono da festa, idealmente um chefe com capacidade de acionar uma ampla rede de relações a partir de seus genros e cunhados, tem a função de preparar a casa cerimonial (local onde são realizadas as danças), organizar os grupos de caça e, principalmente, financiar todas as atividades que envolvem gastos, seja para a construção da casa cerimonial ou para os distintos grupos de caça, enquanto os convidados entram com a caça coletiva e consumo dos bens festivos. Durante a realização da festa ocorrem diversos atos: distribuição de alimentos, danças, cantos, trocas cerimoniais entre as metades, casamentos, cerimoniais de luto, entre outras diversas atividades que se congregam nesse emaranhando. Nesses vários elementos que constituem sua realização é possível falar numa sequência permanente em todas as festas: a entrada dos caçadores a partir de um confronto virtual (a iminência constante de um conflito real está presente), a “pacificação” desses grupos externos pelos anfitriões através de refeições comunais, danças e cantos e, por fim, o consumo do principal alimento da festa, o miná, carne de anta cozida no leite da castanha. Sua sequência segue uma estrutura muito comum na Amazônia: entrada a partir de um confronto virtual entre anfitriões e convidados, trocas e distribuição de bens materiais e imateriais entre convidados e anfitriões, que no Mboatawa está inscrito na relação cerimoniosa entre as metades Kwandu e Mutum, além da dança, música, ornamentação corporal. E, como em vários outros contextos, trata-se de um processo de constante comunicação entre termos distintos, sejam eles humanos ou não humanos, mas sempre permeada pela alteridade numa relação ambígua entre um Eu e um Outro. E é justamente um dos temas desta ambiguidade que quero aqui abordar a partir de aproximações e distanciamentos entre a Yreru e a Yrua, dois aerofones Tenharim. Além da Yreru e da Yrua, há outro aerofone, o qual não é mais utilizado, a Tawarina. Tratava-se de um instrumento confeccionado a partir de palha da palmeira cujo som era semelhante a uma buzina, produzia uma espécie de estrondo, como declaram os Tenharim. Antigamente os grupos de caça que saíam para realização da caça coletiva retornavam soprando estes instrumentos, alertando o grupo anfitrião que já estavam próximos. Hoje, esse instrumento foi substituído pelos rojões, mais potentes em termos de estrondo.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.96-110, 2013 Marilyn Strathern (1990), ao discutir o conceito de evento na obra de Marshall Sahlins, sua tradução da chegada do capitão Cook ao Havaí, aponta para o conceito de performance. Segundo a autora, há duas formas distintas de se pensar o evento, fenômeno em si temporal. A primeira, que toma o evento enquanto contingência frente sua relação com a estrutura e, desta forma, o tempo que emerge desse ponto de vista é uma sucessão progressiva de eventos; a segunda, que toma o evento como performance e, assim, ele se torna conhecido por seus efeitos e somente pode ser entendido a partir da relação entre obliteração e revelação para aqueles que o presenciam. Aqui o tempo que emerge não é uma linha de acontecimentos sucessivos, mas a intenção é criar uma imagem singular, única do evento. Um exemplo utilizado pela autora é o fato de na Melanésia as pessoas serem cativadas durante as performances rituais ativadas pelos usos de determinados artefatos. Esse ato de maravilhar-se pela performance advém do fato de que os ritos não podem ser compreendidos, segundo Strathern (1990), pela mera repetição de gestos, mas são movidos pelo inesperado, uma vez que a imagem criada pela performance não está dada a priori - a performance nunca é um ato antecipado, as imagens que ela revela são criadas no ato mesmo da performação e singularização dos agentes envolvidos no ato mesmo da ação ritual. É justamente esta distinção que faz dos rituais atos singulares frente ao cotidiano. A intenção aqui, quero deixar isso claro durante o decorrer do texto, é que os aerofones são artefatos que produzem performance em um contexto específico. Num mundo onde artefatos são tão personalizados quanto as pessoas (Strathern 1990), o acionamento dos aerofones engatilha um jogo de revelação e obliteração que faz do acontecimento, enquanto instante, um ato de criação de imagens nos observadores. São nestes termos que tomo a performance. Os aerofones Kagwahiva operam numa dinâmica entre obliterar e revelar, na qual se encetam transformações dos sujeitos nela envolvidos, sejam eles humanos ou não humanos. Assim, o que temos no Mboatawa é um ato de singularização frente à vida ordinária a partir da transformação de determinados agentes, isso tendo como pano de fundo a dança coletiva e o acionamento da pequena taboca. O fato é que o acionamento desses aerofones somente faz sentido se pensado em termos mais da experiência enquanto processo do que da representação enquanto descrição.5 E neste processo não faltam ambiguidades6 entre os termos, tema comum nas terras baixas da América do

É tema comum na bibliografia sobre rituais nas Terras Baixas da América do Sul a oposição entre mito e rito, representação e acontecimento, metáfora e metonímia, estrutura e ação. O conceito de devir, elaborado por Eduardo Viveiros de Castro (1986), a partir da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, é uma das formas mais exitosas para pensar a ação ritual, pois permite justamente sair destas dicotomias. O autor usa o conceito de devir por dois motivos: o primeiro em oposição à metáfora ocidental do Ser; o segundo por se tratar de um processo pré-representativo, anterior à oposição entre o real e a representação, e em oposição à metáfora e metonímia que geram identidades a partir de oposições estruturais: o devir é a contraidentidade. 5

Aqui tomo o tema da ambiguidade no mesmo sentido que Eduardo Viveiros de Castro (1986) toma a ambivalência como característica fundamental dos grupos Tupi-Guarani; trata-se de uma dinâmica inconstante. 6

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Sul: ambiguidade do guerreiro Tupinambá (Viveiros de Castro 1986), do xamã Yagua (Chaumeil 2011), ou das próprias flautas Tenharim, como pretendo demonstrar. O que chamo de transformação/alteração são conceitos que melhor caracterizam a ação ritual. Na realidade, o conceito de transformação permite justamente tratar da ação ritual, mas sem retomar dicotomias como as de estrutura e ação, ou representação e acontecimento, entre outras. Como aponta Renato Sztutman (2003) ao tratar do xamanismo e das festas regadas a caxiri na Amazônia, a alteração, aquilo que ele pontua como “sair de si”, é uma constante nos atos rituais, pois é uma forma de conectar-se à alteridade, seja ela humana ou não humana. Assim, os rituais operam através de processos que promovem a alteração dos vários sujeitos neles envolvidos e permitem, desta maneira, a comunicação entre uma miríade de agentes rituais. A transformação é uma característica amazônica, pois este mundo transformacional está mais próximo à prática (Sztutman 2000). Como aponta Sztutman (2003), só há comunicação porque há alteração entre sujeitos; as partes envolvidas no ritual trocam, se aliam justamente para, posteriormente, se alterarem. Pretendo olhar para um dos meios da alteração envolvidos no Mboatawa, seus aerofones. A partir das relações engendradas por este elemento ritual pretendo estabelecer conexões com outras formas relacionais esboçadas na festa: humanos e não humanos, guerra, memória, a relação com os antigos, entre outras formas. Como aponta Chaumeil (2011), é a heterofonia das flautas nas Terras Baixas da América do Sul que singulariza tanto o contexto exigido para a alteração como os agentes nela envolvidos e, assim, elabora-se um campo de comunicação entre humanos e não humanos. Comunicação que nessa paisagem dá mais ênfase ao som não verbal (ruídos, assovios, aerofones) que ao verbal, tratando-se de comunicação com não humanos7 (Chaumeil 2011). Isso mostra a especificidade da linguagem ritual frente à linguagem operacionalizada durante o cotidiano. No caso Tenharim, além da rouquidão da Yreru, clarineta de aproximadamente 1,8 metro de comprimento, há o macio assovio da Yrua, pequena taboca de poucos centímetros de comprimento. A correlação entre elas permite a constituição de um conjunto de relações que vão da predação à memória. São justamente estas características, cinegéticas e mnemônicas, que pretendo elaborar a partir das relações suscitadas entre estes dois agentes da transformação ritual Tenharim. Relações diretamente conectadas com uma das principais características do Mboatawa que é a alegria (ou euforia) e a tristeza (ou choro). Mas para etnografar essas aproximações e distanciamentos faz-se necessário uma passagem pela questão vocalizada durante os cantos Tenharim. No caso da Yrua, seu acionamento ocorre junto ao canto individual. Assim como mostrei acima quanto à singularidade da linguagem dos aerofones frente à linguagem cotidiana, também ocorre o mesmo com o canto. Desta No caso do xamanismo Yagua descrito por Jean-Pierre Chaumeil (2011) se faz necessário, no processo de construção do corpo xamânico, a deformação da voz. Todo canto xamânico inicia-se com assovios e esta transformação para a frequência acústica dos espíritos é que torna possível a comunicação entre sujeitos outros. O mesmo pode-se pensar para o contexto dos aerofones Tenharim e sua relação com o domínio animal, como descreverei a seguir abaixo. 7

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.96-110, 2013 maneira elabora-se uma distinção frente à linguagem utilizada no cotidiano: presença de palavras arcaicas, onomatopeias e paralelismos. Ou seja, a vibração das cordas vocais não difere da sonoridade das flautas, e também constitui uma maneira diferenciante de comunicar-se que busca a alteração e singularização daquele que canta.

Yreru e Yrua: paisagens sonoras Descrevo agora os aerofones Tenharim. Para tratar da Yreru é necessário falar sobre a paisagem Tenharim.8 Esta paisagem é produzida por diferentes localidades e agentes variados, os quais permitem pensar em uma forma de acesso ao passado. Desta geografia emergem pontos que estabelecem conexões com temas míticos, como alguns conjuntos de pedras conhecidos como aldeia de Mbahira,9 capoeiras antigas, cemitérios, locais onde estavam instaladas antigas aldeias, além de trilhas e locais para caça, igarapés e uma variedade de outras conexões espaço-temporais. Um dos pontos que emerge desta paisagem Tenharim são os locais onde se encontram as tabocas, material manuseado para a confecção da Yreru. São locais acessados sempre no tempo que precede a festa. Esses locais onde se encontram as tabocas estão também presentes nas narrativas dos grupos de caça, momento discursivo no qual esses pontos da geografia Tenharim emergem constantemente. Observei a presença de dois locais onde essas tabocas podem ser encontradas: o primeiro é no rio Preto, afluente do rio Marmelos, e o segundo se encontra nas proximidades da aldeia Taboca, que leva este nome justamente pelo fato de seu entorno estar repleto de taboca para confecção das clarinetas. Esses tabocais também estão presentes nas narrativas míticas. No mito não é especificado o local exato onde é encontrada, mas trata-se da descrição de uma aldeia de espíritos que se escondem na Yreru. A narrativa mítica especifica, de maneira minuciosa, a epopeia de um pajé que se perde de seu grupo devido à guerra com o branco, conflito que ocorreu no tempo em que os portugueses chegaram ao Brasil, segundo o narrador da única versão a que tive acesso. A narrativa trata da dispersão devido à guerra com o branco, e durante a viagem do pajé ele encontra com diversos animais: sapo, cobra, veado, macaco, coruja. Estes diferentes animais, que durante a epopeia conversam com o pajé, se dividem entre aqueles que o auxiliam a encontrar sua aldeia e aqueles que tumultuam seu trajeto, colocando-o em situação de perigo constante. A intenção aqui não é O termo “paisagem” advém do uso de Jonathan D. Hill (2011), o qual se refere à paisagem como marca visível da agência humana no passado ou como reflexos de interações orgânicas, inorgânicas e semiótica. 8

Como descreve Waud Kracke (1984), Mbahira é um herói-cultural responsável pela obtenção do fogo dos urubus, criação das mulheres, entre outras atividades que remontam ao tempo do mito. Apesar das suas ações estarem relacionadas ao tempo do mito, a gente de Mbahira continua vivendo no mesmo patamar cosmológico que os humanos. Hoje eles vivem no interior das pedras, suas aldeias estão às margens do rio Marmelos, mas somente podem ser vistas por pajés. Encontram-se vestígios de sua presença na mata, principalmente nas capoeiras, pequenas pedras polidas que são a bosta de Mbahira (Mbahira-Tagwera). 9

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remontar a longa narrativa, mas apontar a relação da Yreru com os espíritos que se escondem em seu interior. Em um determinado momento da epopeia o pajé pensa ter, de fato, encontrado com seu povo, pois ouve de longe a zoada da clarineta. Como em todas as outras vezes em que pensou ter localizado o grupo, ele se prepara para o encontro, banha-se no igarapé mais próximo e se arruma. Quando se aproxima da aldeia, que acredita ser seu grupo festejando, observa uma quantidade enorme de clarinetas apoiadas nas casas e um enorme silêncio. Tratava-se da aldeia do espírito que se esconde dentro da clarineta Yrerujiputehe.10 Hoje, quando coletam a taboca para confecção da clarineta, entram em contato com as aldeias onde esses espíritos vivem. Mas para a elaboração da Yreru não basta somente a taboca e as relações que ela engendra, tanto espaciais quanto com agentes não humanos. Este tubo que possibilita a vibração do som não corresponde ao todo do instrumento. Como disse acima, trata-se de uma clarineta, em seu interior é inserida uma palheta. A uã, pequena e fina taquara que é levemente cortada é que produz o som devido a sua vibração, enquanto que o tubo sonoro possibilita a amplificação e erupção de um som grave e rouco como o do taia’hu (queixada). Diferentemente da taboca, a uã, confeccionada com um ramo de taquara, pode ser encontrada com facilidade às margens dos rios e igarapés. E para a uã emitir um “som macio” é preciso que ela seja uma taquara homem; se for mulher, o som “não sai bonito”, o som fica “falhado.” 11 A criação deste aerofone, em termos materiais, não aponta para uma sofisticada elaboração de seu corpo exterior. Não há uma padronização rígida durante seu processo de confecção, nem quanto ao tamanho ou em termos de ornamentação, nada além da perfuração dos seus gomos através do uso de uma barra de ferro. A sofisticação está justamente em seu uso e no conhecimento específico de quem o confecciona. A sua elaboração engendra um apuro requintado por parte daquele que o constrói e afina. Os bons afinadores são, por extensão, aqueles que detêm maior conhecimento a respeito da preparação da Yreru. Durante as festas, estes homens, geralmente mais velhos, são constantemente acionados para a confecção das clarinetas. Eles são requisitados devido a sua habilidade auditiva, sua capacidade de afinar a clarineta a partir de seus diferentes tons. Assim, se externamente a clarineta não demonstra a necessidade de um cuidado específico, em seu interior, a uã demanda uma habilidade especifica para sua afinação. Principalmente durante a alvorada, momento que antecede as grandes danças coletivas, eles passam algumas horas afinando a taboca, confeccionando a uã. Todo este esforço para que cada Yreru esteja no tom certo. Estes diferentes tons são dispostos em uma escala intensiva; no total são quatro tons diferentes que vão desde o mais Segundo o dicionário Português–Parintintin de LaVera Betts (1981) Yrerujipyhu’ga significa gente lendária que se esconde em sua flauta quando outros vêm passear. 10

Esta mesma distinção faz-se presente na obtenção de material para confecção das flechas. As taquaras manchadas são as masculinas, enquanto as taquaras lisas são “como a pele da mulher”. Quando vão preparar as flechas no fogo a taquara mulher espoca, não sendo boa para caça. 11

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.96-110, 2013 abafado até o tororó (ronco, estrondo), “do taia’hu mesmo”. Esta variação sonora é determinada principalmente pelo corte da palheta, que permite a sua vibração, mas também pelo tamanho da taboca. Visto que a diferença sonora diz respeito à intensidade do som – do mais abafado ao mais grave – esta distinção não é muito clara quando acionados simultaneamente. Mas estes homens, responsáveis pela confecção e afinação do instrumento utilizado nas danças coletivas, não constituem uma classe distinta ou de especialistas, em termos marcados no interior do grupo. Estes instrumentos Kagwahiva não conectam relações entre classes de pessoas ou distinção entre os sexos, como em outras paisagens amazônicas onde se pode encontrar o complexo das flautas sagradas. As mulheres podem manuseá-las, mas não podem soprar o instrumento quando adultas, somente quando ainda crianças, ainda que isso seja raro. Ainda assim, não são impedidas de vê-las e muito menos de ouvi-las, uma vez que também estão presentes nas danças coletivas. Esta relação de gênero, e destes com os aerofones, reflete as próprias relações de gênero nos mais distintos contextos da vida Kagwahiva, ou seja, uma relação marcada mais pela fluidez que pela rigidez da regra. Esse aerofone somente pode ser acionado coletivamente. O som por ele emitido estabelece relações diretas entre não humanos e humanos de diferentes aldeias que se reúnem durante a festa, as pinturas e o som do aerofone estão relacionados ao domínio animal. O fato é que estes quatro tons acionados simultaneamente constituem uma heterofonia. Uma heterofonia produzida durante a própria ação: “a gente vai ouvindo e vai tocando”. Ainda que não haja uma forma pré-estabelecida, dada de antemão, a sonoridade se repete a cada dança, não há muita distinção de uma dança para outra. A distinção sonora está devidamente marcada quando não há a presença dos mais velhos nos semicírculos de tocadores. Uma distinção geracional aponta para uma diferença sonora que, mesmo eu, que não tenho conhecimento musical, percebo. Enquanto nas danças onde há a presença considerável dos mais velhos é possível observar a heterofonia dos tons, a sobreposição constante entre eles. Quando a dança é constituída somente por jovens a sonoridade se torna monótona e repetitiva, todas as clarinetas são acionadas da mesma maneira e ao mesmo tempo. A heterofonia é que deixa o som katuhete (muito bonito). A dança na qual a Yreru é acionada remete à formação de um semicírculo de guerreiros, devidamente pintados e adornados com seus cocares e a Yreru em punho, enquanto fora deste semicírculo encontram-se as jovens moças pintadas com o tema da onça. O primeiro da linha dos homens é geralmente um sênior que marca com o pé direito o ritmo da passada ao som do agwahi, chocalho atado ao seu tornozelo. Quando os homens em movimento passam pelo grupo de moças que tangenciam o semicírculo de dançarinos, elas tomam seus pares pela cintura com uma mão, enquanto que com a outra auxiliam na sustentação da Yreru. Desta maneira, elas ficam voltadas para o centro do círculo em movimento. Numa disposição concêntrica, partindo do centro do círculo, temos: o centro, para o qual a boca da taboca está voltada; posteriormente as meninas, que com a !103


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mão esquerda auxiliam no manejo da clarineta e com a outra mão abraçam a cintura dos homens; os guerreiros, que com a mão esquerda abraçam as costas das moças e com a mão direita seguram a Yreru; e, fora do círculo, a audiência. Mutum dança com Taravé e Taravé com Mutum. Como narra Freitas (1926), em uma festa por ele observada entre outro grupo Kagwahiva, a Yreru estava sempre apontada para o centro, local antigamente ocupado pelo inimigo. Assim, o semicírculo conjuga elementos humanos e não humanos a partir de uma lógica predatória. Guerreiros abraçados às onças emitindo ao centro o som do taia’hu, centro este ocupado pelo inimigo. A Yrua, pequena flauta, pode ser constituída por um ou mais tubos sonoros, podendo ser ou não ornamentadas. Elas variam quanto ao tamanho e estão relacionadas a mais de um animal. Quando formada por mais tubos, estes são postos de forma sequencial, formando uma espécie de flauta de Pã. Nimuendaju (1924) descreve a existência de flautas com 4, 7, 10 ou até 15 tubos. Além dos tubos, estas pequenas flautas variam quanto a sua ornamentação. Algumas podem levar penas de arara e mutum. Na maioria dos casos, não são ornamentadas, e também são constituídas por um único tubo sonoro. Diferente da Yreru, que constitui um coletivo de clarinetas quando acionada, a Yrua é acionada individualmente, mas sempre na presença da audiência – não se toca a pequena flauta em ambientes que não sejam comunitários. Cada cantor, geralmente os mais velhos da aldeia, leva consigo sua própria Yrua. Se a clarineta é tocada a partir de um conjunto de outras clarinetas formando uma heterofonia tal como descrita acima, a flauta também está em associação com outro elemento, o canto. Outro elemento que conecta os dois aerofones, além do fato de que somente são acionados se acompanhados e em ambientes público, é a questão geracional. A presença dos mais velhos é uma constante nesses movimentos sonoros dos Tenharim. Durante o acionamento da Yreru há a formação de um semicírculo de guerreiros que seguem uma sequência geracional: à frente do semicírculo estão presentes os mais velhos, enquanto que em seu final estão as crianças com suas pequenas clarinetas. No caso da Yrua, como está conjugada ao canto e este é sempre entoado pelos mais velhos, a questão geracional também é referida. Entre os Tenharim o canto é acionado em vários momentos rituais. Todas as ações formais, aquelas que exigem maior rendimento quanto a sua ordenação, são precedidas ou acompanhadas pelos cantos dos mais velhos. Os cantos estão conectados às diversas ações pragmáticas: chegada dos grupos de convidados, relações de troca entre as metades, durante a cerimonia de luto, durante a distribuição do excedente, e num conjunto variado de outros instantes rituais. Na chegada dos caçadores (ou grupo convidado), temos os cantos entoados concomitantemente pelo dono da festa e pelos velhos. Forma-se uma comunhão de vozes dissonantes. Neste momento, a caça é apresentada ao dono da festa, é dito a que metade pertence o caçador que matou cada um dos animais abatidos para a festa. Na cerimonia de fim de luto o canto também é entoado do seu início até seu final. !104


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.96-110, 2013 Durante este ato ele aparece como pano de fundo harmônico. O mesmo ocorre durante a distribuição da mandiogwy (farinha branca), elaborada para o Mboatawa e que é uma dádiva produzida pelo grupo do dono da festa e distribuído aos convidados ao final de cada festa. Se os atos rituais forem tomados em termos diacrônicos, é possível perceber que, do início ao final da festa, há cantos sendo entoados incessantemente. Isso ainda é mais claro durante as grandes danças. Após a entrada de todas as meninas no círculo de dançarinos, e de várias voltas durante bons minutos, o círculo é desfeito abruptamente, os dançarinos cansados sentam nos bancos que ficam na lateral da casa cerimonial. Neste exato instante, no intervalo entre as danças, os velhos entoam seus cantos. Isso aponta para uma característica dos cantos durante o Mboatawa: mais que um pano de fundo que circunscreve estas ações rituais, das mais variadas, eles são a própria possibilidade da transformação ritual. A Yrua está presente tanto nos cantos referentes aos feitos guerreiros e de caça como nos cantos em relação aos antigos. Seu termo ambíguo percorre o caminho entre os dois polos intensivos da festa: a alegria (ji’oryorude) e a tristeza (-gwahy). Como narra Freitas (1926), os guerreiros andavam de um lado para outro proferindo seus feitos guerreiros. Mas não se canta somente a guerra, mas também os mortos. Nestas duas imagens rituais, a da Yreru e seu acionamento coletivo, circular e guerreiro; e da Yrua e seu acionamento individual, linear e tanto guerreiro como em referência aos antigos, temos o estabelecimento de um conjunto de relações a partir do acionamento de distintos tubos sonoros. Temos uma imagem do caminhos percorridos pelas sonoridades das flautas: a curva, formando um círculo, e a reta. Se na dança coletiva percorre-se um espaço circular, nos cantos percorre-se uma linha reta, indo e voltando por sobre o mesmo caminho enquanto entoam-se seus cantos. Há um ponto desta conexão entre sopro e ruído vocálico e sua relação com a alegria e tristeza que pode melhor descrever um dos muitos modos pelos quais esta relação se estabelece durante a festa. Trata-se de um fato específico que ocorreu durante o Mboatawa, em um dos inúmeros movimentos de idas e vindas realizadas por um velho ao cantar. Em um destes percursos retilíneos, um dos velhos, munido com seu arco e flecha e com a Yrua em mãos, começou a percorrer o caminho enquanto entoava o canto por alguns minutos e, já próximo do desfecho, estava em prantos. Ele então caminhou em direção a um grupo que se encontrava na casa cerimonial e todos, antes mesmo da sua aproximação, caíram num choro incessante e intenso. Naquele exato momento, enquanto todos choravam, entrou na casa cerimonial um pastor que foi recebido pelo filho do dono da festa. Era a primeira vez que o pastor assistia ao Mboatawa. Surpreso e ao mesmo tempo receoso com todo aquele choro, perguntou para aquele que o recepcionava se o velho estava possuído por algum espírito. O filho do dono, sem escolha, lhe respondeu que não se tratava de um ato de possessão. No mesmo instante remeteu-se à máquina fotográfica, tecnologia do branco, para dizer que o canto do !105


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velho cria imagens assim como a máquina. Tal associação, entre tecnologia sonora Kagwahiva e a tecnologia do não-índio, somente foi possível porque eu estava sentado na frente do filho do dono e do pastor, e tinha em mãos uma máquina fotográfica com a qual documentava a festa. Para aquém daquilo que uma relação entre interlocutores tão diversos possa suscitar, tomo apenas a questão das imagens. Imagem que está entre um falar como morto e fazer os mortos falarem.12 Como descreve Viveiros de Castro (1986) ao retratar o xamanismo Araweté, a possessão é algo estranho aos Araweté, pois se trata mais de uma excorporação do que incorporação. Uma vez que o canto do xamã Araweté opera oniricamente, ele canta o que vê e ouve, sua alma sai, mas corpos alheios não entram, trata-se mais de uma encenação que incorporação. Talvez esta estranheza quanto à possessão tenha levado o filho do dono da festa a realizar tal reflexão. Quanto à imagem, Viveiros de Castro (1986) já alertava que se trata menos de uma imagem substância que imagem enquanto posição do inimigo, ao tratar do devir entre os Araweté. Como disse acima, as flautas estão relacionadas ao domínio animal. No caso da Yreru, trata-se do taia’hu (queixada). No caso da Yrua é um pouco mais complexo, pois a questão do contexto de seu acionamento interfere na relação com a espécie animal determinada. Antes de chegar à aldeia anfitriã, o grupo de caçadores se reúne nas proximidades desta e iniciam a preparação para a entrada na festa. Os corpos são devidamente ornamentados com a pintura para guerra, a Yrua puku13 é distribuída para alguns guerreiros e os rojões são preparados pelos mais jovens. Neste contexto da chegada, o som da Yrua é o da anta. Sem a anta não há Mboatawa, pois “ela tem tavejara14 forte”; todas as aldeias se congregam ao seu redor, ela é o inimigo por excelência e o prato principal. A flauta também está relacionada ao som de uma variedade de pássaros que remetem à paisagem Tenharim, principalmente às antigas capoeiras e igarapés. Aqui, o contexto muda e a temática passa a ser o tempo dos antigos, daqueles que já não estão mais presentes. Os pássaros ao qual está associada são pyka’hu, Yruti tinga e tutur’i, regionalmente chamados de juriti.15 As capoeiras, nas quais esses pássaros costumam cantar, remetem aos antigos roçados e aldeias que podem ser localizados principalmente à margem do rio Marmelos e do rio Preto. Essa referência a uma paisagem ocupada pelos antigos estabelece uma relação sonora com os antigos, como dizem os Tenharim: “pássaros que lembram a morte”. Há uma passagem, durante a festa, que elucida melhor esta relação com a morte. Aqui retomo a definição de Philippe Erikson (2000) para a transformação dos Matis em jaguares: “Em outras palavras, os atores rituais assimilam-se sem se fundir, absorvem felinidade, mas sem por isso nela se perder.” (Erikson 2000: 8). 12

Puku é sinônimo de comprido, assim remete a uma flauta mais alongada que a tradicionalmente utilizada durante o restante da festa. 13

Tavejara é o termo utilizado para chefia entre os povos Kagwahiva. Na etimologia Tupi-Guarani, remete à ambígua posição entre cunhado e inimigo, termo usado para designar a ambos (Viveiros de Castro 1986; Fausto 2001; Peggion 2011). Termo que mostra a ambiguidade entre afim e inimigo. No caso Tenharim, como bem caracterizou Edmundo Peggion (2011), trata-se da ambiguidade do próprio chefe durante a festa, que está na posição de dono e inimigo concomitantemente. 14

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Juriti é o nome popularmente dado para o gênero Leptotila.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.96-110, 2013 Um jovem, durante o Mboatawa, me disse que tem um problema com a festa, algo que lhe incomodava: “não gosto de ouvir o som da taboquinha [Yrua], lembra meu avô [já falecido]”. Assim, podem-se observar dois fatos: o primeiro é que, apesar de remeter ao som da anta durante a chegada, a distinção entre os temas acionados pela flauta não é muito clara, depende tanto do contexto quando do modo como os ouvintes o interpretam; o segundo é sua relação com os antigos, em termos genéricos, e não com um antigo específico e, consequentemente, sua associação com a tristeza. Assim como os cantos que remetem à guerra e à caça, o qual narram os feitos guerreiros e por extensão a audiência é afetada pela euforia, há o movimento contrário, quando remetem aos antigos e, desta maneira, o ouvinte e o próprio cantor são afetados de maneira inversamente simétrica ao canto da guerra, por meio da tristeza. A associação entre canto e sopro torna possível a comunicação de uma variedade de sujeitos, sejam estes humanos ou não humanos. Estes cantos entoados e sopros interpostos são instrumentos que fazem do instante um tempo possível para transformação e comunicação. De repente, num instante, tudo acontece. Nesse sentido, o Mboatawa poderia ser caracterizado por um curto-circuito temporal dos coletivos envolvidos na festa. Desta forma, elaborase um ritual posto em camadas temporais sobrepostas: o tempo da guerra, o tempo do mito, o tempo dos mortos. No caso Tenharim, os cantos e suas variedades de temas apontam tanto para uma relação de predação guerreira como para a apreensão mnemônica dos mortos.

Alguns Apontamentos Através da Yreru há uma relação com certos pontos determinados da paisagem Tenharim, como o local onde se encontram os Yrerujiputehe. Estes elementos da paisagem Tenharim acessados para a confecção da Yreru, principalmente nos períodos que antecedem a festa, são modos de conexão com uma forma determinada de temporalidade espacial. O tempo que emerge desta relação com determinados pontos da paisagem é um modo de continuidade: uma continuidade indefinida no tempo, uma forma de duração no tempo conectada a cada nova festa. Além disso, ambas as flautas estão diretamente relacionadas aos animais: taia’hu, tapi’yra (anta) e pássaros que cantam nos antigos roçados. Enquanto a Yreru é o som do taia’hu em um contexto de predação guerreira (semicírculo dos dançarinos), a Yrua está tanto para o polo da predação guerreira quanto da memória dos antigos. Destas variações encontra-se também a do espaço percorrido durante o acionamento destes agentes sonoros: de um lado um percurso circular e coletivo que se pode relacionar a um tipo de temporalidade imemorial; do outro lado, um percurso linear, relacionado à temporalidade mnemônica, onde se cantam os antigos, mas também os feitos guerreiros, um processo de

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singularização da pessoa através da história pessoal. E, assim, mostra-se que a memória não é instituída, mas instituinte, criada (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro 2009). Tentei mostrar como somente a partir de uma sonoridade heterogênea é que se pode pensar a relação com agentes outros. Em outras palavras, a comunicação ritual, seja ela entre humanos ou entre humanos e não humanos, tem como condição o colapso temporal, um achatamento espaçotemporal. Como aponta Peggion (2011), o tempo no Mboatawa é o tempo dos mortos, dos inimigos, o tempo do mito. Este achatamento espaço-temporal é um efeito do acionamento dos aerofones descritos acima. Carlos Fausto e Michael Heckenberger, na introdução de Time and Memory in Indigenous Amazonia: Anthropological Perspectives (2007), elaboram um argumento que pensa as temporalidades ameríndias a partir do conceito de transformação. Transformação, enquanto dinâmica constante nas interações sociocósmicas ameríndias, e sua consequente relação com o tempo, somente pode ser pensada através dos processos de atualizações míticas. Como as ações transformativas são sempre diferenciantes em relação à ordem pós-mítica, ela implica na atualização do tempo mítico para que sejam produzidas transformações efetivas. Este processo de atualização dos mitos é a condição para a produção de agência social. Assim, nas paisagens amazônicas, o que se forma são agentes históricos, mas não em termos ocidentais, com consciência reflexiva do processo histórico, mas pessoas com capacidades agentivas capazes de se relacionar com humanos e não humanos, figuras frequentemente acionadas durante o xamanismo ou o ritual. Os rituais seriam o campo por excelência desta atualização mítica operada pelo idioma das metamorfoses sucessivas. Mas para tal procedimento se faz necessária a fabricação de pessoas que saibam manejar estas capacidades agentivas, e aqui teríamos a temporalidade ameríndia pensada a partir das práticas rituais (Fausto e Heckenberger 2007). Esse controle das capacidades agentivas, no caso do Mboatawa, está diretamente relacionado aos velhos e suas capacidades auditivas e sonoras. O Mboatawa mostra que mesmo onde não há palavras há metamorfoses, e neste processo de transformação novas subjetividades são constituídas, emergindo novos cantos e cantores. Por meio dos cantos, os enunciadores Kagwahiva se singularizam, projetam-se para fora, através de um ato coletivo, incorporando temas exteriores, da alteridade, seja ela guerreira ou dos antigos. Trata-se, nesse processo, de uma relação entre sujeitos (aerofones, cantos), na qual se subjetiva uma posição, mas sem transformar o outro em matéria inerte, pois isso absorveria sua capacidade diferenciante inerente às flautas e aos cantos.16 Esta afirmativa é retirada da filosofia antropofágica proposta por Marcos de Almeida Matos (2013) e incorporada por mim ao contexto das flautas Kagwahiva. O autor propõe uma filosofia antropofágica que não opere uma distinção entre pensamento e ação. Para isso ele toma a definição de Oswald de Andrade sobre a obra de arte, onde o humano sofre um processo de subjetivação, mas sem transformar o outro em matéria inerte, pois tal processo obliteraria o poder diferenciante anunciado nesta relação. Assim, como conclui Matos (2013), toda relação de conhecimento é uma relação entre sujeitos. 16

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.96-110, 2013 A partir das relações entre os tubos sonoros Kagwahiva, apontei para uma distinção entre dois modos de relação com a alteridade: a predação guerreira dos cantos que envolvem narrativas de guerra e de caça e a consequente euforia da audiência; e a relação mnemônica com os antigos e a consequente tristeza da audiência. Talvez muita atenção tenha sido dada, até então, para uma relação de alteridade, a qual toma o morto num constante movimento de obliteração, sempre como Outro, como aponta Chaumeil (2007), para quem, mais que uma relação de pura obliteração do morto pelo grupo, deve-se pensar na construção de uma relação adequada com ele. Desde Overing (1977) e sua oposição ao modelo genealógico africano, ou seja, sua oposição à teoria da descendência, é que se tem uma concepção para as Terras Baixas da América do Sul fundamentada na obliteração do tempo e, consequentemente, dos laços genealógicos. No caso Tenharim, não se trata de uma adoração aos mortos, o que seria pura continuidade. Mesmo não tendo observado diretamente suas práticas funerárias, na descrição realizada por Garcia de Freitas (1926) fica clara a descontinuidade gerada pela morte, o medo gerado nos viventes devido a aproximação dos espíritos maus que perturbam o corpo do morto. O morto era enterrado no interior da casa, eram colocados junto ao corpo do morto todos os seus pertences, assim como um tronco pesado era posto sobre a sepultura para que os espíritos da mata não perturbassem nem o morto nem os vivos (Freitas 1926). Assim, a questão não é afirmar uma relação de continuidade com o morto e, consequentemente, com o passado, mas compreender um modo de relação outro com os mortos que não somente sua associação ao polo da inimizade. Para isso se faz necessário dados etnográficos mais densos e também um aprofundamento na bibliografia sobre o tema.

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Recebido em 24/03/2014 Aprovado em 08/05/2014 !110



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Relato etnográfico sobre a escola dos Xikrin do Bacajá1

Camila Boldrin Beltrame Doutoranda em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos/UFSCar

Resumo Este texto discute a escola dos Xikrin do Bacajá a partir de uma pesquisa de campo realizada na aldeia Mrotidjãm. Procuro destacar algumas situações que se mostraram relevantes durante o período em que acompanhei as crianças Xikrin nas aulas e em outros momentos no cotidiano da aldeia, junto com as falas dos homens que diziam o que consideravam uma boa escola. As questões que norteiam o texto buscam contribuir para o entendimento dos significados que os Xikrin concedem à escola e as reflexões que elaboram sobre esse espaço que é reconhecido pelos adultos como sendo dos brancos. Palavras-chave: educação escolar indígena, Etnologia indígena, Xikrin do Bacajá, Mebengokré.

Abstract An ethnographic account of the Bacajá Xikrin school This paper examines the school of the Xikrin of Bacaja from a fieldwork conducted in the Mrotidjãm village. It intends to highlight some situations that have revealed themselves relevant in the course of the study of Xikrin child combined with the speech of the adult men about what they consider a good school. The observations of children were made on classes and other moments of the daily life in the village. The subject that lead this paper intend to contribute to the understanding of the meanings given by the Xikrin to school and their reflections about this space recognize by the adult as a white man space. Keywords: indigenous school education, indigenous ethnology, Bacajá Xikrin, Mebengokré.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Estudos Ameríndios.

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Introdução A escola oferecida aos Xikrin do Bacajá tem as suas aulas baseadas em parâmetros que reconhecemos como tradicionais, tendo como conteúdos centrais o ensino do português e da matemática.2 Dessa maneira, não seguem os princípios instituídos pela Constituição de 1988, e pelas demais leis que vieram na sequência,3 que garantem a construção de escolas específicas, interculturais e bilíngues, que sejam respeitosas em relação ao modo de vida de cada etnia indígena. O ensino nas aldeias Xikrin termina no 5º ano do Ensino Fundamental e os professores são não indígenas. A responsabilidade de tal serviço é da Secretaria Municipal de Educação de Altamira (SEMED), e toda a estrutura escolar que rege as escolas nas aldeias segue o que é oferecido nas escolas que se encontram em área rural. Assim, os professores trabalham com materiais não específicos, currículos não diferenciados e calendário que acompanha as atividades e dias letivos determinados pela secretaria.4 Nesse contexto, a reclamação mais recorrente dos adultos Xikrin é que não conseguem mais estudos para suas crianças, algo almejado por eles, uma vez que as aulas terminam no Ensino Fundamental nas aldeias e as possibilidades de continuidade do estudo na cidade são reduzidas porque não conseguem apoio nem da FUNAI e nem da SEMED para manter os jovens morando por lá. Suas falas são enfáticas no sentido de exigir que as crianças fiquem mais horas nas salas de aula e que os jovens consigam se formar no Ensino Médio. Quando direcionamos o olhar para a forma como esse serviço se realiza nas aldeias, verificamos que os professores desconhecem a língua Xikrin. As crianças, por sua vez, não são falantes do português. Essa situação requer, muitas vezes, a presença de jovens homens Xikrin que atuam como tradutores das línguas e orientam as crianças sobre a maneira como devem se comportar naquele espaço (Cohn 2000: 116-117). A presença deles nas salas de aula é o que parece facilitar o aprendizado do português e a transmissão das regras escolares, sendo, portanto, desejado tanto por professores quanto pelos Xikrin. Nesse local em que as crianças começam a ter contato de maneira Este artigo foi escrito com base na minha dissertação intitulada Etnografia de uma escola Xikrin, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar em 2013. Agradeço à Clarice Cohn pela atenciosa orientação, aos Xikrin do Bacajá pela acolhida em suas aldeias e por todos os ensinamentos. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no II Seminário de Antropologia da UFSCar em novembro de 2013. Agradeço a todos os participantes do GT Estudos Ameríndios pelos comentários e sugestões. A pesquisa contou com o financiamento da CAPES por meio do edital do Observatório da Educação Escolar Indígena, no 01/2009/CAPES/ SECAD/INEP. 2

Outras leis que asseguram escolas diferenciadas aos indígenas são a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), de 1998, o Plano Nacional de Educação (PNE), de 2001, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, de 2012. 3

Esse cenário sofreu mudanças após o período da pesquisa de campo que ocorreu em 2011. Alguns indígenas que cursavam o magistério indígena oferecido pela Secretaria de Estado de Educação do Pará foram contratados para trabalhar como professores em suas aldeias. Outras mudanças que envolvem a organização administrativa das escolas também ocorreram, mas não serão abordadas neste texto. 4

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bem particular com o mundo do branco, as atividades que executam com mais frequência são as de treino de caligrafia, cópias de palavras e textos da lousa, operações matemáticas, desenhos, pinturas e músicas cantadas em português. No que se refere ainda à forma como se organiza o dia a dia escolar, é necessário destacar que os professores são responsáveis por executar todo o seu funcionamento: aulas, preenchimento de documentos, preparo da merenda, limpeza e manutenção do local. Não há outro funcionário trabalhando na escola e, por isso, todos os serviços são realizados por eles. O que a pesquisa de campo possibilitou verificar é que, nesse cenário de adversidades tanto para os Xikrin – que reivindicam melhores condições para o cumprimento dessa política pública –, quanto para os professores contratados para trabalhar em área indígena – que recebem pouco apoio e orientação para exercer tal atividade –, as crianças aparecem como as principais aliadas dos professores para a efetivação da escola na aldeia. Para entender os motivos que levam os adultos Xikrin a deixarem as tarefas escolares, que não se resumem aos exercícios durante as aulas, para serem realizadas por suas crianças, responsabilidade que não assumem em outras circunstâncias que envolvem o contato com os não indígenas, é necessário compreender os significados que eles concedem a esse espaço e a suas atividades. É preciso olhar para a forma como os elementos que são levados pela escola – merenda, materiais escolares, músicas, grafias, conhecimentos do outro – são incorporados. Vidal (1992: 189) já indicava que o uso da técnica de desenho no papel era percebido pelos Xikrin do Cateté como coisas de crianças que aprendem na escola a maneira de ser do branco e, portanto, não muito apreciada pelos homens adultos. Por que uma técnica que é ensinada na escola não é apreciada pelos adultos? Por que eles parecem não querer se envolver com as demandas que o funcionamento escolar requer, não colaborando em tarefas que exigem a sua manutenção ou em atividades pedagógicas? Essas são perguntas que podem ajudar a entender o lugar que os Xikrin destinam a essa instituição que passa a ocupar o tempo de suas crianças e interfere na formação de pessoas Xikrin e de seus coletivos.

A experiência escolar Xikrin Os Xikrin do Bacajá, que se denominam Mebengokré como outros Kayapó, são falantes da língua Jê e habitam a Terra Indígena-Trincheira Bacajá, localizada no sudoeste do Pará. Atualmente estão organizados em oito aldeias: Pykaiakà, Krajn, Kamokti-kô, Potikrô, Kenkudjôi, Pytakô, Bacajá e Mrotidjãm, que se espalham pelas margens do rio Bacajá, um dos afluentes do rio Xingu. A aldeia Mrotidjãm, local onde realizei a maior parte da pesquisa e em que acompanhei as aulas na escola Bep Pryti, é a maior dentre as Xikrin e conta com mais de 300 indígenas. !113


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.111-124, 2013 No que concerne ao contato que os Xikrin estabeleceram com a escola, algumas dúvidas cercam o assunto. Segundo informações da superintendente das escolas indígenas da SEMED de Altamira, que trabalhou durante vários anos como professora na aldeia Bacajá, a primeira escola foi instalada no ano de 1988. No entanto, diversas dificuldades, como a de encontrar profissionais dispostos a trabalhar em área indígena, marcaram a sua prática desde o início. Assim, os primeiros contatos que tiveram com a escola aconteceram de forma intermitente. Esse problema continua presente nessa região e ainda hoje algumas aldeias não conseguem oferecer estudos para as suas crianças durante longos meses devido à falta de professores. De acordo com Cohn (2005b), nos anos 1990, a escola na aldeia Bacajá estava sob a responsabilidade do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da FUNAI. A ausência de outros registros dificulta o acompanhamento das mudanças administrativas em uma escala cronológica, bem como saber o papel dos missionários nesse serviço, que não se resumiu ao trabalho do CIMI. O modo como os Xikrin percebem essas atuações é importante para tentar compreender os significados que concedem à escola. De acordo com o que foi exposto pelos Xikrin, ela começou com a FUNAI, que fez a primeira instalação na aldeia. Não mencionaram a atuação do CIMI nos relatos que fizeram, nem a transição da responsabilidade desse serviço que passou da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC) para a Secretaria Municipal de Educação de Altamira, embora essas informações tenham sido confirmadas no artigo de Cohn (2005b). Eles reconhecem hoje a SEMED como o local para reivindicar melhorias para suas escolas, porém essa mudança de gerenciamento ao longo dos anos não é destacada. É preciso salientar que a SEMED da cidade de Altamira5 é responsável pela gestão da educação escolar de oito etnias, que formam, assim, um bloco caracterizado pela diversidade. Nesse aglomerado estão incluídos os Xikrin do Bacajá e Kararaô, de língua Jê; os Parakanã, Araweté, Asurini, Xipaia e Curuaia, do tronco linguístico Tupi; e os Arara, de língua Caribe. Administrar essas diferenças é um desafio enfrentado pelas pessoas que trabalham nos órgãos públicos que prestam serviços para essas populações, nem sempre de fácil resolução. O caso Xikrin aparece como um exemplo nesse contexto ilustrando as dificuldades e limitações do desempenho das escolas nas aldeias. Quando o assunto é a escola, o que se nota no discurso Xikrin é a vontade de mais estudo, pois querem seus jovens formados e dominando o conhecimento dos brancos para ajudarem a comunidade. Ao indagar os homens adultos sobre os motivos que os levavam a incentivar suas crianças a frequentar a escola, deparei-me com a resposta de que o aprendizado do português era importante, e, em algumas situações, o ensino da matemática também era lembrado. Porém, não demonstravam conhecer outras possibilidades de A SEMED de Altamira tem um setor que cuida diretamente da educação escolar indígena, tendo como responsável uma superintendente, não indígena. Essa funcionária trabalhou como professora durante muitos anos na aldeia Bacajá e entre os Arara do Laranjal e atua com comprometimento para a realização das escolas nas aldeias da região. 5

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temas ou matérias que poderiam ser tratados neste lugar, embora já tivessem passado por ele. Isso decorre da experiência com essa instituição, uma vez que o modelo de escola que conhecem é o que foi implantado na aldeia e que teve como base o ensino do português. Outras possibilidades de ordenar este espaço não são mencionadas, pois ainda não foram apresentadas e discutidas com eles, e o contato com experiências de escolas de outras localidades é praticamente inexistente. Os Xikrin não discutem ou questionam as práticas escolares e nem participam das atividades desenvolvidas nesse espaço, deixando aos professores essa tarefa. Isso gera insatisfação por parte das pessoas responsáveis pelas escolas, que consideram essa posição dos indígenas como de não colaboração com o serviço. Assim, se, por um lado, os Xikrin reclamam porque seus filhos não conseguem dar continuidade ao ensino escolar quando terminam o 5º ano na aldeia, por outro lado, a SEMED e seus funcionários apontam a falta de envolvimento dos indígenas para melhorar a qualidade do serviço. Ao que parece, a postura Xikrin é semelhante à descrita por Collet (2006) para os Bakairi, que explicam que esta (a escola) é uma instituição de “branco”, são eles, os brancos, que sabem como ela deve funcionar (Collet 2006: 224). Nesse contexto, em que funcionários da SEMED e adultos Xikrin apresentam discursos dissonantes e apontam diferentes argumentos para demonstrar insatisfação com a forma como esse serviço chega e se concretiza nas aldeias, os estudantes aparecem como atores centrais que viabilizam o seu funcionamento diário ao lado dos professores. A atuação das crianças na escola está relacionada com a posição que ela ocupa de exterioridade na aldeia, uma vez que é reconhecida pelos adultos como o espaço dos não indígenas. A aproximação das crianças e o distanciamento dos adultos talvez seja uma forma de garantir que a transmissão dos conhecimentos e do modo de vida Xikrin não sejam esquecidos e nem escolarizados, respeitando, assim, seus métodos próprios de ensino-aprendizagem, uma vez que cabe aos mais velhos tal tarefa, que a realizam fora da escola.

A participação das crianças dentro e fora da sala de aula Durante a pesquisa de campo na aldeia Mrotidjãm, pude observar que as crianças não participavam apenas das aulas na escola, mas ajudavam em diversas situações os professores, que sempre tinham muito trabalho, uma vez que eram responsáveis por todas as funções daquele lugar. O envolvimento delas não se restringia aos estudos, pois acabavam sendo auxiliares de pequenas tarefas. Vários exemplos ilustram as formas como as crianças se colocavam presentes e colaboravam, dentro das regras estabelecidas, com a efetivação da escola na aldeia, tomando parte em atividades que no tempo que permaneciam fora dela não executavam.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.111-124, 2013 Foram os meninos que se dirigiram ao prédio escolar para colaborar na limpeza das carteiras e na retirada dos materiais velhos, ajudando a arrumar o local antes do início das aulas. No cotidiano da escola eram os próprios estudantes que varriam as salas no final de cada período para deixá-las limpas para a próxima turma. A decisão de quem iria participar da atividade não cabia aos professores, que deixavam as crianças se organizar, geralmente em grupos de três ou quatro, todo final de aula. Não existia, assim, uma determinação fixa para realizar essa tarefa, até mesmo porque não era algo formalizado que deveria ser feito todos os dias pelas crianças, que se engajavam quando queriam e, por isso, chegaram a acontecer algumas poucas vezes de ninguém ficar para varrer. Quando requisitadas, também capinavam o mato em volta da escola, com os instrumentos – enxadas, pás e carrinhos de mão – que pegavam da casa de seus pais, e contavam com a supervisão dos professores, sempre orientando e pedindo cuidado e atenção. Não vi em nenhuma outra ocasião as crianças fazendo esse tipo de trabalho pela aldeia, já que essa era uma tarefa das mulheres, que limpavam o terreno e retiravam o mato em volta de suas casas e na parte que lhes é devida no pátio. O preparo da merenda era realizado durante as aulas e, algumas vezes, os professores usavam a cozinha dentro da escola, que tinha um fogão industrial, e outras, a cozinha construída do lado de fora, que tinha uma estrutura de barro e fazia comida com o fogo à lenha, como na maioria das casas Xikrin. Quando era feita nesse segundo local, contava com a assistência dos estudantes, que ficavam mexendo a comida e tomando conta para ela não queimar. Os professores costumavam pedir para eles trazerem lenha, pois assim fariam as merendas que mais gostavam. Em uma ocasião, inclusive, um grupo de meninas foi pegar lenha especificamente para a escola a pedido da professora. Não havia intervalo no meio das aulas porque os professores preferiam terminá-la pouco antes de completar quatro horas e servir a comida no final. Os estudantes eram avisados se deveriam buscar os copos ou pratos que ficavam em suas casas e formavam filas na porta da cozinha da escola para receber a merenda. Antes de todos irem embora, algumas crianças se prontificavam a lavar a panela que havia sido usada no preparado da comida. Todas essas tarefas eram realizadas tendo como contrapartida o ganho da merenda, fator que incentivava a disposição para a execução. Um trabalho realizado em troca de comida não é algo exclusivo dessa relação entre professor-estudante e não se restringe ao espaço escolar, mas é uma prática presente em outras relações da vida dos Xikrin. Vidal (1977: 146) comenta que, ao formar uma aldeia nova, a casa do chefe é construída por homens que recebem como retribuição do trabalho uma refeição. Gordon explica que, certa vez, um chefe de turma mobilizou um pessoal para construir uma nova cozinha para uma mulher idosa, viúva. A dona da casa forneceu uma porção de comida, e o chefe completou com seus próprios recursos. Quando perguntados sobre o assunto, alguns homens do grupo informaram que não era apenas pelo “pagamento” imediato de comida e bebida que eles estavam ali – pois isso eles tinham !116


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em casa. Em primeiro lugar, eles estavam colaborando, pois a mulher não teria como construir a casa sozinha, e não é correto deixar qualquer pessoa sem casa. E era certo que recebessem alimento em troca, uma vez que estavam ali ajudando. (Gordon 2006: 266) Observei de maneira semelhante que, quando os adultos faziam alguma tarefa a pedido dos professores, como capinar o mato em volta da escola, eles solicitavam comida em troca do trabalho, mantendo a relação que estabelecem em outros espaços.6 Ocorreram duas ocasiões em que os adultos capinaram o mato em volta da escola, uma feita pelas mulheres e outra pelos homens. Nas demais, as crianças foram requisitadas para tal atividade. Nenhum outro pedido, que envolvia a organização da escola, foi feito para os adultos. Portanto, ao retribuir as tarefas feitas pelas crianças, os professores estavam agindo dentro de uma lógica Xikrin. O esperado é que um trabalho tenha como contrapartida uma refeição. No tocante à merenda distribuída todos os dias para os estudantes no final das aulas, ela faz parte do conjunto escolar que as crianças devem ter acesso por frequentar esse espaço. Se nas escolas da cidade é oferecida merenda diariamente nos intervalos entre as aulas, na aldeia o procedimento precisa ser o mesmo. Fui questionada, certa vez, acerca dos motivos que levavam os professores a distribuir a merenda no final das aulas e não no intervalo entre elas, como acontece em outros lugares, indicando certo descontentamento com a prática dos professores. Outra atividade que as crianças costumavam fazer era ajudar na tradução de explicações de exercícios quando não havia jovens presentes na sala. O professor escolhia um estudante da turma que falava um pouco o português para fazer os comentários desejados, principalmente quando queria colocar algum assunto em discussão e ouvir opiniões. O pequeno tradutor tinha de passar as explicações para os demais estudantes e depois transmitir em português as colocações deles. Essa dinâmica nem sempre funcionava, mas era a maneira que o professor encontrava para dar aulas em uma língua que não era dominada pelas crianças, uma vez que ele também não tinha conhecimento da língua Xikrin. Quando os professores precisavam preencher documentos informando a condição dos estudantes como a frequência, por exemplo, eram as crianças que avisavam quem estava em Altamira, em outra aldeia, ou indicavam outro motivo para as faltas nas aulas. Neste último caso, era comum que pedissem para avisá-las para ir para a escola, pois não iam conversar diretamente com elas ou seus pais. Ademais, as matrículas foram feitas sem consultar a comunidade e, por isso, ocorreram casos de estudantes que constavam na matrícula, mas não estavam na aldeia, e alguns só retornaram no final do primeiro semestre. As crianças agiam, portanto, como mensageiras, levando informações para os professores – demonstrando que acompanhavam boa parte dos acontecimentos Lea (2012: 33) também descreve situação semelhante para os Mẽtyktire: “Em Kretire, o capitão às vezes promovia trabalhos coletivos, tais como a remoção de ervas daninhas do pátio da aldeia. Em troca, aqueles que participavam recebiam um prato de arroz cozido para almoçar...”. 6

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.111-124, 2013 da aldeia – e levando recados quando necessário. Essa situação não era estranha a elas, acostumadas a desempenhar o papel de transmitir recados entre as casas, como registraram Vidal (1977: 105) e Cohn (2000: 70). Elas eram, assim, as pessoas da comunidade que mais interagiam com os acontecimentos escolares, não se limitando a serem apenas estudantes, mas contribuindo, de alguma forma, para seu funcionamento. Diante das adversidades da situação imposta aos professores, que acumulavam funções e não recebiam capacitação para trabalhar naquele contexto, elas atuavam como seus parceiros, colaborando para as aulas acontecerem. É preciso notar que os adultos não interferiam nessa dinâmica criada pela escola, que demandava de suas crianças atividades que eles mesmos não cobravam nos demais momentos. Se, fora da escola, não era esperada a participação delas em determinadas tarefas, quando eram feitas naquele lugar tampouco havia algum tipo de recriminação – ou seja, seus pais e parentes mais velhos não tomavam essa atitude como um abuso de poder dos professores. A participação das crianças pode ser analisada, no caso Xikrin, levando em consideração que a escola na aldeia possibilita, entre outras coisas, a criação de novas formas de relações entre adultos e crianças.7 A construção dessa relação é interessante de ser notada uma vez que coloca em convívio o adulto não indígena e as crianças indígenas, cada um levando expectativas diversas para esse ambiente. Nesse cenário, as demandas dos professores, mesmo excedendo o momento da aula, não eram questionadas pelas crianças e adquiriam legitimação entre os mais velhos da aldeia, uma vez que essa instituição exige das crianças o compromisso do aprendizado de conteúdos, técnicas e comportamentos reconhecidamente diferentes dos ensinados pelos Xikrin. Como Cohn (2000) informou anteriormente, a escola só se fez possível entre os Xikrin por causa da participação dos jovens que atuavam como tradutores e que se colocaram como intermediários entre professores e estudantes. A partir de observação recente, é possível acrescentar que a atuação das crianças também aparece como fundamental para a efetivação da escola na aldeia. Portanto, se os adultos Xikrin parecem não querer se envolver na dinâmica escolar, os jovens e as crianças assumem esse papel. Por que os Xikrin deixam que suas crianças participem das tarefas escolares sendo que em outras situações esses trabalhos não são executados por elas? Com a intenção de trazer alguns elementos para a discussão, procuro traçar algumas comparações entre os conhecimentos reconhecidos como da escola e os conhecimentos Xikrin.

Na escola os adultos são outros e, portanto, as relações que as crianças Xikrin desenvolvem com eles também são outras, não repetindo o que ocorre nos demais espaços da aldeia entre crianças e adultos. 7

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Os conhecimentos escolares e a formação da pessoa Os conhecimentos Xikrin são designados pela palavra kukradjà, que remete a um modo de ser e estar no mundo (Cohn 2005a: 172). Quando se trata da transmissão desses conhecimentos para a continuidade de seus coletivos e pessoas, o destaque é conferido ao momento em que se deve demonstrá-lo e não ao momento de aprendizagem (Cohn 2000: 131). Tendo como referência essa informação, recupero trabalhos anteriores que esclareceram as formas como esses saberes são demonstrados pelos Xikrin (quem e quando pode demonstrá-los), para comparar com a maneira como os adultos falam e as crianças agem em relação aos saberes escolares. Para tanto, começo com uma discussão sobre a formação do corpo que permite associá-lo com os processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos, uma vez que o desenvolvimento corporal está intimamente ligado às capacidades expressivas daqueles, como demonstraram Fisher (2001) e Cohn (2000) para os Xikrin do Bacajá. O corpo é constituído de elementos materiais, como ossos, carne, órgãos, sangue e pele, e por elementos imateriais, como o karon (alma). Ele vai sendo construído desde a sua concepção e passa por diversos processos para o fortalecimento e, dessa maneira, a pessoa pode ser integrada à “vida social” (Giannini 1991: 146). Cohn (2000: 86) apresenta detalhadamente os processos de desenvolvimento físico da criança, desde seu nascimento. Descreve como o corpo é moldado com as massagens da kwatui (tias paternas ou avós) logo após o parto, e, depois de um tempo, enfeitado com os adornos auriculares, meninos e meninas, e labiais, apenas os meninos. Ressalta também os cuidados com a alimentação da pequena criança e dos pais durante o resguardo. Essas tarefas, entre outras, representam uma série de atenções que os adultos devem ter com as crianças recém-nascidas porque seus corpos ainda não estão duros (tox), correndo o risco mais facilmente de perder o karon (alma), o que levaria à morte, como explicam os Xikrin. Além disso, endurecer o corpo faz parte de um desenvolvimento físico que possibilita o aprendizado dos conhecimentos Xikrin. Os órgãos que precisam estar fortalecidos são indicados como sendo os olhos (no) e os ouvidos (mak). Cohn (2000: 118) esclarece que os Xikrin têm dois modos de afirmar o conhecimento: arym ba kuma e arym ba omunh, que significam eu já ouvi e eu já vi, respectivamente. Como as crianças têm os olhos e ouvidos fracos (rerekre), os adultos não esperam que elas saibam como se comportar, pois só saberão o modo correto quando esses órgãos estiverem fortes. É necessário explicar, entretanto, que essas posturas e conhecimentos se referem ao que os Xikrin nomeiam de kukradjà. Nesse sentido é que se compreende a afirmação Xikrin, anunciada por Cohn

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.111-124, 2013 (2000: 10) no início de seu texto, de que as crianças tudo veem e ouvem, e que portanto tudo sabem, mas que nada sabem, porque ainda são crianças. Ter ouvidos e olhos fortes não remete ao tempo específico para aprender algo, mas ao momento de efetivação do conhecimento. Cohn ressalta mais uma vez: [...] os Xikrin marcam não o momento e a ocasião do aprendizado, estando de fato livres para aprender a qualquer momento e com quem lhes parecer mais adequado, por meio de um pedido de sua iniciativa e respeitando as regras de relações com as diversas categorias de pessoas, mas o momento em que esse aprendizado pode e deve ser explicitado: quando se tem um filho, e se começa a fazer para eles adorno, quando não se tem mais pia´am, vergonha, ou quando velho/a, kubengêt. (Cohn 2000: 131, grifo meu)

Antecipar o tempo para expressar um conhecimento é envelhecer precocemente (Cohn 2000: 131; Silva 2011: 186), é não acompanhar o desenvolvimento biológico, de fortalecimento dos olhos e ouvidos, e, por consequência, o desenvolvimento social. Fisher (2001: 120) também argumenta no sentido de existir uma continuidade biológica e social, constituindo-se como um processo unitário, uma vez que os conhecimentos são associados com certas potencialidades corporais. Se os conhecimentos Xikrin precisam de olhos e ouvidos fortalecidos para que possam ser demonstrados, e são, portanto, de domínio dos velhos, as atividades escolares parecem ocupar o extremo oposto das categorias de idade, pois são executadas, justamente, pelas crianças e jovens (estes apenas em algumas situações específicas). Quando queremos aprender algum canto ritual ou história dos antigos, não são todos os interlocutores que dizem saber sobre o assunto, e a indicação dos velhos é uma constante no sentido de dizer que é com eles que aprenderemos. Quando o assunto remete às atividades escolares, os Xikrin apontam as crianças como as detentoras desses conhecimentos, como no caso das músicas, ou crianças e jovens, com os desenhos no papel. A associação das atividades escolares com essas categorias de idade evidencia-se nas falas dos adultos Xikrin, principalmente quando se referem às atividades de desenhos, pinturas e músicas. No entanto, podemos entender essas associações dentro do contexto escolar na aldeia que não ultrapassa o 5º ano do Ensino Fundamental, onde essas são as tarefas recorrentes. Quando olhamos para outras situações, como as que envolvem a habilidade da escrita do português, que é de conhecimento de alguns jovens, verificamos que este não é acionado pelos adultos, que, em alguns casos, também sabem escrever algumas palavras e frases. É o que observamos com as listas de compras elaboradas mensalmente por funcionários que estão na aldeia e não por um jovem ou adulto Xikrin. Os adultos, dessa maneira, parecem não recorrer aos conhecimentos que aprendem na escola em situações em que poderiam usá-los, como no caso da escrita do português. Embora o ensino não !120


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ocorra de maneira satisfatória, a insistência de alguns jovens de continuar repetindo o 5º ano do Ensino Fundamental e, agora, a continuidade dos estudos com o magistério indígena, capacita alguns a escrever palavras e pequenos textos, e, portanto, eles poderiam fazer as listas de pedidos de compras.8 Em relação ao aprendizado da fala em português e do significado das palavras, os jovens Xikrin não reconhecem a escola como local em que adquiriram esse conhecimento, mas enfatizam outras situações de contato com o branco, como em trabalhos na farmácia, viagens para Altamira, ou através do ensinamento passado por algum Xikrin mais velho que já conhece a língua. A escola, nesse sentido, é reconhecida como o local para as crianças aprenderem técnicas e habilidades dos brancos, porém, quando se atinge certa maturidade, os Xikrin acionam outras situações para explicar como esses conhecimentos foram adquiridos. Enfatizam, dessa maneira, o hiato que existe entre a instituição que forma os brancos e os processos de aprendizagens Xikrin, os conhecimentos que são valorizados por eles como sendo Xikrin. Parece que existe uma espécie de recusa em falar que se aprendeu algo dentro do espaço de formação dos brancos. Outra situação que mostra a ligação que eles estabelecem entre a escola e as crianças aparece na fala de Manoel Gavião.9 Quando perguntei quando tinha sido instalada a primeira escola na aldeia, os homens com quem conversava não souberam dizer uma data, mas Manoel fez a interessante observação: na aldeia Bacajá, naquela época, não havia crianças para mandar para a escola e quem começou a frequentar as aulas foram os meninos e meninas mais velhos. Só depois as crianças participaram das aulas. Ressaltar a ausência de crianças em um primeiro momento de contato com a escola parece ser mais um indicativo de que o esperado é a participação delas nesse espaço. Além disso, vale lembrar que as crianças participam não apenas das aulas, mas em outras atividades que envolvem a manutenção da escola na aldeia. São elas que devem se envolver com esse espaço e que expressam os conhecimentos lá ensinados, assim como alguns jovens que estão fazendo o magistério indígena e que são solicitados para desempenhar as tarefas escolares fora de seu espaço, como aconteceu durante os estudos do rio Bacajá, condicionante da obra da hidrelétrica de Belo Monte no ano de 2011, que envolveu, nesse ano, a elaboração de diversos desenhos no papel. Os adultos não frequentam o magistério indígena e nem realizam essas atividades. Sugiro, portanto, que as crianças aprendem e manipulam os conhecimentos dos brancos porque não se espera que elas se comportem como um adulto Xikrin, pois ainda têm olhos e ouvidos A escrita é utilizada pelos adultos para escrever os nomes em documentos que enviam aos brancos. As crianças também fazem uso de seus nomes escritos, que podem ser observados nas paredes e janelas da escola e também no ngà (casa central da aldeia) (Beltrame 2013: 77-78). 8

Manoel é um Gavião de Mãe Maria que casou com uma mulher Xikrin e mora entre eles há, aproximadamente, quarenta anos. 9

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.111-124, 2013 fracos. Parece que essas situações expressam que existe o tempo para que os conhecimentos escolares sejam demonstrados, assim como há o momento certo para demonstrar o kukradjà. O fato de as escolas das terras indígenas da região de Altamira oferecerem apenas as séries iniciais do Ensino Fundamental é, sem dúvida, um problema sério de políticas públicas voltadas para as escolas indígenas, contudo, a associação que os Xikrin estabelecem entre as suas crianças e as atividades escolares não se resolve por essa constatação. Os adultos que já passaram pela escola não esqueceram, necessariamente, o que lá aprenderam. O que eles explicam todo o tempo, através das conversas ou das práticas, é que não devem mais demonstrar o que aprenderam no espaço dos brancos. Os adultos recorrem ao termo esqueci quando o assunto são as atividades escolares, assim como explicam que não sabem quando o tema envolve algumas especificidades do kukradjá. É preciso entender, portanto, a escola como o local onde os brancos levam suas crianças para que estas aprendam o seu modo de ser, para que se formem como adultos brancos. Quando os Xikrin aceitam essa instituição em sua aldeia a motivação é que suas crianças também aprendam o português, que remete não apenas à língua, mas ao conjunto de saberes e técnicas dos brancos. Isso implica, contudo, em alguns riscos, como, por exemplo, o de a criança crescer e se transformar em um outro que não Xikrin. Por isso diversos cuidados são tomados para tentar manter um controle sobre a influência da escola no dia a dia da aldeia, como a sua proximidade com o cemitério, por exemplo. Os estudos realizados com os Kayapó são repletos da temática que aborda o medo do contato excessivo com o branco, após o processo de pacificação, levar a uma dissolução da alteridade. Para citar apenas dois exemplos, remeto às passagens de Lea e Cohn: A ubiqüidade da metamorfose ajuda a explicar o medo constante expresso pelos Mẽbêngôkre de que se transformem em kubẽ [branco]. E quando estavam especialmente insatisfeitos com a Funai, ameaçavam abandonar o Parque do Xingu e voltar a ser ‘índios bravos’. Nunca cansavam de lembrar os kubẽ de que eram ‘mansos apenas um pouquinho’. (Lea 2012: 219)

Um dia, Bep-Djoti me confessou um temor: dizia-me que o uso indiscriminado de roupas poderia levá-los a se tornar brancos, amin o kuben, em um verdadeiro processo de metamorfose. Como dizíamos, e já se notou em outros lugares, virar Kuben é uma possibilidade lógica aos olhos dos Xikrin, assim como é uma possibilidade de torná-los Mebengokré. (Cohn 2005a: 177) A escola, talvez, possa ser pensada segundo essa mesma lógica de representar um perigo constante de transformar as crianças em futuros brancos, caso esqueçam-se das coisas Xikrin. Esse risco remete ao intenso contato que passaram a ter com os brancos e a dependência de seus bens materiais. A escola se insere nesse contexto ao possibilitar o aprendizado de seus saberes e técnicas. Contudo, é preciso ressaltar que, quando os velhos falam sobre a preocupação da grande influência do uso das coisas do branco, como fez Bep-Djoti, não incluem a escola como um problema, !122


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mas destacam as roupas, as comida, as músicas, a televisão. A escola não é anunciada como algo ruim, ela é vista como algo bom e que precisa ser ampliada em sua capacidade de receber mais estudantes e que estes permaneçam mais tempo nas salas de aula. Ela é vista como o meio que dará acesso aos conhecimentos dos brancos e que permitirá romper com a dependência excessiva de seus bens na medida em que aprenderem a produzi-los. Com o conhecimento do português, eles não precisarão da intermediação de brancos para negociar com os próprios brancos, aprenderão a fazer projetos para melhorar a aldeia e serão capacitados para exercer certas funções que admiram, como pilotar aviões, dirigir carros e atuar como mecânicos. A possibilidade de dominar os conhecimentos e técnicas do branco pode levar à diminuição da dependência que sentem tão intensamente nos dias de hoje. Por isso, aceitam os riscos que a escola proporciona para as suas crianças e aceitam redimensionar o tempo que elas permanecem com seus pais e outros parentes, nas tarefas e brincadeiras rotineiras na aldeia, e com os professores, na sala de aula. No ano de 2013 os jovens começaram a trabalhar como professores indígenas e, assim, firmam-se como transmissores de uma série de conhecimentos – indígenas e não indígenas.10 As negociações e os controles, talvez, precisem ser repensados nesse novo cenário. As mudanças que a escola proporciona na aldeia também podem ser pensadas em relação às influências que exerce na formação dos corpos Xikrin. A escola, ao proporcionar um espaço de relação com a alteridade, colocando no mesmo local adultos brancos e crianças indígenas, leva para a aldeia uma série de elementos que interferem desde muito cedo na formação desses corpos, quando eles ainda não estão duros/fortes (tox). São alimentos comprados na cidade e servidos como merenda e imposição de diferentes formas de comportamento (os estudantes devem permanecer sentados nas cadeiras, é necessário postura adequada para escrever, interação com os professores que demandam respostas e execução de exercícios em períodos determinados, organização de tempo e divisão de turmas de crianças). Sem contar a aquisição de novos conhecimentos. Isso interfere na formação dos corpos das crianças Xikrin e na formação de adultos Xikrin. Todos esses motivos, entre outros, podem ser elencados para tentar explicar por que inúmeros cuidados são tomados pelos adultos para lembrar, a todo o momento, que devem continuar sendo Xikrin e aprendendo o kukradjà, o que exige, em alguns casos, esquecer o que aprenderam naquele local. Assim, ao mesmo tempo em que eles desejam a escola e tudo o que ela propicia as suas crianças e jovens, parece que ao atingir certa maturidade recusam demonstrá-lo. Não recusam apenas as técnicas e conhecimentos que são lá transmitidos, mas recusam também desempenhar as tarefas que a escola demanda.

Como mencionei acima, não acompanhei aulas sendo ministradas por professores indígenas, portanto, uma reflexão sobre as mudanças que isso proporciona na aldeia precisa ser realizada. Deixo aqui apenas a indicação. 10

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.111-124, 2013 Encontrar um equilíbrio entre o domínio do mundo do branco e o Xikrin é um dos desafios que eles enfrentam, como já salientaram Cohn (2005a: 177) e Gordon (2006: 414), e a escola deve ser entendida como um dos elementos que compõe esse cenário de difíceis escolhas com as quais os Xikrin aceitaram conviver.

Bibliografia BELTRAME, Camila Boldrin. 2013. Etnografia de uma escola Xikrin. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. COHN, Clarice. 2000. A criança indígena: a concepção xikrin de infância e aprendizado. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo. COHN, Clarice. 2005a. Relações de diferença no Brasil Central: os Mebengokré e seus outros. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. COHN, Clarice. 2005b. “Educação escolar indígena: para uma discussão de cultura, criança e cidadania ativa”. Perspectiva. Florianópolis (1-1): 485-515. COLLET, Celia Letícia Gouvêa. 2006. Ritos de civilização e cultura: a escola bakairi. Tese de Doutorado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. FISHER, William H. 2001. “Age-based genders among the Kayapó”. In: Gregot, T.A.; Tuzin, D. (ed.). Gender in Amazonia and Melanesia: an exploration of the comparative method. Berkeley: University of California Press,. GIANNINI, Isabelle Vidal. 1991. A ave resgatada: “a impossibilidade da leveza do ser”. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo. GORDON, Cesar. 2006. Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebêngôkre. São Paulo: Editora UNESP/ ISA; Rio de Janeiro: NUTI. LEA, Vanessa. R. 2012. Riquezas intangíveis de pessoas partíveis: os Mẽbêngôkre (Kayapó) do Brasil Central. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Fapesp. PAES, Francisco Simões. 2005. Os modelos da experiência ou a experiência dos modelos: introdução ao estudo da cerimonial Xikrin. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo. SILVA, Fabíola Andréa. 2011. “A tecnologia da cestaria entre os Xikrin-Kayapó”. In: Silva, F. A.; Gordon, C. (org.). Xikrin: uma coleção etnográfica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. pp.173-190. VIDAL, Lux. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira. São Paulo: Hucitec. VIDAL, Lux. 1992. “A pintura corporal e a arte gráfica entre os Kayapó-Xikrin do Cateté”. In:Vidal, L (org.), Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel/ Editora da Universidade de São Paulo/ FAPESP, pp. 143-189.

Recebido em 01/03/2014 Aprovado em 15/04/2014

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A arte afro-brasileira e a circulação das identidades contemporâneas1

Nelma Cristina Silva Barbosa de Mattos Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos Centro de Estudos Afro-Orientais Universidade Federal da Bahia

Resumo O trabalho propõe uma reflexão sobre as maneiras encontradas pela arte afro-brasileira para se inserir no sistema oficial da arte. Historicamente, esse território, erigido com uma estrutura hierárquica, foi fechado à presença do Outro.. Mas, a partir dos anos 1960, com a emergência dos movimentos sociais baseados em identidades, esse circuito começou a se abrir às diversidades. A arte afro-brasileira acompanha as mudanças no sistema internacional artístico, o que permite novas subjetividades, além de certa fluidez na relação centro-periferia artística. Percebemos que os tênues limites da arte afrobrasileira com a questão da identidade nacional facilitou-lhe uma gradual entrada no circuito artístico nos últimos anos, uma vez que foi estabelecido o discurso politicamente correto de afirmação das diferenças. Nesse contexto, as identidades locais circulam, pois se tornaram produtos lucrativos ao mercado. Palavras-chave: arte afro-brasileira, sistema da arte, identidades. Abstract The Afro-Brazilian Art and the circulation of the contemporary identities This article proposes a reflection about the ways that Afro-Brazilian art found to insert in the official art system. Historically, it was a closed territory to the presence of the Other; built on a hierarchical structure. But from the 1960s, with the emergence of social movements based on identity, this circuit began to open to diversity. Afro-Brazilian art tracks changes in the international art system, which allows new subjectivities, and a relative fluidity in the relationship artistic center-periphery. We realize that the tenuous boundaries of Afro-Brazilian art with the question of national identity facilitated it a gradual entry into art circuit in recent years, since the politically correct discourse of affirmation of differences has been settled. In this context, local identities circulate, as they became profitable products to market. Keywords: afro-brazilian art, the art system, identities.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Circulação e Fixidez.

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Introdução A cultura afro-brasileira enfrentou e ainda enfrenta muitos preconceitos. E essa situação reflete-se também no meio da Arte, no qual as subjetividades se projetam. A contribuição de criadores negros para as artes plásticas brasileiras ainda trava duras batalhas para ser reconhecida. A negação dos descendentes de africanos tem se dado não só no plano simbólico, através da produção de imagens de subalternização, mas também nas dificuldades colocadas para a circulação desses criadores no sistema profissional da arte. Embora artistas negros tenham tido papel preponderante em nossas artes visuais desde o início da colonização, eles eram mantidos à margem do sistema da arte, negados, silenciados ou, simplesmente, embranquecidos por discursos institucionais. Durante muito tempo, a maioria das manifestações negras e mestiças foi perseguida e criminalizada. A capoeira e o candomblé são bons exemplos disso, especialmente durante o final do século XIX e início do século XX, quando o negro tornara-se um problema para o ideal de civilização (branca) brasileira. O Brasil agrário desejava adentrar na modernidade, na industrialização, apagando de vez as marcas da colonização e da negritude que penetravam em todos os âmbitos da vida. O desejo do branqueamento era perseguido a todo custo, norteado pelo pensamento científico racista da época. As religiões de matriz africana eram proibidas. Nessa época, fieis que teimavam em professar sua fé em deuses negros eram considerados ameaças à sociedade. Nessa lógica, muitos foram encarcerados e trancafiados em hospitais psiquiátricos. As provas materiais dos crimes cometidos eram apreendidas pela polícia, compondo conjuntos de preciosas peças ritualísticas. Testemunhas das resistências visuais negras no Brasil, a maioria desses acervos acabou por conservar e possibilitar o conhecimento da cultura material negra naquele tempo. Vestuário, estatuária, mobiliário e outros artefatos sacros foram mantidos em poder da polícia durante décadas, e se tornaram objetos de estudo científico. À época, tentava-se comprovar a inferioridade da população negro-mestiça, à luz das teorias raciológicas que estavam em voga na Europa, as quais encontraram aqui fiéis seguidores. Um desses foi o médico Raymundo Nina Rodrigues, “o primeiro a aplicar à sociedade brasileira os conhecimentos e as teorias antropológicas de seu tempo, tanto ao estudar o crime e a loucura, os tipos físicos e a personalidade, quanto ao inaugurar as investigações sobre a psicologia social e a etnografia afro-brasileiras” (Azevedo1964: 47). Sua obra, embora fosse representante do pensamento racista, influenciou o desenvolvimento da Antropologia no país e é um dos marcos iniciais do ciclo de estudos sobre o negro no Brasil. Seus trabalhos originais continham a descrição dos cultos africanos de sua época, a análise da presença de sudaneses na Bahia e da falsa cristianização dos escravizados. Estudou a mestiçagem no âmbito racial e cultural, ganhando fama e prestígio internacionais. Tornou!127


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se uma referência nas Ciências Sociais brasileiras, fazendo escola entre os que estudavam o Direito, a Medicina e sociedade naquele momento. O intelectual elaborou um dos mais importantes trabalhos sobre a expressão material negra brasileira. Mesmo tentando demonstrar a inferioridade negra na assimilação de uma cultura superior, o artigo “As belas artes dos colonos pretos”, publicado por ele em 1904, tornou-se o documento central para os estudos sobre a arte afro-brasileira. Construído a partir da análise do acervo da polícia baiana, montado por peças apreendidas dos terreiros de candomblé da cidade no período, foi o primeiro a nomear de “arte negra” aquele material. Suas análises focadas na cultura ioruba, bem como a ligação dessa produção à questão religiosa, se tornaram tendências das abordagens sobre a arte afro-brasileira durante quase todo o século XX. A produção artística negro-brasileira encontrou momentos diferenciados até se consolidar como um importante campo de estudos da arte nacional, penetrando no sistema da arte. Isto se deu justamente porque a discussão em torno de uma arte de expressão negra tem fronteiras muito fluidas com o debate sobre as questões identitárias do Brasil. O tema configurou-se como um espaço de disputas de muitas ideias, tensões e conflitos, reflexos da complexidade e das transformações que o tema da identidade brasileira assumiu, particularmente após a Abolição da Escravatura, em 1888. Portanto, o vínculo étnicorracial que acompanha essa arte não nos permite uma visão apenas formalística, mas, sobretudo, nos obriga a contextualizar a situação da população de origem africana no país, estabelecendo assim, conexões entre as subjetividades forjadas nas relações raciais brasileiras, pois, “primeiro, arte afro-brasileira é produzida por artistas ligados a cultos afro-brasileiros; segundo, arte afro-brasileira é produzida por autores razoavelmente próximos da cultura negra; terceiro, arte afro-brasileira é produzida por autores que remetem ao universo plástico e social do negro no Brasil” (Souza 2009: 10).

Entre tons de cultura, raça e nação A cultura é formada por processos sociais diversos e por um “espírito formador” de um ideal religioso ou nacional. Ela tem uma referência global e outra parcial do indivíduo e sua relação com o meio. Pode significar um estado mental desenvolvido no caso de a palavra “cultura” ter funções de adjetivo; no sentido de uma “pessoa de cultura”, “pessoa culta”, “cultivada intelectualmente”. Pode também abranger os processos desse desenvolvimento presentes nas atividades de interesse cultural. Trata-se da cultura tida como trabalho intelectual do homem, no qual as artes são os meios desse processo, e coexiste com o sentido de “modo de vida de um grupo humano”. É essa a noção mais utilizada atualmente (Williams 1992). Esses modos de vida podem refletir os conflitos e as relações de

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 poder, bem como reproduzir imagens construídas nessa dinâmica, instituindo cartografias desenhadas também no campo simbólico. Por meio de análises das questões culturais ligadas ao tema da identidade, percebemos que a missão de divulgar a imagem de mundo propagada pela colonização foi realizada com a imposição de um modelo único de cultura, principalmente durante a colonização. Mas tal tarefa foi ampliada para todas as áreas do conhecimento, inclusive para a Arte. Assim, artes visuais também são ferramentas de divulgação ou institucionalização da autoimagem de um povo, de uma nação, pois também veiculam os modos de organização social. Entretanto, a hierarquia estética implantada nesses empreendimentos de subalternização de alguns grupos humanos é parte da lógica da colonialidade e de suas dimensões hierárquicas, refletidas em relações de poder, tais como o patriarcal, cristão e étnicorracial, entre outros (Gomez 2013). Contudo, mesmo após os processos de independência de países e transformações nos paradigmas de representação artística, essas relações desiguais persistem. Hoje, a preocupação da arte extrapola as fronteiras nacionais, acionando setores de criação, difusão e recepção da arte para uma escala maior do que a local; porém, a globalização não absorveu completamente a produção visual localizada. Embora tenha adquirido relativa importância no meio através de discursos e questionamentos da diversidade cultural, a criação artística de fora dos grandes centros econômicos (que se implantaram na colonização) não desfruta de tanto prestígio internacional. A pauta artística continua feita pelas antigas metrópoles, de onde se originam os discursos plásticos em voga na contemporaneidade. Mas a arte ainda resguarda expressões bastante regionalizadas. Muitos artistas se inspiraram – e se inspiram – em movimentos internacionais de cultura. Mas, ao mesmo tempo em que estabeleciam relações de troca com outras referências estrangeiras, acabaram por afirmar a sua própria identidade cultural (Canclini 2007). Analisando as artes visuais no contexto da globalização, o sociólogo mexicano Nestor Garcia Canclini (2007:136) conclui que: Parte da arte europeia e latino-americana continua a ser feita, até hoje, como expressão de tradições iconográficas nacionais, circulando apenas dentro do próprio país, mas o lugar de suas figuras-líderes mudou. As artes plásticas permanecem como uma das fontes do que resta do imaginário nacionalista, são ainda cenários de consagração e comunicação dos signos de identidade regional.

Ao propormos uma reflexão sobre as identidades e produção artística dos afro-brasileiros, é importante considerarmos que, assim como em outros países que sofreram empreendimentos coloniais, no Brasil, os conceitos de raça e nação nunca foram termos usados com neutralidade (Seyferth 2002; Schwarcz 1998). No passado, ambos os termos foram articulados, visando a construção de uma comunidade ideal, capaz de reunir cidadãos reconhecíveis como nacionais. Entre !129


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os integrantes dessa cultura única, conhecida como “nação”, outros modos de vida não foram permitidos, mas negados e omitidos da condição nacional. São muitos os elementos usados para diferenciar a nação dos demais grupos humanos, e entre eles encontramos a noção de raça. Tal conceito também se desenvolveu na Europa, e foi usado no nacionalismo para colaborar com a interpretação das relações sociais nos Estados-nação, bem como delimitar as suas fronteiras e justificar exclusões (Seyferth 2002). Por outro lado, a noção de “raça” colaborou com a expansão capitalista e colonizadora ao estabelecer hierarquias entre as sociedades, desenhando relações desiguais entre sujeitos, como ocorreu no Brasil. Nossa concepção de Estado-nação foi originada no século XIX e inspirada no modelo francês, embora a colonização do território brasileiro tivesse a marca ibérica. Os portugueses, apoiados pela Igreja Católica, utilizaram-se do estatuto de pureza de sangue para discriminar judeus, mouros e mestiços. As desigualdades eram justificadas pelo nascimento e religião, e os que não eram brancos e católicos eram impedidos de ocupar cargos e funções privilegiadas, além de serem considerados pertencentes a uma raça inferior e infecta. Essa prática estendeu-se ao Brasil, atingindo, até o século XVIII, ciganos, negros, indígenas e mestiços. Desde então, com o aparecimento do conceito de raça, percebemos sua importância nas questões ligadas à colonização do território brasileiro, à abolição da escravatura e à imigração europeia. Enquanto isso, o estatuto da pureza de sangue foi sendo substituído pelas teorias raciológicas, amplamente desenvolvidas durante o século XIX. Por meio desse pensamento identificavam-se ideias de raça às de cultura, justificando que algumas etnias eram raças diferentes entre si, embasadas em explicações equivocadas da medicina e da antropologia física. Ligavam-se diferenças biológicas à correspondência cultural. Raças eram identificadas com culturas específicas, e isso seria algo estanque, imutável, pois havia raças superiores às outras, justificando a necessidade de colonização para o progresso desses povos. Porém, em nome ainda da civilização e da colonização, ocorreram genocídios de populações inteiras e a submissão de suas culturas à cultura dominante. O teórico Muniz Sodré afirma que a antropologia preferiu o termo “cultura” ao de “civilização” para designar seu objeto de estudo, como sendo “o modo de vida de um grupo em que se destacam formas aprendidas e padronizadas de comportamento, universalmente reconhecidas como humanas” (Sodré 1983:33). “Cultura”, então, tomou o sentido de diferenças, limites grupais; enquanto “civilização” ficou mais ligada à ideia de processo, de uma marcha dos grupos humanos em direção à modernidade. Os intelectuais brasileiros buscaram as referências de pensamento científico desenvolvido no final do século XIX e começo do XX para explicar e contribuir com a situação racial do seu país. As teorias raciológicas chegaram ao país em meados do século XIX, quando o sistema escravista estava enfraquecido e se avizinhava uma irreversível abolição da escravatura. A escravidão legitimava a !130


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 inferioridade com a qual se tratava negros e mestiços. A diversidade racial representava um grande problema para a construção da nacionalidade brasileira, pois as misturas entre brancos, negros e indígenas seriam, segundo tais teorias, causadoras da degenerescência da população. Outra grande preocupação era a herança negra que influenciava negativamente na identidade do brasileiro (Munanga 1999). As teorias raciológicas, desmentidas no século XX, favoreceram a naturalização das desigualdades sociais e raciais no país. Porém, o cruzamento das ideias de raça e nação produziram um discurso sobre a mestiçagem que foi decisivo para a formação do povo brasileiro. Entretanto, inseriu uma ordem social que desqualificava todo aquele que não possuísse fenótipo branco (Seyferth 2002; Munanga 1999). Segundo o pesquisador Jair Ramos (1994), a existência de uma classificação hierárquica dos grupos raciais no Brasil foi ancorada no mito de sua origem nacional. Era a “fábula das três raças”, expressão cunhada pelo antropólogo Roberto da Matta, e que se relaciona à imagem da união pacífica de negros, índios e brancos. Ou seja, diz respeito ao sentimento de origem comum da nação brasileira que direcionava suas posições perante a Nação e o Estado. Significa dizer que, ao mesmo tempo, a “fábula das três raças” apresenta uma mistura entre os componentes e afirma uma hierarquia entre eles (Ramos 1994). Essa hierarquia vem conduzindo ideologicamente a organização da sociedade no país desde o Império, demonstrando que a preocupação em difundir a crença de um lugar sem preconceito racial já se manifestava desde o século XIX. O mito das três raças designou as diferentes posições ocupadas por esses grupos, além de criar um desenho da identidade nacional. Se, por um lado, a nação brasileira não tinha espaço para negros e indígenas, por outro, permitia a incorporação de aspectos dessas culturas como integrantes da cultura popular nacional (Seyferth 2002), sendo um dos elementos que atestavam a origem comum da comunidade. Principalmente no final do século XIX e início do XX, adotou-se um ideal de branqueamento no Brasil. Esse objetivo era expresso em políticas que favoreciam a imigração de populações brancas para o Brasil, enquanto condenava a imigração de africanos e asiáticos. Foi construída uma visão positiva, bem como uma prática seletiva da mestiçagem do povo brasileiro (Seyferth 2002), especialmente a partir da Proclamação da República. Nela, apenas no marco inicial há uma relação igualitária entre brancos, negros e índios. Em seguida, esses dois últimos elementos são admitidos com símbolos, não como pessoas, cabendo ao mestiço afastar-se cada vez mais das suas origens através de discriminações e inferiorizações. No cotidiano, esses brasileiros ainda hoje recebem tratamento desigual (Guimarães 2001; Munanga 1999). Segundo Da Matta (1987), a fábula das três raças articulou numa cultura o que era vivido e o que era elaborado, ou, noutras palavras, o popular e o erudito. As categorias negro, branco e indígena foram usadas na construção de uma identidade social, tornando um dado fundamental na !131


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compreensão dos brasileiros e na organização hierárquica dessa sociedade. Portanto, a triangulação étnica: (...) tornou-se uma ideologia dominante, abrangente, capaz de permear a visão do povo, dos intelectuais, dos políticos e dos acadêmicos de esquerda e de direita, uns e outros gritando pela mestiçagem e se utilizando do “branco”, do “negro” e do “índio” como as unidades básicas através das quais se realiza a exploração ou a redenção das massas. (Da Matta 1987:63).

O mestiço foi a base do pensamento racial brasileiro, em que as raças se misturavam e se complementavam (mesmo sob inferiorização de uns sob outros), admitindo gradientes de cor e posições sociais relativas à cada um deles. Como a mestiçagem era concreta entre nós, sempre podemos criar novos tipos a partir dos interstícios entre um sujeito e outro. Mas, amparado na miscigenação, o país continuou insistindo na imagem de paraíso racial. Os estudos de Gilberto Freyre nas primeiras décadas do século XX indicaram e sustentaram a ideia de uma democracia racial, na qual todos tinham as mesmas oportunidades, independentemente da cor. A união e convivência pacífica entre negros, brancos e indígenas eram propagadas como marcas nacionais. Esse quadro inspirou, então, a realização do Programa de Pesquisas sobre Relações Raciais no Brasil, realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos anos 1950. A agência internacional ainda estava sensibilizada pelo Holocausto, e buscava combater a ideologia racista que conduzira ao nazismo. O projeto era tornar a realidade racial do Brasil um exemplo para todas as nações. Mas não foi isso que aconteceu. O ciclo de estudos trouxe a confirmação da existência do preconceito e discriminação raciais, já denunciada pelos movimentos negros. A democracia racial foi posta em questão, e os intelectuais também se posicionaram, afirmando-a como “mito”, pois cor e classe definiam as desigualdades no país, principalmente as do campo socioeconômico. Porém, os resultados dos estudos não impactaram a autoimagem dos brasileiros, mas ajudaram a mudar a esfera acadêmica, influenciando a institucionalização das ciências sociais no país (Maio 2000). Numa visão geral, as investigações apontaram as desigualdades e as peculiaridades do racismo no país, que é baseado no “preconceito de ter preconceito” (Fernandes 1972; Schwarcz 1998). Por conta da formação hegemônica católica, condenava-se o preconceito de cor, mas ele acontecia onde se idealizava o embranquecimento: na intimidade. A discriminação era considerada ultrajante para quem sofria e degradante para quem a praticava (Schwarcz 1998). Oracy Nogueira (2006), integrante da referida equipe de pesquisadores, numa comparação da situação racial dos Estados Unidos com a do Brasil, definia o racismo dos estadunidenses como preconceito de origem. O brasileiro teria um preconceito de marca. O intelectual descreve assim cada tipo de preconceito:

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem. (Nogueira 2006: 292)

Estudos mais recentes sobre a identidade nacional, realizadas por Guimarães (2001), acrescentam que a partir dos anos 1960, a denúncia da discriminação e preconceito raciais começou a adquirir um tom mais profundo ao associar as desigualdades sociais às desigualdades raciais. Nas décadas seguintes, os movimentos sociais negros racializam suas práticas ainda mais, visando à afirmação de uma identidade negra. Raça passa a ser um termo político nesse contexto. O negro, que integrava a identidade nacional, agora procura afirmar sua herança africana, situa-se no contexto diáspórico, numa perspectiva transnacional; o que significou um “ataque frontal ao mito da democracia racial” (Guimarães 2001:392). Seguindo as tendências da referida década, as nações se repensavam em termos raciais, revendo seus territórios à luz dos efeitos das migrações e movimentos independentistas. O ideal de nação, postulado na perspectiva de cultura única, agora passava a ter que dialogar com outras visões políticas e culturais, a maioria focada nas identidades raciais.

E por falar em identidades... Com o enfraquecimento do modelo de Estado-nação, em tempos de globalização econômica e integração política supranacional, além da apologia às diferenças e suas teorizações vivenciadas desde os anos 1970, cultura e identidade se tornaram temas muito frequentes. A cultura, definida por uma dinâmica inconsciente, se liga ao termo identidade. Mas a identidade dependerá sempre de processos conscientes, pois é baseada em processos simbólicos tão fortes a ponto de alterar uma cultura. A identidade se constrói em conjunturas sociais específicas, que determinam as escolhas e representações de cada um, e resultam em consequências sociais reais (Cuche 1999). É possível também que as identidades se transformem no âmbito pessoal e local, pois as transformações da atualidade favorecem mudanças políticas em diferentes escalas, inclusive na cultura. A cultura apresenta uma dimensão política, pois o cultivar-se depende de certas condições sociais oferecidas pelo Estado. A unidade social pode ser dada através da cultura: língua, educação, tradição, entre outros aspectos que constituem um estado nacional abolindo conflitos no nível imaginário antes que ele ocorra no nível político. Podemos também ser cultivados pelo outro, pelo Estado. O Estado pode conciliar os diferentes interesses da sociedade civil e refinar suas sensibilidades através da inculcação de valores que considera adequados. O Estado representa a subjetividade universal presente em cada sujeito da sociedade. A afirmação ou repressão de determinadas características identitárias das culturas diversas passa por uma escolha política. Esses processos de !133


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identificação têm redefinido o sujeito contemporâneo e, consequentemente, as identidades nacionais (Hall 2005). Denys Cuche (2000) sugere que utilizemos o termo “identificação”, pois identidade é resultado de identificações e diferenciações em um contexto específico, assumindo, portanto, um caráter fluido, provisório ou relativo. Nessa lógica, a identidade pode mudar, caso se altere a situação relacional. Não temos, na sociedade hodierna, um núcleo produtor de identidade fixa; é a pluralidade de núcleos que marca o deslocamento de antigas referências únicas, rígidas e compactas (Hall 2005; Silva et al 2008). A diversidade de lugares nos indica que há muitas identidades e sujeitos a se manifestarem, percebendo diferentes contextos e significados sociais. Segundo Cuche (2000:182), uma “cultura particular não produz por si só uma identidade diferenciada: esta identidade resulta unicamente das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações”. A cultura afro-brasileira nunca teve escolas estilísticas como vemos nas culturas europeias; tampouco se dedicou a gerar apenas artistas afrobrasileiros. Há inúmeros criadores oriundos desse meio que se distanciaram do rótulo de “artista afrobrasileiro” e são conhecidos como artistas nacionais, ou foram embranquecidos na História ou no sistema da Arte Brasileira, desvinculando-se completamente de expressões artísticas negras. Para as Ciências Sociais, a identidade cultural marca a distinção entre um sujeito (ou grupo humano) e outro baseada em diferenças culturais. Ela ainda compõe a identidade social de um sujeito. Classe, sexo, idade, nação, entre outros elementos, são fronteiras que compõem a identidade social. Tanto os sistemas simbólicos quanto a exclusão social são elementos marcadores de diferença, capazes de distinguir um grupo de outro a partir de oposições. No entanto, a identidade depende da diferença para se constituir nas relações sociais (Silva et al 2008). Para a Psicologia, é a identidade que permite a vinculação entre os aspectos social e psicológico em um indivíduo ou grupo, permitindo que ele se localize e seja localizado a partir de seus pertencimentos ou não-pertencimentos. Para maior inteligibilidade sobre as razões pelas quais são incluídas ou excluídas marcas identitárias, é preciso lançar mão de uma análise do contexto relacional (Cuche 2000; Hall 2005). A definição da identidade é feita por si mesmo e pelos outros. Silva et al (2008), refletindo sobre as concepções de identidade discutidas por Stuart Hall, nos alertam sobre a importância de uma origem comum no processo de afirmação identitária. Hall faz essa análise através da diáspora negra, mas indica duas formas de conceber a identidade cultural: uma na qual um grupo reivindica contar sua própria história e cultura, reescrevendo o passado; e na outra a ideia é que, revendo o passado, ele passa por transformações, isto é, ao reivindicar, reconstruímos também a identidade, pois o significado nunca se completa, ele sempre se desloca. A herança histórica comum não garante uma definição fixa; o ato político de reivindicar torna o sujeito capaz de se re-posicionar e se re-construir, alterando, desse modo, os traços comuns originais do grupo. E este raciocínio é a base de uma ideia !134


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 de identidade fluida, móvel (Silva et al 2008). Portanto, ela vai além da relação nós/eles, pois se “admitirmos que a identidade é uma construção social, a única questão pertinente é: ‘Como e por que e por quem, em que momento e em que contexto é produzida, mantida ou questionada certa identidade particular?’” ( Cuche 2000:202). No contexto relacional dos afro-brasileiros nas artes visuais, reproduz-se também o modelo de relações raciais brasileiras, ainda que disfarçado com o manto da arte. A arte, bem como os seus critérios definidos pelo sistema, pulula como uma instituição soberana, capaz de se sobrepor às questões “menores”, tais como o racismo e o etnocentrismo. O que é definido como “artístico” pode ocultar o que, de fato, justifica exclusões e inclusões no meio operacional da arte: relações de poder. As relações de poder estabelecidas também são influenciadas pelo modo de organização das sociedades. Daí a importância de se pensar mais sobre a relação entre um e outro sujeito, do que simplesmente tentar marcar as diferenças entre eles. No meio da arte, expressões mais localizadas têm sido rotuladas por agentes externos às realidades locais usando termos que não abrangem as suas peculiaridades, tampouco a territorialidade dos artistas. Muitos conflitos têm sido travados entre os organizadores de plataformas expositivas em todo o mundo tendo por cenário de disputas as práticas de discursos e de poéticas locais e globais (Anjos 2005). As identidades na arte contemporânea circulam com facilidade, mas não se eximem de visões uniformizadoras e até mesmo exotizantes, tal como se fazia nos empreendimentos coloniais, como explica Aníbal Quijano (2007). Para o sociólogo, a partir da colonização da América houve a criação de novas identidades sociais baseadas na raça (índios, negros e mestiços). A diversidade dos grupos nativos foi negada, agrupando-se as diferenças numa única identidade. Houve também a redefinição de outras identidades, que antes designavam apenas a procedência geográfica, e que passaram a ter uma conotação racial (espanhol, português, europeu) e foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais desempenhados nas novas sociedades. Raça tornou-se instrumento básico de classificação social, justificando a dominação de uns grupos pelos outros. Até hoje, porém, a conotação racial predomina em adjetivos criados para nomear a produção artística em certos territórios, mas eles não conseguem expressar a diversidade criativa de cada local. Neste contexto, como pensar que termos como “arte latino-americana” ou “arte africana” traduzem a produção visual de territórios tão plurais? Por outro lado, a nomeação de estilos de arte com características próprias, resultantes das experiências dos descendentes de escravizados, não tem acontecido somente no Brasil. Os movimentos sociais negros engendraram uma forte luta para que a herança negra fosse remarcada no contexto das artes visuais também, mas não conseguiram destruir as contradições desse meio profissional. Nomear algo como “arte afrovenezuelena”, “afrocubana”, “afrocolombiana” ou “afro-brasileira”, entre outras adjetivos, nos remete à ideia de uma arte específica !135


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criada em um território que sofreu os empreendimentos coloniais como a economia baseada na exploração de homens e mulheres africanos; sem, contudo, traduzir as peculiaridades do processo criativo dessas subjetividades, com suas diversidades e conflitos, já que estão imbuídas de conceitos como raça, etnicidade e identidade nacional. Entretanto, rotular determinado trabalho com um dos termos acima citados pode agregar um valor simbólico no mercado de consumo da arte contemporânea. Quando se fala em arte de expressão negra contemporânea, é importante remarcar a importância dos Estados Unidos na emissão de um discurso identitário negro no meio das artes visuais. Ser artista afroamericano traduz um contexto particular de resistência e expressão. Entretanto, sua influência ultrapassa o campo político para ditar regras no sistema da arte, designando, inclusive, a forma do discurso afirmativo. Como nem todos os grupos têm o poder de identificação, entre os artistas negros, os nascidos nos Estados Unidos gozam de maior autoridade e poder para fundamentar a presença negra na arte hoje, exportando seus modelos de sistematização de conhecimento, de inserção econômica e de discurso de negritude (Wainwright 2009). Para Cuche (2000), o poder de classificação conduz à etnização de outros grupos subalternizados. Através de uma classificação exterior, sua marginalidade é justificada pela diferença quase imutável. Como falamos anteriormente, a identidade se constitui em torno de oposições. Ao problematizarmos essas relações, perceberemos o poder como dinamizador desses contextos. O grupo que desfruta de mais poder, acaba normalizando uma identidade, isto é, torna-a referência fixa para a hierarquização de outras. Ela é apresentada socialmente com todas as características positivas, como algo natural e desejável em qualquer sujeito. Todas as outras identidades absorvem características negativas em relação à primeira. Sua força é tamanha que ela deixa de ser mais uma identidade, para ser a natural. Invisibilizada, ela nos orienta a ver os outros como na identidade, o que é um paradoxo (Silva et al, 2008). Falando de meio da arte, o artista (historicamente branco e privilegiado socialmente) seria a identidade. Os negros que acessam a essa categoria profissional, no entanto, são rotulados como artistas afro-brasileiros, pois diferem na sua origem e trajetória, dos outros “artistas”. Portanto, precisam da identidade e de um marcador de diferença, nesse caso, a origem. É pelo adjetivo “afro-brasileiro” que encontramos os criadores enquadrados como descendentes de escravizados ou que optaram por expressar aspectos de suas vivências culturais negras. É interessante notar que o adjetivo funciona como delimitador de um campo específico pelo sistema da arte e suas conexões. Nele, “artistas” (brancos) do país podem ir e vir, criar inspirados na herança negra e depois mudar de tema. Enquanto isso, os artistas “afro-brasileiros” acabam tendo suas criações sempre vinculadas a uma suposta essência da veia artística negra, o que pode indicar expectativas de essencialismo identitário ou de uma escola estilística de arte negra. !136


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 Silva et al (2008) destacam que há uma tensão entre a tendência que visa à fixação de uma identidade e a impossibilidade de sua realização. Ambos os processos seguem dinâmicas diferentes. Nas identidades nacionais, por exemplo, visando sua fixação, recorrem ao essencialismo cultural. É comum a busca de símbolos nacionais. Entre eles, destacam-se a língua e o mito de fundação original da comunidade para se criar laços imaginários entre os entes. Porém, a contraposição ao essencialismo é constante, pois essas nações convivem com as misturas entre os diferentes, o que contesta a fixidez identitária proposta. Isso resulta em identidades novas, híbridas, que guardam traços daquelas originais, mas que interferem nas relações de poder: A possibilidade de “cruzar fronteiras” e de “estar na fronteira”, de ter uma identidade ambígua, indefinida, é uma demonstração do caráter artificialmente imposto das identidades fixas. O “cruzamento de fronteiras” e o cultivo propositado de identidades ambíguas é, entretanto, ao mesmo tempo uma poderosa estratégia política de questionamento das operações de fixação da identidade. (Silva et al: 89)

Os contatos entre os diferentes podem se dar através de fenômenos demográficos como a diáspora, o cruzamento de fronteiras, viagens ou, metaforicamente, quando o sujeito atravessa as fronteiras simbólicas do grupo e experimenta novos territórios. Assim, ao contextualizar o artista negro contemporâneo é preciso lembrar que muitos artistas circulam no sistema oficial da arte, especialmente nas últimas décadas. E isso tem afetado não só os discursos identitários hegemônicos, mas também os periféricos subalternizados.

Por dentro do sistema da arte A oferta e a demanda dos bens culturais são bem mais do que a simples imposição que a produção faz sobre o consumo; tampouco é a busca consciente de consumidores pelo produto. É a articulação dos campos em que se elabora o gosto e em que se elabora o produto especializado. A demanda se constrói nas relações dos grupos, a partir do seu interesse por consumo de bens materiais ou culturais (Bourdieu 2007). A arte integra o setor de bens culturais e não se isenta do uso de mecanismos para determinar a difusão ou o consumo (ou não) de seus produtos. Isso é articulado em uma instância própria: o sistema da arte. O sistema da arte é definido como um “conjunto de indivíduos e instituições que produzem, difundem e consomem objetos e eventos por eles mesmos definidos como artísticos, e determinam os critérios da Arte para toda uma sociedade em determinada época” (Bulhões 2008:128). Dada sua dimensão econômica atual, é preciso considerar ainda a sua lógica específica, com atenção para as formas com as quais são criadas os seus consumidores e o seu gosto. Contrariando a ideia de que o gosto é algo natural, o autor Pierre Bourdieu (2007) aponta que a educação estimula ou indica as !137


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necessidades culturais do sujeito mais do que a classe social. Admite, inclusive, uma hierarquia no meio das artes (entre gêneros, épocas e escolas) equivalente à posição social dos consumidores. O sistema se organiza, portanto, adequando-se ao gosto dos grupos dominantes. Através do sistema da arte são institucionalizados todos os profissionais envolvidos na Arte. O status de artista é chancelado por meio de articulações entre esses sujeitos, que podem simplesmente lançar ou destruir carreiras profissionais, deslegitimar ou autorizar a fala de criadores. Para tanto, são conjugados valores de elementos do meio social, a exemplo de classe e raça. Ao considerarmos o percurso histórico da formação artística em nosso país, fica evidente que a presença de artistas não-brancos sempre foi desprestigiada nessa rede. No passado, a vinda da Missão Artística Francesa, em 1816, implantou um modelo oficial de arte na colônia que alterou profundamente os processos criativos que se desenvolviam no Brasil. A Academia de Belas Artes de Paris foi o modelo para a implementação de cursos ligados à arte em todas as colônias. E a maneira como o ensino da arte, bem como todos os conhecimentos artísticos possíveis eram apresentados e ensinados, incutiam hierarquias no campo estético. As imagens de um mundo subordinado à lógica da dominação colonial indicava a superioridade de certos grupos humanos, negando aos outros, inclusive, a possibilidade de criação de visualidades. Desse modo, o referencial euro-referenciado, isto é, masculino, heterossexual, cristão e branco, designava o formato para as subjetividades permitidas. Assim, o poder criativo de outros grupos era relegado a uma esfera inferior, que, ao longo do tempo, encontra diferentes expressões dentro do conjunto de instrumentos do sistema da arte. (Gomez 2011; Grosfoguel 2007). Embora artistas negros tenham integrado a Academia Imperial de Belas Artes, criada no Rio de Janeiro pela Missão Artística Francesa de 1816, só no século XX é que esses sujeitos começaram a ser historicizados. Manuel Querino, historiador negro e baiano, foi um dos primeiros a se preocupar com o pertencimento étnicorracial de artistas na capital baiana. Ele fez um levantamento biográfico de indivíduos que atuavam na cidade no final do século XIX e início do XX. Mas, sua obra é questionada até hoje no meio acadêmico por conta dos métodos utilizados. Ainda que ele tenha alguns defensores, é espantoso o esforço do meio acadêmico para negar seus estudos. Já Clarival do Prado Valladares, outro historiador (branco) preocupou-se em estudar a vida de artistas negros, acadêmicos, por volta da metade do século passado. Quando, nos anos 1950, os estudos de Arthur Ramos ampliaram a possibilidade de autoria da arte negra para aqueles que não se vinculavam às religiões de matriz africana, essa arte passou a ser denominada de popular, primitiva, ou naïf, posições apresentadas como inferiores no campo do conhecimento artístico. Ao mesmo tempo, a arte oficial saía das tendências modernistas para as abstratas. A partir daí, criou-se um mercado brasileiro para esse tipo de arte. Para funcionar, esse esquema precisava de um intelectual que emitia um discurso legitimador e operava o meio !138


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 profissional, mais um criador negro-mestiço, marginalizado do circuito oficial de arte, o que lhe atestava a originalidade de seu trabalho. Os estudos sobre essa temática ainda são muito poucos. A produção bibliográfica sobre a contribuição negra nas artes visuais ainda é frágil, mas tem crescido significativamente nos últimos vinte anos. Isso vem acontecendo porque a sociedade brasileira está enfrentando questões cruciais relativas à sua identidade. Tais conflitos têm sido evidenciados pela reivindicação política de movimentos sociais e por ações políticas de reparação. Reserva de vagas para negros no ensino superior, reconhecimento de territórios tradicionais, obrigatoriedade do ensino da História da África, dos Povos Ameríndios, das Culturas Afro-Brasileira e Indígenas são algumas ações resultantes de lutas, que trouxeram à tona a desmistificação da democracia racial no país. Aos poucos, profundas transformações estão acontecendo nas instituições nacionais, principalmente em setores ligados à Educação e Cultura. Além dessas ações citadas acima, as quais afetam o campo educacional, temos um outro interessante exemplo: O Museu Afro-Brasil. Fundado em São Paulo em 2004, tem por especialidade a difusão de obras de artistas negros, e vem se tornando uma importante instituição para afirmação da presença negra no meio artístico brasileiro. Os maiores espaços de circulação da criação dos afro-brasileiros sempre foram os meios da expressão da cultura afro-brasileira, a exemplo das manifestações religiosas. Ao invés de se repensar estratégias de inclusão de artistas negros, o sistema preferiu cristalizar a ideia de que os negros produziam arte somente no restrito âmbito religioso. Infelizmente, até hoje pouco se problematiza a ausência negra nos circuitos formais da Arte. Os negros continuam como minoria na participação de eventos de artes plásticas. A Bienal Internacional de Arte, realizada em São Paulo desde 1951, consolidou-se como o mais importante evento na área, na América do Sul. Este é um exemplo de como o racismo impede a integração de negros no sistema da arte. Em suas últimas cinco edições, contabiliza-se apenas 4% de expositores negros. Em uma recente entrevista, Paulo Herkenhoff, curador, justifica essa insignificante participação negra como resultado de “um "vínculo de interesses econômicos" entre universidades e galerias, que causa uma "obstrução ativa" do mercado para negros.” (Marti 2011) Os eventos temáticos, entretanto, ainda os acolhem. Especialmente depois do Centenário da Abolição da Escravatura (1988), muitas mostras comemorativas nacionais e internacionais têm marcado a contribuição dos negros para as artes plásticas brasileiras. Mas essa produção ainda não é apresentada como igual no sistema da arte.

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Novas identidades no sistema da arte A construção de uma imagem de mundo se dá também através da arte, na qual se expressa a percepção do sujeito. Pela arte também notamos os valores civilizatórios, e, portanto, podemos visualizar efeitos da experiência colonial, de seus processos complexos de dependência ou de libertação. Em outras palavras, o imaginário artístico é articulado hierarquicamente, e nele se realiza uma dimensão estética do poder (Gomèz 2011). A colonização designou um padrão mundial de poder focado na raça, que orientava a divisão de trabalho nos territórios e a negação de identidades locais (Quijano 2007). Seguindo esse raciocínio, novas sociedades foram organizadas. Mas, nas últimas décadas do século XX, as questões identitárias assumiram um lugar político que tem alterado essas estruturas sociais. Especialmente a partir dos anos 1960, declarações de identidade se fortaleceram através de organizações como os movimentos sociais, que passaram a reivindicar transformações baseadas na afirmação dos diferentes modos de vida. A questão identitária ampliou seu sentido político e penetrou em diversos âmbitos da vida do sujeito. O meio da arte foi um desses. A face contemporânea do conceito de identidade se relaciona a uma noção de sujeito com múltiplos pertencimentos. O deslocamento de elementos que marcam as fronteiras identitárias deixou a polissemia e a fluidez comandando a ideia de identidade hoje, assim como o processo de escolhas do indivíduo demonstra o caráter político que a identidade assume entre nós (Hall 2005). Essa dimensão fluida também se repete na relação centro-periferia da arte. Atualmente, o Outro se tornou tema frequente na arte. A diversidade de materiais e técnicas expressivas, bem como as temáticas, favorecem a percepção do Outro. A alteridade tem se tornado um elemento que distingue um produto do outro no competitivo mercado de arte. As identidades locais têm cada vez mais espaço no circuito oficial das artes, pois elas agregam valor aos produtos, diferenciando-os. O capitalismo, que rege o meio da arte, se nutre da alteridade celebrando a hibridez e as misturas (Escobar 2008). A cada instante, novas exposições eclodem em diferentes espaços do mundo, colocando em rede global a arte local. Mais do que a afirmação de identidades locais subsumidas no sistema de arte, as artes asiática, africana, afrocubana, afrovenezuelana, afro-brasileira, entre outras, são novos produtos do mercado artístico. Não significa, porém, que sejam escolas estilísticas, tal qual ordena a tradição da História da Arte Ocidental. Nesse caso, o adjetivo aplicado à arte evidencia o território, bem como o pertencimento étnicorracial, na perspectiva multicultural que se tem difundido nas artes visuais contemporâneas. A fim de adotar um discurso do politicamente correto e descentralizar o poder do sistema da arte, novas plataformas expositivas têm sido organizadas em diferentes lugares do globo, proporcionando certa visibilidade de criações, mesmo sob a ótica das metrópoles. !140


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.126-143, 2013 Desde os anos 1980, quando os artistas deixaram o discurso de negação em favor da institucionalização da arte, as identidades se materializaram no meio. A ideia romântica de um artista contestador ainda prevalece, e o atestado dessa rebeldia vem na localização de sua obra. Identidades periféricas ganharam espaço no sistema contemporâneo de arte principalmente a partir de duas grandes exposições: Primitivism in the Twentieth Century, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1984, e Les Magiciens de la Terre (Paris, 1989). Ambas aproximaram a produção do centro e da margem, e desencadearam um profícuo e vigoroso debate sobre o etnocentrismo e o racismo na arte. Desde então, cultiva-se o discurso politicamente correto, fundamentado no multiculturalismo. A partir de então, o debate é recorrente no meio, e muitos artistas de regiões distintas têm se projetado, inclusive alguns brasileiros negros como Mestre Didi, que participou da exposição francesa. Mas essa não foi a primeira grande projeção internacional da arte afro-brasileira. Nos anos 1960, Estados africanos que se libertavam do jugo colonialista assumiam uma plataforma afirmativa, fundada na questão cultural, para se constituir como novos Estados. Foram organizados dois grandes eventos de cunho internacional que tinham como objetivo a reafirmação da contribuição africana para o avanço da humanidade, sobretudo no campo da cultura. O I e II Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN) incluíram artistas e intelectuais da África e de sua diáspora. A partir de uma criteriosa seleção, artistas negros foram apresentados ao mundo, entre eles os brasileiros Mestre Didi e Agnaldo Manoel dos Santos. O pertencimento étnico foi um dos critérios para a participação no evento. Desde então, outras exposições temáticas surgiram, sobretudo nos anos 1980, e essa produção simbólica começou a ser cada vez mais divulgada no meio oficial.

Considerações finais O discurso politicamente correto prevalece no sistema operacional da arte, mas a exclusão e o preconceito continuam, agora disfarçados em critérios artísticos. É fato que as identidades no meio da arte hoje podem ser muito lucrativas; há muitas exposições de grande porte que absorvem a temática negra e promovem a divulgação da arte dos negros no Brasil e fora dele. Outras iniciativas também têm absorvido a produção desses sujeitos, como instituições do porte do Museu Afro-Brasil. Para o artista negro, a questão ainda continua, pois com um conceito tão amplo quanto o de arte afro-brasileira, é possível contemplar a todos os artistas, mesmo que sejam brancos e abastados. Considerando as peculiaridades da nossa identidade nacional, que tem o discurso da mestiçagem como ícone, qualquer brasileiro pode fazer arte afro-brasileira. Logo, o peso está no discurso de pertença do criador, mais do que na própria obra. Não há um estilo “afro-brasileiro” com

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características formais a serem repetidas no meio; o que vale é a experiência cultural negra. Essa situação nos permite visualizar o reflexo do mito da democracia racial no meio artístico nacional. Mas, artistas brancos, privilegiados socialmente, podem ser rotulados esporadicamente de “afro-brasileiros”. Utilizando a temática negra conscientemente ou não, os brancos são facilmente absorvidos no sistema quando produzem outro tipo de arte. Entretanto, o mesmo não acontece com os negros. Ser chamado de artista afro-brasileiro pode indicar a expectativa de que ele vá criar, durante toda sua vida profissional, referenciando-se unicamente na experiência cultural dos descendentes de africanos. A Arte afro-brasileira tem se relacionado com o sistema contemporâneo de arte, mas ainda se coloca como um discurso localizado. No momento, é importante a enunciação do lugar de fala desses sujeitos, marcar seus pertencimentos. Mas, porque ainda não estão inseridos no âmbito do critério artístico apenas? Porque o peso para a inserção nesse sistema é definido nos valores dos elementos sociais que constituem o profissional da arte, tais como a classe e a raça… Enquanto isso prevalecer, não teremos visualidades em condições de igualdade no mundo da Arte.

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Recebido em 05/01/2014 Aprovado em 12/02/2014

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Imagens Trans: A fotografia como foco da pesquisa antropológica com travestis e transexuais1

Marcela Vasco Mestranda em Ciências Sociais Universidade Federal de São Paulo

Resumo O retrato de infância de uma pessoa trans é um resquício material que mostra exatamente o pertencimento a uma categoria de gênero a qual foi preciso superar através de uma transformação corporal marginalizada e muitas vezes traumática. Diante da fotografia, é impossível negar a existência de seu passado. Dessa forma, a imagem se coloca neste trabalho como um componente fundamental para entendermos não só as relações que transexuais e travestis estabelecem com seus retratos de infância, mas também enquanto um importante caminho etnográfico de evocação da memória e de apreensão do sensível na antropologia. Palavras-chave: antropologia visual; fotografia; memória; transexuais; travestis. Abstract Trans Images: photography as focus of anthropological research with transvestites and transsexuals The childhood portrait of a trans person is a material vestige that shows exactly the belonging of determined gender category which was necessary to overcome through a marginalized and many times traumatic body transformation. Against the photography, it's impossible to deny the existence of its past. This way, the image appears in this work as a key to understanding not only the relationships that the transsexuals and transvestites establish with their portraits of childhood, but also as an important ethnographic way of evocation of the memory and apprehension of the sensitive in the anthropology. Keywords: Visual Anthropology; Photography; Memory; Transsexuals; Transvestites.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Teorias e Desafios da Antropologia Contemporânea.

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Bilder von der Straße (1982-2012), n. 82 - Joachim Schmid

Roland Barthes (1984: 115) nos instiga afirmando que “na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá.”2 O referente fotográfico é, para ele, justamente o que a sustenta, é a “coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia” (Barthes 1984: 114-115). Para além das incontáveis possibilidades de manipulação da imagem que não serão aqui discutidas, a contribuição de Barthes nos atenta para a fotografia enquanto o próprio real em estado passado, no qual ela está sempre a nos provocar: isso foi; essa imagem esteve diante dos olhos do fotógrafo quando ele disparou o obturador; eles estiveram lá. Nela, um cachimbo é sempre um cachimbo. A fotografia se coloca nesse sentido enquanto um resquício material da imagem passada. Ela é, ao mesmo tempo, o passado e o real desprovidos de futuro a nos encarar com sua “plenitude insuportável”. Por esse viés, se nos propusermos aqui a refletir sobre o isso foi de uma pessoa trans, nos remeteremos a uma imagem cujo contorno do real, tão essencialmente ligado à compreensão da fotografia, torna-se justamente seu problema fundamental. Qual o lugar de retratos de jovens garotos que hoje se identificam como Valérias e Alices? Como travestis e transexuais se sentem diante de sua imagem passada? O que essas fotografias podem nos dizer a respeito de suas experiências de transição? Diante deste conflito, a proposta do presente artigo é refletir sobre o uso da fotografia em pesquisa antropológica com travestis e transexuais visando suas relações com seus retratos de infância. Através dessa reflexão, procuramos investigar os aspectos subjetivos das experiências de transição na afirmação de suas identidades de gênero. A fotografia se coloca, portanto, enquanto o

Este artigo é parte de minha pesquisa de mestrado, desenvolvida no PPGCS da Universidade Federal de São Paulo com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Agradeço aos coordenadores Jorge Villela e Pedro Lolli e ao debatedor Messias Basques, do GT "Teorias e Desafios na Antropologia Contemporânea" do II Seminário de Antropologia da UFSCar, pelos apontamentos e pela seleção deste trabalho para compor o presente dossiê e, especialmente, à Andréa Barbosa pelas incontáveis contribuições na orientação desta pesquisa. 2

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próprio caminho etnográfico a ser percorrido, sendo ela responsável pela evocação da memória e pela apreensão dos aspectos sensíveis da transformação corporal.

Focando a imagem na antropologia Quando a fotografia surgiu, Walter Benjamin (1996) viu nela o nascimento de uma nova relação com a arte se dando, principalmente, a partir do contato dela com as massas. Ele sustenta a ideia da reprodução técnica ser responsável pela aproximação do indivíduo e da obra de arte, que perde sua aura, sua unicidade, o valor de culto responsável por mantê-la quase secreta, e passa a ter um valor de exposição que altera a natureza da própria arte e a aproxima do mundo das mercadorias. Dessa maneira, ela não se restringiria mais apenas aos olhos eruditos e se encontraria ao acesso de todos. Ao mesmo tempo em que esse movimento poderia acarretar em uma perda da identidade original da arte, traria também uma nova experiência baseada na dispersão, na montagem e na imagem múltipla. A própria sensibilidade moderna estaria, segundo ele, se alterando e modificando a forma de “olhar”. A fotografia passa a ser, portanto, a expressão de um novo modelo cognitivo, trazendo uma diferente forma de perceber o mundo e suas noções de tempo e espaço. Assim como o avião e a antropologia, a fotografia permite que povos distantes sejam conhecidos e trazidos para perto, alimentando a curiosidade do século XIX (Caiuby Novaes 2008). No entanto, o surgimento da fotografia se coloca em conflito com outras formas de retratar o mundo. André Bazin (1991) afirma que, antes de sua descoberta, as artes plásticas possuíam a característica de embalsamarem o tempo e vencerem suas ações – e, com isso, a morte. Com a chegada da imagem fotográfica, porém, a pintura perde seu valor mágico. A fotografia, por sua vez, passa a ser celebrada como a possibilidade de captar uma precisão que a pintura não era capaz, ainda que fosse também fortemente criticada por não conseguir atingir o status de arte, na medida em que muitos a viam como uma mera cópia do real, considerando-a, então, inferior à pintura, uma vez que era encarada como um registro do real através do resultado objetivo da expressão de uma máquina, enquanto a pintura era o resultado subjetivo da sensibilidade de um artista. A fotografia se colocaria, nesse sentido, como fruto da mecanicidade de um instrumento que apreenderia o real tal como ele é, sem passar pela subjetividade humana. Nessa perspectiva, ela não poderia, portanto, ser considerada uma obra de arte. Essa oposição à pintura deixa clara a conotação de registro mecânico objetivo que a fotografia adquiriu desde seus primórdios. A ideia de um suposto documento sem a interferência do homem chamou a atenção de muitos antropólogos, como foi o caso Margaret Mead e Gregory Bateson (1962), que passaram a usar a fotografia como forma de salvar a “memória dos povos”. Mead, nessa espécie de antropologia salvacionista, estava interessada em catalogar povos em extinção para que qualquer antropólogo pudesse posteriormente recorrer às imagens, mesmo que os povos que as !147


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.145-156, 2013 protagonizassem já estivem extintos ou que os ritos registrados não fossem mais realizados. Para isso, ela acreditava que a câmera deveria ser posicionada de modo a interferir o mínimo possível na captação da imagem e sua função deveria ser, acima de tudo, o registro da ação (Martinho de Mendonça 2005). As primeiras críticas a respeito dessa capacidade da fotografia de registrar objetiva e mecanicamente o real logo começaram a surgir e sua suposta objetividade positivista passou a ser questionada, uma vez que, embora a fotografia fosse o registro químico das aparências e físico da máquina, era construída a partir do olho humano. Ou seja, a máquina fotográfica só é capaz de registrar o que o olho vê, com recortes (ou enquadramentos) escolhidos com base na subjetividade de quem aperta o botão e dispara o obturador. A fotografia, nesse momento, ainda não era usada fundamentalmente como objeto de pesquisa. Seu lugar nas etnografias era restringido a documentar o real e apresentar-se como ilustração do texto científico. Outro exemplo desse uso da fotografia é Bronislaw Malinowski (1978), que também desfrutou do registro de imagem em seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand. Rompendo com a tradição da antropologia de gabinete, ele registrou seu trabalho de campo com fotos dos nativos e, dessa forma, segundo James Clifford (2011), usou a fotografia como sustentação da ideia de “eu estive lá”, como uma espécie de autoridade que lhe permitia falar do que presenciou, tomando a fotografia enquanto comprovação dessa experiência. Dessa forma, ao mesmo tempo em que as fotos atestavam sua presença em campo, ilustravam também o texto, trazendo para perto do europeu o exótico visitado. A presença da fotografia na obra de Malinowski cumpre, portanto, a função de comprovação de pontos defendidos pelo texto. A fotografia só começa a chamar atenção como objeto de pesquisa desvinculada dessa ideia unívoca de documento ou de mero suporte do texto etnográfico quando a imagem começa a ser percebida como dotada de uma concretude ausente no texto e só passível de apreensão através da imagem. Nessa concepção, ela não aparece apenas enquanto reiteração do texto, mas, assim como ele, enquanto parte fundamental para a reflexão antropológica. Dessa forma, a fotografia passa a ser encarada por seu aspecto sensível, no que se refere ao seu apelo aos sentidos de modo muito mais efetivo que o texto. Além de incluir informações não verbais, como expressões corporais, adornos e indumentárias, a fotografia se coloca como uma possibilidade de revelar experiências afetivas só possíveis em termos visuais. Os antropólogos, percebendo esse potencial etnográfico da imagem, passam, então, a trazer a experiência da fotografia para campo defendendo essa apreensão cuja conotação é fundamentalmente diferente do texto e, exatamente por esse motivo, viável de ser trabalhada em conjunto com as formas já tradicionais do fazer antropológico. Diante dessa abordagem do aspecto sensível da fotografia, podemos notar ainda que ela transforma o que era sujeito em objeto, ou seja, passível de ser fotografado. Tirar uma foto de alguém !148


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é tirar sua imagem. Fotografia é contato e o próprio processo fotográfico é cumprido através do contato, ou, mais especificamente, do contato da luz com o objeto fotografado e da sensibilização do filme pela luz refletida por este objeto. A imagem fica aprisionada no filme e, quando revelada, passa a adquirir significado de objeto sensível (Edwards; Gosden; Philips 2006). As fotografias são, portanto, coisas e pertencem ao espaço e ao tempo – ao mundo apreensível, enfim. Elas juntam poeira, envelhecem, criam fungos, podem ser beijadas, rasgadas e até mesmo levadas a centros religiosos para receberem a benção no lugar de doentes que não podem se locomover (Caiuby Novaes, 2008). Esses aspectos sensíveis e mágicos que a fotografia pode assumir nos abrem, nesse sentido, uma possibilidade não só para o fazer etnográfico, mas também enquanto o próprio foco da pesquisa antropológica. Neste trabalho, a fotografia é usada como a principal forma de evocar as lembranças de minhas interlocutoras sobre suas imagens de infância, buscando apreender as dimensões do subjetivo nas experiências de transição de gênero. Dessa forma, seu uso se coloca fundamentalmente ligado à imagem passada e à memória, portanto. Henri Bergson (1999), ao procurar compreender a relação entre matéria e memória, defende que a imagem do corpo está sempre presente quando as imagens do passado são evocadas. Segundo ele, “não há percepção que não esteja impregnada de lembranças” (Bergson 1999: 30), onde o ato de rememorar seria um constante fluxo de contextualização do presente e, ao mesmo tempo, atualização do passado. Ou seja, a memória, enquanto imagem, está sujeita à leitura das questões do presente e interfere sistematicamente na apreensão de suas representações. A lembrança, existindo em estado virtual, aparece em forma de uma nebulosidade que se condensa aos poucos e passa de virtual ao estado atual. À medida em que seus contornos vão se desenhando e sua superfície começa a se colorir, a lembrança tende a imitar a própria percepção em si. Para a leitura que Gilles Deleuze (1999) nos propõe de Bergson, passado e presente não designam, para o autor, “dois movimentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem: um, que é o presente e que não pára de passar; o outro, que é passado e que não pára de ser, mas pelo qual todos os presentes passam” (Deleuze 1999: 45). Sabendo ainda que cada presente remete a si mesmo enquanto passado, “o passado não só coexiste com o presente que ele foi, mas – como ele se conserva em si (ao passo que o presente passa) – é o passado inteiro, integral, é todo o nosso passado que coexiste com cada presente” (Deleuze 1999: 46). No entanto, a ideia de passado puro em Bergson não admite uma memória que pode resgatar o passado como um todo, mas uma noção em diversos níveis de profundidade, onde a compreensão dessa totalidade do passado ocorre de forma mais ou menos dilatada e mais ou menos contraída. O corpo, enquanto imagem, mas também matéria, se coloca nessa perspectiva bergsoniana enquanto a imagem que prevalece sobre as demais, na medida em que seu conhecimento se dá “não apenas de fora, mediante percepções, mas também de dentro, mediante afecções” (Bergson 1999: 11). !149


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.145-156, 2013 As imagens exteriores transmitem movimento ao corpo sob a forma de afecções ao mesmo tempo em que o corpo restitui movimento às imagens exteriores sob forma de ação. Nesse sentido, o filósofo afirma a realidade do espírito e a realidade da própria matéria, relacionando-as entre si através de sua concepção de memória. Maurice Halbwachs, um dos herdeiros dos estudos de Émile Durkheim, estará, por sua vez, mais interessado nas instituições que formam o sujeito que lembra. A memória de cada um está ligada, para ele, à memória do grupo ao qual está inserido. Esta última, por sua vez, liga-se a uma memória compartilhada coletivamente pela sociedade na qual o grupo se compõe, relacionando-se, portanto, à própria tradição e cultura de seu povo. Ecléa Bosi (1994: 59), ao analisar a contribuição de Halbwachs para a interpretação social da memória, dirá que seu posicionamento é radical, uma vez que, para ele, “não se trata apenas de um condicionamento externo de um fenômeno interno, isto é, não se trata de uma justaposição de 'quadros sociais' e 'imagens evocadas'. Mais do que isso, entende que já no interior da lembrança, no cerne da imagem evocada, trabalham noções gerais, veiculadas pela linguagem, logo, de filiação institucional”. Nesse sentido, para retomarmos a fotografia, é preciso notar que, assim como a memória, ela se coloca também enquanto uma imagem do passado, mas – e aqui ela se difere fundamentalmente da memória – trata-se de uma imagem material, fixada no negativo do filme fotográfico, real e palpável. Diante desse ponto, nos deparamos novamente com a questão inicial colocada neste texto: como se dá, então, o conflito entre esse resquício material, a fotografia, e a memória de uma experiência de vida marginalizada, como é o caso de pessoas trans? Michael Pollak (1989) vai definir como “indizíveis” ou “inconfessáveis” as memórias coletivas subterrâneas de excluídos, marginalizados e de minorias. Na tentativa de trabalhar, portanto, em paralelo com essa ideia de memória indizível, a fotografia aparece como um importante caminho etnográfico para suscitar a evocação de lembranças. Andréa Barbosa (2009: 75) afirma que é justamente nas brechas polissêmicas oferecidas pelas imagens – brechas que proporcionam uma experiência sensorial e afetiva de forma muito mais direta que o texto – que é possível à antropologia tratar desse indizível apontado por Pollak. Nesse sentido, o uso da fotografia em etnografia com pessoas trans abre brechas para a evocação da memória e suas ressignificações. A imagem, neste caso, é incapaz de abarcar uma verdade inapreensível aos olhos: aqueles garotos nas fotografias se tornariam mulheres – subvertendo, assim, o fluxo esperado pelas imposições dos padrões de gênero. Mas, enquanto imagem fixada, enquanto garotos, são desprovidos de futuro: isso foi e isso sempre será. No ponto, portanto, em que reside o choque, reside também a brecha.

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Imagens Trans Com base nas reflexões feitas até aqui, apresento ao leitor duas imagens encontradas em meu trabalho de campo com pessoas trans na cidade de São Paulo. A primeira me aparece em uma conversa com Carla,3 uma de minhas interlocutoras, transexual cuja transição se iniciou há mais de nove anos. Conversávamos sobre suas fotografias de infância, quando uma imagem nos assalta: Carla: Muitas se perderam… Em mudanças mal arrumadas, principalmente. Mas teve uma em especial que eu destruí! Marcela: Qual? Carla: Era uma foto de bebê. Tipo, dois anos e pouco. Minha mãe insistiu em tirar aquela foto clássica de terninho com calça curta e suspensório. Isso foi em 1965. Reza a lenda que eu dei o maior piti. Bom, o fato é que eu odiei aquela foto e, quando tive chance, destruí! Marcela: Rasgou? Carla: Queimei!

Essa imagem, ainda que nunca oferecida aos nossos olhos, nos instiga e faz pensar. “A imagem é pensante”, concorda Etienne (Samain 2012a: 31; 2012b: 158). Perseguir as brechas abertas por essa fotografia nos fala justamente sobre o indizível. Entender o que levou Carla a destruir essa foto especificamente me parece nos revelar um pouco mais sobre quem é Carla, sobre suas dificuldades em se afirmar enquanto Carla e, ainda, sobre essa tal fotografia de um bebê de calça curta e suspensório que precisou ser destruída. A segunda imagem da qual trataremos aqui me é revelada por Júlia, que também se identifica como transexual. Em 2013, na semana do dia das crianças, vários usuários da rede social Facebook alteraram suas imagens do perfil criado na página para fotos de quando eram crianças. De todos os meus interlocutores que fazem uso da rede, Júlia foi a única a aderir à moda nostálgica e alterar sua foto do perfil, exibindo o retrato de um garoto sorridente de cerca de seis anos. Pouco depois nos encontramos e, na conversa, ela me conta que divulgar essa foto ainda lhe pesa, mas que a imagem pertence a um período de sua vida em que era mais feliz: o pai era vivo e a família estava mais unida. Na intenção de me fazer entender sua complexa relação com a fotografia, Júlia me fala de uma foto: um garoto, de terninho e gravata borboleta, entra em uma igreja carregando alianças enquanto uma menina, de vestido rosa, vem logo atrás carregando uma cesta de flores. O garoto na foto é Júlia. Ela me explica que naquele dia sentiu inveja do vestido da irmã (a menina na foto). Queria ser ela a entrar com flores vestindo o rosa rodado. No entanto, apesar disso, aquela imagem a remetia a 3

Os nomes usados neste artigo são fictícios.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.145-156, 2013 um momento muito especial de sua vida em que tudo parecia ser muito mais inocente. Por isso, Júlia se esforça ao me explicar que, por mais que a imagem a incomodasse, era uma fotografia da qual ela gostava muito. Voltando aos primórdios da fotografia, sabemos que o tempo de duração da exposição exigido pelas condições técnicas do aparato foi fundamental na definição da pose fotográfica. A disposição do corpo enquadrado deveria respeitar o tempo de espera do equipamento para que a luz sensibilizasse o filme e, ainda hoje, mesmo com o melhoramento técnico do aparelho, a pose para o retrato respeita a necessidade do aparato e carrega seus vestígios. O filósofo francês Michel Foucault (1993) propõe a ideia de que o corpo estaria também sujeito a uma normatização cultural na sociedade ocidental. Ele sugere a investigação dos microespaços com o intuito de compreender as instituições, práticas e discursos pelos quais as categorias de identidade se reformulam. Através do método conhecido como genealógico, ele procura encontrar os indícios apagados ou desprezados pela história tradicional, com a intenção de desvendar a essência construída, sugerindo que há uma “docilização dos corpos”, um constante policiar das formas tidas como perigosas, para que atendam perfeitamente às normas sociais impostas. Nesse sentido, o determinismo biológico, bem como a heterossexualidade compulsória e o falocentrismo apontados por Judith Butler (2008), são instituições cruciais de controle para reforçar o processo de docilização dos corpos. Beatriz Preciado (2002) vai ainda mais a fundo nesse argumento, colocando que a própria imagem ultrassonográfica, ao tentar desvendar o sexo do bebê ainda na barriga da mãe, não se coloca apenas como uma tecnologia descritiva, mas também aparece enquanto tecnologia prescritiva, no sentido de criar os corpos que pretende apenas revelar. Preciado defende ainda que, por meio dessas tecnologias sociais, todos os corpos já nasceriam pós-operados, respeitando às próteses aplicadas pelos investimentos discursivos propagados pela cultura. Nos retratos fotográficos, a pose dos corpos respeita, portanto, não só uma espécie de cumplicidade entre a pessoa fotografada e o fotógrafo, conforme colocado por Barthes (1984), mas, no que interessa mais especificamente a este trabalho, à microfísica do poder efetivada através do discurso e das instituições. A pose para a fotografia, assim como os elementos que nela aparecem (ou são recortados dali), portanto, devem ser percebidos abarcando a todas essas disposições às quais o corpo está sujeito. Dessa perspectiva, é possível notar que elementos fundamentalmente ligados ao binarismo das categorias de gênero masculino e feminino, como o terninho, o suspensório, a gravata e o vestido da irmã nas duas imagens exploradas aqui se tornam recorrentes nos discursos de pessoas trans sobre suas fotografias de infância. Em suas memórias, estão contidas, conforme apontado por Halbwachs, as instituições da sociedade na qual estão inseridas, ou seja, as noções apreendidas desde cedo sobre

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vestuários e posturas corporais definidas e definidoras de gênero: o ser menino, em correspondência com o terninho e as alianças; o ser menina, em correspondência com o vestido e a cesta de flores. Para as pessoas trans, esses elementos parecem exprimir a própria brecha polissêmica da imagem, o ponto em que ela se oferece não ao intelecto, mas ao corpo. Se nos atrevêssemos a retomar um dos principais conceitos de Barthes, o punctum, talvez fosse justamente nesses elementos em que o encontraríamos. “O punctum da Fotografia em Barthes é o que a imagem cala, o indizível da imagem, o inesgotável da imagem. O silêncio que nela fascina e perturba faz gritar o corpo, quando o olhar à procura de si aventura-se no seu espelho, no seu campo cego” (Samain 2005: 124). No caso de Carla, além das transformações pelas quais o corpo precisou passar, foi necessário se livrar de uma imagem que não a representava. A memória que nela o indizível cala se relaciona justamente com a impossibilidade da fotografia apreender uma essência invisível aos olhos. A imagem do garoto de calças curtas e suspensório, para dar lugar à imagem presente de Carla, precisou ser queimada. Georges Didi-Huberman (2012), fatalmente, coloca que não se pode falar no contato entre a imagem e o real sem falar em uma espécie de incêndio e, portanto, em cinzas. Ele não admite a imagem como um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis e, por isso, para ele, “a imagem arde”. Arde com o real do que, em um dado momento, se acercou (como se costuma dizer, nos jogos de adivinhações, "quente" quando "alguém se acerca do objeto escondido"). Arde pelo desejo que a anima, pela intencionalidade que a estrutura, pela enunciação, inclusive a urgência que manifesta (como se costuma dizer "ardo de amor por você" ou "me consome a impaciência"). Arde pela destruição, pelo incêndio que quase a pulveriza, do qual escapou e cujo arquivo e possível imaginação é, por conseguinte, capaz de oferecer hoje. Arde pelo resplendor, isto é, pela possibilidade visual aberta por sua própria consumação: verdade valiosa, mas passageira, posto que está destinada a apagar-se (como uma vela que nos ilumina mas que ao arder destrói a si mesma). Arde por seu intempestivo movimento, incapaz como é de deter-se no caminho (como se costuma dizer "queimar etapas"), capaz como é de bifurcar sempre, de ir bruscamente a outra parte (como se costuma dizer "queimar a cortesia"; despedir-se à francesa). Arde por sua audácia, quando faz com que todo retrocesso, toda retirada sejam impossíveis (como se costuma dizer "queimar navios"). Arde pela dor da qual provém e que procura todo aquele que dedica tempo para que se importe. Finalmente, a imagem arde pela memória, quer dizer que de todo modo arde, quando já não é mais que cinza: uma forma de dizer sua essencial vocação para a sobrevivência, apesar de tudo (Didi-Huberman 2012: 216).

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.145-156, 2013 Nesse sentido, ele aponta que, para sentir a imagem, é preciso atrever-se a soprar suas cinzas para que a brasa volte a emitir seu calor – que é também seu maior perigo –, esperando que da cinza da imagem se levante uma voz a questionar: “Não vês que ardo?”. Ainda segundo Didi-Huberman, assim como em Deleuze, é preciso notar que as imagens não estão “no presente”, como tendemos a acreditar. Elas estão ligadas a um conjunto de relações de tempo do qual o presente apenas deriva. Também por esse motivo, as imagens “ardentes” precisam de uma força dolorosa para que possam ser olhadas, encaradas, “interrogadas em nosso presente, para que história e memória sejam entendidas, interrogadas nas imagens" (Didi-Huberman 2012: 213). Queimar uma fotografia, portanto, torna-se, assim, o ato de conceder a ela o fogo que por si só já a consome, bem como uma tentativa de sanar a ferida que arde pela memória inconfessável. Para Júlia, o processo constante parece ser o de ressignificações do passado, o de suas leituras a partir das questões do presente. Como já exposto aqui, Bergson (1999: 280) deixa claro que “a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente”. Justamente nesse sentido, Júlia, ao encarar suas fotografias do passado, vê nelas os elementos do presente, independentemente da forma da imagem. Didi-Huberman (apud Samain, 2012a: 56) alerta, entretanto, que a sobrevivência de determinada imagem pode ser percebida ainda na memória das imagens abandonados, cujas inúmeras camadas do tempo sobrepuseram sua expressão. A forma sobrevivente de que ele nos fala, no sentido apresentado por Aby Warburg, “não sobrevive triunfalmente à morte de suas concorrentes. Bem ao contrário, ela sobrevive sintomalmente [sob a forma de sintoma] e fantomalmente [sob a forma de fantasma] a sua própria morte". A imagem sobrevive, portanto, para ele, nos limbos de uma "memória coletiva”. Talvez por saber disso, Júlia precise sempre se esforçar ao me explicar que o incômodo da forma é superado pelo significado que a imagem assume para ela. Dessa forma, podemos notar que as leituras da imagem passada acionadas por Carla e Júlia são, ao mesmo tempo, conflitantes e complementares, refletindo a maneira subjetiva como cada uma lida com a memória de sua experiência. No limite, os elementos que esses dois casos apresentados nos trazem abrem espaço para melhor compreendermos o processo de transição de gênero vivido por travestis e transexuais por um viés que apreende também seus aspectos subjetivos. A fotografia nos fala não de elementos como a ingestão de hormônios e a aplicação de silicone, tão recorrentes em abordagens antropológicas sobre o tema, mas de relações mais afetivas a respeito da própria noção do eu travesti ou transexual, uma vez que a construção dessas identidades se dá não somente através de transformações do corpo, mas também de experiências sensíveis como a de Carla que queima uma foto e a de Júlia que vê na foto da gravata borboleta seu desejo pelo vestido da irmã.

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Apontamentos finais Butler (2002) nos alerta que a matriz da heterossexualidade compulsória relega à condição de não-humanos aqueles marginais a essa lógica. Ela os define enquanto sujeitos abjetos, que são: Aqueles que não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo do campo dos sujeitos. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “invisíveis”, “inabitáveis” da vida social que, sem embargo, estão densamente povoadas por aqueles que não gozam da hierarquia de sujeitos, mas cuja condição de viver sob o signo de “invisível” é necessária para circunscrever a esfera dos sujeitos (Butler 2002: 19-20, tradução minha).

Nesse sentido, a possibilidade trazida pela fotografia na pesquisa antropológica com pessoas trans aparece enquanto uma maneira de contornar a exotização provocada muitas vezes pelo tema, buscando compreender a experiência trans para além da condição de abjeto. Olhar para os conflitos e afeições com relação aos seus retratos de infância nos leva a um entendimento dessas pessoas justamente dentro do âmbito da esfera de sujeitos – sujeitos que tiveram infância, que possuem memórias, que são subjetivamente afetados pela experiência vivida. Diferentemente dessa condição social de abjeto, o que este trabalho procura propor é uma compreensão de travestis e transexuais por uma chave que considere também suas apreensões do sensível – e, justamente por isso, através da fotografia. Para concluir, na pesquisa aqui apresentada, é justamente a fotografia que provoca o encontro entre pesquisadora e interlocutoras, é a fotografia que as faz falar sobre suas experiências, é a própria fotografia que fala nos silêncios das memórias indizíveis e é também a fotografia que as coloca em uma condição (ainda que momentânea) de sujeitos – e, por isso mesmo, visíveis.

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Recebido em 18/02/2014 Aprovado em 26/02/2014 !156


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Uma perspectiva de gênero sobre o diagnóstico de depressão nas práticas clínicas e nas práticas cotidianas1 Laura Cremonte Doutoranda, Università degli studi di Perugia, doutorado “Culture e Linguaggi” Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos/UFSCar

Resumo O objetivo deste artigo é analisar criticamente algumas questões da depressão como patologia e como dispositivo biomédico, através de alguns exemplos etnográficos. Em particular, utilizarei uma perspectiva de gênero, questionando a relação entre a depressão e a condição feminina, focando a relação entre a prática psiquiátrica, algumas expectativas sociais de gênero e as “micro-experiências” do cotidiano das mulheres que vivem situações complexas. Deste ponto de vista, é importante considerar a vida das mulheres em relação às condições socioeconômicas, aos diferentes contextos da vida familiar e a vida emocional delas. A observação de diferentes modalidades de acesso e cuidado de mulheres com diagnóstico de depressão permite analisar os diversos percursos de tratamento. Especificamente, vou relatar algumas dinâmicas que acontecem dentro de um serviço de saúde mental na cidade de Araraquara (SP), onde participei de alguns grupos de psicoterapia, analisando como, neste contexto e na relação entre os pacientes e os terapeutas, a depressão é modelada e socialmente produzida e trocada nos relatos bem como nas práticas cotidianas. Palavras-chave: depressão; mulheres; etnografia. Abstract A gender oriented perspective on the diagnosis of depression in clinical and daily practices The purpose of this article is to critically analyze some issues of depression as a pathology and as a biomedical apparatus, through some ethnographic examples. In particular, I will use an approach centered on gender, by questioning the relationship between depression and the condition of women, focusing on the relationship between some psychiatric practices, the social expectations of genderrules and the "micro-experiences" of the daily lives of women living complex situations. From this point of view, it is important to consider the lives of women in relation to their socioeconomic conditions, as well as to their different family and emotional contexts. Observing the multiplicity of modalities of access and care for women diagnosed with depression, leads to an analysis of the various possible paths for treatment. Specifically, I will report some dynamics that took place within a mental health service in the city of Araraquara (SP), where I've been participating in some psychotherapy groups, analyzing how, in this context and through the relationship between patients and therapists, depression is modeled and socially produced and exchanged both in the accounts as in the everyday practices. Keywords: depression; women's condition; ethnography. 1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Antropologia da Saúde.

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Introdução A depressão é muitas vezes referida e considerada – seja pelos profissionais e pesquisadores do campo biomédico, seja no debate público – como uma "doença da modernidade", em crescimento rápido e constante; é também considerada a causa principal2 da “incapacitação por doença” no contexto mundial. Neste artigo, vou apresentar uma primeira análise a partir da minha pesquisa de doutorado, considerando a categoria médica psiquiátrica da depressão como um tipo de “recipiente”, no qual são contidos elementos em torno dos quais se agregam complexas redes de significados. De fato, as linguagens do sofrimento são necessariamente mais sutis e heterogéneas do que as categorias de diagnóstico usadas no campo biomédico. Por um lado, o diagnóstico é configurado como uma tradução de sintomas mais ou menos específicos, que são objetivados nas relações entre usuários e profissionais através da avaliação de um olhar especializado. Today, hegemonic psychiatry’s most powerful instruments are its biological etiologies, therapeutic interventions (pshycopharmacology) and research programs. Through biological reductionism, these instruments dissocialize and dehumanize distress, naturalize social and economic inequities, silence the voices of suffering and resistance and eliminate the possibility of agency. (Young 2008: 299)

Por outro lado, a ideia da depressão já parece fazer parte do senso comum e da bagagem de conhecimento da população, graças, por exemplo, ao papel das mídias sociais. Para além do significado cientificamente compartilhado, desenvolveu-se, assim, um uso diferente e mais inclusivo do termo, que expressa sofrimento, ausência de felicidade e, de maneira geral, condições de vida “desequilibradas” (Martin et al 2007). Por isso, é de particular interesse concentrar-se sobre a maneira pela qual a noção de depressão é socialmente compartilhada, para reconsiderar o processo de construção da categoria biomédica. De certo ponto de vista, seria mais correto falar de depressões, no plural, dado que no campo de pesquisa surgiram maneiras diferentes nas quais esta situação de sofrimento se desenvolve. Essa heterogeneidade não depende apenas de uma forma diferente de vivenciar o próprio sofrimento, o que é óbvio, mas do sentido que é dado à própria trajetória no “estado de depressão”. Para todos os sujeitos envolvidos, a palavra depressão é um recipiente que contém práticas, significados, relações, que são construídas ao longo do tempo. Porém, estes recipientes de conteúdo variável possuem 2 “Depression

is the leading cause of disability as measured by YLDs and the 4th leading contributor to the global burden of disease (DALYs) in 2000. By the year 2020, depression is projected to reach 2nd place of the ranking of DALYs calculated for all ages, both sexes. Today, depression is already the 2nd cause of DALYs in the age category 15-44 years for both sexes combined. Depression occurs in persons of all genders, ages, and backgrounds. […] WHO has recently launched an initiative on Depression in Public Health. […] Overall objective: To reduce the impact of depression by closing the substantial 'treatment gap' between available cost-effective treatments and the large number of people not receiving it, worldwide.” site of WHO: http://www.who.int/mental_health/management/depression/definition/en/.

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alguns elementos que tornam possível uma troca com outros sujeitos, sejam eles outros usuários, familiares, profissionais de saúde, amigos ou pesquisadores. Assim, estou interessada em investigar a depressão como um mapa de significados, uma narrativa que opera na fronteira entre as instituições médicas e as partes interessadas (Cozzi 1996). É uma narrativa que pode chegar a saturar todos os aspectos da vida das pessoas que sofrem, e que, a partir do diagnóstico, pode alterar a própria autopercepção. Duarte, em sua análise sobre as representações populares sobre “os nervos”, explicitou o modo como os sintomas aparecem, do ponto de vista da população de trabalhadores urbanos no Brasil, como “um sistema de fios ou condutos espalhados pelo corpo” (Duarte 1986: 161): uma sugestiva imagem que bem define este campo semântico complexo. Na verdade, há muitas interpretações diferentes possíveis; os sintomas e a doença são muitas vezes irredutíveis (Young 1982) e falam de um sofrimento difícil de ser capturado nas análises e estruturas interpretativas. Este trabalho, então, busca desenvolver algumas reflexões que surgiram nos primeiros meses da pesquisa de campo que estou desenvolvendo para a minha tese de doutorado: Uma perspectiva de gênero sobre as políticas de saúde mental e a depressão no estado de São Paulo (municípios de São Carlos e Araraquara): diagnóstico, percursos terapêuticos e vida cotidiana.3 Durante o período de trabalho de campo,4 o lugar onde, sem dúvida, eu tive um contato mais explícito e direto com a depressão – e, em particular em relação à condição das mulheres – foi em um serviço ambulatorial de saúde mental na cidade de Araraquara. A partir da análise de algumas situações que eu tenho observado neste contexto, vou procurar refletir sobre a vida cotidiana e um certo tipo de sofrimento, um certo tipo de emoção, que são traduzidos – no contexto estudado – como depressão. Utilizarei algumas citações de uma entrevista, particularmente significativa, e as minhas notas etnográficas para contextualizar os tipos de trocas que ocorrem em torno da experiência da depressão em três grupos de psicoterapia deste serviço. O que significa fazer etnografia dentro de grupos de psicoterapia? Uma das regras que é repetida várias vezes pelos profissionais (principalmente na entrada de uma nova pessoa no grupo, como ocorreu comigo) é que “o que você diz e ouve aqui, fica aqui”. Do ponto de vista da metodologia da observação participante antropológica, isto é um nó problemático interessante. Na verdade, temos o privilégio de participar na atuação da própria psicoterapia sem ser paciente ou terapeuta, e para isso temos que respeitar as regras e o funcionamento desses grupos. Por esta razão, é importante não Este projeto faz parte de uma pesquisa maior, sobre os serviços de saúde mental comunitária, que se chama “Políticas, cidadania e redes de saúde mental comunitária: um programa de pesquisa cooperativa e intercâmbio cultural entre Itália (região de Úmbria) e Brasil (Municípios de São Carlos, Araraquara e outros no Estado de São Paulo)”, coordenado pelo prof. Massimiliano Minelli (Università degli Studi di Perugia, Italia). Este projeto é desenvolvido como um trabalho em equipe, o que acho particularmente interessante do ponto de vista metodológico, porque permite não só o acesso aos materiais e dados sobre o contexto geral da pesquisa, mas também a comparação constante com os outros pesquisadores sobre questões de interesse comum. 3

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O qual teve um prazo total de nove meses, mas neste artigo vou me referir aos primeiros cinco.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.158-173, 2013 se concentrar tanto sobre o conteúdo dos relatos – mesmo que eles ofereçam uma imagem complexa das situações – mas, sobretudo, sobre a forma de agir e se relacionar dentro do grupo. A abordagem etnográfica permite um ponto de vista próximo à dinâmica de encontro entre os sujeitos, sobretudo através da observação participante e de uma postura reflexiva e situada da pesquisadora. A pesquisa pode ser entendida, aqui, como um território para “pensar em termos relacionais”, tal como proposto por Pierre Bourdieu (1992). Neste sentido, considero interessante partir da descrição da dinâmica entre terapeutas e pacientes nos grupos de psicoterapia que pude observar. Trata-se, especificamente, de três grupos diferentes, acompanhados por quatro terapeutas (três psicólogas e uma assistente social). Todos os três grupos são constituídos apenas por mulheres – terapeutas, usuárias e antropóloga: durante as entrevistas, tanto os pacientes quanto as terapeutas concordaram que esta uniformidade favorece a oportunidade de se conhecerem, assumindo que isso envolve o compartilhamento de experiências da vida cotidiana. Está claro que nesta pesquisa uma atenção específica deve ser dada à perspectiva de gênero. A partir da natureza sempre “gendered” do campo,5 temos que prestar atenção ao quanto os conhecimentos estão situados em específicos sistemas de relações histórico-sociais. O gênero não deve ser visto como uma outra forma de “essencialismo”, ou como um ponto de chegada da análise, mas sim como o ingresso nos complexos sistemas de significado e de relações de poder. Visweswaran (1997) argumenta, a propósito, que o gênero é um dispositivo heurístico que não pode ser considerado a priori e fora dos sistemas específicos de representação. Situar-se conscientemente do ponto de vista do gênero pode produzir um olhar capaz de perceber, no contexto das relações, os aspectos de confiança e intimidade, assim como de diferença e antagonismo, evitando uma ingênua cumplicidade de gênero.6

As regras do jogo: uma etnografia dos grupos de psicoterapia Geralmente, o primeiro contato entre pacientes e profissionais ocorre no momento da triagem, quando o paciente (enviado pelos outros serviços) tem que contar a sua história e o caminho que o levou para o serviço. Neste contexto, o profissional (que não será necessariamente o terapeuta de "A questão de gênero surge porque nós (etnógrafos) construímos o campo estabelecendo relações, e aprendendo a ver, pensar e estar em uma outra cultura, e nós fazemos isto como pessoas com de uma certa idade, orientação sexual, credo, educação, identidade classe social e étnica. Em particular [...] fazemos como homens e mulheres. "(Bell et al 1993). 5

Biddy Martin (1994, citado em in: Visweswaran 1997): “To the extent that gender is assumed to construct the ultimate ground of women’s experience, it has in much feminist work, come to colonize every aspect of experience, psychological and social, as the ultimate root and explanation of that experience, consigning us, once again, to the very terms that we sought to exceed, expand or redefine. When an uncritical assumption of the category ‘women’ becomes the ‘subject of feminism’, the gender politics takes the form of…the injunction to identify with/as women”. 6

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referência do paciente), sentado na frente do paciente e fazendo perguntas específicas, tem que preencher um documento impresso. Neste documento (além dos dados pessoais) é registrada a situação geral do paciente e, em suma, a sua história, a sua vida familiar, seu trabalho, seus problemas de saúde, seus serviços de referência, bem como uma primeira hipótese de diagnóstico. Juntamente com os prontuários médicos anteriores, recebidos do serviço “de envio”, esses papéis representam a primeira entrada no serviço do paciente e a base para o tratamento terapêutico. Na verdade, após a triagem, os profissionais discutem nas reuniões de equipe sobre a possibilidade de incluir os pacientes nos diversos grupos, os quais são construídos7 a partir de vários elementos: o diagnóstico, a necessidade de horários específicos, outras necessidades específicas e experiências de vida semelhantes. Quanto aos grupos dos quais participei, um era mais focado na questão da violência, outro nas dificuldades das relações familiares, e o último, ainda mais específico, sobre a relação mães/ filhos. Embora muitas vezes emerjam muito mais temas diferentes, é possível entender que a formação destes grupos lembra diretamente o cenário “típico” do dia a dia das mulheres.8 Para começar o grupo, a psicóloga responsável, às vezes acompanhada de uma assistente social, prepara a sala antes da chegada das pacientes: organiza as cadeiras em círculo, coloca as pastas das pacientes sobre a mesa (onde são anotados a presença/ausência e, posteriormente, um resumo do que foi dito) e, muitas vezes, um ou mais rolos de papel higiênico para enfrentar os momentos frequentes de choro. No horário preestabelecido, então, ela chama as pacientes que, enquanto isso, aguardavam na sala de espera na entrada do edifício. Este lugar é particularmente interessante do ponto de vista etnográfico: sentados nas cadeiras que abrangem os lados da pequena sala de espera, onde está também a sala da recepção do serviço, os pacientes interagem, trocam ideias sobre os terapeutas e os medicamentos, descobrem amigos em comum, reclamam do tempo, debatem sobre os acontecimentos dos bairros e da cidade. Porém, quando se encontram as pessoas que estão nos mesmos grupos de psicoterapia, eles muitas vezes retomam o diálogo que teve lugar na sessão da semana anterior, informando-se sobre a situação em casa e as possíveis novidades acontecidas. Este é um momento particularmente significativo, porque cria-se uma intimidade semelhante ao que é muitas vezes considerado como peculiar à psicoterapia. O que acontece nessas trocas informais ultrapassa, de fato, as “regras do jogo” dos grupos, as quais podem ser tanto formais e explícitas, quanto tácitas e variáveis. Estas regras mudam e dependem claramente dos terapeutas e das diferentes necessidades dos pacientes, mas aquela que já mencionei (“o que está sendo dito e ouvido

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Como me foi explicado pelos profissionais do serviço em situações informais, assim como nas entrevistas.

Em relação à depressão, de fato, as estatísticas epidemiológicas mostram uma relação de 2:1 para as mulheres (Hopcroft & Burr Bradley 2007; Roxburgh 2009; WPA 2008). Essa diferença é atribuída principalmente às condições de vida marginalizada e a incorporação de desigualdades socioeconómicas. Além disso, a depressão é muitas vezes ligada a questões específicas da vida das mulheres, como a violência doméstica, abortos espontâneos ou voluntários, a obesidade e distúrbios alimentares, mas também as experiências da gravidez, parto e puerpério (depressão perinatal). 8

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.158-173, 2013 aqui, fica aqui”) é geralmente aceita e respeitada por todos. Isso, a fim de proteger a sensibilidade das coisas que são ditas e trocadas nos grupos: estes são exatamente o que são chamados de dados sensíveis. Os grupos são geralmente constituídos por um máximo de 5-6 pessoas. Em alguns casos, chegou a acontecer de haver apenas uma paciente nos encontros. Isto pode acontecer por várias razões: muitas vezes, as ausências não são comunicadas anteriormente. Mas, em outras ocasiões, as pacientes alertam os profissionais que não poderão estar presentes na reunião seguinte. Neste caso, as ausências são registradas nas pastas do serviço como “justificadas”. Isso depende da regra interna do serviço que estabelece que não se pode ter mais do que um determinado número de ausências “não-justificadas”, sob pena de perder a própria vaga no serviço, ou seja, nos grupos de psicoterapia e nas sessões psiquiátricas. Na verdade, durante a observação, tornou-se claro que esta regra pode ser modificada continuamente, quando puder atender às necessidades dos pacientes. Os profissionais podem decidir, até, por conceder períodos longos de alta, especialmente se isso pode ajudar no trabalho e/ou na vida familiar. Porém, isso é muito raro, pois a maioria das pacientes que entrevistei me disseram que elas tinham construído um forte vínculo com o serviço e com as outras pessoas dos grupos. Por esta razão, são as primeiras a querer participar regularmente.9 Portanto, quando todas estiverem sentadas na sala, as terapeutas normalmente dão início à “hora da terapia” com uma espécie de apelo para saber quem está presente ou não. Logo depois, começam a fazer perguntas abertas e dirigidas a todas, tais como: “como foi a sua semana?”, “como vai você?”. Enquanto as pacientes falam, as intervenções diretas são limitadas a algumas perguntas, especialmente para moderar a fala, de modo que o equilíbrio possa ser mantido e ninguém seja excluída e não possa falar. Isto pode ser mais ou menos fácil, dependendo das características das pessoas (algumas são mais tímidas, outras não conseguem esperar para falar) e da urgência das coisas que têm para contar. Muitas vezes, de fato, uma história enche o espaço/tempo da reunião do grupo: nestes casos, as terapeutas tentam envolver as participantes naquela história específica, convidando a comparação e a troca de experiências. Porém, em algumas situações – por exemplo, quando uma paciente fala sobre pensamentos suicidas – a intervenção da terapeuta é feita de forma mais direta. As usuárias que entrevistei concordam em considerar as terapeutas como ponto de referência do grupo e, enquanto falam, seus olhos estão sempre voltados para a terapeuta. Em vários casos elas são diretamente consultadas, muitas vezes sendo solicitadas a darem conselhos “técnicos”, especialmente quando se trata do diagnóstico e dos sintomas. Na verdade, o que concerne ao diagnóstico não aparece muitas vezes nos diálogos dos grupos de psicoterapia, mas as participantes se referem a ele quando pedem informações sobre o tratamento com psicofármacos e seus efeitos. Outro caso é o das pessoas que são "obrigadas" a acompanhar os grupos e as outras atividades estabelecidas pelo serviço, devido a uma ordem judicial (como, por exemplo, para manter ou recuperar a autoridade parental sobre os próprios filhos). 9

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Nessas ocasiões, à psicóloga é atribuída a tarefa de manter o equilíbrio entre o papel do medicamento psiquiátrico10 – prescrito pela psiquiatra – e o da terapia de grupo. Além disso, as pacientes parecem querer que a terapeuta do grupo faça a mediação entre as necessidades delas e as decisões do psiquiatra, que são, aliás, contestadas – por exemplo, no que concerne ao aumento ou a diminuição da dose de uma medicação ou a substituição desta por outra. Juliane, assumindo um tom triste, pergunta para a psicóloga se ela pode marcar uma consulta com a psiquiatra, embora apenas duas semanas tenham passado desde a última visita. Quando lhe pergunta a razão, ela diz que, com a mudança do fármaco, tem notado melhoras, ela não se sente mais agressiva e irritada como antes, mas ela se sente calma... talvez excessivamente calma: “de uma calma que eu poderia facilmente matar alguém e depois ir embora como se nada tivesse acontecido.” [diário de campo, 11.10.2013] É importante ressaltar que, no sistema de funcionamento e regras do serviço, a participação nos grupos de psicoterapia está ligada à possibilidade de acesso às consultas psiquiátricas e, consequentemente, ao medicamento. A diferença entre o papel do psicólogo e do psiquiatra, que eu encontrei várias vezes dentro do serviço, também é relatada em outros estudos, como em Tornquist et al (2010): O/a psicólogo/a aparece como um personagem dedicado a ajudar as pessoas que estão passando por momentos difíceis, escutando o que o sujeito tem a dizer e buscando razões para o sofrimento, aspecto no qual se diferenciaria dos médicos, cujo trabalho – também valorizado – se resumiria à prescrição de remédios. (Tornquist et al 2010: 103)

A atitude dos pacientes do ambulatório, em relação ao psiquiatra do serviço, é ambivalente: por um lado, sem duvida, é respeitado por seu conhecimento e sua posição11; por outro lado, muitas usuárias já me disseram que não se sentem escutadas no momento da consulta psiquiátrica, o que lhes permitem a adoção de estratégias para conseguir o que sentem precisar: “com o psiquiatra é fácil: você vai lá, você chora um pouquinho, você diz que dorme mal, você diz que tá...meio assim, sei lá, e ela já já aumenta ou muda a medicação”, assim a Sra. Luana, paciente “histórica” do serviço, me disse com um No diagnóstico de depressão, de fato, o papel dos fármacos é de grande interesse: a prescrição dos fármacos parece construir o diagnóstico, em uma grotesca tautologia pela qual “os deprimidos são aqueles que respondem aos antidepressivos, os antidepressivos são as substâncias que curam os deprimidos” (Coppo 2005). Isto é devido, em parte, à evolução histórica do conceito de depressão e as incertezas de diagnóstico que o caracterizam, pois é um distúrbio com contornos suaves e sintomas heterogêneos; mas é também um sinal do peso que a indústria farmacêutica tem na promoção de um certo tipo de pesquisa científica e em delinear as mesmas categorias de diagnósticos contidos nas classificações internacionais dos transtornos mentais. 10

Fiquei imediatamente impressionada com a diferença de posição relativamente aos outros profissionais: todo mundo chama o psiquiatra de “doutor” ou “doutora”, enquanto os demais são chamados por seu próprio nome. Além disso, seus movimentos e suas ações no serviço têm um alto grau de autonomia e raramente as suas decisões são questionadas. Além disso, ele nunca esteve presente nas reuniões de equipe das quais participei. 11

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.158-173, 2013 sorriso, em voz bem baixa, numa conversa informal no corredor do ambulatório, esperando para o grupo começar. Nas regras informais de funcionamento dos grupos, até mesmo o silêncio assume um valor específico e é respeitado: especialmente no início, uma pessoa pode não se sentir confortável em lidar com alguns aspectos da sua vida na frente de estranhos. Mas depois, em geral, esse medo é substituído por um clima de reciprocidade e de cumplicidade, de modo que o grupo de psicoterapia torna-se um lugar onde não só você pode falar sobre a sua experiência, mas onde um começa a se importar com o outro. Quando eu cheguei lá, eu não queria ir, tinha uma certa relutância ...terapia em grupo, todo mundo escutando a minha historia, eu não vou! E aí foi no primeiro dia meio contra vontade, assim. E aí quando eu cheguei, eu achei – nossa – achei o máximo, né? Então toda semana eu fico esperando pra ir! Mas tem dias que não dá e aí fico meio deprimida. “Ai, não deu pra ir”. E aí, “como será que tá...”; se começa se importar, com as pessoas. Né? E aí você fica esperando também pra ter notícias: “Como será que tá a Sandra, a Cibele, como foi a semana delas...”. Mas, você vê que tem problemas muito maiores que o seu. L: Mh. E isso é importante, pra comparar? M: Isso. É. Porque você fala: “Nossa...”. Não que o meu não seja importante, pra mim ele é o pior dos problemas, mas olha o que as pessoas tem que passar, tem que enfrentar...você entendeu? Tem pessoas que você vê que as famílias não se importam muito! [...] Mas é gostoso ali também, ajuda muito. Os conselhos que ela [a psicóloga] dá. Lá é muito legal, eu adoro lá. [...] É por isso que, como te falei, a gente fica até ansiosa pra chegar lá – né? – pra saber como que tá...aquele tempinho que a gente fica aguardando lá fora. L: Eh, porque vocês também... ficam juntas em momentos difíceis... você, não sei se experimentou as crises delas também, né? M: sim...a gente tem isso. Então a gente fica até preocupada, pra saber se tá bem, como que tá. E o grupo também... te proporciona isso, né? Tá tendo notícias, tá vendo melhoras, o que é gratificante. Quando eu entrei, a Cibele tava meio numa recaída, e ela melhorou bastante... porque ela sofreu um assalto. E ninguém acreditou nela. Achava que era mentira. Os patrões, então...e isso deu uma recaída, teve que voltar tomar o remédio e tal. E aí você vê ela melhorando, ela bem, ela dando risada, é uma vitória pro grupo inteiro, eu acho. A melhora de cada uma, ali, é...é uma vitória pra o grupo inteiro. [entrevista com Marisa12, 8.02.2013]

Como foi então bem enfatizado por Marisa (e também para outras pacientes entrevistadas), é precisamente a possibilidade de confronto que é oferecida no grupo, percebido como um espaço seguro e aberto, que ajuda a lidar com seus próprios problemas. Tal como expresso na entrevista, o Todos os nomes foram alterados, de acordo com as condições de anonimato previstas pelo Comitê de Ética e pelo "Termo de consentimento", assinado pelos sujeitos envolvidos na pesquisa. 12

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fato de poderem comparar a própria experiência de sofrimento – que continua sendo percebida como o pior dos problemas – com as de outras pacientes, as ajuda a concentrarem-se em seus próprios recursos, além do acesso à assistência médica e/ou psicológica. Marisa, que é uma estudante de direito de 26 anos que mora com os pais e trabalha para continuar a sua educação, identifica, por exemplo, a importância do apoio da sua família: M: Tem pessoas que você vê que as famílias não se importam muito! E aí todo mundo me deu o maior apoio, me levava no médico; liga, pergunta… L: Aqui na família? M: Aqui na minha família. É. Quando eu não estou bem, meus primos vem, tem um que toca violão e traz o violão e faz uma farra... L: Ah que bom! M: ...é! eles fazem sempre tudo para me levantar e você vê que não é todo mundo que tem isso. E aí você se sente privilegiada, de ter uma família assim. Que dá apoio e tudo. [entrevista com Marisa, 8.02.2013]

Em alguns momentos, o vínculo que liga as mulheres participantes do grupo é o constante imaginar e incorporar uma a história da outra, assim criando uma espécie de “unidade emocional”; o que pode significar que uma crise de choro ou dificuldades para respirar podem surgir ouvindo a história da própria vizinha de cadeira: Fabiane [a psicóloga], abre a discussão perguntando para todas "Como você está?". Veronica, uma garota de cerca 25 anos, começa a falar sobre a sua situação, na qual após um período de melhor relacionamento com o marido, começou a ficar nervosa com ele, especialmente por causas banais, como a ordem das roupas penduradas para secar (meias e cuecas tem que estar emparelhadas, as camisas devem ser colocadas todas uma perto da outra) e outras tarefas domésticas. Ela está feliz porque ele está ajudando-a agora, mas gostaria que tudo fosse feito à sua maneira. Por causa disso, ela diz que se sente culpada. Enquanto ela conta tudo isso, sua voz começa a tremer e a ficar quebrada, até algumas lágrimas começam a escorrer pelo seu rosto. Fabiane tira um lenço de sua bolsa e dá-lo a ela, falando para se acalmar e explicar melhor a situação. Veronica diz que está muito frustrada por não entender o próprio comportamento, o que atribui também ao horário de verão. Além disso, ela diz que não está tomando o “remédio”(o antidepressivo), até porque o marido não quer. Fabiane convida Verônica e as outras para pensar naqueles que podem ser os diferentes “remédios da vida”. Todo mundo começa a falar, dando exemplos sobre os vários recursos que todos têm nas próprias vidas: família, amigos, atividades agradáveis, sexo ... mas a Sra. Alba - que já tinha começado a chorar durante a história de Veronica, exclamando: “Ah, é um dia daqueles” - começa a respirar com dificuldade, cada vez mais forte e, chorando, pede ajuda. Tenta beber alguns goles de água da garrafa de plástico que segura em suas mãos, mas ela não consegue. Grita "ai, ai, ai" e toca seu peito, no meio, como para indicar uma dificuldade em respirar. [diário de campo, 01.02.2013] !166


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.158-173, 2013 Quando a Sra. Alba diz que é “é um dia daqueles” parece implicar que ela já entendeu que o nível de emoção dentro do grupo naquele dia iria alcançar níveis elevados. Compreender que sua própria história, que tem causado tantos problemas e sofrimentos, pode ser útil para alguém que está passando por uma situação semelhante e, em seguida, retomá-la como exemplo, é um processo que vem sendo incentivado, considerado terapêutico do ponto de vista dos profissionais. A psicóloga Paola, que tem uma postura muito igualitária em comparação com outros terapeutas, e que raramente interfere dentro do grupo, me falou de “grupos que funcionam” ou não, exatamente a partir desta capacidade de ajuda e troca mútua. Também a antropóloga Emily Martin, na sua pesquisa sobre o transtorno bipolar, destaca alguns dos mecanismos que contribuem para a criação de um relacionamento de proximidade nos grupos de apoio que tinha observado de que participado (Martin 2007: 143-7). Em particular, de acordo com a pesquisadora, existem seis características ou funções exercidas pelos grupos: 1. 2. 3. 4. 5. 6.

As pessoas criam novas conexões sociais que perduram ao longo do tempo; Outras pessoas compartilham a própria experiência individual; Informações relevantes que podem ajudar a resolver problemas práticos são trazidas; Os membros do grupo toleram comportamentos notavelmente incomuns (até certo ponto); Os membros do grupo toleram descrições de comportamentos extremos, feitas de uma forma imperturbável; Os membros do grupo insistem em ação quando a vida ou a saúde de uma pessoa está seriamente em risco.

Tudo isso contribui para criar entre as pessoas vínculos e apoio mútuo, assim que os grupos de apoio poderiam ser definidos como “a kind of enclosed social space that allows particular forms of intimate sociality” (ibidem: 147). É claro que a experiência única e irredutível de cada encontro não pode ser reduzida a esse esquema sintético (como a própria autora nos alerta), mas é interessante observar como esses elementos se repetem em diferentes contextos, que tornam-se comparáveis entre si porque inscritos dentro do “campo psi” mais amplo. Dentro dos grupos de psicoterapia que pude observar, há de fato um jogo contínuo entre o cotidiano e as emoções; entre as narrativas e a comparação de experiências específicas e o trabalho psicológico sobre o chamado “nível interior da experiência”. In these small ways, a fabric of relatedness is created for people over time. Other people remember them; other people understand their experiences in light of life stories they have told in the past; other people have experienced something similar. (Martin 2007: 143)

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O que eu gostaria de enfatizar é que, nesse jogo (no qual as mulheres sempre escolhem o que compartilhar ou não) é criado um discurso coletivo construído sobre a base das relações do grupo. Um discurso que não é feito apenas pelas narrativas sobre a doença, mas também de microelementos da vida cotidiana que, aparentemente, nada têm a ver com a experiência da doença “em si”. Acontece, por exemplo, que se pode falar da procura ou da perda do trabalho, de como organizar uma festa de formatura, do cabeleireiro, de viajar, de como tirar carteira de motorista, de culinária e dietas... É, portanto, interessante notar que um tempo/espaço construído como um dispositivo “psi” torna-se um dos possíveis contextos e situações disponíveis para falar do cotidiano. Isso torna as reuniões dos grupos de psicoterapia semelhantes a outros momentos de intimidade ou até mesmo de sociabilidade, especialmente no cotidiano considerado tipicamente feminino: ir ao cabeleireiro, tomar café da manhã com amigas ou familiares, pegar o ônibus, ir à igreja ou participar de outros grupos. Quando passei por essas situações e contextos diferentes com algumas das mulheres integrantes dos grupos de psicoterapia, percebi como as dinâmicas internas dos grupos são fortemente influenciadas por este “compartilhamento cotidiano”. Torna-se legítimo questionar se o grupo não é, portanto, mais um espaço de comunicação, pelo que seria possível imaginar uma maneira de sair do campo estritamente psicológico e psiquiátrico, retornando de forma explícita as integrantes a sua capacidade de “agência”. Por que não fazer as reuniões no cabeleireiro, no ônibus, ou tomando um sorvete? Apesar disso, nas entrevistas, a maioria delas identifica os grupos no ambulatório como um lugar e um tempo seguro e protegido para falar sobre o seu sofrimento. Parece-me que este movimento dialógico entre a experiência do sofrimento e os relatos da vida cotidiana é o que diferencia a experiência da psicoterapia de grupo em comparação com outras situações, entre as quais existem, sem dúvida, momentos para falar sobre a dor, mas não são reconhecidos como tais. Conforme argumenta Andrew Lakoff: The psy-sciences are key sites in which selves are constituted as beings of a certain kind, where individuals come to understand the sources of their actions and adopt techniques for transforming themselves. (Lakoff 2005: 3)

A depressão na vida cotidiana: mulheres que não funcionam? Neste discurso múltiplo, heterogêneo e complexo, e neste tipo de contexto e relacionamentos, emerge finalmente o que significa ser uma mulher com um diagnóstico de depressão na vida cotidiana e nas relações com os outros. Novas necessidades surgem, como falar ou não falar, ficar na cama o dia todo, chorar. A pessoa que se reconhece como deprimida, frequentemente descreve-se como parada, alguém que tornou-se incapaz de se mover dentro do seu próprio mundo. Alguém que não é mais capaz de cuidar das tarefas domésticas, por exemplo, ou de cuidar dos outros. !168


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.158-173, 2013 Isso corresponde com as definições dadas nos inúmeros documentos publicados pela OMS sobre o assunto, nos quais a depressão é definida13 como uma condição que “impede a capacidade do indivíduo de funcionar no trabalho ou na escola ou de lidar com a vida cotidiana”, ou como “incapacidade de lidar com si e suas responsabilidades diárias”: essencialmente como uma “reduzida capacidade de funcionar normalmente”.14 Para as mulheres que frequentam os grupos do serviço ambulatorial de Araraquara, o próprio papel, as próprias responsabilidades diárias são construídas sobre o “cuidar” – seja de coisas (da casa, por exemplo) ou pessoas. Não conseguir seguir este tipo de atividade torna-se preocupação e estigma social, o que as fazem entrar em um círculo vicioso o qual parece ser ao mesmo tempo causa e efeito da doença. Em poucas palavras: se você sobrecarregar, você vai ficar doente, se você parar, isso significa que você está doente. Quando cuidar de tudo, e dar conta de tudo15 torna-se insuportável, surge aquele mal-estar que nesse contexto se traduz como depressão. Começou… Na verdade, eu sempre… eu nunca tive nada. É a minha mãe que teve problema com depressão. E aí quando eu tinha uns 14 anos eu tive uns indícios, assim, de início, mas… não… não foi pra frente. E aí o ano passado, o 2012, no comecinho do ano, meu pai quebrou o pé, teve que parar de trabalhar e como esse dia também eu tinha saído do estágio, e só a minha mãe trabalhando. E aí comecei também ter brigas constantes com meu namorado, porque eu ficava irritada, ele só queria bebidas, então… A gente começou a brigar muito. [...] A gente não tinha dinheiro, eu vi que eu não conseguia mais ajudar, porque eu não tinha mais o meu salário, e meu pai precisando de tratamento médico e… Ele é diabético, com um pé quebrado, só podia ficar deitado, precisava de fisioterapia. E eu não tinha como ajudar. Só a minha mãe se esforçando pra... pra conseguir levar a casa. E ninguém ajuda. [...] Eu me sentia como se ninguém me enxergasse…, como se eu não existisse. [...] E aí, no Carnaval, que foi em fevereiro, eu desabei. Eu fui guardando, fui guardando, tudo aquilo, e aí eu tive… Um dia que meu corpo começou a adormecer inteiro, comecei a gritar, gritar, não parava mais. E aí fui pro Hospital, tomei remédio, medicaram tudo, e aí eu comecei… [entrevista com Marisa, 8.02.2013] Além do diagnóstico em si, que é definido, por exemplo, na "Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde" (CID-10) da Organização Mundial da Saúde como: “um rebaixamento do humor, redução da energia e diminuição da atividade. Existe alteração da capacidade de experimentar o prazer, perda de interesse, diminuição da capacidade de concentração, associadas em geral à fadiga importante, mesmo após um esforço mínimo. Observam-se em geral problemas do sono e diminuição do apetite. Existe quase sempre uma diminuição da autoestima e da autoconfiança e frequentemente ideias de culpabilidade e ou de indignação, mesmo nas formas leves. O humor depressivo varia pouco de dia para dia ou segundo as circunstâncias e pode se acompanhar de sintomas ditos "somáticos", por exemplo, perda de interesse ou prazer, despertar matinal precoce, várias horas antes da hora habitual de despertar, agravamento matinal da depressão, lentidão psicomotora importante, agitação, perda de apetite, perda de peso e perda da libido. O número e a gravidade dos sintomas permitem determinar três graus de um episódio depressivo: leve, moderado e grave”. 13

Disponível em http://www.who.int/mental_health/management/depression/who_paper_depression_wfmh_2012.pdf; http://www.who.int/mental_health/management/depression/en/index.html;http://www.who.int/mental_health/ management/depression/flyer_depression_2012.pdf. 14

Expressões usadas pelas mulheres para descrever as causas dos próprios problemas, tanto nos grupos de psicoterapia como nas entrevistas. 15

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Em seguida, Marisa explica que não consegue encontrar uma única causa que pode ter provocado sua depressão, mas identifica nas relações familiares, no trabalho doméstico e nas obrigações de gênero, o contexto geral no qual as mulheres podem experimentar sofrimento e dificuldades, os quais são convertidos em termos de depressão. Eu acho que [...] por mais que a mulher tenha evoluído, agora, ela trabalha, é independente, tudo, ela sempre teve aquela... ela tem a preocupação com os filhos, com marido, com a casa, com conta, com trabalho. Então eu acho que isso sobrecarregou ainda mais ela. Ela pra buscar ser independente, isso sobrecarregou mais ela do... já com as preocupações do dia-a-dia. E o homem, não é que não se preocupa, mas ele sabe que tem a mulher pra cuidar dos filhos... geralmente, ele só fala de trabalho e da diversão com os amigos. Então não que não tenha, tem quem se preocupar, tudo, mas a mulher já pega tudo isso pra ela, essa carga. E tem uma hora que ela também não aguenta, porque é uma carga muito pesada. E os homens, hoje, são muito individualistas. Eles não chegam em casa perguntando pra esposa se precisa de alguma coisa, se ela quer que ele faz alguma coisa. E eu acho que essa solidão dentro do casamento também provoca isso. A gente vê também no grupo isso. Tem muitas mulheres casadas que são solitárias... não tem uma companhia. [entrevista com Marisa, 8.02.2013]

A relação entre o papel doméstico e de cuidado da mulher com o sofrimento que se traduz em depressão foi detectado também por uma entrevistada na pesquisa realizada pelo grupo da Tornquist: “Acho que na verdade nós mulheres… que a gente quis ter as mesmas igualdades que o homem só que a gente esqueceu que a gente além de trabalhar e tudo [...] A gente quer ter a igualdade só que a gente esqueceu que tem filhos (Amanda).” (Tornquist et al 2010: 91). A causa que Marisa e Amanda detectaram, parece estar relacionada em primeiro lugar com as condições de vida da mulher, que além de trabalhar fora de casa, continua a ser vista como a única figura que tem que lidar com as tarefas domésticas, especialmente com o cuidado das crianças. É interessante notar, como esta análise também contém uma perspectiva “histórica” sobre os direitos das mulheres: é graças às mesmas igualdades, que as mulheres tiveram acesso ao mercado de trabalho, na esfera pública, tradicionalmente reservada para o universo masculino. Mas é evidente que, se estas mesmas igualdades não são acompanhadas por uma mudança dos papéis e das expectativas sociais de gênero, cria-se o sofrimento e as dificuldades que são relatadas nas entrevistas – bem como nos grupos de psicoterapia, que não conseguem problematizar este quadro complexo. É necessário compreender como a vida das mulheres pode mudar em relação às transformações das famílias, do papel das mulheres nas famílias e dos relacionamentos dos casais. The point may be that women are expected to be experts in noticing and attending to the emotional needs of others […], not their own, which are rather objects of control or suppression because they, unlike the emotions of other family members, are defined as dangerous. (Lutz et al 1990: 82)

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.158-173, 2013 A família é muitas vezes o primeiro lugar no qual é possível detectar as mudanças na sociedade, com uma modificação profunda dos papéis e da vida cotidiana. A relação entre a prática médica, certas expectativas sociais de gênero e as experiências circunstanciais das mulheres que vivem situações complexas, é particularmente evidente na relação do cuidado relativo aos outros: “women are concerned not simply with their own bodies, but with what might be glossed as public health issues – that is, with the bodies of others” (Lock & Kaufert 1998: 19). A este propósito, Roland Littlewood (1998) sugere que algumas doenças ou distúrbios podem agir como "reguladores" sociais em um sistema de binômios opostos mas complementares. Por isso as doenças podem ser lidas como uma "solução" para as contradições sociais existentes (tais como, por exemplo, a disparidade de relacionamento homem/mulher). Em particular, a expectativa social que muitas vezes recai sobre as mulheres é a de sacrificar-se para os outros (companheiros, filhos): There is an expectation that women will emphasize nurturance and that they live through and for the others rather than for themselves. [...] Their lack of power is attributed to their greater emotionality and their inability to cope with wider social responsibilities, for dependency and passivity are expected of a women; her psychological image is of a person with a childish incapacity to govern herself and a need for male protection and direction. (Littlewood 1998: 248-249)

Littlewood argumenta que o transtorno mental pode ocorrer, nessas situações de desigualdade, como uma forma de restaurar o equilíbrio por meio de uma espécie de pedido explícito de atenção, que é socialmente aprovado porque as mulheres são consideradas mais suscetíveis a se expressarem através das emoções mais do que de outras formas.

De acordo com a análise do

pesquisador britânico, a histeria já ofereceu, no passado, uma forma de traduzir o sofrimento das mulheres em sintomas e em um diagnóstico, tornando assim mais aceitável a crise: The development from simple conversion symptoms to a recognized discrete role as a “hysteric” provided a parody of the core social values: women’s expected dependency and restricted social role. The reaction represented an exaggeration of the socially extruded (female) status. The hysteric was characteristically female, the hysterical woman being perceived as the very embodiment of perverse femininity, an inversion of dominant male behaviour. (Littlewood 1998: 250)

Em conclusão, a depressão aparece, como temos visto, como uma situação na qual o equilíbrio da pessoa e da família é perturbado; por outro lado, a forma como é concebida e pensada parece reproduzir precisamente aqueles estereótipos que estão ligados tanto aos papéis domésticos como à esfera emocional das mulheres. A mulher deprimida é uma mulher que não funciona mais para o que os outros parecem querer dela, mas, ao mesmo tempo, a sua “maneira de não funcionar” parece ser aceita culturalmente, através da imagem das mulheres como seres emocionais. Considere-se, por exemplo, as constantes referências ao corpo das mulheres como estando à mercê, a qualquer !171


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momento, do “poder” dos hormônios, que alteram o humor, o comportamento e as emoções. Apenas pensemos a “ditadura” que a TPM parece ter sobre as ações e as vidas de mulheres durante o período menstrual. Neste sentido, o poder da medicina de transformar eventos fisiológicos em doenças representa uma das mais poderosas fontes da ideologia sexista na nossa cultura. A “doencificação” desse corpo apresenta-se como fruto de uma medicalização que trata a gravidez e a menopausa como doença, transforma a menstruação em distúrbio crônico e o parto em um evento cirúrgico. (Vieira 2002: 24-25)

As emoções, portanto, são fortemente conotadas por relações de poder e expectativas sociais que recaem sobre a feminilidade que é, de fato, considerada (pelo menos no discurso ocidental dominante) como prevalentemente natural, irracional e incontrolável, e que, portanto, tem que ser controlada. Essa imagem corresponde ao que tem sido historicamente atribuído à feminilidade, especialmente no que diz respeito a divisão entre o público (masculino) e o privado (feminino). Para superar essa dicotomia, Abu-Lughod e Lutz (1990) propõem a análise das emoções como um discurso social e como prática das experiências acumuladas, recuperando a noção de habitus de Pierre Bourdieu. Em particular, Catherine Lutz, na sua análise das emoções em relação ao gênero na América, evidencia como não só essa retórica é revivida no discurso cotidiano, mas também no discurso científico, especialmente nos setores da psicologia e da psicopatologia. As emoções, diz ela, são entidades paradoxais ligadas ao estereótipo da mulher: por um lado, são vistas como um sinal de fraqueza, e por outro como uma força poderosa. Mas, como na sexualidade, analisada por Foucault, também a emotividade existe em formas consideradas “saudáveis” e “insanas” quem determina a passagem de um estado ao outro? Quem define o limite além do qual a emotividade – sem controle – se torna perigosa? A depressão poderia ser pensada como forma insana, exagerada dos mais “normais” sentimentos de tristeza ou melancolia que parecem fazer parte da natureza feminina? Depressão, finalmente, é uma “coisa de mulher”, e presta-se como uma forma de transtorno socialmente compatível e aceitável?

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Recebido em 07/03/2014 Aprovado em 18/05/2014

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¿Cómo y cuándo puede un antropólogo dejar de ser arquitecto? Encuentros y desencuentros interdisciplinares Ion Fernandéz de las Heras Licenciado em Licenciado em Arquitetura e Urbanismo Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona Universitat Politécnica de Catalunya (ETSAB-UPC)

Resumo No meio do caminho entre um ensaio bibliográfico e uma confissão, o presente artigo pretende expor algumas considerações que dizem respeito à arquitetura, e portanto, à antropologia. Procuram-se princípios de dissolução de certa barreira divisória que por muito tempo separou competências entre o arquiteto e o antropólogo; a cidade e o urbano; a forma e o conteúdo. Para tanto, serão mencionados alguns fatores problemáticos encontrados pela experiência concreta do autor, e se comentará a obra de quatro autores que desde um lado e outro do muro têm lançado linhas de encontro que implícita ou explicitamente têm tratado da desconstrução de uma figura que sempre se apresentou como dominante: o arquiteto, e seu suposto produto: a forma. Palavras-chave: Antropologia da arquitetura, forma e conteúdo, espaço, Christopher Alexander, Bruno Latour, André Scobeltzine, Alfred Gell

Abstract How and when can an anthropologist stop being an architect?Interdisciplinary encounters and discrepancies Halfway between the bibliographical essay and the confession, this article intends to present some considerations regarding architecture, and therefore, anthropology. We are seeking starting points to dissolve dividing walls that have been existing for such a long time raised between architects and anthropologist’s competences, between the city and the urban condition, between shape and content. For that purpose, it will be mentioned some problematic factors founded by author’s experience and discussed the work of four authors from both sides of the wall who have looked for meeting points that implicitly or explicitly have dealt with the deconstruction of a figure who always has been represented as dominant: the architect, and their alleged competence: form. Keywords: Anthropology of architecture, form and content, space, Christopher Alexander, Bruno Latour, André Scobeltzine, Alfred Gell.

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1.1.

La confesión de un desencuentro a modo de introducción: la forma arquitectónica

En un artículo de 1980 llamado “Como e quando pode um arquiteto virar antropólogo?” Carlos Nelson Ferreira dos Santos escribía lo siguiente en relación a su experiencia como estudiante de arquitectura: É como se você fosse andando, muito decidido, por um caminho reto e, aos poucos, fosse percebendo que ele ia se estreitando, mudando de características e virando um beco. Aí você acabava dando de cara com uma parede. As suas opções seriam: 1) ficar parado, olhando para o obstáculo sem entender nada, desesperado e desanimado; 2) - esmurrá-lo na esperança de derrubá-lo a socos; 3) - declarar que só continuaria a andar quando chegasse o dia certo em que todas as barreiras cairiam e todos os caminhos passariam a ser livres e sem empecilhos, e consolar-se com a ideia; finalmente, você poderia 4) - dar meia-volta, olhar na direção oposta e pensar - aqui começa tudo de novo. (Ferreira dos Santos 1980: 37)

No fue necesario pasar de la primera clase a la que acudí en la Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona para que se nos presentase uno de los mapas historiográficos a los que con más frecuencia recurrieron diferentes profesores a lo largo de toda la carrera: Hefesto, Imhotep, Dédalo, Rómulo, Caín; la primera pirámide, el primer palacio, la primera ciudad o la primera mujer, un esquema en el que todo parecía remitir a lo mismo: quizás no eres dios (el recurso de Jehová como arquitecto del universo parece demasiado usado), pero sí su hermano gemelo.1 Cierta suculenta idea inicial nos dibujaba a mí y a otros jóvenes compañeros de aula un futuro paisaje, relativo a una identidad concreta, en el que seriamos detentores de un poder de acción y afección que al parecer nadie más tendría; la cantidad de deseo que la palabra Arquitecto era capaz de movilizar en nosotros liberaba un positivismo tal que nos hacía olvidar las penurias de una graduación durísima que parecía hacer más por seleccionar que por enseñar. A su vez, seguir el camino propuesto requería aceptar un cuerpo teórico con pretensiones científicas que imponía esquematismos a nivel perceptivo (constantemente se apelaba a “un modo diferente de mirar”) que solicitaban el abandono de aquellas “racionalidades” y “normas operativas de las actividades concretas de la vida cotidiana” (Garfinkel 2006: 311) relacionadas a otros modelos o definiciones espaciales. Fue quizás a causa de esta última exigencia que la frustración vino casi de improvisto, al descubrir que, como persona, llegaba a sentir verdadero desagrado y odio por formas a las que como

Los Evangelios apócrifos hablan de un Apóstol Tomás, patrón de los arquitectos y hermano gemelo de Jesús, que una vez desterrado llegó al reino de Gundosforo, en la India, donde construyó castillos en el aire (Azara 2005). 1

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arquitecto estaba direccionado a rendir culto;2 en ese sentido, mi incapacidad por asimilar y convivir con la encumbrada obra de figuras como Ildefons Cerdà, urbanista que proyectó en 1859 el ensanche Barcelonés (L’Eixample) por el que como ciudadano yo estaba obligado a transitar y habitar, llegó a ser motivo de serias crisis personales que pusieron en duda la continuidad de mis estudios. Del mismo modo, y a partir del contacto con movimientos sociales y vecinales, reconocer que mi papel en la sociedad no se enmarcaba en ese punto en el que sería el detentor de la última palabra en términos espaciales me dirigía directamente hacia el choque con ese muro, constituido por cierta contradicción que revelaba en lo popular, lo lego, lo inconsciente y lo feo (término prohibido en el raciocinio arquitectónico) un punto de apoyo prometedor, pero inaceptable, para la compresión y práctica de algo definible como Arquitectura. Como vía de escape de ese hacer-y-pensar basado en modelos parecían insinuarse las áreas más humanísticas; “teoría”, “historia” y “critica” de la arquitectura son palabras corrientes (e incluso fundamentales) en las escuelas de arquitectura. Sin embargo, al acudir a las asignaturas que se designaban con tales nombres, lejos de ofrecer alternativas a ese proceder que a cada día estrechaba más la posibilidad de reconciliar mi condición, el desencuentro se acentuaba al crear apoyos en metodologías que redescubrían una y otra vez los mismos conceptos en lugares desconocidos, como si de nuevas conquistas se tratase: en esta ocasión los nombres Vitrubio, Brunelleschi, Alberti, Miguel Ángel o Bramante el equivalente estructural de Hefesto, Imhotep, Dédalo, Rómulo o Caín. La percepción de un fuego que devora un mar colocando madera en su interior siempre me pareció una metáfora de utilidad para describir semejante proceso; cabe decir que el mismo incendio que me ahogaba era para otros la consolidación de una identidad que cuanto más absoluta y amplia devenía más satisfactoria. Quizás sea por ello que la herramienta privilegiada en la producción de enunciados arquitectónicos haya sido desde el renacimiento, y aún hoy, cierto modo de producir historia,3 cuyo sentido parece residir en aquello que Michel Foucault llamó de “función genealógica del relato Resultaba imposible escapar de la contradicción partiendo de que como arquitecto (o estudiante de arquitectura) adoptaba, en mi práctica, un modelo de teorización científica que establecía como premisa la adaptabilidad de “personas ideales” a mi propuesta espacial. Lo cierto es que, como constató Harold Garfinkel, “las personas concretas no se ajustan, o en efecto apenas se ajustan, al modelo, incluso en el caso de que esas personas sean científicas” (Garfinkel 2006:315). 2

Una vez “superada” cierta etapa en la que los tratados de arquitectura mezclaban sin límites construcción, ingeniería bélica, pintura, religión, lenguaje, zoología o antropometría (entre otros temas), los grandes teóricos de la Arquitectura pasaron a recurrir al rigor histórico para posibilitar la “reinvenção da tradição” (Sahlins 2004: 5) que llevaría al renacimiento y a la modernidad; el escrito sobre arquitectura de más antigüedad, el de Vitrubio, pasó a ser así motivo de constantes reinterpretaciones que reinauguraban lo nuevo una y otra vez como algo que siempre hubiera estado ahí. Podría decirse que este proceso culmina en lo que Josep Maria Montaner llama de “historiografía operativa del movimiento moderno” (Montaner 2007: 34), que plagaría el siglo XX de intentos por ubicar los fundamentos históricos de un movimiento mitificado (el iniciado por Le Corbusier y llamado de Moderno) que explicitaba haber roto por completo precisamente con el continuismo histórico de la arquitectura. A este respecto parece indispensable ayudarse de la obra de Manfredo Tafuri (1976), quien dedicaría la mayor parte de sus estudios al desenmascaramiento de determinados ejercicios ideológicos y de poder que la historiografía de la arquitectura llevó y aún lleva a cabo. 3

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 histórico” (Foucault 1995: 60) y que consiste en la legitimación del presente desde la constitución de un pasado heroico o desde la determinación y regulación de las lecturas posibles de ese mismo pasado. Fue a partir de la constatación de este hecho que acabé por reconocer en mi propia mirada la reproducción de semejante vicio que, al igual que lo “histórico”, tomaba lo “antropológico” bajo un método análogo que buscaba en los mitos de las diversas culturas más fundamentos de un mismo pensamiento arquitectónico moderno y occidental. Este hecho no parece una casualidad si consideramos que por parte de mis profesores era casi siempre el autor Mircea Eliade el escogido para acompañar la palabra “antropología”. Pero, “¿por qué tanta confusión?”, diría el arquitecto. Después de todo, según dicen, la práctica de una profesión como la arquitectura “no se basa en toda esa charlatanería”, sino que consiste en “actuar”, “proyectar espacios”, “crear emociones”, “embellecer la vida” o incluso “ayudar a las personas”; “hacer edificios” es “dar forma al mundo” y “posibilitar nuevos mundos”, nunca lo contrario. En ese sentido, “¿qué mal hacemos?” Al parecer, la participación de la arquitectura como un engranaje fundamental de la rueda especulativa del capital y de los mecanismos de poder sería un efecto secundario y sólo a veces indeseable de un procedimiento cuya esencia es contribuir a la verdad, el bien y lo bello.4 A pesar de la ironía, la unidireccionalidad del pensamiento que intenta describirse aquí parte de un endiosamiento tal que ni siquiera atribuye una interioridad a los individuos (humanos) programados para habitar el espacio, si bien trabaja sobre la base de un cuerpo social reificado que interacciona con la obra arquitectónica de un modo más mecánico que activo o agencial; “Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma ‘realidade’ que inventamos sozinhos, negando-lhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós” (Wagner 2012: 68). El arquitecto-dios se insinúa dentro de una comunidad de alquimistas, únicos parcialmente capacitados para comprender la verdad que contiene la obra, a su vez concebida como artilugio hermético;5 no son de extrañar las confluencias históricas en el desarrollo de las teorías herméticas y de la arquitectura (que van más allá de la francmasonería). Asimismo, gracias a Umberto Eco sabemos que de la percepción hermética surge Cómo no experimentar una sensación de déjà-vu? Sujetos humanos dotados de una interioridad racional y una conciencia moral, que reconocen el principio esencial de la continuidad física y la interdependencia material de las entidades del mundo, se asignan la misión de preservar esa continuidad y esa interdependencia, a menudo contra sus congéneres, y lo hacen en el interés superior de todos aquellos que son los únicos capaces de discernir y representar. Esta podría ser una buena definición de la ontología naturalista en sus consecuencias prácticas positivas” (Descola 2012: 296). 4

Un enunciado típico en cualquier clase de diseño arquitectónico establece que dos proyectos arquitectónicos diametralmente opuestos y diseñados para un mismo enclave pueden ser igual de apropiados. Respecto al hermetismo, Umberto Eco comenta que este “busca una verdad que no conoce, y posee solo libros. Por ello imagina, o espera, que cada libro contenga un destello de la verdad, y que todos los destellos se confirmen entre sí. (…) Muchas cosas pueden ser verdad en el mismo momento, aunque se contradigan entre sí” (Eco 2013: 64). 5

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precisamente la idea gnóstica del mundo como error, derivada de la idea de no poder aprehender la totalidad de la verdad del mismo, y desemboca en el “desprecio aristocrático hacia la masa” (Eco 2013: 71). Después de todo, el arquitecto dice dedicarse a la forma, y la “masa” no deja de ser aquello que toma forma al introducirse en el molde.

1.2.

La expulsión del arquitecto: el contenido social

Podría resultar algo pretencioso dejar la descripción que hasta el momento nos ocupa en este punto; es comprensible que en una escuela de arquitectura existen encuentros con la antropología más allá de Mircea Eliade, aunque estos no sean de gran popularidad. Concretamente en Barcelona, debido en parte a la fuerte presencia de Manuel Delgado, llegó a ser común, y aún es, cierto análisis de la ciudad que dialoga con determinadas líneas de la geografía humana y la antropología urbana y que, sin embargo, parte de un principio dicotómico sobre las relaciones en el entorno urbano que de algún modo recuerda a la escisión forma/contenido y naturaleza/cultura: La manera de formular esa apreciación es deudora de la fundamental distinción entre la ciudad y lo urbano que propusiera Henri Lefebvre. La ciudad es un sitio, una gran parcela en que se levanta una cantidad considerable de construcciones, encontramos desplegándose un conjunto complejo de infraestructuras y vive una población más bien numerosa, la mayoría de cuyos componentes no suelen conocerse entre sí. Lo urbano es otra cosa distinta. No es la ciudad, sino las prácticas que no dejan de recorrerla y de llenarla de recorridos; la obra perpetua de los habitantes, a su vez móviles y movilizados por y para esa obra. (Delgado 2007: 11)

Teniendo en cuenta el acumulo de conflictos que me acompañaban en el estudio de la arquitectura, la divisoria aquí presentada resultó ser gratificante y satisfactoria desde una de mis condiciones; capacitado ya para incorporar un contenido social variable a una forma dada, conseguía entenderme por fin como un habitante con permiso para odiar determinadas arquitecturas. Por otro lado, a medida que me empoderaba como usuario, mi segunda condición, la de arquitecto, se adentraba en la sombra de una vergüenza cada vez mayor, que dejaba la posibilidad de ejercer como tal a la espera de que “chegasse o dia certo em que todas as barreiras cairiam” (Ferreira dos Santos 1980: 37). Y es que, siguiendo a Lefebvre, es necesario situar el origen de la dicotomía Ciudad-Urbano en el intento de este por espacializar el análisis de las relaciones productivas en clave Marxista, que tiene como fundamento una concepción evolutiva de las mismas: una sociedad agraria da paso a otra industrial y ésta a su vez a otra urbana (continuando con la tesis especulativa de una urbanización total6). Del mismo modo, Lefebvre parte de una fase histórica que ha transformado la ciudad en 6

Precisamente este principio organiza lo expuesto por Lefebvre en “la revolución urbana” (2002).

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 producto (la sociedad urbana), en el momento en el que esta “deja de ser recipiente, receptáculo pasivo de productos y de la producción” y pasa a formar parte “de los medios de producción y dispositivos de explotación del trabajo social” (Lefebvre 1969: 166). Sin embargo, la diferencia entre producto y obra persiste. Al sentido de la producción de productos (del dominio científico y técnico de la naturaleza material) deberá añadirse el sentido de la obra, de la apropiación (del tiempo, del espacio, del cuerpo, del deseo) para, acto seguido, predominar. Y ello dentro y por obra de la sociedad urbana que comienza. Pues, en efecto, la clase obrera no posee espontáneamente el sentido de la obra. Este sentido está atrofiado. Han desaparecido casi, junto con el artesanado, los oficios, y la “calidad”. (Lefebvre 1969: 168) La apropiación en estos términos se plantea como el mecanismo de desalienación de la ciudad, posibilidad de recuperación de esta como “obra de arte” (Lefebvre 2008: 82), es decir, como “valor de uso”.7 No hace falta comentar lo beneficioso que fue en su momento que Lefebvre introdujese este principio dialectico de “apropiación” para reformular la ciudad (y la arquitectura) en un encuentro social. Es precisamente este punto el que favoreció la proliferación de estudios antropológicos como los de Michel de Certeau, Carlos Nelson Ferreira dos Santos en Brasil o Manuel Delgado en España, que pondrían el acento en los cotidianos y en las luchas diarias de los movimientos sociales urbanos. Sin embargo, se debe añadir que esto viene acompañado de ciertos inconvenientes. En el surgimiento de las nuevas dicotomías (ciudad/urbano y producto/obra), la ciudad continúa constituyéndose como significante; un soporte material cuya constitución queda en manos de la mecánica productiva del sistema capitalista, lo cual lleva a la incorporación inmediata del arquitecto-productor al grupo de los titiriteros que desde la sombra manejan los hilos.8 Un (por definirlo de algún modo) “mal” arquitecto queda expulsado así del cuerpo social, para ser reintroducido en el conjunto de los medios de producción. No es de extrañar que sea precisamente Lefebvre uno de los más atrevidos críticos de los procedimientos del urbanismo y la arquitectura; su análisis inaugura una (muy razonable) difamación del arquitecto que sacará a la luz algunas de las pretensiones más oscuras de un proceder racionalista utópico, totalizador e higienista. En ese sentido, su exclamación tendrá eco en un sinfín de críticas posteriores, pero difícilmente alguna de estas llegará a la conclusión de una abolición sistemática, y aún menos epistemológica, de la disciplina arquitectónica o urbanística:

La ciudad antigua se comprende así como deseable e incluso mejor: “Em consequência, na cidade antiga, o uso e o valor de uso ainda definem o emprego do tempo. Nas formas tradicionais da cidade, a troca e o valor de troca ainda não romperam todas as barreiras, nem se apoderaram de todas as modalidades do uso. É nesse sentido que as cidades antigas são e permanecem obras, e não produtos” (Lefebvre 2008: 83). 7

La metáfora del titiritero se la debemos a los comentarios de Bruno Latour respecto a ciertos vicios deterministas en la sociología crítica (Latour 2008: 91 y 306). 8

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En cualquier caso, tal denuncia [al arquitecto] no debería interpretarse como una descalificación de la proyección urbana en sí misma. No se cuestiona que una ciudad es una entidad que ha de ser administrada y planificada. Se supone que esa acción centralizadora deberá garantizar el bienestar de los habitantes, satisfaciendo sus necesidades -infraestructuras, servicios, vivienda- y protegiéndoles de los abusos a que inevitablemente tiende un sistema que codicia la ciudad y actúa para verla convertida en beneficios. Así pues, no se cuestiona aquí la necesidad y hasta la urgencia de planificar las ciudades. Las ciudades pueden y deben ser planificadas. Lo urbano, no. Lo urbano es lo que no puede ser planificado en una ciudad, ni se deja. (Delgado 2007: 18)

La nostalgia por una ciudad-monumento (Lefebvre 2008: 82) caracterizada por un “valor de uso” indica la confianza en un “buen” arquitecto (ya perdido) que sí formaba parte del cuerpo social. Por otro lado, la apropiación propuesta por Lefebvre (que en boca de Certeau son tácticas de escamoteo, de tergiversación o de interpretación) sólo tiene sentido una vez aceptado que el intérprete es ya un pequeño autor.9 La ciudad-producto puede ser obra porque el que la habita es un “buen” meta-arquitecto; este se propone como nuevo sujeto de enunciación, pero difícilmente podrá ir más allá del propio texto: la ciudad.10 Paradójicamente, más que un verdadero cambio derivado de la lógica productiva (con el paso de la ciudad industrial a la ciudad urbana), es propiamente ese análisis histórico estructural de la ciudad como producto (o producción) el que quiere romper con la continuidad social que la constituye. Olvidando en muchas ocasiones el fundamento de su tesis, la inercia en el uso de los conceptos de Lefebvre continúa fomentando la escisión de las relaciones entre arquitectura y antropología; los acontecimientos urbanos se someten a una estratificación, imposibilitando el encuentro en un mismo cuerpo entre el arquitecto (antes un dios, ahora parte de los medios de producción) y el usuario o la ciudad y lo urbano. Partiendo de semejante paisaje epistemológico mi encuentro con la antropología no podía ser sino conflictivo y al mismo tiempo revelador; un “olhar na direção oposta e pensar” (Ferreira dos Santos 1980: 37) que inevitablemente conllevaría un proceso de desterritorialización de mi particular condición de arquitecto vendría acompañada de un sinfín de partículas conceptuales (a partir de experiencias concretas y referencias bibliográficas) que precederían o compondrían simultáneamente En “la invención del cotidiano” (Certeau 2000) las analogías entre ciudad y texto o entre el interprete y el paseante van mucho más allá de la insinuación. Por otro lado, a pesar de que Michel de Certeau habla de un proceso de invención o creación, tales términos no tienen el mismo sentido y profundidad que con Roy Wagner (Wagner 2012), si bien continúan aludiendo a ese esquema de interpretabilidad que se acerca más a la deconstrucción posmoderna que a la construcción inmanentista: “A descoberta por muitos ecologistas sensíveis e inteligentes de que o homem ajuda a moldar seu ambiente, bem como a consciência de muitos antropólogos culturais igualmente sofisticados de que o homem ‘interpreta’ ou ‘compreende’ seu entorno por intermédio de suas próprias categorias, está a um pequeno passo da conclusão de que o homem cria suas realidades” (Wagner 2012: 344). 9

Ante tal condición Julien Greimas nos avisaría exclamando que “fuera del texto no hay salvación. Es decir, que todo eso que podemos extrapolar viene del texto. Es por eso que yo insisto sobre la enunciación enunciada, ya existente. No se puede hablar de cosas sino a partir del texto, cosas que se descubren en el texto” (Greimas 1996: 22). 10

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 cualquier reterritorialización en algo que pudiese parecerse a aquello que Ferreira dos Santos llamaba de “antropoteto” (Ferreira dos Santos 1980: 44); mezcla de antropólogo y arquitecto. Es por ello que tras esta larga introducción pretende trazarse un camino incierto, más parecido al rastro de una fuga que al camino que lleva a una cumbre; se quiere hacer un comentario sobre cuatro autores, dos arquitectos y dos antropólogos, no tanto desde un análisis general de la obra de cada uno como desde una rápida mirada que lleva a un aviso sobre su utilidad para un encuentro entre lo arquitectónico y lo antropológico, entre la forma y el contenido.

2. Reencontrar al arquitecto: Christopher Alexander y Bruno Latour Con la incorporación de un análisis marxista cada vez más sofisticado en la teorización de la arquitectura en los años 60 (bajo la influencia de autores como Antonio Gramsci, Louis Althusser y Pierre Bourdieu), algunos arquitectos comenzaron a poner en crisis el signo que los representaba al señalar cómo su papel se desarrollaba en un esquema hegemónico cuya función es la racionalización del proceso constructivo y la reproducción de las relaciones de producción.11 Si en los años 50 era aceptado que la arquitectura podía politizarse atribuyéndole un contenido simbólico o estético que valorizase lo social,12 es a partir de ese giro analítico de los medios de producción que empieza a pensarse en un cambio efectivo del proceso de construcción, haciendo aflorar las iniciativas que parten de la democratización del mismo a través del apoyo mutuo y la cooperación. Los planteamientos en la época pasan por términos como la redistribución del poder y la desalienación, la potencialización de sistemas autogestionados, la sistematización de la autoconstrucción desde la tecnología y los prefabricados e incluso por la búsqueda de pautas científicas y lógicas en los procesos participativos.13 Si bien prácticamente todos estos posicionamientos cuestionaban en mayor o menor grado la función del arquitecto, será Christopher Alexander el único que desde cierto contacto con la antropología se dedique simultáneamente a una práctica arquitectónica participativa y a la conceptualización de parámetros que permitiesen convencionalizar (más allá de los principios de la estricta concienciación política como vía emancipadora) la liberación del proceso creativo en términos espaciales a través del llamado “lenguaje de patrones”.

En este sentido el ya citado Manfredo Tafuri será uno de los teóricos más influyentes a nivel internacional. En Brasil destaca Sergio Ferro y su libro “O canteiro e o desenho” (1982). 11

Como ejemplo, Vilanova Artigas proponía “uma reeducação moral da burguesia nacional. Ao invés do palacete decorado onde o burguês tenta preservar sua “marca pessoal” através de “veludos e pelúcias, que guardam emblematicamente a marca de qualquer contato físico”, acumulando objetos como um “novo tipo de colecionador”, Artigas projeta espaços de uma ascese protestante, onde até a mobília é feita de concreto” (Arantes 2002: 16). 12

Giancarlo De Carlo, John F.C. Turner, Colin Ward, Walter Segal y Henry Sanoff son algunos de los autores que tratarían cada uno de estos temas. 13

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A lo largo de los años 70, insatisfecho por las limitaciones de los estudios del espacio arquitectónico por un lado y de los grupos sociales por otro, Alexander se lanza a la búsqueda de un principio de análisis que más que relacionar conceptualmente términos extremos (como lo hacía la dialéctica de la apropiación descrita anteriormente) procure constituir específicamente “toda verdadera relación como teniendo rango de ser”14 (Simondon 2009: 37). La acción y el espacio son indivisibles. La acción se apoya en el tipo de espacio. El espacio apoya este tipo de acción. Ambos forman una unidad, un patrón de acontecimientos. Esto no significa que el espacio cree acontecimientos ni que los provoque. Significa, sencillamente, que un patrón de acontecimientos no puede separarse del espacio de su acontecer. (Alexander 1981: 69) Ese “patrón de acontecimientos” se presenta como una especie de agenciamiento, un encuentro de diferentes elementos en devenir cuyo límite es el propio acontecimiento;15 un encuentro en el que su consistencia, su relativa estabilidad y por lo tanto su carácter de patrón (en el sentido convencional de la palabra), se da por su insistencia, es decir, por repetición en un constante proceso de actualización: Si considero mi vida francamente, veo que está gobernada por un mundo muy reducido de patrones de acontecimientos en los que participo repetidas veces. Estar en la cama, ducharme, desayunar en la concina, sentarme a escribir en mi estudio, etc. (…) nuestro mundo tiene una estructura en el simple hecho de que ciertos patrones de acontecimientos –tanto humanos como no humanos- se repiten y explican. (Alexander 1981: 68)

A pesar de que, para facilitar ciertas explicaciones, Alexander recurre en ocasiones a la categorización de “patrones de acontecimientos” y “patrones de espacio”16, el concepto fundamental de su planteamiento es propiamente el “patrón” o “patrón total” (Alexander 1981: 85): “son los átomos y las moléculas con los que se levantan un edificio o una ciudad” (Alexander 1981: 73), o el mundo, a fin de cuentas. De este modo, no parece haber problema en identificar estas “partículas”, los patrones, No se ocultará que en el trabajo de Christopher Alexander pueden encontrarse ciertas analogías conceptuales con los principios de Gilbert Simondon en torno a la individuación. Si bien es improbable que tuviese lugar un verdadero encuentro entre estos dos autores (desde luego no hay referencias mutuas), la formación de matemático (además de arquitecto) de Alexander y la constante atención de Simondon sobre la física, matemáticas, etc. permitirían especular sobre referentes comunes. 14

Considerando que “el así llamado “elemento” por sí solo es un mito y, por cierto, no sólo está inserto en un patrón de relaciones, sino que es en sí mismo un patrón de relaciones y nada más que un patrón de relaciones” (Alexander 1981: 84). 15

Donde el “patrón de espacio” parece hacer referencia a una relación interna aparentemente más morfológica y estática (Alexander 1981: 84), en varias ocasiones se confunden, si bien todo acaba por formar parte del acontecimiento: “Estos patrones de acontecimientos que crean el carácter de un lugar no son, necesariamente, acontecimientos humanos. El brillo del sol en el alféizar de la ventana, el viento que sopla en la hierba, también son acontecimientos. (…) Cualquier combinación de acontecimientos que tengan relación con nuestra vida – una influencia física sobre nosotros- afecta nuestra vida” (Alexander 1981: 65). Más adelante se hará patente cómo existe también afinidad entre ese “patrón de espacio” y la relación agencial tipo “Index-A→Index-P” en los estudios de Alfred Gell. 16

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 como grados de realidad preindividual (anteriores a la individuación) que constituyen compuestos aparentemente unitarios, los espacios en devenir. Los diferentes espacios son conjuntos individuados (y en perpetua individuación), son, como diría Alexander, patrones de patrones. El espacio no es un “ser” en cuanto “unidad de identidad, que es la del estado estable en el cual ninguna transformación es posible” (Simondon 2009: 36) sino en cuanto sistema o conjunción de esas partículas preindividuales (a su vez en devenir) que genera una “resolución metaestable” caracterizada por ser “más que unidad y más que identidad” (Simondon 2009: 28). “Porque, aunque cada patrón está aparentemente compuesto por cosas más pequeñas que parecen partes, cuando las estudiamos más atentamente vemos, por supuesto, que estas aparentes “partes” son también patrones” (Alexander 1981: 85). En definitiva, comprender el espacio es comprender también la vida desde los acontecimientos, “dado que el espacio está compuesto por estos elementos vivientes, por estos patrones definidos de acontecimientos en el espacio” (Alexander 1981: 71). Así, la ciudad, el edificio, la parte del mismo o el mueble dejan de ser cosas o substancias en sí, para existir en tanto fuerzas que se afirman “ejerciéndose sobre otra cosa (poder de afectar) o bien captando otra cosa (poder de ser afectado)” (Zourabichvilli 2004: 129). Observamos que lo que a primera vista parece la geometría muerta que denominamos edificio o ciudad es, de hecho, algo vivo, un sistema viviente, una colección de patrones interactuantes y adyacentes de acontecimientos en el espacio, cada uno de los cuales repite una y otra vez ciertos acontecimientos, aunque siempre anclado por su lugar en el espacio. (Alexander 1981: 71) Es desde aquí como, acompañando a esa “filosofía de la inmanencia que enuncia la perpetua “desfundación” del presente” (Zourabichvili 2004: 99), extraemos que, al igual que el sujeto Deleuziano,17 una arquitectura-identidad sólo podría ser “efecto y no causa, residuo y no origen” (Zourabichvili 2004: 141) de un proceder que la supera: la propia vida. El único hacer arquitectónico ideal de una propuesta semejante debería consistir propiamente en la participación del individuo en el devenir, y en cierto modo el interés de Alexander pasa por una generalización absoluta del hacer arquitectura que es a su vez una democratización absoluta del proceder de la arquitectura hegemónica vigente. Al contrario que con Lefebvre, en esta lectura efectivamente inmanentista del espacio, el principio implícito desde el que se desarrolla la tesis establece que todos somos arquitectos y que todo es ya de algún modo arquitectura; el arquitecto como ente escindido deja de existir. No es el objetivo alargar más la explicación, pero es necesario advertir que la propuesta de Alexander no acaba aquí, y continúa con la sistematización de un modo de clasificar los patrones a François Zourabichvili lo expresa del siguiente modo: “Yo siento que devengo otro: el sujeto está siempre en el pasado, se identifica con lo que él cesa de ser al devenir otro; y, antes que “Yo soy”, el cogito se enuncia “Yo era”: otra manera de decir “Yo es Otro” (Zourabichvili 2004: 141). 17

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través de un lenguaje. Éste sale a la luz a partir de la constatación de que los patrones, en tanto que son repeticiones de acontecimientos y que al hacerlo establecen relaciones específicas entre unos y otros que posibilitan la aparición de otros nuevos, son propiamente “cultura”. En esta ocasión, casi de la mano de Roy Wagner, percibimos que los patrones son también esquematismos de acción convencionalizados que pueden ser usados de modos no convencionales en actos de invención: “Los patrones del mundo se limitan a existir. Pero los mismos patrones en nuestras mentes son dinámicos. Tienen fuerza. Son generativos. Nos dicen qué hacer, cómo los generaremos o podremos generarlos; también nos dicen que bajo ciertas circunstancias debemos crearlos.” (Alexander 1981: 152) Con Alexander el muro se derrumba, ya no sabemos dónde acaba la arquitectura y empieza la antropología; deja de resultar paradójico que precisamente “la invención de la cultura” (Wagner 2012) sea uno de los mejores libros sobre arquitectura que se hayan escrito jamás. Por otro lado aparentemente muy distante, es posible encontrar como desde Bruno Latour parece trazarse un camino a veces similar al tomado por Christopher Alexander, pero cuyo sentido es exactamente inverso. De hecho, cualquier arquitecto que quiera iniciarse en la lectura de Latour puede empezar intercambiando en sus escritos las palabras relativas a ciencia y modernidad por las relativas a arquitectura para inmediatamente descubrir que si con Alexander “todos somos arquitectos”, con Latour “nunca fuimos Arquitectos”18, lo cual viene a ser parecido. Sin ignorar la contribución que sus trabajos dedicados a la iconoclastia o al fetiche suponen para la arquitectura, resulta en este momento de especial interés analizar brevemente algunas de sus investigaciones más específicamente dirigidas al estudio antropológico de la ciencia. Libros como “La vida de laboratorio” (Latour; Woolgar 1997) o “Ciencia en acción” (Latour 2011) están dirigidos al seguimiento de científicos e ingenieros, pero no es necesario saltar ningún gran abismo para reconocer que en sus páginas se encuentran algunas descripciones y principios también validos para los arquitectos. Se trata de que, si lo que Latour definía como cultura es el “conjunto de elementos que se mostra interligado quando, e somente quando, tentamos refutar uma alegação ou abalar uma associação” (Latour 2011: 313), en su reconstrucción etnográfica (más claramente estructurada en “Ciencia en acción”) se pone a prueba la producción de las llamadas “cajas negras”19 al explicar con detalle el modo en que estas son constituidas por los científicos como seres no problemáticos en un proceso de transducción de certidumbres que permite el fortalecimiento de un tejido armado (un Espero que el guiño a “nunca fuimos modernos” (Latour 2007) no sea de mal gusto. De cualquier modo es necesario matizar que este “arquitecto” (minúsculas) de Alexander no es el mismo que el “Arquitecto” (mayúsculas) de Latour. A este respecto sirve la diferencia establecida por Lina Bo Bardi en su atrevido artículo de 1958, “arquitetura ou Arquitetura” (Bardi 2009: 90-93). 18

Según Latour, es un término usado en cibernética “sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, a não ser o que nela entra e o que dela sai” (Latour 2011: 4) . 19

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 colectivo) que mezcla experimentos, artículos, profesionales, ratones, máquinas y enunciados. Una cultura científica, descrita en términos más procesuales que sistémicos e igualmente caracterizada por mecanismos concretos de invención y convencionalización, que no deja de ser una cultura. Y es que, en cierto modo Latour verifica algunas intuiciones y expande algunas intenciones a nivel metodológico que ya se encontraban en el trabajo de Julien Greimas en relación al análisis del discurso científico, que, si bien este le atribuía ciertas diferencias, no dejaba de ser un discurso (Greimas 1980: 15). Del mismo modo, como Albena Yaneva (2009) ya ha demostrado, la posibilidad de llevar a cabo estudios similares con respecto a los arquitectos nos lleva a conclusiones paralelas e incluso interligadas a las de los estudios de la ciencia: la puerta que nos permite hacer del mundo de la arquitectura un objeto de análisis válido para llevar a cabo estudios sociales de mayor amplitud está abierta. Es más, ¿es posible llevar a cabo una efectiva epistemología del espacio occidental sin ayudarse de una antropología de los arquitectos? O en un camino inverso, ¿Puede pensarse una antropología de los arquitectos (o de los modernos) que olvide que estos forman parte de determinados espacios? Aunque resulte difícil, pueden concebirse, incluso en occidente, racionalizaciones espaciales propias y ajenas a las imposiciones conceptuales de tales arquitectos modernos. Sin embargo, parece poco creíble afirmar que un espacio pueda ser esa “caja negra” no problemática en la que el estudio antropológico pueda llevarse a cabo eludiendo las interacciones que de algún modo u otro provengan o deriven de una estratificación arquitectónica: ¿Acaso todo experimento no tiene lugar en un laboratorio que, por muy improvisado que sea, es a su vez una arquitectura? En respuesta a esta última cuestión podríamos mencionar lo poco que se ha tenido en cuenta que el estudio pionero “la vida de laboratorio” (Latour; Woolgar 1997) tuvo lugar precisamente en el Instituto Salk, posiblemente el laboratorio (como arquitectura) más conocido del mundo y una de las construcciones más estudiadas y valoradas por la historiografía de la arquitectura del siglo XX. Resulta difícil admitir que la actancia del edificio entre los diferentes componentes de la etnografía de Latour pueda limitarse al siguiente comentario (el único en todo el estudio): Na esplanada de mármore vazia, desenhada pelo arquiteto Kahn, encontrei-me diante de uma mistura de templo grego e mausoléu. Apresentado a Jonas Salk, vi-me diante de um sábio. Disseram-me que para todos os norte-americanos médios este sábio, o homem da vacina contra a poliomielite, é a própria imagem do saber - como Pasteur, o homem da raiva, na França. De que me fala Jonas? De Picasso e da mulher do Minotauro que ele atualmente abriga em seu labirinto. (Latour; Woolgar 1997: 13)

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Fig.1: “Planta do laboratorio” (Latour; Woolgar 1997: 38).

Precisamente una puesta en práctica de los exhaustivos mecanismos de seguimiento propuestos por Latour20 en clave arquitectónica nos ayudaría a percibir no solo consideraciones formales o iconológicas (que esa mezcla de templo griego y mausoleo se debe a un intento de reinvención de la monumentalidad), sino un sinfín de relaciones de implicación que ni siquiera los científicos más artísticamente insensibles podrían pasar por alto, como la inadecuada disposición de los tabiques para la organización del laboratorio21 o las hordas de turistas y estudiantes de arquitectura que visitan cada año sus instalaciones.22 Así, no habría más remedio que aceptar la agencia indirecta (presente entre las motivaciones de los visitantes, y quién sabe si también de los científicos) de la imagen del laboratorio en forma de arquitectura-identidad (estratificación del conjunto espacial desde cierta perspectiva típica de arquitectos). Acudiendo, entonces, a la formulación enunciativa del arquitecto, Louis I. Kahn, descubriríamos a su vez que la generatriz del proyecto (como arquitectura-identidad) establecería relaciones mucho más potentes (y explicitas) con Pablo Picasso, la Villa Adriana y la arquitectura de las comunidades monacales medievales que con los científicos que allí trabajarían. Y saldría a la luz, como colofón, que esa misma generatriz proyectual, aún remitiendo a elementos de la lejana Italia, Francia o Grecia, surgiría a raíz de un bastante Como ejemplo: “Se rastrea un actor-red cuando en el curso de una investigación se toma la decisión de reemplazar actores de cualquier tamaño por sitios locales y relacionados, en vez de clasificarlos como micro y macro” (Latour 2008: 258). 20

A este respecto Latour se pregunta “para que servem essas divis6rias, esses tabiques?“ (Latour; Woolgar 1997: 35) y acaba por supeditar la cuestión a las complejas necesidades funcionales de laboratorio, cuando es más que probable que su razón de ser derive más de determinaciones estructurales (por el soporte del edificio) o de la constante tendencia por parte del arquitecto, Louis I. Kahn, a un neoplatonismo adaptativo que se traduciría en planos de simetría y en la estricta regularidad de la planta (Latour; Woolgar 1997: 38). Lamentablemente no podemos garantizarlo, debido a que Latour omite información respecto a la situación exacta del laboratorio en el complejo. 21

Actualmente, sin ir más lejos, el instituto cuenta con 6 guías turísticos que ofrecen servicios de visita de lunes a viernes. A su vez, sus instalaciones son constantemente usadas como escenario de sesiones fotográficas de bodas o moda. 22

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 conocido encuentro, específicamente local, entre el arquitecto y el fundador del instituto, Jonas Salk, en 1959.23

FIG.02: El Salk Institute como escenario de sesiones fotográficas. Fotografía de Karina Irene. Extraído de: http://www.karinairenephotography.com/blog/?p=1482

Con Bruno Latour vemos que no sólo es posible unificar la “historia de la ciencia con la historia de Francia” (Latour 2001: 103), sino que es licito y necesario unir ambas a la historia de la arquitectura: ¿Cuánto tiempo es posible seguir el rastro de una ciencia (o de una política) sin tener que enfrentarse al contenido pormenorizado de una arquitectura?: La historia social de las ciencias no dice: “Busca la sociedad escondida detrás o debajo de las ciencias”. Únicamente plantea algunas sencillas preguntas: En un determinado período, ¿Cuánto tiempo es posible seguir el rastro de una política sin tener que enfrentarse al contenido pormenorizado de una ciencia? ¿Cuánto tiempo puede examinarse el razonamiento de un científico antes de verse uno envuelto en los detalles de una política? ¿Un minuto? ¿Un siglo? ¿Una eternidad? ¿Un segundo? Todo lo que te pedimos es que no cortes el hilo cuando te lleve, a través de una serie de imperceptibles transiciones, de un tipo de elemento a otro. (Latour 2001: 107) Es conveniente dejarlo aquí. No se va a hacer mención a las controversias de la A.N.T. (Actor Network Theory) ni a la estrecha (y también controvertida) vinculación entre la base filosófica de Latour y las antes mencionadas filosofías de autores como Gilbert Simondon o Gilles Deleuze lo que nos llevaría a repetir con otras palabras (actante, proposición, articulación, etc.) algunas ideas ya

“Salk summarized his aesthetic objectives by telling the architect to ‘create a facility worthy of a visit by Picasso’. Kahn, who was a devoted artist before he became an architect, was able to respond to this challenge.” (Web oficial del Salk Institute: http://www.salk.edu/about/history.html) 23

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expuestas en relación a Christopher Alexander. Acabaremos sencillamente por comentar que con el principio de simetría introducido por este autor podemos reducir las paradojas de la arquitectura erudita (moderna) a una escisión epistemológica que por fin nos demuestra que, de nuevo, los arquitectos somos como todos.

3. Reencontrar la forma arquitectónica: André Scobeltzine y Alfred Gell Una vez reconocido el anclaje relacional o social de la labor de los arquitectos, parece necesario hablar más específicamente en paralelo a una disciplina que por mucho tiempo se consideró la base de los estudios sobre arquitectura: la morfología. Si bien ya hemos comentado como los patrones de Alexander acababan por diluir el concepto de forma, no podemos desestimar radicalmente el total de los estudios que a ésta se han dedicado desde las diferentes metodologías de la historia del arte. En su incapacidad por superar la barrera, tanto el enfoque formalista (Heinrich Wölfflin; Alois Riegl; Wilhelm Worringer), el iconológico (Aby Warburg, Erwin Panofsky, Rudolf Wittkower), el sociológico (Arnold Hauser) o los diferentes enfoques estructuralistas24 han hecho de la génesis y la razón de ser de la forma prácticamente el aspecto esencial a ser dilucidado. Es precisamente desde un planteamiento aparentemente ligado a este último enfoque que en 1973 un desconocido arquitecto francés, André Scobeltzine, expuso una muy antropológica tesis sobre la arquitectura medieval en un libro llamado “El arte feudal y su contenido social” (1990). Y es que Scobeltzine explica cierto cambio de paradigma que tendría su origen en el pensamiento de la Normandía del siglo XII, expandiéndose posteriormente por todo occidente, y lo hace a través del estudio de las transformaciones estructurales que se dieron en las formas artísticas. Estamos hablando del paso del románico al gótico, sin embargo, es importante diferenciar que lo que el autor presenta no es el simple cambio en la lógica formal derivado del desarrollo técnico, la incorporación de elementos extranjeros o la adaptación a un contenido metafísico,25 sino la transformación casi simultánea de un conjunto de relaciones que atraviesan todo el cuerpo social. Comenzando por el análisis de la composición de los capiteles y del tipo de conformación de los personajes que los habitan (sin recurrir necesariamente al contenido simbólico26), de las Donde la semiología, el psicoanálisis la fenomenología, el marxismo o el constructivismo social se mezclan de diferentes modos: Giulio Carlo Argan; Ernesto Nathan Rogers; Christian Norberg-Schultz; Umberto Eco; Pierre Bourdieu e incluso Jean Baudrillard (en los años 70). 24

Como sugieren las teorías clásicas sobre la formación de la arquitectura gótica, o como sugiere Panofsky en torno a la escolástica (Panofsky, 1986). 25

Si bien, “aparte de algunas innovaciones como la creación del diablo, podemos decir que el vínculo que enlaza el arte con la sociedad que le ha visto nacer se manifiesta más en la forma, en el estilo, que el contenido explícito de las imágenes que nos presenta” (Scobeltzine 1990: 162). 26

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 asociaciones a los sistemas estructurales adoptados (de muros, pilares y pilastras) o de las relaciones entre volumetrías en las iglesias, se da un primer paso en la comprensión del arte románico como un sistema cultural complejo, enmarañado de relaciones políticas de vasallaje, filiación, protección y dependencia, pero también de pluralidad e inmanencia. Es así como se llega a trazar una comprensión del arte que lo describe más allá de un fin en sí mismo, como “manifestación de la participación de la figura en un movimiento, en una acción que le sobrepasa” (Scobeltzine 1990: 43). Scobeltzine desentraña la posición del artista y su rango de libertad al adaptarse a marcos creativos no tan rígidos, los cuales no están sometidos a limitaciones técnicas sino a parámetros que son propiamente culturales. A su vez, capitel a capitel, se recomponen los estatutos de la época en los que descansan los conceptos de “hombre” y “naturaleza”27, y los destapa a partir de la capacidad que los elementos que los representan tienen para deformarse, adaptarse, agregarse o transfigurarse en las diferentes formas de arte.

Fig.3-4: Capiteles de Saint-Pierre de Chauvigny, Siglo XII. Extraído de http://www.wga.hu/

Sin embargo, casi en paralelo al camino tomado por el estudio de “Las palabras y las cosas” (Foucault 2010), la descripción de Scobeltzine adquiere una densidad especial en el momento A respecto de la concepción del “hombre”, por ejemplo, Scobeltzine comenta como “tanto en el arte románico como en la sociedad feudal contemporánea, el hombre sólo existe en cuanto que se integra en su movimiento y su expresión en una dinámica de grupo. Sólo mucho más tarde, cuando la renta de la tierra y la riqueza material primaron sobre los vínculos de dependencia y el movimiento de los hombres, cuando las relaciones sociales se petrificaron en una jurisdicción escrita y estable, aparecerán figuras en reposo, como en esos retratos burgueses en los que se nos muestra, en un marco dorado, un personaje sólo e inmóvil.” (Scobeltzine 1990: 44). Por otro lado, tal concepción de “naturaleza” puede ejemplificarse en el modo en el que “el artista feudal rechaza la realidad objetiva, la realidad del hombre, el animal o la planta, impugna el testimonio inmediato de sus sentidos para construir un mundo extraño y coherente que hunde su raíces en todo tipo de tradiciones antiguas e inmutables” (Scobeltzine 1990: 62). 27

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en que, a la luz del análisis de la forma y del estilo, se lleva a cabo la comparación de lo comprendido del románico con el primer gótico normando de la catedral de Chartres. Y es que, con el gótico, comienza a imponerse un sistema más modélico y trascendental que tiene que ver con la pérdida de poder de los señores y la proliferación de un pensamiento floreciente en las abadías, paso que conlleva la absoluta transformación de la concepción del “hombre” en la sociedad incluso en términos jurídicos (dejando atrás la relación filiativa y de protección padre-hijo y señor-vasallo, toma fuerza la alianza entre hermanos propia de la comunidad de clérigos) y que, como ejemplo, tiene su eco en las relaciones de proporción, pose, fondo y figura de los individuos representados por los pórticos y capiteles. De igual modo, la naturaleza representada, antes imaginaria y estrambótica, pasa a ser objetiva y realista, pero al mismo tiempo genérica, “depurada de todos sus accidentes, de todos sus particularismos inútiles” (Scobeltzine 1990: 203), como si la tenebrosa y desconocida bestia se hubiese transformado en una categoría. Son argumentos y relaciones que emergen heterogéneamente, y de ellas se deduce que no es posible obtener un cuadro simple y diagramático (como propusiera Panofsky) que permita reconocer la estructura lógica de esta transición que sobrepasa lo comúnmente conocido como artístico; Scobeltzine nos insta de ese modo a “evitar la reducción de todas las manifestaciones de una civilización a la influencia unívoca y cuasi mecánica de uno de los factores sobre todos los demás.” (Scobeltzine 1990: 159). Cada forma artística es una multiplicidad, y como tal, se expresa en cada encuentro relacional que la constituye como tal. El artista que organiza los espacios de la iglesia por sucesivas enfeudaciones alrededor del macizo de la torre que corona el crucero no se contenta tampoco, sobre todo si tiene talento, en aplicar a la arquitectura los principios de una gramática feudal convencional cuyos rasgos podrían encontrarse en los más diversos campos, sino que recrea por cuenta propia esa gramática. Toma partido frente al mundo que le rodea proponiendo ese sistema de pensamiento que él ha hecho suyo y del que se esfuerza en dar una atrayente expresión. Y en la medida en que ese sistema que nos propone puede precisamente ponerse en práctica en otras muchas esferas de actividad, su toma de posición sobrepasa el marco de la pura estética. A través de su manera de querer el arte nos propone su manera de querer el mundo. (Scobeltzine 1990: 164) A este respecto, encontramos una gran proximidad con Alfred Gell, quien asume que “the anthropology of art cannot be the study of the aesthetic principles of this or that culture, but of the mobilization of aesthetic principles (or something like them) in the course of social interaction” (Gell

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 1998: 4). Ahora sí, empezamos a reconocer la forma arquitectónica como cultura y a su vez la cultura como proceso o creación, y no precisamente como forma o sistema.28 Por otro lado, sin querer llegar a conclusiones precipitadas una vez en este punto, parece útil, e incluso necesario, llevar a cabo una pequeña inmersión en el controvertido libro “Art and agency” de Alfred Gell (1998) para poder discutir un concepto concreto que puede ayudarnos más especialmente en la comprensión de la forma: el estilo.29 Para ello no queda más remedio que partir de un punto anterior en su explicación, sin embargo, como ya se avisó en la introducción de este artículo no se pretende agotar aquí, ni mucho menos, la discusión sobre esta obra ni la de los otros autores hasta ahora comentados, sino que se quiere hacer de ciertos conceptos que en ella se exploran un punto de apoyo válido para una fuga epistemológica de los dogmas de la disciplina arquitectónica que nos permitan un encuentro con la antropología. Pues bien, empezaremos por situarnos en el hecho de que, si lo que Gell propone es algo tan específico como la necesidad de una antropología del arte, constantemente se alude a la imposibilidad de separar ésta de su equivalente genérico: la antropología. El objetivo es descubrir el sentido de las interacciones sociales estableciendo como medio aquello que llamamos arte, y para ello una antropología del arte es dependiente de una base metodológica que estudie específicamente las relaciones de implicación y agencia en contextos dinámicos. Los términos que compongan semejante estudio del arte no pueden continuar siendo relativos a un sistema axiológico que imponga valores socialmente estáticos a los elementos que constituyen lo estético. Es así como las entidades que el autor propone para la comprensión del arte tendrán consistencia propia sólo en base al tipo de conexión que establezcan entre sí. Tal y como resume la tabla confeccionada por él mismo (Gell 1998: 29), los términos son cuatro (“índices”, “artistas”, “recipientes” y “prototipos”30), y, en tanto que afectan o son afectados, pueden establecer la relación como “agentes” o “pacientes”:

Hecho que nos acerca incluso, en ciertos aspectos, a Eduardo Viveiros de Castro: “Uma cultura não é um sistema de crenças, mas antes – já que deve ser algo – um conjunto de estruturações potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais variados e de absorver novos: ela é um dispositivo culturante ou constituinte de processamento de crenças” (Viveiros de Castro 2005: 209). 28

La discusión sobre este concepto ocupa prácticamente toda la segunda mitad del libro de Gell (1998), concretamente en los capítulos “The Critique of the Index”, “Style and Culture” y “The extended Mind”. 29

Por comodidad se usarán los términos “Index”, “Artist”, “Recipient” y “Prototype” (Gell 1998: 27) en Español. “1. Indexes: material entities which motivate abductive inferences, cognitive interpretations, etc.; 2. Artists (or other “originators”: to whom are ascribed, by abduction, causal responsibility for the existence and characteristics of the index; 3. Recipients: those in relation to whom, by abduction, indexes are considered to exert agency, or who exert agency via the index; 4. Prototypes: entities held, by abduction, to be represented in the index, often by virtue of visual resemblance, but not necessarily” (Gell 1998: 27). 30

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Fig.5: “The art nexus” (Gell 1998: 29).

El propio Gell explica que el índice, aquello que podríamos entender como la obra de arte, es el elemento central o mediador en todo este planteamiento y se encuentra implícito incluso en las relaciones expuestas en la tabla que no pasan directamente por él (Gell 1998: 36). A su vez, y como indica su nombre, el índice es un aparato semiótico que individua conjuntos de otros elementos o partes en interrelación; del mismo modo que el patrón de Alexander se compone de relaciones entre patrones, el índice se compone de relaciones entre índices. Así, volviendo a la tabla, vemos que toda relación entre índices supone que tal o cual índice será agente con respecto a otro índice paciente (pudiendo ser este parte integrante del anterior o viceversa), lo cual vendría a representarse del siguiente modo: “Index-A→Index-P”. No parece extraño reconocer que este tipo de agencia es la comprensión dinámica de lo que comúnmente en la historia del arte se denominó como composición. Se trata de la causalidad interna !193


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.175-198, 2013 de la propia obra, explícita en los motivos y elementos que componen el arte decorativo y el abstracto31 (Gell 1998: 43). “In other words, the parts of the index exert causal influence over one another and testify to the agency of the index as a whole (…) [[[Index-A motifpart]→Index-Apart/ whole]→Index-Awhole]→Recipient-P”

(Gell 1998: 76). En ese proceso, en el que según Gell el objeto

decorativo acaba teniendo relativa vida propia,32 parece ejemplificarse el esquema de la doble articulación expresión/contenido de Hjelmslev que Deleuze constantemente reafirmó y que dice no haber “una articulación de contenido y una articulación de expresión, sin que la articulación de contenido no sea doble por su cuenta y al mismo tiempo, constituyendo una expresión relativa en el contenido, y sin que la articulación de expresión no sea doble a su vez y al mismo tiempo, constituyendo un contenido relativo en la expresión” (Deleuze; Guattari 2010: 52). A este respecto, en lingüística reconocemos que “cada lengua establece sus propios límites dentro de la “masa de pensamiento” amorfa, destaca diversos factores de la misma en diversas ordenaciones, coloca el centro de gravedad en lugares diferentes y les concede diferente grado de énfasis” (Hjelmslev 1980: 79); en el mismo sentido, vemos que lo que Gell encuentra en relación a la decoración son juegos y variaciones en la partes componentes que establecen relaciones formales que van más allá de la voluntad de un artista; procedimientos propios (a través de simetrías, translaciones o rotaciones) que confieren cierta autonomía a los motivos decorativos. Y es así como, en la sistematización de este hecho, surge el concepto de estilo, que queda definido como “relations between relations of forms” (Gell 1998: 215). Gell dedica entonces la atención al estudio del mismo, y se lanza al descubrimiento de relaciones coherentes de imbricación en los diferentes motivos que componen, entre otros, los tatuajes de las Islas Marquesas. Se trata de un estudio morfológico en el que se detallan los cambios y relaciones que se suceden de una forma a otra, delineando el camino generativo que lleva a la aparición de nuevos elementos y motivos:

Fig.6: “Coiled shellfish poriri as a face motif” (Gell 1998: 184).

Sin duda la arquitectura también se incluiría entre estas, y, quizás, todas formas artísticas (incluso la fotografía). A este respecto, Gilles Deleuze insistió en que la pintura nunca fue figurativa; por mucho que se pareciese a algo, esta semejanza sería más profunda que fotográfica (Deleuze 2013: 100); lo figurativo siempre quedó relegado a un segundo plano: “un pintor jamás ha pintado otra cosa que el espacio-tiempo” (Deleuze 2013: 169). 31

A pesar de que, como ejemplarmente le critíca Tim Ingold al propio Gell (Ingold 2011: 213), esa vida está relegada a un proceso agencial “secundario” determinado antes por un origen cargado de intencionalidad humana. 32

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Llegando a una conclusión muy similar a la de Scobeltzine con respecto al arte románico, Gell encuentra que el estilo del arte de las Marquesas es específicamente un campo de posibles o legítimas transformaciones de motivos y no la totalidad de los mismos (Gell 1998: 215). Por otro lado, la insistencia de éste en el hecho de que el estilo sólo puede ser definido a través de la búsqueda de relaciones entre artefactos (índices), remite a que el estilo es un dominio autónomo no gobernado por la cultura en un sentido más amplio.33 Gell avanza con más cuidado que Scobeltzine en la aparente disyunción estilo/cultura y expone que esta relación se da en un segundo nivel; declara que el conjunto de “relaciones entre relaciones” (entre artefactos) converge hacia un principio que caracteriza el estilo, un “eje de coherencia”,34 que es el que propiamente entra en consonancia con la cultura: Here one must recall that the Marquesan style is only the sediment product of an infinite number of tiny social initiatives taken by Marquesan artists over a long period of historical development. Each new artefact, however standardized, cannot come into being without the need for stylistic decisions, be they ever so apparently trivial and inconsequential. These stylistic decisions, from which the coherence, stability, and long-term transformation of the Marquesan style ensued, were taken without deliberate reflection, but never without cognizance of a prevailing social context of social forms, pervaded by a dread of spiritual/political transgression. That is to say, there was an elective affinity between a modus operandi in the artefactual domain, which generated motifs from other motifs by interpolating minuscule variations, and a modus operandi in the social realm which created “differences” arbitrarily against a background of fusional sameness. (Gell 1998: 219)

No es complicado, pues, hacer un último comentario que enfatice la relación entre lo dicho por Alfred Gell y la arquitectura. Es curioso que un libro como este, ocupado por entero en constituir una antropología del arte, dedique en el último momento su atención a una obra arquitectónica, como si tratase de exponer, con cierta timidez, que los principios expuestos hasta el momento son también válidos para la arquitectura. Y es que en el breve capitulo en el que Gell se concentra en las “Maori Meeting Houses” (Gell 1998: 251), encontramos un enunciado que nos interesa especialmente y que se dejará sentir en la conclusión que sigue: la arquitectura es un cuerpo: The house is a body for the body. Houses are bodies because they are containers which, like the body, have entrances and exits. Houses are cavities filled with living contents. Houses are bodies because they have strong bones and armoured shells, because they have gaudy, mesmerizing skins which beguile and terrify; and because they have organs of sense and expression. (Gell 1998: 253)

Si bien, “culture may dictate the practical and/or symbolic significance of artefacts, and their iconographic interpretation; but the only factor which governs the visual appearance of artefacts is their relationship to other artefacts in the same style” (Gell 1998: 216). 33

En el caso de las Marquesas se trata de un listado de tipos de transformaciones (simetrías, translaciones, etc.) que llevan a cabo diferente elementos (Gell 1998: 216). 34

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4. Conclusión Toda criação nasce numa espécie de permutação realizada sobre um repertório já existente. O fato de que não há nada absolutamente novo não torna o novo menos novo. (Viveiros de Castro; Sztutman 2008: 184)

La arquitectura a la que nos referimos no es una identidad, una substancia, un símbolo o una función; es, como toda obra, un índice que moviliza agenciamientos y que es atravesado por agenciamientos. Es un articulador que se compone y hace uno con el cuerpo social, que a su vez hace uno con el mundo; es la articulación-mundo del cuerpo social. El paisaje es arquitectura. La arquitectura es creación, pero también remite a un estilo, a patrones y repetición. Estructuradores convencionalizados y aparatos de captura y estratificación que nos permiten reconocerla y reconocernos en ella, en lugar de sorprendernos a cada acontecimiento. Y cuando nos sorprende o nos produce rechazo, la arquitectura es también soporte dinámico: cambio; un proceso temporal y colectivo cuya determinación viene dada por todos y por todo. Como este texto, es un conglomerado que remite a principios aparentemente lejanos, pero que de un modo u otro se introducen simultáneamente como en un collage. La arquitectura es multiplicidad, está hecha de pedazos y se puede cortar y romper en otros tantos; el iconoclasta es también un “arquitecto”, y el “Arquitecto”, el hegemónico, es siempre un iconoclasta. El antropólogo, como el arquitecto, se articula a su vez en cada acontecimiento con una arquitectura haciendo de ello cada encuentro local y mediando sobre una creación, ya sea física, discursiva, cultural o vital; el antropólogo es siempre un arquitecto. Es por todo ello que la arquitectura puede seguirse y debe estudiarse. Es más, todo encuentro social pasa por una arquitectura; cualquier antropología pasa por ella: ¿Por qué ignorarla? En el presente artículo se ha buscado perpetrar una fuga que es en sí mismo un encuentro relacional de varios caminos. Entre los objetivos del trabajo se encontraba introducir un principio de simetría que aboliese la escisión epistemológica ante la que se encontraba el autor, y que puede ejemplificarse del siguiente modo:

Fig.7: Relación de simetría de los temas tratados en el presente artículo.

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No ha sido posible, quizás tampoco necesario, sistematizar aquí los fundamentos de una metodología específica y novedosa para una “antropología de la arquitectura”, sin embargo, en el punto de encuentro de los cuatro autores comentados se ha dado un previo paso para la redistribución de los cimientos epistemológicos que hasta el momento no permitieron que arquitectos y antropólogos se encontrasen. Si la recomendación de Ferreira dos Santos era dar media vuelta ante el muro y pensar, la nuestra será hacer del propio muro que nos divide un espacio que podamos habitar. Como diría Simondon, deberíamos ser capaces de un pensamiento del devenir, o de un devenir pensante; parece el momento de dejar atrás cada una de las competencias disciplinares, llevar a cabo su desterritorialización para instalarse en el fondo de la brecha; en la inmanencia del propio camino, o como en este caso, de la fuga.

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Recebido em 28/11/2013 Aprovado em 5/02/2014

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La Sangre no Miente: Memória, identidade e verdade na Argentina pós-ditatorial1 Liliana Sanjurjo Doutora em Antropologia Social Universidade Estadual de Campinas

Resumo Neste artigo exploro as polêmicas que envolvem a restituição da identidade dos filhos de desaparecidos políticos que foram apropriados durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Tomando os debates sobre a aprovação da Lei de ADN para a resolução dos casos dos apropriados que se recusam a submeter-se de forma voluntária ao exame de DNA, analiso os processos de construção da apropriação como crime, e de que forma a legitimidade da demanda de Abuelas de Plaza de Mayo encontra respaldo no campo jurídico e científico. O intuito é examinar como o sangue converte-se num instrumento crítico para a afirmação das memórias sobre a ditadura na Argentina, e como os familiares de desaparecidos articulam legados familiares e políticos, forjando uma narrativa na qual o sangue estabelece a relação, mas, sobretudo, a Verdade Histórica. Palavras-chave: memória, identidades, ditadura, política, parentesco.

Abstract The Blood Knows no Lies: Memories, Identities and Truth in Post-Dictatorial Argentina This article explores the controversies revolving the identity restitution of the children of Argentine disappeared that were abducted during the military dictatorship in Argentina (1976-1983). In face of the debates concerning the passing of the DNA Law, allowing the Argentinean Supreme Court to order compulsory DNA extraction when confronted with the refusal from the abducted to voluntarily take the test, I analyze the processes that defined child abduction as a crime. Furthermore, I attempt to capture in what ways the judicial and scientific field provide legitimacy for the demands of the Abuelas de Plaza de Mayo. The intention is to examine how the blood is converted into a critical instrument in the affirming of memories concerning the dictatorship in Argentina, and how the families of the disappeared articulate family and political legacies in order to forge a narrative in which the blood establishes the relation, and, more importantly, the Historical Truth. Keywords: memory, Identities, Dictatorship, politics, kinship.

1. Nota dos Editores: este artigo foi originalmente apresentado no II Seminário de Antropologia da UFSCar, realizado entre os dias 11 e 14 de novembro de 2013, no Grupo de Trabalho Política e Saberes Técnicos.

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Introdução Tuve mucho tiempo de búsqueda y hace 2 años, sin tener elementos fuertes, le puse nombre a lo que buscaba: ‘Soy hijo de desaparecidos’. Encontré la verdad hace 2 meses, cuando el análisis de ADN confirmó que soy hijo de Alicia y Damián. Ahora soy Juan Cabandié-Alfonsín. Soy mis padres, Damián y Alicia. […] el plan siniestro de la dictadura no pudo borrar el registro de la memoria que transitaba por mis venas y me fue acercando a la verdad que hoy tengo. Bastaron los 15 días que mi Mamá me amamentó y me nombró, para que yo le diga a mis amigos, antes de saber quién era mi familia, antes de saber mi historia, que yo me quería llamar Juan, como me llamó mi Mamá durante el cautiverio en la ESMA. Este lugar estaba guardado en la sangre de Juan. […] Hoy estoy acá, 26 años después, para preguntarles a los responsables de esa barbarie si se animan a mirarme cara a cara y a los ojos y decirme dónde estan mis padres, Alicia y Damián. Estamos esperando la respuesta que el Punto Final quiso tapar.2

O discurso acima foi proferido por Juan Cabandié, filho de desaparecidos políticos, nascido em 1978 na Escuela Mecánica de la Armada (ESMA), um dos principais centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio3 em funcionamento durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Poucos dias após seu nascimento, Juan foi entregue ilegalmente a um membro do serviço de inteligência da Polícia Federal, quem lhe ocultou por quase três décadas a origem criminosa e clandestina do vínculo que os unia como pai e filho. No ano de 2004, aos 26 anos de idade e após inúmeras desconfianças acerca de sua filiação, Juan procurou voluntariamente a organização Abuelas de Plaza de Mayo e se submeteu a um teste de DNA. Através do cruzamento das informações genéticas de Juan com a das famílias de desaparecidos políticos, armazenadas no Banco Nacional de Datos Genéticos (BNDG),4 comprovou-se o seu parentesco biológico com um casal detenido-desaparecido. Seguindo o mesmo caminho de outros jovens apropriados,5 desde que Juan recuperou sua verdadeira identidade, tornando-se o neto restituído número 77 de Abuelas de Plaza de Mayo, rompeu afetiva e ideologicamente com aqueles que até então eram sua família. Tornou-se um ativista de direitos humanos e elegeu-se deputado da Discurso de Juan Cabandié, filho de desaparecidos, em ato oficial realizado na ESMA para o aniversário do golpe militar em 24 de março de 2004, evento que formalizou a transformação do local em um espaço de memória e de promoção dos Direitos Humanos. 2

Nomenclatura utilizada pelo Estado argentino e pelas organizações de direitos humanos para denominar os locais de detenção clandestinos que funcionaram em todo território nacional durante a ditadura. 3

Criado em 1987, o BNDG funciona em Buenos Aires no Hospital Carlos A. Durand. Sua função é armazenar informações genéticas das famílias de desaparecidos até o ano de 2050, com o intuito de facilitar o esclarecimento dos conflitos referentes à filiação. 4

Apropriado é a categoria empregada para nomear esse grupo de crianças sequestradas durante a ditadura militar, enquanto restituição é o nome dado ao processo de identificação e recuperação da Verdade da origem biológica. Assim como os detenidos-desaparecidos, a apropriação emerge como categoria mobilizada pelos familiares das vítimas para denunciar o desaparecimento forçado de pessoas, neste caso, de crianças, os “desaparecidos com vida”. 5

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cidade de Buenos Aires pela lista “Frente Para La Victoria”, encabeçada pelo então presidente Néstor Kirchner. No discurso de Juan ficam evidentes as conexões estabelecidas entre identidade biológica (filho de desaparecidos) e identidade política (identificação no campo político com os valores da militância setentista e do movimento de direitos humanos). Para Juan, se a verdade lhe foi revelada pelo exame de DNA, os valores políticos igualmente parecem ser transmitidos por meio do sangue. O seu testemunho sugere, de forma emblemática, como os domínios do parentesco e da política encontram-se, neste contexto específico, articulados e combinados. O campo de ativismo das organizações de familiares de desaparecidos na Argentina torna-se, assim, um caso privilegiado para se pensar numa questão cara à antropologia social: através da dilucidação de uma linguagem de combinação entre distintos domínios (Strathern 1992), compreender as formas nativas de associar espaços sociais concebidos como de natureza e escalas diferentes (Neiburg 2004) como o parentesco e a política, a família e a nação, o privado e o público, o natural e o social. Neste artigo exploro as polêmicas que envolvem a restituição da identidade dos filhos de desaparecidos políticos que foram apropriados durante a ditadura militar argentina. Tomando os debates sobre a aprovação da Lei de ADN para a resolução dos casos dos apropriados que se recusam a submeter-se de forma voluntária ao exame de DNA, analiso os processos de construção da apropriação como crime, e de que forma a legitimidade da demanda de Abuelas de Plaza de Mayo encontra respaldo no campo jurídico e científico. O intuito é examinar como o sangue converte-se num instrumento crítico para a afirmação das memórias sobre a ditadura na Argentina e como os familiares de desaparecidos articulam legados familiares e políticos, forjando uma narrativa na qual o sangue estabelece a relação, mas, sobretudo, a Verdade Histórica.

A Lei de ADN Primero estamos hablando de un delito que se cometió desde un Estado terrorista que llegó a tener un plan sistemático de desaparición forzada de personas y apropiación de niños. Porque existieron 500 que nos entregaron como si fuéramos cachorros a otras famílias por un grupo de personas que actuó ilegítimamente desde el Estado y creyó que había otras personas mejores que nuestras famílias biológicas para criarnos […] queremos verdad y libertad para elegir […] esta Ley de ADN es muy importante porque le da la herramienta al Estado para perseguir a estos crímenes que se siguen cometiendo. Pero también es importante para nosotros. De hecho, de los últimos trece nietos encontrados, nueve fueron encontrados con estos allanamientos y esos métodos de análisis de ADN. Y absolutamente ninguno de esos nueve imputó a los allanamientos.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 No dia 26 de novembro de 2009, da bancada do congresso nacional, as palavras de Victoria Donda6 teriam lugar após a aprovação de um projeto de reforma do Código Penal argentino, mais amplamente conhecido como Lei de ADN. O objetivo desse projeto de lei, impulsionado pela organização Abuelas de Plaza de Mayo, era regulamentar os procedimentos para a obtenção de DNA em investigações que procuram resolver os casos de apropriação de crianças durante a ditadura. Esse novo artigo do código penal prevê que juízes que intervenham nesses casos, através da emissão de mandatos de busca, possam obter mostras de DNA por meios alternativos à inspeção corporal, tais como o sequestro de objetos que contenham células já desprendidas do corpo (sangue, saliva, pele, cabelo, fluídos corporais e outros tipos de provas biológicas). A necessidade da criação desse instrumento jurídico se deu diante da recusa de alguns jovens apropriados a se submeterem de forma voluntária ao exame de DNA para comprovarem seu parentesco biológico com pessoas desaparecidas. Em contraposição aos supostos apropriados que se apresentavam espontaneamente na organização Abuelas ou na CONADI (Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad)7 para determinar

sua origem biológica, estes outros negavam seu

consentimento à extração de sangue, transferindo para o âmbito judicial a resolução do conflito referente à filiação. Segundo um informe de Abuelas,8 em 2003, a Corte Suprema de Justiça decidiu que uma jovem nascida na ESMA não poderia ser submetida à prova sanguínea contra sua vontade. Dessa decisão derivou a busca de vias alternativas para a restituição da identidade de jovens nascidos em cativeiro ou sequestrados ainda bebês, garantindo a seus familiares biológicos o direito à Justiça e à Verdade. A partir de 2006, juízes passariam a requerer, por meio da emissão de mandatos de busca, a obtenção de material genético por meio de objetos de uso pessoal. Com tais precedentes, em agosto de 2009, a Corte Suprema validava esse tipo de procedimento para determinar a identidade de supostos filhos de desaparecidos. Em novembro desse mesmo ano, o projeto de lei era aprovado pelo congresso e senado, sendo finalmente promulgado pela então presidente Cristina Kirchner. O conflito político, ético e jurídico que envolveu a polêmica sobre a Lei de ADN apresentava como dilema a seguinte questão: qual direito deveria prevalecer? O direito dos familiares da vítima ou

Discurso da deputada nacional Victoria Donda Pérez, filha de desaparecidos, cuja identidade foi restituída em 2004, mesmo ano em que se tornou a mais jovem deputada nacional a ser eleita no país. Nascida em 1977 durante o cativeiro de sua mãe na ESMA, ela seria apropriada por Juan Antonio Azic, um repressor que atuou nesse centro clandestino de detenção. Seus pais biológicos, ambos militantes da organização Montoneros, foram sequestrados nos primeiros meses de 1977 e continuam desaparecidos. 6

A CONADI foi criada em 1992 com o objetivo de localizar as crianças desaparecidas durante a ditadura. Posteriormente, seus objetivos se ampliaram diante das denúncias de roubo e tráfico de menores. Embora seja um órgão estatal, o trabalho da comissão é realizado de forma conjunta com a organização Abuelas de Plaza de Mayo. 7

ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Trascendente Fallo de la Corte Suprema para Conocer la Identidad de los Nietos Apropiados. Comunicado de Prensa. Disponível em: <www.abuelas.org.ar>. 8

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o direito da própria vítima (o jovem apropriado)?9 Por um lado, argumentava-se que, constituindo-se a apropriação de menores como um delito de lesa humanidade, e tendo em vista os compromissos assumidos pelo Estado mediante a celebração de pactos internacionais, haveria por parte do mesmo o dever de sancioná-lo penalmente, assegurando o direito dos familiares à verdade e à justiça (artigo 180 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos). Recomendava-se ao Estado a criação de instrumentos institucionais para facilitar o esclarecimento da Verdade. Além do mais, com relação aos direitos dos apropriados, sendo o Estado signatário da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, caberia a ele o dever de resguardar o direito da criança à identidade, garantindo, preferencialmente, uma filiação jurídica de acordo com o fato biológico. Em contrapartida, apresentavam-se argumentos a favor do direito dos apropriados à sua intimidade e integridade pessoal – física, psíquica e moral (artigo 50 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos). Sob essa ótica, nenhuma pessoa poderia ser objeto de ingerência estatal abusiva em sua vida privada ou domicílio, sobretudo em se tratando de medidas invasivas sobre o corpo da vítima (extração de sangue ou de células já desprendidas de seu corpo). Defendia-se que o direito à Verdade não poderia prevalecer sobre o princípio do direito à intimidade e integridade pessoal. Argumentava-se ainda que o Estado não poderia vulnerar o direito da vítima em se recusar a apresentar provas incriminatórias (seu DNA) contra aqueles a quem considerava como familiares. Muitos dos apropriados que tiveram seus casos judicializados por se recusarem à extração de sangue, mas também vários jovens que recorriam à Abuelas de maneira voluntária alegavam se sentirem responsáveis, caso cedessem à prova genética, pela prisão daqueles que os haviam criado como verdadeiros filhos. Alejandro Sandoval, por exemplo, um dos netos que restituiu sua identidade por via judicial em 2006, ao mesmo tempo em que apoiava publicamente a iniciativa da Lei de ADN, salientando a importância de conhecer a Verdade, relatava o conflito experimentado por ele devido ao “tema da culpa”: Para mí es muy importante lo que hizo el año pasado la Corte Suprema de avalar el tema de los allanamientos. Más en mi caso que se hizo por allanamiento. Y es algo fundamental porque te saca una responsabilidad para los chicos como yo que no se quieren hacer los exámenes de ADN por sangre. Mi situación tuvo que ser por dos allanamientos. El primer allanamiento fue mal hecho porque, como te decía, yo no quería saber el tema de la identidad y estaba protegiendo a mi apropiador por el tema

Seguindo Fonseca , fica claro como “[...] os direitos são politicamente construídos, que envolvem sujeitos vivendo num mundo relacional, e que sua implementação passa pela microfísica dos espaços administrativos” (Fonseca 2010: 493). Além disso, evidencia-se “[...] como a busca de origens realça o aspecto relacional dos direitos, revelando uma situação em que é impossível “garantir os direitos” a uma determinada categoria de ator sem afetar os direitos de outras” (Fonseca 2010: 494). 9

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 de las culpas.[…] es muy importante que se hagan estos allanamientos para poder descubrir la verdad que se viene ocultando por tanto tiempo.10

Em seu discurso no congresso nacional, Victoria Donda defenderia que a Lei de ADN representava um passo importante para que os apropriados tivessem assegurado o pleno acesso à Verdade e à “liberdade de escolha”. Ela mesma levara oito meses para decidir em prestar seu consentimento à extração de sangue. Considerava estar no passado desprovida de vontade própria, encontrando-se manipulada e condicionada por seu apropriador. Victoria Montenegro, outro caso de apropriação que fora resolvido judicialmente em 2000, relataria o percurso judicial vivido por ela para a realização do exame de DNA. Segundo ela, sua negativa em conhecer a Verdade devia-se, em grande medida, à influência ideológica exercida por seu apropriador. Fora criada para acreditar que os desaparecidos eram um partido político, que as causas judiciais movidas contra repressores representavam uma perseguição às Forças Armadas e que os resultados de DNA eram uma grande falácia arquitetada pelo BNDG junto às “Abuelas subversivas”.11 Juliana, filha de desaparecidos, irmã de uma jovem apropriada e atualmente uma ativista de Abuelas, recordaria de suas conversações com Pablo Casariego Tato, um dos netos apropriados que atravessou grandes conflitos antes de se submeter ao exame de DNA. Conforme coloca Juliana, o caso de Pablo era bastante comovente pelo fato de ter sido apropriado por um médico Major do Exército que atuou diretamente no Hospital Militar de Campo de Mayo, local onde funcionou uma maternidade clandestina durante a ditadura.12 O dilema vivido por Pablo traduzia-se na questão de que conhecer a sua Verdade implicava imediatamente em reconhecer que aquele quem acreditava ser seu pai era na realidade responsável pelo assassinato de seus pais biológicos, por um lado, e pela apropriação de diversos outros filhos de desaparecidos, por outro.13

Entrevista de Alejandro Pedro Sandoval, filho de desaparecidos, para a agência de notícias Telam, em 11 de junho de 2010. Alejandro nasceu em janeiro de 1978 em um centro clandestino de detenção e foi apropriado por um ex-agente de inteligência da Guarda Nacional. Diante das reiteradas negativas de Alejandro em realizar de maneira voluntária o exame de DNA, seu caso foi resolvido mediante a expedição de mandatos de busca para recolher objetos de uso pessoal. Em agosto de 2006, Alejandro recebia o resultado, confirmando sua filiação biológica com pessoas desaparecidas. 10

Depoimento de Hilda Victoria Montenegro, filha de desaparecidos, apropriada por um coronel do exército que teve participação direta no assassinato de seus pais. A sua identidade foi restituída em julho de 2000. Entrevista realizada por Abuelas de Plaza de Mayo em outubro de 2010. Disponível em: <www.abuelas.org.ar>. 11

Para um trabalho que trata da maternidade clandestina de Campo de Mayo e que traz uma análise sobre a relação entre burocracia estatal e a apropriação ilegal de bebês durante a ditadura, ver Regueiro (2008). 12

Memoria Abierta, Testemunho de Juliana García Recchia, Buenos Aires, 2001. Os pais de Juliana, ambos militantes de Montoneros, foram sequestrados em janeiro de 1977. Juliana, então com três anos de idade, foi deixada com os avós maternos. No momento do sequestro, sua mãe estava grávida de cinco meses. Sua avó integrou Abuelas de Plaza de Mayo e desde muito jovem Juliana passou a colaborar com essa organização, movida pela busca de sua irmã nascida em cativeiro. No início de 2009, sua irmã, Bárbara García Recchia, nascida na maternidade clandestina de Campo de Mayo e apropriada por um ex-oficial de Inteligência do Exército, teve sua identidade restituída judicialmente. 13

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Enquanto os advogados de defesa das famílias apropriadoras destacavam que estes jovens estariam sendo revitimizados nesse processo, Abuelas e os partidários da Lei de ADN sustentavam que este instrumento jurídico pretendia retirar das vítimas a responsabilidade pela decisão de delatar ou não quem consideravam seus pais; deixá-las com o peso da decisão implicaria, do ponto de vista dos defensores da lei, numa violência ainda maior.14 O crime de apropriação fora excluído das leis de anistia15 por conta da adesão do Estado argentino à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), que com a reforma constitucional de 1994 fora incorporada à Carta Magna. A organização Abuelas participou ativamente da elaboração desse instrumento internacional, promovendo a inclusão de dois artigos, conhecidos como “argentinos”, além de outro que trata do direito das crianças à identidade. Essa brecha jurídica permitiu que Abuelas pudesse continuar processando pessoas implicadas na apropriação. Por conseguinte, ainda nos anos 1990, a comprovação desse delito, mediante prova de DNA, levou famílias apropriadoras, ex-repressores, bem como autoridades militares à prisão. A campanha de Abuelas pela restituição da identidade dos apropriados e pela aprovação da lei recebeu o apoio do governo nacional, de personalidades públicas e das demais organizações de familiares de desaparecidos. Mas também ganharia visibilidade o apoio de muitos dos netos restituídos, dentre os quais se somavam aqueles que haviam recuperado suas identidades por via judicial. Nesse processo, vários deles desentenderam-se com a família apropriadora e, desde então, reivindicavam sua “verdadeira identidade”: eram filhos de desaparecidos; falavam de seus pais como militantes populares que haviam perdido suas vidas lutando por uma Argentina com mais justiça social. A legitimidade do trabalho de Abuelas em prol da restituição dos apropriados, o que contribuiu para a aprovação da Lei de ADN, encontra respaldo na ideia de que a nação argentina deve saldar as suas dívidas com o passado ditatorial para consolidar-se como uma sociedade democrática. E é o Estado, através do poder judicial, que deve assumir a responsabilidade pelas violações aos direitos humanos cometidas na ditadura. Se no passado as resoluções dos casos de apropriação dependiam de iniciativas de coletivos de familiares das vítimas (como Abuelas), hoje é o Estado, por meio da construção de um discurso público sobre o evento da apropriação, que articula as normas éticas e morais sobre o tema. Em um seminário promovido em 2008 pela equipe jurídica de Abuelas de Plaza de Mayo junto ao Departamento de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, um grupo de juristas apresentaria a fundamentação ética e jurídica para validação e legitimação da Lei de ADN. Para os debates jurídicos colocados durante o seminário, ver Abuelas de Plaza de Mayo (2008b). 14

Em maio de 2005, a Corte Suprema argentina anulou as leis de anistia, alegando a sua inconstitucionalidade. Tais leis – Ley de Obediencia Debida (1987) e Ley de Punto Final (1986) – foram aprovadas durante a presidência de Raúl Alfonsín (1983-1989). Além disso, em 1989 o ex-presidente Carlos Menem havia concedido indulto aos oficiais condenados e, em 1990, estendera os indultos às principais autoridades militares que haviam sido condenadas no Juicio a las Juntas, em 1985. 15

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 Nessa operação, a apropriação foi deslocada do âmbito familiar para tornar-se uma questão que diz respeito à nação argentina como um todo. É nesse sentido que a apropriação e o desaparecimento forçado de pessoas podem ser entendidos aqui a partir da noção de evento crítico (Das 1995): além de redefinir a história das famílias afetadas e instituir novas modalidades de ação histórica, esses eventos levaram à ressignificação de diversas categorias (identidade, verdade, natureza, pureza, honra), bem como dos sentidos atribuídos ao martírio e à vida heroica. O evento da apropriação de crianças, em particular, viu-se atravessado por diversas instituições – família, agências humanitárias transnacionais, Estado (que empreendeu ações para viabilizar a restituição das crianças sequestradas), Justiça (por meio da formulação de uma legislação específica) e científica (através do desenvolvimento de técnicas que permitissem comprovar a filiação biológica). Como no caso do sequestro de mulheres na Índia analisado por Das (1995)16, na Argentina, no processo de construção da apropriação como crime e acontecimento político nacional, a ambivalência é excluída. Pressupõe-se que os procedimentos estabelecidos pelo Estado junto à organização Abuelas para a restituição da identidade dos apropriados corresponda ao desejo desses sujeitos de verem suas identidades biológicas reveladas. Tal ambivalência é colocada em tela pela necessidade da criação de um novo instrumento jurídico que permita determinar as verdadeiras identidades dos jovens apropriados, mesmo que a sua revelia. Enquanto alguns jovens rejeitam a extração de sangue e desejam esquecer o passado, o Estado e o movimento de direitos humanos não permitem o esquecimento. Argumentando que esses bebês foram retirados à força do núcleo familiar original e que o amor paterno e materno nunca poderia ser construído baseado na mentira, no ocultamento da verdade e no assassinato dos pais biológicos, a questão da restituição voluntária permanece excluída. Quando esses jovens afirmam que desenvolveram laços afetivos com seus apropriadores, criam uma imagem oposta daquela que o Estado e o movimento de direitos humanos procuram impor. Entendo que problematizar como o processo de restituição é vivido e pensado pelos apropriados exige considerar, por um lado, as qualidades conferidas aos laços de sangue na vida social e, por outro lado, o peso das narrativas dos familiares de desaparecidos na definição da memória pública sobre a ditadura na Argentina. São os sentidos que os familiares atribuem ao Processo de Reorganização Nacional, à honra e moral de perpetradores e vítimas, ao parentesco biológico, à apropriação e ao desaparecimento forçado que adquirem, em grande medida, o estatuto de Verdade. Também ganha força o imperativo da responsabilidade do Estado sobre o corpo e a identidade dos

Das (1995) analisa como concepções sobre pureza da mulher e honra da família se viram transformadas no contexto indiano no decorrer de um evento crítico: a Partilha da Índia em 1947. O sequestro e a violência sexual e reprodutiva contra mulheres e crianças se tornariam uma questão pendente para os recém-criados Estados-Nação indiano e paquistanês. 16

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apropriados, sobre a restauração de uma moralidade corrompida e sobre o dever de Memória, Verdade, Justiça e Reparação.17 Cabe ainda destacar a consolidação de um discurso que exalta os sacrifícios heroicos de Madres e Abuelas de Plaza de Mayo na defesa dos valores da nação18 e da família.19 Nesse sentido, salienta-se a sua capacidade de mobilização e de entendimento sobre o sucedido. Ao decifrarem os meandros do sistema legal, estabelecendo articulações com atores da comunidade nacional e internacional, essas mulheres serão lembradas como as principais responsáveis pela abertura dos caminhos institucionais que permitiriam a realização da Justiça e o esclarecimento da Verdade sobre as apropriações.

Ao tratar do tema da adoção no contexto brasileiro, Fonseca (2010) ressalta, por um lado, a importância da influência da biotecnologia no debate sobre o direito às origens e, por outro lado, o papel da lei e de outros instrumentos da ordem pública na construção e no direcionamento dos sentimentos pertencentes à esfera familiar. 17

Seguindo uma perspectiva mais “encantada” do estudo da política e seu simbolismo (Anderson 1989; Hobsbawn 1997; Verdery 1999), proponho analisar a nação não apenas de forma convencional – como uma questão de fronteira territorial, construção do Estado (“construtivismo”) ou como recurso de competição –, mas tomá-la como parte do sagrado, da moral, do parentesco, da espiritualidade, da ancestralidade. O apelo costumaz a esses elementos evidenciam o lugar que ocupam nos processos de legitimação política. O parentesco, em especial, tem funcionado como um dos símbolos políticos mais eficazes dos Estados-Nação modernos. Em suas múltiplas associações, constituiu um meio de simbolização da nação e de legitimação política, bem como articula modos de conceber a relação entre Estado e indivíduo. Poder-se-ia supor que a isso se deva a centralidade dada ao parentesco (mas também ao gênero) nos projetos hegemônicos dos Estados-Nação. A Argentina poderia ser apontada como um exemplo particular da eficácia do parentesco nos processos de construção de comunidades políticas dentro de um Estado-Nação. Ele constitui recurso chave das narrativas sobre a nação argentina, além de servir de fundamento para a articulação de relações sociais e políticas de outra escala nesse espaço nacional. Um caso exemplar seria o movimento de familiares de desaparecidos de que trata este trabalho. Outro exemplo seria o discurso das autoridades militares durante o período ditatorial, quando a linguagem do parentesco e a imagem da família constituiu a base da retórica nacionalista. 18

Como aponta Filc (1997), o que a família representa depende de perspectivas variadas sobre a origem da organização política (e do Estado-Nação), assim como de distintas concepções sobre o que constitui o “natural” no humano, em oposição ao que se entende como próprio da lei, das convenções, das relações de poder ou da transformação histórica. Logo, como coloca Neiburg (2004), antes de tomar como premissa as oposições entre privado x público/local x nacional/ família x política/natural x social, trata-se, por um lado, de verificar modos nativos de relacionar espaços sociais concebidos como de ordem e escalas diferentes e, por outro lado, de analisar como atores e grupos sociais associam, simultaneamente, comunidades políticas (a nação, por exemplo) a outras dimensões da vida social (a família, a moral, o parentesco). Do ponto de vista analítico, ao problematizar a visão liberal e vitoriana de família, Filc (1997) salienta como a crítica feminista (Jane Collier, Michelle Rosaldo, Sylvia Yanagisako) vem argumentando que o lar e as relações no interior da unidade doméstica sejam incluídos no conceito de público, a fim de revelar a presença do político no privado. Além disso, partindo do conceito de microfísica do poder de Foucault (2007), as feministas preocuparam-se em vincular o controle estatal à família, colocando por terra a ilusão de que a mesma constitui um espaço privado e protegido. Deve-se considerar ainda que, na vida social, a família adquire diversos sentidos, sobrepondo as noções de “natureza/privado” e de “social/político/público”, podendo assim ser concebida como espaço liminar e como lugar privilegiado para organizar a interface entre Estado e indivíduo. 19

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A apropriação Ao longo de mais de trinta anos, Abuelas desempenhariam papel central no processo de construção da apropriação como um delito de natureza aberrante e como um acontecimento político nacional, o que levou à recuperação de mais de cem crianças apropriadas, além do questionamento de diversas práticas institucionais e legais referentes ao tema da adoção.20 Através de seu trabalho investigativo, a organização chegaria à estimativa aproximada de 500 crianças sequestradas durante a repressão ditatorial. Desaparecidas por razões políticas, em sua maioria, elas seriam apropriadas por membros das forças de repressão, por famílias vinculadas aos mesmos ou, na pior das hipóteses, pelos próprios assassinos de seus pais. Abuelas narra o fenômeno da apropriação como um plano sistemático que perseguiu o objetivo de socializar os “filhos da subversão” nos valores da ocidentalidade cristã pretendida pelo projeto da Junta Militar. Como afirma Díaz (2005), essa alteração produzida na filiação teria sido posta a serviço de proporcionar a essas crianças uma formação condizente aos ideais e valores morais e políticos do Processo de Reorganização Nacional, como foi autoproclamado o governo militar, em oposição aos valores que o mesmo procurou combater e desaparecer. Abuelas de Plaza de Mayo (2007) definiria os apropriados como pessoas cuja identidade lhes foi arrebatada. Nesse sentido, ninguém poderia negar-lhes o direito de saber quem são: “Y la sociedad en su conjunto tiene – y se debe – ese derecho. Entendemos que los nietos no lo son sólo de las Abuelas, son de todo el país. Son desaparecidos vivos que esperan su libertad” (Carlotto 2008: 130). Numa atitude de pretensão salvacionista, conforme afirma Abuelas, as vidas destes bebês foram poupadas com a condição de que cresceriam dentro dos valores da “verdadeira família cristã argentina”. Socializados, portanto, fora dos valores do “inimigo subversivo”, o que se constituiu como um plano sistemático de apropriação clandestina de bebês, fechavam o elo da cadeia desaparecedora: por um lado, eram eliminadas as marcas da morte (desaparecia-se com o corpo do inimigo, apagando a memória de sua existência) e, por outro lado, eram eliminadas as marcas da vida (sequestrava-se o filho do inimigo, alterando sua identidade e apagando sua descendência para evitar que seu legado fosse transmitido para as gerações subsequentes). Utilizando uma metodologia que priorizou a desaparição forçada de pessoas como principal ferramenta de repressão política, o “outro” era assim radicalmente banido da vida social. Em julho de 2012, concluiu-se o julgamento que ficou popularmente conhecido como Plan Sistematico de Apropiación de Menores. Ditada pelo Tribunal Oral Federal en lo Criminal 6, a sentença daria por comprovada a existência de um plano sistemático de sequestro de crianças durante a Em fevereiro de 2014, Abuelas de Plaza de Mayo tornou pública a resolução do 110o caso de restituição de identidade de crianças apropriadas durante a ditadura. 20

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ditadura, validando no ámbito jurídico a narrativa difundida por Abuelas e pelo movimento de direitos humanos. O entendimento do fenômeno da apropriação como um projeto de socialização alternativo ao que seria propiciado pelas famílias dos desaparecidos já havia sido validado pelos próprios repressores.21 No perído ditatorial, as desaparecidas grávidas costumavam ser assassinadas poucos dias após darem à luz. Seus bebês eram então entregues à adoção como NN ou apropriados clandestinamente por repressores. Como afirma Villalta, “Quedaba ahí limpia la conciencia de los desaparecedores: mataban a quien debían matar; preservaban la otra vida, le evitaban un hogar subversivo y se desentendían de su responsabilidad” (Villalta 2005: 190). A apropriação é concebida por Abuelas e ativistas de direitos humanos como uma forma de ocultamento da identidade, de perversão da criação, de privação da liberdade e de negação permanente da verdade. Giúdice (2005)22 afirma que a violência exercida sobre essas crianças decorre da forma abrupta com que se viram separadas de seus pais. Elas não foram abandonadas, mas roubadas e apropriadas clandestinamente. Nesse processo, incluiu-se adulteração de nome, de idade, simulacro do parto, falsificação da certidão de nascimento, abandono de crianças em orfanatos como NN e a convivência com apropriadores e repressores. Da perspectiva dos familiares, a apropriação daria origem a um tipo de vínculo que se baseia no desaparecimento forçado e no assassinato dos pais biológicos, consumando outro desaparecimento: o apagamento da identidade dos filhos das vítimas. Desconhecendo que foram sequestrados e construindo uma história familiar a partir de uma identidade falsa, os apropriados seriam criados na ideologia do resgate messiânico – salvos de seus valores de origem e da vida desejada por seus progenitores, como afirma Kaufman (2006). Essas crianças foram retiradas de um grupo familiar para serem violentamente incluídas em outro. A apropriação operaria pelo princípio de rejeitação da origem e identidade social dessas crianças. Segundo Giúdice (2005), submetendo-as a uma relação que renega o ocorrido, o terrorismo de Estado pretendeu consolidar o seu triunfo sobre os pais desaparecidos. Enquanto a apropriação pode ser entendida como uma forma de desaparecimento identitário motivado por razões políticas, a concepção de filhos no contexto da militância política da “juventude dos anos 1970” também possui uma forte carga de sentido político. A abuela Estela Carlotto afirma estar convencida de que os detenidos-desaparecidos incluíam seus filhos como parte de seu projeto político:

Ver: CAMPS, Ramon. 1983. “Me Responsabilizo de 5.000 Desapariciones”. In: Revista Tiempo, Madrid. Ver também Depoimento de Adolfo Casabal Elias, advogado de defesa de Miguel Etchecolatz, para o filme-documentário “¿Quién Soy Yo? Los Niños Encontrados de Argentina”. 21

Alicia Lo Giúdice é psicanalista e diretora do Centro de Atención por el Derecho a la Identidad, um serviço de saúde mental oferecido pela organização Abuelas de Plaza de Mayo. 22

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 El embarazo en esas situaciones de riesgo era parte del proyecto de vida. Ellos, como me dijo Laura, ‘no queremos morir mamá, queremos vivir’. Tenían proyectos de vida y querían tener un retoño, tener una familia, dejar un hijo. Yo estoy convencida de que fue un plan, un proyecto, no fue casual. Ellos querían tener hijos y por eso los gestaron. Y tal es así que se demuestra que nacieron los niños a pesar de las condiciones infrahumanas que estaban sus mamás. Mal alimentadas, torturadas, violadas.23

Mariana Pérez, filha de desaparecidos e irmã de um apropriado, também aponta para essa intenção dos militantes políticos de conceberem seus filhos dentro de um projeto coletivo de transformação social, que se concretizaria através da educação do “homem novo” (Muñoz e Perez 2005). De forma semelhante, Ana Testa, uma ex detenida-desaparecida sobrevivente da ESMA, portanto ela própria parte dessa geração desaparecida, confirma essa intenção pretérita, como militante, de criar seus filhos dentro da moral e da família “revolucionária”; gestar filhos significava, em alguma medida, gestar revolução: Los hijos debían ser creados ante la muerte, digamos, o la desaparición, qué se yo. En el caso de la pérdida de alguno de nosotros, el hijo debería ser creado por otro compañero para que ese chico creciera dentro de la moral revolucionaria, con la moral revolucionaria, y en la familia revolucionaria. Eso era lo que pensábamos, en esos términos. Eso discutimos como una semana con el papá de Paula.24

Se para muitos filhos adotivos a busca pela origem biológica pode significar uma busca por identidade e pertencimento, no caso dos apropriados a questão da origem não escapa, além do mais, de seu referente político: os relatos que constituem e definem as histórias dessas crianças desaparecidas e de suas famílias biológicas encontram sua principal referência nos crimes e violações perpetrados no passado em nome da política. Tal processo revela, portanto, em que medida o “apelo do sangue” pode assumir uma variedade de narrativas, bem como “[...] sugere a importância de conjunturas específicas e trajetórias particulares na produção de noções sobre família, identidade pessoal e a necessidade (ou não) da busca” (Fonseca 2010: 509).

A restituição Victoria Montenegro afirma que viveu a restituição de sua identidade como um processo lento e repleto de percalços devido à “carga ideológica” que trazia da família com a qual se criou. Com o resultado do exame de DNA em mãos, ela demoraria dez anos para aceitar seus verdadeiros pais e

23

Depoimento de Estela Carlotto, presidente de Abuelas de Plaza de Mayo, para o filme-documentário “Botín de Guerra” .

Depoimento de Ana Testa, ex detenida-desaparecida e sobrevivente da ESMA, para o filme-documentário “¿Quién Soy Yo? Los Niños Encontrados de Argentina”. 24

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entender quem eles realmente haviam sido. Segundo Victoria, após um longo processo, finalmente pôde compreender que antes de “subversivos”, conforme lhe ensinara seu apropriador e responsável pelo assassinato de seus pais biológicos, o coronel do exército Herman Tetzlaff, seus pais foram militantes políticos e “dois seres excepcionais”.25 Depreende-se do testemunho de Victoria, assim como das narrativas de outros filhos de desaparecidos apropriados, que a restituição da identidade constitui um processo lento, complexo e, por vezes, bastante traumático. Trata-se, além do mais, de um processo no qual se entrecruzam e se acomodam questões da natureza, do afetivo, do familiar, do jurídico, do científico (com ênfase na genética e psicanálise) e, particularmente, do político. Reconhecer a dimensão política do tema da apropriação e da restituição dos filhos de desaparecidos não equivale dizer que o processo de recuperação da identidade promovido por Abuelas junto ao Estado tenha como objetivo propiciar uma espécie de “reversão ideológica”. As Abuelas são enfáticas em afirmar que suas ações pretendem justamente devolver autonomia a esses jovens, que continuariam sequestrados e privados de sua liberdade enquanto permanecem na ignorância sobre sua origem. Elas oferecem a verdade para que seus netos possam seguir com suas vidas em liberdade.26 Pablo Varella, psicólogo que trabalhou junto à Abuelas na área de “divulgação e apresentação espontânea”, afirma que o intuito da restituição da identidade é restabelecer uma Verdade. Esse procedimento busca devolver subjetividade à pessoa, que fora reduzida à condição de objeto no processo de apropriação. Quando recupera a identidade, à pessoa apropriada lhe é oferecida a oportunidade de conhecer sua história para que possa reinserir-se na linha filiatória original.27 Comprovada a Verdade da origem mediante a prova genética, a organização Abuelas disponibiliza uma série de caminhos e intrumentos para a restituição da identidade: assistência psicológica, informações sobre os pais desaparecidos por meio do Archivo Biografico Familiar, a possibilidade de colaborar com a organização, etc. Abuelas afirma que cabe somente ao neto restituído decidir o que fazer com sua Verdade e com as outras narrativas sobre o passado que lhes são apresentadas. Abuelas reconhece que o direito à identidade não se restringe ao conhecimento da filiação biológica e das circunstâncias do desaparecimento dos pais, mas inclui também a possibilidade de que esses jovens tenham acesso aos relatos das gerações que o precederam, para que possam Depoimento de Hilda Victoria Montenegro. Entrevista realizada por Abuelas de Plaza de Mayo em outubro de 2010. Disponível em: <www.abuelas.org.ar>. 25

Ver, por exemplo, o discurso de Estela de Carlotto, presidente de Abuelas de Plaza de Mayo, durante a cerimônia de premiação da organização em Paris, distinguida com o prêmio da UNESCO de Fomento da Paz Felix Houphoüel-Boigny, em 14 de setembro de 2011. 26

Entrevista com Pablo Varella, realizada em 23 de setembro de 2009, na sede de Abuelas de Plaza de Mayo, em Buenos Aires. 27

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 reinserir-se na linha filiatória. Por isso, a importância do Archivo Biografico Familiar, concebido como um facilitador da transmissão geracional que a ditadura pretendeu cercear. Tais relatos se apresentam ainda como um desafio aos discursos dominantes, que tendem a sobrepor narrativas que vão desde a culpabilização dos detenidos-desaparecidos até sua completa vitimização. Embora o discurso público de Abuelas busque deslocar o debate sobre as restituições do terreno das disputas político-ideológicas, as histórias familiares transmitidas aos jovens recuperados encontram-se atravessadas fundamentalmente pela questão política. Na medida em que se entende que as apropriações perseguiram o objetivo de negar e apagar a identidade política dos desaparecidos, as abuelas querem demonstrar o valor das vítimas do terrorismo de Estado e dar-lhes continuidade, recuperando suas descendências. Se o desaparecimento forçado de pessoas representou a face mais secreta da repressão ditatorial, o procedimento da restituição da identidade das crianças desaparecidas ganharia, no período democrático, notória repercussão pública. Além do apelo emocional gerado pelas histórias de vida dos apropriados ser amplamente explorado pelas mídias interessadas na capitalização da tragédia humana, o evento da apropriação acabaria se convertendo numa questão de Estado. Por meio de um discurso que combina narrativa humanitária e naturalização/biologização dos afetos e do parentesco, Abuelas abriu caminhos institucionais, científicos e legais para o esclarecimento da Verdade sobre as crianças desaparecidas. A legitimidade do relato de Abuelas imbuiu-se dos atributos de objetividade, neutralidade, veracidade e moralidade comumente associados ao campo jurídico e científico. Como coloca a presidente de Abuelas, Estela Carlotto, rapidamente os familiares de desaparecidos compreenderiam que a Justiça não funciona por suposição (Carlotto 2001). No início de 1982, a organização mobilizou a comunidade científica internacional, através do Programa de Ciências e Direitos Humanos da Associação Americana para o Progresso da Ciência, para avançar em estudos genéticos que pudessem determinar a maternidade e a paternidade ampliada. Esse foi um passo fundamental para a identificação de crianças que tinham pais desaparecidos e que só contavam com parentes colaterais (avós, tios, primos) para a determinação da identidade genética.28 Após a abertura democrática, e já contando com um método de identifição de eficácia científica comprovada, Abuelas promoveria junto ao Estado a criação do BNDG (Banco Nacional de Datos Genéticos), da CONADI (Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad) e da Red Nacional por el Derecho a la Identidad. A equipe de genética da CONADI gestionou a extração de mostras de sangue de centenas de famílias, procedimento que se veria então fortalecido pela Red Nacional por el Derecho a la Identidad, que difundiu a busca em todo território nacional.

Para um histórico da trajetória de Abuelas de Plaza de Mayo com relação à aplicação da genética no campo dos Direitos Humanos, ver Abuelas de Plaza de Mayo (2008a). 28

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Com isso, pode-se afirmar que Abuelas não estava apenas criando uma estrutura de legitimidade para o Estado, mas também aprendendo a organizar suas demandas diante do mesmo. Elas procuravam tornar socialmente legítimo o imperativo moral referente ao dever do Estado e da sociedade argentina de garantir aos apropriados o direito à restituição de suas verdadeiras identidades. Estabeleceu-se assim, em conjunto com as organizações de familiares de desaparecidos, o monopólio sobre os pronunciamentos éticos relacionados ao passado ditatorial. Como lembra Dillon (2001), nesse processo, a questão da identidade ganharia um novo sentido: trataria-se, antes de tudo, de um direito humano inalienável.29 De forma crescente, a prova da Verdade recairia definitivamente no sangue. A verdade sobre as apropriações seriam comprovadas cientificamente através do exame dessa substância biológica. O sangue garantiria a restituição da identidade do indivíduo, permitindo situá-lo na sua história familiar e social. O dado genético representaria, então, o rastro de um crime que não pode ser apagado; é aquilo que o corpo conserva de uma história que se quis desaparecer, mas que persiste no DNA e nas vozes dos familiares que militam pela memória. O sangue se converte, assim, em uma forma de tradição e herança que, embora entendida como histórica e política, encontra-se fortemente associada ao domínio da natureza e suas representações. Apesar do imperativo de Abuelas pela restituição da identidade de seus netos se expressar nos termos de uma demanda humana universal “pelo amor e a liberdade”, deslocando-se do âmbito das disputas político-ideológicas – o que seria potencializado pela objetividade do discurso jurídico e científico, bem como pelas ideias associadas ao parentesco biológico –, ainda assim suas narrativas evidenciam que o político constitui o centro nevrálgico do debate sobre as apropriações. A variável política atravessa de maneira central as formas como os jovens apropriados experimentam e entendem o processo de restituição de suas identidades. Como aponta o geneticista Penchaszadeh (2008), se a identificação é um campo para a ciência, a aceitação dos resultados do exame de DNA e as ações que deles decorrem são um terreno de luta política, legal e social. Ou como coloca Fonseca (2004 e 2005): “[…] a afirmação de um fato biogenético, o cumprimento de uma lei e o desenvolvimento de uma relação social são processos distintos” (Fonseca 2005: 46). Nesse sentido, Abuelas atribuiu novos sentidos à genética, mobilizandoa em nome dos Direitos Humanos e servindo-se dela como instrumento para reparar violações cometidas na ditadura. Vale lembrar que a história do desenvolvimento da genética no século XX

De acordo com Fonseca (2010), cabe destacar “[...] a necessidade de levar em consideração o escopo enorme de possibilidades para a implementação efetiva das normas de direitos humanos em diferentes países” na medida em que “[...] a própria ‘indeterminação’ das Convenções internacionais permite que os seus princípios básicos passem por “convenções com ‘c’ minúsculo”, localmente forjadas e baseadas em circunstâncias históricas específicas” (Fonseca 2010: 501). 29

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 encontra-se irremediavelmente associada ao racismo, à violação dos direitos reprodutivos e ao genocídio perpetrado em nome da eugenia. No contexto dos embates pelas memórias da ditadura, restituir a identidade é assumir-se filho de uma figura dotada de forte sentido político e que, além do mais, tornou-se emblema do terrorismo de Estado na Argentina: os detenidos-desaparecidos. Reconhecer-se familiar de desaparecido implica, em grande medida, mover-se num campo político altamente conflitivo que constitui a luta pela afirmação de sentidos ao passado ditatorial e seus agentes. Implica também posicionar-se na esfera pública por meio da incorporação e da reivindicação de legados familiares e políticos.

A verdade está no sangue Es lo que te va a dar la verdad. La muestra de ADN es una de las cosas que hicieron las Abuelas que es muy importante, más allá de lo que uno pueda pensar. Es lo que te da la verdad. Del ADN nadie puede dudar […] Cuando hay una mentira en el medio no debe haber nada bueno atrás. Así que la verdad es lo más lindo que puede haber en la vida. La verdad y la justicia. Por más que hayan sido buenos me estaban ocultando, me tenían secuestrado. [...] Sos un juguete de guerra.30

O sangue, através do DNA, revela uma Verdade de natureza inquestionável. “Ninguém pode duvidar do DNA”, afirma Francisco Madariaga, um apropriado que restituiu sua identidade em fevereiro de 2010. Essa mesma assertiva aparece nas narrativas de muitos outros familiares de desaparecidos que militam pelos direitos humanos na Argentina. Nesse espaço nacional, o sangue vem funcionando como um recurso e um símbolo político poderoso para a construção da Memória, Verdade e Justiça com relação aos fatos da ditadura. Por um lado, os laços de sangue com as vítimas da repressão garantiram capital social, bem como um lugar de transcendência moral aos familiares de desaparecidos, consagrando-os como portadores da Verdade sobre a ditadura. Por outro lado, a própria substância biológica contida em seus corpos, por meio de métodos científicos (genética e antropologia forense), converteu-se na prova material cabal da violência política cometida em nome da nação argentina. Bancos de sangue (como o do EAAF e o BNDG) oferecem a matéria para comprovar delitos definidos (jurídica e internacionalmente) como crimes de lesa-humanidade: a apropriação e o desaparecimento forçado de pessoas. O sangue dos familiares torna-se, assim, um recurso chave para determinar a identidade de Depoimento de Francisco Madariaga Quintela, o 100o neto restituído de Abuelas de Plaza de Mayo e filho do secretário da organização, Abel Madariaga. A sua mãe, Mônica Quintela, foi sequestrada em janeiro de 1977, grávida de quatro meses. Seu pai, Abel, conseguiu partir para o exílio na Suécia. Ambos eram militantes de Montoneros. Francisco seria identificado em fevereiro de 2010. A entrevista foi realizada pelo jornalista Andy Kusnetzoff, em 23 maio de 2010, no contexto das comemorações do Bicentenário da Independência, para o qual foi montado um Stand permanente de Abuelas de Plaza de Mayo na exposição Paseo del Bicentenario. Disponível em: <www.abuelas.org.ar>. 30

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bebês apropriados e dos desaparecidos enterrados como NN, ao passo que estabelece a Verdade Histórica sobre o ocorrido.31 Tal processo nos compele a explorar as representações atribuídas ao sangue e à biologia presentes nas concepções sobre o parentesco na vida social e, particularmente, no contexto das disputas pela afirmação de sentidos ao passado de violações na Argentina. Cabe ainda analisar como aqui noções sobre a constituição biológica da pessoa atravessam os processos de reconfiguração de identidades políticas. Enquanto os filhos de desaparecidos criados por suas famílias biológicas, em meio a Madres e Abuelas, podem remeter-se às memórias familiares e às genealogias de militância para explicar suas trajetórias políticas, os apropriados, que cresceram entre militares e repressores, recorrem ao sangue para estabelecer associações entre o processo de restituição de suas identidades e a incorporação de legados políticos. As conexões estabelecidas entre identidade familiar, biológica e política ficam, portanto, mais evidentes no caso dos netos restituídos. Como coloca Bestard (1998), as relações de pertencimento, que se expressam no parentesco através da filiação e do símbolo do sangue, proporcionam modelos para a construção de narrativas sobre o corpo e a identidade, para a construção de vínculos sociais, bem como dá lugar a uma série de representações sobre as relações entre natureza e cultura. Com histórias mais ou menos traumáticas, com ou sem histórico de abusos na infância, os apropriados se aferram ao sangue para definir suas identidades e se afirmarem na esfera pública como familiar de desaparecidos. É por meio das narrativas de abuelas e nietos que o sangue adquire seu sentido mais político. O significado cultural atribuído à restituição da identidade, assim como o atributo de verdade que recai sobre o DNA, demonstra como a transmissão de identidades e legados políticos pode ser representada, sobretudo, através do parentesco biológico. Como coloca a abuela Estela Carlotto, existiria apenas uma identidade: a identidade verdadeira, aquela que persiste na pessoa, pois não pode ser apagada. Nenhuma criação seria capaz de desaparecer com a genética que o filho herdou do pai e da mãe. Quando a verdade é revelada, aparece o filho que foi o projeto desses pais: “No se puede cambiar lo que se lleva en la sangre”.32 No contexto das lutas pelas memórias da ditadura na Argentina, revelam-se modos de representar a relação entre natureza e cultura, assim como formas particulares de estabelecer associações entre o biológico e a identidade moral e política. No idioma do parentesco que se

Taylor (2002) questiona em que medida o DNA pode funcionar como uma espécie de “arquivo biológico” sobre o passado ditatorial. Pressupõe-se que o DNA conserva os últimos rastros do ocorrido e, semelhante a outros tipos de provas, ele seria resistente ao tempo e à manipulação política (gravações, documentos, fotografias, arquivos policiais, digitais, restos arqueológicos, ossadas). 31

Declaração de Estela Carlotto, presidente de Abuelas de Plaza de Mayo, no filme-documentário “Do You Know Who you Are?”. 32

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 expressa nessas narrativas há, portanto, uma referência central ao sangue (transmitido através da cadeia genealógica) como substância biológica capaz de conferir identidade e qualidades aos descendentes dos desaparecidos. O sangue representa uma ordem de valores, um princípio de solidariedade, bem como define as qualidades políticas de suas partes. Ele determina ainda certas obrigações, direitos e deveres com relação ao passado de violações, tais como dar continuidade à memória dos detenidos-desaparecidos e do sucedido durante o terrorismo de Estado. Nesse sentido, embora os familiares reconheçam que a luta pelas memórias da ditadura e de seus tombados constitua uma questão fundamentalmente política, o seu referente continua sendo natural: Pero nos dábamos cuenta de que necesitábamos alguna forma científica para poder demonstrar que esos niños que a veces mirábamos de lejos ir y venir de una escuela eran los nuestros [...] Por eso en los viajes periódicos empezamos a insistir sobre la posibilidad de encontrar la verdad en la sangre.33

Tendo em vista que a natureza foi tradicionalmente definida como um mundo à parte da história humana (situada para além do domínio do político e do econômico), as condutas dos familiares de desaparecidos demonstram como esses domínios podem ser pensados e articulados na vida social. Quando os apropriados restituem suas identidades e se posicionam na esfera pública, o fazem pautados nas propriedades atribuídas ao sangue e à natureza presentes em suas concepções sobre a relação entre o parentesco biológico e a transmissão de legados políticos. Observa-se, principalmente nas narrativas de abuelas e nietos restituídos, a presença de uma espécie de determinismo biológico: a Verdade é encontrada no sangue; a família verdadeira é a família biológica; os apropriados, mesmo que criados nos valores do Proceso de Reorganización Nacional, herdaram a vocação e os atributos políticos de seus pais desaparecidos. Os dilemas que envolvem o tema da apropriação dos filhos de desaparecidos na Argentina trazem à tona a tensão entre formas de relacionar o natural (o biológico, o sangue) e o cultural. Por um lado, na lógica da apropriação está implícita a ideia de que o sangue não determina a identidade política dos “filhos da subversão”. Se retirados do ambiente “contaminado” de origem, eles seriam “salvos” dos valores políticos de seus progenitores. Neste caso, não é a natureza, mas a cultura que constitui os laços de parentesco e a identidade pessoal. Por outro lado, na lógica da restituição ganha força a ideia do poder do sangue e da biologia na transmissão de verdades e identidades. A tensão reside, portanto, na afirmação da força do parentesco social (no processo de apropriação) em contraposição à força do parentesco biológico (no processo de restituição).

de Nélida Gómez de Navajas (In: Dillon, 2001: 73). Nélida, uma das fundadoras de Abuelas de Plaza de Mayo, faleceu em maio de 2012 sem ter conhecido seu neto. A sua filha Cristina, militante do PRT-ERP, foi sequestrada grávida em julho de 1976. Por testemunhos de sobreviventes, Nélida soube que sua filha deu à luz em cativeiro. 33 Testemunho

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Como afirma Feierstein (2007), a política de apropriação dos filhos de desaparecidos suscita comparações entre processos de aniquilamento de grupos sociais baseados em seu ser daqueles baseados em seu fazer (político, consciente, produto da vontade individual), distinção que poderia traduzir-se na oposição entre “crimes ontológicos” e “crimes políticos”. No primeiro caso, a exemplo do Holocausto judeu, o “outro” é aniquilado com base na sua condição biológica (como raça). No segundo, a exemplo da repressão política da ditadura argentina, a gênese da alteridade negativa encontra seu fundamento no cultural: não se nasce “subversivo”, torna-se “subversivo”. Sob a ótica dos militares golpistas, a práxis política não seria essencial, nem transmitida geneticamente. Por isso, a possibilidade de transformar os “filhos do inimigo”, imprimindo-lhes uma nova identidade política e religiosa. Isso nos remeteria, por sua vez, a uma discussão mais profunda sobre modos particulares de conceber a constituição de identidades coletivas (o lugar ocupado pelo natural e pelo cultural na conformação de comunidades de pertencimento). Catela (2005) salienta que nos debates sobre a apropriação apresenta-se um conflito entre duas lógicas classificatórias sobre pertencimento e identidade. Enquanto Abuelas querem fazer prevalecer a ideia de que a cultura e a identidade se transferem e se herdam através do sangue, sacralizando por meio dessa narrativa os laços consanguíneos e o parentesco biológico, no ato da apropriação está presente a ideia de que a cultura pode tornar puros os impuros. Presume-se daí a possibilidade de assassinar bebês identitariamente para fazê-los renascer com uma identidade alternativa. Junto a esses modos conflitantes de conceber a constituição da identidade (natural x cultural), os dilemas que envolvem o tema da apropriação dos filhos de desaparecidos e da restituição de suas identidades inserem-se, além do mais, no campo de disputa pela afirmação de sentidos (por vezes, antagônicos) ao passado ditatorial. O processo de apropriação e restituição encontra-se atravessado por um conflito político pretérito que se vê ressignificado no presente nacional por meio dos embates travados pela construção de uma memória pública sobre a ditadura. É nesse contexto que ganha sentido o lugar ocupado pelo político nas experiências e narrativas dos apropriados acerca do processo de restituição de suas identidades. Juan Cabandié, por exemplo, que recuperou sua identidade de maneira voluntária em 2004, posiciona-se publicamente contra o crime de apropriação e rejeita a família que o criou, “um matrimônio vinculado aos militares”. Mobiliza, para tanto, termos próprios ao campo de disputa política, afirmando ter sido criado com o “inimigo”, aqueles que foram os responsáveis por tortutar, assassinar e desaparecer.34

Depoimento de Juan Cabandié para a série-documentário “El Alma de los Verdugos” . Seus pais, militantes da JUP, foram sequestrados em novembro de 1977, em Buenos Aires. 34

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 Já Alejandro, que restituiu sua identidade por via judicial em 2006, lembra que cresceu em uma “bolha”. Morava num bairro onde era vizinho do exditador Jorge Rafael Videla. Entende que foi enganado durante 26 anos pelo seu apropriador. Tendo a verdade sobre sua origem, sente-se orgulhoso de ser o que é: filho de desaparecidos, pessoas cujas “vidas lhes foi arrebatada” porque lutavam por outro “modelo de país”. Com suas ações, procura corresponder ao desejo de seus pais desaparecidos.35 Alejandro explica que, inicialmente, recusou-se à extração de sangue e rejeitou sua verdadeira identidade por conta da “lavagem cerebral” promovida pelo seu apropriador. Criou-se em meio a narrativas que justificavam o atuado pelas Forças Armadas, nas quais a repressão era interpretada como uma missão maior de defesa da pátria. Após conhecer a verdade, afirma que pôde enxergar melhor a “realidade”. Não considera que foi adotado, mas “roubado”. Por isso, escolheu juntar-se ao coro que clama por Verdade e Justiça. Alejandro também rememora como fora educado para acreditar que os detenidos-desaparecidos haviam sido guerrilheiros subversivos que pretenderam destruir a sociedade argentina. Ele ressalta o discurso “salvacionista” presente nas histórias de seu apropriador sobre a repressão e a sua “adoção.36 Cabe relevar que o teor “salvacionista” presente nas narrativas que buscam justificar a apropriação são um produto histórico e social argentino. Como analisa Villalta (2005), a atitude daqueles envolvidos na apropriação dos filhos de desaparecidos deve ser analisada em face da história, das concepções de parentesco, bem como de práticas de adoção já presentes na vida social. Combinando formas clandestinas e pseudo-legais, o processo de apropriação de crianças contou com a participação direta de membros do poder judicial. Tal envolvimento deveu-se tanto ao grau de afinidade político-ideológica de alguns juízes com a ditadura quanto à práticas e rotinas burocráticas que se desenrolavam desde antes do golpe de Estado. Além dos magistrados encontrarem-se imbuídos de amplos poderes para decidir sobre o destino dessas crianças, o processo de apropriação dos filhos de desaparecidos combinou discursos classistas e salvacionistas, que já eram constitutivos do tema da adoção e da “infância pobre e abandonada”, ao discurso militar de condenação dos “lares subversivos” e da “vida moral desordenada”. Foi desta forma que muitos magistrados entenderam que os “subversivos” não tinham o direito de criar seus filhos. Victoria Montenegro lembra como o seu apropriador passava horas contando-lhe os detalhes dos operativos travados contra a “subversão”. Antes de saber a Verdade, Victoria considerava que o

Declaração de Alejandro Pedro Sandoval para o programa televisivo 6,7,8 na TV Pública argentina, em 21 de setembro de 2010. 35

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Declaração de Alejandro Pedro Sandoval para seu blog. Disponível em: <http://blogsdelagente.com>.

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coronel do exército que a criou tinha sido um soldado que ajudara a salvar a pátria da “subversão”. Até então, o mal eram as Abuelas, “las viejas del pañuelo”.37 Mariana, filha de desaparecidos, cujo único irmão foi apropriado, relata que seu maior temor era reencontrar-se com um irmão parecido com “um desses filhos de alta classe e dos milicos”. Receava que ele a desprezasse por questões de classe e político-ideológicas; por ser “grasa, zurdita”, categorias pejorativas para denominar pessoas politicamente de “esquerda” na Argentina. Ela expressava, nesse momento, que seu principal desejo era oferecer ao seu irmão a oportunidade de conheçer a história de seus pais: pessoas que os amaram; “seres inteligentes e talentosos” que escolheram, enquanto “compromisso militante”, “viver pelos demais”.38 Guillermo, o irmão de Mariana que foi identificado em junho do ano 2000, após um longo processo de aceitação de sua verdadeira identidade e de rejeição dos vínculos afetivos e ideológicos com a família apropriadora, declararia doze anos depois, num programa televisivo, que escolhera “ficar desse lado”, ou seja, posicionar-se a favor de seus pais desaparecidos e de sua família biológica.39 Os testemunhos desses netos restituídos demonstram como a identidade e o parentesco encontram-se, neste caso particular, marcados por um conflito político passado, que se reatualiza no presente através das disputas pela consolidação de uma memória pública sobre passado ditatorial. O posicionamento público dos filhos de desaparecidos que foram criados na ideologia do Processo possui um enorme apelo emocional e político no contexto dos embates pelas memórias da ditadura. Seus relatos imprimem reconhecimento social e ancoram as narrativas dos familiares de desaparecidos sobre a repressão e suas vítimas, narrativas estas difundidas ao longo de mais de trinta anos pelo movimento de direitos humanos. Nessa direção, muitos dos jovens restituídos repudiam a apropriação, condenam o terrorismo de Estado e destacam as qualidades morais e políticas dos detenidos-desaparecidos e de suas famílias biológicas. Eles ressignificam antagonismos e mobilizam categorias que são próprias ao campo de disputa política: militares x desaparecidos e familiares; perpetradores/genocidas x vítimas; moral x imoral; amor x ódio; crimes de lesa humanidade x respeito aos direitos humanos; guerra contra a Depoimento de Hilda Victoria Montenegro, filha de desaparecidos, apropriada por um coronel do exército que teve participação direta no assassinato de seus pais. A sua identidade foi restituída em julho de 2000. Entrevista realizada por Abuelas de Plaza de Mayo em outubro de 2010. Disponível em: <www.abuelas.org.ar>. 37

Memoria Abierta, Testemunho de Mariana Pérez, Buenos Aires, 2002. Os pais de Mariana, José Manuel Pérez Rojo e Patricia Roisinblit, foram sequestrados em outubro de 1978. No momento do sequestro, sua mãe estava grávida de 8 meses. O irmão de Mariana, nascido durante o cativeiro de sua mãe e posteriormente apropriado, apresentou-se voluntariamente para a realização do exame de DNA, restituindo sua identidade no ano 2000. Mariana foi criada pela avó paterna. Sua avó materna, Rosa Roisinblit, é a vice-presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo. Mariana forma parte da nova geração de ativistas que integra Abuelas. 38

Declaração de Guillermo Pérez de Roisinblit, filho de desaparecidos e apropriado, no programa televisivo Bajada de Línea, em 1 de abril de 2012. Guillermo, que é neto da Abuela de Plaza de Mayo Rosa Roisinblit, restituiu sua identidade em junho de 2000. Seus pais, José Manuel Pérez Rojo e Patricia Roisinblit, foram sequestrados em outubro de 1978. A sua irmã Mariana , que foi criada pela avó paterna, forma parte da nova geração de ativistas que integra Abuelas. 39

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 subversão x luta por justiça social; salvadores da pátria x terroristas/guerrilheiros/subversivos; culpa x inocência; mentira/ocultamento x verdade. Enquanto o dado biológico permite comprovar um delito, funcionando como um símbolo poderoso diante da lógica da apropriação, fica patente também como a verdade não está dada no DNA, mas resulta de um processo social que leva à atribuição de sentidos particulares ao passado ditatorial e ao parentesco biológico. Por isso, a performance pública e política dos familiares é tão importante quanto a evidência científica, pois volta a atenção para a tragédia nacional em primeiro lugar. Como coloca Catela (2005), a identidade que se constrói através do nome, das histórias, das escolhas, dos projetos familiares e políticos é conduzida pelo trabalho político da memória; ainda que seu referente seja natural, o processo de aceitação e significação é social e político. Para os filhos de desaparecidos apropriados, recuperar a identidade não se resume a conhecer a origem biológica. Quando adotam o novo nome e se inserem na linha filiatória original, incorporam também legados e deveres associados à identidade de familiar de detenido-desaparecido. Para Alejandro Sandoval, o seu novo documento de identidade (“DNI da Verdade”), além de atestar seu nome e origem verdadeiros, representa, sobretudo, “fechar um passado de mentiras” e abrir um caminho de verdade.40 A sua nova identidade implica, assim, em assumir a responsabilidade de “saber tudo” e de “saber quem é”: Para todo el mundo el documento de identidad ¿qué es? ¿Un cartoncito que sirve solamente para votar? Y para mí ya es cerrar mi pasado y mostrar definitivamente mi presente. Es decir, yo soy el hijo de mis viejos. […] Pero asumir con la responsabilidad que lleva saber todo, de saber quién es quién. […] Que todos los chicos que tengan dudas de su identidad que no duden de ir a Abuelas. […] Que no tengan miedo porque la verdad duele, pero te libera de todo.41

Considerações finais O lugar protagônico ocupado pelo parentesco biológico e pelo DNA nos embates pelas memórias da ditadura na Argentina situa-se num contexto histórico mais amplo. Em diversas partes do mundo a genética vem adquirindo cada vez mais importância em questões familiares, bem como vem servindo como um mecanismo crucial para a produção de provas criminais. Logo, se o sangue e

Sobre os impedimentos legais que recaem sobre os netos restituídos devido à demora na confecção de seus novos documentos de identidade, ver: NOAILLES, Martina. La larga espera por los DNI de la verdad. Crítica, Buenos Aires, 22 de novembro 2009. Disponível em: <http//:www.abuelas.org.ar>. Ver também: ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Decenas de nietos no tienen su verdadero DNI por un vacío legal. Mensuario de Abuelas de Plaza de Mayo, Ano XI, No 91, Buenos Aires, junho de 2010. Disponível em: <www.abuelas.org.ar>. 40

Declaração de Alejandro Pedro Sandoval, filho de desaparecidos apropriado, para a agência de notícias Telam, em 11 de junho de 2010. 41

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o DNA transformaram-se num instrumento crítico para a afirmação da verdade sobre o passado na Argentina, isso deve-se ao conteúdo social que se imprime à substância biogenética. Nesse cenário e no que tange especificamente à temática familiar, os elementos biológicos do parentesco tornaramse uma forma privilegiada de ordenar e de dar significado às relações sociais, onde os laços de sangue simbolizam as relações de solidariedade mais duradouras e persistentes (Bestard 1998; Schneider 1977). A força, a emotividade e o imediatismo presentes no processo de restituição da identidade de muitos filhos de desaparecidos derivam, em grande medida, do caráter imutável e involuntário comumente atribuídos à natureza e ao parentesco biológico. Dessa perspectiva, as relações de consanguinidade e de filiação, enquanto “fatos naturais”, representam um estado essencial; são atributos inerentes e inalienáveis. Daí sua qualidade normativa. Os fatos da biologia convertem-se, nesse sentido, em idioma para expressar valores e normas, ao passo que moldam concepções sobre a constituição da pessoa, suas obrigações, deveres, afetos e relações. Por isso, para Abuelas, o parentesco funda-se, em primeiro lugar, nos laços de sangue. Essa substância define a identidade da descendência, dá suporte às relações de filiação, assim como une naturalmente pais e filhos. Estabelece-se assim uma relação direta entre material genético, genealogia e filiação: quando uma pessoa conhece sua origem genética, reconhece seu vínculo social verdadeiro. Por conseguinte, pode-se afirmar que, ao mesmo tempo em que o trabalho de restituição legitima-se pelo fato da apropriação ser atualmente concebida (jurídica e socialmente) como um crime de lesahumanidade, as demandas de Abuelas igualmente encontram respaldo na ideia de que “[...] la prueba definitiva de la verdad descansa en la prueba de ADN, en la genética, en la biología y en la sangre” (Jelin 2007: 48). No contexto das lutas pelas memórias da ditadura na Argentina, o sangue pode atuar como um símbolo poderoso para a construção da identidade em termos de continuidade. Abuelas afirma que a reinserção de seus netos na cadeia genealógica original constitui uma medida reparatória importantíssima para as famílias dos desaparecidos, mas é, sobretudo, uma condição necessária para que os apropriados possam historicizar-se diante de sua descendência. Essa afirmação ganha sentido num momento em que Abuelas começa a apontar preocupação com a transmissão da verdade (ou da mentira) para a geração de seus bisnetos (os filhos dos jovens apropriados). Portanto, Abuelas entende que uma das consequências mais graves da apropriação é a transmissão da “falta da identidade” para as gerações subsequentes. Sob essa ótica, o sangue pode transmitir tanto verdades e identidades quanto mentiras e ocultamento: na medida em que o processo de restituição se vê impedido, o que se transmite para a descendência é a história das desaparições forçadas. Preocupadas com a geração de seus bisnetos, Abuelas deu início a uma mobilização para assegurar que o BNDG funcione por mais tempo do que o previsto (ano de 2050), a fim de garantir à outra geração o direito à Verdade. !222


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.200-224, 2013 Tal processo coloca em evidência como o nascimento e a morte podem determinar o parentesco e a identidade. Se a genealogia situa o indivíduo em uma rede de relações que o distingue dos demais, as representações sobre quem foram e como morreram os detenidos-desaparecidos também podem conferir qualidades distintivas a seus familiares na esfera pública e política da nação. Neste caso, o parentesco, através do símbolo do sangue, garante a continuidade da memória, estabelece relações, identidades políticas e a Verdade Histórica sobre a ditadura.

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Filmografia Botín de Guerra Argentina, Espanha 1999 (117 minutos). Direção: David Blaustein Do You Know Who You Are? Argentina, 2006. Direção/realização: Fulvio Arrichello El Alma de los Verdugos España, 2007 (105 minutos). Direção: Baltazar Garzón, Vicente Romero ¿Quién Soy Yo? Los Niños Encontrados de Argentina Argentina, 2007 (75 minutos). Direção: Estela Bravo

Recebido em 17 de fevereiro de 2014 Aprovado em 10 de março de 2014 !224


relatos de pesquisa


Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.226–235, 2013 R@U

relato de pesquisa Sobre a fabricação da materialidade do crime: Uma etnografia da perícia criminal no Instituto de Criminalística do Paraná Joelcyo Véras Costa Graduando em Ciências Sociais Universidade Federal do Paraná

Desenvolverei nas próximas páginas uma etnografia da perícia criminal e dos laudos periciais produzidos por peritos do Instituto de Criminalística do Paraná, localizado no centro de Curitiba. A pesquisa compreendeu os meses de dezembro de 2012 e fevereiro de 2013, tendo como foco principal de análise a série de procedimentos que integram a atividade de perícia criminal, e que tem como produto final os laudos periciais. Tais documentos produzidos na fase de inquérito policial constituem a materialidade do crime, sendo peça indispensável para o início do processo criminal, além de autorizar os promotores de justiça, delegados e juízes a falarem sobre a real ocorrência de um ato imputado crime. Para fins de elucidação, será apresentado um caso específico em que demonstrarei como os peritos procedem suas análises quando noticiado um acontecimento delituoso.

As seções: um conceito “nativo” para as especialidades de perícia criminal No Instituto de Criminalística, as especialidades periciais são concebidas em dois grupos principais. O primeiro grupo, denominado de Localística, indica-nos a perícia criminal realizada nos locais em que ocorreu o delito. Dentro deste grupo, encontram-se as especialidades periciais voltadas para certos gêneros de crime: Locais de morte (Crimes contra a Pessoa); Crimes contra Patrimônio; Acidentes de Trânsito e, por fim, Engenharia Legal (acidentes de trabalho). O segundo grupo de perícias é denominado de Laboratórios e indica a perícia criminal desenvolvida no interior do Instituto e que integra especialidades como Balística Forense; Documentos copia; Química Forense; Genética Molecular !226


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.226-235, 2013 Forense (DNA) e outras atividades técnicas. Ao contrário da perícia realizada pela Localística, os peritos dos laboratórios não se deslocam até os locais do crime.1 Estas especialidades, a exemplo de Crimes contra a Pessoa; Balística Forense; Química Forense etc., são denominadas de seções. Perguntar a um perito qual a seção dele é o mesmo que perguntar em qual especialidade ele desenvolve suas atividades de perícia. Até alguns anos atrás, em decorrência do corpo de funcionários ser reduzido, era comum os peritos desenvolverem atividades em mais de uma seção. Tanto que é comum no relato dos peritos dos Laboratórios lembranças de quando também eram da Localística. Associado a este primeiro uso do termo, seção também indica as repartições físicas que formam os laboratórios no Instituto. Estas repartições se assemelham às divisórias recorrentemente utilizadas em escritórios, deixando o Instituto com um aspecto de repartição pública. Embora tenha apresentado a perícia criminal como agrupada em Laboratórios e Localística, não há uma oposição entre ambas as modalidades. Como veremos, além da divisão “interno” e “externo” não ser rígida, a produção da materialidade do crime pela perícia criminal, que é concretizada na forma de Laudo de Exame Pericial, impõe uma circularidade tanto de documentos quanto de materiais a serem analisados, além de mobilizarem diversas especialidades de perícia criminal e peritos. Para fins de elucidação dessas proposições e buscando desenvolver a problemática central proposta neste texto, a saber: a fabricação da materialidade do crime, abordo nas próximas linhas um caso específico que exemplificará os procedimentos da perícia criminal. Viso desenvolver uma etnografia que combine a análise de laudos de exames periciais com a atividade pericial desenvolvida pelo Instituto de Criminalística do Paraná. No dia 30 de março de 20012, às 21h15min, dois soldados da Polícia Militar foram acionados por “duas menores de idade” que há pouco haviam encontrado o corpo sem vida de Sebastião no quarto de sua residência. Às 22h30min, dois peritos da Localística (seção de Crimes Contra a Pessoa), do Instituto de Criminalística, foram convocados para procederem ao exame do local em que fora encontrado Sebastião. A residência da vítima, situada a aproximadamente 10 km do centro de Curitiba, era bastante simples, sendo que uma das partes da casa encontrava-se há muito tempo em fase de construção. O corpo de Sebastião se encontrava no quarto sobre a cama, na posição denominada pelos peritos no laudo de decúbito dorsal, popularmente conhecida como “de barriga pra cima”. A mão direita da vítima se posicionava em cima do tórax superior (próximo ao pescoço). A mão esquerda de

Se os peritos dos Laboratórios permanecem no interior do órgão, por outro lado os peritos da Localística não costumam ir ao Instituto de Criminalística. O horário de trabalho dos peritos da Localística costuma ser de plantões que podem durar 24 horas e a confecção do Laudo de Exame Pericial se dá comumente em suas residências, bem como é dela que partirão quando forem convocados para realizar perícia no local do crime. 1

As informações que se seguem foram extraídas de um Laudo de exame e levantamento de local de morte. Os termos técnicos como: “cartucho”, “.38”, “projétil” etc. serão esclarecidos na próxima parte do texto. 2

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Sebastião encobria o umbigo e repousava sobre o cabo de uma arma de calibre .38, com capacidade para cinco cartuchos, sendo que um deles havia sido deflagrado.3 A arma estava com o cano virado para a direita, dando a impressão que a mão esquerda de Sebastião teria manipulado a arma e efetuado o disparo. Também no lado esquerdo, na região do crânio denominada temporal esquerda (próximo ao ouvido) estava a marca de entrada do projétil que teria provocado a morte de Sebastião. Devido ao impacto do projétil, o rosto da vítima estava parcialmente encoberto de sangue. No laudo segue a informação de que na parte externa da residência havia uma escada que poderia ter possibilitado o acesso ao andar superior da casa de Sebastião, onde se encontravam os quartos e os demais cômodos utilizados. Com base nestes elementos, os peritos indicam no laudo que foram coletadas impressões papilares (digitais) da escada, da janela situada no quarto ao lado em que Sebastião foi encontrado sem vida, além das impressões na arma encontrada junto ao corpo. No entanto, no mesmo laudo os peritos concluem que os fragmentos das impressões papilares que estavam presentes nos materiais referidos eram insuficientes para serem confrontados, no laboratório, com as impressões de Sebastião. Ao passarmos à análise das fotografias presentes no laudo podemos levantar a hipótese de suicídio ou de um homicídio em que se buscou simular um suicídio. De qualquer forma, segue no laudo a informação de que foram coletados resíduos metálicos na mão de Sebastião e encaminhados à seção de Química Legal para proceder ao exame – isto é, verificar se a mão da própria vítima havia efetuado o disparo. Por último, os peritos informam que a arma foi inserida em uma embalagem lacrada, identificada e rubricada.

Do local de crime aos laboratórios O caso de Sebastião é um bom exemplo para apreendermos a perícia criminal como notícia aos policiais de um determinado acontecimento imputado crime; e feita a solicitação dos peritos no local do acontecimento, inicia-se o primeiro momento de um “ciclo de capitalização de inscrições” (Latour 2000). Estas inscrições se apresentam na forma de armazenamento da arma em uma embalagem lacrada, identificada e rubricada e laudo de exame pericial que detém uma numeração. Bem como as informações presentes no laudo, tais como fabricante, número de série e calibre da arma encontrada junto à vítima; horário de acionamento dos peritos; localização da cena do crime; nome da vítima, coleta e tipificação de uma série de materiais concebidos como vestígios materiais do crime. Os peritos na produção de inscrições também se utilizam de formas de linguagens combinadas: a linguagem textual e a imagética. Ao folhearmos as páginas do laudo, podemos até

Deflagrar: incitar, provocar, irromper. Termo utilizado pelos peritos para indicar que a arma realizou o disparo e no lugar da munição é encontrada apenas a cápsula, denominada tecnicamente de estojo. 3

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.226-235, 2013 discordar da linguagem um tanto “híbrida do perito”, o qual lança mão de termos compartilhados pela balística forense e medicina legal em sua descrição; no entanto, as páginas do laudo reapresentam o corpo de Sebastião, de modo combinado com a descrição dos peritos. Poderemos até tirar nossas conclusões ao visualizarmos às imagens, porém é o perito quem detém a “fé pública” e coordenará nossa hermenêutica. Se Sylvia Caiuby Novaes indica uma tensão entre imagem e texto afirmando que, “[...] textos remetem à autoria, ao passo que imagens são quase sempre remetidas ao referente que elas apresentam.” (Caiuby Novaes 2008: 455). No laudo visualizamos um entrelaçamento de textos e imagens, sendo que tal recurso retórico possibilitará, além de reforçar o que “está sendo dito” pelos peritos, a construção da objetividade tão reivindicada pela perícia compreendida como uma atividade tecnocientífica. Vimos anteriormente que no local em que se achava Sebastião foram coletados fragmentos de impressões papilares, resíduos metálicos na mão da vítima, uma arma calibre .38 e, por fim, o próprio corpo de Sebastião, o qual foi deslocado para o Instituto Médico Legal. Todos estes elementos juntos formam o que os peritos chamam de corpo de delito. Nesse sentido, ao contrário do que recorrentemente se concebe, corpo de delito não é apenas o corpo da vítima, mas também todos os vestígios materiais deixados pelo que se considera um delito. O resultado da análise desses materiais constituirá ao fim da investigação a materialidade do crime. Como aponta Iubel (2009: 87), “materialidade é o termo ‘nativo’ utilizado pelos policiais [e peritos], que está também na lei, para descrever o conjunto de provas por eles construídas ou encontradas que autorizam falar na real ocorrência de um crime ou não.” Por outro lado, este corpo de delito será desmembrado e suas partes serão deslocadas para dentro dos laboratórios do Instituto de Criminalística. Este deslocamento acompanha uma distribuição dos materiais entre determinadas especialidades periciais: as impressões papilares foram remetidas ao Laboratório de Papiloscopia; os resíduos metálicos à seção de Química; a arma remetida à seção de Balística Forense junto com o projétil extraído do crânio de Sebastião pelo perito do IML; além do próprio corpo de Sebastião que será analisado no laboratório de Necropsia do IML e terá como produto final um laudo necrópsico. Ou seja, em uma “simples morte”, seja ela proveniente de um homicídio arquitetado ou de um suicídio anômico, vemos cinco especialidades periciais (as seções) sendo mobilizadas. Ademais, não devemos esquecer-nos dos policiais civis que junto com os peritos serão responsáveis pela investigação do caso e apuração da autoria do delito. Ao fim da investigação sob a forma de inquérito policial que os laudos periciais integram, as provas serão reunidas em uma narrativa “sintetizante” denominada de fato (fato jurídico) presente na denúncia oferecida pelo promotor de justiça ao juiz que julgará o caso. Para compreendermos essa construção coletiva de um fato jurídico por meio da prática tecnocientífica da perícia criminal, adentraremos nas próximas páginas no laboratório da Balística Forense e Documentoscopia. !229


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A perícia criminal nos laboratórios Para que a perícia nos laboratórios aconteça, os materiais deslocados até o Instituto de Criminalística deverão passar pelo que foi denominado pela Diretora dos Laboratórios de “o coração do Instituto”: a seção de Protocolo. É nesta seção, considerada a mais movimentada no órgão, que os policiais deixam os ofícios contendo a solicitação de perícia laboratorial feita pelo delegado, bem como os materiais apreendidos com os suspeitos de crime e que serão analisados. Sendo assim, os funcionários do Protocolo irão cadastrar o pedido e materiais num sistema computadorizado, criando um número de identificação interno e distribuindo os materiais junto com os ofícios entre as seções incumbidas. Dentro dos laboratórios, estes materiais junto com os ofícios serão distribuídos entre os peritos conforme a designação realizada pelo diretor da seção. No caso da seção de balística forense, os materiais analisados são de variados tipos, compreendendo desde armadilhas de caça, carabinas, facões, enxadas e outras armas que tenham sido utilizadas no que se chama de crimes contra a vida ou consideradas como impróprias (armadilhas). No entanto, os materiais mais recorrentemente analisados segundo os peritos são as armas de calibre .38 que se utilizam da munição (cartucho) que segue abaixo:

Sobre a mesa dos peritos da seção de balística encontramos, além de uma série de modelos de laudos, manuais de empresas armamentícias, tais como Taurus e Rossi. Junto com a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), estas empresas detém o monopólio do mercado bélico no Brasil e garantem aos peritos uma “padronização parcial” dos materiais a serem examinados. Digo “padronização parcial” visto que parte das munições (cartuchos) utilizadas em crimes são contrabandeadas. Essas munições são na maioria das vezes de fabricação argentina, sendo a parte do projétil (o chumbo da munição) encapado com uma fina película de cobre – diferindo do padrão da CBC. Meu principal informante na seção de balística, por exemplo, costumava brincar dizendo que “os argentinos gostavam de dificultar a vida dele”, aludindo que a capa de cobre no projétil argentino deixava o confronto balístico mais difícil.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.226-235, 2013 Vimos que o projétil retirado do crânio de Sebastião pelo perito do IML foi enviado à seção de Balística. O projétil ficou armazenado na seção junto à arma que fora encontrada com o corpo, sendo que somente um ano depois o delegado responsável pelo inquérito do caso encaminhou um ofício à Balística solicitando o exame de confronto balístico. O confronto é tido pelos peritos como o principal exame desenvolvido na seção, e também o mais cansativo. Para alguns peritos, este exame exige uma boa noite de sono e estar com disposição, dado que a análise dura em média três horas consecutivas. O exame de confronto visa basicamente verificar se a arma encontrada no local de crime – como a que estava com Sebastião, por exemplo –, ou com algum suspeito, foi a mesma que efetuou o disparo que matou/feriu a vítima. A seguir, discorrerei sobre esta principal modalidade de perícia. O projétil tomado como vestígio do crime e que fora enviado à seção de balística pelo IML é denominado de questionado ou em questão. A série de procedimentos periciais realizados no laboratório buscará domesticar o material em questão. Para isso, o perito inicialmente realiza o chamado teste de eficiência da arma que é a efetuação de um disparo contendo somente a espoleta (conteúdo explosivo da munição sem o projétil) em uma caixa de isopor que reduzirá o barulho do disparo. Após isso, ele irá fotografar os projéteis questionados e a arma apreendida que se encontram sobre uma superfície plana, quadrada, com réguas nas quatro margens. Neste momento, os projéteis questionados são catalogados numa folha e atribuídos a eles uma numeração. A seguir, o perito se dirige a uma sala escura na qual se acham os microscópios-comparadores e uma balança digital. Os questionados são pesados um a um, tendo sua massa variado alguns décimos de gramas recorrentemente. O peso do projétil questionado é anotado numa folha, de modo a corresponder com o número que foi dado a ele anteriormente. Em seguida, o perito com um medidor digital – paquímetro digital – mede o diâmetro do projétil, sendo que tal medida também costuma variar alguns décimos de milímetros. Com estes dois procedimentos temos o chamado calibre real do projétil, ou seja, o peso e o diâmetro exato dele. Nesse sentido, o chamado calibre .38 é denominado de calibre nominal, dado que dentro desta medida há variações – ela é sempre aproximativa. Em alguns casos, o projétil questionado pode estar tão danificado a ponto de somente o peso determinar qual o seu calibre real e nominal, isto é: se ele estiver na casa de 8 gramas é de uma arma calibre.38. Logo após o perito confirmar que o calibre real se adequa à faixa de diâmetro e peso do calibre nominal da arma em exame, ele passará ao segundo momento da perícia. Esta etapa será marcada pela seleção de cartuchos (munição) de preferência da mesma marca do projétil em questão, ou que coincida com o modelo, i.e.: projétil da CBC = cartucho da CBC; projétil encapado com cobre = cartucho encapado com cobre. Desta forma, realiza-se o disparo com a arma apreendida na cena do crime, ou com o suspeito, utilizando os cartuchos selecionados. O disparo ocorre num tanque d’agua, onde o perito irá posteriormente apanhar a parte de chumbo (projétil). Este projétil produzido dentro do laboratório é denominado projétil padrão. Porém, surge a questão: O que efetivamente possibilita !231


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o perito comparar (confrontar) os projéteis padrões e questionados? Além de todos os procedimentos até aqui descritos, o cano da arma examinada efetua pequenos “arranhões” no projétil. Estes “arranhões” são tidos pelos peritos como a impressão digital (única) de cada cano, e, consequentemente, da arma. Vejamos a imagem a seguir:

O terceiro momento da perícia, o mais demorado e desgastante segundo os peritos, é o confronto dos projéteis. Na seção de Balística, para cada um projétil questionado o perito criminal produz dois ou três projéteis padrões. Este número de padrões dependerá “do gosto do perito” e do grau de dificuldade que o questionado impõe a eles: nos casos em que os projéteis questionados estão muito danificados – como o projétil que matou Sebastião – são produzidos via de regra três projéteis padrões. Um projétil questionado e um padrão são colocados por vez no microscópio-comparador, sendo que a lente esquerda do microscópio oferecerá a imagem de um projétil e a da direita, de outro. Nesse sentido, o perito terá simultaneamente diante dos olhos dois projéteis diferentes a serem confrontados. Em seguida, buscar-se-á verificar se os sulcos (fissuras) feitos pelas estrias do cano da arma no projétil questionado e no padrão coincidem. Se ambos os projéteis apresentarem sulcos semelhantes que o cortam do centro à base, o perito passará então a comparar os pequenos raiamentos (ranhuras) quase imperceptíveis a olho nu e que se acham entre os dois sulcos. Desta forma, os sulcos oferecem um ponto de referência no qual o perito vai se amparar para buscar raiamentos semelhantes entre os dois projéteis analisados. No confronto balístico, a análise pericial buscará a semelhança dos raiamentos em três zonas – das seis no total – situadas entre os dois sulcos. Ao fim do confronto balístico, será confeccionado em alguns minutos um Laudo de exame de arma de fogo e de munição, onde constarão informações detalhadas sobre a arma e projéteis analisados: fabricante, calibre, eficiência e número de série da arma em questão; em quais condições o projétil questionado chegou ao laboratório; quantos projéteis padrões e questionados foram ao todo produzidos e confrontados. Segundo os peritos, na maioria dos confrontos balísticos os raiamentos e sulcos dos projéteis analisados apresentam semelhanças, indicando que ambos percorreram o mesmo cano da arma. Tal constatação indica que a arma apreendida como vestígio material do crime foi utilizada na ação delituosa que culminou no ferimento/morte da vítima e que desencadeou a perícia !232


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.226-235, 2013 – conforme o laudo de confronto balístico do caso de Sebastião, a arma encontrada junto ao seu corpo foi a mesma por onde percorreu o projétil que provocou sua morte. A seção de Documentoscopia se encontra no mesmo corredor que a seção de Balística, porém, ao adentrarmos nesta seção nos deparamos com peritos que estendem prontamente a mão para cumprimentar quem quer que chegue ao laboratório. Na Balística, um toque de mão, por mais cordial que fosse, gerava certo desconforto por parte dos peritos, dado que eles comumente analisavam armas de locais de morte que ainda possuíam resíduos de sangue seco. Tal elemento aponta certo “grau de pureza” entrelaçado aos “padrões de conduta” distintos de cada seção. Se na balística fui tomado inicialmente como um possível espião, e mais tarde como alguém que poderia colocar em risco a segurança do laboratório, na Documentoscopia fui tomado como um pesquisador, e os peritos desta seção “os meus ratos brancos de laboratório”.4 Na Documentoscopia os materiais mais frequentemente periciados são Cheques bancários, Carteiras Nacionais de Habilitação (CNH), Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) e RGs. Detendo-nos especificamente sobre o exame de cheques bancários preenchidos a mão de forma ilegítima, a perícia criminal analisará se esta grafia presente no material apreendido corresponde à grafia do suspeito que portava o material – mesmo que o suspeito tenha simulado uma grafia diferente da sua. Os exames periciais destas grafias – em cheques e outros documentos – são denominados de exames grafotécnicos. Assim como no confronto balístico, os exames grafotécnicos consistem na comparação simultânea dos materiais questionados com os padrões. Porém, com a diferença de que quem produzirá os padrões será o próprio suspeito que se encontre preso na delegacia, via de regra. Dessa forma, os padrões são produzidos em várias folhas de papel protocolado, novamente dentro de um órgão que compõe o corpo de segurança do Estado – a delegacia. A grafia presente no material apreendido (questionado) será comparada com as quais estão presente nas folhas grafadas pelo suspeito (padrão). O perito ao proceder à análise grafotécnica – por meio de lentes de aumento e lupas – buscará não proporções gráficas semelhantes, mas reconstruir o sentido realizado pelo punho que confeccionou a grafia questionada e compará-la ao sentido realizado pelo punho que confeccionou a grafia padrão. Por conta da análise das modalidades de materiais anteriormente citados, geralmente ligados a crimes de estelionato, segundo os peritos, a seção de Documentoscopia é tomada recorrentemente por juízes e advogados como uma especialidade pericial ligada ao Direito Civil. São comuns os relatos dos peritos afirmando que, a pedido dos juízes cíveis, foram enviados à seção “recibos de pensão alimentícia” para procederem às análises grafotécnicas. Talvez estes “enganos” – que acabam configurando o próprio modo como esta seção se relaciona com o “fora do Instituto” – se devam ao

Esta expressão foi utilizada pela chefa da seção de Documentoscopia em uma conversa com o diretor do Instituto de Criminalística. 4

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fato de o direito penal genericamente ser tomado como uma especialidade jurídica voltada aos crimes contra a vida (sendo a perícia balística uma especialidade “clássica” da perícia criminal), enquanto outras modalidades de delitos e materiais a ele conectados de pertencimento a certas especialidades “jurídicas” (i.e. direito civil ou penal) ofuscadas para os próprios operadores do direito.

Considerações finais Neste relato de pesquisa, busquei apresentar a fabricação da materialidade do crime por meio da perícia criminal realizada pelo Instituto de Criminalística do Paraná. O local do delito onde se achava o corpo de Sebastião, conforme a etnografia do laudo de local de morte e respectivas imagens, apresentam ao leitor possíveis conexões entre os elementos que concorriam na cena do crime: a arma de calibre .38 que encobria o umbigo de Sebastião poderia ter sido colocada pelo assassino/a após a morte da vítima; ou estar servindo para defesa da vítima quando esta foi alvejada, ou, ainda, ter sido utilizada por ela contra sua própria vida (hipótese de suicídio). No entanto, no laudo de local de morte não é possível encontrar tais hipóteses, dado que a descrição da cena é bastante contida por parte dos peritos. Tal motivo deve-se ao fato de que serão os momentos futuros da investigação do caso e as pericias criminais realizadas nos laboratórios que irão (re)determinar as relações entre objetos, corpos e acontecimento – isto é, do corpo de delito e a multiplicidade de elementos que o compõe. No caso Sebastião, o confronto balístico comprovou que a arma encontrada no local do delito serviu como dispositivo para a morte da vítima. Ao mesmo tempo, verificamos nos autos do processo criminal – segundo levantamento realizado pelo delegado responsável por investigar o caso – que a arma do crime estava registrada no nome da esposa de Sebastião, a qual respondeu a ação penal na condição de ré. Esta criação de conexões entre os múltiplos elementos que compõem um corpo de delito revela uma das principais características da perícia criminal: tornar aquilo que se analisa – sejam pessoas ou coisas – rastreáveis e identificáveis ao longo da série de procedimentos periciais e investigativos. Esta política tecnocientífica de determinar posições e conexões entre pessoas, coisas e acontecimentos – campo a ser explorado mais apropriadamente pela pesquisa em momentos futuros –, tem como principal eixo a produção de papéis e protocolos, sendo tal atividade o próprio coração do Instituto de Criminalística do Paraná.

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Bibliografia CAIUBY NOVAES, Sylvia. 2008. “Imagem, Magia e Imaginação: Desafios ao Texto Antropológico”. Revista Mana, v. 14 (2): 455-475. IUBEL, A. F. 2009. Sensibilidades e Documentos: O Movimento de Pessoas, um Direito. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná. LATOUR, B. 2000. Ciência em Ação: Como Seguir Cientistas e Engenheiros Sociedade Afora. São Paulo: Editora UNESP.

Recebido em 17 de fevereiro de 2014 Aprovado em 10 de março de 2014 !235


artigos resenhas



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resenhas FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabíola; MACHADO; Paula Sandrine.

Ciências na vida: antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. 312 p.

Marcos Castro Carvalho Doutorando em Antropologia Social Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro

O que podem nossos corpos? Quase tudo. Michel Serres

Em agosto de 2011, acontecia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) o evento denominado Ciências na vida: antropologia da ciência em perspectiva. Um dos frutos desse encontro é a obra aqui resenhada, organizada por Claudia Fonseca, Fabíola Rohden e Paula Sandrine, também professoras da UFRGS. O livro encontra-se dividido em quatro seções distintas, porém com intersecções, cujos títulos são: Trajetórias, interfaces e perspectivas; Genética e novos modos de ver e intervir da ciência; Medicalização e gerenciamento dos corpos; e Produção de conhecimento e suas articulações heterogêneas. Como mencionado pelas organizadoras na introdução, um dos desafios da coletânea é produzir alguma antropologia “a partir das ciências”. Para isso, partem da proposta de Annelise Riles de construção de etnografias como “técnica de resposta”. Ou seja, “a partir da análise de algum artefato ligado ao campo (...) entrar em diálogo crítico com as abordagens teóricas usuais (...), não no espírito de denúncia, mas no espírito de interagir e ir além delas” (: 8). No primeiro conjunto de textos são delineadas discussões mais abrangentes sobre o histórico e os dilemas de tal área temática. O primeiro deles é o artigo de Sérgio Carrara, Antropologia e ciência no Brasil: a construção de um campo. Carrara constata que, entre o início dos anos 1980 e meados dos 1990, a pesquisa sobre o tema era quase completamente de cunho histórico ao invés de etnográfico. Um dado que, remetendo a uma maior facilidade de relativizar epistemes e paradigmas do passado, !237


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.237-242, 2013 também estaria ligado ao interesse dos antropólogos na história de sua própria disciplina (por si mesma ou em relação a outros saberes co-instituídos). Além disso, muito do que foi produzido sobre práticas terapêuticas oficiais e não-oficiais estava relacionado ao trabalho de antropólogos atuantes em contextos interdisciplinares. Tal fato levanta a questão dos diversos modos antropológicos de realizar aproximações às ciências, e até que ponto tal posicionamento colocaria ou não em xeque as fronteiras da antropologia e incitaria rearranjos mais profundos em nossa divisão disciplinar do mundo. O texto de Guilherme Sá, intitulado Entrando em órbita: repensando a agência antropológica e o posicionamento de seus satélites, nos coloca o problema de como construir uma etnografia e produzir uma descrição etnográfica em torno das práticas científicas e dos cientistas. Ou seja, como produzir uma etnografia densa dos processos técnicos sem beirar um tecnicismo superficial e ingênuo típico dos manuais? E, por outro lado, como afrouxar a descrição sem cair em um estranhamento exotizante do familiar, que só diria trivialidades do ponto de vista dos próprios cientistas? Sá retoma então o dilema levantado por Martin Holbraad a partir do aforismo latouriano segundo o qual “jamais fomos modernos”. Como então levar em conta tal discussão sem desconsiderar que os cientistas também se compreendem enquanto tal e, em diversas instâncias, se valem da ideia de que são modernos e fazem ciência moderna? Por fim, ele pontua que talvez o estudo de outras ontologias científicas nos forneceria um lugar estratégico para pensar o fazer etnográfico e nossa própria ontologia em relação aos conhecimentos de outrem. O último artigo do primeiro bloco leva o título Notas para uma antropologia a partir da produção do conhecimento, os usos das ciências, intervenções e articulações heterogêneas. Nele, Fabíola Rohden aborda a investigação das novas e heterogêneas redes-objetos que nos colocariam novos problemas de pesquisa, desafios teórico-metodológicos, de fontes de investigação e de dilemas éticos. Um contexto em que tentar separar ciência, mercado e consumo desse complexo emaranhado de teias torna-se cada vez menos possível e mais anti-producente. Como desdobramento dessa problemática, Rohden elenca como crucial o empenho no enfrentamento tanto de qualquer imparcialidade quanto da retórica denuncista. De acordo com a autora, o engajamento que resvala na denúncia acaba por enfraquecer o próprio conhecimento que se visa produzir, sendo que uma postura mais interessante seria promover conhecimentos situados e qualificar um certo tipo de objetividade. O segundo conjunto de textos aborda pesquisas envolvendo os conhecimentos e as intervenções associadas à genética. Logo de início, Helena Machado apresenta – em Crime, bancos de dados genéticos e tecnologia de DNA na perspectiva de presidiários em Portugal – os usos das tecnologias de identificação dos indivíduos por DNA em investigações criminais desde meados da década de 1990. Trata-se de uma realidade recente apoiada em expertises como a “genética forense” e !238


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em categorias como a de “suspeito genético”, que modifica a antiga biopolítica das impressões digitais. Nesse encontro entre direito e ciência, nem a lei e nem as práticas científicas permanecem iguais e autônomas. A partir de fragmentos corporais diversos, a construção jurídica do corpo humano oscila entre substâncias consideradas “estritamente pessoais” e “não estritamente pessoais”. O que também leva ao sério dilema apontado pelos presidiários de que tais elementos e sua libertação do corpo não podem ser controlados pelos sujeitos, o que não necessariamente os vincularia ao crime. Isto sem mencionar as ardilosas estratégias policialescas de plantar evidências corporais na cena criminal. Na sequência encontramos o artigo de Sahra Gibbon, Eirini Kampriani e Andrea Zur Nieden, abordando os testes de risco genético para câncer de mama em distintos países. Intitulado Pacientes de BRCA em Cuba, Grécia e Alemanha: perspectivas comparativas sobre saúde pública, o estado e a reprodução parcial de sujeitos “neoliberais”, o texto tece considerações sobre esses três panoramas nacionais distintos. No contexto da genética comunitária em Cuba, a percepção do risco entre as mulheres aparece muito menos corporificado e individualizado. Ao contrário do cenário cubano, na Alemanha a ideia de um risco genético individualizado e centrado em questões como a hereditariedade e as decisões individuais sobre alimentação e estilo de vida se faz muito mais presentes. Já no caso da Grécia, é possível ver um modelo de certa forma intermediário entre as concepções das alemãs e das cubanas, em que apesar de existir um foco sobre a gestão normativa e individualizada do cotidiano, a importância da família como um ente de cuidado e intermediador entre as decisões médicas e os pacientes é um fator bastante relevante. Encerrando essa segundo seção, temos as considerações de Marko Monteiro sobre a produção científica em torno do câncer de próstata e a questão racial com título de Controvérsias sobre genética e diferença: a pesquisa com câncer de próstata e disparidades raciais. No artigo, o autor apresenta o debate polarizado entre pesquisadores que se apoiam em bases biológicas para disparidades raciais observadas nos casos de câncer de próstata e aqueles que rejeitam tais bases, preferindo outras interpretações pautadas em fatores tais como as diferenças socioeconômicas, de comportamento e de acesso a tratamentos adequados. Além disso, Monteiro também ressalta o fato de ambas as partes da contenda se valerem de categorias ambíguas, pouco específicas, que acabam por construir premissas díspares sobre a própria conexão entre a questão racial e a incidência do câncer. Ilana Löwy inaugura a terceira subdivisão com Maternidades, microquimerismo e identidades: os novos ‘laços de sangue’?, em que se debruça sobre a possibilidade de evidenciar a presença no corpo de células geneticamente diferentes das “originais” –

fenômeno que ficou conhecido como

microquimerismo. Segundo a autora, depois da Segunda Guerra foram elaborados tecnologias e métodos bioquímicos para a detecção de pequenas quantidades de substâncias biologicamente ativas. Associadas aos novos procedimentos da citologia molecular, tais técnicas permitiram !239


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.237-242, 2013 “acompanhar” as “origens” e o “destino” de células individuais. Löwy lança luz sobre os recentes estudos que defendem a possibilidade de uma dupla passagem das células entre corpo materno e feto, em um fluxo bidirecional. Independente das controvérsias envolvidas na atual “função” desses fluxos e composições, tais pesquisas poderiam mudar nossa visão de parentesco, linhagem e de diferenças biológicas entre os sexos. E até mesmo uma mudança em nossa concepção purificada de organismo e de corpo estanque e uniforme. O artigo subsequente, “Para quem era cego era tudo”, ou o “divisor de águas”: a chegada do ultrassom no Brasil pela voz de três pioneiros, é assinado por Lilian Chazan. Nele Chazan analisa a entrada da tecnologia de ultrassom obstétrico no Brasil a partir da chegada dos primeiros aparelhos em meados dos anos 1970 e da atuação de alguns médicos pioneiros na sua implantação e difusão. Partindo de um momento em que a resolução da imagem de US era ainda muito precária, a autora discorre sobre o processo de estabilização da tecnologia do US obstétrico e sua intensa difusão entre clínicos e pacientes consumidores. Processo esse que também envolveu outros agentes como as empresas de produção de tecnologia biomédica, a expansão dos seguros-saúde e os conflitos entre os campos de diagnóstico por imagem. Se para os médicos tratava-se de um novo modo de acompanhar a gravidez e de outra forma de fornecer um novo recurso para sua clientela, para as empresas era uma oportunidade de expandir seu mercado em um grande país latino, e para as gestantes era um novo espectro de consumo e desejo que se abria e que se tornaria cada vez mais presente. O artigo seguinte é de autoria de Daniela Manica e se intitula Rudimentos da tecnociência contraceptiva: experimentações, biopolítica e a trajetória de um cientista. A partir da trajetória científica do médico baiano Elsimar Coutinho, Manica tece variadas considerações sobre a questão dos métodos contraceptivos, seus dispositivos e desenvolvimentos experimentais. Com o surgimento da contracepção hormonal nos anos 1960 tornou-se também possível suspender os sangramentos menstruais. O modo de prescrição adotado foi baseado em um ciclo de ingestão de pílulas orais que pressupunha um período de pausa, onde o sangramento reaparecia. Todavia, tal sangramento configura uma espécie de mimese daquele que ocorre na menstruação, não sendo considerado um sangramento “natural”. Um efeito que teria sido crucial para a aceitação da pílula pelas mulheres. De acordo com a autora, Coutinho destacou-se pela produção de uma série desses dispositivos contraceptivos, em especial os implantes subcutâneos. Dispositivos que tomariam uma série de rumos, e teriam também de lidar com os diversos embates e/ou alianças com os movimentos feministas. O artigo de Martha Ramírez-Gálvez, denominado Fabricando bebês, vendendo ilusões, encerra esse tópico bastante atrelado às tecnologias envolvidas na reprodução e na gravidez. A autora inicia o texto com um relato etnográfico de uma reunião educativa de uma clínica privada de reprodução !240


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assistida com esquipe multidisciplinar e pessoas interessadas. Tratava-se de um encontro em que a equipe expunha aos presentes os procedimentos a serem executados com cada fragmento (e fragmento de fragmento) orgânico envolvido no processo de fecundação de laboratório. RamírezGálvez aponta ainda para o a aliança entre ciência, tecnologia e capital nesse movimento de medicalização do parentesco e mercantilização de elementos corporais através da compra e venda de gametas. Muitos dos marcadores da diferença que eram então identificados na superfície corporal passam a agora a se inscrever nos próprios genes, em um processo que também implica em uma bioinformatização do corpo. Inaugurando a última seção do livro, o artigo Prescrições de gênero via autoajuda científica: manual para usar a natureza, de autoria de Fabíola Rohden, busca compreender o processo de coprodução entre gênero e ciência a partir do best-seller “The Female Brain”, de uma neuropsiquiatra estadunidense. Rohden sugere que um novo campo de mediações estaria surgindo por meio do que chama de autoajuda cientificamente embasada, que não poderia simplesmente ser descrito com os rótulos de “divulgação científica” ou “popularização da ciência”. Lança mão então da noção fleckiana de “protoideias” para pensar essa passagem de conhecimento entre os círculos esotéricos e exotéricos, que ainda que presentes no caso da produção científica, seriam ainda mais relevantes no caso das publicações voltadas ao grande público. De acordo com autora, isso faria ainda mais sentido no caso da criação de diferença entre os sexos, posto que apelaria para protoideias arraigadas e um metier histórico propício para tal. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância, é o artigo seguinte da seção. Nele, Claudia Fonseca visibiliza o caráter híbrido do saber em casos de instrumentação e validação de políticas governamentais a partir de princípios científicos. A autora apresenta uma primeira perspectiva neurobiológica segundo a qual os primeiros três anos de vida de uma criança seriam cruciais em sua formação. De acordo com essa visão caberia às mães um cuidado especial nesse período de vida para que os indivíduos possam desenvolver um “cérebro sadio”, sendo que a ocorrência de “danos” inscritos no corpo poderia levar a tendências “anti-sociais”. Por outro lado, Fonseca também ressalta a crítica dos psicólogos desenvolvimentistas, que alegam que tal retórica estaria impregnada de uma visão restrita. Sublinhando os usos políticos das neurociências, a autora aponta então para dois caminhos contrastantes: a opção pela educação infantil a partir das creches e uma maior autonomia das mulheres; ou então uma “volta” das mulheres ao lar em nome do “bem-estar infantil” pressuposto. Finalmente, o último artigo da coletânea é de autoria de Ondina Leal e Rebeca de Souza. Intitulado Ciência, tecnologia e patentes: o regime global de propriedade intelectual, o artigo versa sobre os regimes transnacionais de produção e proteção aos direitos de propriedade intelectual (DPI). Segundo as autoras, o atual regime global de propriedade intelectual remeteria ao pós-Segunda !241


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.237-242, 2013 Guerra. Antes disso, as diretrizes internacionais eram regidas por convenções internacionais que não impunham uniformizações das legislações nacionais. Após a segunda metade do século XX, os DPIS expandiram-se largamente agregando o patenteamento de seres vivos e de elementos da natureza, bem como promoveram alterações no ordenamento jurídico para a acomodação de novas tecnologias. Em paralelo a isso, como levantado por Leal e Souza, caminha uma concepção filosófica de autoria vinculada à noção de propriedade enquanto extensão por direito do sujeito (ou, em grande parte dos casos, da corporação). Uma das principais consequências disso é a impossibilidade quase completa dos países mais pobres de produzirem suas próprias políticas públicas e tecnologias industriais. Dado todo esse panorama, poderíamos retomar a frase de Michel Serres (2003) escolhida como epígrafe. Em uma inspiração claramente spinoziana, ela remete tanto às potências e virtualidade do corpo como aos seus limites e cerceamentos normativos e biopolíticos. Assim como a circulação e transformação incessante dos fragmentos e fluidos corporais – e as constantes intervenções tecnológicas subjacentes – podem apontar para novos e interessantes modos de atualizarmos essa instância sempre ambígua do humano que é o corpo, também apontam, na concepção de William James, para a instauração de dispositivos e mecanismos de controle refinados e traiçoeiros. O termo “quase” presente na frase dá então a dimensão desse “entre”, que é ao mesmo tempo condição de resistência e linha de fuga frente à dominação.

Referências

FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabíola; MACHADO, Paula Sandrine. Ciências na vida: antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. 312 p. SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2004. 141 p.

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resenhas BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012. 120p. Coleção Os Primeiros Brasileiros, v. 1.

João Henrique da Silva Mestrando em Educação pela UFGD Bolsista PROESP/CAPES

Adriano São João Doutor em Teologia pela PUG - Roma Professor Adjunto nos cursos de Filosofia e Teologia na FACAPA

Tonico Benites nasceu e cresceu na Terra Indígena Sassoró. Frequentou a educação escolar também em Sassoró, na sede da Missão Evangélica Caiuá, no começo da década de 80. Sua família extensa é originária da tekoha Jaguapiré (expulsos nos anos 70). Benites viveu no período de conflitos e lutas pela ocupação de terras durante a sua fase estudantil, no trabalho como professor, em seguida, auxiliando os pesquisadores e mais tarde se tornando um próprio pesquisador do povo Ava Kaiowá. Também foi representante político das famílias kaiowá nos anos finais da década de 80, participando de vários eventos (por exemplo, o Aty Guasu). Ele se graduou em Pedagogia na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Depois fez o mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro – Museu Nacional. No momento está cursando o doutorado no mesmo programa de pós-graduação, sendo, neste período, muito requisitado por pesquisadores indigenistas, lideranças políticas e indígenas para discutir a temática indígena. Neste trabalho, será resenhada a obra “A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas”, fruto da dissertação defendida por Tonico Benites no mestrado. Essa obra faz parte do primeiro volume da coleção “Os primeiros brasileiros”, realizado pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e entre outras instituições. O tema central do livro é a educação escolar para indígenas, descrita e analisada segundo a perspectiva das famílias Ava Kaiowá. Trata-se de uma pesquisa etnográfica, de cunho colaborativo ou participativo, sobre como as famílias extensas das aldeias de Sassoró e de Jaguapiré relacionam e avaliam as imposições da escolarização pelo não-índio e pelo missionário diante da sua organização social. O autor demonstra como funciona uma estrutura articulada de conhecimentos, atitudes e !244


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.244-249, 2013 papeis na cultura kaiowá, por meio das quais as famílias proporcionam a socialização das crianças e dos jovens, gestando os futuros membros das suas famílias. Apresenta como que ocorre uma educação doméstica nos seios das diferentes famílias extensas Ava Kaiowá e sua viabilidade para a formação humana dos seus membros. Também evidencia a forma colonial da escolarização impostas nas aldeias, bem como a luta e a reivindicação das famílias para assegurar um modelo de educação formal que respeitasse a cultura indígena Kaiowá e suas peculiaridades. A obra utiliza como ferramenta analítica o conceito de “tradições de conhecimento” (Barth), sendo uma pesquisa fundada nas próprias experiências de vida (pessoal, estudantil e profissional) do pesquisador. Na parte introdutória da obra, Benites expõe que a sua pesquisa assenta-se não somente nos dois anos de pesquisa de campo, “[...] mas também em uma experiência vivida como membro de uma família extensa kaiowá e, nos últimos dez anos, como professor indígena da prefeitura de Tacuru (MS)” (p. 16). A experiência profissional lhe permitiu refletir e avaliar o processo de educação formal e as percepções das famílias extensas sobre a escola, além de outros questionamentos relacionados às condições de vida que estavam sendo impostos pelos não-índios (karai), missionários, instituições federais, estatais e regionais. A obra compõe-se de três capítulos. Ao final, apresenta um glossário para melhor compreensão dos termos e expressões indígenas. Na parte introdutória do livro, o autor esclarece a sua relação com o povo indígena Kaiowá, as lideranças indígenas, as instâncias governamentais e com os pesquisadores. Discorre como que surgiram as perguntas para balizar o objetivo, o problema e a justificativa do seu projeto de pesquisa. No primeiro capítulo, “Tradições de conhecimentos e história das formas de dominação”, Benites manifesta-se sobre a fundamentação epistemológica e conceitual da pesquisa, bem como relata o processo de colonização no estado do Mato Grosso do Sul perpetrados pelo Estado Brasileiro, fazendeiros e missionários, surtindo efeitos na sua organização social e na imposição de um sistema educação formal. No presente capítulo, Tonico expõe os conceitos fundantes da sua pesquisa, tais como: cultura (Schwartz); tradições de conhecimento (Barth); fluxos culturais (Barth e Hannerz), estoques culturais (Barth), relação interétnica (Pacheco de Oliveira), flexibilização técnico-científica (Mura), territorialização e entre outros. Para o autor, a organização social dos Ava Kaiowá não possui uma estrutura social hierarquizada, uniforme, linear, homogeneizante. Pelo contrário, as famílias extensas desse grupo constituem-se de modo específico e diferenciado, considerando os vários graus de relação interétnica e de acordo com o espaço territorial e a situação atual vivenciada. Como esclarece Benites, “[...] em face do processo de colonização do seu território, a organização social dos Ava Kaiowá foi importante e é vital no presente para constituir, ressignificar e adaptar o seu modo de ser e viver contemporâneo” (p. 22). O autor observa que as famílias extensas kaiowá na contemporaneidade produzem um modo de ser peculiar caracterizado pelo teko reta (“o modo de ser múltiplo dos conjuntos dessas famílias indígenas kaiowá”). Consiste na forma de permanecer o “modo de ser e de viver” do kaiowá contraposto com o modo de ser do não-índio, principalmente, diante do impacto causado pela introdução e interferência da escola e de outras políticas públicas indigenistas. Refere-se à continuidade da reflexão nativa sobre os fatos ocorridos, bem como a construção de uma teoria e a socialização de novos conhecimentos diante das experiências de vida, levando as famílias extensas

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kaiowá possuir diferentes estratégias no contexto social e a produzir uma flexibilização técnicocientífica diante da dominação neocolonial. Desse modo, Benites faz uma abordagem histórica do povo Guarani, em especial, dos Ava Kaiowá, por meio de uma literatura antropológica e historiográfica, relatando a origem e os processos de colonização desde o século XVI. Descreve como se estruturava a organização social Guarani e, posteriormente, dos Kaiowá nas aldeias Sassoró e Jaguapiré. O antropólogo informa como eram suas habitações e atividades sociais, religiosas e de subsistência. Também discorre sobre a relação interétnica com os bandeirantes, viajantes, “capitão indígena” e missionários (jesuítas e protestantes). Enfatiza como que se deu a exploração do trabalho na empresa Matte Laranjeira e os processos de aldeamentos no estado do MS que, por sua vez, retiraram os indígenas de suas terras e os colocaram em reservas, confinando-os a uma pequena parte de terra chamada inicialmente Posto Indígena. Também narra a imposição da escolarização e da religião aos indígenas assentados no Posto Indígena Sassoró geridas pela Missão Evangélica Caiuá que tinha uma perspectiva integracionista, civilizatória e redentora para com o grupo Kaiowá, desrespeitando os seus modos de ser e viver. Quanto ao sistema da educação formal indígena na aldeia Jaguapiré, o autor demonstra que houve diversos obstáculos na sua concretização, em especial, na contratação de professores. Aliás, atualmente em ambas as aldeias existem o padrão educacional dos karai nas escolas indígenas. Nas aldeias, há rivalidade entre as famílias extensas kaiowá para ter um dos seus membros como “capitão indígena”, porque este indica os cargos de diretor, coordenador pedagógico e professor, corroborando na conquista de mais vantagens políticas, sociais e econômicas sobre outras famílias. O segundo capítulo, “Organização social e transmissão de conhecimentos entre os Ava Kaiowá”, disserta sobre a organização política e doméstica, o namoro-casamento kaiowá, o processo de educação kaiowá, os papeis dos membros da família doméstica e as fases educativas das crianças. Benites também explicita como que se regem as relações e a constituição das famílias extensas, bem como quais os tipos de líderes existem e quais são as suas funções. Apresenta que cada família extensa é identificada de diferentes maneiras. Em seguida, informa como que existiram as formas (e aquelas que permaneceram ou foram alteradas) da organização social kaiowá, tais como: a residência das famílias; a constituição da família nuclear com suas alianças e valores; a interação entre as famílias após o casamento; o surgimento de novos cargos; os rituais e costumes dos Ava Kaiowá; os novos espaços de sociabilização (“baile”); o estilo comportamental do “crente” indígena; os conflitos entre as famílias indígenas pelos estilos e costumes peculiares (por exemplo, a existência do namorocasamento); os conflitos intra e intercomunitários sobre as práticas educativas para as crianças; a participação política e social dos sexos. Acrescenta-se que o presente capítulo aborda o processo de educação kaiowá, dividido conforme o sexo e a idade. A metodologia educativa transmite a ideia de pertencimento ao grupo e do princípio de dar e receber bens materiais e imateriais, por meio de conselhos, ensinamentos, reprimendas e fofocas. O objetivo é garantir à criança e ao jovem a construção e a fixação da personalidade e sua adequação ao estilo comportamental vivido pela família extensa. Por isso, o autor apresenta as funções dos “líderes-orientadores”, as fases e os processos educacionais culturais vivenciadas pelas crianças e jovens. As experiências de vida destes membros ocorrem através dos espaços sociais (eventos cerimoniais sagrados e profanos), da atuação da liderança feminina e a preocupação com a estabilidade emocional-afetiva e o bem-estar de todos os integrantes da família, além de outras práticas sociais que oportunizam a transmissão dos conhecimentos. Mas se ressalta que o ensino doméstico ainda “[...] é realizado através do método oral, !246


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.244-249, 2013 repetitivo e contextualizado, baseado nos interesses de cada família extensa” (p. 69), principalmente, realizados nos eventos religiosos com o objetivo de que “[...] as crianças aprendem como devem viver e se comportar de acordo com o modo de ser e viver de cada família extensa” (p. 75). No último capítulo, “Os Ava em face da educação escolar”, Benites fala da implantação da educação escolar oficial (sua estrutura, o funcionamento e a prática pedagógica) nas reservas indígenas, fundada na perspectiva ocidental e etnocêntrica, correspondendo a um modelo integracionista associado à evangelização. Segundo Tonico, surgiram diferentes perspectivas das famílias extensas quanto à necessidade de ir às escolas e do seu papel na “comunidade”. Um dos motivos principais para aprender a ler e a escrever era o de conseguir desvendar os segredos do papel. Ao conseguirem “fazer falar o papel”, poderiam entender o poder do conhecimento escrito do não-índio, tornando-se um instrumento importantíssimo no contato com os karai, na relação de trabalho e em transações comerciais para não serem mais enganados. Porém, algumas lideranças religiosas questionaram o uso, o ensino e a aprendizagem da sabedoria da palavra escrita. Mas se chegou à conclusão de como se devia proceder diante desses fatos para não alterar significativamente o modo de ser e viver kaiowá. Benites discorre também que a configuração da educação escolar oficial exigiu das famílias extensas um cuidado redobrado, já que o espaço educacional desconsiderava os costumes, as normas morais, as crenças e os hábitos dos Ava Kaiowá. Neste contexto, a escola se tornou um instrumento político-econômico, uma vez que a família extensa e os parentes do “capitão indígena” tiveram oportunidades de cargos que revertiam em vantagens econômicas, sociais, políticas para a família extensa dominante. Entretanto, as práticas pedagógicas continuavam sendo integracionistas, civilizatórias, etnocêntricas, ideológicas, descontextualizadas. Depois de várias reivindicações dos indígenas, somente a partir da década de 90 é que se passou a atender a algumas das exigências. Vale lembrar que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) tomou medidas de realizar novas experiências no campo da educação escolar, propondo atividades diferenciadas e específicas da cultura kaiowá. Todavia, outras pautas de reivindicação continuaram e até hoje se encontram pendentes, uma delas é a formação do professor indígena. Nos últimos anos, realizaram-se alguns projetos através das universidades, como o “Projeto Ara Verá” (1999) e o curso de licenciatura indígena “Teko Arandu” (2010). E ainda houve a modificação das escolas localizadas na reserva para serem reconhecidas como escolas indígenas. Apesar dos Projetos Políticos Pedagógicos atuais estarem assentados nas propostas do Referencial Curricular para as Escolas Indígenas, eles continuam sendo orientandos pela lógica colonial. Na “[...] visão das lideranças de famílias extensas há ainda muitas dificuldades de se entender essa diferença entre educação escolar antiga e educação escolar indígena diferenciada, bilíngue e intercultural” (p. 91). Nas considerações finais, Benites sintetiza suas reflexões, expondo as observações necessárias quanto às formas coloniais impostas aos indígenas por meio da criação das reservas, do trabalho da FUNAI, dos agentes missionários e a criação do cargo “capitão indígena”. O pesquisador ressalta que há a contraposição entre o modo de ser atual e o modo de ser antigo, mas ainda se vivencia a cultura indígena Ava Kaiowá. Nessa direção, as famílias percebem a função das escolas como completar a educação, promovendo o ensino-aprendizagem com o objetivo de ser um instrumento de luta. Mas as escolas indígenas ainda têm dificuldades de lidar com contexto cultural e as peculiaridades das famílias extensas, realizando um trabalho caricato da cultura indígena. Por isso, Benites propõe repensar “[...] as atividades das escolas indígenas em vigor e de reescrever um novo Projeto Político !247


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Pedagógico [...]”, instigando à escola a “[...] estar a serviço da diversidade de ser e de viver de cada família extensa contemporânea, o Ava kuera reko reta (‘modo de ser múltiplo’)” (p. 103). Após a leitura atenta, crítica e rigorosa, pode-se analisar a linguagem, o estilo e a profundidade antropológica do livro de Benites. A obra contém uma linguagem clara, fluida e densa. Ao mesmo tempo em que as palavras são de fácil compreensão, possuem uma profundidade cultural. Percebe-se que o autor está sendo um porta-voz do tema, comprometido como uma análise antropológica séria, reflexiva e densa da sua cultura. Discorre abertamente sobre as dificuldades, a superação e os desafios que existem na vida do seu povo. Expõe as feridas causadas por uma colonialidade do ser, do saber, do viver e do poder (Mignolo 2004). Tudo isso foi possível por meio de uma estrutura do texto baseado numa séria metodologia de pesquisa antropológica, com uma exposição textual organizada sobre o tema, interligando os conceitos e as reflexões. É interessante notar que Benites faz uma leitura do presente e do passado sobre os temas e os fatos ocorridos, mas não realizando uma compartimentalização e fragmentação da realidade no ato de pesquisar que, por sua vez, é criticada por Pacheco de Oliveira (1999). Nesse sentido, apreende-se a profundidade da compreensão e da análise do autor a respeito da situação do seu povo, intermediado pelo conceito de “territorialização” de Pacheco de Oliveira (1998: 55) que significa o processo de reorganização social. Benites, ao analisar o processo históricosocial-político dos Ava Kaiowá, destaca que a organização social atual funda-se nesse processo de territorialização. Aponta que a partir do colonialismo, a comunidade indígena kaiowá tentou se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, construindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais. O autor também realiza um resgate da plena historicidade dos sujeitos históricos, descrevendo como eles estão imersos e como se constituem em cada ambiente líquido (as épocas e os ecúmenos) (Pacheco de Oliveira 1999: 106). Aliás, observa-se que a pesquisa de Benites afina-se com a reflexão de Smith (2005) sobre o conhecimento que foi/é colonizado, porque ele é uma forma de dominação. De acordo com Smith (2005) é preciso descolonizar o conhecimento, a pesquisa e a sua estrutura. Isto é, a pesquisa de Benites avança na produção acadêmica sobre o Kaiowá, tornando-se parte de uma literatura comprometida com a visão do próprio indígena pesquisador sobre a sua própria cultura. Uma visão descolonizadora tanto no conhecimento produzido quando na forma de se pesquisar. Refere-se a uma pesquisa que combate o colonialismo interno (González Casanova 2002/2006) tanto nas pesquisas financiadas por governos quanto no trabalho antropológico realizado nas academias por indígenas, pois apesar do autor ser indígena não teve o papel de desviar os conhecimentos atingidos na produção da dissertação para consignar aos interesses do grupo ao qual pertence. Sua pesquisa critica a maneira como o Estado procura solucionar as condições de vida da população indígena, por meio de um trabalho assistencialista e paternalista (revestido de uma forma colonial diferente). O papel político assumido no seu trabalho etnográfico não é partidarismo ou politicagem. A sua pesquisa consiste na consolidação de um tempo intersubjetivo que faz o encontro entre o Eu e o Outro, possibilitando ao Outro ser coetâneo (Fabian 1991). Portanto, a obra “A escola na ótica dos Ava Kaiowá” é um convite para refletir sobre a importância de o antropólogo indígena pesquisar a sua própria cultura, bem como ter um olhar atento as modificações no seu espaço social. O estudo de Benites colabora na discussão sobre a escolarização nas aldeias indígenas, apresentando as lacunas, os limites e as possibilidades do seu trabalho educacional. Apresenta que uma escola indígena só será possível se houver a participação !248


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.244-249, 2013 das famílias extensas no desenvolvimento educacional dos filhos, e ainda, respeitar os estilos e costumes peculiares das famílias. Trata-se se repensar a escolarização indígena de forma coetânea e intercultural.

Bibliografia

FABIAN, Johannes. Time and the work in Anthropology: critical essays. Chur (Switzerland), Harwood Academic Publishers GmbH, 1971-1991. 256p. GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Exploração, colonialismo e luta pela democracia na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2002. 320p. ______. Colonialismo interno (uma redefinição). In: BORON, Atílio A. et al. (Org.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, 2006. p. 395-419. MIGNOLO, Walter D. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento Prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p. 667-709. PACHECO DE OLIVEIRA, João. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”. Mana, Rio de Janeiro, 4, p. 47-77, 1998. ______. Ensaios em antropologia histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. 272p. SMITH, Linda Tuhiwai. Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. London: Zed Books Ltd; Dunedin: University of Otago Press, 2005. 208p.

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artigos entrevista


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entrevista Hélène Clastres Filósofa de formação, seu encontro com Pierre Clastres, ela nos conta, mudou seu caminho e os rumos que imaginava para a sua vida. Foi para o Paraguai, onde conheceu os Guarani e, encorajada por Alfred Métraux, começou a trabalhar no livro que viria a ser um marco na antropologia: Terra Sem Mal inspirou e continua a inspirar a formação de antropólogos e antropólogas, não apenas na etnologia, mas também nas mais diversas áreas de interesse da disciplina. A relação cuidadosa e detalhada com a apresentação dos dados etnográficos e das fontes históricas, assim como a maneira de tomá-los como fio condutor para a exposição de seu argumento, promoveu um duplo deslocamento no fazer antropológico que permanece absolutamente válido nos dias de hoje: primeiro, positivando o que até então era pensando por muitos como “ausências”; segundo, fazendo da própria etnografia mote e destino da antropologia, apresentando o que seria uma religião propriamente indígena. E foi dessa mesma maneira, com esta mesma inspiração, que continuou conduzindo outros trabalhos na França, sem nunca perder de vista os ensinamentos Guarani e a presença indelével de Pierre Clastres. Por oportunidade do II Seminário de Antropologia da UFSCar, que ocorreu em novembro de 2013, tivemos o privilégio de recebê-la em São Carlos para uma conferência, intitulada Monde humain, monde animal: quel système de pensée?, e que encerrou o evento de grande sucesso. Naquele momento, os organizadores do seminário concretizavam um plano antigo de Bento Prado Jr., que, anos antes de sua morte, pretendia trazer Hèléne Clastres à UFSCar; mas também davam aos presentes a oportunidade de conhecê-la e, sobretudo, de ouvi-la. A presença de Hélène emocionava a todos, e antes mesmo de sua chegada havia um alvoroço geral no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar. Alguns dias após a conferência, em 21 de novembro de 2013, Hèléne Clastres gentilmente nos concedeu esta entrevista, com perguntas elaboradas pelo grupo de etnologia da UFSCar com colaboração do professor Jorge Mattar Villela, do PPGAS da UFSCar. Clarissa Martins Lima, agora doutoranda do PPGAS da UFSCar, e Jan Eckart, mestre pelo mesmo Programa – dois etnólogos –, acompanhados de Jorge Mattar Villela, encontraram-se na casa de Lucia Prado, que muito gentilmente cedeu sua sala de estar para a essa inesquecível conversa cuja duração foi de 90 minutos.

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 A entrevista que se segue é o fruto da nossa curiosidade acerca das memórias intelectuais de Hélène. Seus resultados, no entanto, e não surpreendentemente por conta da qualidade da entrevistada, superaram os nossos próprios interesses. A jovialidade e atualidade da reflexão de nossa interlocutora nos fez desejar a infinitude do encontro e ampliou ainda mais a emoção de estar ali diante de uma das autoras que contribuíram para nos fazer antropólogos e antropólogas. Quando perguntamos a ela se tinha conhecimento da importância de sua obra no Brasil – posto que uma parte importante das mais de 200 pessoas que a assistiram na véspera, gente de diversas gerações, escolheram a antropologia como profissão ou modo de vida por terem lido um dos Clastres – ela se mostrou surpresa. Menos surpresa que ao ouvir isso de um de nós, dias antes. Diante da frase “eu me tornei antropólogo por ter lido os seus trabalhos e os de Pierre Clastres”, ela respondeu, com toda a sinceridade: “os de Pierre eu compreendo, mas… os meus”? Hélène não quis revisar o que falou. Com um humor impressionante, respondeu prontamente a todas as nossas questões e confiou em nossa edição. Aqui, resta-nos registrar o nosso profundo agradecimento, por nos ter recebido, e pela confiança. * R@u (R) – A primeira pergunta é sobre o período de sua formação. Você poderia falar de sua formação acadêmica, do gênero de debates que inspiraram as suas reflexões neste período? Hélène (H) – Meus anos de formação foram em filosofia. Estudei filosofia em Paris, na Sorbonne. E, na verdade, eu não tinha nenhuma intenção de fazer etnologia. Tampouco tinha de seguir filosofia. Eu tinha a ideia, muito vaga, de me tornar psicanalista. Porque, enquanto fazia meus estudos em filosofia, eu frequentei os Seminários de Lacan em Sainte-Anne.1 Estava interessada pelo trabalho de psicanalista, mas de forma alguma atraída pelo ambiente da psicanálise. Ao contrário. Assim, eu estava em meio a uma grande incerteza. Não sabia o que iria fazer. Fiz os estudos de filosofia até a Aggregation.2 E depois eu encontrei Clastres, que só sonhava com os índios, desde sempre. Desde que eu o conheci ele só sonhava em partir para a América para viver com os índios. Mais precisamente, nessa época, ele queria viver entre os Jívaro.3 E eu não tinha ideia do que iria fazer, mas me deixei absorver por este interesse que era o dele. Em 1953, Jacques Lacan iniciou seus famosos seminários no Hospital Sainte-Anne, em Paris, todas as quartas-feiras. Lacan trabalhou no Sainte-Anne até 1963. 1

Aggregation é um prestigioso concurso que, na França, serve para incorporar docentes ao ensino público de jovens entre 11 e 18 anos e aos cursos preparatórios para as grandes escolas. É preciso ter título de mestre para prestar o Aggregation. 2

Jívaro é a denominação genérica – hoje pouco usual, exceto como referência a uma família linguística (a família Jívaro) – que agrega os grupos Achuar, Shuar, Aguaruna e Huambisa, que se distribuem pelas florestas da Amazônia peruana e equatoriana e falam línguas aparentadas. 3

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R – Em que ano foi isso, mais ou menos? H – Os estudos foram nos anos 50, 1955, 1956, 1957. Clastres partiu para os Guayaki em 1963, e eu o encontrei lá na metade de 1963. Neste ano houve um congresso internacional de antropologia, que aconteceu em São Paulo. Nós deixamos os Guayaki para ir a esse congresso. Eu cheguei e nós nos encontramos lá. R – Só para encerrar esta seção a respeito de sua formação, quem foi o seu orientador? H – Eu tinha vários professores nessa época. A Licence, nessa época, era um certificado.4 Durante um ano, eu fiz psicologia. No segundo ano, fiz moral e sociologia. Depois fiz filosofia geral e lógica e história da filosofia. Os professores de que me lembro, e que me marcaram, foram, em sociologia, Raymond Aron, que era notável. Em filosofia geral, Paul Ricoeur que foi, depois, meu Diretor de Diploma. Quem era também assistente, e não professor, era [Gilles] Deleuze, que ministrava um curso sobre Kant, extraordinário. Tive aulas também com [Ferdinand] Alquié. R – Alquié? H – Sim, Alquié. Eu sou velha, sabe? R – Sobre Descartes? H – Sim, sobre Descartes. Mas o que era interessante era Deleuze. E, claro, [Paul] Ricoeur. R – Deleuze estava preparando seu livro sobre Kant? H – Eu não me lembro mais as datas. Ele também deu um curso por vários anos sobre Hume. Eu não tenho uma memória de datas. Hume foi antes. R – Acho que o livro sobre Hume é de 1957. Pode ser? H – Sim, pode. E o de Kant é posterior. R – A segunda questão que havíamos preparado é sobre a sua passagem da filosofia para o estudo dos povos ameríndios. Você falou um pouco sobre isso, mas talvez possa nos falar sobre as circunstâncias dessa passagem, caso, retrospectivamente, você encare isso como uma passagem.

A Licence seria, na França, antes da reforma de Bolonha, o correspondente ao nosso Bacharelado, tendo duração de três anos. 4

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 H – Acho que sim, de um certo modo. Porque, na filosofia que havia em Paris nessa época, nos anos 50, 60, nós estávamos muito interessados, bom, em filosofia, é claro, mas ao mesmo tempo nas ciências humanas daquele momento. De um lado estava Lacan, do outro estava Lévi-Strauss, que dava cursos no Collège de France, e nós íamos ouvi-los. Bom, Pierre, que não se interessava pela psicanálise, não ia ouvir Lacan. E eu o segui, durante muitos anos, com muita dificuldade. Porque não conseguia compreender muito bem o que ele, Lacan, dizia (risos). Bom, havia já um interesse, ao lado da filosofia, pelas ciências humanas, digamos. Então, a passagem foi quase natural. Por outro lado, o que se poderia fazer com a filosofia? Dar aulas no Liceu. Ninguém queria dar aulas no Liceu.5 Eu fui destinada a um emprego na província, mas me demiti. Bom, eu estava muito ligada a Pierre naquela época. Porque ele seguia os cursos de [Alfred] Métraux.6 E ele estava muito mais seguro do que queria. Eu seguia Lacan e ele Lévi-Strauss. Ele estava interessado nos índios e então seguia os cursos de LéviStrauss e de Métraux, que foi quem pela primeira vez o enviou para os Guayaki. Porque [León] Cadogan,7 no Paraguai, pediu a Métraux que enviasse estudantes quando o primeiro grupo nômade Guayaki foi sedentarizado. Então, Pierre viajou para a América do Sul e eu o encontrei seis meses depois. Antes de viajar eu encontrei Métraux, e ele me encorajou muito a ir para lá. Ele me disse que achava que havia coisas acessíveis apenas às mulheres e não aos homens. Bom, Métraux tinha muitas razões para me encorajar. E eu lhe disse, então, que o que me interessaria seria a religião. E ele me disse que defendeu sua tese sobre a religião dos Tupinambá.8 Disse-me que este era um tema que precisava ser retomado. Disse-me que, se eu fosse ao Paraguai, valeria a pena porque ele tinha conhecimento de um material recolhido por León Cadogan, publicado mais tarde, sobre os Guarani. Coisas secretas que Cadogan revelou. R – Você conheceu Cadogan? H – Sim, ele escreveu muito sobre os Guarani [frase dita em português]. R – Parece-me que ele foi o único branco a ter acesso a esse material secreto dos Guarani.

Liceus (Lycées) são instituições de ensino francesas onde são ministrados os três últimos anos do ensino secundário (para jovens entre os 15 e os 18 anos). 5

Antropólogo suíço (1902-1963); foi aluno de Marcel Mauss e um dos principais expoentes do americanismo na França antes de Lévi-Strauss, responsável por importantes pesquisas na América do Sul, notadamente entre povos de língua TupiGuarani. 6

Um dos mais importantes etnólogos paraguaios, León Cadogan (1899-1973) trabalhou especialmente com grupos Mbya-Guarani no Paraguai, destacando-se pela publicação do Ayvu Rapyta (1959), uma fundamental coletânea de narrativas dos Mbya naquele país. 7

Publicada como La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani (Paris, E. Leroux, 1928). No Brasil, em português, a obra ganhou sua primeira edição em 1950 pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo. 8

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H – Sim, sim. Em primeiro lugar, o único a quem os Guarani revelaram. A ninguém mais. E há uma boa razão para isso. Porque Cadogan defendeu um índio Guarani, cuja mulher foi estuprada por um paraguaio, e talvez tenha sido brutalizada, e para se vingar ele matou o paraguaio. E, parece, cortou-o em pedaços e o comeu. Então, esse Guarani, como todos os índios, foi destinado a um tribunal para menores de idade. No entanto, por causa do canibalismo, o caso foi considerado muito grave. Cadogan o defendeu e conseguiu anular a acusação, e o salvou da prisão. Ele foi absolvido da prisão. Admitiu-se que foi uma vingança normal, que o paraguaio estava errado. Enfim, Cadogan conseguiu tirar o índio guarani da prisão. Ele já trabalhava com os Guarani, ele conhecia, ele tinha aprendido a falar a língua guarani desse grupo, que não é o Guarani Paraguaio. Para ele não era algo novo. Mas por ter feito esse gesto, depois disso, eles o convidaram e disseram para ele: “agora você merece que a gente te diga”, no sentido de revelar para ele o segredo, e foi assim que eles o iniciaram nas tradições secretas. R – você compartilhou as experiências de campo de Pierre Clastres entre os Yanomami? H – Eu estive lá, mas não com Pierre. Eu estive mais tarde, com [Jacques] Lizot.9 Pierre foi com Lizot, mas eu não tinha nenhuma intenção de ir. Mas Lizot tinha muito material importante sobre o xamanismo e as religiões, e como o assunto não o inspirava muito, e eu já havia trabalhado com o tema, ele me propôs fazermos um trabalho juntos. Ele me deu as suas anotações; eu as li e falei – “preciso ir ver”. Era o que ele queria! Então, eu passei 4 ou 5 meses com ele entre os Yanomami para ver os xamãs, porque as descrições de Lizot eram muito “secas”, e não eram suficientes. R – Esta próxima questão nós a chamamos de “retorno à filosofia”. É uma entrada na filosofia depois que vocês, você e Pierre, mantiveram contato com os ameríndios. Eu penso no trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Penso numa frase de Pierre Clastres, no Dossier Anti-Édipo.10 Para ele, os antropólogos deveriam sentir-se em casa ao lerem Selvagens, Bárbaros e Civilizados.11

Antropólogo francês (1938-), ex-aluno de Claude Lévi-Strauss, que desenvolveu pesquisas entre os Yanomami na Venezuela, tendo permanecido certa vez em campo por 24 anos seguidos. 9

10

Capitalismo e Esquizofrenia. Dossier Anti-Édipo. Manuela Carrilho (org.) Lisboa: Assírio e Alvim.

Duas afirmações de Clastres são contundentes na mesa redonda de que participou ao lado de Deleuze, Guattari, , Roger Dadoun, Serge Leclerque e François Chatelet. A primeira: “... Deleuze e Guattari escrevem a propósito dos Selvagens e dos Bárbaros o que até agora os etnólogos não haviam escrito”; a segunda: “Parece-me que os etnólogos se deveriam sentir em O Anti-Édipo como em sua casa... Isto não quer dizer que se deva aceitar tudo... Vai haver, como se pode prever, reticências... mas isso tudo significa que Deleuze e Guattari não desprezam os etnólogos: põem-lhes verdadeiras questões, questões que obrigam a refletir (in Carrilho, op. cit. :75) 11

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 H – A única coisa de que me lembro que Pierre escreveu sobre o Anti-Édipo está em um periódico literário, não me lembro qual, que dedicou a Deleuze e Guattari um número especial, para o qual muitas pessoas foram convidadas, e Pierre escreveu um artigo. É a única coisa de que lembro, mas talvez ele tenha escrito outras coisas. R – Que impacto teve o Anti-Édipo em seus trabalhos e reflexões? H – Não sei, é difícil estimar. Naquela época, eu não sei, não estou segura de que isso teve tanta importância, afinal. Mas eu posso estar enganada, porque naquele momento, quando nós lemos, quando nós o devoramos, achamos que ali tinha muito para refletir sobre a psicanálise, mais do que sobre a etnologia. Isso nos interessou, com certeza. Provavelmente, o que a gente lê influencia, faz deslocar um pouco a maneira de pensar. Quando se emprega novos termos os sentidos se tornam um pouco diferentes. Então não posso dizer que isso não nos influenciou, mas não acredito que isso determinou nosso pensamento. Mas isso foi um motor, muito seguramente, não posso negar. R – Você pode nos falar de sua experiência de campo entre os Guarani no Paraguai? Qual foi a impressão que vocês tiveram do país e da situação dos índios ali, naquele momento político de violenta ditadura? H – Ai, tenho anedotas para contar! Foi muito difícil. Primeiro, quando a chegamos a Assunção, tivemos que nos apresentar às autoridades locais. Foi Pierre quem fez isso, com ordem de missão.12 Na época, durante o governo de Stroessner, o ministro do Interior, cujo nome esqueci, dava calafrios. Conhecia os Guayaki por tê-los perseguido. Pierre já havia obtido a permissão, e eu já o tinha encontrado. A permissão dizia: El señor Clastres está en el país cumpliendo una misión científica. Se les ruega a las autoridades locales no molestarle sin causa justificada. Não havia motivos para ficar muito tranquilo, não é? Quando nós mostrávamos esse documento, as pessoas não se interessavam. Diziam apenas – “lindo papel”! Outra coisa que posso dizer é que as pessoas, os paraguaios que nós encontrávamos nas cidades para onde íamos comprar nosso rancho e mercadorias, não acreditavam que íamos até os Guayaki. Eles eram desconsiderados, comparados a animais. Ser “índio” era a pior coisa que havia, mas os Guayaki tinham um privilégio, eram brancos de pele. Existiam lendas que contavam que os Guayaki mantinham em segredo um tesouro escondido na floresta, então as pessoas achavam que nós não íamos lá para estudá-los, mas para descobrir o tesouro escondido! Documento que as instituições de pesquisa forneciam aos pesquisadores explicitando os motivos do deslocamento e garantindo os vínculos entre ela e o antropólogo em campo. 12

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Os Guayaki estavam fixados, sedentarizados, senão nós não teríamos conseguido estudá-los. Mas eles viviam em um lugar que não cultivavam, continuando a viver como caçadores e coletores. Então, eles iam caçar, voltavam, coletavam larvas, colhiam frutas, etc. A única diferença é que eles não ocupavam todo o território, eles ficavam no mesmo lugar. Mas, às vezes, eles partiam por vários dias e voltavam depois de caçar. O homem partia e, em seguida, partiam sua esposa com seus filhos, e eles voltavam dois ou três dias depois. Por força de estar ali, eles tinham obviamente muito menos caça, já que caçavam sempre no mesmo lugar, sem se deslocar, então eles se tornavam cada vez mais dependentes do paraguaio que cuidava deles. R – Eles compravam coisas? Eles faziam trocas com os paraguaios? H – Não, não acontecia assim. Pierre conta isso na sua Crônica13: como o primeiro grupo de índios foi fixado na zona do Paraguai onde estavam esses dois grupos Guayaki. Tinha muita invasão de paraguaios na década de 60. E cada vez mais perseguições. Os paraguaios entravam na floresta, matavam os índios e capturavam as crianças para entregá-las a paraguaios que queriam um pequeno indígena. E, então, eles, os índios, sabiam que estavam em uma situação muito ruim. Um dia, um paraguaio caçador de Guayaki capturou dois índios Guayaki. Ele os tratou muito bem e, depois de um certo tempo, ele os deixou voltar para sua aldeia. Passado um certo tempo, a tribo inteira foi procurá-lo para pedir sua proteção porque a situação estava ficando insuportável. Eles estavam sempre sendo perseguidos, seus filhos desapareciam. Aliás, quando a gente estava lá, faltava um grupo de crianças entre 11 e 12 anos, e depois eram os bebês que faltavam. Havia um buraco, com várias faixas etárias faltando nas aldeias. Então, esse paraguaio fez reconhecer a situação junto às autoridades locais e declarou que ia cuidar dos índios. Ele recebeu financiamento, menos em dinheiro do que em bens, como cobertores; ele recebia comida, e revendia boa parte para os paraguaios, pois os índios já tinham um pouco destes bens. Por exemplo eles já tinham roupas, etc. E, quando eles estavam com muita fome, matava-se um cavalo. E várias vezes foram compradas vacas dos paraguaios para que os índios pudessem comer um pouco de carne. Lembro-me que uma vez eles estavam com muita fome. Olhavam para nosso cavalo com muito desejo, mas sabiam que era o nosso animal de estimação, então não mexeram com ele (risos). O paraguaio tinha uma criação de porcos. Eles mataram um desses porcos e ficaram com muito medo! Eles nos deram um pedaço. Eu não queria lhes privar, mas eles insistiram tanto.... Bom, entendi que eles queriam

Hélène se refere, naturalmente, à Crônica dos Índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai, livro escrito por Pierre Clastres e publicado na França em 1972, depois traduzido no Brasil em 1995. 13

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 compartilhar a culpa (risos), então a gente aceitou e comemos nosso pedaço de porco. E, finalmente, deu tudo certo; o paraguaio não reclamou tanto (risos). Em um outro momento, eles foram obrigados a trabalhar na abertura de uma trilha na floresta e ficaram todos doentes. Não demorou muito tempo porque, como o trabalho deles não era muito produtivo, acabou que foram deixados em paz e todos voltaram para Arroyo Moroti.14 Mas quando eu cheguei, Pierre já tinha saído de lá havia mais de três semanas, para participar de um colóquio em São Paulo, onde eu o havia encontrado. Nunca esquecerei minha chegada entre os índios! Chegamos de noite, a cavalo, e era a primeira vez na minha vida que eu subia em cima de um cavalo. Pierre não reconhecia muito bem o caminho, estávamos um pouco perdidos, enfim, demoramos muito para chegar na aldeia. Pierre deu uma volta e constatou que realmente todos estavam doentes, e que muitos tinham morrido. Eu lembro que escutei Pierre lhes fazer perguntas, e eles diziam que todos tinham morrido, mano. Na realidade, mano, quer dizer ser “morto”, mas quer dizer também “estar doente”. Então vários tinham morrido de fato, e muitos estavam doentes. Quase todos estavam doentes! Foi mesmo uma noite triste. Os fogos estavam quase apagados por falta de cuidado, e os índios deitados... Eles tinham gripe. É terrível a gripe para os índios. Então, Pierre deu aspirinas para todos, enfim, tudo que tínhamos para tentar curá-los e, pouco a pouco, deu certo. E assim foi meu primeiro contato com os índios em 1963, e foi muito duro, de verdade! Um dia o paraguaio, que se fazia chamar de “papai”, veio buscar algumas crianças – 4, 5 ou 6 crianças, não lembro – desse grupo, de idades entre 11 e 12 anos. Os pais deixaram porque era o paraguaio um “protetor”. Obviamente, elas nunca mais voltaram. O paraguaio tinha dado as crianças. Então, na sua volta, houve violenta discussão entre ele e Pierre e, obviamente, Pierre não podia falar nada. Ele era estrangeiro, tudo isso não era da conta dele, enfim… Era dezembro, nós estávamos indo embora, e isso nos rendeu alguns problemas, mas isso é secundário… Mas, sobretudo, por causa destes acontecimentos, de volta a Assunção, Pierre entrou em contato com os missionários da New Tribes Mission15 para se entender com eles, com o intuito de procurar os outros Guayaki que estavam localizados ao norte, bastante longe, na floresta ao norte, e sobre os quais o grupo com quem morávamos falava sempre, Acampamento Guayaki onde Pierre Clastres desenvolveu grande parte de sua etnografia entre este povo Tupi-Guarani nas densas florestas do leste do Paraguai. 14

Missão cristã evangélica, fundada em 1942 e baseada na Florida, Estados Unidos, com atuação missionária em mais de 20 países por todo o mundo (incluindo o Paraguai e o Brasil), tendo como foco populações que carecem de tradução da Bíblia para suas línguas, entre as quais desenvolvem trabalhos humanitários e buscam o estabelecimento de igrejas nativas. 15

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dizendo que eram muito, muito numerosos. Bom, nós pensávamos que eles exageravam, mas posteriormente isso se revelou verdade. De todo modo, Pierre tinha falado – “de qualquer maneira, ruim com os missionários, pior sem eles, melhor que seja com os missionários, que cuidarão deles, que não os obrigarão a trabalhar, do que os paraguaios, que vão pouco a pouco pegar todas as suas crianças”. Ele combinou com eles. Eram tão sinistros! Eles não entendiam nada do que estávamos fazendo ali. Lembro que uma mulher falou para mim uma vez – “quando a gente vê que todas essas pessoas vão para o inferno, a gente não pode aceitar!” (risos). De qualquer maneira, Pierre combinou com eles para tentar fazer contato com os Guayaki no norte. Ele os procurou durante dois meses à toa, sem encontrá-los. Ele sabia que estavam perto, porque eles tinham ateado fogo no acampamento dos missionários onde ele estava, mas era impossível fazer contato. Ele deixava objetos no caminho, os objetos desapareciam, mas eles nunca viam nenhum índio. Talvez ele devesse ter insistido um pouco mais.... Enfim, depois de meses, ele perdeu a coragem e não aguentava mais os missionários, que caíam de joelhos cada vez que ele acendia um cigarro (risos). Era insuportável. Então ele parou, pensando que ia tentar novamente outra vez e, finalmente, depois ele fez outras coisas… O guia que Pierre e os missionários tinham era um índio Guarani. Jamais o chefe dos Guayaki teria emprestado um índio Guayaki para servir de guia. E, com certeza, com um índio Guayaqui, teria sido possível… Depois de um certo tempo, os Guayaki que sobraram ajudaram a encontrar os outros, e foram todos colocados em um campo. Eles eram efetivamente muito numerosos, e foi Mark Münzel16 que testemunhou. Ele viu os Guayaki capturados e colocados todos juntos em um campo, e era difícil terem direito de sair! E muitos morreram. Dispensável dizer que ele é persona non grata no Paraguai! Recentemente, um etnólogo do norte da Europa, que trabalha agora com os Guayaki, escreveu-me para pedir autorização para ver as fitas gravadas por Pierre entre os Guayaki. Obviamente, dei a autorização. Ele as achou apaixonantes e depois perguntou se eu aceitava que ele fizesse uma cópia para os Guayaki, o que aceitei, óbvio. Dei a ele todos as autorizações que ele queria para fazer isso, porque considerei normal que esse material voltasse para os Guayaki. Hoje em dia, ninguém, fora alguns velhos, sabe mais falar o Guayaki. O etnólogo queria ensinar para eles sua língua, então dei a ele as fitas, para que servissem aos Guayaki.

Antropólogo alemão (1943-) que, como Pierre Clastres, fez pesquisas de campo entre os Aché (ou Guayaki) no Paraguai entre 1971 e 72. 16

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 Quando as pessoas me perguntam se ainda existem índios Guayaki, não sei o que responder. Sim, existem índios Guayaki, mas eles vivem como os outros, os paraguaios, os não indios, e não sabem mais falar Guayaki. R – Suas reflexões, e as de Pierre Clastres, contribuíram para pensar a existência de uma filosofia ameríndia, o que é um assunto muito estudado entre as populações nas terras baixas da América do Sul. Em que medida a sua formação filosófica contribuiu para que você pensasse uma filosofia ameríndia? H – Duas coisas: não tenho dúvida de que a minha formação, e a de Pierre, em filosofia, influenciaram nossos trabalhos e nossa maneira de pensar. Não acredito que teríamos trabalhado, nem feito as perguntas do jeito que fizemos, sobretudo ele, tratando das questões politicas, se não fôssemos filósofos. Acredito que ele não teria trabalhado da mesma maneira, e nem eu. A filosofia foi uma formação que nos serviu permanentemente. Sem ser aplicada, porque não faria sentido. É uma formação do espírito, acredito, que não pode não ter valido muito. Agora, “filosofia ameríndia”, eu não ousaria dizê-lo, porque acho isso muito pretensioso. Aos pouquinhos, tateando certamente, tentamos demostrar isso um pouco a respeito dos Guarani, e tenho certeza de que se pode mostrar para outros. Tenho certeza de que há um pensamento em todo lugar. Não acredito que existam grupos humanos que não elaborem pensamentos precisos sobre sua situação, seja a situação vivenciada no presente, ou, de maneira universal, a situação dos homens mortais sobre esta Terra. Nos Yanomami – mas não o tratei o suficiente, era o domínio do Lizot –, tenho certeza que por meio dos rituais funerários conseguiríamos alcançar esse pensamento. Queria falar dos meus últimos anos de trabalho com [Michel] Cartry,17 os africanistas, etc. Tem uma coisa que me interessou particularmente na maneira de eles fazerem as perguntas, e Cartry especialmente, que o que importa não é encontrar diretamente o pensamento, não é assim que a gente consegue. Não é necessariamente nos mitos ou nas histórias que se contam que encontramos esse pensamento mas, antes de tudo, nos gestos, nos rituais, em cada pequena coisa da vida. Porque em um ritual, há gestos que são importantes, que se referem a explicações que têm sentidos, simplesmente. E existem palavras que é preciso entender e traduzir com precisão. É necessário analisar tudo isso, o mais precisamente possível, e aí nós descobrimos as ligações, descobrimos sentidos que não apareciam de outra maneira, isto é, quando a gente olha rápido demais, perto demais, sem analisar o sentido preciso dos termos.

Africanista e antropólogo francês da religião (1931-2008), fez extensas pesquisas no Alto Volta (atual Burkina Faso), na África ocidental. 17

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E encontramos, então, ligações entres gestos, palavras e algo que podemos chamar de “visão do mundo”. Tenho certeza que, fazendo assim, se pode encontrá-la em qualquer tribo. Acho que a condição é esse trabalho preciso sobre os gestos, sobre as palavras, sobre os rituais, com interpretação. Nós interpretamos, sempre. Mas a interpretação não vem de fora, deve surgir do que a gente observa. Cartry dizia que era muito mais difícil descrever bem um ritual do que analisá-lo. Porque, assim que a gente descreveu, a análise está ali. É isso que eu gostaria de ter feito a respeito das palavras. Esta maneira de proceder, é isso que gostaria de ter feito. Este trabalho de que falei para vocês outro dia, sobre os animais, sobre as palavras.18 Só que, para mim, é somente um início, e espero que outros o façam depois de mim. R – Vamos passar agora para questões sobre Terra Sem Mal. É uma pergunta longa, sobre os ameríndios, a saber, os povos sem fé, sem rei e sem lei. Essa era a maneira como a política e a religião ameríndias eram encaradas pelos conquistadores europeus, a saber, como ausências. Alguns antropólogos seguiram essa negatividade, considerando as sociedades ameríndias como pré-políticas ou apolíticas. No caso dos Guarani, as pesquisas do século XX sustentam que sua intensa religiosidade seria apenas o resultado da influência dos missionários. Nós gostaríamos que você refletisse sobre as transformações das perspectivas, desdobramentos do que você escreveu que permitiram positivar a religião e a política dos ameríndios. H – Eu queria só nuançar ao menos uma coisa: é verdade que os cronistas e os missionários do século XVI escreveram que os índios não tinham fé, lei, rei, etc. Mas não que não tinham religião. É muito mais sutil do que isso, já que eles encontraram crenças em deuses. Não acredito que, no século XVI, poder-se-ia ter a ideia de um povo sem religião. Acredito que, quando eles diziam “sem religião” – aliás, a gente pode ver isso quando lemos [Fernão] Cardim, por exemplo, ou [Claude] D’Abeville –, isso significava que eles não tinham rituais fixos, com data fixa, que se reproduziam, e que ocorriam anualmente. Isso significava que eles não tinham gestos de oferenda, rezas, e é isso que marcou os cronistas. Eles não se remetiam a Deus, não rezavam, não tinham rituais regulares, não tinham calendário. Claro, tinham rituais, mas quando estes aconteciam, aconteciam em uma ordem que não correspondia à ordem cristã – uma vez que, no século XVI, podemos falar de cristianismo, já que os europeus eram cristãos. Para os cronistas foi muito surpreendente. O “sem religião” significava sem práticas religiosas visíveis que correspondessem ao que eles, os europeus, faziam ou conheciam. Agora, todos estavam convencidos de que existiam crenças, de onde surgem todas essas ambiguidades. Por exemplo: eles tinham medo do trovão, o que significava que eles sabiam

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Helène se refere à conferência apresentada na UFSCar dias antes, Monde humain, monde animal: quel système de pensée?

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 que existia uma potência acima deles. No limite, os cristãos acabaram fazendo dos índios monoteístas que se ignoravam como tais. Eu caricaturo um pouco, mas é quase isso. Então, no início, eles falavam duas coisas: os índios eram sem religião, isto é, ao meu ver, sem práticas, sem fé, sem lei, sem objeto visível, sem dia consagrado. O fato é que eles não tinham semana, não tinham domingo, por exemplo. Eu não lembro se é [Yves] D’Évreux ou [Claude] D’Abbeville que enumera tudo isso. Então, nós entendemos muito bem o que eles queriam dizer com isso. Mas os índios sabiam que existia acima deles uma potência, e disso vem essa ambiguidade. Essa ambiguidade porque, de um lado, os índios seriam “sem Deus, sem prática” e, do outro, possuiriam a crença em um Deus quase único. Então, é um pouco mais sutil do que só isso, do que “sem religião”. O “sem religião” tem um sentido preciso. Não significa sem crença. Significa, somente, sem os rituais a que os europeus estavam acostumados, sem rezas, sem culto, sem sacrifício etc. No que concerne ao positivo, parece-me que não buscamos mais a religião como no século XVI, quando, afinal, estávamos diante de um dilema: ou somos monoteístas ou somos pagãos, e aí adoramos vários deuses, mas, de todo modo, adoramos deuses. Entretanto, os índios não adoravam ninguém. Nós nunca os vimos adorar, ficar no gestual, na postura da adoração, nem de um Deus, nem de vários. Então, era bastante complicado para eles situarem os índios. De sorte que, ao mesmo tempo em que falavam deles como “sem religião”, eles diziam o contrário, sem saber muito bem como os classificar. Finalmente, optavam pelo monoteísmo, mas sabendo muito bem que eles não eram monoteístas, e que haviam chegado a tempo para lhes ensinar a verdadeira religião. O positivo.... Acho que é quase uma condição de possibilidade de trabalho com os índios. Se procurarmos sempre o que eles não têm, não fazemos nada, seja na religião, seja na política. Não vamos dizer sempre – “eles não tem isso, não tem aquilo”. É o que eu tentei fazer, inspirando-me nos africanistas e no trabalho que fizeram sobre o sacrifício. Eu não ia procurar a todo custo o sacrifício, ou procurar equivalentes, ou aplicar um esquema sacrificial. Não faria sentido. Mas procurar o que podia ter a mesma função, já que o sacrifício é comunicação com os deuses e os ancestrais, estabelecer e desfazer relações entre humanos e ancestrais. A pergunta que nós podíamos nos colocar era: “o que permite, entre os índios, estabelecer ou desfazer ligações entre os humanos e as potências invisíveis, quer sejam donos dos animais da floresta ou outros?” Parece-me evidente positivar. Não vejo como fazer de outra maneira. R – Um dia os antropólogos pararam de pensar assim, e alguma coisa no seu trabalho permitiu a possibilidade de pensar de outra maneira.

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H – Você acha? Eu tento dimensionar o que Alfred Métraux trouxe. Bom, a respeito de A Religião dos Tupinambá, eu esqueci um pouco. Ele talvez não tenha feito o trabalho que nós fizemos depois. Acho que, de certo modo, foi ele que o tornou possível. De qualquer maneira, ele me incentivou a fazer aquilo. Ele pouco trabalhou com os índios contemporâneos, mesmo tendo ido a todos os lugares. Mas ficava pouco tempo. Então, ele conheceu os trabalhos de Cadogan, mas ele mesmo não trabalhou com isso. Ele trabalhou mais sobre os testemunhos do século XVI. Aliás, para Pierre, e para mim, foi uma contribuição considerável. Ele nos fez descobrir os testemunhos extraordinariamente ricos do século XVI e do XVII. E do século XVI sobretudo, que ele conhecia perfeitamente. Ele tinha uma cultura extraordinária, Métraux. Ele tinha lido tudo e conhecia tudo. Era impressionante! E graças a ele, nós tivemos acesso a esses documentos. Foi ele quem no-los revelou, e foi muito útil. Não teria conseguido fazer esse trabalho se Métraux não me tivesse informado que existiam esses testemunhos extremamente importantes, numa época em que os índios eram diferentes do que eles viriam a ser, e mais próximos, provavelmente, de suas culturas de origem, se tem algum sentido falar assim! Então isso contou muito. Acho que eu não teria feito o mesmo trabalho se tivesse acesso apenas aos textos de Cadogan, sem ter lido tudo que existia antes sobre os Tupi. R – Pois neste trabalho sobre os Tupi-Guarani em que você utilizou os relatórios dos missionários e dos exploradores do século XVI, você também os completou com seus próprios dados de campo. Estes dados têm o mesmo estatuto? Como articular estes diferentes dados? H – Nem sempre podem ser articulados. Sociedades são como imagens. Nós temos o ponto de vista de um momento. No século XVI, nós tínhamos sociedades assim: que praticavam a guerra, que eram canibais, que tinham mitos que Thevet anotou etc. Temos uma descrição bastante precisa se olharmos a quantidade de franceses, Léry, Thévet, e depois D’Évreux e D’Abeville, [Paulmier de] Goneville enfim, tem outros, estou citando os maiores; e a quantidade de portugueses, Cardim, [Gabriel] Soares de Souza etc. Enfim, há uma quantidade impressionante de documentos, que mostram as sociedades com uma precisão que nenhum etnólogo teria feito melhor. A minha explicação é que, nessa época, quando não se tinha nem câmera, nem gravador, tratava-se tudo com mais precisão. Não se podia fotografar, então se desenhava. Você tem desenhos, eu não me lembro se eram de [André] Thevet, mas eu li em algum lugar que alguns botânicos conseguiram identificar plantas graças aos desenhos dele, tão bem feitos eram. Não conhecer e não usar esse material, que é de uma riqueza prodigiosa, é uma aberração. É fazer de conta que os índios surgiram hoje. Entretanto, em meio a tudo isso, os índios mudaram. Coisas foram perdidas, tal como o canibalismo, a guerra, etc. E outras mudaram. Mas talvez possamos, e isso é uma hipótese, talvez possamos achar uma lógica de !263


R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 transformação, ou de manutenção. Uma sociedade não muda de qualquer maneira. Ela deve manter traços, então há alguma coisa que persiste nestes traços, o que faz com que nós possamos, acredito, olhar o que vemos hoje e tentar esclarecê-lo através do passado. Porque podemos ver transformações que podem explicar ou dar contar, em parte, do que observamos, um mito, por exemplo, ou um ritual. Mas não podemos ver o inverso. Os índios, que são de tal ou tal maneira hoje, se não temos o testemunho do que eles fizeram no passado, não podemos fazer o movimento inverso, porque, além da lógica interna da cultura, há as influências exteriores que não podemos negligenciar. R – A esse respeito, em Terra sem mal, você apresenta o discurso de um Karai Mbya anunciando o fim da sua sociedade. No final da introdução você escreve essas palavras muito duras: “Hoje, os Tupi-Guarani estão morrendo”. Você acompanha a situação política atual dos ameríndios? H – Não, eu não acompanho, e tenho que dizer que o que eu escrevi é um erro. Mas em 1963, segundo a história dos Guayaki e pelo que eu vi, a situação dos Guayaki dava-me a impressão, era puramente impressionista, e era uma impressão de decadência, de que todas essas sociedades iriam desaparecer, perseguidas, obrigadas a trabalhar para os paraguaios, sobrevivendo com dificuldades, lutando contra todos, então particularmente ameaçadas. A situação no Paraguai era muito desencorajadora. Mas isso é datado. O que se seguiu me mostrou que eu estava errada, felizmente. R – Acredito que era a mesma coisa no Brasil nesse momento. E se hoje a situação é melhor do que na época da ditadura militar, tampouco é muito boa. A respeito dos seus trabalhos mais recentes: neles você fala de outro assunto, de outra temática, de uma outra circunscrição geográfica. Você fala da França, da memória, da migração, de uma tradição completamente diferente. O que motivou tal mudança em seu percurso? H – Era a oportunidade. Como se diz, “a ocasião faz o ladrão”. O Ministério da Cultura na França tem um departamento dedicado ao patrimônio. Chama-se Missão do Patrimônio. A cada dois ou três anos, temas de estudos são propostos aos etnólogos trabalhando sobre a França, e apareceu um tema sobre as escritas cotidianas, não intelectuais. Propuseram-me, divertiu-me trabalhar com isto, trabalhei com uma amiga que fazia pesquisa na França, sobre os faire-part, que as pessoas mandam quando há um evento para anunciar. Nós decidimos, para nos divertirmos, trabalhar com os faire-part e anúncios de luto, e isso de duas maneiras: lendo os jornais, já que em todo jornal há uma espaço no qual as pessoas anunciam os nascimentos e as mortes, e reunindo os faire-part.

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Nós nos divertimos porque os faire-part são muito engraçados agora. Antigamente – eles foram inventados por volta do final do século XIX – era uma maneira de evitar que as pessoas se cansassem buscando encontrar as palavras certas. Eram propostas, fórmulas prontas. Não era preciso torturar o cérebro para procurar como anunciar uma morte ou um nascimento. Havia uma ordem muito fixa de precedência, sempre respeitada, e que devia aparecer no faire-part. Para anunciar uma morte, se se tratava de um homem, em primeiro lugar era a esposa, a viúva, depois os filhos, depois os irmãos e irmãs e seus filhos, e depois isso foi mudando pouco a pouco. Primeiro, porque se difundiram muito os faire-part de casamento e de nascimento, e as pessoas começaram a fazer fantasias, a querer ser originais. Então, passou a ser o contrário do que era no início. Antes eram feitos para poupar a reflexão, e viraram uma maneira de se distinguir no anúncio. Então, eu me diverti muito lendo isso! Exemplo de fairepart de morte: “Fernand partiu para se juntar às arvores” (risos), para dizer que ele faleceu. E, em seguida, o anúncio mesmo, os títulos, os gêneros, os nomes, mudaram: não é mais “senhora e senhor fulano com seus filhos...”, mas são os nomes dos filhos: “Pierre, Marie, Jules, Mathieu, etc… estão muito tristes de anunciar…”, sem que aparecessem, necessariamente, as relações. Então, tudo isso ficou muito confuso. Era muito codificado e hoje, mesmo nos fairepart de morte, que são os mais sérios, esta organização precisa se apagou. Quanto aos fairepart de nascimento e casamento, aí nos liberamos de maneira extraordinária! Antigamente, era: “Senhor e Senhora fulano têm o prazer de lhe anunciar o nascimento do seu filho beltrano, nascido o dia tal em tal lugar, etc”. Hoje, é o bebê que fala! “Cheguei depois de uma longa viagem de nove meses! Ah! Até que enfim, respiro, veio a luz!” etc. Era neste quadro, e era para mim mais um trabalho fácil e divertido do que qualquer outra coisa, aproveitando das chamadas do Ministério da Cultura e do Patrimônio. E o segundo, também foi uma chamada do Ministério da Cultura e do Patrimônio sobre as tradições, e escolhi os pedreiros da região de Creuse,19 porque tenho uma amiga creusoise que tinha vontade de trabalhar com isso, Solange Pinton, a mesma amiga com quem trabalhei sobre os faire-part. Fomos a Creuse. Aliás, para trabalhar com os faire-part, também fomos a Creuse porque, além da pesquisa com os jornais, fizemos um trabalho de campo. Fomos também à Normandia. É uma região um pouco peculiar, os normandos são pessoas muito religiosas, muito piedosas, e ali nós perguntávamos como eles anunciavam. Eles colocam ainda os faire-part no comércio, na porta das igrejas, e não somente nos jornais ou enviando-os aos parentes. R – Eles fazem muitos exemplares?

Departamento na região do Limousin, bem no centro da França, cuja capital é Guéret. Dista cerca de 400 quilômetros de Paris. 19

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 H – Muitos exemplares. Atualmente as cópias são fáceis porque se as pode fazer no computador. Depois do computador, pode-se dar livre curso à motivação e fazer algo com vontade, contar tudo que quiser. Eu vi faire-part de nascimento que tinham mais de três páginas! Por que, de repente, a gente precisa ser original para uma coisa que, no início, era o contrário? O que isso traduz dos costumes? E o que foi que mudou? E nas relações familiares, o que aparece nas novas relações familiares quando olhamos para isso? Por exemplo, a gente encontrou fairepart de nascimento em que, no mesmo faire-part, os filhos de vários casamentos anunciam. Por exemplo, um homem que tem dois filhos e que se casa novamente. Quando ele anuncia o nascimento do filho advindo deste novo casamento, todos os filhos anunciam, e também os filhos do primeiro casamento. Então, através dos faire-part, aparece um certo número de coisas. O que me marcou foi a falta de vocabulário. Não existem termos no sistema de parentesco francês para nomear o laço entre filhos de dois casamentos de uma mesma pessoa, fora “meio-irmão” (demi-frère), mas os anúncios vão além. Entre os antigos casais, não existe nenhum laço entre a primeira esposa e a segunda, não existe o laço e, portanto, falta. Nos faire-part nós vemos que isso falta, porque, neles, estes laços aparecem, os nomes aparecem. Em outra ocasião, para um casamento, havia um faire-part no qual todos anunciaram, incluindo a primeira esposa, eventualmente. Então: relações totalmente novas de fato! Uma anedota: dois anos atrás, fui para o casamento da filha de uma amiga que se casava pela segunda vez. E estavam todos os ex, que foram convidados, os da mãe, os dela! (risos). Então, é isso que nos marcou, de uma certa forma: a pobreza do nosso vocabulário de parentesco. Nós não temos como qualificar este tipo de relação. O artigo que trata desse trabalho esta na revista Le débat e o título em francês era “Faire-part”.20 R – Há uma penúltima questão. É sobre os pedreiros de Creuse. Porque, nesse trabalho, encontramos os temas da memória, do espaço, da migração. Existe uma conexão possível entre a forma como as questões surgiram para os creusois e para os ameríndios? Em que medida a sua experiência etnográfica com os índios inspirou o seu trabalho mais recente? H – Acho que o que meus primeiros trabalhos me trouxeram foi uma certa maneira de entender um pouco diferente do que uma revivescência artificial, mas que, bom, certamente é uma revivescência, porque, agora, cada pequena porção da França, cada região, se importa muito com sua particularidade, com seu passado. Então, parece que tem algo um pouco artificial. A minha experiência indígena me induziu a pensar que é um pouco demais dizer isso. Claro, todos procuram, hoje, sua própria cultura, seu patrimônio, como se diz, mas por trás disso existe algo muito mais profundo do que uma simples reviviscência, que não é a melhor 20

Hélène CLASTRES & Solange PINTON. “Faire-part. Le public et le prive”. Le Débat, no 88, pp. 91-115, 1996.

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palavra, não é o termo justo… Isso traduz realmente o pensamento das pessoas, suas maneiras de se perceber: nós somos creusois, isso significa que nós somos feitos de todas essas ideias, dessas imagens, dessa história. E a história deles se fez nas estradas, porque essas pessoas iam participar da construção de Paris no século XIX, a Paris de [Georges-Eugène] Haussmann,21 que refez Paris no século XIX, que demoliu todos os bairros, que abriu as grandes avenidas. Ele tinha chamado muita mão de obra creusoise, então tem uma maneira de se pensar essas pessoas através disso. Tem um pouco de artificial, com certeza, quando a gente escuta discursos deles sobre a pedra, etc. Mas há algo profundamente mais sério, que é deles, que os distingue, e que é a sua maneira de se pensar. Acredito que a etnologia serviu para me tornar um pouco mais sensível a este lado. R – Temos uma última pergunta. É uma pergunta bastante nacionalista, ou paroquial. Conte-nos sua experiência no Brasil: quem você encontrou, com quem você teve interlocuções intelectuais? E, por fim, o que a motivou a querer rever os Guarani agora? Mesmo que, afinal de contas, você não tenha conseguido rever os Guarani, você veio aqui para isso? H – Não, eu não sei. Foi, como ela se chama? Quem me propôs isso? Maria Inês, a esposa de Paulo Santilli, foi quem me propôs, em Paris, de voltar para ver os Guarani, para ver como as coisas estão acontecendo hoje. Eu disse – “por que não”? A última vez em que eu estive lá foi em 1975 ou 1976. Eu sei que há muitos trabalhos, eu sei que as sociedades mudaram, e queria ver onde estão, como as coisas acontecem hoje. Mesmo que fosse com os Guarani na costa, que Pierre encontrou, e que haviam compartilhado comigo sua impressão pessimista. Então queria voltar para comparar os dois momentos. R – Você deseja acrescentar mais alguma coisa? H – Não, mas você colocou-me a questão do Brasil. Acho que os brasileiros têm um civismo totalmente extraordinário. Vocês são pessoas muito simpáticas. Não conheço outro lugar onde os universitários sejam tão acolhedores como no Brasil. É simpático! Nós tivemos esse conhecimento. Pierre primeiro, porque ele chegou antes de mim, com uma facilidade extraordinária. E depois eu mesmo, nós conseguimos contato com uma facilidade extraordinária, graças a essa qualidade do contato e da relação que vocês têm. Nós somos mais reservados, um pouco rígidos, mais ou menos constipados, para falar vulgarmente, e vocês têm uma simplicidade natural de fazer relações, que encontrei em todos os lugares,

Também conhecido como Barão Haussmann (1809-1891), foi prefeito do antigo Departamento do Sena, entre 1853 e 1870, período no qual realizou as grandes obras de reforma urbana de Paris que o tornaram mundialmente conhecido. 21

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R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.2, jul.-dez., p.251-268, 2013 desde 1963, quando conhecemos Fernando Henrique Cardoso e sua mulher. Lúcia Prado, Paulo Arantes, Gianotti. Nós fizemos amizade muito rapidamente com todos que citei, e isso me marcou, porque não vi em nenhum outro lugar esta facilidade de fazer relações, relações que foram, em vários casos, relações verdadeiras, duráveis. Eu cheguei aqui em Campinas, e todos foram particularmente amáveis. Há uma qualidade de relação especificamente brasileira que é a qualidade de vocês, e sua grande força. Então, nós vínhamos sempre com muita vontade, graças a isso! R – Você pretende fazer outra visita? H – Aqui? Ai, ai, ai! Eu sou preguiçosa. A viagem é cada vez mais difícil de suportar. Que pena que estejamos tão longe… E eu tenho consciência de que vocês gastaram muito dinheiro para me trazer aqui. E eu não mereço tanto. R – Eu não sei se você faz ideia de como as pessoas aqui estão felizes por te conhecer. Por ter ouvido sua conferência. Este foi o clima geral no auditório. Não é sempre assim. Nós nunca tínhamos participado de um evento acadêmico em que houvesse essa emoção geral. Isso é por causa de sua presença. H – Vocês são muito bondosos. Mas, é verdade, eu estou muito feliz por ter vindo. Foi um grande esforço. Mas eu não me arrependo R – Você sabia que muitas daquelas pessoas se tornaram antropólogas por sua causa, e por causa de Pierre Clastres? Os trabalhos de vocês foram capazes de mudar as vidas das pessoas que os leem. Então, muito obrigado por ter vindo e muito obrigado pela entrevista. Nós tomamos muito do seu tempo e da sua paciência.

Realização Grupo de Etnologia da UFSCar Amanda Danaga, Clarissa Martins Lima, Gabriel Bertolin e Jan Eckart Tradução Jorge Mattar Villela, Stéphanie Tselouiko Revisão e notas Jorge Mattar Villela, Stéphanie Tselouiko, Felipe Vander Velden !268



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caderno de imagens Homenagem aos mortos: O Egitsü entre os Kalapalo do Alto Xingu (Brasil) Marina Pereira Novo Doutoranda em Antropologia Social, UFSCar

O Alto Xingu, localizado na porção sul do Parque Indígena do Xingu, região norte do estado do Mato Grosso/Brasil, é um complexo sociocultural pluriétnico e multilíngue composto por povos falantes de línguas pertencentes a diferentes troncos e famílias linguísticas: arawak, karib e tupi, além dos Trumái, que falam uma língua considerada isolada. A despeito das diferenças linguísticas, estes povos são culturalmente bastante homogêneos e são intensamente articulados por comércio, casamentos e, sobretudo, pela participação em um conjunto de rituais regionais. O principal destes rituais, o Egitsü (mais conhecido como Kuarup, seu nome em tupi), é uma festa de homenagem aos mortos ilustres. O ciclo da festa dura cerca de um ano, devendo incluir um momento onde os donos da festa recebem pequi dos demais moradores (o que ocorre no final da primavera) e outro momento em que se junta polvilho (no começo do inverno). Esses alimentos são armazenados e utilizados pelos donos para o pagamento de todas as atividades relacionadas à festa. As imagens aqui retratadas ilustram os dias finais das festas de 2010 e 2011, realizadas na aldeia Aiha, etnia Kalapalo (povo de língua karib). Nos dias finais os donos da festa são lavados, pintados e têm seus cabelos cortados, representando o final do período de luto. É nesse momento também que convidados de todas as aldeias se juntam na aldeia anfitriã para a luta (ikindene). O símbolo principal da festa é o tronco, efígie que representa os mortos homenageados, com sua pintura característica, hototo ijatagü (“axila de borboleta”). Os troncos são devidamente enfeitados com cintos feitos de algodão, colares de caramujo e cocares de penas, ao redor dos quais choram os familiares dos mortos. No ensaio aqui apresentado está retratado um dos donos da festa de 2010, devidamente pintado e paramentado com os símbolos da chefia kalapalo (brincos feitos com penas de rabo de rei congo, pinturas específicas no cabelo e segurando um arco majahi, especialmente utilizado por chefes). Cabe aos chefes ofertar todo o alimento – peixe, beiju e mingau de pequi – que será consumido pelos participantes durante os dias finais da festa. Finalmente, pode-se ver imagens dos tocadores das flautas atanga, dançarinos e lutadores, figuras centrais para o desenvolvimento da festa, com seus enfeites e instrumentos.

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Flautistas tocando a flauta atanga, instrumento utilizado somente no Egits端 Marina Pereira Novo, 2010

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Dan莽arinos de a农guhi Marina Pereira Novo, 2010

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Tronco que serĂĄ utilizado como efĂ­gie sendo carregado para o centro da aldeia Marina Pereira Novo, 2011

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EfĂ­gies enfeitadas com cintos, cocares e colares Marina Pereira Novo, 2010

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Familiares chorando ao redor das efĂ­gies Marina Pereira Novo, 2011

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Principal dono do Egits端 de 2010 Marina Pereira Novo, 2010

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Lutadores anfitri천es adentrando a aldeia no dia final da festa Marina Pereira Novo, 2011

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Campe천es sendo apresentados para a luta, com os convidados ao fundo Marina Pereira Novo, 2011

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volume 5, número 2 Julho - Dezembro, 2013 ISSN: 2175-4705

A Revista de Antropologia da UFSCar publica trabalhos em português e em língua estrangeira: espanhol, francês e inglês. Os trabalhos devem ser submetidos exclusivamente por e-mail: rau.ppgas@gmail.com Os trabalhos submetidos devem indicar, em folha separada, nome(s) do(s) autor(es), titulação, afiliação acadêmica, endereço para correspondência e e-mail. Os textos devem estar digitados em página A4, fonte Times New Roman, corpo 12, espaçamento 1,5 cm, com margens esquerda/direita 2,5 cm, cabeçalho/rodapé 3 cm, em formato Rich Text (.rtf ) ou Word (.doc), compatível com o Windows. As notas devem ser numeradas com algarismos arábicos, em ordem crescente e listadas ao final do texto, antes das referências bibliográficas. Quadros, mapas, tabelas, imagens etc., devem ser enviados em arquivo separado, com indicações claras, ao longo do texto, dos locais em que devem ser incluídos. No caso das fotografias, devem estar digitalizadas com resolução acima de 300 dpi e nos formatos TIFF, JPEG e/ou PNG. Os autores deverão ser comunicados do recebimento da sua colaboração - e se esta atende aos quesitos para ser encaminhada para avaliação - no prazo de até 8 (oito) dias a partir da submissão. E deverão ser comunicados do resultado da avaliação de sua colaboração no prazo de até 90 (noventa) dias, a contar a partir da confirmação do recebimento. Toda comunicação da revista para os autores será feita através do e-mail do primeiro autor do artigo. Os autores que não receberem mensagem da revista nos prazos supra-citados devem procurar novo contato para esclarecer se houve extravio de correspondência eletrônica.

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R@U : Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS – UFSCar ISSN: 2175-4705

a) Artigos e ensaios inéditos. Devem indicar título (em português e inglês) e apresentar, em português e inglês, um resumo entre 100 e 150 palavras e um elenco de palavras-chave (separadas por ponto) que identifique seu conteúdo. Limite máximo de 30 páginas, incluídas as referências.


b) Relatos de pesquisa: espaço para apresentação de reflexões preliminares acerca das pesquisas dos alunos do PPGAS e outros programas de pós-graduação em antropologia. Limite máximo de 10 páginas, incluídas as referências. c) Traduções de trabalhos relevantes e indisponíveis em língua portuguesa. Devem apresentar título, nome(s) do(s) autor(es) e do(s) tradutor(es). Devem ainda ser acompanhadas de cópia do original utilizado na tradução, bem como autorização – do editor e do autor – para publicação. d) Resenhas de livros, coletâneas, filmes, documentários, discos, etc., editados nos dois últimos anos a contar da data de publicação da revista. Devem indicar a referência bibliográfica do trabalho resenhado. Não devem ultrapassar 6 páginas. e) Entrevistas devem apresentar o(s) nome(s) do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es). Devem trazer também uma apresentação de, no máximo, 1 página. Solicitamos também o envio da autorização do(s) entrevistado(s), concordando com a publicação do trabalho. As entrevistas não devem exceder 30 páginas. Menções a autores ou citações presentes no corpo do texto devem adequar-se aos respectivos modelos: um único autor, (Geertz, 1957) e (Geertz, 1957, p. 235), e mais de um autor (Hobsbawn; Ranger, 1984) e (Hobsbawn; Ranger, 1984, p. 254). Títulos do mesmo autor com o mesmo ano de publicação devem ser identificados com uma letra após a data: (Lévi-Strauss, 1962a) e (LéviStrauss, 1962b). Citações com mais de 3 linhas devem ser apresentadas em parágrafo próprio. As referências bibliográficas devem vir ao final do trabalho, listadas em ordem alfabética, obedecendo aos seguintes padrões exemplificados, segundo as normas da ABNT NBR 6023. É obrigatória a apresentação do número total de páginas do livro citado ou do número de páginas, quando o a menção for feita a um capítulo de livro, coletânea, etc. Livros: LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon. 1962. 395 p. ______. Le Totémisme aujourd'hui. Paris: PUF, 1962. 154 p. ______. O cru e o cozido. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 442 p. BATESON, Gregory; MEAD Margaret. Balinese Character. A Photographic Analysis. New York: The New York Academy of Sciences, 1942. 277 p. Artigos em periódicos (versões impressa e eletrônica): GEERTZ, Clifford. Ethos, world view and the analysis of sacred symbols. The Antioch review, Yellow Springs, v. 17, n. 4, p. 234-267, 1957. TOREN, Christina. Como sabemos o que é verdade? O caso do mana em Fiji. Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, 2006. Disponível em: . Acesso em: 31 Mar 2007. Trabalhos em coletâneas: STOCKING JR., George. The Ethnographer's Magic: Fieldwork in British Anthropology from Tylor to Malinowski. In: ______. (Org.). Observers observed – Essays on Ethnographic Fieldwork. Madison: The University of Wisconsin Press, 1983. p. 70 - 120. TURNER, Terence. Ethno-ethnohistory: Myth and History in Native South American Representations of Contact with Western Society. In: HILL, J. (Org.), Rethinking History and Myth. Indigenous South American Perspectives on the Past. Urbana: University of Illinois Press. 1988, p. 235-281.


Teses ou dissertações acadêmicas: DAWSEY, John Cowart. De que riem os bóias-frias? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. 1999. 235 f. Tese (Livre-docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999. Documento eletrônico: AMARAL, Rita. Antropologia e internet. Pesquisa e campo no meio virtual. In: OS URBANITAS Revista digital de Antropologia Urbana. ano 1, v. 1, n. 0, out. 2003. Disponível em: <>. Acesso em: 18 jan. 2007. Trabalho e resumo publicados em Anais de Congresso: Trabalho completo (versões impressas e digitais) SILVA, Márcio Ferreira da. A Fonologia Kamayurá e o Sistema de Traços de Chomsky e Halle. In: GELSP, XXIV. PUC-Campinas. Anais do XXIV GEL-SP. Campinas/SP, 1981. v. 1, p. 175-182. PEREZ, Léa Freitas. De juventude e da religião - modulações e articulações. In: JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, XIII, 2005. PUCRS. Anais da XII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. Porto Alegre/RS, 2005. CD. MARQUES, Ana Claúdia Rocha. Singularização e Transmissão do Conhecimento Antropológico. A antropologia na USP. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. 31º. Hotel Glória. Anais do 31º. Encontro da ANPOCS. Caxambu/MG, 2007. Disponível em <http://201.48.149.88/anpocs/ arquivos/13_11_2007_14_24_54.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2008. Resumo (versões impressas e digitais) LANGDON, E. J. . Xamânismo no Mundo Pós-Moderno: Neo-Xamânismo entre os Siona. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL: DESAFIOS ANTROPOLÓGICOS, VII., 2007. UFRGS. Anais da VII RAM. Porto Alegre, 2007, p. 1-1. ALMEIDA, Mauro. Conflitos da conservação ambiental: identidades, territorialidades e natureza. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA: SABERES E PRÁTICAS ANTROPOLÓGICAS: DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI. 25ª. 2006. UFG/UCG. Anais da 25ª. RBA. Goiânia/GO, 2006. CD (V. 01) Referências videográficas Prelúdio. Direção: Rose Satiko Hikiji. Produção: Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, 2004, 13 minutos. Multimeios: CD MIRANDA, Marlui. IHU – todos dos sons. [S.1]: Pau brasil [1995].


Teses e Dissertações defendidas em 2011 Adriana Fernanda Busso Titulo: Ao sabor das águas acreanas. Etnografia das oficinas de vídeo do projeto Vídeo nas aldeias: Ashaninka e Huni Kuin Resumo: Esta etnografia apresenta dois momentos de aprendizagem pelos quais os futuros realizadores indígenas – integrantes do “Pontão de Cultura Vídeo Nas Aldeias” – experimentam durante sua formação: Captação de imagens e Edição. A pesquisa se deu a partir de dois trabalhos de campo: acompanhando a Oficina de Formação de Realizadores Indígenas Ashaninka do Rio Amônia no Acre, que resultou no filme “UMA ALDEIA CHAMADA APIWTXA” e o processo de edição do filme Huni Kuin “KENE YUXI, AS VOLTAS DO KENE”, em Olinda (PE).

Alexandra Cristina Gomes de Almeida Titulo: Depois da tragédia de Jean Charles : Uma etnografia em Gonzaga (MG) Resumo: Este trabalho tem como objetivo expor o fenômeno do fluxo emigratório no município de Gonzaga (MG). A cidade ganhou repercussão internacional tanto na mídia impressa quanto televisiva, devido a morte de um dos cidadãos em setembro de 2005, Jean Charles Menezes. O mineiro foi assassinato numa das estações de metrô londrinas (Inglaterra) após a polícia britânica o ter confundido com um suposto terrorista, o evento tornou-se notícia por causa da violência da morte, além de ter se transformado num exemplo das condições problemáticas as quais milhares de imigrantes são expostos. A partir da perspectiva antropológica, esta pesquisa relata a dinâmica social da cidade após da exposição imprensa mundial, focando a análise nas noções de família e nas tradições locais. Portanto, esta etnografia descreve as famílias na sua organização e valores, que influenciam nos fluxos migratórios do local.

Camila Rocha Firmino Titulo: Capoeiras: gênero e hierarquias em jogo Resumo: A dissertação tem por objetivo analisar como acepções de gênero atravessam o sistema simbólico da capoeira visto que, embora tenha sido notado o crescimento do número de praticantes mulheres em altas graduações, nos últimos 10 anos, esse número ainda figura incipiente. O trabalho avalia as relações de gênero a partir da etnografia realizada em um grupo de capoeira na cidade de Campinas/SP, confrontada com informações da trajetória pessoal da pesquisadora, como praticante. O gênero foi observado como um marcador de diferença que, nos discursos sobre corporalidade, desencadeia a diferenciação. Porém, no nível da disputa por prestígio, que ocorre na roda, o elemento que opera como ordenador de status dos/as praticantes é a habilidade e, por conseguinte, a diferenciação pode ser deslocada da dimensão da identidade de gênero para a dimensão do sistema valorativo da capoeira. O deslocamento da diferenciação ocorre quando mulheres adentram ou pretendem adentrar a esfera da luta corporal, necessária para se alcançar uma posição de prestígio. Assim, o trabalho busca explorar tanto apreensões correntes sobre corpo e diferença sexual que subsidiam a diferenciação baseada no gênero, quanto possibilidades de desestabilizar essa diferenciação.

Christiane Aparecida Tragante Titulo: “Mas professora, isso é arte?”: uma abordagem antropológica da arte na sala de aula Resumo: Essa dissertação é um estudo antropológico sobre as relações que as crianças constroem com a arte e seus objetos em sala de aula. Partindo de inquietações advindas de minhas experiências enquanto professora, constatei, em uma pesquisa etnográfica, diferenças na definição, classificação e fruição dos objetos artísticos entre alunos e professores nas aulas de Arte. Por meio da etnografia realizada em duas 5as séries de escolas da cidade de São Carlos – SP, foi possível perceber que os processos de produção do conhecimento apontam para as crianças, além de professores, objetos de arte e outros agentes do campo artístico, como sujeitos ativos nas relações de aprendizagem. Os desenhos realizados por elas contribuíram para evidenciar que as relações construídas no processo de ensino e aprendizagem interferem nas formas de


conhecer, apreciar e fazer arte, mas também mostraram que as crianças agem de forma particularizada, frente aos objetos artísticos, nos contextos dessas três ações. Por fim, a etnografia levou a reflexões sobre a educação em arte com as crianças, bem como, sobre nosso próprio sistema artístico. Érica Rosa Hatugai Titulo: A medida das coisas: japonesidades e parentesco entre associados da Nipo em Araraquara Resumo: Esta pesquisa faz uma análise antropológica de uma japonesidade formulada no interior das famílias que compõem um contexto associativo de imigrantes japoneses, e seus descendentes, na cidade de Araraquara (SP). A compreensão dessa japonesidade veio por meio de uma etnografia que perseguiu as elaborações que compunham a categoria nativa "japoneses" e as classificações mobilizadas a partir delas. Percorrendo os entendimentos nativos, acerca dessa categoria, foi possível compreender e analisar que as relações sociais entre as famílias e as percepções individuais e coletivas sobre as especificidades do "japonês" não constituíam crises nem manipulações identitárias para os indivíduos. As teorias nativas explanavam entendimentos acerca das diferenças "japonesas" que constituíam um modo "brasileiro japonês", ou ―japonês brasileiro‖ e expunham um idioma associativo articulado com base na família e em noções de substâncias.

Juliana Coelho Titulo: Saberes e práticas de saúde em campo: um olhar antropológico sobre a estratégia de saúde da família na Praia Azul - SP Resumo: O objetivo desta pesquisa foi, originalmente, o estudo antropológico das equipes multiprofissionais do Programa de Saúde da Família (PSF), realizado a partir da etnografia em um município do Estado de São Paulo, na qual se procurou observar a interação entre diferentes campos discursivos e práticas profissionais. Constatou-se, entretanto, que as equipes multiprofissionais estudadas podiam ser divididas em dois tipos de equipe: uma hierárquica, conformada por todos os profissionais de saúde legitimados (médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem), e outra, mais igualitária, conformada apenas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Além disso, ao explorar o tema por meio da pesquisa etnográfica, foi também evidenciado que os saberes e as práticas de saúde em campo eram atravessados pelo paradigma da promoção da saúde, a qual não só buscava reorientar a demanda dos usuários da saúde pública, mas visava a transformá-los, por meio de processos pedagógicos, em sujeitos de cidadania. Para tanto, foi feita uma análise desse processo, focando-se, particularmente, na atuação e formação dos ACS, dado que eles surgiam não só como mediadores entre o saber biomédico e o saber popular, mas também se mostravam capazes de transitar entre estes dois papéis: o de interventor do Estado e o de interlocutor da comunidade. Assim, se por um lado a ambigüidade do ACS revelava o caráter normatizador da estratégia, por outro, mostrava uma brecha para a emergência da cidadania, o que permitiu tanto a problematização do projeto de “cidadanização na saúde” implícito nas políticas públicas de saúde, quanto da coexistência de modelos contraditórios dentro de um mesmo programa e de um mesmo equipamento de saúde. Vimos, então, que a Estratégia de Saúde da Família apresenta paradoxos e incongruências na operacionalização do programa, algumas das quais podem comprometer sua consolidação como eixo norteador do SUS e devem ser objeto de reflexão, a fim de que o programa não se transforme apenas em um modelo gestor sem a contraparte assistencial efetiva que se espera de um serviço de atenção em saúde pública.

Lara Tejada Stahlberg Titulo: Mulheres em campo : novas reflexões acerca do feminino no futebol Resumo: O futebol historicamente foi reconhecido como uma arena demarcada pela masculinidade, mas não qualquer masculinidade, uma masculinidade que se não exclusiva, é predominantemente heterossexual. Isso se justificaria pela maneira como se constituiu a prática do jogo, caracterizada por uma performance bastante definida e voltada para aquilo que seria inerente a uma condição do que se entende idealmente como ser “homem”. Nesse contexto, a própria conformação dos corpos para a prática do futebol em muitos países, em especial no Brasil, induziu a ideia de que esse seria um esporte pouco adequado e desejável ao corpo feminino. Deste modo, às mulheres restou o papel de, no máximo, espectadoras, e a


entrada no universo do futebol foi restrita àquilo que era considerado apropriado a uma mulher. Entretanto, temos assistido a uma crescente e contínua “subversão” deste espaço e representação subversão esta que vai desde o número de mulheres que frequentam os estádios até as profissionais que se inserem nas mais diversas áreas do esporte, de modo que se o futebol pode ser entendido como uma instituição, que para alguns autores expressaria no plano simbólico a sociedade brasileira, compreender o papel ocupado pelas mulheres neste universo e de que maneira este espaço é conquistado pode ser igualmente relevante. Nesse sentido, o estudo dos papéis assumidos pelas mulheres no futebol, seja como jogadoras, árbitras, jornalistas e torcedoras pode revelar diferentes nuanças de um novo espectro de representações formuladas por novos e antigos atores que operam nesse espaço.

Ligia Rodrigues de Almeida Titulo: Os Tupi Guarani de Barão de Antonina-SP: migração, território e identidade Resumo: Esta dissertação discute a forma como os Tupi Guarani de Barão de Antonina, sudoeste do estado de São Paulo, concebem seu território em um contexto de demarcação de terras indígenas, considerando, que as terras que esses índios habitam passa atualmente por um processo de demarcação. Reflete ainda, sobre como esses índios repensam, nesse contexto, seus deslocamentos, referidos como definidores de seu território. E discute a maneira como o mito, que trata da busca da Terra sem Males, se (re) significa, localizando o lugar onde essa terra pode ser encontrada. Não a leste, como apresenta a bibliografia clássica, mas em todos aqueles lugares onde viveram seus antepassados, assumindo formas variadas em contextos variados. As investigações realizadas em campo articuladas à revisão bibliográfica me levaram a crer que, se a demarcação de terras não fazia sentido aos grupos Tupi-Guarani, atualmente, se tornou necessária. Ela é uma forma de garantir espaços habitáveis, por onde possam continuar reproduzindo seu modo de vida. Dessa maneira, não se trata de uma limitação do movimento ou de fixação em um determinado território delimitado, mas sim uma forma de garantir que esses grupos continuem se deslocando por um vasto território, circulando entre aldeias e entre terras indígenas demarcadas.

Mariana Medina Martinez Titulo: Andando e parando pelos trechos : uma etnografia das trajetórias de rua em São Carlos Resumo: Esta pesquisa relata as trajetórias de rua em São Carlos. Evitando tratá-los, como faz as políticas públicas e tem feito boa parte dos estudos acadêmicos, por nominações que eles mesmo não reconheceriam, tais como populações ou moradores de rua, elegi o recurso metodológico e analítico de tratar as trajetórias de rua. Isso me permitiu atentar para as segmentações, composições e transformações das trajetórias, que configuram as táticas de preservação da vida desenvolvidas pelas pessoas que estão nessas trajetórias e as possibilidades de percursos percorridos pela população de rua. Dentre as diferenças que se apresentam nas trajetórias, descrevo as transformações corporais que marcam estas mudanças, assim como formam o corpo de rua, marcado pelos percursos em que estes sujeitos vão fazendo. Falar sobre as formas de vidas nas ruas faz necessário que se coloque em perspectiva um conjunto de agentes, discursos e aparatos urbanos que legitimam estas vidas nas ruas aos olhos do Estado e nas políticas públicas. Descrevo o fenômeno sob dois aspectos que me permitiram traçar alguns parâmetros de comparação entre a vida na rua e esta mesma vida nas instituições de assistência à população de rua. A etnografia realizada na rua detalha as formas de apropriação e uso dos espaços públicos e as movimentações e fluxos que emergem neste contexto. Por outro lado, relato a gestão política (e institucional) desta população na cidade. A etnografia nos espaços institucionais foi realizada no CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), cujo atendimento é diretamente voltado às pessoas em situação de rua. Contrasto duas perspectivas diferentes sobre o mesmo fenômeno, já que uma tensão é evidentemente exposta e nela vemos surgir não só as trajetórias de rua como os mecanismos de sua institucionalização, as trajetórias desenvolvidas nas ruas e dentro das instituições, e as intervenções institucionais a que a população de rua é submetida.


Marília Sene de Lourenço Titulo: A presença dos antigos em tempos de conversão: etnografia dos Kaingang do oeste paulista Resumo: Esta dissertação discute as várias modalidades de relação que os índios Kaingang de Vanuíre (Tupã – SP) nutrem com a alteridade. São diversos Outros, na forma de vizinhos Krenak e Terena, dos não-índios... E finalmente, na forma do Cristianismo. Pois eles optaram por integrar à sua sociabilidade mais um idioma de diferenciação de pessoas e coletivos – as religiosidades expressas pelo catolicismo e pelas igrejas pentecostais Assembleia de Deus e Congregação Cristã no Brasil. A diferenciação ocorre, ao que parece, por um processo de oposição. Opõem-se grupos religiosos, facções políticas e famílias extensas de modo que o texto menciona várias antíteses constituídas no cotidiano de Vanuíre. As oposições investigadas em campo junto com a leitura da bibliografia Jê (tronco linguístico ao qual se filiam os Kaingang) encaminham a discussão para o patamar da socialidade, onde os princípios antitéticos “estabilidade” e “mudança” são utilizados na tentativa de compreender as transformações pelas quais passam os Kaingang. Tornar-se parente ou nãoparente, evangélico ou católico, aliado ou inimigo, revelam-se possibilidades de ação social formuladas por um pensamento que parece lidar com o surgimento constante de ambiguidades no interior das oposições que cria (motivo pelo qual se criam outras sucessivamente). A maior delas, a ambiguidade entre o estado da vida e da morte: ligados aos seus parentes mortos (os antigos), mas dele fugitivos, os Kaingang têm de se haver com este dilema em todas as esferas de sua vida – especialmente no cotidiano, onde parte da busca por uma solução passa pela conversão religiosa.

Messias Moreira Basques Jr. Titulo: As verdades da mentira: ensaio etnográfico com folhetos de cordel Resumo: Este trabalho consiste em um cruzamento de etnografias ao modo de um ensaio, um experimento que se dedica a delinear o problema que o move na medida em que o texto avança e permite cercar, por fim, uma questão precisa. O seu percurso visa explicitar os lugares em que a pesquisa se fez, alinhavando-os em torno de seu objeto, a poesia dos folhetos de cordel. O ponto de partida é o Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), onde se deu a minha participação, entre os anos de 2006 a 2007, em um projeto de organização e classificação de folhetos de cordel colecionados por figuras centrais ao modernismo brasileiro, como Heitor Villa-Lobos e Mário de Andrade. Esta é a primeira inflexão do trabalho, quando problematiza a vida de documentos dentro e fora do Arquivo. Em seguida, aporta-se em Pernambuco, onde uma breve pesquisa de campo com poetas de cordel tornou possível uma leitura etnográfica dos folhetos pela via da mentira, conceito e dispositivo poético reinventado como eixo e fio condutor desta dissertação. Trata-se, em suma, de costurar essas diferentes experiências etnográficas com modos alternativos de dizer e fazer ver os folhetos de cordel.

Natalia Sganzella Titulo: “Feita só por mãe!”. Sentidos de maternidade e família entre mulheres prostitutas Resumo: Este trabalho é uma análise antropológica sobre as relações afetivas e familiares de mulheres que se prostituem na cidade de Marília, além de outros personagens que se ligam direta ou indiretamente à prática da prostituição. O objetivo da pesquisa é investigar o terreno dos relacionamentos afetivos dessas mulheres, que englobam seus âmbitos familiar, amoroso e profissional. O referencial metodológico deste trabalho é a etnografia, através da qual se estabeleceram o contato e as trocas com as mulheres prostitutas da cidade, elementos que serão apresentados nessa dissertação. O trabalho apresenta duas partes bastante demarcadas espacial e cronologicamente. A primeira parte da etnografia mapeia as relações entre a prostituição feminina e os períodos do dia. O período diurno na Rua Nove de Julho concentra, exclusivamente, a prostituição de mulheres em bares e hotéis. Estas possuem mais tempo de experiência na rua e na profissão, formam um grupo menos hierarquizado e mais coeso, transformando as relações estabelecidas na “ocupação” em relações “familiares”. O período noturno, por sua vez, engloba outros tipos de prostituição como a das travestis, o quê faz com que as relações espaciais e de poder sejam mais demarcadas e o ambiente seja mais disputado. Há uma hierarquia de prestígio envolvendo os pontos, que são organizados pelo fluxo da rua, pelos preços cobrados, além dos atributos femininos negociados. A segunda parte da etnografia se volta para as relações familiares que se desdobram nos pontos e nas casas de


quatro de minhas interlocutoras, sendo que a maternidade e a relação comadresca são elementos fortes na construção dessas famílias.

Pietro Bruno Caetano Piccolomini Titulo: Linha 11 – uma fronteira em movimento : etnografia do uso social cotidiano dos trens da linha 11 da CPTM Resumo: Esta pesquisa apresenta uma etnografia do cotidiano de milhares de pessoas que se utilizam dos trens da Linha 11 da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) para se transportarem de suas residências, nas cidades localizadas a leste da região metropolitana de São Paulo, a diferentes pontos da capital paulista e do Alto Tietê, para o desenvolvimento de diversas atividades. Os arredores da Estação Suzano, trens e plataformas serão analisados como espaços de sociabilidade, contrapondo criticamente visões que os colocam como lugares onde estariam ausentes processos de significação simbólica e relações sociais entre seus ocupantes. Através da polifonia de personagens serão relacionados aspectos entre as múltiplas realidades individuais e coletivas, e os trens serão observados como espaços de (re)significação cultural. Propõe-se uma leitura deste objeto de estudo no sentido oposto a recentes estudos antropológicos das viagens e dos deslocamentos, que tendem a ver espaços como os trens caracterizados como “não lugares” ou lugares onde não seria possível o estabelecimento de relações mais densas entre seus ocupantes, supostamente fragmentados em suas individualidades, e sem qualquer tipo de subjetividade em suas interações sociais.

Tatiana de Lourdes Massaro Titulo: (In)Constantes transformações: relações e conceitos no pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro Resumo: O presente estudo pretende compreender o que é uma relação social buscando explicitar a trajetória deste conceito no pensamento e na produção bibliográfica do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Trata-se de acompanhar um trajeto conceitual observado nos textos deste autor. Para tanto o trabalho se centra em publicações que, por sua vez, tratam de questões emergentes no pensamento ameríndio decidindo levá-lo a sério e situam-se em uma perspectiva que não seja plenamente dominada pela doutrina ocidental. Partindo deste ponto de vista, a noção de relação social é registrada como aquela que, no pensamento ameríndio, sobressai como um conceito que se amplia e difere em relação ao nosso, compreendendo humanos e animais como aqueles que possuem formas diferentes e fundo humano comum. Buscando um aprofundamento no estudo deste conceito, os contornos desta pesquisa se mostram a partir do primeiro trabalho etnológico de Eduardo Viveiros de Castro, realizado nos anos 70 entre os Yawalapíti (1977), passando depois à tese de doutorado conhecida em forma de livro intitulado Araweté: os deuses canibais, de 1986, e segue, fundamentalmente, até o ano de 2002, quando vem a público uma espécie de síntese teórica, A Inconstância da Alma Selvagem (2002a) donde encontram-se muitos artigos e reflexões, reunidos, revisitados e assinados pelo mesmo autor. Em resumo, esta pesquisa teórica procura revelar a trajetória do conceito relação social no pensamento do referido antropólogo, o qual apresenta uma vasta e incessante obra, situada na etnologia indígena brasileira e focada, principalmente, nas terras baixas sul-americanas. O referido conceito é dinâmico e não cessa de suscitar relações seja entre o(s) nativo(s), seja entre o(s) antropólogo(s), seja entre ambos, dentro ou fora desta dissertação.

Thais Regina Mantovanelli da Silva Titulo: Crianças invisíveis da Reserva Indígena Icatu/SP Resumo: Como as crianças Kaingang do Icatu SP vivenciam os espaços da aldeia? A proposta desta dissertação é contribuir para as discussões sobre as relações sociais das crianças indígenas a partir da experiência etnográfica entre os Kaingang da aldeia Icatu SP. O recorte dessa temática surgiu de meu descontentamento inicial com relação às atividades das crianças no cotidiano da Reserva. Contrário do que eu esperava encontrar, as crianças pareciam-me invisíveis. Assim, percebi que elas passavam a maior parte do tempo dentro dos quintais, nas casas de suas avós maternas. Essa invisibilidade levou-me a refletir sobre


os modos como poderia realizar minha pesquisa. A saída encontrada em campo, indicada pelas mulheres, foi conversar com mães, tias e avós das casas que eu frequentava. Essa configuração levou à necessidade de destacar a não transitoriedade das crianças da aldeia Icatu SP como uma forma específica do tipo de relação entre elas e suas casas e promover uma discussão sobre a impossibilidade da aplicação de conceitos universais em pesquisas que tem a criança como destaque.

Thaisa Lumie Yamauie Titulo: Fronteiras da ilegalidade: migrações não documentadas de Governador Valadares Resumo: A região de Governador Valadares é polo expressivo de migrações transnacionais, onde atuam redes profissionais de emigração. Grande parte de seus emigrantes são considerados “ilegais” em muitos dos países receptores por utilizarem as vias não documentadas. O objetivo deste trabalho é compreender como as “ilegalidades” são construídas, vivenciadas e interpretadas pelos valadarenses. Procurei explorar a relação da sociedade valadarense com suas “redes de trafico” e a condição de “imigrante ilegal” dos seus emigrantes, tentando compreender as implicações desta situação no cotidiano. A pesquisa demonstra que a condição “ilegal” tanto dos emigrantes clandestinos quanto das redes de “tráfico” de emigrantes muitas vezes não implica ilicitude ou ilegitimidade entre os envolvidos. Os emigrantes muitas vezes deixam de recorrer às vias legais, pois desde o início a via da “ilegalidade” é tida como a mais efetiva opção. As redes de “tráfico” de emigrantes dependem das redes de amizade e parentesco para sua existência e é indispensável a participação da população valadarense no exercício cotidiano de suas atividades.

Teses e Dissertações defendidas em 2012 Reginaldo Silva Araujo Titulo: Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena no Brasil : dilemas, conflitos e alianças a partir da experiência do Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu Resumo: O Estado brasileiro, visando a ensaiar uma nova relação política com as comunidades indígenas, implantou, em 1999, a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena (PNASPI), através da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas(DSEIs)localizadosao longo do território nacional. A nova política sanitária para as áreas indígenas, estruturada no Subsistema de atenção diferenciada integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS), propôs um modelo participativo de cogestão Estado-Sociedade Civil, via conselhos gestores ou de políticas públicas, convênios de cooperação com ONGs e outras experiências participativas. Assim como, provavelmente, ocorreu em outros territórios indígenas, a implementação de uma nova agência estatal na Terra Indígena do Xingu imprimiu aos líderes locais todo um processo político-cultural de adaptação criativa, gerando-se as condições de possibilidade de um campo de negociação interétnica. Portanto, foi a partir desse cenário político que a pesquisa propôs-se a apreender as formas de atuação dos líderes indígenas e suas representações. Procurou-se, assim, observar as estratégias dos representantes alto-xinguanos que “pactuam” e “negociam” junto aos diversos órgãos responsáveis pela implementação de políticas públicas em saúde (FUNASA; prefeituras; e ONGs), orientadas por princípios constitucionais que asseguram a esses e aos demais grupos aldeados no território nacional, ao mesmo tempo, direitos (universais) e especificidades (diferenciadas) nos cuidados preventivos e de atenção à saúde. A análise dessas formas de organização e de atuação política buscou, ainda, observar como a implementação da política sanitária, com seus arranjos institucionais,gerouum redimensionamento das práticas políticas estabelecidas até então, entre povos indígenas e o Estado. Portanto, mesmo que os líderes indígenasnão tenham articulado uma posição homogênea diante da “oferta” estatal de parceria – por meio de ONGs e conselhos gestores, muitos com objetivos de garantir reconhecimento e espaços políticos tanto no cenário nacional quanto nos seus sistemas tradicionais de organização, deflagraram um projeto que persegue o alargamento das participações e uma mudança na estrutura organizativa do Estado.Esse movimento, realizado pelos líderes do Alto Xingu, envolve um modelo participativo de cogestão, cuja prática também não dispensa alguns momentos de consumação da identidade entre os atores que compõem essa experiência participativa.


Amanda Rodrigues Marqui Titulo: Tornar-se aluno(a) indígena: A etnografia da escola Guarani Mbya na aldeia Nova Jacundá Resumo: Esta dissertação investiga os processos de ensino e aprendizagem e as práticas pedagógicas escolares das crianças Guarani Mbya de Nova Jacundá, que vivem no sudeste do Pará, a fim de compreender o que é tornar-se (“becoming/become”, Toren 2004) aluno(a) indígena. A criança será aqui tomada como ator social ativo e produtor de cultura (Cohn 2005) e a escola será abordada como um espaço em que as crianças tornam-se alunos, como uma das práticas de autopoieses (“autopoietic”, Toren 1999), ou seja, de produção de significados sobre o seu mundo. Sendo assim, minha etnografia pretende compreender como estas crianças produzem significados no contexto escolar e na condição de alunos indígenas, tomando a escola como um espaço de fronteira (Tassinari 2001), em que se articulam os conhecimentos, o “modo de ser” guarani mbya e suas práticas de ensino e de aprendizagem com os conhecimentos e métodos pedagógicos escolares. Esta etnografia de uma escola guarani mbya irá contribuir para a compreensão dos significados atribuídos pelas crianças ao ir à escola, espaço onde se dão novas formas de construção de conhecimento indígena e não-indígena – em novas relações, além daquelas realizadas nos próprios processos de aprendizagem guarani.

Amanda Cristina Danaga Titulo: Os Tupi, os Mbya e os outros : um estudo etnográfico da Aldeia Renascer - Ywyty Guaçu Resumo: Esta dissertação apresenta o estudo etnográfico das relações entre os índios Tupi Guarani da aldeia Renascer com os Guarani Mbya e os não-índios. O objetivo foi compreender a história de formação dessa aldeia dentro de seu contexto particular: as gravações do filme intitulado Hans Staden. Procuro articular como essa comunidade se organiza dentro de uma área de proteção ambiental e como desenvolve um diálogo estrito, seja com outro grupo indígena ou com não-índios, pautado pela noção de “cultura”. Há uma convergência estabelecida entre os Guarani Mbya, mas existe também uma ênfase na demarcação da alteridade. Os Tupi Guarani ressaltam que são originários de uma mistura entre o povo Tupinambá e o povo Guarani Mbya, além dos não-índios. Essa auto-denominação está presente no discurso de demais aldeias do litoral paulista, as quais fazem parte de um circuito de reciprocidade, marcando a existência de uma territorialidade Tupi Guarani que é multilocal.

Aline Scolfaro Caetano da Silva Titulo: Falas Waikhana : conhecimento e transformações no alto rio Negro (rio Papuri) Resumo: Fruto de uma pesquisa etnográfica realizada entre os Waikhana (Pira-Tapuia), um povo tukano da bacia do Uaupés, noroeste da Amazônia, esta dissertação tem como foco a questão da hierarquia e da circulação do conhecimento no contexto contemporâneo do Uaupés, marcado por aquilo que os grupos indígenas da região vêm chamando de “movimento de resgate e revitalização da cultura”. Envolvidos nesta dinâmica local, os Waikhana tem se empenhado numa série de iniciativas que abarcam desde a retomada de algumas práticas rituais e técnicas tradicionais de manejo do meio que eles associam ao chamado “tempo dos antigos”, até o registro escrito de certos saberes e conhecimentos orais outrora atualizados e transacionados em determinadas ocasiões rituais. Buscando compreender os sentidos por meio dos quais eles estão vivenciando estes processos e atentando para os desdobramentos de tais iniciativas no âmbito de suas próprias relações sociopolíticas, o texto aborda temas clássicos da literatura regional concernentes à organização social e à cosmologia. O que veremos são interpretações e redirecionamentos agenciados pelos próprios índios em torno da problemática da hierarquia e da circulação de conhecimentos ditos “tradicionais”, as quais atualizam relações e posições no âmbito de uma (cosmo) política waikhana.

Carla Souza de Camargo Titulo: Partidos e grupos políticos num município do sertão de Pernambuco Resumo: Esta dissertação tem por objetivo descrever as configurações e práticas de partidos políticos em Monsanto, município do sertão de Pernambuco, a partir de uma pesquisa intensiva de campo realizada nos


meses de fevereiro, março e abril de 2010. A atividade política neste município, longe de operar apenas as possibilidades de atuação oferecidas pelos partidos políticos, realiza-se, também, nos arranjos particulares de dois coletivos – grupo político e família. Procurarei mostrar como os partidos políticos são fundamentais para a constituição política desta cidade, por oferecerem mecanismos e lógicas sem as quais todo o cálculo político de meus interlocutores de pesquisa não se realizaria. Meu intuito, neste sentido, será mostrar como cada uma das partes que compõe a política local não se relaciona somente por oposição e exclusão com as demais, mas atua por meio de composição, pressuposição e atualização política mútua. Ao mesmo tempo, procuro evidenciar como a atuação política em Monsanto não é produto de uma inexistência ou desconhecimento das práticas modernas da democracia, que, ao contrário, estão equacionadas junto às suas lógicas políticas.

Marília Martins Bandeira Titulo: “No galejo da remada” : Estudo etnográfico sobre a noção de aventura em Brotas, SP Resumo: Investigar o uso e a elaboração da noção de aventura no contexto esportivo brasileiro foi o objetivo primeiro deste estudo. Devido à imensa variabilidade da experiência contemporânea da aventura, procurei acompanhar os seus desdobramentos concretos em uma versão local de onde surgiram indagações sobre sua especificidade. Parti, então, de como era refletida e racionalizada e, ao mesmo tempo, de sua prática na cidade de Brotas (SP), autodenominada a capital brasileira da aventura. O estudo da aventura neste contexto, empreendimento inegavelmente corporal, me levou a colocar meu próprio corpo a serviço de sua compreensão e a focar o rafting brotense como condição de possibilidade deste experimento. Contudo, durante a sua realização percebi que a aventura apresentava o componente esportivo da prática apenas como um dos tantos elementos possíveis de sua vivência. Ao passo que me esforçava para transportar ao texto, então, as muitas vertentes, objetos em disputa, categorias de acusação e discursos de autoelogio que circunscrevem as matizes da noção de aventura cheguei, sobretudo, ao entendimento de que as principais preocupações da aventura em Brotas dizem respeito não apenas ao amadorismo esportivo, como também à profissionalização do turismo e, antes, a um projeto ambiental. Através do tratamento destes temas a aventura enquanto trabalho aflorou como uma questão imprevista e central à pesquisa etnográfica. E notei que ela está comprometida com uma ideia peculiar de natureza e é produzida em oposição à noção de radicalidade. Mas que, embora a exaltação da natureza produza o afastamento da radicalidade, a última é retomada na medida em que a noção contemporânea de aventura é criada para, e passa a exigir, um certo tipo de turista ou esportista e um tipo específico de trabalhador, o condutor de aventura, cujas práticas estão relacionadas não à evitação, mas ao enfrentamento de certos riscos, matizados pelas noções de segurança e técnica.

João Paulo Aprígio Moreira Titulo: Uma ontologia evolucionista: considerações sobre a noção de “desenvolvimento” na obra de Darcy Ribeiro Resumo: Esta dissertação procura investigar possíveis pontos de interlocução entre uma teoria antropológica moderna e discursos sobre o ―desenvolvimento‖. O principal ponto de interlocução destes campos são teorias acerca da mudança cultural, considerando o papel de mediadoras que desempenham ao produzir sentidos específicos para a noção de ―desenvolvimento‖. O material utilizado para tanto foi o livro ‗O Processo Civilizatório: etapas da evolução sociocultural‘ de Darcy Ribeiro, publicado em 1968, e que compõe os ‗Estudos de Antropologia da Civilização‘. No caso de Darcy Ribeiro, observamos que este articulou uma teoria antropológica neoevolucionista e um projeto de nação desenvolvimentista a partir do conceito de revoluções tecnológicas. Tal conceito perfaz a ideia do autor de mudança cultural, ao mesmo tempo que enseja uma crítica à teoria da dependência latino-americana, nos moldes do debate acerca do subdesenvolvimento tal como a discussão sobre o ―desenvolvimento‖se encaminhava no campo político. A partir do conceito de revoluções tecnológicas, Darcy Ribeiro retoma o tema das dinâmicas culturais, caro às teorias da antropologia moderna e embasadas em uma perspectiva evolucionista, bem como valores do projeto nacional-desenvolvimentista defendido por políticos trabalhistas – valores que residem na crítica à


dependência econômica dos países latinos e na defesa da autonomia política de nações subdesenvolvidas como caminho para o desenvolvimento.

Raphael Rodrigues Titulo: Relatos, trajetórias e imagens : uma etnografia em construção sobre os Ye’pâ-masa do baixo Uaupés (alto rio Negro) Resumo: O presente trabalho procurou observar as motivações de uma liderança indígena do noroeste amazônico, Maximiliano Menezes, em seu desejo de produzir um registro escrito da trajetória e posicionamento hierárquico dos Inapé-porã, um dos cerca de quarenta clãs tukano. A partir da coleta de narrativas mítico-históricas tentou-se recuperar a trajetória deste grupo a partir do rio Papuri em direção ao baixo rio Uaupés contribuindo, com isso, para uma maior compreensão sobre a conformação étnicosociológica desta região. A história da comunidade de Ananás, onde nasceu Max, e onde corresidiram com outro clã tukano, os Sanadepó-porã, foi reconstruída, parcialmente, a partir desses relatos orais e fontes históricas, principalmente. Tentou-se observar, a partir de relatos de episódios conflituosos específicos envolvendo xamanismo e relacionados a movimentos de dispersão, algumas dinâmicas próprias dos grupos tukano no que diz respeito, principalmente, a constituição de comunidades, micropolítica da afinidade e coresidência entre grupos agnáticos. O texto retoma temas clássicos da literatura regional como hierarquia, organização social, cosmologia, e constitui-se como ponto inicial de uma pesquisa-colaboração marcada, principalmente, pela fluidez entre saber nativo e saber antropológico.

Ludmila Helena Rodrigues dos Santos Titulo: Triste sina ser poeta de latrina : um estudo antropológico/artístico dos grafitos de banheiro Resumo: Este trabalho realizou um estudo de grafitos de banheiros públicos da cidade de São Paulo. O foco de análise é a capacidade agentiva destas manifestações, e para acessar estas intencionalidades e significados, buscou-se um diálogo entre antropologia e metodologias artísticas, experimentando significados e interações dos banheiros através de instalações e intervenções, explorando sensorialmente e evocando assim olhares, odores e comunicações. Ressaltar os grafitos, evidenciar os sentidos típicos do banheiro e trazer para este ambiente outras texturas artísticas, para além das suas acepções de caráter anônimo, transgressor na medida em que se utiliza de um espaço de uso e conservação pública , subjetivas e particularizadas, traz uma problematização e trato teórico destas produções e localidades para além de possíveis interpretações de conteúdos e generalizações classificatórias. Buscamos entender como intencionalidades abandonadas em locais altamente significativos ganham autonomia de interação e possibilitam a compreensão de uma teoria de ação calcada em produções e não em produtores humanos.

Victor Hugo Martins Kebbe da Silva Titulo: Na vida, única vez fabricando famílias e relacionalidades entre decasséguis no Japão Resumo: O “Fenômeno Decasségui” é um fluxo migratório que causa dentro da “comunidade nipobrasileira” a fragmentação de várias famílias com descendentes de segunda e terceira geração migrando para o Japão, muitas vezes deixando pais, filhos e/ou esposas no Brasil. Nesse sentido, o surgimento do Fenômeno Decasségui obrigou – e ainda obriga – estas pessoas a reordenarem suas próprias relações familiares que agora estão distendidas entre dois países, obrigadas a contornar a distância e alterar a própria rotina dentro de casa, trazendo evidentemente uma série de questões para pensarmos nas Teorias de Parentesco. Caracterizada na Teoria Antropológica contemporânea como uma “família transnacional” justamente por ser constituída por membros que vivem separados em mais de um país, as famílias de decasséguis convivem dentro de um paradoxo e ainda são pouco estudadas na Antropologia: dada uma série de razões, econômicas, culturais, políticas, etc, para a família se manter unida é necessária a separação dos membros familiares e o envio destes para outro país. Esta pesquisa propõe o estudo das famílias decasséguis vivendo na cidade de Hamamatsu, Shizuoka, conhecida por abrigar o maior contingente de brasileiros vivendo no Japão. O principal objetivo desta tese é compreender como estes nipo-brasileiros constroem suas relações


não apenas entre si como também com os familiares que ficaram no Brasil, visando o melhor entendimento das dinâmicas internas deste fluxo migratório que tem mais de 20 anos.

Teses e Dissertações defendidas em 2013 Danilo Cesar Souza Pinto Titulo: Homenagens do legislativo : uma etnografia dos processos simbólicos do estado Resumo: Esta tese trata de uma prática corriqueira realizada pelo estado: as homenagens públicas, tais como as entregas de honrarias e a denominação de logradouros. A partir de uma etnografia realizada junto a três câmaras legislativas, investigou-se a dinâmica dessas homenagens, os atores e elementos envolvidos. Observou-se desde os trâmites burocráticos até os aspectos entendidos como os “mais políticos”. Uma característica significat iva desses processos é que eles são tratados pelos próprios políticos como um trabalho irrelevante. Não obstante, os dados etnográficos mostram que essas atividades constituem a maioria dos projetos apresentados pelos parlamentares. Nas entrevistas realizadas com parlamentares, funcionários burocráticos e representantes de ONGs “fiscalizadoras” dos políticos, nota-se um sobressalto de certas categorias nativas para pensar essas práticas, tais como acordo e agrado. Esses termos parecem mostrar um caminho de interpretação para o elevado número de homenagens. Assim, há um grande acordo pré-estabelecido nas câmaras para que as homenagens sejam aprovadas, por servirem como agrados às bases eleitorais potenciais ou atuais. A tese tenta demonstrar as sutilezas e detalhes inscritos nesses processos de homenagens públicas.

Bruna Potechi Titulo: Quando começa a pessoa legal? O nascituro no legislativo brasileiro Resumo: Este trabalho analisa as possíveis construções do nascituro enquanto pessoa na legislação brasileira. Quando em Maio de 2010 é aprovado, por uma das comissões da Câmara dos Deputados, o projeto de lei 478 de 2007 dispondo sobre um Estatuto do Nascituro, pudemos visualizar embriões e fetos tornados pessoas e sujeitos de direito de um ponto de vista legislativo. Entretanto, para a legislação brasileira o nascituro poderia ser pessoa ou não, dependendo do caso a ser regulado. Assim, enquanto o Estatuto do Nascituro pretendia definir o nascituro enquanto sujeito de direito e torná-lo a pessoa legal a ser defendida, vimos que nas leis e propostas de leis sobre aborto e novas tecnologias o nascituro nem sempre aparecia como pessoa. Dessa maneira é permitido aborto em alguns casos, bem como pesquisas e descarte de embriões in vitro. Quando o PL 478 de 2007 é apresentado, ele surge como o primeiro projeto de lei a unir os temas de aborto e novas tecnologias reprodutivas – pela defesa de uma pessoa legal em comum, o nascituro. Cabe então, observarmos as diferentes construções do nascituro como pessoa para a legislação – quando ele é e quando não é defendido como pessoa legal. Seguindo, devemos compreender os diferentes discursos que perpassam o momento do nascituro, aquele relacionado ao desenvolvimento humano anterior ao nascimento. Por fim, poderemos observar como o nascituro pode ser pessoa e não-pessoa, como ele aparece como sujeito de direitos, como os direitos de diferentes sujeitos são postos em relação, e como tais sujeitos podem ser mais ou menos pessoa legal para a legislação brasileira.

Sara Regina Munhoz Titulo: A construção do atendimento em um núcleo de medidas socioeducativas em meio aberto Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo discutir os dados de minha etnografia em um núcleo de atendimento (MSE-MA) a adolescentes autores de práticas infracionais na Zona Leste de São Paulo. A etnografia foi realizada com a equipe de profissionais que atende os meninos, e privilegia as percepções que esses profissionais têm da construção do atendimento, e as relações que estabelecem com os adolescentes, com o Poder Judiciário e com outras instâncias governamentais. Descrevo as formas como a equipe lida, por um lado, com a rigidez das metas estabelecidas pelos juízes e descritas nas legislações e, por outro, com a exigência também legal de que os atendimentos sejam individualizados. Para lidar com essas duas lógicas distintas e apresentar aos juízes os saberes que só podem ser construídos do núcleo, os técnicos utilizam a


escrita e a interpretação dos documentos como suas principais armas. Trata-se de um exercício cotidiano de construção de argumentos que justifiquem os caminhos tomados a cada atendimento. Descrevo também os momentos corriqueiros em que os técnicos não conseguem estender ao Judiciário suas percepções, provocando visões divergentes sobre o andamento dos casos. Argumento, deste modo, que a relação entre a equipe e os juízes é sempre marcada pela incerteza e que a definição de atendimento precisa ser negociada caso a caso. Esta incerteza se manifesta pela convivência, no núcleo, de diferentes saberes e diferentes formas de governo dos meninos.

Camila Boldrin Beltrame Titulo: Etnografia de uma escola Xikrin Resumo: Esta dissertação apresenta um estudo etnográfico sobre uma escola dos Xikrin do Bacajá, grupo Mebengokré (Jê), do sudoeste do Pará. Busca-se compreender como os Xikrin se apropriam desta instituição e das atividades que são lá ensinadas, elaborando reflexões e inserindo-as no seu cotidiano. A escola oferecida aos Xikrin não segue os princípios da Constituição brasileira que instituem um ensino diferenciado e intercultural aos povos indígenas, pensado a partir das especificidades locais. Durante a pesquisa de campo dois movimentos foram privilegiados: um de acompanhamento do dia a dia escolar permitindo observar o espaço em que crianças Xikrin e adultos não-Xikrin convivem – estabelecendo relações não observadas em outros momentos na aldeia; e outro, baseado em conversas com os homens que explicam o que consideram uma boa escola. Nestas situações a escola é reconhecida como o local para as crianças aprenderem as técnicas e as habilidades dos brancos, porém, quando atingem certa maturidade, estes saberes são deixados de lado para que os conhecimentos Xikrin, e as relações que estes engendram, comecem a ser demonstrados.

Jacqueline Stefanny Ferraz de Lima Titulo: Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital Resumo: Esta etnografia é sobre as famílias das cunhadas. Mulheres assim denominadas por estabelecerem vínculos afetivos com homens relacionados ao Primeiro Comando da Capital (o PCC). Mais especificamente, as interlocutoras desta pesquisa eram cunhadas que visitavam seus maridos em estabelecimentos prisionais majoritariamente compostos por presos do PCC. A construção desta etnografia parte dos diferentes pontos de vista enunciados pelas cunhadas sobre a noção de família. Dessa maneira, em primeiro lugar, foi favorecido o ponto de vista das cunhadas sobre o ponto de vista do corpo funcional dos complexos penitenciários. Em segundo lugar, foi beneficiado o ponto de vista das cunhadas sobre o ponto de vista dos apenados. E, por último, foi privilegiado o ponto de vista das próprias cunhadas acerca da noção de família. Ser-família, ter-família, família-sagrada, família-imperfectiva, família-manutenção, família-completa e família como sinônimo de visita. Foram estes os variados sentidos conferidos à noção conforme os enunciados das cunhadas. O fio condutor desse texto é a viagem para o dia de visitas nas penitenciárias de Cerejeira. Descrições adensadas pelos acontecimentos vividos com as cunhadas e suas experiências relacionadas ao evento-prisão. Assim, no deslocar de seus pontos de vistas sobre família, veremos uma etnografia sobre mulheres fiéis e insubmissas. Mulheres que valorizavam e eram reconhecidas por enfrentarem os sacrifícios, por conhecerem a disciplina e por terem proceder. Mulheres que assinalavam um ambiente ético que se manifestava como um solo referencial para a produção de moral. Aliás, mais do que isso, para a produção de um pluriverso moral. Mulheres que “gostam do preso”, “as mulheres dos caras”, mulheres que “gostam do ladrão”. Resumidamente, este esforço etnográfico é sobre mulheres fiéis produzidas contrastivamente à existência de mulheres talaricas, recalcadas, mulheres que “gostam de cadeia”, “de ladrão”, “do crime”. Uma etnografia acerca das famílias das cunhadas. Famílias de mulheres fiéis.

Clarissa de Paula Martins Lima Titulo: Corpos abertos: sobre enfeites e objetos na Vila de Cimbres (T.I. Xukuru do Ororubá) Resumo: Falar sobre a sua própria existência através de objetos e enfeites é algo constante entre os moradores da Vila de Cimbres (Terra Indígena Xukuru do Oroubá). Este trabalho é, nesse sentido, uma


tentativa de segui-los, pessoas, enfeites e objetos, buscando percorrer os caminhos por eles traçados, as conexões que engendram e que, ao mesmo tempo, deles são parte constitutiva. Como busco argumentar no decorrer do texto, aquilo que garante aos objetos e enfeites ser parte ativa na constituição de pessoas, e vice-versa, é a capacidade, estendida a tudo aquilo que é matéria, de ser habitado por existências que os extrapolam, compondo-se e sendo passíveis de transformações contínuas. Ao mesmo tempo, isso faz com que, a partir de objetos e enfeites, se tenha acesso a diversos domínios do mundo Xukuru. Sendo assim, através deles busco mostrar as múltiplas conexões que propiciam, sem que deles deixem de ser parte constitutiva, e que dizem respeito a parentes e famílias, à produção de pessoas, política, cosmologia e assim por diante. Proponho, assim, seguindo os Xukuru, um olhar para o seu mundo a partir dos objetos.

Maria Angélica Rodrigues de Sousa Titulo: Quando corpos se fazem arte: uma etnografia sobre o Teatro Oficina Resumo: O presente trabalho investiga etnograficamente alguns aspectos da produção artística e organizacional do mais antigo grupo de teatro em atividade do Brasil: o Teatro Oficina. A análise tem como objetivo ponderar sobre as relações entre arte e corpo desenvolvidas no grupo, que se fez famoso, em parte, por seu trabalho corporal diferenciado. Para tal, fez-se necessária uma imersão profunda na lógica de produção do Oficina, destacando, por conseguinte, seu uso do espaço, seus mecanismos internos de organização, sua história e sua historicidade, sua ideia de arte e seus operadores estéticos, fatores sem os quais os usos e produções dos corpos em arte parecer-nos-iam arbitrários. Tal exercício tem como objetivo delinear o campo estético e social que possibilita a emergência e fruição do processo de “artificação” (Shapiro, 2007) do corpo, que será tomado como vetor de referência na análise das múltiplas linguagens que se desenvolvem no grupo ao longo de mais de meio século de atuação. Busquei demonstrar que para os artistas e alguns públicos em questão o corpo em arte é compreendido enquanto ativo no processo de produção de sujeitos e subjetividades, ultrapassando assim a experiência puramente estética, remetendo-nos a uma apreensão e construção do corpo que recusa sua posição de objeto passivo, a saber, como receptáculo no qual uma ideia é acoplada ou representada.

Rodolpho Claret Bento Titulo: A flecha mata porque tem vida: um estudo etnográfico sobre os artefatos de caça dos Gavião Ikólóéhj Resumo: Esse trabalho tem como objetivo lançar luz sobre as relações que estão envolvidas na fabricação e uso dos artefatos de caça do povo Gavião de Rondônia. A partir de um estudo etnográfico exploro as noções pertinentes para a compreensão da agência de objetos bélicos, caçadores, cães e enunciados na atividade cinegética. Como fio condutor ao longo do texto, eu desenvolvo um paralelo entre a fabricação de corpos de artefatos e a constituição de anatomias artefactuais de homens, exercício esse que me permite problematizar como os encontros entre corpos e materiais (ou substâncias) conformam a eficácia de caçadores e de seus instrumentos de caça. Se no discurso Gavião “a flecha mata porque tem vida”, eu proponho pensar ao que corresponde tal vitalidade e as relações produzidas em razão dessa premissa. Tratase de um desafio delineado mediante um estudo biográfico dos artefatos de caça, o qual se apresenta como um entrelaçamento de forças vitais na interação entre humanos, animais, espíritos e objetos.


Antropologia Social Programa de Pós-graduação


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