Arte e/em processos de subjetivação

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Rejane Arruda (org.)

ARTE E/EM Experiências de Subjetivação

Vila Velha SOCA 2019


Arte em/e

Experiências de Subjetivação


Por que será que no horizonte da história se ouvem gemidos, o gotejar contínuo de ações inacabadas? (Llansol)


SUMARIO APRESENTAÇÃO Rejane Arruda

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CAPÍTULO I: SUJEITOS DA/NA/À CENA INFÂNCIA E TESTEMUNHO: CORPO, ARTE E UM TEMPO CHAMADO AGORA Maria Carolina de Andrade Freitas PROCURAS PELO FITAR Maria Carolina de Andrade Freitas Thais Furtado Nascimento O USO DO ELEMENTO EXTERNO E A IMPORTÂNCIA DO ARQUIVO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO Marcelo Ferreira Mariana Zanelato Santos MAGNO GODOY E A CIA NEO-IAÔ DE DANÇA: A CRIAÇÃO STULTIFERA NAVIS Marcelo Ferreira DO INTRATEATRO À POÉTICA DA CATARSE: O PROCESSO CRIATIVO DE LEONARDO SAUVIGNON Allan Maykson Longui de Araujo Marcelo Ferreira AUSÊNCIA EM POTÊNCIA: ARTE COMO EXERCÍCIO EXPERIMENTAL DAS DIFERENÇAS Leonardo Cetto Giori Maria Carolina de Andrade Freitas

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CAPÍTULO II: SUJEITOS EM TRÂNSITO, PEDAGOGIA E TEATRO DO C.E.P.E.C.A. A CIA POÉTICAS: UM BREVE MEMORIAL Rejane Arruda

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CENA DIVERSA: NOVAS APOSTAS Rejane Arruda

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SEIS REGISTROS PARA A ATUAÇÃO EM CINEMA Rejane Arruda

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O ATELIÊ DE FIGURINO COMO LUGAR DE CRIAÇÃO COLABORATIVA E AFETO Erani Ferreira Soares UMA PRÁTICA ORDINÁRIA DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NOS COTIDIANOS DE UMA ESCOLA Dulcimar Pereira Isabela Malta

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CAPÍTULO III: SUJEITOS EM TRÂNSITO, ARTE E EDUCAÇÃO A ARTE DA DANÇA CIRCULAR COMO LIBERDADE DE EXPRESSÃO Katyane Vieira Floriano Maria Riziane Costas Prates EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA POLÍTICA DE FORMAÇÃO E HUMANIDADE: UMA EXPERIÊNCIA COM O TRANSPORTE ESCOLAR NO MUNICÍPIO DE ARAÇUAÍ – MG Viviane Patricia Costa Prates Maria Riziane Costa Prates

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CAPÍTULO IV: SUJEITOS EM TRÂNSITO, ARTE E PSICANÁLISE CLÍNICA ARTÍSTICA: A EXPERIÊNCIA ANALÍTICA COMO PRODUÇÃO DE UMA OBRA DE ARTE Maria Carolina de Andrade Freitas Thiago Victor de Oliveira Canal ARTIVISMO: ENSAIO PARA UMA VIDA NÃO-FASCISTA Maria Carolina de Andrade Freitas Murilo Kill Batista

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CAPÍTULO V: SUJEITOS DA/NA/À SOCIEDADE HERMENÊUTICA DO SUJEITO EMPREENDEDOR: PODERAÇÕES SOBRE A GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL ESTADUNIDENSE PELAS ELITES EMPRESARIAIS Pablo Ornelas Rosa Paulo Roberto Neves Costa GÊNERO E PODER ENTRE OS MÉDICOS, ESCRAVAS E PROSTITUTAS RESIDENTES NOS ESPAÇS DA CORTE DO RIO DE JANEIRO Marcelo Ribeiro de Castro Carla Geovana Fonseca da Silva de Castro

SOBRE OS AUTORES

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APRESENTAÇÃO

Se somos o vazio, o saco sem fundo, ainda assim a carne é chamada humana e não nos resta os ossos e sim os cadáveres! Estes que precisam de um ritual simbólico para a despedida e quantos reencontros forem possíveis no campo do sonho, memória e cultura. Porque somos sujeitos. A palavra nos remete a: sujeitos DO mundo, NO mundo, assujeitados AO mundo; sujeitos DA cena, em cena; na história, da história, assujeitados À história, à cultura e ao inconsciente. Se assujeitados pela história, não se trata de perguntar quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, mas de perceber os efeitos desta produção: homem produz história ao mesmo tempo em que historia produz homem. O que chama a responsabilidade para estes sujeitos assujeitados: como transformá-la? O sujeito do inconsciente por sua vez, segundo Lacan, é o sujeito do conhecimento; este que olha um objeto enquanto é olhado também. Sujeito-fissura, no entre, no fora. Como conhecer-SE e constituir-SE na ex-sistência? Algo falta. Isto está posto na espessura do mundo que, com as suas relações de poder, nos violenta. A primeira resposta é: em rede! Não estamos sós; é com a composição que podemos nos fortalecer diante do “mal”. Por que não dizer desta figura mítica que parece ter tantos efeitos em tantas culturas e nas histórias que nestas se desdobram? A figura do mal escondida debaixo da saia do moralismo; com os dentes afiados, pronta a fazer sofrer o diferente; a normatiza-lo e usá-lo. É pelo reconhecimento das diferenças que as composições tornam-se possíveis; é através da consciência da alteridade que o amor torna-se (a princípio não “é”, amorconstrução) possível. Que este livro contribua! Pois em tempos de não reconhecimento do outro, é importante o grito.

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O leitor vai encontrar aqui textos que nos situam como sujeitos entrelaçados aos nossos objetos, emaranhados de atravessamentos, de forma que a arte aponte para o que resta de um processo de construção, que, por sua vez, se consolida como dom e experiência para o outro. São textos produzidos por professores e alunos do curso de Artes Cênicas, Psicologia e Pedagogia da Universidade Vila Velha e parceiros, portando, cada qual com as suas experiências intelectuais, de criação e de vida. São textos profícuos para o gatilho de novas produções. E que sigamos em rede! Rejane Arruda. 03 de outubro de 2019.

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CAPÍTULO I: SUJEITOS DA/NA/À CENA


Infância e Testemunho: corpo, arte e um tempo chamado agora 1 Maria Carolina de Andrade Freitas

RESUMO Algo se mistura ao nosso contar uma história, uma impressão, uma experiência. Embrenha-se numa narração: marcas daquilo que não se sabe, mas se transmite. Fazer passar a letra. Religar o mundo concreto ao testemunho. Produzir gestos, multiplicidades transformadoras. E frente ao desmoronamento das formas de memória e testemunho, construir corpos em movimentos táticos. Desfixar o imaginário e permitir o ilimitado dos acontecimentos. Avisamos: os trabalhadores estão em luta. A ressurgência não cessa de comparecer. Nas imagens que acessamos, o tempo que escorre pode criar um relampejo. Corpos táticos não são soluções mágicas ou plenas. São espasmos. Movimentos de contrações e expansões infinitesimais. Fractalidades. Não há inteirezas. Há pedaços de linguagem. Há desejo insistente. Vielas e ruínas. Ruínas que ainda podemos amar.

A arte e o pensamento só se fazem com silêncio, com um pouco de sombra, só vivem daquilo que neles não pode ser consumido (Janice Caiafa).

A tarefa da arte, em sua condição constitutiva, religa o mundo concreto e histórico ao testemunho, de maneira a não dissociar forma e o conteúdo. A verdade só pode ser produzida como obra inacabada e compreendida como produção histórica (GAGNEBIN, 2009). Nesta direção, o artista não seria propriamente um criador, mas se manifestaria como uma configuração. Um fazedor, ou como lembra Manoel de Barros (2010) um fraseador, um configurador. A tarefa artística é emprestar consequência à ligação entre forma e conteúdo. Em outras palavras, a tarefa da arte seria a de conferir testemunho ao mundo no qual se está 1

Texto apresentado na Mesa Redonda: Infância e testemunho, no PERFORMA-ES, UVV/2018.

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inserido. Desta forma, a arte não informa, (com)partilha. A tarefa então se remete sempre à vida. Assim, o que está em jogo não é a atmosfera da vida individual do artista, mas sim as conjunções das relações vitais das quais a arte se configura. A função da arte, do poeta, não é tirar os envoltórios das obras, pois se os enigmas delas forem desvendados, elas mesmas serão abolidas. O mesmo se interpõe com a história, a materialidade do enigma refere-se à trama histórica, que é também o drama, e estas convocam compreender o caráter alegórico do tempo, que não se dá a ver por inteiro, com total evidência, mas sim torna-se apreensível em seu resto irreparável, por um gesto (AGAMBEN, 2005; 2008; 2009; 2013). Nesta direção, a arte é um passo para fora. Ela delimita um trabalho de singularização, ao desfixar o imaginário e permitir o ilimitado dos acontecimentos. Justamente por colocar as forças disruptivas e desorientadoras das imagens da memória em curso, a decisão pela poesia, a coloca contígua-a ao seu processo histórico, e ao mesmo tempo oposto a ele. O artista, nem se resume a um “eu”, sujeito uno e independente, nem está plenamente abandonado às circunstâncias: “o sujeito é devir, multiplicidade em transformação” (LOPES, 2003/2004, p.74), pluralidade de forças, e por isso, a capacidade de criar, de multiplicar formas, nem é cumprimento de um destino genético, nem subordinação a condições exteriores: “ela decorre do drama da memória, a qual é ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade: participação do passado pela relação com ele, e por conseguinte pela imposição de um desvio, ruptura” (2003/2004, p,74). A memória seria um drama infinito - o drama da criação, colocando toda a perspectiva da transitoriedade em jogo, como nossa condição de inacabamento (LOPES, 2003/2004). Nossa aposta com essa Mesa é criar zonas de manobras indetermináveis, por suas possibilidades (por seu potencial) de germinar gestos que se desdobrem em efeitos táticos. E frente ao desmoronamento das formas de memória e testemunho, construir corpos em movimentos táticos. Pois, um corpo tático é um corpo em uso. Como uma língua que cria outra língua. Como a memória é capaz de interpolar o fato vivido e transformá-lo em algo transmissível. Os trabalhadores estão em luta. A ressurgência não cessa de comparecer. Nas imagens que acessamos, o tempo que escorre pode criar um relampejo, numa fração, imobilizar-se. Fóssil vivo. Transmutável. Corpos táticos não são soluções mágicas ou plenas. São espasmos. Movimentos de contrações e expansões infinitesimais. Fractalidades. Não há inteirezas. Há pedaços de linguagem. Há desejo insistente. Vielas e ruínas. Ruínas que ainda podemos amar. Assim, escrever para falar. Para compor certa inscrição visceral. Um gesto que se lê. Uma marca operada num corpo em transformação, num corpo tático, constituído em uso e 11


em franca dimensão impessoal, que ao se tornar um corpo estranho, fabrica uma experiência mutante. A palavra escrita que se sustenta, mesmo abdicada da palavra viva, retorna ao jogo do fazer passar a letra ou aquilo que nos inquieta em e-moção. Isso tudo, não se dá por uma anterioridade dada, mas sim por meio de um repente que atualizasse em centelha, em fagulha, em um fragmento do tempo, contraído, o agora. Aquele ao qual quando chegamos nele já não o encontramos mais. Tão irredutível e fugidio quanto o vislumbrar, o agora torna-se elemento de atenção sensível, que tenta a memória guardar sob a forma de imagens, para interromper o curso do tempo que jorra. Estamos a dizer que escrever é exercitar-se num jogo dialético com o real, que assume a distância e o empenhar-se em letras-memória. Escrever e memorar jogam com o estado da palavra viva, que se costurou mais pelo ouvido, do que pela voz, como lembra-nos Calvino (2008). Costurar uma experiência, em feitura, é trabalho inventado, de dimensões políticas e desejantes incalculáveis a priori. É acionar-se por um saber que não se sabe e que não pode ser prévio ao próprio ato de narrar, por isso se faz nele, com ele e além dele. O inscrito, ainda que em estado de dissolução constante, produz a conjunção de duas ações de dimensões éticas: escrever e ler. Movimentos distintos que se configuram numa constelação infinita, como um poetificado que sustenta passagem através de uma porta entreaberta. Semelhante à poesia que ao escapar à linguagem pragmática e mecânica, produz uma entrada sensível de composição articulada com o outro, que a experimenta. Ou ainda, como a crônica, que nos situa Benjamin (1992), difere-se da historiografia, visto que o cronista é o narrador da história e quando ele a conta, não está obrigado a explicá-la. O cronista, ao contrário do historiador tradicional, pode apostar no insondável devir do mundo. O espírito do cronista liga-se ao do narrador, pois conduz o leitor aos tempos em que as pedras e o seio da terra ligam-se aos destinos das gentes: “a magia libertadora de que o conto dispõe não põe em cena a natureza de uma forma mítica, mas é a indicação da sua cumplicidade com o homem libertado” (BENJAMIN, 1992, p. 49-50). Se é assim pelo gesto que se gesta algo, o cronista da história pode mostrar que empenhar um modo de narrar o que se passa, dos movimentos em que se está incluído, é encaminhar uma política do contar, que não se define pela informação que veicula, mas sim pelas marcas germinativas que emergem nas coisas que narra, tanto para aquele que viveu, como para aquele que participa do que escuta ou lê. Assim pois que, contar histórias pode 12


constituir-se como instrumento para uma análise do presente que abra vistas à dignidade das lutas menores, no sentido deleuziano. Em “A comunidade que vem” Agamben (2013b) trabalha a ideia de um Fora como conotativo de um “qualquer”: figura de uma singularidade pura. Uma singularidade que não se esgotaria numa relação de identidade, pois “qualquer” significaria uma zona indeterminada, em relação constante com um todo, sem que este – por sua vez – possa ser representado. Ou seja, o que está em questão: o Fora corresponde a um limiar, “um ponto de contato com um espaço externo, que deve permanecer vazio” (2013b, p. 63). Embora, “qualquer” seja finito, ele é indeterminável justamente por sua singularidade, sua posição de exterioridade pura, uma pura exposição: “qualquer é, nesse sentido, o acontecimento de um fora” (2013b, p.64). A relação disso com a experiência é que esta torna-se um acontecimento não-coisal e vincula-se à sua pura exterioridade como algo que aponta para sua dimensão de limite: “O fora não é um outro espaço que jaz além de um espaço determinado, mas é passagem, a exterioridade que lhe dá acesso” (2103b, p. 64). Em latim, fores, é relativo à porta da casa. Em grego, thyrathen, indica literalmente “na soleira”, “no limiar”, mostra-nos Agamben (2013b). Porque só podemos falar em movimento se, em meio às batalhas para empenhar o vivo mutante, situarmo-nos em lutas e em embates constantes. Nosso conhecimento, datado e provisório, adota sempre uma posição de referência. Referir-se a algo produz corpos reais. Não seria isto, a própria tarefa do pensamento? Criar, ao mesmo tempo que as formas, também suas dissoluções? Aquilo que não cessa de engendrar-se e desfazer-se. De criar existências-processos, de arremessar linhas? (PROUST, 1988) Corpos de conhecimentos, corpos reais, são - em alguma medida - corpos em uso, desajeitados nos movimentos, disparatados em seus interesses, abestalhados em seus fazeres. Agamben (2013) em seu belo ensaio “O que é contemporâneo?” pergunta de quem e do que somos contemporâneos? Remete-nos à questão e à compreensão do tempo sob a perspectiva de uma kairologia. Pois, a questão do tempo releva a questão sobre a do intempestivo. Ao relembrar Barthes, aponta que o contemporâneo é o intempestivo. Suscitanos retornar a Nietzsche em “O nascimento da tragédia” no ponto em que este configura sua crítica à febre da história. Quer delimitar que para que nos remetamos ao contemporâneo, precisamos assumir certa desconexão em relação ao presente. O contemporâneo não coincide perfeitamente com a atualidade. A relação com o tempo guarda uma dissociação e um anacronismo singular. Isso produziria uma proximidade do contemporâneo com a figura do poeta: aquele que devia pagar sua contemporaneidade com a vida, aquele que enquanto contemporâneo, constitui-se como fratura, impedindo o 13


tempo de compor-se precisamente. Como imagem da contemporaneidade utiliza-se dos versos do poeta que afirmam as vértebras quebradas do século, mostrando que há um gesto impossível para quem tem o dorso quebrado e quer virar-se para trás para contemplar as próprias pegadas (AGAMBEN, 2013). Assim, o contemporâneo força-nos a manter o olhar fixo no seu tempo, ainda que de vértebras quebradas e dissociado do próprio tempo, não para nele perceber as luzes, mas para então entrever o escuro. Há certa escuridão na experiência de habitar um mundo, um tempo. Escuridão que não é cegueira, mas um tatear por fendas. Escuridão é um modo particular de visão. Certas luzes podem cegar. Portanto, a escuridão não é uma experiência anônima. É algo que interpela, como “aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” (AGAMBEN, 2013, p. 64). Se o dorso do tempo está fraturado, jamais somos alcançados pelo presente. É isto a urgência-coragem que emerge: no escuro do presente, perceber a luz para nós dirigida, ao mesmo tempo que sua infinita distância de nós! Essa intempestividade atordoante. Essa cesura. Paradoxo. O tempo está sempre adiantado e, ao mesmo tempo, sempre atrasado. Entre um “ainda não” e um “não mais”, guardando um limiar inapreensível, um “ágio”, espaço livre, intervalar, que nos remete ao movimento pendente e inexorável do devir histórico. Assim é que entre exercícios de distância e proximidade, o embrião do tempo, sua arké, continua a operar o agir nos tecidos do vivente... colocando-nos face a essa contiguidade com a ruína. O moderno porta o arcaico, num compromisso secreto, indica-nos o autor. Esse “tempo-de-agora” não é apenas cronologicamente indeterminado, como incalculável. Por isso, o autor compara a kairologia com o tempo messiânico – que se liga ao programa benjaminiano de uma outra versão da história – ressaltando que tal proposta tem “a capacidade singular de colocar em relação consigo todo instante do passado, de fazer de todo momento ou episódio da história bíblica uma profecia ou uma prefiguração do presente” (AGAMBEN, 2013, p. 72). Em última instância, o contemporâneo não é apenas aquele que capta a resoluta luz por meio do escuro de seu presente, mas aquele que interpola o tempo com outros tempos, fazendo saltar modos de ler e citar a história de forma singular. Algo que se mistura ao nosso contar uma história, uma impressão, uma experiência. Embrenha-se numa narração, as marcas daquilo que não se sabe, mas se transmite (BENJAMIN, 1992; 2010; 2012). Benjamin (1992) mostra-nos que uma narrativa não é composta apenas por aquilo que nela se oraliza, mas também por gestos que se imprimem na maneira como se conta algo, ressaltando o valor do corpo em uso e das mãos, que trabalham enquanto se tece a voz e os fios narrativos, como a argila nas mãos do oleiro. 14


Didi-Huberman (2011) retomando contribuições benjaminianas, afirma que a figura do cronista deseja mostrar que nada está perdido para a história. Ao considerar que a proposição de tempo, mostrada por Benjamin, realça uma temporalidade passante, que como o lampejo, cruza o céu como uma bola de fogo e que, paradoxalmente, cria uma imagem, um instante de imobilidade, que poderá constituir-se como índice para a história, Didi-Huberman (2011) afirma que aquilo que cai, não necessariamente desaparece. Pois, o acontecimento indica uma persistência das coisas decaídas, ou, uma sobrevivência. Por isso no seu belo ensaio “A sobrevivência dos vaga-lumes”, o autor refere-se a leitura que Agamben (2005) em “Infância e História” realiza do programa benjaminiano, fazendo-lhe um contraponto, pois afirma que a experiência em destruição, não se trata de uma destruição efetuada, mas algo que pode demonstrar mais um pretérito imperfeito. Ou seja, a história cria impressões indestrutíveis, momentos inestimáveis, que sobrevivem, explodindo em surpresas e erguendo a queda à dignidade. O que nos faz lembrar do “preferiria não” do escrevente de Melville. Uma imagem da qual não consegue o chefe livrar-se, fazendo-o virar o próprio narrador da história. Isso coloca-nos diante da sobrevivência das imagens, como demonstração de sua imanência fundamental: Nem seu nada, nem sua plenitude, nem sua origem antes de toda memória, nem seu horizonte após toda a catástrofe. Mas sua própria ressurgência, seu recurso de desejo e de experiência no próprio vazio de nossas decisões mais imediatas, de nossa vida mais cotidiana (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 128).

Faz-nos empenhar “palavras vaga-lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 131), como um narrador pobre, com alguma autoridade moribunda. Inventar um gesto. Gagnebin (2009) nos aponta que a testemunha é aquela que não vai embora. A testemunha depara-se com o limite do pensável. Do traduzível. Mas não são suas palavras somente o que dão matéria ao seu testemunho. São também seus gestos. Recorda-nos Agamben (2005) que o centro da experiência dos mistérios, vividos pelos antigos, não se realizava por via da constituição primeira de um saber, mas sim de um sofrer, o pathema era “um não-poder-dizer, um murmurar com a boca fechada” (2005, p. 77), experiência bastante próxima da infância do homem, sendo os mistérios, portanto, operadores de um saber fazer, uma “técnica” (2005, p.77) para influir sobre o mundo. Isto nos remete a considerar, como situa Didi-Huberman (2016), que mesmo participando de outro tempo e contexto, há algo que nos acompanha: as emoções, que passam por gestos que fazemos sem nos dar conta e que nos ligam a outra temporalidade: “esses 15


gestos são como fósseis em movimento. Eles têm uma história muito longa – e muito inconsciente. Eles sobrevivem em nós, ainda que sejamos incapazes de observá-los em nós mesmos” (2016, p.32), e assim, essas emoções passam. Elas precisam passar. São uma linguagem. Criam impasses, como sugere o autor: não somente criam as dificuldades que pressentimos quando as experimentamos (impasse como aquilo que não passa, afeta-nos), como constituem-se como passagens (im-passes, em passagem). A emoção que o gesto traz é também um impasse da linguagem, do pensamento, da ação. Pode produzir uma suspensão temporária. A imobilização de um segundo. O fio de um pavio. Um lampejo. Uma franca força, uma chispa, que atual como um arco, “atinge o instante bem no coração” (BENJAMIN, 2009, p.502). Se, como nos lembra Benjamin (2009), atentarmos para o exercício de um olhar estereoscópico e dimensional para a profundidade das sombras históricas. O gesto compõe nossas narrativas. Narramos não somente com palavras, mas com as mãos, com um corpo também. O gesto pode ser, simultaneamente, testemunha e testemunhado. Ele pode compor aquilo que a testemunha narra, aquilo que faz ao narrar e aquilo que sofre narrando. Ao mesmo tempo, o gesto pede que seja testemunhado para que sua existência seja transmissível, pois uma emoção, um gesto ativo, que não se dirigisse a ninguém, que fosse absolutamente solitário e incompreendido, não se constituiria como moção, movimento, e seria “somente uma espécie de cisto morto dentro de nós mesmos” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 33). Assim, a história de “um”, não é somente uma história somente “dele”. Pertença a uma interioridade absoluta. Adverte-nos Didi-Huberman (2016), resgatando Bergson, que nossas emoções são gestos ativos, nos lançam para fora de nós mesmos. Ela, portanto, pode consistir num limiar entre o interior e o exterior e lembrando Deleuze, conclui que a emoção não diz “eu”, pois que estamos fora de nós mesmos, mas é preciso recorrer à terceira pessoa, como um “ele sofre” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 29). Podemos testemunhar: “ele sofre”. E reconhecer em nós mesmos, também, algo do movente do mundo. Quando diante de uma imagem, uma narrativa, um gesto, nos ligamos ao fora de nós, mais acessamos “um povo em lágrimas” e “um povo em armas” (DIDIHUBERMAN, 2016, p.38). O movimento político que queremos ressaltar, com as noções de história e de tempo benjaminianas e retomadas por Agamben em “O que resta de Auschewitz”, conforme sugere Gagnebin (2008), recoloca de forma bastante peculiar o problema do “resto” (2008, p. 10). Este, situando uma contração do tempo no registro do tempo-de-agora, e tomado por 16


Agamben (2008) de São Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios 2, indica-nos um hiato, uma lacuna, uma cesura que se encontra no fundamento do testemunho. Gagnebin (2008) afirma que não se trata de apontar este resto como um dever de memória, num empresariamento estéril. Define a autora: Podemos entender melhor esse resto como aquilo que, no testemunho, solapa a própria eficácia do dizer e, por isso mesmo, institui a verdade de sua fala; e, no tempo humano, como aquilo que solapa a linearidade infinita do chronos e institui a plenitude evanescente do tempo-de agora como kairos messiânico (GAGNEBIN, 2008, p. 11).

O gesto narrado que testemunha algo, ao passo em que é igualmente testemunhado, opera uma ação transmissível, pode ser, portanto, um opera-dor de nossas apostas, quanto a passar adiante forças de transformação. Agamben (2008) pergunta quem é o sujeito do testemunho. Indica-nos que quem de fato dá testemunho no homem é o não-homem, ou seja, aquele que lhe empresta voz, sua infância. Não existe assim um titular do testemunho. Testemunhar significa “entrar em um movimento vertiginoso, em que algo vai a pique, dessubjetiva-se integralmente e emudece, e algo se subjetiva e fala, sem ter – propriamente – algo a dizer” (AGAMBEN, 2008, p. 124). O testemunho, nesta perspectiva, é muito mais uma zona de indistinção na qual não é possível estabelecer uma posição de sujeito substanciado, pleno, a “verdadeira testemunha” (AGAMBEN, 2008, p.124). O testemunho é, pois, um campo de forças (AGAMBEN, 2008). Assim, nosso contar empreende um gesto. O que nossa linguagem é capaz de articular não é absolutamente o que reconhecemos conter a maior força. “O testemunho é um gesto imperfeito de tradução” (VILELA, 2008, p. 133). Nos restos do testemunho assumido pelas letras que empenhamos permanecem matérias sensíveis de uma experiência-limite: “o real não é senão uma densidade que se tece entre o pensamento e o fragmento” (VILELA, 2008, p. 135). Finalmente, temos o mundo que temos. Este, não outro. Deste retiraremos nossas armas para construir resistências potenciais. Como nos sugere o Comitê Invisível (2016, p.180), não há crise da qual devamos sair, há luta para empreender. Perceber que a guerra, no fundo é parte da vida, o fato desta ser em si estratégica, faz-nos também exercitar uma Na qual Paulo declara: “Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se fez curto” (I Cor. citado por GAGNEBIN, J. M. Apresentação. IN: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008. 2

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atenção ao mundo que queremos coproduzir. Às ações que podem diferir e produzir rachaduras às vezes, muitas vezes, não são as ações globais, universais, tendenciosamente totalitárias. Mas as pequeninas e inusitadas, que tecem redes de apoio e conversação. A micropolítica de um poder capilar. Que se espalha e contagia. Que enfrenta com coragem e alegria, as malfazejas agruras do instituído. Isso pode revolucionar o improvável. Isso pode romper as comportas sérias do desespero. Da vingança de Estado. Da ampliação da maledicência. Da morte em vida que às vezes pode nos envolver e nos cegar. O outro deixa de ser o inferno, apenas, e passa a fazernos ver mais de perto aquilo a que estamos em via de tornarmo-nos, somente enquanto devir mutante. E de expectador da própria vida, passamos a escrever o texto que narramos ao contar e viver, subvertendo o tempo e o posto, o fato e o obtuso, em obra de arte, aberta aos inúmeros potenciais que desconhecemos, mas que certamente pressentimos. Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. ______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008. ______. O que é o contemporâneo? Chapecó, SC: Argos, 2009. ______. Ideia de prosa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. ______. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b. BARROS, Manoel de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Iletra, 2010. BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’água Editores, 1992. ______. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. CAIAFA, Janice. Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. COMITÊ INVISÍVEL. Crise e insurreição: aos nossos amigos. São Paulo: n-1 edições, 2016. DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. ______. Que emoção! Que emoção? São Paulo: Editora 34, 2016. 18


GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apresentação. IN: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008. ______. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009. LOPES, Silvina Rodrigues. Poesia: uma decisão. Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte, v. 10/11. 2003/2004. ______. Comunidade da excepção. IN: LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades: geografias de rebeldes I. Rio de Janeiro: 7 letras, 2014. PROUST, Françoise. La ligne de résistance. In: GILLES, Deleuze. Imannence et vie. Rue Descartes/20. Collège International Filosophie, Paris: PUF, mai. 1988. p. 43. (tradução nossa). VILELA, Eugênia. A criança imemorial. Experiência, silêncio e testemunho. In: BORBA, Siomara; KOHAN, Walter (Orgs). Filosofia, aprendizagem, experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

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Procuras pelo fitar Maria Carolina de Andrade Freitas Thaís Furtado Nascimento

RESUMO Este é um trabalho ensaístico. Trabalho que se ensaia. São composições desejantes de um percurso-formação em limite de chegada e saída. Não pretende enrijecer-se, mas diluir-se. Acompanhar a dissolução produzida na feitura do Curso de Artes Cênicas e da busca da profissão. Segundo Paviani (2009) o ensaio ao contrário do tratado e do artigo científico, desenvolve os argumentos ensaisticamente, experimentando, questionando, refletindo, criticando o próprio objeto de estudo. Esquiva-se da descrição e almeja mostrar as mediações, por meio do cultivo do novo e neste caso, da poiética! É um lançar-se em direção incalculável, mas consistente. O leitor terá que coproduzir a obra, para passeá-la. Convite.

Recognição As palhas eram apertadas, mas a cada palavra solicitada para serem ditas em horas dadas, a amarra palhada soltava milímetros, os solos percorridos dentro das faixadas com destinos, a troca recíproca mirava o tocável utópico. Mais e mais as palhas se afrouxavam. Um dia, os dedilhados internos precisaram deitar nas fibras de algodão; com suas minúcias doadas no compor de suas palavras e outras já em fibras, um solo de cada vez entrava na estrada. Já não ficavam mais nas fibras, mas no transparente tocável, e ânsia pelo devir desconhecido a serem ecoados tornava implosão. A luvas aqueciam.

Exórdio Escolhas. Vastos caminhos. Onde surge? Talvez não venha de um determinante. Principiar. Várias foram palavras de outras bocas que tentaram definir. Bocas. A que possuo talvez possa dizer: “nunca, nunca e nunca”. Talvez nunca. Nunca se moveu para definições complexas, deste corpo e alma. Entre referências se veem vestígios, bocas se abrem. “Como abrir Bocas”? Talvez não se abram bocas. Bloqueios. Veda-se. Bocas. 20


Ensaístico, por quê? Resposta: Cogitar. Amotinam imagens, temperaturas, texturas, palavras. Porventura, em tempos de perspicácia, ressignificam situações, e o que está ao alcance se torna manto temporal para fechar os olhos e descansar/apagar/branco/esvaziar. Foram as vezes que mudaram o tom, cambiante. Atravessou. Marcas. Todas datadas atemporais, como o dia que virei jurada na sala escura, na sala 12, diante daqueles corpos desconcertantes, descobrindo novos corpos. Neste ensaio poderia haver só Alice. Mas houveram intervalos, que precisavam jorrar da alma. Outras construções que me levaram as outras construções/feituras, que foram a partir de Alice, construídas. Me transforma, me acolhe, minha segunda materna. Entrego os meus atos, entrego minha materna.

Atos Os anseios, procuras, processos árduos que prolongados descobrem como moldar e outros que até hoje não foram descobertos. Cada corpo reage diferente, suas referências, suas memórias. Atos. Nos atos a seguir, são traçadas as construções das montagens seguindo os trabalhos internos, atos de um percurso e uma formação, em construções. Não há atos que não foram amofinados. Atos desnudam processos. Atos.

I - Ato 1 No presente ato registra-se a experiência no Curso de Artes Cênicas na Universidade Vila Velha - UVV.

Encetativo Querer, Insistir, começar. Entrar. Olhar vago. Novo. Desenquadra. Híbrido. Orgânico. Ditoso. Plástico. Devanear. Sonhar. Querer estar e estar. O que levou a estar lá? Talvez apenas desejo. Tencionar. Projetar. Estar em seu lugar. Franquear. Abrir. Não vedar. Desviar. Articular. Fusão.

Sempre estar lá

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E ver ele voltar Não era mais o mesmo Mas estava em seu lugar 3

Encapsular. Estrondo. Rumor. Interrupção de Alva. Sons. Clamar. Emitir. Idear. Quando eu cantava, Alva me mandava calar a boca. Mas ela não, ela cantava à bessa, a noite toda. Essas roupas eram dela. Herdei. Tudo de Alva agora é meu. Menos o colar de bolinhas de ouro puro. Ela nunca tirou o colar… E eu herdei também todos os namorados dela. No início eles sumiram todos. Acho que ficaram com medo de ter que pagar alguma despesa, ou coisa assim. Mas, de uns tempos para cá voltaram. Igual andorinhas. Me levaram para sair à noite. Agora eu sou popular, vou a todas as festas da ferroviária. Olha aqui! Como eu danço bem. Eu sei mexer mexer minhas cadeiras. AH! Minha boneca maluca está precisando lavar a cabeça. Eu fico com medo de lavar, com medo que a cabeleira descole, que a cabeça tá meio rachada, você viu. Os miolos dela devem ter saído todos. Ela anda completamente boboca depois que rachou. Anda dizendo e fazendo coisas horrorosas. Preciso colar ela. (WILLIAMS, 2012, p. 312)

Imagem. Imersão. Substituição. Criar. Olho e não a vejo. Vejo a escuta. Criar. Não estar. Olhos dilatam. Vejo a imagem. O corpo age nesta realidade. Não se acopla, mas se está, ao mesmo tempo. O novo mundo vem, a interação muda, são pessoas diferentes, mundos diferentes, ideologias diferentes. Onde estou, não no presente lugar. Vê o que está.... É o que estimula, da pulsão. O que foi aquilo? Aconteceu, ela não era ela e ele não era ele, apenas corpos. Ao realizar a leitura de um texto ou a escuta de uma história pela voz do outro, automaticamente se cria uma imagem. Acreditar. Imaginar. Ferir. Chorar. Magoar. Chegam como verdades. Se calar. Agonizar. Passar. Segurar. O que é importante é ferido. Tudo é real. Elas têm poder. Ecoam. Medo. Novo olhar. E estar lá. Os passos traçam medo de estar. Elas penetram. Valor. Importância. Transcende. A voz se encontra no olhar, o que é de fora não entra, para, pausa, mas não para, não pausa. Imóvel. Correm. Acontecem, mas imóvel. Imóvel. Imóvel. Imóvel. Surreal. Deslancha. Propaga-se. O ator e diretor Russo Constatin Stanislavski criou várias técnicas para a preparação do ator, entre elas o método “Fé Cênica”, que consiste na capacidade de acreditar na ficção como realidade, como verdade.

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Nenhum de Nós, 2018, fonte: https://www.letras.mus.br/nenhum-de-nos/28026/

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A imaginação de um ator pode atrair para si a vida de outra pessoa, adaptá-la, descobrir qualidades e traços mútuos e excitantes... Essa vida imaginária é criada à vontade, com o auxílio do próprio desejo do ator, e proporcionalmente à intensidade criadora do material espiritual que ele possua ou que tenha acumulado em si... Sem imaginação não pode haver criatividade. O ator precisa saber aplicar sua fantasia a toda espécie de temas. Deve saber como criar em sua imaginação uma vida verdadeira com qualquer material que lhe seja dado... Podemos usar nossa visão interior para ver todo tipo de imagens visuais, criaturas vivas, rostos humanos, suas feições, paisagens, o mundo material dos objetos, cenários, e assim por diante. Com o nosso ouvido interior, podemos ouvir toda sorte de melodias, vozes, entonações ECT. Podemos sentir as coisas na imaginação, impelidos por nossa memória de sensações e emoções” (STANISLAVSKI, 2011, p.38).

Aos poucos as travas chegam. Refletir. Não agir. Agir demais. Noites em frente à tela. O vazio chega. Célere. Patente. Desgostoso. Instável. Não se joga mais. Busca constante. Vem o medo. Desgosto no gosto. Inopinado. Súbito. Improviso novo desgosto. Árduo.

O medo nasce de outras paixões e pode ser minorado por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também poder ser aumentado por paixões mais tristes do que ele. (CHAUÍ, 2011, p.153) Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. (Camões, 2018, p.1)

II – Ato 2 O Ato 2 se constitui na procura de documentos para elaboração do presente ensaio. Em meios as pilhas, recolhe-se memórias.

Pilhas Pilhas, então. Registrar. Perspicácia. Resgate. Fazer e refazer. Refletir. Encorpar. Produzir. Fabricar. Não recuar ou adiar. Alavancar. Progredir. Alastrar. Expandir. Fomentar. Aludir. Mencionar. Recitar. Há o paladar. Exercer. Inserir. Executar. Degustar. Fazer estar. Implementar. Incrementar. Transpor. Enraizar. Resgate das memórias: Saudade. Pedaços da construção em outras construções. Apego, afeto, saudade. Geram, nascem outros. Fisgam os detalhes, pequenas membranas memórias desdobradas, estética, seus traços. É mais do que querer, desejo, intencional, é porvir de um ideal comum. Como erguer? Mesmos princípios, interesses, convicções o que acionam. 23


III – Ato 3 Constam obstáculos e descobertas durante o processo de montagem de peça no estágio no Teatro Municipal de Vila Velha.

Estágio Desdobrar. Repetir. Jogar. Criar. Recortar. Jogar. Projetar. Articular. Atiçar. Aguçar. Recriar. Gerar. Formar. Adaptar. Modificar. Significar. Ressignificar. Encaixar. Poetizar. Repetir. Impregnar. Associar. Desenhar. Partiturizar. Amarrar. Visualizar. Imagens. Conjunto: poética. Quente verso frio. É preciso ver. Sentir. Encontro com o olhar de fora. Conjunto dos detalhes. Poética. Catarse, apenas sentir, acreditar, atuar por isso, desejar. Se mover pelas imagens. Associar. Imaginar. Tornar possível, ser visível. Modificar. Reinventar. Inventar. Adaptar. Resistir. Permutar. Poética. Projetar. Articular. Atiçar. Aguçar. Eles estão perdidos. Vê-se no olhar inseguro, nos movimentos encapsulados, pela insegurança, o não saber o que estão a fazer ali, perdidos. O que está acontecendo? O que mudou? Não tem repertório, então, não há referência para roubá-las, recortar. Decisão: deliberar. Adiar o trabalho com o texto, parar de usar o jogo “Quem, onde e o quê”. Não era o momento certo, não estavam preparados. Percepção da ausência da repetição, não foi impregnada. Erro recorrente da não continuidade, do desdobramento para cravar. E o corpo vem, vagarosamente, mas vem, o cotidiano com breve espaço e o extracotidiano revela-se, se ver, aparece, prospera. O criar, repetir e desdobrar. Nascem os novos corpos extracotidianos, diferentes, por suas referências e memórias. Crava os olhares. Atinar.

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Fig. 1: O Pequeno Príncipe 4

IV – Ato 4

Em momentos no curso da procura de Alice e na estética da peça como todo, pela primeira vez depara-se com o vazio e com o olhar de fora. Se estava fora do palco de criança (personagem), fitavam-se as Rosas que estavam no palco, e foi o primeiro olhar.

Eu Alice Malhar, malhar, malhar, malhar. Vamos! Fricção 1, 2, 1, 2. Cursar. Vamos! Queremos mais chá! Chá! Chá! Voz de maracujá. Com certeza não sou Ada e talvez, Alice também não. Vai. Opa, Alice. Não jogue é uma criança. Trabalhar o afeto. Internalizar. Estar íntimo. Aderir. Debruçar. Fazer existir. Integrar. Ainda não descobri EU ALICE, vejo Alice ali, lá com mais de três quilômetros de altura, vejo ela me derrubando sem querer e me levantando. Estava sem êxtase, sem emoção com desanimo, desde o Robô em cena. Então chegou a repetição pela escrita, mas percebi que o robô ainda estava ali.

Montagem da Oficina de Teatro ministrada por Isabela Malta, Mariana Zanelato e Thaís Furtado, no Teatro Municipal de Vila Velha, 2017. Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=149995528898337&set=a.149985642232659&type=3&theater

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Sim, Sim e Sim eu esqueci; confesso! Eu Pequei, minutos insuficientes, pré-determinados pela irresponsabilidade do ser: poderia ser um coelho atrasado (que apesar de sempre estar atrasado, está ali ligado a 220 volts), mas não; atrasada, esquecida, mal organizada, uma irresponsável. Mas foi, tiveram várias repetições, a querida fala interna, os movimentos e o querido impulso segundo Stanislavski. A boca fechava, a mente escurece, chegou a luz, os movimentos, e finalmente sua boca voltou a abrir. Amém! O esquecimento? Sim, foi ela a fricção, ela me fez esquecer os meus sérios sentimentos tristes de um ator devastado por suas experiências mau sucedidas na arte cênica. Fazia uma interpretação do texto completamente diferente do que era o certo a ser interpretado por qualquer um, até porque todo o contexto do texto dizia isso para todos, menos pra mim. Da fricção vinha a memorização, em seguida movimentos, mas a Alice não chegava. Pra dizer a verdade ela ainda não chegou. O que Alice pode passar para o seu público? Como você se identifica com a história? Alice é uma menina curiosa, põe a cara onde estiver. Quer colocar, não fala coisa com coisa segundo eles (outras pessoas que não são eu), vê o mundo diferente. Vê que ele não é tão difícil. Por que eu não me identifico com Alice? Ela faz coisas que eu não faço... Talvez eu nunca vou encontrar EU ALICE como pessoa, mas como personagem eu tenho que encontrar, por mais que não seja “A Alice”, que seja um monólogo totalmente diferente, mas que pareça ser ela, que passe a emoção para o público. Eu Alice talvez chega, talvez não, ser ou não ser eis a questão, ser alguém que sim possa me levar pra frente, mas talvez não quero chegar tão a frente... ser como se pode ser e que Alice seja apenas uma personagem de muitas e muitas que estão por vir, já que esse é um dos grandes méritos de se ser ator: poder ser um médico, professor, engenheiro, lagarto, dona de casa, entre outros; ser outro. Por quê? Porque eu sou ator.

A sopa Mexer. Movimentar. Mirar. Gesticular. Internalizar. Transitar. Compor. Saracotear. Viver. De fora pra dentro. Ampliar. Expandir. Dilatar. Repertório. Aqui eu encontro soluções. Eu as encontro em cena. Um percurso que não foi dado por completo, ora não se cruzava, ora só vinha um. Descobertas em posições diferentes que fazem ali e refletem do outro lado seguindo um ritmo (quase coreografado), mas vazio porque o ingrediente principal faltou na sopa. Era uma sopa orgânica incompleta, mas aos poucos chegou a pimenta, chuchu...

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Cada ensaio são falas e falas internas, partituras tentando entrar, mas não têm lugar, não cabem, pois o buraco é grande, mas está vazio demais para caber. Fico parada, mas tentei e fiquei parada mesmo, é muito estranho como estradas desfeitas e não ter por onde passar e eles estão olhando e eu vou me contraindo diminuindo e diminuindo. Não espero que passe rápido, aproveito todos o dia, a minha única pressa é a fome. Reflito sobre mim, cada dia é um dia, a semana não começa. Sexta começa todos os dias. Enquanto estou aqui outros estão desesperados para chegar em casa, enquanto eu? Como eu disse todos os dias são dias, mas quando paro para refletir, que mesquinha eu sou, “Ela” chega às 22 horas e sai muito cedo, tão cedo que nem sei a hora, porque estou dormindo; enquanto o dia tem que passar rápido para um breve descanso, estou aqui, rindo todos os dias, menos na sexta de 10 às 17 horas, só teve uma sexta que foi especial, durante... não, não sei mais. Acho que estou encontrando “Eu Alice” não na peça, mas na vida, vivo em um mundo que é meu e o resto está lá fora apenas lá fora, é uma pena que seja bom só para mim. Todos os dias são bons porque em todos os momentos faço o que eu gosto, sábado também estava lá estudando. Tudo estava maravilhoso só sorrisos, e no feriado também (o difícil é acordar cedo), mas foi assim... Talvez não seja só para mim a minha felicidade. A minha felicidade é importante para algumas pessoas, mas para isso duas se sacrificam, tenho que retribuir: amanhã começo, depois de amanhã, todos os dias, porque cada dia é dia.

Crianças de Alice Brincar, brincar e brincar, não ter medo de nada, só queremos brincar. Não se importavam com as Rainhas Cruéis, levando a vida com leveza, sem precisar ter certeza. Brincar até o mundo acabar, o corpo se cansar, rodar e rodar sem medo de se machucar. Guris do cu riscado, vão nos lugares e colocam as mãos nos lugares sem ter medo de quebrar, passam por cima disso e por baixo daquilo, cuidado meninos! Que corpo é esse? São das crianças que não são crianças, mas agem como crianças, tem a plasticidade de uma criança e dilata como criança. Pois agora somos crianças. O olhar de quem está do lado de fora Do outro lado estavam as rosas, e eu estava distante delas olhando e olhando, os corpos estavam maravilhosos extracotidianos, me perdia olhando pra eles, se a cena tivesse só as

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rosas seria o suficiente para hipnotizar o público, era surreal a presença daqueles corpos. O que mantém o público em foco?

Fig. 2: Cena “Rosas” da peça “Alice Uma Quase Ópera Punk Rock Contemporânea”

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V - Ato 5 Ainda no percurso de construção de Alice, descobre-se a não eficiência no jogo. Nos jogos criavam-se cenas ou recortavam-se (até moldar) para a peça, nasciam cenas.

Robô em cena Não sou eu! Quem está lá? Quem é ela? Estranho são os seus movimentos, o que ela está fazendo? Isso tem poética? Não, não, não! Mas não significa que tem que seguir uma linearidade! Mas como é poético, sendo que não sei o que está acontecendo, mas estava planejado com uma ou duas cartas na manga, mas não está vindo, onde ela foi parar? Alguém me socorre! O que é isso? Ei, você! Alguém pegue a carta, não estou conseguindo! Pegou? Por que não estou indo? Já colocaram a carta. Está acontecendo? Está tudo muito confuso!

Teatro Municipal de Vila Velha, 2016. Fonte: https://m.facebook.com/Aliceumaquaseoperapunkrockcontemporanea/photos/a.1891661311073538/189166390 4406612/?type=3&source=54

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Socorro! Socorro! Socorroooo! Cadê a luz no início e no final do túnel? O que está acontecendo comigo? É isso... Aquilo... Isto... E assim... Entendido? Entendido? Sim! Sim! Nossa, vai ser incrível... Vamos arrasar! (risos, felicidade). Começou! Começou! Prontos? Sim! Sim! Vai, vem, ham? Vem, vem! Perdi-me... Pensei que já tinha caído, estava tentando resgatá-la. Mas... Antes? Não era assim? Perdão, eu pequei. Mas acontece, às vezes acontece comigo também. Indo embora. O que eu fiz? Estava tudo conversado... planejamos... joguei a carta errada... estava impregnado... o que ela está fazendo? Não é pra cá! Vem, vem... ela caiu...ham? Estar na cena, mas não estar em cena, não está havendo a transportação da pessoa para a cena, tudo some como uma máscara que caí e junto da cena as palavras e ações, como se eu estivesse nua por dentro e com o corpo tentando preencher a nudez interna, mas o corpo não acha o tecido para cobri-lo, preenchê-lo. A cena e o vídeo? Não vejo, não consigo, não é visualizada por mim. É um robozinho. Não sinto poética, não levo nada para ela, está tão distante do que sou. Talvez seja o que sou, ou é apenas um processo. É desesperador, como estar na areia movediça e tentar sair dela e não conseguir, não ter resolução.

VI - Ato 6 Minutos antes da performance do Poema José, palavras ecoavam na minha mente, e continuaram durante a performance, não se calam. Portanto, neste Ato relata-se os sentimentos árduos durante o José.

Negrume em José Não querer estar. Abrir, despertar, acordar, enxergar e não querer estar. Reviver com a consciência descontente por revelar o que talvez jamais fosse enxergar. E agora? Lágrimas correm. E tem que estar. Não se pode retardar o que já se protelou lá. Sentar na escuridão e falar. Sem poder discorrer. Turbação. Se enquadrar no escuro e descarregar o fardo de estar, exteriorizando o que já estava disposto que no presente já não quer estar. José.

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José e agora, José? A luz apagou, a noite esfriou, e agora José? Você que é sem nome, você que faz versos, que ama, protesta? E agora José? Está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora José? E agora José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio, e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta, quer morrer no mar, mas o mar secou... José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse... se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro José! Sozinho no escuro... sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja do galope, você marcha, José! José, para onde? (ANDRADE, 1942, p. 23)

VII - Ato 7 Reflexão dos ensaios de Kafka, peça realizada no 5° período, direção de Marcelo Ferreira. Dentre as meditações despertam sobre o pensar demais, e como isso bloqueia a construção interna do personagem.

Kafka Plie. Direita! Esquerda. Espelho. Corpo cansado. Paro. Sento. Mascara. Abre. Um pouco mais! Obervo. Pra frente. Gisele. Volto. Demi Plie. Volta. Calcanhar. Circulando. Grand Plie. Braços. Olhe! Punhos. Olhar Dilatado. Inhau. Inhau. Meio. Inhau. Mãos nervosas. Inhau. Circular. Gisele. Repetição dos movimentos. A cada aula chega um novo movimento. As segundas são cansativas, e o corpo não aguenta por muito tempo. Então, faço, paro, observo e volto. Quando há aquecimento músicas pop, e sigo, Gisele, parece que surge a válvula, o fisgar, e ativa o corpo e a mente. E seguimos o espelhamento o quase campo de visão falado. O grupo a energia do conjunto levanta. O preenchimento interno por muitas vezes não veio, talvez seja pelo fato de se preocupar que ele venha, e acaba que, fica muito cheio não tendo espaço para preencher porque já está cheio. O pensar! O pensar! O pensar procura demais, não deixa se envolver, bloqueia, preenchimento "tradicional". Então vem de fora palavras, que dizem "Você está preocupando e isso não a deixa entrar"; e chega Gisele descontraindo, a energia chega, o grupo eleva a energia, e vem o preenchimento não intencionalizado, e vem naturalmente. A Grã democrata. hahaha. Cartão?? Tal de Ka. Vai esperar. Viagens. Pobre. Vai esperar. De novo?! Rasgue. Senha! Aí, antigamente... Cola. Processos e Processos. Ka! Ka. Ka? De novo. 30


Nunca. hahaha. Sempre. hahaha. Paciência. Quem liga. Meu café em Paris. Chefe Protocolo. Sempre em processo. De novo. hahaha. Ka. Pó. Pastas. Ver não sendo visto.

Descobertas Percebo que necessito da antecedência, que seja por fora ou por dentro. Que haja antecedência para o sustento. Com ou sem, é árduo, porém, entretanto, todavia, se antecede, se resulta. Não comparar, apenas olhar pra trás e ver que se estão no mesmo lugar. Não competir. Falar. Compreender. Não blasfemar. Olhar ao redor e perceber que não está só, de outros são maiores, não blasfemar. Apenas objetivo 1, 2 e 3, um de cada vez. Não vou mais falar, pois sempre irão julgar. Essa é minha frase de ordem, desde agora que tomo consciência.

VIII - Último Ato Ponto. Não se pode mais. Diversos fins. Do outro em determinada direção apenas se abre para julgamento, para ferir, despir. Letras restrugem. Sim, não sílabas ou palavras, letras, pelo motivo cruel da ferida por unidade. Intervalo Pause. Na cercadura de lama, que insiste em afundar, atalham processos, nos seus altos fictícios que não se repartem, que não se compõe. Gotas amargas vazam. Atravessam corpos, gotejam, agora hematomas cravejados, que por lapsos não se apagam, retornam. Pausam atos. Pausam recheaduras. Pausam. Pausam itinerários, atemporais. Não domina tempo. Alanceados. Não abriu datas. Não expos as exteriorizadas grafias, pelo pré que já se fez o presente e o passado, interrupto de um prospero. Cada vez mais aparecem ataduras, que se molham e fixam, que se mudam. Não se espera que sejam permanentes, pois é a incerteza mais cabal, mas que se diluam. Não há recordações desta feitura, que não borrifaram, quanto a intervalos e atos, mas sim interruptos de processos que se codificam em outras sessões.

Intervalos Energia se esgota. Surgem desculpas onde há buracos. Tempo. A pressa pela resposta, sonhos, estabilidade para continuar. GRITO. Incertezas da certeza picam. Esforços ecoam como escusados, porque não ecoam nãos? Desmesurado. Medo do descanso. Que os nãos não 31


as façam retornar.

Ourela 6 Desfez de vasos por não existentes ao atravessar pelo ar, vibrar, tremer ao corresponder o não existente. Vê o perfurar de costas. Desimportante. Insignificante. Resignificação de onde talvez nunca houvesse. Padecer, tendo a consciência que o desperta, se torna disponível a continuidade. Retrocesso. Reafina a face. Fura pra deleitar, culpar, tencionar a mostrar, acusar que te pertence a culpa. Furar o verde. Corpo muda. Sonífero constante. Repentinamente chove aqui. Se perde e chove. Direcionar a Ourela. Vasos trincam.

Nós dois temos Os mesmos defeitos Sabemos tudo A nosso respeito Somos suspeitos De um crime perfeito Mas crimes perfeitos Não deixam suspeitos Pra ser sincero Não espero de você... 7

Até onde são verdades? Palavras que não necessitam serem ecoadas. Em uma fuga se encontra vias. Se vê escolhas que a partir de pontos são consideradas fictícios. Tratos não tratados. Quando soam geram ruídos que até então seriam suavidades. (Pausa... retorno de cargas) Em meios as pilhas e blocos encontram-se vestígios que redirecionam novos/continuação dos atos. Significado. Doam palavras, se fazem, multiplicam, ressignificam. Aureliar. Mutuar. Recheaduras constantes não remediaram contextos a textos na produção dos mesmos. Cessam atos.

IX - Corpo – Ato Imcompleto Despetale. Levanta. Se manifesta. Infla o corpo e o olhar. Migalhas paralisam o olhar. Tempo constante. Dilata. Recolhe. Põe. Torce. Inclina. Restitui. Mira. Além. Luz. Plástico. Cinzelar.

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Ourela : Extremidade. Fonte: https://www.dicio.com.br/ourela/ Engenheiros do Hawaii. Fonte: https://www.letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/12888/

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Traços Marcas pela neutralidade. Estampas e palavras em minutagens se apagam, valores não são mais reais... Riscos que não se apagam, contudo são trocados por grafites que se apagam, neutralizam os futuros passados. Pendência. ... Mapear. Escutas. Diatribe. Estático, se recolhe, afeta. Quididade, o eixo. ... O mesmo que desfalece, falece. Com o grafite apontado, perfura o órgão atravessador como a consciência da ciência, congela e perfura. Gargalha-se na face. Descarga. Falece. Insatisfatório. Exala. Não significantes. Chave na porta para não virar. Risos escondem, ocultam, mas também aspiram fraudes. Logro satisfatório. ... Latente. Atemporais vermelhos escorriam desnorteadamente. Dilacerado, se abaixa, encosta a lateral esquerda, é cingida pelo gelo. Hiato. Procede. Retrógrado. Amiúde. Deixou a pólvora encostar-se a mim, por quê? Precedentemente, dedilhei nas cartas pra ela o que era pra mim....... ... Encafua/ Esconde. Aí você encontra. Perigo. Já sabe, deixou acesa. Se distancia. Mais uma vez vejo o enxofre das asas das Borboletas de Benjamim 8.

TCCCompor Precisam estar abertas como está. Fecho e abro no mesmo lugar.

2:48 Retorna. Vinga. Anamnese do fitar. O que se espera e se procura, acredita. Em segunda se repete em quinta. Pós que deseja ser o presente. O querer rebrotar processos. Em falas o que No caminho encontrei as borboletas, o peso de sua cor transudavam suas batidas suavemente pesadas, que manavam peçonhas levemente douradas. Distante da casa de veraneio de Benjamim. Decodificaram os voos. Não sei por quanto tempo vascolejaram suas batidas. “A impotência era o sentimento diante da conspiração do vento e dos perfumes, das folhagens e do sol que desconfiava comandar o voo das borboletas” (CASTRO, ANO 2009, p. 205)

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não se fará por acreditar, raízes tríplices, colher o alfa diário. Que transborda, que levanta, deleita. Mirar na última vez, pra relembrar/catarsear o sentido, que move. Calças largas que precisam dobrar. Nãos, nãos serão só deles, mas de si quando não fita, não direciona não sonda. Trocas são diárias, tolerância, recomeço... a felicidade é uma grande valentia de dizeres, ações. A volta que jamais se foi, que não se vá, que não haja cogitar. Os oitos coincidentes pregam as rotações camuflagem/alteram.

"A felicidade exige valentia" 9

Fig. 3: Estreia da peça “Alice Uma Quase Ópera Punk Rock Contemporânea” 10

Conclusão, por quê? Em Procuras se compuseram Atos, antes expostos apenas em vegetais e em tela reluzente. Houve tempos que não se expeliam mais, e vieram outros alicerces, as Borboletas, Pausas, Fricções. Em intervalos as escutas, abraços, aquecem, mas não (des)adoecem. Não querer mais a corrida, mas não se corre sozinho. Estão se fechando; pausa. Retorno. Não descritivo, o presente. Apresento.

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Fernando Pessoa, fonte: https://issuu.com/matcard/docs/a_felicidade_exige_valentia_-_f._pessoa

Teatro Municipal de Vila Velha, 2016. Fonte:https://m.facebook.com/Aliceumaquaseoperapunkrockcontemporanea/photos/ a.1845629049010098/2029422533964081/?type=3&source=54&ref=content_filter. 10

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Referências bibliográficas BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes, 2013. BLANCHOT, Maurice. Uma Voz Vinda de Outro Lugar. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. CAMÕES. Amor é fogo que arte sem se ver. Disponível em:

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O uso do elemento externo e a importância do arquivo no processo de criação Mariana Zanelato Santos Marcelo Ferreira

RESUMO O artigo trata da relevância no uso de “elementos externos” na construção artística e na conscientização sobre a importância dos arquivos produzidos durante o processo de criação, ressaltando a necessidade do levantamento de conteúdos que constituem a “bagagem” do artista, que o direcionam, estimulando na produção e criação artística; e expondo como os registros feitos durante o processo de criação são necessários para o desenvolvimento da obra, estimulando o artista, ajudando-o a traçar caminhos para a conclusão, desta forma, também deixando material para futuras pesquisas. A partir disso, o objetivo geral é avaliar como a utilização de elementos externos, através de uma fusão entre aquilo que já existe, elemento provocador que pode ser ou não estético, e a ideia, sentimento ou vontade do autor, que é o elemento que o atravessa e o impulsiona, pode ajudar como recurso na hora de criar; e como o arquivamento de materiais antecessores à conclusão da obra pode ser uma ferramenta valiosa para o resgate da memória e até mesmo para análise genética e compreensão do trabalho do artista contemporâneo.

Introdução O processo de criação do artista é uma atividade lúdica e só nela o homem é verdadeiramente livre, pois ele próprio determina suas regras. (Friedrich Schiller)

Sabemos hoje, que um dos primeiros passos, e mais importantes, para a criação é munir-se de bons conteúdos e referências estéticas, do mesmo modo, reconhecemos a importância dos arquivos, que servem para além do processo de criação, ampliando seu propósito para, também, registro do processo criativo para futuras pesquisas. Sendo assim, a principal motivação para sustentar o tema proposto reside na importância que o mesmo possui para o desenvolvimento artístico, tanto do profissional quanto para os iniciantes nas 36


Artes Cênicas, e para a arte em si e seus pesquisadores, visando futuras críticas genéticas 11. Logo, podemos constatar que, a influência de elementos externos e a produção de arquivos durante o processo de criação servem como alicerce para o artista, dando suporte e profundidade para a obra que está sendo construída, assim como o estudo da indumentária serve de inspiração e referência para os esboços dos figurinistas e os manuscritos de cientistas para testar suas hipóteses, como um procedimento de investigação. Dessa forma temos um método que significa um caminho para chegar a um fim e atingir um objetivo, uma espécie de controle adotado para obter um desenvolvimento rápido e eficiente até a chegada da conclusão final. Nessa perspectiva, diante de possíveis dificuldades de aspirantes a atores, autores e criadores em geral, percebe-se a necessidade de se avaliar o uso do elemento externo no trabalho de composição, da mesma forma que o arquivamento de tudo o que é produzido durante este trabalho, refletindo sobre seu papel dentro da construção artística, rompendo com a ideia do mero registro, garantindo assim, um material para pesquisas futuras. Portanto, indaga-se: como o uso do elemento externo pode ajudar na composição de um trabalho e qual o papel do arquivo durante e depois desse processo? Para isso, foram planejados os seguintes objetivos específicos: explicar o uso do elemento externo; distinguir inspiração, homenagem e referência; e descrever o papel do arquivo, analisando o processo de criação. Parto da hipótese de que alimentar-se de “elementos externos”, ou seja, constituir uma “bagagem”, serve para ajudar na ampliação do repertório, que é fundamental para iniciar o trabalho artístico. A bagagem é nada mais que o acúmulo de conhecimentos e vivências do artista, que podem ajudar, estimulando na produção e criação, tais conhecimentos e vivências que estimulam o artista é o que eu chamo de elementos externos, pois podem vir de qualquer lugar, podendo ser também: objetos, imagens, vídeos e até mesmo outras obras artísticas. E com a bagagem farta, o artista desenvolve melhor o trabalho durante o processo criativo em busca de sua obra. Devo ressaltar que o elemento externo/bagagem estará para o artista enquanto o processo de criação/arquivos está para a obra, ou seja, a construção da bagagem é um processo crescente e contínuo que o artista faz independente de obra, visando o enriquecimento de seu repertório pessoal, para que, quando o artista começar a trabalhar, caminhando em direção à obra que ele deseja realizar, aconteça a fusão entre bagagem e o desejo deste artista. Na fusão o artista seleciona os elementos externos que melhor se conectam às suas ideias e isso o ajuda a criar, ou seja, a bagagem é uma ferramenta que A Crítica genética é um campo teórico-metodológico que tem o objetivo de reconstituir uma história do texto em estado nascente, buscando encontrar nele os segredos da fabricação da obra. É tornar visível e compreender a originalidade do texto literário ou não, através do processo que lhe deu origem. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%ADtica_gen%C3%A9tica> 11

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promove a inspiração e o despertar criativo, e isso é trabalhado durante o processo de criação. É nesta etapa, durante o processo de criação, que surgem os arquivos, onde o artista passa para o papel suas pretensões, manuscritos com ideias, croquis e observações que o ajudam nas investigações práticas. Nesses arquivos podem conter tudo o que foi escrito, desenhado ou apenas rabiscado durante o processo criativo, também podendo haver gravações de áudios ou vídeos de investigações práticas, e, após a obra chegar a seu estado maduro e conclusivo, esses arquivos se tornarão a gênese desta obra. Assim, para testar a hipótese, ocorre uma pesquisa de finalidade básica estratégica, objetivo descritivo e exploratório sob o método hipotético-dedutivo,

com

abordagem

qualitativa

e

realizada

com

procedimentos

bibliográficos e documentais. Esse artigo se inicia com um memorial descritivo sobre minha trajetória acadêmica, avaliando minha experiência durante o primeiro e segundo períodos de graduação, onde se caracterizam as dificuldades geradas pela falta de repertório, seus efeitos e consequências; mostrando como a utilização da bagagem serviu para melhorar a desenvoltura e compor uma personagem no meu primeiro trabalho como atriz. Logo após, aborda-se a exploração de elementos externos para concepção do repertório pessoal do artista e como são utilizados na composição dos trabalhos de atuação. Em seguida, uma breve discussão sobre as diferenças entre inspiração, homenagem e referência, abordando o modo como são aplicadas em uma obra, utilizando exemplos para simplificar o entendimento. Por fim, observa-se o papel do arquivo dentro do processo de criação, onde os elementos externos que compõem a bagagem do artista se transformam em acervo, que fará parte do patrimônio genético da obra que foi finalizada com a utilização desses elementos. Posteriormente, esse patrimônio genético estará presente nos arquivos do processo de criação da obra e poderão ser revisitados, tanto pelo próprio artista/autor quanto por pesquisadores/críticos genéticos. É realizada uma análise sobre o processo de criação, onde ocorre a fusão, expondo características e dando exemplos, observando o passo a passo, desde a intencionalidade original do artista, passando pelos elementos externos, fatores impulsionadores e métodos utilizados por ele até a conclusão de sua obra e assim lançar um olhar sobre a importância dessa etapa no trabalho do artista. Ao final, concluo que o levantamento de elementos externos, com a construção de bagagem, permite uma resposta eficiente durante o processo de criação, verificando também a importância dos manuscritos desenvolvidos durante o processo e o impacto deles no futuro da obra no qual estão ligados, confirmando a hipótese e indicando que se faz necessária a adoção de tais procedimentos de criação.

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O uso do elemento externo Quando ingressei como aluna em Artes Cênicas, na Universidade Vila Velha, no ano de 2016, eu não sabia quase nada de teatro e atuação, aliás, só tinha como base os chamados “teatros comerciais”, ou então, os teatros infantis, de linguagem simples; e atuar, para mim, era o que eu via em filmes e na TV. Foi então, com o começo das aulas, que veio o choque, entre o mínimo que eu conhecia e o todo que eu poderia descobrir sobre teatro e atuação, fui percebendo que ser um ator era, muito mais, que apenas decorar um texto e ir para a cena confiante. Lembro-me que, no primeiro período do curso, nas primeiras aulas que tive com a professora Rejane K. Arruda 12, eu simplesmente não sabia o que fazer, mesmo que ela explicasse como deveria ser feito o exercício proposto, eu sempre esperava alguns dos meus colegas fazer primeiro, para que eu pudesse me amparar e ter uma luz sobre como fazer quando chegasse a minha vez. No fim da aula, sempre que concluía o exercício, ainda me restava um vazio, como se o que eu tivesse feito não tivesse um efeito construtivo sobre mim, e aquele exercício acabava se tornando um mero acontecimento. Não ter a mínima ideia do que te espera em uma simples aula de corpo, por exemplo, é horrível, e eu conheço bem essa sensação, a sensação de ficar petrificada por não saber como agir, por não ter algo que norteie e que dê segurança para arriscar produzir algo vindo de si. Eu percebi que precisava adquirir repertório, porém estava engessada na ideia de que apenas poderia utilizar bases vindas do próprio teatro, ou então, ser original e criar algo do zero para que pudesse ser válido, e por muito tempo, durante aquele primeiro período, eu ainda tinha essa ideia engessada. Foi durante as aulas de jogos teatrais que eu notei uma diferença, não me sentia nervosa ou perdida, me sentia mais confortável e até mesmo empolgada com a prática, pois aquilo não me era totalmente desconhecido, pois na minha bagagem anterior já existia a Cia. Barbixas de Humor 13, e logo descobri que grande parte dos jogos utilizados por eles vinham

Rejane K. Arruda - Doutora, mestre e graduada em Artes Cênicas pela ECA-USP e especialista em Cinema pela Universidade Estácio de Sá. Atriz em teatro e cinema, encenadora, pesquisadora, coordenadora e professora na Universidade Vila Velha, desenvolvendo pesquisas continuadas em Artes com ênfase em: Estética e Teoria da Cena Contemporânea, Encenação Teatral, Formação do Ator e Pedagogia do Teatro, Interfaces entre a Arte e a Psicanálise. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Rejane_Arruda> 13 A Cia. Barbixas de Humor é um grupo humorístico formado por Daniel Nascimento, Anderson Bizzocchi e Elidio Sanna, o grupo utiliza jogos de improviso com a estrutura de “Quem, onde e o que?” e tem influência, entre outros, da série Whose Line Is It Anyway?, da série cômica inglesa Monty Python; do ator e comediante britânico Rowan Atkinson, famoso pelo seu personagem Mr. Bean; do grupo português Gato Fedorento; dos espanhóis do El Tricicle e da dupla de australianos do Umbilical Brothers. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cia._Barbixas_de_Humor> 12

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de Viola Spolin 14, cujos métodos eram utilizados em aula. Percebi que eram os vídeos de YouTube e programas de TV, nos quais eles apareciam, é que me serviam como base para a prática em aula, me dando mais rapidez no tempo de resposta, pois minha mente já trabalhava em como agir no passo seguinte. Foi o elemento externo, que nesse caso eram os vídeos e programas de TV da Cia. Barbixas de Humor, quem me nortearam durante as aulas de jogos teatrais, me dando segurança e firmeza para arriscar em meus próprios jogos durante a prática, já que eu tinha uma referência para isto. Logo vi a importância que os elementos externos, ou seja, toda e qualquer informação ou material existente, tem para impulsionar e promover uma boa ideia. "O que um bom artista entende é que nada vem do nada. Todo trabalho criativo é construído sobre o que veio antes. Nada é totalmente original." (KLEON, 2013, p.15). Essas informações podem ser imagens, vídeos, movimentos, sons, leituras, trechos de músicas, cenas de filmes e até mesmo elementos orgânicos como lembranças ou sonhos. Guardar tais coisas na memória pode ajudar muito em qualquer trabalho de composição, já que o elemento externo, que pode te inspirar ou servir de referência, somado com a imaginação gera potência, pois o externo vem como atiçador, ele te toca, te faz refletir e no fim te faz produzir. O trabalho de composição bebe de todas as artes, porque estudar e aprender sobre todas as artes é enriquecer a nossa produção como artista. (...) Assista, leia, escute e estude: novelas, ensaios, filmes, pinturas, concertos. O que você vê, ouve e experimenta pode ser aplicado no seu trabalho (...). (BORGART, Anne; LANDAU, Tina, 2017, p. 217)

Isso se confirmou para mim durante as últimas aulas de corpo, onde praticávamos muito o campo de visão 15, e confesso que no começo fazia no automático e isso mais uma vez não era construtivo para mim como artista em formação. A confirmação veio quando a professora Rejane K. Arruda trouxe um acervo de pinturas, entre clássicas, expressionistas e até mesmo abstratas, para que pudéssemos tirar delas a inspiração para nossos corpos durante os movimentos no campo de visão. Naquela hora, não me pareceu possível transformar algo abstrato em ação corporal, mas depois vi que era mais como um alicerce, algo que provocasse o interno para que, ai sim, reverberasse no corpo. Aprendi que o corpo não podia se limitar apenas ao que era cotidiano, mas sim, podia e devia experimentar coisas diferentes, 14 Viola Spolin, nascida em 07 de novembro de 1906 e que veio a falecer em 22 de novembro de 1994, era uma autora e diretora de teatro considerada por muitos como fundadora do teatro de improviso. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Viola_Spolin> 15 Campo de Visão é um sistema improvisacional coral, utilizado como prática do ator, formação de artistas da cena e criação poética de linguagem cênica – investigado há 23 anos por Marcelo Lazzaratto e há 14 anos sistematizado com os atores da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Disponível em <http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/284996/1/Goncalves_MichelleCosta_M.pdf>

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explorando movimentos e adquirindo uma consciência corporal 16, saindo da zona de conforto na qual meu corpo já estava acostumado até então. Antes disso, nunca tinha sido líder de um campo de visão, e neste dia específico existia um fator a mais, fazia uma semana da morte de meu pai. Foi a primeira vez que fui líder do campo de visão, e foi a primeira vez que realmente imergi no ato, pois, naquele momento era a minha pesquisa corporal pessoal, reverberada por um acumulo de sentimentos associados aos elementos externos, que eram as pinturas apresentadas anteriormente e a música tocada enquanto praticávamos. Composição é a prática de selecionar e arranjar componentes separados da linguagem teatral em um trabalho de arte coeso para o palco. É a mesma técnica que qualquer coreógrafo, pintor, escritor, compositor ou diretor de cinema usa em suas disciplinas correspondentes. No teatro, é escrever com os pés, com os outros, no espaço e tempo, usando a linguagem do teatro. (BORGART, Anne; LANDAU, Tina, 2017, p.31)

Foi a primeira vez que meu corpo sentiu a música e dançou com ela, enquanto produzia movimentos nascidos do emaranhado de coisas vindas do meu interior naquele momento. Os elementos externos, que neste caso são as pinturas e a música, se fundiram com a minha necessidade íntima de por para fora o que estava sentindo diante de um acontecimento trágico que havia vivido. Isso foi bom para mim na época, e hoje vejo que, além de bom foi importante, pois foi a partir disso que comecei a utilizar o recurso do elemento externo a meu favor em atividades futuras, além de aprender que o artista das artes cênicas tem toda uma preparação, não só para um trabalho em específico, mas anterior a isso, onde os profissionais sempre estão se aperfeiçoando para estarem preparados.

O teatro é a única disciplina artística que não encoraja ou insiste sobre o treinamento contínuo de seus praticantes. O resultado: atores enferrujados e inflexíveis que muitas vezes se sentem insatisfeitos e não inspirados. (...) O treinamento forja relacionamentos, desenvolve habilidades e oferece uma oportunidade para o crescimento contínuo. (BORGART, Anne; LANDAU, Tina, 2017, p.35)

Sendo assim, após as minhas experiências no primeiro período, comecei a ampliar minha bagagem, a fim de enriquecer meu repertório, buscando elementos que serviriam como ponto de ignição para dar pulsão a qualquer trabalho. Alimentar o repertório é um ato

Consciência corporal é a capacidade de auto-conhecer seu corpo e suas condições físicas. É ter consciência do que seu corpo pode realizar e de que forma, quando em movimento. É ter o corpo como meio de comunicação consigo mesmo e com o meio. Disponível em <https://vivaintegral.com.br/bem-estar/conscienciacorporal/consciencia-corporal-um-conceito-de-vida> 16

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permanente, pois, querendo ou não, estamos sempre consumindo algo novo que pode ser introduzido na bagagem para o enriquecimento do mesmo.

Fig. 1: Alice 17

Então, no segundo período, iniciamos nossa primeira montagem teatral, com direção de Rejane K. Arruda, uma releitura de “Alice no país das maravilhas”. Comecei meu trabalho de pesquisa para a criação de minhas personagens, por sorte eu já tinha o universo de Lewis Carroll 18 na minha bagagem, o que ajudou muito durante o processo criativo, ou seja, eu já tinha esse elemento externo, que eram os livros, filmes baseados nos livros e até mesmo a história de vida do autor, para pulsar todo o trabalho. Como, por exemplo, na construção comportamental da minha personagem “Alice”, onde eu buscava na memória referências em versões cinematográficas que já havia assistido de “Alice no país das maravilhas”, em especial o da Disney, animação de 1951, e um telefilme da NBC de 1999. Esses elementos externos me trouxeram referências para que eu pudesse conceber a minha Alice, principalmente suas ações físicas e como desenhar meu corpo em cada situação vivida pela personagem em cena. 17 Acima a personagem “Alice” do telefilme da NBC de 1999 e abaixo “Alice” (de vestido cinza, com mangas brancas e longos cabelos vermelhos) em cena na peça "Alice Uma Quase Ópera Punk-Rock Contemporânea” no Teatro Cleon Jacques (Curitiba/PR) em 02 de abril de 2017. Fotografia: Virginia Benevenuto. 18 Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll, foi um romancista, contista, fabulista, poeta, desenhista, fotógrafo, matemático e reverendo anglicano britânico. Lecionava matemática no Christ College, em Oxford. É autor do clássico livro Alice no País das Maravilhas, além de outros poemas escritos em estilo nonsense ao longo de sua carreira literária, que são considerados políticos, em função das fusões e da disposição espacial das palavras, como precursores da poesia de vanguarda. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lewis_Carroll>

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Depois das minhas experiências, percebi que o corpo também tem memória, o que quer dizer que ele também possui bagagem. Em “O livro dos Viewpoints: Um guia prático para viewpoints e composição”, as diretoras teatrais Anne Bogart 19 e Tina Landau 20 propõem o treinamento viewpoints, uma filosofia traduzida em técnica para a formação de performers, através de um tipo de construção em grupo e criação de movimento para o palco, neste caso, os viewpoints físicos. Os viewpoints aliviam a pressão de ter que inventar tudo por si mesmo, de gerar tudo sozinho, de ser interessante e forçar a criatividade. Permitem que nos entreguemos, que possamos cair em um espaço criativo vazio e confiar que há algo lá, outra coisa além do nosso próprio ego ou imaginação, para nos captar. Os viewpoints nos ajudam a confiar em deixar algo acontecer no palco, em vez de fazer acontecer. A fonte para ação e a invenção vem até nós a partir dos outros e a partir do mundo físico ao nosso redor. (BORGART, Anne; LANDAU, Tina, 2017, p.37)

As investigações corporais através da utilização dos viewpoints físicos ajudam a desenvolver um corpo para cena, um corpo mais presente e ativo, um corpo que fala. Uma reação espontânea ao movimento que ocorre fora de você; o timing no qual você responde aos eventos externos de movimento ou som; o movimento impulsivo que ocorre a partir do estímulo dos sentidos. Exemplo: alguém bate palma na frente dos seus olhos e você pisca; ou alguém bate uma porta e você impulsivamente se levanta de sua cadeira. (BORGART, Anne; LANDAU, Tina, 2017, p.27)

Parece estranho, mas toda essa investigação corporal é, sim, um elemento externo, pois antecede a criação, são experiências que realizamos em alongamentos, eventuais pesquisas pessoais e ensaios, para que o nosso corpo ative as memórias dessas investigações quando for preciso durante as cenas. Os viewpoints conduzem a um maior estado de atenção, o qual nos conduz para mais escolhas, que nos conduz para uma maior liberdade. Uma vez que você está consciente de toda a gama de possibilidades, não precisa escolher tudo o tempo todo; você está livre e não mais limitado pela inconsciência. A escala aumenta. Você pode começar a pintar com maior variedade e mestria. (BORGART, Anne; LANDAU, Tina, 2017, p.37)

Vale ressaltar que a bagagem não é apenas aquilo que se resgata da memória, podendo ser também tudo aquilo que se guarda materialmente, ou seja, faz parte da bagagem qualquer elemento externo que possa ajudar na composição, assim como no caso das pinturas no campo de visão, os elementos externos provocadores da criação podem ser: imagens avulsas, 19 Anne Bogart é uma diretora americana de teatro e ópera. Ela é atualmente uma das diretoras artísticas da SITI Company, que fundou com a diretora japonesa Tadashi Suzuki em 1992. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Anne_Bogart> 20 Tina Landau é uma dramaturga americana e diretora teatral. Conhecida por seu trabalho em larga escala, musical e baseado em grupos, as produções de Landau apareceram na Broadway, Off-Broadway e regionalmente, mais extensivamente na Companhia de Teatro Steppenwolf, em Chicago, onde ela é um membro do grupo. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Tina_Landau>

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fotos diversas ou conceituais, croquis, etc. Dessa maneira, a ideia é que a bagagem também pode ser uma forma de armazenamento material ou digital, como recortes de revistas e jornais, uma playlist 21 no YouTube, ou uma pasta no computador, cheia de imagens que possam inspirar ou servir de referência para algo, em algum momento. Agora, como saber se o que foi criado não é uma simples cópia do elemento externo escolhido? Não existe uma regra que defina como a mente criadora vai trabalhar os elementos externos em suas obras, contudo podem-se diferenciar os resultados para uma melhor identificação. A seguir, uma síntese abordando as principais diferenças entre os modos de aplicação dos elementos externos durante o processo criativo e na obra final. Inspiração, referência e homenagem Toda boa ideia surge durante o processo de criação e todo processo de criação recebe ajuda de elementos externos para fluir, através da fusão entre o nosso consciente e inconsciente, ou seja, utilizando elementos que já existem no mundo e somando-os a imaginação e desejos da mente criadora, para que, ao final, possa dar existência a algo novo. Agora que sabemos que a bagagem é o conjunto de elementos externos que reunimos para fins de utilização durante os processos criativos como uma ferramenta propulsora de criação, é certo pensar que existe um risco grande em se apropriar daquilo que já existe, afinal, fazer uma copia pode ser o caminho mais fácil, porém, com certeza, é o caminho mais preguiçoso, o que transforma seu trabalho em algo desprazeroso para o público. Por certo, existe uma grande diferença entre se inspirar, usar como referência, homenagear ou simplesmente copiar. Ambas necessitam do elemento externo para acontecer, porém cada uma com sua particularidade. Inspirar-se é transformar o elemento externo em um provocador de ideias, ou seja, é criar algo totalmente diferente, mas partido daquele elemento. Por exemplo, quando o voo de um pássaro te ajuda a criar um movimento de dança, ou então, quando um acontecimento te provoca a performar sobre problemas sociais. Vale ressaltar que, ao inspirar-se, você não usa diretamente o elemento externo para compor a obra, ele apenas vai te provocar o interesse de criar algo novo a partir do que ele te faz sentir. Normalmente, o elemento externo que inspirou o artista só se revelará dentro dos arquivos de criação, e descoberto mais tarde por pesquisadores da genética, às vezes, chegando a passar despercebido pelo público.

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Playlist – Tradução: Lista de reprodução. Neste caso, lista de vídeos para assistir a qualquer momento.

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Fig. 2: Projetos do arquiteto Santiago Calatrava 22, inspirados na figura do corpo humano.

Já a referência, é quando você se apropria do elemento externo para estudá-lo e utilizar os conhecimentos adquiridos através dele para compor etapas da sua obra, ou seja, você desenvolve o seu trabalho examinando outras obras. Por exemplo, quando você utiliza uma imagem para trabalhar um figurino ou um quadro para propor marcações de atores em cena. Normalmente a referência está mais voltada para a estética do que para o conteúdo da obra em si, porém nada impede que a psique de alguém ou algum outro personagem, sirva de referência para a sua própria personagem, mas, neste caso, já entra no campo da influência, que é quando o elemento externo exerce poder sobre você, a ponto de alterar as raízes da obra.

Santiago Pevsner Calatrava Valls (Valência, 28 de julho de 1951), é um arquiteto e engenheiro espanhol cujo trabalho tem se tornado bastante popular nas últimas décadas. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Santiago_Calatrava> 22

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Fig. 3: À esquerda, as referências utilizadas na reprodução de fotos para o exercício de Site Specific, à direita.

A homenagem é quando você se utiliza de fragmentos do elemento externo para compor sua obra, deixando claro para o público de onde veio aquele fragmento para que eles possam associá-lo a fonte original, ou seja, você introduz na sua obra algo daquele elemento externo que seja reconhecível ao público, assim, fazendo uma homenagem a aquele elemento, podendo ser em forma de piada, sátira ou apenas para ajudar a passar uma determinada ideia para o público. Como por exemplo, durante o filme “X-Men”, de 2000, baseado em quadrinhos da Marvel Comics 23, quando o personagem Wolverine reclama dos trajes de couro, o personagem Ciclope responde dizendo: "O que você prefere? Um collant amarelo?", uma homenagem ao traje de Wolverine nos quadrinhos. Ou então, as muitas vezes em que os personagens do desenho “Os Simpsons 24” aparecem caracterizados como ícones da cultura pop durante a abertura. Ou ainda, quando aparecem personagens consumindo outras obras, por exemplo, uma determinada personagem, de uma novela, está na sala assistindo a um filme na TV, filme este que existe no mundo real. Marvel Comics é uma editora de quadrinhos americanos e mídia relacionada a este ramo. Hoje, 2019, a Marvel Comics é considerada atualmente uma das maiores editoras de histórias em quadrinhos dos Estados Unidos e do mundo. Em 2009, a The Walt Disney Company adquiriu a Marvel Entertainment, a empresa-mãe da Marvel Worldwide. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Marvel_Comics> 24 The Simpsons é uma série de animação e sitcom norte-americana criada por Matt Groening para a Fox Broadcasting Company. A série é uma paródia satírica do estilo de vida da classe média dos Estados Unidos, simbolizada pela família protagonista, que consiste de Homer Jay Simpson, Marjorie (Marge) Bouvier Simpson, Bartholomew (Bart) Simpson, Elisabeth (Lisa) Marie Simpson e Margareth (Maggie) Simpson. A série se passa na fictícia cidade de Springfield e satiriza a cultura e a sociedade norte-americanas, a televisão e vários aspectos da condição humana. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Simpsons> 23

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Fig. 4: Abertura de "Os Simpsons" em homenagem às animações da Disney, que foi ao ar pela primeira vez em 24 de abril de 2016.

De certa forma, o problema é que, quando muitos bebem de uma mesma fonte isso faz parecer cópia. Talvez o problema maior não seja a cópia em si, mas sim a ideia de plágio, afinal, no teatro não existem cópias e sim reflexos, como em um jogo de espelho, onde o artista, mesmo traçando o mesmo objetivo ou se utilizando das mesmas marcações, não será uma cópia do outro, mas apenas um reflexo, pois cada artista tem suas singularidades o que difere os trabalhos. Portanto, é sempre bom o artista ter um objetivo claro, uma noção sobre o que ele pretende alcançar e se manter focado nisso, podendo determinar melhor quais funções os elementos externos irão exercer dentro do processo de criação da obra.

O papel do arquivo na criação Conforme foi visto nos itens anteriores, o elemento externo pode ser um grande aliado durante o processo de criação, servindo de combustível para a mente criadora; neste item, observa-se o papel do arquivo, ferramenta material de ligação entre o autor e sua obra, considerando sua importância não só para o passado e presente da obra, mas para o futuro. O processo de criação é como um relacionamento entre o artista e sua obra, é a etapa mais valiosa, não tirando a importância da obra finalizada, mas é no intermediário entre começo e conclusão que se encontram as ideias iniciais do artista/autor, seus questionamentos, suas inquietações a cerca do elemento que o atravessa, seus erros e acertos nas investigações práticas, dúvidas, certezas e o modo como manipulou os elementos externos a seu favor. É 47


durante o processo de criação que acontece a fusão entre a bagagem: aquilo que já existe, elemento provocador que pode ser ou não estético; e a ideia do artista: desejo, sentimento ou vontade, elemento que o atravessa e impulsiona a criar. Ao passo que a fusão acontece dentro da mente criadora, o artista desenvolve meios para externalizar seus pensamentos para que não se percam no fervor da criação. É nesse momento que nascem os arquivos, que são a documentação de todos os anseios do artista enquanto ele cria. Entendido que esses arquivos de artistas são extensões da mente criadora e que funcionam como marcas indiciais do processo de criação, partimos para a compreensão de suas possíveis funções no ato criativo [...] pode-se dizer que são funções dos documentos do processo: armazenamento e experimentação. (CIRILLO, 2019, p.26)

Dessa forma, o artista produz registros das etapas percorridas por ele durante o processo criativo, para que assim ele tenha um olhar ampliado sobre o seu trabalho, simulando um “olhar de fora” para que possa avaliar a própria obra e se orientar a respeito dos rumos que vai tomar. Então, o arquivo é como uma ponte de acesso à obra, como se o artista estivesse de um lado de um rio e quisesse ir para o outro lado, a correnteza é o turbilhão de ideias que povoam a mente criadora, o arquivo serve justamente para salvar o artista de ser levado por esta correnteza a ponto de se afogar, ou seja, o arquivo é a ponte construída pelo artista para que ele chegue do outro lado, que é a obra finalizada. Apesar de, esses manuscritos servirem inicialmente como rascunho, é no processo de criação que o artista escolhe o caminho percorrido até chegar à conclusão da obra, e esse produto final está intimamente ligado não só ao artista que o criou, mas também ao processo que o gerou. Muitas vezes, entretanto, acabada a obra, esses registros são colocados à margem e, raramente, são resgatados fisicamente em um novo percurso gerativo – embora a rede simbólica e mental continue conectando de modo inconsciente todos os estudos na mente do artista em ação. (CIRILLO, 2019, p.14)

Pode se dizer que, os arquivos da criação, antes eram vistos pelos artistas como uma ferramenta descartável, onde seu valor se perde com a conclusão da obra, porém “não obstante, o interesse contemporâneo pelo estudo dos mecanismos e da estrutura do gesto criador devolveu a essas marcas o frescor que lhes é inerente.” (CIRILLO, 2019, p.14). Com isso, os arquivos ganham importância, porém não como a obra, mas como uma fonte de pesquisa para a genética dessa obra. Os documentos são um campo profícuo de reflexões em torno do gênese da obra. É também nesse campo dos documentos de processo, dos arquivos pessoais de artistas, que se pode ter acesso às questões estéticas e conceituais que envolvem um

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determinado projeto poético: é possível verificar as molas propulsoras que nortearam as tendências e as intencionalidades naquela obra ou naquele artista. (CIRILLO, 2019, p.42)

Portanto, o processo de criação é, para o artista, um estado de concentração, onde a mente criadora registra angústias e experimentações, dominando conscientemente as lembranças e percepções, destrinchando suas ideias para melhor conectá-las ao insight 25 inicial, tomando assim, um caminho de construção para a obra. Então, não podemos considerar esses manuscritos só como meros registros, mas sim como uma narração da gênese da obra. Quando se é posto frente a frente com o conjunto desses registos residuais do processo de criação de artistas – os documentos e arquivos pessoais desse processo – está-se diante de um emaranhado de fragmentos, muitas vezes desordenados cronológica, espacial e mesmo formalmente. Essa tessitura de signos que se apresenta contém desenhos, escritos, colagens, rasuras, layers e outros arquivos digitais, pedaços de objetos, maquetes e toda sorte de artefatos pertencentes aos mais diferentes sistemas semióticos que se colocam agrupados ou avulsos. (CIRILLO, 2019, p.13)

Por isso, tudo o que contribui para a criação, de rabiscos feitos em um momento de expurgo a manuscritos rasurados, desenhos, entre outras pequenas coisas que acabam não entrando no produto final, mas que sustentam toda a essência da obra tem seu valor dentro da genética, o que torna importante a preservação dessas coisas através do arquivamento. Assim como, os manuscritos de cientistas para testar suas hipóteses, como um procedimento de investigação, um método que significa um caminho para chegar a um fim e atingir um objetivo, servindo como uma espécie de controle adotado por eles para obter um desenvolvimento rápido e eficiente até a chegada da resposta para o problema; esses arquivos da criação servem, não somente para o resgate da memória, mas também como fonte para que pesquisadores da arte compreendam os mecanismos que resultaram na obra. O armazenamento é uma função claramente verificada nos diferentes tipos de suportes (digital, cadernos, cadernetas, maquetes, etc.), assim como os diversos tipos de anotações e registros (grafismos variados, textos verbais que permitem o desenvolvimento da ideia, colagens, arquivamentos digitais, e toda a sorte de meios que irão variar de um artista para outro); tem como objetivo registrar a ideia no seu frescor e trabalhá-las no sentido de se aproximar da obra a ser apresentada futuramente. Verifica-se que esses arquivos são reservatórios da mente criadora, são experiências sensíveis do sujeito criador registradas, podendo, ou não, ser [re]operadas em obras. Desse modo, os cadernos de artista, como lócus de armazenamento de ideias geradoras, são testemunhos da singularidade do sujeito 25 Insight: clareza súbita na mente, no intelecto de um indivíduo; iluminação, estalo, luz. Compreensão ou solução de um problema pela súbita captação mental dos elementos e relações adequados. Disponível em <https://www.recantodasletras.com.br/mensagens-de-autoajuda/6660667>

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criador e dos esquemas mentais que envolvem o seu processo de criação. (CIRILLO, 2019, p.26)

Dessa forma, os cadernos dos artistas, ganham o papel de diário do processo de criação, onde o artista expõe as etapas do movimento criador, desde a intencionalidade original, passando pelos elementos externos, fatores impulsionadores e métodos utilizados, a fim de alcançar a obra desejada.

Fig. 4: Arquivos do processo de criação de obras da Cia. Di Lata 26.

Além disso, esses arquivos também podem incluir croquis para confecção de figurinos ou desenhos de maquetes para cenário, e até mesmo um rascunho de como será a iluminação do projeto.

Cia. Di Lata é uma companhia capixaba de teatro performativo com sede na Universidade Vila Velha, criada em 2016, formada por atores pesquisadores do meio das Artes Cênicas. Disponível em <https://ciadilata.wixsite.com/website> 26

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Fig. 5: Da esquerda para direita: elemento externo, croqui feito utilizando a referência do elemento externo e, por fim, a obra (vestido).

Assim como, durante pesquisas e experimentações práticas, o artista escreve sobre o que experimenta fisicamente, para que, assim que a escrita gerasse o combustível necessário, ele voltava para a prática, transformando em cena o que foi gerado pela escrita, de modo que o trabalho fique cada vez mais potente, pois além de uma pesquisa corporal, também é aprofundado a diegese proposta. Fato é, os arquivos de criação não são mais apenas considerados como, unicamente, um recurso de recuperação da memória da obra para o artista, no caso do teatro, visando regressar ao processo após um tempo determinado da estreia da obra, podendo assim recuperar a energia perdida com o tempo, para uma nova apresentação; mas sim, são um possível objeto de pesquisa para críticos da genética. A Crítica Genética surgiu com o desejo de melhor compreender o processo de criação artística, a partir dos registros desse seu percurso deixados pelo artista. O interesse pelo modo como as obras de arte são feitas não é novo, assim como os artistas sempre fizeram registros desse processo e, em muitos casos, os preservaram. (SALLES ALMEIDA, 2008, p.12)

Sendo assim, o crítico da genética vê os arquivos da criação como um portal para uma análise mais aprofundada da obra, em busca de um entendimento dos elementos que direcionaram o artista em sua criação, relacionando a obra com o seu processo, desvendando os rumos tomados pelo artista até o amadurecimento da ideia inicial e conclusão da obra. Análise de resultados Para construir este artigo a pesquisa buscou desenvolver conhecimentos que possam ser utilizados para solucionar problemas com a falta de repertório, também buscando 51


evidenciar a importância dos registros feitos durante o desenvolvimento de uma obra, tanto para o artista que cria a obra quanto para o pesquisador, crítico da genética. Para isso, foram utilizados relatos em forma de memorial descritivo para que pudesse ser analisado o problema que originou a pesquisa, passando para o detalhamento de como pode ser utilizado o elemento externo que se encontra na bagagem, ferramenta proposta para ajudar no problema, e por fim, mostrando como o simples ato de registrar o processo criativo pode ser benéfico para o presente e também para o futuro, abordando a hipótese de que tais procedimentos dão uma qualidade maior ao trabalho artístico, argumentando com os referenciais teóricos abordados e observando documentos de artistas que foram apresentados durante o desenvolvimento. No primeiro item do desenvolvimento (“O uso do elemento externo”), descobriu-se que o artista trás consigo um acúmulo de vivências que podem ser acessadas através da memória, assim como também trás os elementos externos com os quais teve contato ao longo da vida. Esse acúmulo, chamado de “bagagem”, se mostrou fundamental para o artista em formação, pois faz parte do repertório que ele irá usar durante seus futuros trabalhos. A bagagem podendo ser memorial, como no caso das vivências, lembranças e sonhos, como também pode ser material, neste caso, o artista pode ter um acervo de elementos externos agrupados para que ele possa acessar quando precisar se inspirar ou procurar por uma referência estética. Esses elementos podem ser ou não evidentes na obra concluída, dependendo de como são utilizados, como exemplificados no segundo item (“Inspiração, referência e homenagem”), podendo só ser revelado através dos arquivos da criação da obra. Por fim, no terceiro item (“O papel do arquivo na criação”), é reforçada a importância dos registros feitos pelo artista durante o processo de criação da obra, tais registros além de servirem de apoio ao artista, simulando um olhar de fora, são os pilares de sustentação da obra em andamento, cujo papel se amplia para além disso, tornando-se a gênese da obra. Esses arquivos são não só um resgate de memória da obra, mas também uma compreensão da mesma, ligando não só o artista à obra, mas também trazendo a tona fatos e elementos que a fundamentam, tornando-se assim uma fonte de pesquisa para a genética da obra, contribuindo para a história da arte. A questão era como o uso do elemento externo pode ajudar na composição de um trabalho e qual o papel do arquivo durante e depois desse processo? Então, minha hipótese era de que a utilização de elementos externos, através da construção da bagagem, serviria para auxiliar no trabalho do artista, estimulando-o na criação. O artista escolheria os elementos externos presentes na bagagem que melhor se conectariam às suas ideias iniciais, gerando assim uma fusão entre o elemento externo e a ideia. Essa seria trabalhada durante o 52


processo de criação, onde se originariam os arquivos, que ajudariam o artista durante a construção da obra e que, futuramente, após a conclusão da obra, tais arquivos se tornariam fonte de pesquisa para críticos genéticos.

Bagagem/ Elementos externos Fusão

Ideia inicial/ Desejo do artista

Processo de criação

Arquivos/ Manuscritos e registros investigativos

Obra finalizada

Crítica genética

De acordo com o que foi apresentado durante o desenvolvimento do artigo, percebe-se a confirmação da hipótese, cujo objetivo era avaliar como a utilização de elementos externos, através de uma fusão entre aquilo que já existia, elemento provocador que pode ser ou não estético, e a ideia, sentimento ou vontade do autor, que é o elemento que o atravessa e o impulsiona, pode ajudar como recurso na hora de criar; e como o arquivamento de materiais antecessores à conclusão da obra pode ser importante para o resgate da memória e para análise genética e compreensão do trabalho do artista contemporâneo. Portanto, verificou-se que a possível resposta para o problema de falta de repertório nos iniciantes das Artes Cênicas, aspirantes a atores, autores e criadores em geral, consiste na aquisição de elementos 53


externos, podendo ser memoriais, orgânicos ou materiais, que o artista trás na bagagem. Verificou-se também a importância dos registros durante o processo de criação, podendo ser manuscritos, desenhos, áudios ou vídeos, que trás sustância para a obra, tornando-se base para a crítica genética. Considerações finais O desenvolvimento do presente artigo possibilitou uma análise de como a utilização de elementos externos pode melhorar o trabalho de composição, já que se entende que para os iniciantes nas Artes Cênicas a falta de repertório pode gerar dificuldades na hora de criar, possibilitando também uma reflexão acerca da importância dos arquivos produzidos durante o processo de criação. Além disso, também permitiu avaliar como se faz necessária a prática de tais procedimentos de criação, a ponto de torná-los um hábito. Diante disso, o artigo teve como objetivo geral reconhecer como o uso do elemento externo pode ajudar na composição de um trabalho e identificar a importância do arquivo durante e depois do processo de criação. Constatou-se que o objetivo geral foi atendido, pois verificou-se que a utilização de elementos externos, através de uma fusão, pode sim ajudar como recurso na hora de criar; e analisou-se a importância dos arquivos produzidos durante o processo de criação da obra, ressaltando sua importância também para futuras pesquisas genéticas. O objetivo específico inicial era explicar o uso do elemento externo através de um memorial descritivo, evidenciando o problema da falta de repertório e avaliando como os elementos externos ajudaram na composição e atuação nos primeiros trabalhos. Este primeiro objetivo específico foi atendido, pois constatou-se a utilidade dos elementos externos durante o trabalho criativo, através da construção da bagagem, tal bagagem que é alimentada pelo artista cotidianamente com elementos que o possam ajudar em seus futuros trabalhos. O segundo objetivo específico era distinguir inspiração, referência e homenagem, tal objetivo também foi atendido, visto que houve uma breve discussão sobre as diferenças existentes entre os modos de uso dos elementos externos, utilizando-se de exemplos para que seja mais simples o entendimento dessas diferenças. Já o terceiro objetivo específico era descrever o papel do arquivo, analisando o processo de criação, que também foi atendido, pois observouse o papel do arquivo dentro do processo de criação, onde os elementos externos que compõem a bagagem do artista se fundem com a ideia/desejo deste artista, sendo trabalhados durante o processo de criação através de registros, que farão parte do patrimônio genético da obra que foi finalizada a partir deles. Evidenciando assim, que posteriormente, esse 54


patrimônio genético estará presente nos arquivos do processo de criação da obra e poderão ser revisitados, tanto pelo próprio artista/autor quanto por pesquisadores/críticos genéticos. Um dos métodos utilizados para o teste da hipótese foi o do referencial teórico, onde foram utilizados citações de livros, cujos conteúdos agregam ao tema da pesquisa, para assim obter um comparativo e por consequência uma afirmação sobre o tema proposto. Foram utilizados também fotos de documentos para ilustrar exemplos dados durante o desenvolvimento do artigo. Sendo assim, houve a confirmação da hipótese através da análise de resultados, pois comprovou-se tanto a relevância do uso de elementos externos quanto a importância que os arquivos produzidos dentro do processo de criação tem para o presente e futuro da obra e da arte em si. E assim, respondendo ao problema de falta de repertório. No entanto, a pesquisa poderia ter sido complementada com possíveis entrevistas feitas com alunos de Artes Cênicas e profissionais da área, para obtenção de dados que comprovassem ainda mais a hipótese ou até mesmo refutá-la. Na falta de múltiplas opiniões a cerca do tema, a pesquisa limitou-se a análise de uma única experiência, diante disso, é possível uma ampliação da análise obtendo uma amostra de dados maior, utilizando-se do método da entrevista.

Dada à importância do tema, torna-se necessário o desenvolvimento de pesquisas mais aprofundadas que visem à melhoria no trabalho do artista contemporâneo, que possam desencadear habilidades para garantir maior qualidade durante o processo criativo, podendo não só economizar no tempo de resposta do artista, como também apontando recursos que são necessários para o aperfeiçoamento na conclusão de obras, assim como, a magnitude do valor atribuído aos arquivos, registros da criação. Nesse sentido, a utilização de elementos externos e a produção de arquivos durante o processo de criação permitem aos artistas contemporâneos realizarem seu trabalho de forma mais rápida e eficiente. Além disso, contribuem para a história da arte, promovendo documentos para pesquisa, motivando o estudo da crítica genética. Referências bibliográficas KLEON, Austin. Roube como um artista: 10 dicas sobre criatividade. Tradução Leonardo Villa-Forte. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2013. BOGART, Anne & LANDAU, Tina. O Livro dos Viewpoints: Um guia prático para viewpoints e composição. São Paulo. Editora Perspectiva, 2017. CIRILLO, JOSÉ. Arquivos pessoais de artistas: questões sobre o processo de criação. 1. ed. Vitoria: UFES-Proex, 2019. SALLES ALMEIDA, Cecília. Crítica Genética: Fundamento dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. São Paulo: Educ, Editora da PUC de São Paulo, 2008.

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Magno Godoy e a Cia Neo-Iaô de Dança: a criação de Stultifera Navis

Marcelo Ferreira

RESUMO O ano de 1986 foi inaugural para a dança contemporânea do Espírito Santo com a estreia de Stultifera Navis (1986), da Cia Neo-Iaô de Dança, dirigida pelo coreógrafo e bailarino Magno Godoy (1952-2008). Relato o arcabouço de origem da Cia de Dança Neo-Iaô, criada por Magno Godoy, e a montagem de Stultifera Navis (1986), que se tornou uma peça emblemática na história da dança. Contextualizo a pesquisa e a criação da obra coreográfica inspirada na tela de Hieronymus Bosch com roteiro apoiado em A História da Loucura, de Michel Foucault. Trata-se do primeiro espetáculo da Cia que, então, se chamava Opus Tupiniquim. A peça estreou no Teatro Carlos Gomes e foi apresentada em Salvador, Brasília e São Paulo. Apresento também, a releitura dessa obra realizada pela Cia Teatro Urgente, em 2010, com supervisão artística de Maura Baiocchi.

Gênese Nossa plateia é o tempo... e está de casa cheia (Magno Godoy).

Trabalho com teatro e dança desde 1980, quando, ainda graduando em Comunicação na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), conheci Magno Godoy cursando a disciplina de História da Cultura. Magno já escrevia, dirigia e atuava em teatro dentro e fora da universidade e também como artista visual. Ele foi o mestre que me iniciou no teatro e na dança. Na UFES, descobri o teatro assistindo e depois participando das Mostras de Teatro que aconteciam como parte da política cultural desenvolvida na Sub Reitoria Comunitária. 56


Todos os Centros Acadêmicos mantinham grupos e participavam dessa mostra, de onde emergiram artistas como Elisa Lucinda, Marta Baião, Magno Godoy, Renato Saudino, Alcione Dias, Rômulo Musiello, Creso Filho, Tião Sá, entre outros. A primeira peça que vi e que mudou radicalmente minha concepção de teatro foi Bumba meu bucho: quando a fome vira folclore (1978) do Grupo Phantasias de Açúcar, formado por Magno Godoy, Elisa Lucinda, Margareth Taquetti, Zanandré Avancini, Hugo Brandião e Jane Fiorini. A peça ganhou melhor espetáculo naquele ano de 1978 e é citada no livro do Oscar Gama (1981). A peça aborda uma visão pós-tropicalista do Brasil dos tempos da ditadura, cheia de referências e citações, numa construção contemporânea de teatro, inédita e revolucionária; uma experiência marcante que me motivou a seguir uma carreira teatral depois de graduado. Em 1980, numa das últimas Mostras de Teatro, estreei junto com Magno Godoy, Universus Sancty di Spirits Federalis, peça escrita em parceria que satirizava a universidade e aproximava-se da linguagem do Grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, do Rio de Janeiro, de Perfeito Fortuna, Hamilton Vaz Pereira e Regina Casé. O espetáculo foi considerado o melhor daquele ano pela crítica do jornal A Gazeta, que cobria a mostra. Na ocasião, ganhei o premio de melhor ator. O Grupo Blululululum, título dadaísta que confirmava a anarquia artística em cena, foi criado para essa montagem e se manteve atuante após a Mostra de Teatro em curta temporada no Cineclube Universitário, com sucesso de público. O Grupo foi reduzido e passou a se chamar Opus Tupiniquim, do qual faziam parte Carlos Délio da Silva Ferreira, jornalista e ex-secretário de Cultura de Cariacica/ES e Paulo Fernandes, bailarino e coreógrafo que mantém atualmente sua Cia Enki de Dança, em Vitória/ES. A artista plástica Adriana Velo participou como atriz e figurinista da montagem de El Gran Nanica Circo (1982), tendo recebido o prêmio de melhor figurino no Festival Nacional de Teatro de S. José do Rio Preto/SP- 1982. Em 1980, uma casa no alto do Morro do Quadro, na Vila Rubim, em Vitória/ES, se transforma num centro de pesquisa e residência onde Magno Godoy e eu nos fixamos para uma “reclusão” criativa. Fase de muitas aulas de dança, ensaios, leituras e apresentações em Festivais e Mostras locais e nacionais. Na Vila Rubim, bairro tradicional de Vitória, as aulas e ensaios aconteciam diariamente, seguindo cronograma rígido. Em alguns ensaios, contávamos com a presença do psicanalista Zanandré Avancini, que propunha temas e argumentos para pesquisa e encenação. Numa delas, Magno sintoniza uma tevê portátil P&B num canal fora do ar e usa o ruído como trilha sonora, remetendo às experimentações de John Cage e Walter Smetak. Vestindo uma saia branca, um lençol amarrado, misto de samurai e mãe de santo, incorporava 57


um xamã multicultural. Emergiram desse contexto alguns dos elementos e o insight que o levou à performatividade das iaôs – os recém iniciados no Candomblé –, anos depois, com a criação da dança Neo-Iaô a partir de trabalho colaborativo com os dançarinos do grupo. A busca era por uma dança contemporânea brasileira. Na sala de dança de D. Edith Bulhões, anexa ao Teatro SCAV, na Avenida BeiraMar, em Vitória, – demolidos para dar lugar a um edifício da burocracia pública –, experimentavam-se novas formas de interpretação e de montagem cênica. Num dos ensaios, Magno chegou de cabelo raspado a zero com máquina. Uma provocação para algo novo que urgia acontecer, uma iniciação. A contemporaneidade expressa pela Cia Neo-Iaô revelava-se como um acontecimento, da ordem do devir, com um discurso cênico apoiado em referências da dança butoh japonesa, candomblé, artes visuais, literatura e cinema. A Cia rompe com as tradições do balé clássico e da dança moderna na dança capixaba, praticada nas academias e Grupos de Dança. Magno foi precursor da dança contemporânea no Espírito Santo, citado em História da Dança: Evolução Cultural (1999) de Eliana Caminada/RJ. Índices da Poética Neo-Iaô A configuração estética, a movimentação e a dramaticidade tinham como premissas a nudez em figuras andróginas trabalhadas com o uso de emplasto, ao invés de tapa-sexo, cabeças e sobrancelhas raspadas, corpos depilados. Para o figurino, foram criadas camisolas longas como se fossem peles, feitas de fardos de malha, compridas na frente e curtas atrás, devido aos movimentos em retrocesso nos quais, andando sempre para trás, caracterizava-se de forma significativa uma incorporação que aludiria às giras dos rituais de candomblé. Um gestual expressionista e a identificação com a possessão no candomblé refletiram-se numa matriz corporal, com apropriações da dança butoh e procedimentos próprios de ritmo e de tempo. Esses elementos foram trabalhados sobre a hesitação em cena, alternando movimentos frágeis e viris, lentidão e mudanças bruscas de ritmo, parando em posturas de composição física exigente. Mãos retorcidas dificultando o ato, punhos funcionando como mãos em negação ao ato; uma máscara facial fixa, catatônica, com o olhar sempre mirando o infinito, hipnotizado, foram alguns dos recursos utilizados em cena. O Grito, obra expressionista do artista norueguês Edvard Munch, é uma referência, assim com as gravuras de Kathe Kollwitz, artista alemã. Uma teatralidade corporal foi desenvolvida em sintonia com o teatro de Grotowski, de Antonin Artaud, no qual o ator é o personagem, sem distanciamento, e a 58


presença cênica, o carisma do ator, marca a intensidade da cena. Nessa concepção, não se representa, mas se vive a cena, como num ritual. Na Oficina Internacional de Dança Contemporânea em Salvador, em 1986, conhecemos a musicista paranaense Jocy de Oliveira, residente no Rio de Janeiro. Conhecida internacionalmente como um dos ícones da musica contemporânea brasileira, Jocy teve como parceiros o compositor russo Igor Stravinsky, o americano John Cage e o francês Olivier Messiaen, de quem gravou a obra completa em piano. Por meio de um intercâmbio, começamos a usar suas composições eletroacústicas e participamos como bailarinos e figurinista de sua ópera Fata Morgana, que estreou no Teatro Municipal de São Paulo em 1991. O compositor e maestro Jaceguay Lins, pernambucano radicado em Vitória, compôs também especialmente para Cia Neo-Iaô, seguindo essa tendência eletroacústica, para dois espetáculos: Voodoo (1996) e Cangaço (1998). O uso da música tem uma função evocativa, de criar uma atmosfera de estranhamento para a cena, sendo que os movimentos apresentados não eram coreografados, mas elaborados, testados nos ensaios e improvisados em tempo real nos espetáculos. Muitas vezes os ensaios ocorriam sem música e a trilha só entrava nos ensaios finais. Os dançarinos compunham suas cenas sem utilizar som em grande parte da montagem. Composições eletroacústicas foram usadas em quase todo repertório da companhia, que também usava os concertos para órgão de Bach. Algumas obras da Cia Neo-iaô foram revisitadas pela Cia Teatro Urgente – Cia que dirijo desde 2003 – e as peças do maestro Jaceguay Lins, que não faziam parte das montagens originais, foram inseridas em Stultifera Navis (2010) e Via Sacra (2010).

Fig. 1: Marcelo Ferreira. Via Sacra – homenagem a Magno Godoy. Teatro Carlos Gomes, Vitória/ES, 2010. Foto: Jussara Martins.

Magno Godoy escreveu um projeto de pesquisa intitulado Neo-Iaô: O 59


Expressionismo cósmico dos mitos da humanidade, mas não foi defendido junto à academia. Um fragmento desse texto está no programa de estreia de Stultifera Navis (1986), no qual Magno relata sua proposição artística: Com base na depressão da miséria do Terceiro Mundo, e a partir de uma configuração futurista das “iaôs” do Candomblé e dos efeitos de uma radiação nuclear, a dança “Neo-iaô” é o resultado de uma performance minimalista que toma da hesitação e da incerteza da técnica butoh, de Kazuo Ohno, um maior sentido de recuo em recusa ao movimento, trabalhando sobre a negação e o medo num retorno profundo ao nosso remoto passado cósmico, aos nossos intergalácticos ancestrais, antes da eclosão do planeta e da concepção da vida. O dançarino troca o desenvolvimento econômico pela essência, rompe as ligações de progresso com o futuro, contém os desejos, estabelece a degradação e a bestialidade e vive as impossibilidades e carências, trazendo à luz uma virilidade frágil e andrógina. Busca a salvação por uma luz distante no infinito cósmico, como sinal de uma civilização extraterrena, a milhares de anos luz além. A concepção estética tem uma atmosfera de sonho e ritual como no teatro “Nô” e no Candomblé, na qual os dançarinos desfilam como flagelos um iconograma lunático e catastrófico da miséria do Terceiro Mundo, como as destruições de uma guerra nuclear, o final dos tempos, o buraco negro, o vazio. O que era uma condição tornou-se estilo. Com a ausência do sexo feminino no grupo, o Opus Tupiniquim incorporou a característica dos “onnagatas” do teatro Kabuki. (GODOY, 1986)

Fig. 2: Marcelo Ferreira e Magno Godoy Via Láctea. Teatro Dulcina, Rio de Janeiro/RJ, 1987. Foto: Carla Falce.

O professor e doutor em Comunicação e Cultura/UFRJ João Barreto acompanhou a trajetória da Cia Neo-Iaô desde o começo. Seja como jornalista ou como pesquisador interessado no discurso da Cia, Barreto aponta índices dessa proposição artística: 60


Quem são essas pessoas do futuro que, andando de costas, chegam até nós? Quem são esses artistas que, colhendo em sua caminhada um tempo louco, derramam no presente uma duração repleta de estranheza? Para não encenar espaços de repetição, artistas com urgência criam em seus espetáculos pequenas inscrições de diferença, misturando mídias, dançando no palco das tradições e suturando as referências mais dispersas. O que não seria repetição em arte? Movimentos altamente destrutíveis, modulações terríveis, dissoluções do ator, do gesto e do próprio teatro, para encontrar na experiência estética uma variação do êxtase e da redenção [...]. (BARRETO, 2004)

E continua: A dança é um design e a coreografia questiona até o entendimento da dança como movimento ritmado, introduzindo síncopes, rupturas, torções e arritmias, como as consagradas caminhadas para trás. E ainda retorcendo tradições das danças orientais, principalmente o Butoh, o Kabuki e o Nô. (BARRETO, 2004)

Kazuo Ohno e a Dança Butoh Em 1986, o jornal Folha de São Paulo publicou matéria de capa no caderno Ilustrada, com foto de meia página em preto e branco do bailarino Kazuo Ohno, mestre da dança butoh, que chegava ao Brasil para sua primeira visita. No SESC Anchieta, onde Ohno se apresentou, em abril de 1986, Magno Godoy, o psicanalista Zanandré Avancini e eu assistimos à obra Admirando La Argentina – La Argentina, pseudônimo de Antonia Mercé, bailarina espanhola à qual Kazuo Ohno homenageia. Ouve-se Toccata e Fuga, de Bach, e uma personagem levanta-se no meio da plateia. O bailarino, então com 80 anos, dirige-se ao palco vestido como uma dama de negro, com xale e chapéu enfeitado com flores, maquiagem branca como uma máscara do teatro Nô. Um tempo hesitante em sua movimentação. Não há linearidade. Nada coreografado, mas criado em tempo real a partir de uma vivência desses movimentos incorporados como linguagem, incluindo o acaso, a hesitação ao executá-los, mas também uma predeterminação. Kazuo Ohno fala de sua experiência no palco: De maneira nenhuma pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise de improviso. Pelo contrário, existe ali um mundo transbordando de coisas. Ou melhor, é como se do nada surgisse uma infinidade de coisas e de acontecimentos, sem que se saiba como e quando. (OHNO, 1986)

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Ushio Amagatsu, diretor do grupo de butoh Sankai-Juku, ensina: “O butoh é mais uma tentativa de articular a linguagem corporal do que transmitir alguma ideia e visa proporcionar a cada espectador uma viagem particular ao seu mundo interior” (AMAGATSU, 1994, pág.8). A dança butoh tem no seu DNA o gestual expressionista. Nesse sentido, nos anos 1930, Kazuo Ohno inicia seus estudos de Neue Tanz (Nova Dança) influenciado pela mensagem humanística da dança expressionista dos alemães Harald Kreutzberg e Mary Wigman. Takaya Eguchi, discípulo de Wigman, era o professor de Kazuo Ohno e um dos precursores da dança moderna no Japão. Ohno, quando dança Admirando La Argentina, traz também movimentos da dança flamenca, nos punhos e mãos retorcidos. A performer e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP Maura Baiocchi, que estudou com Kazuo Ohno, fala da origem do butoh: Com a dança butoh, os japoneses, além de se apropriarem de técnicas ocidentais, conseguiram produzir uma linguagem gestual totalmente nova e ancorada na complexa contemporaneidade de seu país. Uma contemporaneidade nascida de, pelo menos, dois fatos marcantes: a experiência traumática da destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki e o conflito entre o modo de vida ocidental ultramoderno e uma cultura milenar como a do Japão. (BAIOCCHI, 2007, p.42)

A experiência vivida ao presenciar Kazuo Ohno reforçou as pesquisas que a Cia de Dança Neo-Iaô realizava em Vitória e que repercute hoje na poética do Teatro Urgente. A performance se torna mais presença do que representação, mais experiência partilhada do que comunicada, mais processo do que resultado, mais manifestação do que significação, mais energia do que informação.

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Fig. 3: Kazuo Ohno. Admirando La Argentina. Teatro Sesc Anchieta, SP, 1986. Foto do Programa.

Magno Godoy, na estreia de Stultifera Navis, abria o programa com o solo Admirando Kazuo Ohno, com a Toccata e Fuga de Bach e figurino cubista criado por ele e pintado pelo artista plástico e ex-professor da UFES Paulo César Henriques Jeveaux.

A criação de Stultifera Navis (1986) O ano de 1986 foi inaugural para a dança contemporânea no Espírito Santo com a estreia de Stultifera Navis, a nau dos loucos. O argumento para o espetáculo de estreia era a tela Stultifera Navis, de Hieronymus Bosch, e os textos de A História da Loucura, do filósofo francês Michel Foucault – que relata que, na Idade Média, os loucos eram escorraçados das cidades, deportados em embarcações numa viagem sem volta. Produzida, provavelmente entre 1485 e 1500, a tela Stultifera Navis apresenta como figuras centrais três religiosos: duas freiras e um frade, que se divertem com um grupo de camponeses em um estranho barco. O barco tem por mastro uma arvore e um galho lhe serve de leme. Dois homens nus aparecem ao lado do barco, um deles a pedir que encham com vinho a sua cuia vazia.

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Fig. 4: Bosch, Hieronymus. Image The Ship of Fools (1490-1500). Óleo sobre madeira, 58 x 33 cm (23 x 13"). Museu do Louvre, Paris.

O Dr. João Barreto assistiu a montagem em 1986 e comentou:

São os loucos da Stultifera Navis, que assumem a face trágica da loucura: é aquele sujeito incompreendido por apresentar um além-humano, um tipo de superação, que traz uma força arquetípica, que se comunica para além da linguagem. Mas Foucault nos alerta, em sua História da Loucura, que a visão predominante da loucura é a oposta da trágica e é mais conhecida como aquela que considera a loucura como um desvio da norma por não estar ao alcance do discurso científico impregnado de razão. Então, pode-se dizer que a Cia Neo-Iaô, em Stultifera Navis, evoca uma energia oculta, uma força arquetípica de uma loucura trágica, uma experiência de alteridade. (BARRETO, 2015)

A encenação A arquitetura interna do Teatro Carlos Gomes foi usada como cenografia e transformou-se num navio. Dos camarotes do segundo andar, eram lançadas escadas de corda para que marinheiros descessem até o cais – a plateia. Marinheiros também descarregavam 64


sacos de café, saindo do fosso do Teatro. Carregavam também uns aos outros como sacos, empilhados no palco, misturados aos de café, formando esculturas. Na cena final, um linóleo azul cobria todo palco. Um mastro e uma vela pintada com o símbolo dos lunáticos eram erguidos por um dos dançarinos-marinheiros. Os personagens do Frade e da Freira executavam uma coreografia recuperando movimentos hieráticos do teatro kabuki. Um grupo nu segurando cuias se arrastava ao redor do barco e outro personagem tentava alcançar um frango amarrado no mastro do navio. No cartaz e programa de Stultifera Navis, há uma citação da frase emblemática de Michel Foucault que está em A História da Loucura: “A frágil razão humana navega no furor do universo, e a vitória cabe à grande loucura abissal” (FOUCAULT, 1972, p.54). Por ocasião da estreia, em 1986, o crítico de cinema do Jornal A Gazeta, escritor, dramaturgo e cineasta Amylton de Almeida, falecido na década de 1990, foi convidado para dirigir um trailer comercial para divulgação na TV. Amylton escreveu uma resenha crítica que foi publicada no programa de estreia de Stultifera: O trabalho do Grupo Opus Tupiniquim, por sua urgência e atualidade, sempre foi confundido com vanguarda. Na verdade, o grupo sempre dispensou as facilidades desses enquadramentos, assim como estética e particularmente lutou contra todas as limitações culturais, informativas e sociais [...]. É como se, de repente, a contemporaneidade fosse introduzida no sempre risível mundo teatral e dançarino de Vitória. O Opus Tupiniquim investe contra a mediocridade, o mais ou menos, o morno e o passivo, com tamanha fúria intelectual que não restará nada após a apresentação do espetáculo Stultifera Navis (a nave dos loucos), que se baseia em teorias discutidas por Michel Foucault, por imagens de quadros de H. Bosch, e pela própria condição de sufoco em que vivem esses quatro artistas/dançarinos/atores. (ALMEIDA, 1986).

Num dos últimos ensaios no Teatro Carlos Gomes, antes da estreia, o artista mineiro radicado em Vitória Fausto Aguiar (in memorian) desenhou algumas cenas como se fosse um story-board:

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Fig. 5: Fausto Aguiar. Stultifera Navis. Ilustração em grafite sobre papel, 1986.

Sobre a obra da Cia Neo-Iaô de Dança e sua importância no cenário das Artes Cênicas, a Dr.ª Cássia Navas, professora do Mestrado e Doutorado em Artes da Cena na UNICAMP/SP, escreveu: Nos percursos da Neo Iaô (1986-2001), dirigida pelo artista múltiplo Magno Godoy, cada espetáculo e intervenção marcavam-se por uma estética original. Dela se abria todo um debate ético, cada obra transformada em manifestação política. Vida e obra se misturavam na carreira de Ferreira e Godoy, espraiando-se em posturas de afirmação de raça e gênero. Por exemplo, em uma Vitória do começo dos 80, Magno vestia “tailleur e coturnos” para produzir os espetáculos e receber os convidados das inovadoras mostras de dança propostas e organizadas por Ferreira. Na arte da Neo Iaô – e nas atitudes de seus artistas – estava uma parte da dança contemporânea brasileira. Arte contemporânea em seus sentidos de origem – no traçado exato das subjetividades de cada intérprete e nas relações fluídicas estabelecidas com meios ambientes da cultura e da natureza, vislumbradas em coreografias de palco, mas também em praias, cachoeiras e galerias de arte. Propõem-se travessias na arte do Brasil, no trato com vários de seus campos. A Neo Iaô, de Magno e Ferreira nos trouxeram revoluções, revelando-nos uma Vitória surpreendentemente moderna e original. Salve Magno Godoy! Que tendo já nos deixado, por sua arte marcou de poesia a cultura de sua geração. (NAVAS, 2013).

Stultifera Navis revisitada (2010) Após o falecimento de Magno Godoy, em 2008 – aos 56 anos, vítima de um aneurisma, após apresentação seguida de debate da obra Manguezal, na Escola de Teatro e

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Dança FAFI, em Vitória, resolvi homenageá-lo revisitando algumas obras referenciais da Cia Neo-Iaô. Em 2010, a partir de um prêmio de Residência Artística da Secretaria de Estado da Cultura do ES, convidei a diretora Maura Baiocchi para fazer a Supervisão Artística da remontagem de Stultifera Navis, já com o Teatro Urgente. Maura Baiocchi escreveu no programa de estreia: Passados 24 anos da estreia de Stultifera Navis, Marcelo Ferreira decide embarcar outra vez nessa nave, para, além de resgatar e documentar um momento-marco da produção artística independente capixaba, jogar-se num processo radical e amoroso de (des)construção de cenas e gestuais anteriormente concebidos por Magno. (BAIOCCHI, 2010).

Com um elenco de cinco atores-bailarinos, mantive o gestual Neo-Iaô, com seus movimentos e expressões, e os figurinos, camisolas longas na frente e curtas atrás, criados por Magno Godoy. Nos acréscimos à obra original, uma cenografia com imagens em vídeo do mar como se fosse um portrait ao fundo, e a trilha original de Raphael Newman, que usou efeitos sonoros de submarino na composição. As personagens do Frade e da Freira, que, no original, usavam figurino inspirado no teatro Kabuki, na remontagem mantiveram as camisolas em vários formatos como peça única. Durante os ensaios, Maura Baiocchi sugeriu que toda movimentação fosse feita sem o uso de elementos cênicos, objetos e adereços. Tudo feito com gestos, luz, trilha e vídeo. A reestreia foi no Teatro Carlos Gomes e, como programa de abertura, apresentei o solo Admirando Magno Godoy, em que contracenava com sua imagem no vídeo Via Sacra. Referi-me à homenagem que Magno havia feito a Kazuo Ohno na estreia de Stultifera Navis, em 1986.

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Fig. 6: Magno Godoy. Via Sacra. Porta do Sol, Tiwanaku/Bolívia, 1988. Foto: Marcelo Ferreira.

Fig. 7: Marcelo Ferreira. Stultifera Navis, Itaipava, 2012. Foto: Ivny Matos.

Em 2012, essa nova versão de Stultifera Navis foi exibida em cidades do Espírito Santo via Edital de Circulação da Secretaria de Estado da Cultura, incluindo uma apresentação especial em site specific na praia de Itaipava, município de Itapemirim. A locação escolhida foi um píer, tendo o mar como cenografia. Toda encenação, feita no final da tarde, culminando com o por do sol, foi gravada em vídeo e proporcionou ao público, que encontrava-se sentado em cadeiras formando uma semi arena, a sensação de estar assistindo à gravação de um filme, num set ao ar livre, pela proximidade com os atores e o cenário real, 68


sujeitos a intempéries como o efeito do vento sul muito forte no dia da apresentação, o que foi aproveitado como efeito especial.

Fig. 8: Cia Neo Iaô. Em cena: Magno Godoy, Marcelo Ferreira. Ao fundo: Paulo Fernandes e Carlos Délio S. Ferreira. Stultifera Navis, 1986. Teatro Carlos Gomes. Foto: Carla Falce.

Fig. 9: Cia. Teatro Urgente. Em cena: Marcelo Ferreira, Marcela Cavallini. Stultifera Navis, 2010. Teatro Carlos Gomes. Foto Jussara Martins.

Considerações finais Magno Godoy foi o precursor da dança contemporânea no Espírito Santo.

A

apreciação de sua poética, híbrida de teatro, dança, performance, artes visuais e audiovisuais

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– a Cia Neo-Iaô também produziu vídeo-dança –, revela um artista em sintonia com as pesquisas que se desenvolviam nos grandes centros. Em sua última entrevista, concedida à TV Educativa do ES em 2008, ele dizia que o reconhecimento é muito importante para o artista. Disto ele se ressentia: da falta de apoio por parte do governo, da iniciativa privada e da mídia, aos grupos e artistas que optaram por continuar realizando seus trabalhos no estado. Na Escola de Teatro, Dança e Música FAFI, onde exibia o solo Manguezal, ele dançou pela última vez, deixando um legado de obras coreográficas – algumas das quais registradas em vídeo –, vídeo-dança – incluindo Via Sacra, gravada em Tiwanaku/Bolívia, Ouro Preto e Brasília – e Último Jesuíta, gravado nas Cataratas do Iguaçu e nas ruinas da Redución de Jesus, no Paraguai, que recebeu menção honrosa no Festival de Cinema de Vitória. A história das Artes Cênicas do Espírito Santo precisa ser contada e registrada. Temos poucas publicações a esse respeito e a memória, assim, escapa. Esse artigo, desenvolvido como um relato de artista, recupera uma poética significativa, tornando-a referência para futuras pesquisas e apropriações estéticas.

Referencias Bibliográficas BAIOCCHI, Maura. Dança Veredas d´alma. São Paulo: Ed. Palas Athena, 1995. CAMINADA, Eliana. História da Dança: Evolução Cultural. Rio de Janeiro: Ed. Sprint, 1999. FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. GAMA, Oscar. História do Teatro capixaba: 395 anos. Vitória, ES: Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1981. GODOY, Magno. O Expressionismo Cósmico dos Mitos da Humanidade. Vitória: Projeto de Dissertação de Mestrado (não publicado), 1987. SILVA, Marcelo. A Poética do Teatro Urgente: no eixo do teatro pós-dramático. Vitória, Dissertação de Mestrado (não publicada), 2018.

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Do Intrateatro à Poética da Catarse: O processo criativo de Leonardo Sauvignon Allan Maykson Longui de Araujo Marcelo Ferreira da Silva

RESUMO A partir da práxis desenvolvida nos encontros do Intrateatro trabalhamos a hipótese de que a catarse arranja-se como um encadeamento interno implicando a produção de presença. Para sustentar esta hipótese, descreve-se práticas de pesquisas laboratoriais, evidenciando procedimentos de resgate de afetos e de conteúdos autorreferentes, experimentados in performance no monólogo Leonardo Sauvignon. São utilizadas proposições de Hans-thies Lehman e Renato Cohen em interface com Jacob L. Moreno. Chega-se à conclusão de que os princípios do Intrateatro desdobram-se como potentes ferramentas de criação, apontando para uma poética específica desse trabalho, a Poética da Catarse.

Quando a criação de um sujeito ficcional é na verdade uma recriação de nós mesmos os elementos performativos se confundem com os teatrais, em outras palavras, é um atuar-se (Rolando Záphas)

Intra é um prefixo do latim, que significa dentro de, no interior de. Teatro – no latim theatrum -significa literalmente lugar para olhar. A partir dessas informações é possível elaborar uma ideia prévia de Intrateatro, no entanto, sua gênese não partiu da etimologia, mas sim da experiência e do interesse em um teatro de dentro, que operasse de dentro para fora e a partir do fora transformasse algo dentro. Sua gênese é Arteterapêutica. Logo após me graduar em Pedagogia ingressei na pós-graduação em Arteterapia, no Instituto Fênix de Ensino e Pesquisa, situado em Vitória-ES. Pelo fato de já ser músico, poeta - e na época também desenhava e pintava -, o nome da especialização me pareceu atraente. 71


Nessa formação tive contato com referências e experiências que ampliaram meu olhar sobre a vida e a arte, principalmente no que diz respeito ao potencial terapêutico desta última. A Arteterapia – resumidamente – se articula a outros campos do saber e diferentes linguagens ancorando sua caraterística artístico-vivencial em práticas e procedimentos multiexpressivos que engendram, sobretudo, a produção simbólica. Ela se utiliza das linguagens expressivas e do corpo para promover saúde e bem-estar. (ARAUJO, 2018) No módulo Linguagem Cênica em Arteterapia tive o primeiro contato com o teatro de uma maneira crítica e reflexiva 27, e como um instrumento de trabalho que o profissional arteterapeuta poderia usufruir em seu setting 28. Refletimos sobre a utilização na linguagem cênica como ferramenta de autoconhecimento à luz de teorias como o Teatro do Oprimido (Boal); o

Psicodrama

(Moreno) e o Teatro Terapêutico numa abordagem junguiana (Wendell 29). Percebi, neste encontro, que questionar complexos com o corpo (de uma maneira integral e orgânica) poderia ser potente para alcançar maior compreensão sobre mim mesmo 30. Percebi também que coisas guardadas há anos, como afetos, memórias e conteúdos reprimidos, encontraram um meio para se externarem. Surge, neste momento, meu desejo em estudar Artes Cênicas, engajado em doar meu corpo à experiência. Em 2016 ingressei no curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha (UVV). Em contato diário com procedimentos de corpo, voz e jogos teatrais, a vontade de me questionar com o corpo foi se lapidando à medida em que eu escrevia meus devaneios em meu blog 31, suscitando hipóteses, procedimentos de pesquisa, alguns objetivos e principalmente articulando diálogos teóricos necessários para fundamentar a investigação. Nas aulas, eu utilizava com frequência algum conteúdo interno 32 para jogar 33, o que sustentava a minha ideia de o teatro vir de dentro e fomentava minha crença no poder transformador da linguagem teatral. Durante reflexões e perturbações sobre o processo metamórfico o qual eu estava vivenciando e registrando através de um caderno de ator e de Antes minha relação com teatro era como personagem e assistente de produção em peças escolares amadoras. Espaço de atendimento constituído de configurações específicas para cada perfil de atendimento. O setting de um psicanalista, por exemplo, é diferente do de um arteterapeuta. 29 Ver mais em WENDELL, N. O teatro terapêutico em uma abordagem junguiana. In C. Carneiro & C. Maciel (orgs.), Diálogos criativos entre a Arteterapia e a Psicologia Junguiana (pp. 102-128). Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012. 30 Chamamos este processo de autoconhecimento de individualização, conceito central da Psicologia Junguiana, para definir o processo pelo qual o homem torna-se uma unidade autônoma, indivisível e total. 31 A escrita do blog era um instrumento avaliativo nas aulas da Profa. Dra. Rejane Arruda. Encontra-se no endereço www.intrateatro.blogspot.com . 32 Defino conteúdos internos as memórias, complexos, questões autorreferentes, situações, afetos, traumas, conteúdos reprimidos, entre outros. 33 O jogo aqui se refere aos procedimentos teatrais, trabalhos de corpo, aquecimentos e jogos teatrais propriamente dito. 27 28

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poemas (e mais tarde no blog), cheguei ao nome que definiria não só a minha pesquisa, mas a minha causa enquanto pesquisador teatral: Intrateatro, o teatro de dentro. No final do primeiro semestre (2016/1) pleiteei uma bolsa de Iniciação Científica da UVV com a pesquisa titulada Intrateatro: procedimentos cênicos aplicados à Arteterapia. Fui selecionado e iniciei as investigações com um grupo voluntário de pouco menos de dez pessoas. Concomitantemente eu desenvolvia investigações pessoais através do processo de montagem de Alice: Uma Quase Ópera Punk-rock Contemporânea

34

, em que a construção

dos meus personagens consistiu em encontra-los dentro de mim, uma primeira implicação para se investigar as contribuições do Intrateatro para a Pedagogia do Ator. O Intra 35 se dedica à pesquisa na interface Arteterapia e Artes Cênicas, e tem seu princípio prático no desdobramento dos conceitos junguianos de Introversão e Extroversão 36, o que Jung 37 definiu como Tipos Psicológicos. Não é nosso interesse adentrar profundamente no vasto estudo sobre os tipos psicológicos uma vez que acabaríamos por nos distanciar do objeto desta pesquisa, mas cabe esclarecer brevemente que Jung definiu como extroversão a atitude daqueles que “partem rápidos e confiantes ao encontro do objeto”, e de introversão a atitude daqueles que hesitam, recuam, como se o contato com o objeto lhes infundisse receio ou fosse uma tarefa demasiado pesada” (SILVEIRA, 1997, p.45). Podemos inferir que, no caso dos indivíduos considerados introvertidos, o objeto lhes suscita afetos internos: há uma elaboração prévia de uma ideia e de conceitos em torno do objeto (trabalho interno), que vai se externalizar com uma determinada atitude. Já nos indivíduos considerados extrovertidos, há o desejo de interagir com o objeto para então se criar uma ideia e um conceito sobre ele. Logo, percebemos um trabalho externo (a experiência) que se relaciona com o interno (a formulação de uma ideia ou conceito), e assim reciprocamente. Os tipos psicológicos possuem variações, que são as funções de adaptação do indivíduo à realidade externa, ao mundo objetivo. Não adentraremos a esses detalhes uma vez que no Intra nos concentramos no desdobramento da Introversão e da Extroversão: a Introversão apresenta-se como “ações internas” a partir do manejo de materiais internos, vedados ao outro, porém, torna-se visível através de ações pequenas e Direção de Rejane Arruda, no qual eu interpretava cinco personagens. Fui indicado ao prêmio de Melhor Ator no 4º Encontro Capixaba de Estudantes de Teatro (ECAET), em 2017. 35 Uma abreviação para facilitar a leitura. 36 Ver mais em JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. 2 ed. Tradução de Maria Luiza Appy. Petrópolis, RJ: Vozes, 1980. 37 Trabalhou ao lado de Freud, que o considerou príncipe herdeiro do império que a Psicanalise representava na época. No entanto, a inclinação de Jung ao etéreo, oculto e improvável, levou ao rompimento (1912) de uma relação, que segundo Freud, assegurava o futuro da Psicanálise. Após a ruptura, Jung cria a Psicologia Analítica, que, tal como a Psicanálise, representa um importante legado para os estudos sobre o inconsciente. 34

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atividades realizadas nos momentos de pesquisa pessoal, de resgate de memórias, situações, questões, complexos, traumas, e outras situações que o participante deseja trabalhar na vivência. Já a Extroversão apresenta-se clara e expansivamente por meio das “ações externas”, nas quais a fisicalidade dos participantes denuncia o trabalho interno (introversão) que escorre no corpo. A Extroversão pressupõe a vivência de situações ou conteúdos autobiográficos através do corpo, portanto, no Intratearo “questiona-se com o corpo”, “enfrenta-se com o corpo”, “defronta-se o próprio corpo”, “procura-se com o corpo”, “conhece-se com o corpo”, “testemunhase com o corpo”. (ARAUJO, 2018, p. 134)

Uma vivência de Intrateatro consiste de 4 etapas: (1) a Introversão, (2) Pesquisa pessoal, (3) Extroversão e (4) Troca energética. A Introversão é operacionada pelo que chamei de ações introvertidas. É o que acontece internamente (vedado ao público 38) quando o experienciante 39, através do corpo em posição neutra, traz suas memórias, afetos e situações autorreferentes engendrando uma pulsão que mais tarde desenhará ações (nas etapas seguintes). Na figura 1 a Extroversão (linha mais espessa que também faz referência ao corpo visível) e Introversão (linha mais fina, que também se refere ao que está dentro do corpo, vedado ao outro), encontra-se num estado de neutralidade, que também desenha o corpo neutro do experienciante. À medida em que o experienciante resgata (ou acessa) seus conteúdos internos, a Introversão cria pulsão internamente, gerando um trabalho interno que encosta gradativamente na tessitura corporal, externando ações, ou seja, inicia-se a segunda etapa: Pesquisa Pessoal 40 (figura 2), que se caracteriza pela experimentação livre de ações corporais, uma forma de expressar com o corpo os conteúdos internos acessados.

Fig. 1: A introversão ou Ações introvertidas. Fonte: criação do autor.

38 É um paradoxo, uma vez que o fato de o experienciante estar parado em posição neutra pode-se considerar uma ação. O que está vedado ao público são os conteúdos internos que o participante, neste momento, resgata. Isso é o que chamamos de ações em introvertidas. 39 Damos essa nomenclatura uma vez que os participantes são atores e não-atores. Ao entrarmos na Poética da Catarse, o participante passa a ser reconhecido como performer. 40 Termo utilizado por Rejane Arruda nas aulas práticas do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, para designar aos atores que experimentassem livremente ações corporais.

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Fig. 2: Pesquisa pessoal. Fonte: criação do autor.

A segunda etapa pode estar entre a espontaneidade e a diretividade, como quando experimentei ações de furar, puxar e empurrar o ar 41, explorando o estado de pulsão que os conteúdos internos exerciam no corpo. A terceira etapa, denominada Extroversão se caracteriza pela tensão entre introversão e extroversão. Nesta etapa o corpo se entrega a uma “vida interior” fazendo-se lembrar do corpo-em-vida de Eugênio Barba, em que há uma organicidade 42, uma manifestação corpórea de uma qualidade específica de energia, um estado mental alterado, presente. Os atores alcançam uma qualidade corporal que borra ao espaço-tempo. São ações dilatadas, soltas e expansivas, que desenham um corpo estranho, vivo e poético:

Fig. 3: A Extroversão, Ações Internas. Fig. 3: A Extroversão, Ações externas. Fonte: criação do autor. Fonte: criação do autor.

Exercícios promovidos por Rejane Arruda nas aulas de corpo, a partir da sua pesquisa de desdobramentos das ações primárias de Laban. 42 Ver mais em FERRACINI, Renato. O Treinamento Energético e Técnico do Ator. Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, 2012. 41

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Esta etapa se mostrou profundamente terapêutica, porque a qualidade energética do corpo e o estado psicoemocional dos participantes os levavam a encarar de frente seus conteúdos internos. Uma ação genuinamente catártica e potencialmente cênica. Eis mais uma implicação para se chegar à Poética da Catarse.

Fig. 4: A Troca Energética. Fonte: criação do autor.

Após a explosão de afetos, é parte das obrigações de um arteterapeuta fazer com que o experienciante retorne ao seu estado psicoemocional natural, para que este saia do sentting capaz seguir com suas atividades cotidianas normalmente. Este é o objetivo da quarta etapa: a troca energética. É uma troca literal de qualidade corporal: a atividade intensa da Extroversão (dilatação, ação, expansão) desloca-se para dentro, torna-se trabalho interno, enquanto o efeito da Introversão (ação não aparente) escorre para o corpo até que este se paralise e a vivência termine. É importante sublinhar que cada etapa era direcionada por mim, enquanto mediador. Para as apresentações 43 (que aconteceram somente no PerformaES 44) criamos alguns sinais de transição entre uma etapa e outra. Apesar de o Intra constituir-se como uma ferramenta terapêutica através da linguagem cênica, a pesquisa reverberou muitas questões sobre seu potencial cênico: De que maneira o Intra estaria à serviço da cena além de estar à serviço da vida? Caso partisse para a segunda opção, deixaria de ser intra, e perderia seu potencial transformador? Como o intra se resolveria esteticamente, uma vez que na prática terapêutica

Disponíveis em < http://intrateatro.blogspot.com/2019/05/apresentacoes-do-intrateatro.html> Acesso em maio de 2019. 44 Evento semestral de mostra cultural do Curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha. 43

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não havia esta preocupação? De que maneira a catarse poderia constituir-se enquanto poética? Em suma, o Intra se dedica à pesquisa na interface Arteterapia e Artes Cênicas, abrange a investigação prática e teórica de um corpo que abre 45, dos afetos, da catarse, do autobiográfico. Os sintomas dos procedimentos do intra implicaram algumas hipóteses do que é agora a investigação da Poética da Catarse que, sobretudo, questiona a já questionada Arte e Vida no teatro.

A catarse A kátharsis (do grego), atualmente, é um termo problemático e de interpretações múltiplas desde a sua definição na Poética de Aristóteles como uma função da tragédia sobre o espectador: a de purificar seus afetos ou emoções. Silva (2009), reúne em seu artigo algumas compreensões em torno da catarse aristotélica as quais podemos destacar a fim de constatar as numerosas interpretações acerca do termo: a catarse como a “busca do justo meio da ética aristotélica” 46; como um “processo purgativo das emoções dos espectadores” 47; como “proporcionadora de uma clarificação intelectiva” 48; como “o processo de purificação que ocorre no interior do drama trágico e não em seu espectador ou leitor, tese esta conhecida como interpretação dramática ou estrutural da catarse” 49. Vemos em Rosa (2007) que Adorno rejeita com veemência o efeito catártico purificador de Aristóteles: “De uma kátharsis puramente emocional, vinculada a uma arte que busca cooptar o âmbito afetivo do sujeito, ele quer distância” (p. 52). Para Adorno, a mimese defendida por Aristóteles era enganosa. Lehmann (2007) explica que “A mimese da dor significa a princípio que a tortura, o tormento, o sofrimento corporal e o terror são imitados, sugeridos de maneira enganosa, de modo que a sensação dolorosa surge na dor representada (p.355)”. Todavia, no tetro pós-dramático encontramos uma resposta para tal conflito: ele [o teatro pós-dramático] expõe a circunstância, antes latente, de que o teatro, como prática corporal, não só conhece a representação da dor mas também experimenta a dor, o corpo no trabalho de representar (idem). 45 Lembrando do artigo de José Gil, Abrir o corpo. Ver mais < https://pt.scribd.com/doc/152315631/Abrir-ocorpo-Gil-pdf>. 46 “Tese esta defendida por Daniel Hensius, John Milton, Ingram Bywalter, Twining e Gothold Ephraim Lessing.” 47 “Interpretação psicopatológica da catarse feita Jacob Bernays, seguida por H. Flashar e W. Schadewalt, entre outros”. 48 “Como acreditaram Leon Golden e Alexandre Nícev”. 49 “Defendida especialmente por Gerald. F. Else.”

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O conceito adorniano de catarse também se difere da catarse de Freud e Breuer, que se trata do processo terapêutico de descarga emocional que resulta no desaparecimento de sintomas neuróticos. A catarse adorniana está entrelaçada à ideia de “ampliação do grau de consciência” e o “aumento do conhecimento” (ROSA, 2007, p.9). Assim, sinalizo pontos de intersecção da catarse adorniana em relação Brecht

50

e

Boal 51, este último com o Teatro do Oprimido. Brecht não quer o ator envolvido com as emoções do personagem, tampouco com suas próprias emoções. É um teatro que denuncia a teatralidade, como se recordasse ao público que a cena não passa de uma representação. Produzia um efeito de afastamento (ou de distanciamento) dos espectadores com a fábula, para que estes pudessem questioná-la. O ato de questionar, de contestar, estabeleceria o efeito catártico (embora Brecht se quer cite catarse em sua obra). A participação do público no Teatro do Oprimido, fazia dele um Espec-ator, ampliando a consciência de si mesmo e seu papel na sociedade. Ao agir num contexto teatral, o Espec-ator deixava sua condição de oprimido e poderia se tornar protagonista de sua história, exercendo e exigindo seus direitos como cidadão, como um efeito de conscientização, entendido com catarse. Não obstante, os efeitos da catarse em Adorno “em lugar de purificar as emoções, ou por meio das emoções, [...] o que vai ser submetido à limpeza é tudo que esteja obstruindo a consciência do sujeito, a ignorância, o não-saber, a alienação” (ROSA, 2007, p.52). Já Moreno (1997) procurou determinar o que era catarse de uma maneira em que seu sentido se diferenciasse de “da felicidade, do contentamento, do êxtase, da satisfação de necessidades etc.”(p.66). Ele encontrou a fonte de produção de catarse: na ação dramática espontânea. A encenação de certas ações produzia o efeito de transparência no seu pacienteator 52. Esse efeito, para Moreno, denomina-se catarse (ALMEIDA, 2010, p.76). A concepção de teatro em Moreno reside neste como extensão da vida, e não a mimese (como em Aristóteles). A ênfase da imitação, na situação psicodramática, “não está naquilo que imita, mas na oportunidade de recapitular problemas irresolvidos num contexto social mais livre, mais amplo e flexível” (MORENO, 1997, p.65-65) Assim, “a catarse é gerada pela visão de um novo universo e pela viabilidade de um novo crescimento (a ab-reação e a descarga das emoções são apenas manifestações superficiais)” (idem, p.65). Poeta, dramaturgo e encenador do teatro alemão, uma das personalidades teatrais mais marcantes do século XX. 51 Foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras do teatro contemporâneo internacional. Fundador do Teatro do Oprimido, que alia o teatro à ação social. 52 Assim eram denominados os clientes da psicoterapia de Moreno. 50

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Grotowski 53 identificou a catarse no teatro quando este ainda estava vinculado à religião, apontando sua característica de liberar energia espiritual da congregação ou tribo, “incorporando o mito e profonando-o, ou melhor, superando-o”. O espectador, ao se conscientizar de sua verdade pessoal na verdade do mito – através do terror e da sensação do sagrado -, “atingia a catarse” (1971, p. 9). Costa (2017, p.14) sublinha que Grotowski defendia um treinamento a partir da impulsos físicos gerados por estímulos emocionais do ator, intentando que tais impulsos reverberassem na plateia. Por isso seu desejo por um público crítico, participativo e disposto a vivenciar uma experiência de co-presença, e como descreve Moreno (1997), em que o espectador “co-sente os acontecimentos” (p.67). Grotowski (1971) dá indícios sobre os feitos de “purgação” que seu Teatro Pobre 54 causa em seus atores, apontando, mais uma vez, para os efeitos catárticos de processos criativos no teatro, à medida em que discorre sobre conceitos como autopenetração, autosacrifício, apontando para uma harmonia interior e paz de espírito como resultantes de seu processo criativo. (p. 30-31) Ele ainda aponta seu espetáculo como “uma forma de psicoterapia social” referindose ao espectador, e pode ser também para o ator, caso este tenha se entregado inteiramente à sua tarefa (p.30). Artaud (2006) propõe um teatro que age sobre nós como uma “terapia da alma”, um atravessamento que marca e não se esquece (p.96). “Tudo que age é uma crueldade. É a partir dessa ideia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar” (idem). Em Moreno (1997) “A catarse começa no ator quando este representa seu próprio drama, cena após cena, e alcança o clímax quando ocorre a sua peripécia”(p. 65). Relacionamos a peripécia à Etapa 3 do Intra quando Introversão e Extroversão se tencionam: o conteúdo interno gera pulsão e desenha um corpo dilatado, que explora o espaço-tempo espontaneamente. No Intrateatro, os participantes descreviam sensações de alívio das emoções em torno do conteúdo autobiográfico que utilizavam durante o processo. No procedimento do Intra denominado O poço 55 uma participante não queria parar suas ações afirmando que os afetos ainda estavam impregnados no corpo e precisavam ser gastos. Aqui reside um dos 53 Foi um diretor de teatro polaco e figura central no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda. Seu trabalho mais conhecido em português é "Em Busca de um Teatro Pobre". 54 O recurso fundamental é o corpo do ator e a sua presença. Sem efeitos sonoros que não fossem a voz, com roupas simples, cenários sem delimitações. Ver mais em Em busca de um teatro pobre, Jerzy Grotowski. 55 Os participantes interagiam com diversos objetos dispostos no centro de um mandala gigante cuja circunferência foi construída com as mesas do setting. Fantasias, brinquedos, máscaras, fogo e até mesmo as mesas foram explorados. Observei a insurgência de personas e arquétipos. Esse procedimento durou aproximadamente 4 horas ininterruptas.

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sentidos de catarse que tematizamos neste estudo: o de gastar os afetos, a fim de compreendê-los, dissipá-los, desdobrá-los, organizá-los internamente, perdoá-los e libertá-los também. Gastar os afetos parte de um desejo de lançar para fora o que perturba dentro. Há um desejo de comunicação, de pronunciamento, enunciação, insurgência, imergência, de tornar-se expressão. A catarse é um fenômeno quando o corpo se permite ser um acontecimento. Ela produz ressonâncias que desbordam num corpo cuja alma transborda. Ela é fenômeno do momento presente. “O momento presente representa o ápice, o ponto de chegada de um processo que é desenvolvido durante o espetáculo, fato que gera resultados específicos” (BONFITTO, 2013, p.145). Nesta investigação, a catarse assume ambivalências que partem de um desejo consciente do performer de tensionar latências, materializar afetos, transformar a “matéria rústica” em “matéria fina” 56, rasgar a sua presença em cena, abrir o seu corpo, afertar-se-me. Catarse é presença!

A Poética da Catarse em Leonardo Sauvignon Leonardo existe. Perdemos o contato há alguns anos, e por essa e outras razões, ele não sabe da existência de um espetáculo que carrega o seu nome. Esse fato é importantíssimo para nosso estudo, porque à medida em que proponho que Leonardo saiba que nossa história se transformou em um monólogo fruto de nossas memórias e afetos, este trabalho assume uma natureza performática, por provocar um rasgo na realidade, intervir na vida de alguém e exceder o momento presente da apresentação. Todavia, à medida em que, em cena, abro espaço para minha multiplicidade de vozes, egos, idiossincrasias, aliados a uma experiência estética no aqui-e-agora 57, este trabalho assume a sua segunda natureza: a performativa (Féral 58) ou pós-dramática (Lehmann). É importante sublinhar que as características supracitadas não definem o espaço “entre” a performance e o performativo, tampouco objetivam delimitar uma e outra, e menos

Bonfitto (2013, p. 143) cita um ensinamento de Gurdjieff acerca do efeito de transformação que um “precioso uso da energia” seria capaz. 57 Na Gestalt-terapia significa estar presente na realidade, consciente do agora, reconhecendo suas potencialidades e capacidades no hoje, não se fixando nem no passado, tampouco no futuro. 58 Lehmann cunhou o termo Pós-dramático no final dos anos 90, que abarcou centenas de formas teatrais pósdramáticas já existentes 30 anos antes do termo ter sido criado – o teatro experimental, por exemplo. Enquanto isso, essas formas teatrais não convencionais existiam numa borda quase que anônima, entre o drama e a performance. No entanto, Josete Féral julga mais conveniente o termo performativo para essas formas teatrais, uma vez que a “performatividade está no centro de seu funcionamento” (FÉRAL, 2009, p.197) 56

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ainda conceituá-las. Entendamos tais colocações como substanciados aspectos que interconectam-se à Leonardo Sauvignon e à Poética da Catarse. Para Lehmann (2007) “A imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da “arte performática”. (p.223). Ele ainda aponta outras caraterísticas do teatro pós-dramático como duração, instantaneidade, simultaneidade e irrepetibilidade, o compromisso com a experiência e com o processo, a não-atuação e a produção de significações. É um teatro de tensões (Baiocchi e Pannek), de pulsão, de descontinuidade, de fragmentação, subversão, transgressão, de presença, de ausências, de ruído, de imprevisibilidade, de deformações, incertezas e devires. Estes aspectos se enquadram na poética aqui estudada. Considero a Poética da Catarse uma “terapêutica da alma” 59. Está em seu cerne a autotransformação através da reelaboração de afetos, do resgate de memórias, do permitir-se ser movido (pelos afetos bons ou maus 60) para aprender a mover-se(r). A busca do desenvolvimento pessoal é um dos princípios centrais da arte de performance e da live art. Não se encara a atuação como uma profissão, mas como um palco de experiência ou de tomada de consciência para utilização na vida. Nele não vai existir uma separação rígida entre arte e vida. (COHEN, 2002, p.104)

A Poética da Catarse vai servir-se de afetos e linguagens para elaborar a sua própria linguagem, esta que investigamos em Leonardo Sauvignon, um monólogo autoral que qualifico como uma performance poética musical. Discorrerei a seguir sobre os aspectos deste espetáculo, que também bordeiam a linguagem da Poética da Catarse.

Atuação e Presença Atuar-se (Záphas, 2017). Na poética em estudo o objeto da performance é o si mesmo. Trabalha-se na primeira pessoa do singular. O sentido do Eu borra-se às camadas do performer, levantando inquietações entre o atuar-se na performance e o aturar-se no mundo. Há uma linha tênue, difusa e borrada entre vida e arte, dualidade preponderante da performance e do teatro pós-dramático.

Tal como para Artaud em seu Teatro da Crueldade (vide página 12). Ver mais em “Espinosa – a origem e natureza dos afetos”. Disponível em < https://razaoinadequada.com /2014/07/15/espinosa-origem-e-natureza-dos-afetos/> Acessado em maio de 2019. 59 60

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Fig. 5: Performer com seus poemas sobre Leonardo. Fotografia: Laysa Santiago

Lehmann afirma que “a presença provocante do homem” é o que está em evidência no pós-dramático, não a encanação de uma personagem (2007, p.225). Especulo: com que presença a Poética da Catarse está lidando? Quais conexões, tensões e desvios? Desde o início da graduação em Artes Cênicas me inspirei no corpo decidido 61 de Eugênio Barba 62, no corpo-subjétil 63 de Renato Ferracini 64, na ação-devir de Bya Braga 65 e tantos outros conceitos supracitados de Grotowski, Artaud, Boal, Moreno, Lehmann e por último Cohen, para refletir sobre a presença, seus estados e construção. Em Gumbrecht (2010) 66 A palavra "presença" não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa "presente" deve ser tangível por mãos humanas - o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso "produção" no sentido da sua raiz etimológica (do latim producere), que se refere ao ato de "trazer para diante" um objeto no espaço. Aqui, a palavra "produção" não está associada à fabricação de artefatos ou de material industrial. Por isso, "produção de presença" aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos "presentes" sobre corpos humanos. (p. 13)

Uma qualidade corporal na qual "eu não decido, eu já estou decidido" (BARBA, 1995). Autor italiano, pesquisador e diretor de teatro. Fundador e diretor do Odin Teatret, criador do conceito da Antropologia Teatral 63 Ver mais em FERRACINI, Renato. Lume: 20 anos em busca de organicidade. Revista Sala Preta, v.5, São Paulo, 2005. 64 Ator do Lume, pesquisador e doutor em Artes Cênicas pela Unicamp. 65 Ver mais em BRAGA, Bya. Ator de prova: questões para uma ação-física coral. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2007. 66 Hans Ulrich Gumbrecht é professor de literatura comparada e pesquisador na Stanford University, responsável por pesquisas relacionadas à estética, identificação, temporalidades, latência e "materialização da presença". 61 62

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Percebemos um efeito afetivo da construção de presença em Gumbrecht, o que sustenta não só a Poética da Catarse, mas contempla o estado paradoxal da atuação contemporânea, entre o ser presente e o estar presente, numa co-criação com o tempoespaço-público. Nesse sentido “os corpos são causas uns dos outros” (BAIOCCHI; PANNEK, 2007, p.57), performer e público se inserem numa tessitura permeável, cuja porosidade não só permite atravessamentos como também deseja atravessar. Os corpos “misturam-se de acordo com suas paixões e estados” (idem). Podemos inferir que a produção de presença suscita uma urgência do agora, um diálogo, uma afecção na qual as presenças se trocam e o corpo se afeta engendrando sentimentos e sensações, como no processo de introversão e extroversão no trabalho do Intrateatro. Desta maneira encontramos princípios da catarse em entrelaçamento com conceitos de presença e aqui reside a crise da personagem. O ator lida com a sua presença em cena, mas também com uma co-presença, ou um não-eu meu

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, que diz respeito ao que pertence à

personagem que por ora ele experiencia em cena. A questão da presença do ator na performance pode ser paradoxal ao ponto de confundir o espectador sobre o que de fato está diante dos seus olhos: uma fábula? Uma história real? Uma dramaturgia pessoal? É lógico que quem atua sabe que esta "vivência do instante-presente" não é privilégio da performance art, mas sim de qualquer tipo de atuação; só que na performance você estará mais presente como pessoa e menos como personagem do que no teatro, onde esta relação é inversa. (COHEN, 2002, p.110)

Féral (2009) ressalta o engajamento total do artista com um dos principais cernes da performatividade, quando este coloca “em cena o desgaste que caracteriza suas ações (Nadj Fabre).” Não necessariamente de um cansaço corporal, ou uma energia intensa como encontra-se em Grotowski, mas uma entrega de si mesmo pelo artista, “uma presença fortemente afirmada que pode ir até uma situação de risco real e implica um gosto pelo risco”. (p.207) O estado de presença forja, portanto, uma afirmação do ator, com seu corpo inteiro e orgânico, de maneira que ele esteja numa experiência única, assumindo riscos e mostrando um fazer, nas palavras de Féral (idem), afirmando “a performatividade no processo” (p.209). Termo de Gaston Bachelard, que o autor não constitui enquanto conceito, mas utiliza para a sua fenomenologia da criação/imaginação, que o ajuda a pensar a função do externo (do que não é eu, um não-eu), do mundo, a partir de um devaneio poético. Ver mais em BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 67

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Assim, podemos refletir sobre a função do ator/performer enquanto um produtor de acontecimento ou o corpo como o próprio acontecimento. O acontecimento engendra-se à medida em que performer e público abrem-se para a experiência de afecção. A afecção tem a tarefa de atingir os corpos presentes, como a “produção de presença” de Gumbrecht e como a extroversão do Intrateatro, gerando no espectador afetos, que o traz para o aqui-e-agora, na imediatidade da experiência. O ator preenchido num estado de presença (Barba), produzindo presença (Gumbreht), será capaz de entregar-se ao público como sacrifício (Grotowski), afirmando sua performatividade (Féral), e in performance produzindo catarse ao mesmo tempo em que produz uma poética cênica rica enquanto linguagem. Linguagem da cena Processo, risco e permeação (Cohen, 1998). Poesia, música, composição. Eu como ponto de partida. Produção de símbolos in performance e a simbologias e significações presente nos objetos, no cenário, na vocalização, na reflexão que provoca. A espontaneidade da criação, a co-criação, o descontrole, a ação inflamada (ou catártica), a provocação. O impacto em ser atingido pelas palavras e em atingir. O instante presente, o aqui-agora, o rito. A performance se estrutura, portanto, numa linguagem "cênico-teatral" e é apresentada na forma de um mixed-media onde a tonicidade maior pode dar-se em uma linguagem ou outra, dependendo da origem do artista (mais plástica no Fluxus, mais teatral em Disappearances). (COHEN, 2002, p.57)

Criação O monólogo interior (Kusnet, 1992) como dispositivo de resgate de memórias e elaboração do subtexto que poderá escorrer não só no corpo, mas no texto performativo, que se cria com o público durante a atuação. Pesquisa pessoal espontânea 68 como preparação corporal. Procedimentos de repetição de palavras, ações e músicas, a fim de gerar pulsão, catarse e “condução alteração a outros estados de consciência” (COHEN, 2002, p. 74). A repetição tem a função de impregnar afetos em determinada ação. A lógica é que à medida em que se repete uma partitura física e se concentra na ação de repetir, os materiais trabalhados anteriormente escorrem para o gesto tornando-o forte, às vezes até convulsional, como um vômito do corpo, levando à uma ação catártica. 68

Vide página 7.

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Fig. 6: Criação de monólogo interior antes do espetáculo. Fotografia: Júlio Gabriel

O exercício de repetição lembra o treinamento energético de Ferracini, uma vez que se dá através de ações livres, podendo utilizar-se de um repertório corporal preestabelecido, testar e misturar exercícios com o objetivo de explorar o próprio corpo e o espaço e também alcançar um estado de memória alterado de sorte que o ator esteja presente no aqui-e-agora se afetando e produzindo a sua catarse. O treinamento energético quase não possui regras formais. Os movimentos podem, e devem ser aleatórios, grandes, ocupando todo o espaço da sala e sempre devem ser realizados de maneira extremamente dinâmica, englobando todo o corpo e principalmente a coluna vertebral. A única regra primordial: nunca parar. Pode-se, e deve-se, sempre, variar a intensidade, o ritmo, os níveis, a fluidez, a força muscular, enfim, toda a dinâmica das ações, mas nunca parar. Parando, quebra-se o “fio” condutor e desperdiça-se toda a energia trabalhada até aquele momento. (FERRACINI, 2012, p. 95)

Este exercício, nas salas de ensaio, é responsável por mesclar os conteúdos autobiográficos (memórias da minha história com Leonardo), os materiais internos 69(como o monólogo interior por exemplo) e externos (as músicas improvisadas e mensagens de texto que Leonardo nunca respondeu) mais os procedimentos de repetição. Me deixo fluir durante o Treinamento Energético por algumas hoas, produzindo um estado de devir-corpo, um corpo-acontecimento, um corpo que gritava ações (Braga), que convulsionava em formas e gestos dilatados, estranhos, sendo atravessados pelos afetos plásticos que iam e vinham e escorriam na tessitura corporal. Encontro em Bia Braga (2007) uma descrição muito precisa sobre essa sensação que apreendo como um fenômeno catártico:

“São uma produção do sujeito “com ele mesmo” – sem passar pela sua inserção no olhar e na escuta do outro. Já os materiais externos são compartilhados nas relações sociais” (ARAUJO, 2018, p.135-136). 69

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O sujeito se dissolve nas suas vozes internas e grita ações. Ele se trans-figura, transpõe, se exalta, transcria e até se deforma ou paralisa. Às vezes histeriza. A essência histérica na ação vem a ser um excesso humano possível, aceitável e pode ser até admirável numa composição cênica. (BRAGA, 2007)

Para se chegar à presença, neste contexto, é preciso trafegar as vias da dor e visualizar o que se mostra nas calçadas do sofrimento. Leonardo Sauvignon também é uma reflexão sobre o que está entre amor e término e entre Arte e Dor 70.

Texto Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. (BONDIÁ, 2002)

Insurgente, fenomenológico, efêmero. O texto parte do monólogo interior, que é uma escrita silenciosa em que – nesta poética - o performer resgata seus conteúdos autorreferentes através da palavra. O monólogo (1) preenche o corpo de afetos que por sua vez escorrem em cena, (2) escoa na produção de um texto performativo 71, (3) articula-se às possíveis palavras escritas pelo público promovendo o discurso e (4) compõe-se nas entrelinhas da música improvisada com as palavras do público. O texto performático e suas significações pessoais pulsiona uma “voz que desborda e ultrapassa toda palavra 72” Em Leonardo Sauvignon existe um jogo de conotações com o vinho Travessia. O texto não existe, é criado in performance interligando minhas memórias pessoais sobre Leonardo 73, os monólogos interiores que desenvolvo antes de cada apresentação, o diálogo com os significados de Travessia e a interlocução com as palavras que o público escreve à medida em que degusta o vinho. Assim, o texto “[...] se torna mais presença do que representação, mais experiência partilhada do que comunicada, mais processo do que resultado, mais manifestação do que significação, mais energia do que informação”. (LEHMANN, 2007, p.143) Na Poética da Catarse o texto é efêmero, porque acontece na relação de coexistência com o público, depois morre. Resenha do Prof. Marcelo Ferreira, após a primeira apresentação de Leonardo Sauvignon. Disponível em http://intrateatro.blogspot.com/2018/11/sobre-arte-e-dor-dialogando-com-mostra.html 71 “Texto que se cria na performance” (CARSON, 2015, p. 581) 72 Ferreira (2007) apud Alves; Novais (2013). 73 É uma pessoa com a qual eu me relacionei durante alguns meses. Nosso término foi imposto. Como perdemos o contato há alguns anos, Leonardo certamente não sabe do monólogo em questão neste estudo, tampouco sabe deste estudo. 70

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Fig. 7 e 8: Interação público, vinho e texto. Fotografia: Laysa Santiago

Música A repetição e seu potencial de condução a um estado de consciência alterado, se mostrou iminentemente criativa, resultando no refrão “e se for demorar, por favor vá embora”, as outras partes da música são composta in cena mencionando as palavras que cada expectador ofereceu em troca da degustação do vinho. Na performance, como descreve Cohen (2002), a música não se compõe harmônica ou de maneira linear, como na ópera wagneriana, em que ela “se integra com a dança, ambas são suportadas por um cenário, uma iluminação, uma plástica que se compõe num espetáculo total” (p.50). A música, em Leonardo, embora seja uma composição harmônica, possui um traço de performatividade, uma vez que a letra não está pronta, ela surge e depende das palavras ofertadas pelo público. A música, nesta investigação, ocupa um lugar de tonicidade. Eu arriscaria dizer que a catarse acontece nesse momento, por várias razões: a minha inclinação para a música é visível nas minhas habilidades com os instrumentos, com a palavra, com a composição e com os improvisos, além disso, ler as palavras do público me afeta, porque eles descrevem como foram atingidos. Cada palavra que me atravessa durante a performance precisa voltar como ressonância numa música que se compõe na hora. “[...] a voz é uma ressonância do acontecimento” (LEHMANN, 2007, p.126). Pulsão, ação, criação e espontaneidade, geram catarse. .

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Fig. 9, 10 e 11: Criando uma música ao vivo com as palavras escritas pelo público. Fotografia: Laysa Santiago

O público Constatada a participação marcante do público, resta a ele a função de testemunha da dor (LEHMANN, 2007, p.125). O público é um álibi, quase um réu que participa de uma entrega e que também entrega e dispõe fatias de si. O público lê poemas, empresta palavras, experimenta vinho, se afeta, relembra, resgata, se vê, se olha, se perde, se encontra, se desperta, se empresta. O público e sua ativa participação integra a noção de work in progress, pelo fato de uma construção mútua e irrepetível. A propósito a irrepetibilidade é um aspecto em relevo na Poética da Catarse: nunca será a mesma música, nem o mesmo texto e as possíveis mesmas palavras nunca estarão na mesma ordem e nunca comporão a mesma canção, tampouco implicarão os mesmos afetos, e nem afetarão as mesmas tessituras, nuances, bordas, porosidades e devires. Na Poética da Catarse, tão efêmero quanto a palavra e o som, é a própria presença, a do espectador e a do performer. É que na experiência estética da catarse, ao emergir, olhamos para dentro. E, nas palavras de Jung, “quem olha para fora sonha, quem olha dentro desperta”, assim, a presença também revela a sua efemeridade.

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Fig. 12, 13 e 14: Participação do público na criação do texto. Fotografia: Laysa a Santiago

Considerações finais Mais que expor respostas, esta pesquisa nos dá margens para a proposição de perguntas. A Poética da Catarse se circunscreve numa poética cênica contemporânea, enquadra-se ao movimento do teatro pós-dramático, encontra amparos dialógicos na performance, fundamentos no Psicodrama, e provoca discussões em torno do afeto e claro, da catarse, termo praticamente extinto da cultura cênica contemporânea. O fato de catarse estar à margem da produção teórica das Artes Cênicas, implica provocações. Embora, historicamente, tenha se tornado um termo problemático, e as Artes Cênicas tenha criado seu próprio discurso enquanto ciência, deduzo que os princípios da catarse estão imbricados no trabalho atoral performativo, mas com outra roupagem, substância e até nomenclaturas: Pulsão? Combustão? Sphota (Brook)? Deixo esta provocação pessoal. Percebemos que o encadeamento de conteúdos autorreferentes (ou internos) pulsiona o performer a um estado catártico, cujos efeitos no Intrateatro são canalizados para um processo terapêutico, e os efeitos nesta poética, são canalizados para o processo de criação cênica. Considero que a participação ativa do público provoca afetos, e que a catarse é produto dos afetos. A partir desse pressuposto, acredito que este estudo margeia uma investigação da catarse do público, numa perspectiva contemporânea, considerando 89


semelhanças e dissonâncias da concepção aristotélica e interconexões dos múltiplos conceitos em demais áreas, como no Psicodrama. O processo criativo do

espetáculo performativo Leonardo Sauvignon – que

enquadra-se na “melancolia pós-dramática” de Lehmann (2007, p.126) - contribui para a Pedagogia do Ator, uma vez que agrega para o campo de pesquisa cênica diálogos, interconexões, práxis, e sobretudo, provocações, fortalecendo a inclinação da arte como lugar produção de conhecimento, reflexões e ciência. “Fazer a peça em cena impõe a descoberta de uma linguagem [...] ativa e anárquica, na qual tenham sido abandonadas as delimitações habituais entre o sentimento e as palavras” (BAIOCHI; PANNEK, 2007, p.32). Por fim, a Poética da Catarse se ampara na linguagem do devir, do saber da experiência, nas linhas do afeto e da verdade pessoal que se derrama em cena. Caminha nos trilhos da memória que fere, do pensamento que omite, das sombras que se escondem. Ela é som, palavra e pulsão. Seu fim mais perigoso é o risco frequente de encontrar-se.

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Ausência em potência: arte como exercício experimental das diferenças Leonardo Cetto Giori Maria Carolina de Andrade Freitas

RESUMO Este artigo visa investigar as correspondências que permutam entre o sujeito e a experiência visual inaugurada a partir do modernismo nas artes visuais. O movimento modernista progrediu através do tempo abrindo caminho para as emergências de uma nova sensibilidade e relação com o espaço. Procuramos compreender como essas transformações alteraram o modo como encaramos o objeto estético, e mais precisamente, a obra de arte na contemporaneidade. Para tal tarefa, acionamos a dinâmica oscilatória apresentada por Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha, na qual é discutida a proposta de uma operação de perda vinculada a visualidade. Ao sofrer a força de um olhar, a obra de arte cinde em dois mecanismos: a aproximação, mas também o afastamento; a distância e a ausência perseguem o sujeito, problematizando a ordem do saber. No entanto, é justamente a aparição dessa contradição que nos habilita a observar com mais clareza a potência do trabalho sensível que a arte oportuniza.

Apontar um caminho para a vida é coisa mais difícil. A vida são todos os caminhos, e perdidos e nunca achados. Mas todos despertados pela presença de um tempo e de um espaço, pela magia que se instaura no amanhecer dos acontecimentos que os entrelaça vivos de sentido. Mesmo na impossibilidade, a vida resiste em acontecer. Determinante é o encontro, onde tudo se efetua por intensidade. Há forças que correm para um lado, e circulando. Para outro e voltando. Trânsito de matéria sensível que percorre e salta as distâncias topológicas que nos atravessam: acompanhando e prosperando o tempo, atingindo o espaço orgânico; do que volta a si mesmo, de maneira inorgânica, do que é transcendental em nós. É apostando na transcendência que fazemos um salto rumo à matéria, inscrevendo-nos em pedra, em tela, em barro, em fotografia e filme, em comunhão com o espaço, e a favor de sobreviver ao tempo, registrando a memória de cada instante que nos foi intenso, para marcar que ali houve vida, desprendimento do espírito. 92


A arte abre caminho nas ações do homem como oportunidade exemplar para o desterro das impossibilidades, vindo a potencializar o curso das infinitas linhas sensíveis que deslizam o sujeito pelo tempo; nos submergimos, i.e., constituímos o mundo a partir de uma condição poética, tratamos sempre quando possível, de desafiar o instituído sendo pensadores, experimentadores e criadores em meio ao imenso devir que possibilita a vida. Nos interessa neste artigo, conversar com a nova sensibilidade inaugurada pela modernidade, na qual se produziu no sujeito não só uma nova experiência de mundo como de relação com o espaço. Sendo assim, investigaremos alguns aspectos referentes à dinâmica sujeito/obra de arte contemporânea e sua relação com a visualidade. Uma vez que o modo como estabelecemos visualidade passa por sucessivas transformações conforme o curso do desenvolvimento sociocultural, pensaremos o modo contemporâneo de ver e fazer arte, e consequentemente de produzir sentidos e diferenças; todo olhar tem como potencial a transformação do mundo, sua construção e reconstrução a partir de suas experiências sensíveis.

I - Obra de arte e objeto estético Percebemos com frequência a dificuldade em se distinguir os estados do objeto segundo o modo de visualidade do sujeito. Alçar vislumbre requer cautela. Pairando entre a dinâmica sujeito e objeto existe uma névoa que entrelaça seus limites relacionais, tornando precipitado propor definições definitivas, tanto para ambos como para seu modo de relação. No entanto, há de se promover propostas de aproximação, e faremos isso pactuando com o excesso 74 da maquinaria subjetiva dos eventos, afetos, ideias, sentidos, significados, e assim por diante; resignificando o excesso como puro meio. Aproximação do objeto, mais especificamente da obra de arte, por uma via da relação. De acordo com o esteticista e filósofo existencialista francês Mikel Dufrenne (1973), a obra de arte faz referência ao objeto percebido enquanto estético; e o objeto estético é o objeto esteticamente percebido. Quando se alude a obras de arte se diz de objetos estéticos que se tornam presentes ao sujeito a partir de uma percepção estética. O objeto compreende não só obras como os objetos naturais, portanto, seu campo é mais amplo. O objeto estético e a obra de arte são distintos, no sentido em que a percepção estética deve ser unida à obra de arte para que o objeto estético apareça. No entanto, isso não significa que a obra de arte seja real e o objeto estético ideal, como se o primeiro existisse como uma coisa no mundo e o último como representação ou significação em consciência. Além disso, não há razão para atribuir o monopólio de uma existência não dependente ao objeto estético. Todo objeto, incluindo objetos naturais e obras de arte são consideradas como coisas dadas no mundo cultural, portanto, objetos de consciência (DUFRENNE, 1973, p. 65)

Mas é que para mostrar o excesso, sem que sejamos engolidos por ele, precisamos do fragmento. Parece-nos que fragmentos produtivos são aqueles que carregam a intensidade do excesso em si, sem começo, e sem fim. (Excesso, Cristina Ribas, 2014) 74

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É relevante desenlaçar que sujeito e objeto, ou seja, espectador e obra são considerados aqui, atores com paridade de pungência e influência, ambos promovendo contrariedades, e possibilidades; existe certo esquema de reenvio de informações entre eles: o objeto não é passivo frente ao sujeito. É natural portanto, traçá-los como entes livres de significação, de determinação causal, intencionalidade objetiva ou especificidade. O que os determina é seu modo de relação, é algo entre eles. Como observa Dufrenne, a obra de arte permanece como uma possibilidade permanente de sensação. O conjunto sensível se transforma em ideia que a consciência tende a reanimar. Assim, a obra de arte é tudo isto que suscita o objeto estético, ela é uma matriz de sensações, é uma potencialidade ou uma possibilidade. Objeto estético e obra de arte se compreendem, se nutrem um pelo outro, uma suscita a outra. Redunda dessa conjunção que toda experiência, por sua vez, está lastreada no elemento sensível que o leva espontaneamente à reflexão. (OLIVEIRA, 1983, p. 140)

Dar nome a isso é comprometer de forma a enclausurar sua natureza já indiscernível, por isso encaramos tal processo como potência puramente sensível, e como diz Adorno (2008), inassimilável conceitualmente. E, mais nos “vale tomar em questão a experiência de algum objeto, situação, acontecimento ou processo naquilo que ele tem em termos de potencial artístico, ou seja, naquilo que o configura como um acontecimento estético” (PEREIRA, 2012, p. 185).

Fig. 1, 2, 3 e 4 - Lygia Clark, Bicho, 1960 75

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Não sabemos quantas posições o bicho tem, mas o bicho sabe.

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II - A inelutável modalidade do visível e a ausência em potência

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra, Na distância imprecisa e vagamente perturbadora. Na distância subitamente impossível de percorrer. [...] Talvez porque a alma é grande e a vida pequena. E todos os gestos não saem do nosso corpo E só alcançamos onde o nosso braço chega, E só vemos até onde chega o nosso olhar. (PESSOA, 1993, p. 155)

Para investigar o modo como sujeito e obra de arte constroem relações, ou seja, como ambos mutualmente se engendram e influenciam em um regime de visualidade 76, a dinâmica apresentada por Didi-Huberman em O que vemos o que nos olha (2010) é satisfatória. Ela lança mão de um aspecto da relação sujeito/obra de arte no qual um assomo de perda se circunscreve neles e entre eles no momento do contato visual. Sempre que olhamos algo, esperamos de imediato apreender sua forma, composição, movimento, mas não é isso que acontece de fato. A visão entra em um estado de cisão, espécie de rachadura originada por essa parte que não conseguimos acessar do objeto: sua sombra, sua “falta”, distância, lacuna. A tese é que a perda – originada pela falta – implicada na dinâmica sujeito/objeto de arte serve como mola propulsora para a incidência dos efeitos de sentido na relação. A falta é que desperta os sentidos. Nesta perspectiva, ela não personifica algo que por algum motivo é defeituoso, incompleto ou inacabado, e sim vem afirmar uma oscilação contraditória, viva e criativa da dinâmica sujeito/obra de arte: “quando vemos, algo nos escapa. E, no entanto, há sempre algo que reconhecemos… numa certa medida capturamos o objeto; em outra, é ele que nos captura” (LEAL, 2011, p. 45) No silêncio do olhar entramos em contato com uma obra visual, e queimamos sem dizer uma palavra. Nossa resposta é muda e íntima, mas o estranhamento é geral. A perda que queima passa a sugerir um sentido ao ocorrido, pois ela deixa marcas assimiladas corporeamente 77, mesmo que por vezes, fugidias. A relação explode na inelutável modalidade na qual todo objeto visível enfrenta:

76 Regime de visualidade compreende o aprendizado sensorial que permite transformar estímulos nervosos em imagens com forma, luz e sombra, sendo este aprendizado baseado na experiência empírica e em certas regras sociais que estruturam tais experiências. (Lopes & Krauss, 2010, p. 257) 77 Precisamos nos habituar a pensar que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele. Toda visão efetua-se algures no espaço tátil. (MERLEAUPONTY, 1984, p.177)

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Todo corpo submergido na sombra, em uma sombra da que não sai, é um corpo invisível. Ponhamo-los à luz e se fará visível, sem dúvida, mas não por isso deixará de projetar uma sombra em algum lugar: sua sombra, sua parte de mistério. Em todos os casos sombra, poder onipresente da sombra, esse suplemento inatingível de escuridão ao que se enfrenta toda visibilidade em algum momento. Falando em termos antropológicos ou psíquicos, a sombra é um fantasma, um medo visual que emana dos corpos, os põe em perigo ou põe em perigo quem os olha. (DIDIHUBERMAN, 2010, p. 281)

Ao projetarmos a luz do olhar, o objeto que recebeu luz adquire também, sua parte de escuridão íntima. O que se perde vêm galopando desse domínio: não temos acesso ao escuro do objeto ao qual projetamos visibilidade. Isso incomoda, preocupa e persegue. O que é inelutavelmente evidente em um corpo visível? Sua disposição tanto para provocar a contrariedade e a inquietação, como a assertividade e a segurança. Ele está presente e ausente, erigindo lugares e não-lugares, se mostrando e se escondendo. É justamente a dinâmica da oscilação entre proximidade e distância que a obra de arte evidencia, dinâmica que revela uma operação de perda implicada na visualidade; a aparição de algo que só aparece tornando-se ao mesmo tempo distante, algo único e estranho, algo que impede o reconhecimento, que problematiza a ordem do saber. (LEAL, 2011, p. 45)

Para o olho desavisado, uma obra de arte encarna apenas sua evidência visível. DidiHuberman (2010) vê esse movimento no “homem da tautologia”, aquele que não quer “ver outra coisa além do que vê presentemente” (p. 49), mas para o olho que se abre ao vazio de ser olhado de volta, essa ausência manifesta-se como pura potência. Uma obra de arte é sempre uma potência em ato e um ato em potência. Em seu cerne – como toda potência –, carrega um núcleo duplo, a potência e a impotência, que segundo Krezes (em Simanke, 2010): “não se deve ler, de modo algum, como ausência de potência, mas como “potência de não (passar ao ato)” (p. 76). Um objeto destinado à visualidade (e que enfrenta visibilidade) emite estas duas chamas, ele passa ao ato quando se torna visível para o sujeito, e desaparece também em ato, do campo do olhar, quando ganha sua sombra. Se em um ato inteiro de potência podemos observar a potência e a impotência, no ato de olhar, podemos constatar a presença e a ausência. Em paralelo, portanto, podemos dizer que não se trata de uma ausência de potência, mas uma ausência em potência; assim como escreve Agamben (2007): “o ser vivente, que existe no modo da potência, pode a própria impotência, e só nesse modo possui a própria potência” (p.361). O lado sombrio do objeto, sua parte de mistério, por estar “inacessível” de onde vemos, não deixa de emitir de sua face obscura uma certa faculdade de autoridade; se somos capazes de identificar – mesmo de fora – tal autoridade, é porque de nosso próprio cerne algo foi dobrado, cindido nesta relação.

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Ao contemplarmos uma obra de arte, nosso olhar é cindido por um mecanismo de aproximação e afastamento, ou seja, há algo que nos olha naquilo que vemos. Nesse sentido, ao contemplarmos um objeto artístico, nós o capturamos com o nosso olhar, mas nesse mesmo ato de visão abre-se uma outra dimensão na qual nosso olhar nos é devolvido e agora é o objeto que nos captura. (LEAL, 2011, p. 43)

III - Arte conceitual e as poéticas visuais contemporâneas De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, Quem continua vendo Enquanto estou pensando? Por que caminhos seguem, Não os meus tristes passos, Mas a realidade De eu ter passos comigo? (PESSOA, 1995, p. 64)

Partiremos de Didi-Huberman (2010) considerando a produção de sentido nos regimes de visualidade, especificamente no qual nos encontramos hoje: a produção artística contemporânea e sua respectiva recepção pelo sujeito contemporâneo. O modo como visualizamos o objeto de arte pode nos dar pistas de como nos relacionamos com os efeitos produzidos pela grande maquinaria subjetiva que nos envolve enquanto sujeitos de uma realidade histórica, social, cultural e política. Percebe-se que os diferentes ‘olhares históricos’ transformaram também completamente a posição do corpo no contexto social, não apenas porque o olho é um órgão humano, mas porque ele desloca também os outros sentidos e altera as relações de tempo/espaço do sujeito moderno e pós-moderno. (Lopes & Krauss, 2010, p263)

Jacques Rancière (2012) uma vez disse que: “… não há arte sem olhar que a veja como tal” (p. 82). O olhar do sujeito é o resultado em comum de suas vivências e das determinações históricas, portanto, não existe arte que não se aproxime de uma concepção de sujeito e de um coletivo; de um sujeito que vê. Como ele vê e o que lhe captura esteticamente e afetivamente como corpo coletivo, diz muito de sua condição humana. Parece-me que na medida em que a prática do espaço público veio se transformando, também o estatuto do artista, da obra e do receptor veio sendo redimensionado através das formas artísticas. Deste modo, podemos supor que exista uma dialética intrínseca entre a dinâmica do espaço social e as concepções de sujeito implicadas nas concepções artísticas. (VINHOSA, 2007, p. 1)

Conforme as poéticas visuais contemporâneas são apresentadas, incorrem em deslocamento também, para o sujeito, que ele reflita sua condição humana frente ao tempo/espaço, que ele (re)pense 97


seu lugar e seu não-lugar. A vida e a morte. O fazendo descortinar como ele pensa esse lugar, se ele pensa em si e no outro… A produção visual contemporânea é marcada por uma afeição com os não-lugares, pela criação de campos virtuais vastos de possibilidade, disponibilidade pura para a ressonância dos corpos que eventualmente entrarem em contato. Seus trabalhos são meticulosamente pensados para estimular a reflexão desse efeito aberto que propicia o contato com objeto. O fazer artístico é orientado de maneira a traduzir na materialidade dos objetos, a sombra, o que é, para todos os efeitos, uma conceituação. Na contemporaneidade é caro aos objetos artísticos destinados à visualidade encarnarem como projeção estética sua própria questão ontológica, são objetos em si mesmos, no sentido em que se prestam a ser invólucros conceituais de si, fornecendo ao sujeito um mistério profundo, indecifrável no ponto em que se tornam sempre uma dúvida ao olhar (e ao corpo). A grande inovação da arte conceitual no seio do campo artístico reside precisamente no seu contributo decisivo e durável para autocentrar a arte em si e nos seus objetivos inerentemente estéticos ao tornar-se, acima de tudo, uma ideia. Essa via pela conceitualização significou à arte, mais do que obedecer a um conceito para se consagrar numa nova estrutura formal, tornar-se um conceito sobre si mesma. No primeiro caso, trata-se de um método e que pode perpassar grande parte da história da arte, ao passo que o segundo se reporta ao nível fundamental de elaboração da arte. Ou seja, a arte expressa-se então aos olhos do artista e do público como conceito/imagem. (Aguiar & Bastos, 2013, p. 183)

O artista visual contemporâneo enfraqueceu a artesania em favor de um cuidado maior com o conceito a ser vertido. O conceito na arte é uma característica forte em práticas artísticas contemporâneas; herança direta do espírito modernista. A arte priva-se da materialidade inscrita para valorizar a expressão de um conceito; conceito mais ou menos preparado, mais ou menos compreensível. Mais ou menos? O que isso quer dizer? Quer dizer, dentre algumas possibilidades, que o artista delega ao espectador o cargo de construtor de parte da obra. A obra é acabada como atualidade material, mas aberta virtualmente para que o espectador e por vezes, experimentador, trace seus próprios sentidos, conceba sua experiência a partir da inserção de seu próprio corpo na obra. Na arte contemporânea, a grande maioria das obras de arte que estão à disposição do público tem sua fruição baseada na visualidade. Talvez isso ocorra por um motivo bem simples. Porque a grande maioria dos artistas se serve dos olhos e da visão para capturar e registrar suas impressões. Eles vêem o mundo e o que falta ao mundo para ser arte. Por outro lado, o trabalho […] muitas vezes prioriza a experiência puramente sensorial. O que buscam é que haja uma espécie de apoderamento da obra por parte do indivíduo que dela frui. Que haja um transporte, uma assimilação das sensações despertadas pelo objeto para o interior desse indivíduo e que a obra afinal se faça dentro dele, de acordo com suas próprias experiências. (CANTO, 2009, p. 5)

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Não devemos criar o equívoco de não considerar o modo de interação anterior ao período da arte moderna: em qualquer pintura de Rembrandt por exemplo, podemos identificar uma interação da ordem da percepção visual, do conjunto de elementos simbólicos, de narrativas que de alguma maneira estão nos quadros, e das quais participamos. No entanto, a modernidade equacionou o acontecimento visual do objeto deslocando-o para o espaço. Pressuposto de uma arte de dimensões instalativas. Silva (2012) nos define melhor o conceito de “Instalação”, segundo ela forjada pela cisão tempo-espaço: A Instalação, segundo seus princípios básicos, é uma obra sem limites, ela permite qualquer tipo de suporte em sua produção, já que mais que um suporte é uma poética, uma verdade em si, que promove a criação plena de mundos múltiplos, reais em sua própria essência, mesmo que imaginários e/ou virtuais em sua concepção. As Instalações inauguram mundos novos a cada nova recriação, sim, porque ela é, de fato, recriada em cada nova montagem, em cada novo local, em um novo tempo. Cada nova montagem, define, por si mesma um novo mundo, definido em espaço-tempo próprio. (SILVA, 2012, p. 13)

Fig. 5 - Marcel Duchamp, Milha de fio, 1942 78

Que efeitos incitam no espectador tais características? Com o que tipo de arte o sujeito contemporâneo lida quando entra em um espaço de arte contemporânea? O espaço de arte o torna espectador de que? Todo artista visual contemporâneo inelutavelmente trabalha a perda em seu objeto-obra? É oportunizado pelo artista experimentações; a perda de que se fala simula um “campo aberto” na obra de arte o qual o artista prevê para o espectador de maneira detalhadamente conceitual. No final, vemos um campo fértil de dimensões dando impulso à entradas e saídas, uma explosão de possibilidades. 78 O fio, ao afastar o espectador da arte, tornou-se a única coisa de que ele se lembrava. Em vez de ser uma interferência, uma coisa entre o espectador e a arte, ele se tornou paulatinamente uma arte nova de certa espécie.” (O D ́ OHERTY, B., 2002, p. 79, citado por SILVA, 2012, p. 65).

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E não pensemos que é simples feitura. Quando o artista contemporâneo decide se encontrar com o espectador por meio de obras visuais, ele enfrenta um desafio: como propor uma não-evidência por meio da materialidade? Como produzir algo material, – porém, não inteiramente evidente – destinado à visualidade de outrem? É possível e sabemos; sabemos por que não deixamos de sentir.

Fig. 6 e 7: Allan Kaprow, Words, 196279

Por quais meios recorremos quando se apagam as luzes e o ambiente se torna inteiramente invisível? É fácil deduzir que seriam os outros sentidos além da visão, sentidos que atendem a um corpo. O olho exige luz, mas o corpo não, ele é sua própria luz. E é acreditando no corpo que se produzem “obras inacabadas”, especialmente dispostas a sofrerem a incidência da luz dos corpos. A perda explode no olhar e, à sua vez, sua falta é o destroço. Destroços desvencilhados de nós e do objeto que compõem a cena do acontecimento visual.

A participação do espectador/experimentador é visível em Words. Nesse trabalho, não só o espectador/experimentador participa da obra, como deixa vestígios nela que o próximo visitante irá testemunhar, sem saber ao certo, o que eram registros (palavras), escritos pelo artista e quais aqueles deixados na obra por visitantes prévios. Com isso, Kaprow, de certa forma, alça o espectador/experimentador a coautor, já que a experiência como um todo se dá a partir da participação ativa do espectador/experimentador que deixa registros que serão “lidos” pelos espectadores futuros da obra. (SILVA, 2012, p. 68) 79

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IV - Minimalismo instalativo A partir de obras minimalistas com viés instalativo podemos identificar com clareza a dinâmica sujeito/obra de arte mencionada anteriormente. A proposta dos objetos minimalistas 80 como “imagens absolutamente simples que remetessem apenas ao visível, sem produzir a partir daí nenhum tipo de sentido” (LEAL, p. 47), é revista por Didi-Huberman (2010) como uma impossibilidade. É o paradoxo mesmo dos objetos minimalistas, um paradoxo que não é apenas teórico, mas quase instantaneamente, e visualmente, perceptível. De um lado, portanto, sua presença ou sua tensão dirigida à especificidade formal, à “literalidade” geométrica de volumes sem equívocos; de outro, sua irresistível vocação a uma presença obtida por um jogo -–fatalmente equívoco – sobre as dimensões do objeto ou seu pôr-se em situação face ao espectador. (p. 71)

Didi-Huberman (2010) nos alerta para “a natureza fundamentalmente antropomórfica de todos esses objetos” (p. 71) dando um exemplo de “performance” teatral na qual o artista Robert Morris se vale de objetos geométricos para simular uma cena: A cortina se abre. No centro da cena há uma coluna, erguida, de oito pés de altura, dois de largura, em compensado, pintada de cinza. Não há nada mais em cena. Durante três minutos e meio, nada se passa; ninguém entra ou sai. Súbito, a coluna tomba. Três minutos e meio se passam. A cortina volta a se fechar. (p. 67)

Por que antropomórfica? Pois quando o objeto passa a ser uma variável numa situação ele se assoma como um quase-sujeito, que uma hora está erguido para então, subitamente, inexplicavelmente, cair. O objeto de arte aqui é um ator na e da cena, “não um termo último, dominador, específico” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 67): Pois a coluna erguida se encontra irremediavelmente em face da coluna deitada como um ser vivo estaria em face de um ser jacente – ou de uma tumba. E isto só é possível graças ao trabalho temporal a que o objeto doravante é submetido, sendo, portanto, desestabilizado em sua evidência visível de objeto geométrico (DIDIHUBERMAN, 2010, p. 68)

Sendo o objeto um elemento entre outros, é concedido o poder de “síntese final” da obra ao sujeito que a partir do contato com os efeitos da perda visual elabora uma experiência, ou melhor, experiências, como frisa Didi-Huberman (2010):

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“O que você vê é só o que você vê.” Este postulado sobre o olhar do espectador de obras de arte não apenas resume um dos princípios da chamada minimal art, como serve de epígrafe ao próprio modernismo. Segundo o autor da sentença, o pintor norte-americano Frank Stella, não haveria nada a ser visto nas suas telas além da própria pintura sobre a tela – nenhum significado a ser ali desvendado, apenas uma experiência perceptiva direta que não extrapola nunca para o exterior, que apreende exclusivamente o que está presentificado na obra. (FILHO, 2010, p. 403)

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Há uma experiência, logo há experiências, ou seja, diferenças. Há, portanto, tempos, durações atuando em ou diante desses objetos supostos instantaneamente reconhecíveis. Há relações que envolvem presenças, logo há sujeitos que são os únicos a conferir aos objetos minimalistas uma garantia de existência e de eficácia. (p. 66)

Fig. 8: Robert Morris - Untitled (L-Beams), 1965 81

Por que então Didi-Huberman vê no postulado minimalista uma impossibilidade? Ele não crê no minimalismo? Não é bem isso. Ele reconhece nos objetos minimalistas um paradoxo: estranho ao sujeito como qualquer outra manifestação artística, mas questiona a pretensão que eles têm de serem objetos apenas visíveis, que negam estarem homólogos ao sentido. Para o autor a produção de sentidos sempre irá ocorrer. Se inferirmos que a visualidade é uma ponte entre sujeito e objeto, diríamos que é inegável que existe uma proposta estética que parte da obra de arte indo de encontro ao sujeito; e que o sujeito por sua vez irrompe esse fluxo para produzir sua marca na orquestra do movimento visual. É uma ponte com via de mão dupla. A oscilação visível/invisível provocada pelo objeto desvela ao olho sinais de sua natureza instável. É como se sempre pisássemos em falso, em deslocamento. Rombo de inconveniente, de inconvencional e de inesperado. Produção de diferenças. O regime visual contemporâneo permite à relação sujeito/obra de arte que ela construa seus alicerces a partir da experiência e construção de sentidos; é dizer que o indivíduo que experimenta atuará em conjunto com obra exercendo suas diferenças como sujeito. Ao passo que é posto em jogo 81

Pouco importa, com efeito, compreendermos perfeitamente que os três L são idênticos; é impossível percebêlos – o primeiro erguido, o segundo deitado de lado e o terceiro repousando sobre suas duas extremidades – como sendo realmente semelhantes. A experiência diferente que é feita de cada forma depende, sem dúvida, da orientação dos L no espaço que eles partilham com nosso próprio corpo; assim, o tamanho dos L muda em função da relação específica (specific relation) do objeto com o chão, ao mesmo tempo em termos de dimensões globais e em termos de comparação interna entre os dois braços de um L dado. (KRAUSS, R. 1973, citado por DIDI- HUBERMAN, 2010, p. 66)

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certo conjunto de linhas tangíveis vindo e indo do objeto, a aposta de afeto do artista diz mais respeito à uma abertura para o olhar do sujeito-espectador do que à uma proposição poética pré-moldada com fins pré-determinados para fruição. É neste sentido que a arte contemporânea se lança a outros campos como matéria prima exemplar de análise sociocultural. Se considera [...] ser decisivo produzir uma obra que […] atue e desconstrua a própria definição do “que é arte” (“quando há arte”) – […] Trata-se de operar dentro da arte para a redefinir e alterar o sentido dos suportes institucionais da escola à história. Nesta tautologia, uma obra de arte só pode definir-se dentro de si, porque existe um a priori à matéria – há que a transformar na sua linguagem específica se quisermos libertá-la da institucionalização histórica e ideológica. Portanto, a emancipação da arte não virá do seu conteúdo, do assunto, seja ele ou não político. (VIDAL, p. 106, 2012)

Uma obra só se torna viva se um sujeito impelir a pressão de um olhar sobre suas linhas, é o que Didi-Huberman (1998) alude ao tratar a visão como ação que cinde o objeto. Há um dilatamento, um estalo surdo que alerta a todos. Quando Deleuze (1999) diz que “não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe” (p. 14), sua contribuição concentra-se na ideia de uma paralela emergência entre povo e arte, suas dimensões se confundem no horizonte de suas incursões como entes potentes do/no mundo. Observando o sujeito frente à visualidade poderíamos dizer que existem modos suficientemente organizados de ver e distinguir arte, de operar a cisão, a perda visual e a imagem em determinado tempo histórico. Um devir que funde sujeito, tempo, espaço e produção artística.

Considerações finais Esse modo de vermos a arte dá destaque à sua participação nos assuntos humanos. Sua própria oscilação contraditória (desvelada pela dinâmica da visualidade) nos envia sinais de como ela nos acompanha desde os tempos primordiais. A arte está sempre submetida a mudanças em seu conjunto conforme o curso da evolução social. Sua manutenção como dispositivo político através dos tempos diz respeito ao nosso desejo de diferença, desejo de (re)construir o mundo, (re)colocá-lo sempre em obra por meio de artefatos, num incansável movimento de exercício experimental do sentido, de humanidade. Se a arte em seu cerne carrega a atualidade de uma humanidade, que semblante hoje assume a nossa emergência enquanto sujeito. Assim como das/nas práticas artísticas emergem potencialidades, como no exemplo em Benjamin (1994): “o jornal ilustrado estava virtualmente oculto na litografia, também na fotografia o está o filme sonoro” (p. 76); o sujeito encarna em si uma potencialidade oculta para ininterruptas vidas em vida. Excessiva propensão a desfazer-se e compor-se de novo, e mais uma vez. O que emerge na arte é a verdade desse oculto em nós, tão distante por mais perto que esteja. 103


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VINHOSA, Luciano. Obra de arte e os modos de construção do sujeito. 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais, 2007.

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CAPÍTULO II: SUJEITOS EM TRÂNSITO, PEDAGOGIA E TEATRO


Do C.E.P.E.C.A. a Cia Poéticas: breve memorial Rejane Kasting Arruda

RESUMO Neste trabalho conto a trajetória de minhas pesquisas, desde as primeiras invstigações no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator da Universidade de São Paulo, até os desdobramentos na Cia Poéticas da Cena Contemporânea na Universidade Vila Velha, passando pela produção vocal, corporal e o jogo teatral, a problematização do Pós-dramático como campo fertil de produção estética em experimentos laboratoriais, as poéticas dramática e realista como potência performativa, a dramaturgia, o Cinema como campo de experimento e investigação da poética atoral e também como instrumento para o pedagogo teatral.

A base das pesquisas no C.E.P.E.C.A. Desde 2006 dedico-me ao desenvolvimento de princípios de trabalho, procedimentos e conceitos que possam auxiliar a prática cênica – tanto na criação quanto na transmissão e teorização. Estas pesquisas tiveram início em 2006 no Centro de Pesquisa e Experimentação Cênica do Ator da Universidade de São Paulo 82. Primeiramente dediquei-me ao mestrado “Apropriação de Texto Um Jogo de Imagens”, retomando o conceito de fala interna, propondo-a como instância estrutural do trabalho atoral e analisando seus efeitos. Diante de uma cultura cênica que privilegiava eminentemente o corpo, deslocar o interesse para a fala interna é mostrar que existem materiais de apoio outros. Em detrimento não só da partitura física, mas também da emoção (comumente associado ao “dentro”), a imagem acústica (que O CEPECA foi fundado pelo Prof. Dr. Armando Sergio da Silva, meu orientador. As pesquisas são eminentemente práticas e pautadas pela partilha de procedimentos, questões e resultantes, para o grupo de pesquisadores oferecer interlocução. Hoje o centro é coordenado na USP pelo Prof.Dr. Eduardo Tessari Coutinho. 82

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se escuta internamente) e visual (que se olha internamente), são materiais concretos de apoio que o ator pode se valer enquanto improvisa o corpo. A metodologia de pesquisa foi uma intersecção entre Barba, Spolin e Stanislavski (via Kusnet) em função da montagem de “Fora do Eixo – Quartett” (com texto de Heiner Müller). O trabalho mostra o passo a passo do jogo com partituras físicas de modalidades diversas, os encontros aleatórios e as associações – até apontar a necessidade da fala interna e as consequencias estéticas de seu uso. A regra de jogo spoliana, que vibra na escuta durante um jogo, a nomeação de qualidades físicas ou a frase íntima que o ator formula para si mesmo de acordo com suas percepções da situação de jogo, são situadas como modalidades de fala interna. A fala que diz respeito ao contexto diegético e construção de personagens à mandeira stanislavskiana ou kusnetiana de jogo, é apenas uma das modalidades possíveis de uma fala interna que se apresenta como estrutural para o ator. Na pesquisa de doutorado, a metodologia de pesquisa foi novo laboratório prático com a interlocução do grupo de pesquisadores do centro. A montagem do solo “Casa”, com matetrial literário de Nelson Rodrigues assinando Suzana Flag (o folhetinesco “Minha Vida”), serviu à elaboração de uma estrutura do trabalho do ator com três funções articuladas: incidência, enquadramento e vulnerabilidade. A tese “Ateliê do Ator-encenador: Incidência, Enquadramento e Vulnerabilidade” 83 traz a descrição destas três funções, como se articulam, e a demonstração do que chamei “jogo de enquadramento”. Busquei fundamento teórico e teci diálogo com a psicanálise lacaniana, a filosofia de Meleau-Ponty e a teoria teatral. Uma das evidências as quais cheguei foi a perspectiva de oposição entre plasticidade cênica e ficcional – esta tomada como uma modalidade de enquadramento e não sentido ou efeito de significação. A vantagem de se trabalhar com a diegese enquanto um enquadramento (e não enquanto significação) é uma maior liberdade inclusive para atrela-la à cena, jogando com oposições e composições que a relação entre os diferentes enquadres implica. Abstração e cotidianidade aparecem como modalidades de enquadramento e o excesso como estética – quando se trabalha com muitos enquadramentos sobrepostos. Com o CEPECA tive também oportunidade de ministrar aulas na Universidade de Santiago do Chile, na Universidad Arcis (Chile) e na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Portugal. Graças a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que financiou minhas pesquisas de mestrado e doutorado, pude palestrar na Cidade do México, Paris, Lisboa, Porto, Coimbra e Viana sobre teatro e cinema. As pesquisas continuaram na Universidade Vila Velha a partir de 2013. Durante dois anos me dividi entre Espírito Santo e São Paulo, mantendo atividade pedagógica na Academia Internacional de Cinema, Escola de Foram publicados artigos a partir do desmembramento das diferentes reflexões com temáticas específicas que foram tecidas ao longo da pesquisa, mas o passo-a-passo da pesquisa laborastorial não foi ainda publicada.

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Artes Célia Helena e Oficina de Atores Nilton Travesso. Em 2015 optei pelo Espírito Santo, fundando a Cia Poéticas da Cena Contemporânea. Registrada no diretório de grupos do CNPQ a companhia dedica-se à investigação e transmissão dos princípios das pesquisas, testados em criações cênicas. Foram realizados os seguintes trabalhos, entre work in progress e espetáculos: Romeu & Julieta (2014), Quem Tem Medo de Plinio Marcos? (2015), Navalha na Carne (2015), As Criadas (2015, dirigido por Marco Antônio Reis), Sente-se Quem Puder (2016), Plastic Body (2016), Alice Uma Quase Ópera Punk-rock Contemporânea (2016), Roca Billy (2017), Love Fair (2017), Peter Pan (2017), Paraíso (2018), Vestido de Noiva (2018) e 201 (2019, dirigido por Alberto Contarato). A metodologia de sobrevivência da companhia é a articulação entre ensino, pesquisa e extensão. Alguns projetos de extensão são apoiados pela Universidade Vila Velha através de editais; criações são desenvolvidas em pesquisas institucionais com bolsas de iniciação científica e outras em processos pedagógicos dentro do curso de Artes Cênicas para serem deslocadas para o repertório do grupo. Para o fomento às investigações na Cia Poéticas, tive o apoio do CNPQ através do edital CNPQ Universal e FUNADESP. Desenvolvemos, de 2014 a 2019, no curso de Artes Cênicas, setenta e um projetos de extensão, entre estes, a prática pedagógica com cegos, surdos, cadeirantes, presidiários e idosos, crianças e jovens em situação de risco. Estas práticas configuram-se como campo de investigação de procedimentos e conceitos, criação, problematização e análise de linguagem do teatro e cinema contemporâneos. Foram desenvolvidas vinte e seis iniciações científicas sob minha orientação, atreladas aos projetos de pesquisa institucionais “Corpo e Pensamento nos Efeitos de Realidade (e Alucinação): Uma Investigação da Atuação Realista Através do Dispositivo Cênico-Cinematográfico” e “Teatro da Inclusão: A Diferença no Dispositivo Cênico-Performativo”. Estes anos de atividades na Universidade Vila Velha promoveram a consolidação de princípios de trabalho desenvolvidos anteriormente na Universidade de São Paulo e de sua função pedagógica, criativa e social. Consolidaram desdobramentos e recortes, privilegiando uma ou outra construção criativa, extendendo o seu alcance e chegando a novas conclusões e procedimentos.

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Recortes de pesquisa Um dos recortes foi: modalidades de agenciamento da linguagem cinematográfica e teatral pelo ator. Entram em pauta as figuras do objeto a extraídas das articulações entre arte e psicanálise que encontramos em Dunker no artigo chamado “A Imagem Entre o Olho e o Olhar”: deformação, vazio, anamorfose, informe, excesso e desconfiança do próprio olhar. Estas figuras foram ampliadas para: precisão do desenho, escanção e hiato, defasagens e diferenças entre enquadramentos. E pautaram a investigação sobre a alternância ou uma zona híbrida entre figuração e abstração (ou entre abstração e o sentido da ação). A proposta das encenações exercitadas e do pensamento teórico desenvolvido para fundamenta-las: o ponto de partida no fragmento. Buscamos apoio em Sarrazac, Wisnick, Bogart, Ubersfeld, Lehmann, Feral. Não em sua totalidade, mas o que nos serviu para a fundamentação teórica e formalização deste princípio de trabalho. O estranhamento é utilizado como palavra de ordem: um efeito produzido justamente por estas figuras, apontando para o que não cabe na linguagem. Também as relações entre ordem e caos entram em pauta (Wisnik, 2002), o improviso e a apropriação do erro, do acaso e encontros sem intencionalidade. A cultura popular e as canções ou brincadeiras utilizadas nas encenações a partir de Romeu & Julieta (2014), aparecem enquanto citação e são tomadas como elemento de estranhamento ou ruptura, nova camada, que revela o contexto social de produção da obra; bem como uma plasticidade corporal exacerbada e plástica, de forma que a orientação para a produção do corpo passou a ser a dilatação (Barba, 1995) e o auxilio em Barba, Grotowski, Craig, Kantor, bem vindo. As bases se fizem sentir quando a proposta é manter as relações de composição, oposição ou tensão entre externo e interno, fala interna e plasticidade corporal; cotidianidade e dilatação. Logo entramos na problematização da poética da atuação realista – propondo-a como poética e investigando quais figuras a agenciam. Foi detectada a desconfiança no próprio olhar como figura de agenciamento da poética cênica pelo ator, calcada em certo dispositivo de atuação que precisa contar com a visualidade do pensamento e a cotidianidade. O problema de como dilatar sem abandonar este dispositivo foi investigado e chegou-se a conclusão que é necessária a tipificação ou o treinamento extra-cotidiano. Este último se configura como residual, pressionando o enquadramento (das bordas do corpo) pautado pela cotidinidade e fazendo-o dilatar. Esta pesquisa foi desenvolvida com laboratórios de criação dos espetáculos “Quem Tem Medo de Plinio Marcos?” ,“Navalha na Carne” e “As Criadas”, atreladas a cinco iniciações científicas. 110


O jogo se apresentou como procedimento-chave e foi problematizado a partir da relação com a fala advinda do texto dramático. O dispositivo de investigação do jogo com o texto dramático conta com a introdução de regras de jogo aleatórias e memorização através da escrita 84, além de procedimentos de aquecimento ou composição internos, como a fala interna e monólogo interior. Para “As Criadas” foram propostos o Campo de Visão e variantes; para “Quem Tem Medo de Plinio Marcos?” e “Navalha na Carne” foram propostas muitas regras ao mesmo tempo, provocando resoluções impensadas e produzindo o sentido da ação como surpresa. Conta-se com resíduos internos provocados pela memorização através da escrita aliada à fala interna e monólogo interior; e com a fala dita pela primeira vez em cena, enquadrada pela relação entre os atores, entre atores e espaço, entre atores e vivência cênica. O impulso para a fala externa é preparado nesta espécie de “procedimento estranho” que é a memorização através da escrita. Nos anos de lida com este procedimento publiquei três textos: “Jogo e Escrita no Trabalho com o Texto Dramático: Relato de Uma Experiência em Diálogo com a Tradição”, “A Função do Manuscrito nas Artes Cênicas: Testemunho e Reflexões de uma Pesquisatriz” e “A Incorporação do Pré-jogo: Tentativas de Formulação de um Procedimento Estranho”. O princípio de trabalho é falar pela primeira vez em relação com o outro, para que este enquadramento faça incidência na matriz das imagens vocais. Mais uma vez as funções de enquadramento, incidência e vulnerabilidade vem ao encalço e pautam as pesquisas. Uma investigação com os conceitos de imagem vocal, ação vocal e imagem sonora foi desenvolvida, e novos procedimentos para a produção vocal, como o “encapsulamento” e o “view point da voz”. Estes procedimentos foram constituídos nas aulas de Poéticas da Voz, nos laboratórios de criação e em investigações junto as ICs. As investigações seguiram com materiais literários nos espetáculos “Alice Uma Quase Ópera Contemporânea” e “Peter Pan”, reafirmando os jogos de enquadramento com excesso e sobreposições; a presença da grafia; a sonoridade, a coralidade e a performatividade; a apropriação dos erros, acasos e encontros provocados por um dispositivo com muitas regras de jogo ao mesmo tempo, quando as falas são memorizadas pela escrita; o jogo entre narratividade e dramaticidade; a plascidade corporal como enquadre híbrido em composição com a fala interna.

Procedimento que trago de François Khan e elaboro a minha maneira, bastante explorado nas pesquisas na USP e problematizado em alguns artigos já publicados. 84

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Fig. 1 e 2: Alice Uma Quase Ópera Punk-rock Contemporânea (2016). Foto Laís Pimentel.

O view point da voz surge como uma alternativa para o desenho da forma da emissão vocal depois de a ênfase na relação já ter sido trabalhada. O decorar em voz alta é proibido para que a oralidade não seja fixada antes do jogo com o outro – e a previsibilidade da palavra ainda não fixada na oralidade permita espaços de escanção onde a produção corporal venha ocupar o primeiro plano. A voz estranhada é experimentada no microfone e também gravada – servindo como enquadramento plástico, organização do tempo e evocando o enquadramento ficcional, em composição com o movimento e a visualidade das cenas.

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Fig. 3: Alice Uma Quase Ópera Punk-rock Contemporânea (2016). Foto Laís Pimentel

Nos monólogos os view points são pensados antes dos atores irem à cena, aplicados com a memorização através da escrita. O view point da voz foi potencializado como objeto de estudo na produção de monólogos em “Love Fair” e utilizado com bastante afinco em “Vestido de Noiva”.

Fig. 4: Love Fair (2017). Foto Gabriela Julia.

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Fig. 5: Love Fair (2017). Foto Gabriela Julia.

Fig. 6: Vestido de Noiva (2018). Foto Laysa Santiago.

Devido à necessidade de fluidez e agilidade na emissão da colcha sonora através da fala dos atores, constituímos o que chamamos de “fricção”. A fricção não é o decorar o texto. Ela é utilizada apenas depois do jogo de criação vocal através de memorização pela escrita e improvisação com regras de jogo, e implica uma velocidade maior da emissão vocal, que se dá sem intervalo. Ela é realizada com o texto na mão até que, através da repetição, o ator possa abrir mão do contato visual com as palavras. No início, a regra de jogo é não deixar intervalo de tempo algum entre a fala própria e a do outro. Isto quer dizer que antes do outro 114


terminar a sua fala eu já emito a minha, produzindo uma espécie de costura entre as duas. Os exercícios de fricção começam em roda para em seguida ganharem espaço.

Fig. 7: Peter Pan (2017). Foto Lucas Sandonato.

Fig. 8: Peter Pan (2017). Foto Laysa Santiago.

A idéia da fricção é apertar as malhas da colcha sonora para que, sem buracos, leve o espectador do começo ao fim. Não existe tempo para pensar no que se vai falar. O que alarga estas malhas são ações físicas – um enquadramento que se relaciona por oposição, disputando espaço-tempo. Os espetáculos se revelaram bastante sonoros, com uma tessitura sonora o tempo inteiro como enquadramento, preponderante até mesmo sobre o visual. Peter Pan foi 115


realizado com trilha ao vivo composta pelos atores a partir do conceito de “paisagem sonora” – também um recorte de pesquisa. O princípio da construção de um enquadramento sonoro preponderante foi levado em conta na construção dos espetáculos Vestido de Noiva e Quando Acordar a Cidade, este último criado com atores cegos. Em Vestido de Noiva a iluminação foi praticamente toda de celulares, operada pelos próprios atores; tres pinos com uma leve ribalta para algumas cenas e um contra-luz. Nestas cenas, utilizamos a sobreposição de vozes (três duplas de Pedro e Alaíde) para embaralhar o som. Rompemos o tom melodramático enquadrando o texto na linguagem contemporânea, onde enquadres sobrepõem, borram (figuras do informe, deformação, excesso, relações entre caos e ordem, fissuras, intervalos, defasagens). A frontalidade dos corpos tornou-se enquadre preponderante em alternância com caóticas movimentações (quando era exida a sobreposição de vozes).

Fig. 9: Vestido de Noiva (2018). Foto Laysa Santiago.

Os diálogos As investigações em Teatro Contemporâneo foram importantes para consolidar uma série de influências para os envolvidos nas montagens. No curso de Artes Cênicas, assumi a disciplina de História do Teatro, invertendo a ordem da História e ministrando-a de trás para a frente. Já no primeiro período, os alunos entram em contato com o Teatro Contemporâneo e 116


as Vanguardas do Século XX. Quando chegam ao Teatro Chinês já viram a influência sobre Brecht. Em função dos estudos de História do Teatro publiquei “Ruptura e Deslocamento: O Espectador em Ato”, “A Teatralidade como Choque de Visualidades (e a Questão da Realidade em Cena)”, “Arranjos Paradigmáticos como Campo de Extração para um Jogo de Enquadramentos Híbrido”, “Realismo e Vanguardas: Uma Tensão que Faz Mover”, “Traços do Contemporâneo: Reflexões sobre as Vanguardas”. Os diferentes movimentos (como o Pós-dramático), aparecem como um campo de diálogo, citação, observação e extração de jogos de enquadramentos específicos para a criação atual. O Processo Colaborativo foi recortado como um objeto de estudo, proposto como co-autoria quando a função da direção (e outras) se mantém. O diretor é o único que detem a posição do olhar externo. Não existe o controle sobre a produção da cena, pois a linguagem se configura no encontro e a partir de um dispositivo (tenso) onde o que impera é a alteridade. Mantém-se no entanto a posição de um olhar que corta e costura a sua maneira, de modo a fazer jus a um estilo e subjetividade próprios. Isto lhe autoriza a inclusive a trocar atores de papel, desprezar cenas prontas ou a montá-las de outro jeito, propondo reenquadres e novas configurações, prontalmente mexendo nos materiais propostos pelos atores sem que precise justifica-lo. Isto porque a função do não-saber está dada, de modo que a arte não se limite à representação de um discurso; o discurso é material ou, ainda, uma resultante a ser extraída da obra. O processo de criação colaborativo permeou procedimentos com o texto dramático, material a entrar em jogo com outros, evocando o enquadre ficcional. Refuta-se a operação de representação e joga-se com a evocação. Assim, tão importante quanto o material textual são os materiais corporais e cênicos advindos dos atores e diálogo com o Pós-dramático. Tecituras narrativas e relacionais aparecem neste dispositivo de enquadres bastante complexo, onde o erro, o acaso e os encontros são apropriados e obsevados pelo olhar do diretor que, com a sua voz, interfere e mexe, compondo uma dramaturgia. Em 2018 publicamos o texto “Por um ato que contemple as diferenças: o processo colaborativo na Cia Poéticas da Cena Contemporânea” para defender esta proposição, em diálogo com o encenador Antônio Araújo, criador do termo “Teatro Colaborativo” que expõe a diferença em relação aos “Teatros Coletivos”. Um dos conceitos para a orientação das pesquisas é “dispositivo” enquanto sistema relacional de oposições que, em algum momento, entra em colapso, para o novo advir. Cada espetáculo se configura como um novo, produzido em um dispositivo singualr, com outros “outros” em tensão. Sua configuração a contingência. Outro conceito fundamental é “ação primária”: ação físca não enquadrada na ação dramática. Esta está nos treinamentos barbianos 117


e labanianos embora não nomeada. Em Grotowski, de forma diferente, aparece transformada: a plasticidade corporal se desloca de uma ação dramática para ser enquadrada em outra. Este reenquadre das plasticidades, corporal, sonora ou cênica, narrativa ou dramática, deixa algo de fora. É este “de fora” que se configura como poético. Assim, as fabricações não se pautam no sentido da ficção (sendo este um enquadramento), mas no jogo. Nossas pesquisas se estenderam para o Cinema enquanto gatilho para se pensar o trabalho do ator. Foi desenvolvida a ideia de “registro”: Naturalismo, Sujeira, Imobilidade (Neutralidade, Inumano e Emoção com Conteção), Performatividade, Teatralidade e Excesso. Os registros seguem um trabalho formal de enquadramento da plasticidade corporal e a sua relação com a camera – enquanto se utiliza (também) procedimentos como a escrita para a memorização, o monólogo interior, a fala interna, a troca de palavras, o improviso, o trabalho pelo fragmento, o jogo (em detrimento da representação). O cinema como campo de pesquisa da atuação narturalista e seus preceitos é um recorte. O processo colaborativo foi utilizado – quando são os atores que propõem situações e trazem os materiais para improvisações que são organizadas em montagem. O Cinema foi investigado também como instrumento dos Estagios Supervisionados e, portanto, da Pedagogia do Teatro. Foi introduzida a ideia da criança com a camera na mão recortando o mundo e produzindo o seu olhar sobre ele, através do exercício de criação de um plano cinematográfico – depois do estudo de referências de fragmentos de filmes, tal como preconiza Alain Bergala. São estudadas formas híbridas entre documentário e ficção – para a produção de documentários sobre as intervenções ou contextos de vida (misturando ficção e documentário). Modalidades desta relação estão sendo pensadas. Esta pesquisa é bem atual e por causa disto ainda não temos publicações. Assim como as investigações em Dramaturgia – quando partimos de proposições de regra de jogo, desdobrando-as em “regras de escrita” para uma criação dramaturgica em gabinete, fundamentados em Sarrazac; ou quando partimos de dispositivos performativos para a criação dramaturgica em improviso: uma “Dramaturgia In Performance”. O nó da pesquisa É preciso o esforço de introduzir a Teoria Teatral nos processos criativos com atores e não atores, para que questões sobre a produção da poética da cena sejam partilhadas. Nem sempre esta teoria é absorvida ou a problemática torna-se um foco de interesse do sujeito. Os atores trazem materiais, a partir de proposições e produzem resultantes. Conforme produzem e reagem, proposições são reconfiguradas; surgem outras e a produção do grupo é conduzida 118


para caminhos ainda não vividos, cheios de surpresas. Acidentes acontecem; um não saber é assumido. Utilizamos a ideia de “manejo” (diferente de “controle”). A posição da direção é sustentada: juntar, cortar. montar, olhando e escutando o jogo que surge da própria linguagem cênica – percebendo para qual estética aponta, quais diálogos e referências utilizar, qual jogo de enquadres se torna mais apropriado, quais dispositivos merecem investimento. Leva-se em consideração a presença do texto dramático dentro do Pós-dramático, mas não enquanto dijunção como propõe Lehamnn. Atribuindo aos outros materiais o mesmo status do texto/falas, propõe-se, com encontros, a evocação de uma diegética. Esta é não toda. Fragmentada, assim convocada. Materiais literários ou narrativas, dramatizações introduzidas de improviso, bem como a invenção de fições ou estórias de vida – sem inicialmente nos prendermos a uma unidade. Há sempre, a principio, um material verbal em jogo – e a escolha da fonte é determinante: material literário, literatura dramatica ou pós dramática, diálogo, narrativas, testemunhos ou invenções. No caso da permanência temporária dos enquadramentos que evocam certo contexto imaginário, é possível associar significantes (outras notas na vertical) sem que percamos a estabilidade – sustentada por este. Comparemos esta produção com a escuta analítica. A livre-associação promovida por Freud como base do processo analítico em um divã, estabelece que é preciso que o analisando diga “o que vem à cabeça” (associação livre). Ao dizê-lo, outra associação se instala, promovendo um desvio. Saltos permitem o estabelecimento de novas horizontalidades; o paciente constrói, engajando-se em nova narrativa, sem saber para onde esta vai lhe levar. Esta que pode ser rompida devido a nova associação ou com a interferência do analista, que pontua, repete e devolve significantes, provocando uma incidência ou o desmoronamento de uma lógica imaginária. Já quando acompanhamos a cena de um espetáculo teatral, nós associamos, mas não nos desviamos. Não podemos nos engajar nesta produção vertical e nas cadeias que implicaria (só depois, quando o espetáculo terminar), pois acompanhamos a horizontalidade da escrita cênica. O contexto relacional das associações produzidas pelo espectador se mantém durante um certo tempo, paralelo à escrita apresentada no palco. Em seguida, se dilui. A narrativa da cena nos carrega, forçando-nos a abandonar aquela na qual poderíamos nos engajar (e construir) caso não tivessemos que seguir a horizontalidade da cena. Esta escrita poderia fomentar as perspectivas de associações na vertical, mas a sua temporalidade não permite o engajamento.

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Horizontalidade de uma escrita cênica disposta no tempo

Livre-associação

Ainda assim, é preciso levarmos em consideração a perspectiva da fissura e tessituras de diferentes enquadramentos na cena teatral. O salto de um para outro pode implicar no espectador a vertigem de se ver sem a estabilidade de um enquadramento fixo (ficcional), que daria unidade à obra. É com esta ideia que pensamos a dificuldade do trabalho do ator com o texto dramático. O diálogo é lacunar. O texto pautado no diálogo veicula falsas “pontas de iceberg”, pois, construído por montagem, é sem fundo. A lógica do enquadramento diegético é apenas um efeito. “Embaixo” do texto não há um bloco de gelo; não há nem mesmo o mar; não há nada. É devido a este vazio que, por meio da escuta do diálogo e descrição de cena, é possivel formar narrativas diversas, como bem testemunha Anne Ubersfeld (2005). O texto dramático não porta uma cadeia subjacente de ações dispostas no tempo e encadeada de modo horizontal – para previlegiar um enquadramento estável – como a narração porta. No trabalho com o texto dramático o ator não enxerga a visualidade linear. Assim sendo, tenta construí-la com o próprio discurso (interpretação do personagem). Para que o ator construa um projeto de ações dramáticas, precisa inventar uma narrativa subjacente. É o que Stanislavski (2005) chamou “subtexto”. E conforme esta produção, cria-se uma ou outra linha de ação-contínua, reduzindo-a a uma lógica só e amputando a perspectiva da produção corporal baseada em ações físicas corais ou abstratas (Braga, 2007); ou, ainda, pautada nos encontros ao acaso, de forma a abrir fissuras e apontar a perspectiva de múltiplas leituras; ou do não sentido como produção poética que instiga o senso investigativo do espectador. O que o ator dramático tende a fazer é o alizamento do que, com Sarrazac (2002), chamamos “crespo”. Sarrazac utiliza o termo em referência ao épico. O épico não no sentido daquele que veicula uma narrativa simplesmente, mas daquele que joga com texturas narrativas 120


diferentes – como um contexto individual e um contexto social. Percebemos que o texto dramático pode ser portador deste “crespo” conforme o jogo proposto pelo ator e a encenação. Os textos dramáticos trazem a fala enunciada e um mínimo de descrição cênica, sem a narrativa linear como enquadramento que evoca a diegética. Ele é enigmático. Poderiamos citar textos de Nelson Rodrigues, Plinio Marcos, Tchecov, Strindberg, Maeterlink, Wedekind, Brecht, Suassuna, Tennesse Williams, Beckett, Sarah Kane, Jean Genet, Ravenhill, Koltés e outros. Tecemos uma comparaçao entre o material “texto dramático” e um romance (levandose em conta que há romances mais ou menos lacunares e tomando como modelar aquele cujo contexto ficcional é evocado pela narrativa). O romance traz a narrativa. Quando a literatura está enquadrada como dramática, a narrativa não está escrita. Se tratamos de texto dramático com a junção das partes através de um jogo mais ou menos complexo (Vestido de Noiva, por exemplo) de inscrição em um contexto ficional único, ainda assim, trata-se de perspectivas de associações na vertical. Mais ou menos conforme as fissuras? E qual o papel da encenação no alargamento destas fissuras? Quando a literatura está enquadrada na História do Teatro como Pós-dramática (no caso de Heiner Müller, Sarah Kane, Ravenhill, Koltés e outros), ainda assim é fala proferida. O que se fala está posto para o jogo atoral e cênico. Se contarmos com os textos lacunares ainda assim trata-se de falas que precisarão ser tecidas junto a iluminação, sons, ações, atos, performatividade, corpos, vozes, imagens. Tessituras juntas vão ou não evocar uma diegética, fragmentos diegéticos. No entanto, o que se torna preponderante é um eixo extra-diegético de composição cênica que “fala” mais, fala outras coisas. Para este agenciamento é preciso evitar a tentação da representação de uma só lógica ficcional contínua – posta como enquadramento prepoderante. Esta lógica pode até existir, mas será um material entre outros no jogo da cena. Pois a encenação enquando obra é sempre “outra cena”. O ator é responsável junto com a encenação pela epicização da cena dramática. A apropriação do texto de um autor dramático na performance atoral exige uma linguagem da atuação, seguindo os princípios do Teatro Contemporâneo e contemplando as tensões entre épico e dramático, bem como saídas híbridas. Por que? Propomos a operação de montagem entre corpo e palavra, privilegiando o acaso, o encontro e o erro, as justaposições e dijunções – no trabalho de construção de ações físicas – para que surja algo que nem eu e nem eles tinhamos pensado, como se a cena se revelasse em uma moviola, onde vou juntando as partes “na cabeça”. A partir daí escrevo e dialogo para novas proposições, que entram para os atores como regras de jogo novas – especialmente em diálogo com uma cultura da cena que me antecede. Por que? 121


Temos um trabalho de construção dramaturgica a partir de fragmentos que se produz em processo e no diálogo com as poéticas da cena que existiram antes de nós. Quando trabalho com a literatura (dramática ou narrativa), peço para os atores escolherem ao acaso os fragmentos do texto. Não sigo qualquer lógica anterior ao ato de ver o material posto em cena através do jogo que os atravessa, levando ao erro (que apropriamos), ao acaso, ao encontro e à contingência. Por que? A construção sem o texto dramático se apresentou em muitos trabalhos: “Roca Billy”, “Sente-se Quem Puder”, “Paraíso”. O campo de investigação é o mesmo: a montagem dos fragmentos e maneiras de reenquadra-los em um (ou mais) universo ficional; o quanto de apresentação da realidade e o quanto de ficções; a unidade ou se investimos na dijunção; se o espetáculo traz diferentes resoluções estéticas ou se a tessitura cênica se configura como uma única estética. Desta vez a tentação de redução de tudo a um só contexto ficcional ou estético que dê unidade à obra se coloca para o dramaturgo e para o encenador que assume este papel. Pensando na estrutura da escrita cênica, há certa “organização melódica” que está fora do diegético, como a alingua está fora da linguagem. Assim a encenação torna-se mais ou menos dodecafônica. Investir na dijunção de modo que o contexto ficional unificado não permaneça é escolha estética. Torna-se também ética conforme privilegie um lugar de fala do sujeito-ator, atrelado ao reconhecimento de si e a resignificação de seu contexto de vida. Ainda, assim, por que? A permanência da própria escrita cênica nos impede de nos lançarmos em associações na vertical que teceriam outras cadeias significantes. Não podemos abandonar a horizontalidade da recepção cênica. Conta-se com o depois do espetáculo. Neste caso, o jogo, entre fissura e continuidade (e como se junta os fragmentos para provocar nós que permitem novas produções) entra em pauta.

Referências Bibliográficas. ARRUDA, R. K. Da poética do ator: Teatro & Cinema. Vila Velha, SOCA, 2019. BARBA, Eugenio; SAVARASE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Ed. Da UNICAMP, 1995 BRAGA, Bya. Ator de prova: questões para uma ação-física coral. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2007. BOGART, Anne. A Preparação do diretor: sete anos de ensaio sobre arte e teatro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2011. DUNKER, Christian. A Imagem entre o Olho e o Olhar. In: Sobre Arte e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2006, v.1, p. 14-29 122


SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do Drama. Porto: Ed. Campo das Letras, 2002. STANISLAVSKI, Constantin. A Criação de Um Papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. UBERSFELD, Anne. Para Ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. WISNIK, J. M. O som e o sentido, uma outra história da música. São Paulo: Companhia das Letras,1989.

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Cena Diversa: novas apostas Rejane Kasting Arruda

RESUMO Neste texto trago as primeiras considerações sobre o projeto “Surdos, Cegos e Cadeirantes na Cena Diversa do Teatro Capixaba”, apelidado de “Cena Diversa”. Ao detalhar o processo de criação de “Quando Acordar a Cidade, realizado com deficientes visuais, manejo princípios de pesquisa anteriormente investigados e relato procedimentos em função das especificidades do processo de criação. Passo por questões que se impuseram durante a prática de composição cênica, como o jogo de enquadres, as saídas para a dilatação corporal, o uso da sonoridade, narratividade, coralidade e performatividade.

Em 2019 fui a campo com cegos, surdos e cadeirantes em um projeto que ganhou o apoio da SECULT-ES através do edital Diversidade Cultural Capixaba. Registrado também na Pró-reitoria de Pesquisa e Extensão da Universidade Vila Velha como pesquisa do grupo Poéticas da Cena Contemporânea , na linha de pesquisa “Teatro e Inclusão”, o Cena Diversa parte da hipótese que o Teatro Pós-dramático acolhe os corpos diferenciados (Salles, 2012). Os deficientes (visual, físico ou auditivo) tem um “sinal de mais” para oferecer à cena. O que, pela sociedade, é considerado um “sinal de menos”, é acolhido e operacionaliza a construção de uma poética potente e singular. Não apenas com o corpo, mas com a maneira como cada um se relaciona com a experiência, memória e com o estar em cena, que surge enquanto lugar de fala e ressignificação de seus contextos de vida. As criações com surdos, cegos e cadeirantes me permitiram retificar os princípios já apreendidos, mas também rever posições e investir em novos procedimentos. Das questões levantadas posso destacar: a). a limitação com a qual nos deparamos em cada um dos grupos (a presença determinante da cadeira, a não utilização da visão ou a não utilização de oralidade e sonoridade) força uma tomada de posição em direção à construção de arranjos novos, 124


desafiando a criação de novos procedimentos e conquistando novas estéticas, resignificando as pesquisas anteriores; b) a necessidade de reenquadramento dos materiais trazidos e produzidos pelos atores, com a profunda dedicação a um jogo criativo de reenquadres; c.) no caso dos surdos precisei rever a minha posição em relação à cena figurativa do corpo, onde este assume a função de descrição e narratividade; d.) no trabalho com os cadeirantes a investigação de relações espaciais que a cadeira estrutura foi realizada com não cadeirantes, com ênfase na construção do corpo em plano baixo; e.) no trabalho com os cegos a saída se deu pelo som, fragmentação e performatividade.

O trabalho com cegos Eu já acompanhava o trabalho do Grupo de Teatro do Braille a alguns anos, através do projeto de extensão do curso de Artes Cênicas “Vi ver Teatro Sensorial com Deficientes Audiovisuais”, que gerou um trabalho performativo dirigido em pesquisa de TCC por Julia Del Fiume; e do processo e trabalho resultante dos Estagios Supervisionados de Lena Signorelli e Sabrina Paula Sabino: um espetáculo enquadrado como programa de auditório, constituído a partir de Jogos Teatrais spolianos. Quando cheguei, a espectativa dos atores era a profissionalização. Falei que toda trajetória artística é construída de modo singular e eles, como quaisquer artistas videntes 85, passariam pela questão de como consolidar um estilo e marca próprios a partir de uma cadeia de processos desafiadores. E que eu me propunha a toma-los como parceiros e co-autores, aproveitando suas singularidades como um “a mais” (sinal de mais) no espetáculo que iríamos criar; percebendo as suas potencias e evidenciando-as. A preocupação de alguns atores era que eu “adaptasse para cegos”. Acostumados desde a infância com isto, queriam ser tratados “normalmente”. Expliquei que não os trataria como portadores de algo em falta, mas como singularidade, extraindo daquele coletivo o que mais poderia ser potente para que a poética cênica acontecesse e eles tivessem orgulho de suas produções – como faço com todos os outros grupos. Foi com este princípio que criamos o espetáculo “Quando Acordar a Cidade” – que estreou no Teatro da UFES em treze de agosto de 2019. Extremamente sonoro, o espetáculo traz andarilhos chegando a uma cidade para acordá-la. Com função metafórica, esta pequena sinopse enquadra uma série de fragmentos: narrativas de vida, híbridas e inventadas,

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Como é chamado quem enxerga.

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apresentações de si através de objetos antigos, canções, dramatizações, brincadeiras da cultura popular, números de plateia onde a performatividade impera, citações da “época do rádio” e da História do Brasil. A relação com o corpo é diferente para quem já nasceu cego e aquele que se tornou cego depois de constituída a forma corporal. As atrizes que se tornaram cegas por doença (com dezessete anos ou adulta) possuem uma plasticidade de movimentos maior. A moça que se tornou cega com sete anos e os que são cegos desde o berço, não possuem plasticidade de movimentos ampliada. Em se tratando da demanda de corpos vivos e quentes, a questão que se apresenta é: como dilatar (Barba, 1995)? Esta questão é subdividida em duas: a) não existe a referência visual; b) não são corpos acostumados a se mexer (entornar, deformar, vetorizar); são corpos que tendem a preservar a sua forma. As tentativas de descrição dos movimentos a partir da voz não funcionaram. Partimos para a constituição da ação física de personagens de fábulas, representativas – trabalhando com a escuta de narrativas. Reproduzindo a estória escutada, incorporam as ações dos personagens. Funcionou. Ao compreender a ação do personagem é possível desenhar o corpo. No entanto, a linguagem corporal permanece limitada à tipificação (como os gestos da Madrasta de Branca de Neve se admirando no espelho, por exemplo). Este tipo de produção permaneceu quando Janaína Reis trouxe uma cena inventada: Mônica chega em casa cansada do trabalho, reclamando do pouco dinheiro, das contas para pagar. Enquanto, desesperada procura uma solução, recebe uma visita inesperada, junto com a notícia que recebeu uma herança. Esta cena foi enquadrada na radio-novela “A Herança”. A brincadeira da rádio acolhe uma oralidade bem desenhada que denota representação, trazida por sujeitos acostumados com novelas e filmes dublados. Os gestos representativos da ação também foram bem acolhidos. Ao mesmo tempo que conseguimos acolher estes registros já doados, trabalhamos a justaposição de enquadres. Fernanda Teixeira realiza ao microfone os passos e a manipulação de objetos da personagem de Janaína. Cria-se uma fissura entre cena e ficção, entre enquadramento ficcional e cênico, trazendo o eixo extra-ficcional para primeiro plano. No microfone: o som do salto dos sapatos no chão, da chave sacudindo, das moedas no vidro, dos guardados sendo remexidos na caixa, das folhas do bloco de nota. Partimos para estimulos desconectados das narrativas; formas detectáveis pelo tato, como “corpo de repolho”. Surgiram produções que, com Bya Braga (2007), podemos chamar de ação física coral ou abstrata; restos da forma do repolho em um corpo que não cabe na representação do corpo de repolho, tornando-a interessante plasticamente. Este caminho exige uma consciência a respeito da composição da linguagem cênica não representacional, através de fragmentos que não se encaixam em uma narrativa linear, portando-se como 126


abstração, que fora do sentido da ação. Para que porte um sentido de ação, seria necessário um deslocamento pela tessitura da cena e seus tempos – até encontrar o lugar onde possa fazer alusão a um sentido ao mesmo tempo que dele escape, gerando o efeito de ação física coral (a forma porta saídas para cadeias de associação distintas e um núcleo resistente à leitura). Não foi possível trabalhar o deslizamento destas formas pela tessitura da cena, mas continuamos a nossa investigação com o view point (Bogart, 2011). Também este, por ser fragmentado e não reduzido à representação, funcionou. E com a mesma questão posta: como utiliza-lo na tessitura cênica? Trabalhamos um quarto procedimento: as ações primárias. Em busca inicialmente do desenvolvimento do tônus, utilizamos “empurrar o ar” (Arruda, 2019). Em busca de engajamento na ação primária, utilizamos fala interna (Arruda, 2019). A fala interna promove o imaginário e implica e engajamento na relação com o outro, dando sentido à ação física e apresentando resultado em termos de elevação de tônus. Não se configurava uma linguagem própria dos corpos ou daquele espetáculo em especial, no entanto (mas sim a tentativa de aumentar o tônus e alcançar a dilatação). Nestes instante, percebemos que outras ações primárias poderiam ser mais úteis, como “solto” e “torto”. Os atores tiveram disponibilidade, acolhendo propostas e expressando alegria. Diante de algo diferente, aventuravam-se. Assim, foi possível introduzir as práticas extracotidianas. Trabalhamos os deslocmentos no espaço, sem bengala, através de cordas-guias que sentiam com os pés. Chegaram ao ponto de correr, juntos e caoticamente. Experimentamos encaixes dos corpos (em duplas) e o “empurrar o outro”. Eles se divertiam um bocado empurrando uns aos outros. A ação de empurrar foi uma introdução ao trabalho com a qualidade física “solto” para, em seguida, utilizarmos o “torto”; o torto e solto juntos; e os vetores de movimento para chegarem ao torto e solto. As formas se tornaram extracotidianas. O toque em nossos corpos (em videntes), para reconhecerem a forma e em seguida a reproduzirem; e a modelagem: criar esculturas no corpo de outros – são procedimentos que se apresentaram como um caminho para a extra-cotidianidade aparecer. Munidos desta estratégia que constituimos a partitura física da abertura do espetáculo: reunidos em um coro no centro do palco, os atores bradam um poema enquanto as falas são compostas com ações físicas.

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Fig. 1: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago

QUERO ACORDAR A CIDADE! QUERO ACORDAR AS CIDADES QUE DORMEM NOS HOMENS! E DEPOIS ACENDÊ-AS TODAS! COM LUZES E SOMBRAS, RISOS RUÍDOS E SUSSURROS, CHEIROS E CALORES, VENTOS E DORES.... ALEGRIAS. E PAIXÕES. E QUE TUDO DURE UM MINUTO. QUE SEJA UMA CENTELHA, UM BRILHO, UM TOQUE, UM AVISO, UMA LEMBRANÇA. 86

Este poema, criado pela atriz Ana Maria Botelho, foi introduzido no processo de criação a partir da solicitação de narrativas. Ele se comporta, no enquadre imaginário, como o manifesto dos andarilhos chegando para acordar mais uma cidade adormecida. As falas assumem, em relação à linguagem dos corpos, a mesma função da fala interna antes exercitada: estimular a dilatação das ações físicas. Diz a rubrica: As mãos espalmadas sobem em direção ao céu. Mãos cobrem o rosto. Mãos cobrem os lábios. Caem na gargalhada e logo depois tapam os ouvidos. Reproduzem um ruído compriiiiiiiiiidoooooo. A mão no peito como se recebessem uma estaca no coração, a boca aberta em um susto.... E com os braços abertos em um grande “V”. Braços cruzados em frente ao peito. Novamente o dedo em riste, o punho fechado com o braço para cima.

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Poema bradado pelos atores no início do espetáculo. Autoria de Ana Maria Botelho.

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Fig. 2: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

A poética dilatada de corpos está presente em dois momentos do espetáculo: início e final. Uma das atrizes portadoras de baixa-visão, Francyelle Almeida, tem um problema nas cordas vocais. Diante da proposição de criarem narrativas a partir do toque em materiais plasticos (folhas secas, espuma, água), ela me pediu para realizar uma “cena muda”. Esta “cena muda” é carregada dos resíduos do treinamento corporal anterior – a qualidade “solto e torto” junto aos caminhos que exploraram através dos encaixes e variações de plano. Embuida pelo imaginário de uma relação amorosa, ela encenou ações físicas enquadradas pela relação com o namorado. Chamamos a cena de “Garota Apaixonada”.

Fig. 3: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

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Percebemos que o corpo “diferente”, este que porta a marca de uma especificidade como a deficiência, traz marcas que funcionam por sua vez como gatilho para associações – conduzindo o trabalho para o performativo. Assim, privilegiar estes corpos não é “adaptar o processo de criação para cegos”, como teme nossa atriz Janaína Reis, mas incorporar o que há de especificidade nestes corpos, para que o eixo extradiegético funde o espetáculo como épico, privilegiando as fissuras entre enquadramentos e a elaboração posterior destas imagens na vida do espectador. Além da presença e performatividade, a estética corporal foi resolvida também com a frontalidade, imobilidade e deslocamento. A frontalidade faz parte da cultura do Teatro Pós-dramático. Já a tinhamos explorado na montagem de Vestido de Noiva. Esta cultura referencia arranjos corporais bastante diversos e um deles é quando o ator se faz quadro. Figura imóvel, exposta frontalmente, adquire força poética intensa quando algo suscita o jogo de enquadres. No primeiro ato de “Quando Acordar a Cidade” utilizamos esta força. Os atores seguram objetos antigos, parte de sua estória de vida, e se apresentam através deles. Estes nove atores imóveis posicionados frontalmente, contando as estórias dos seus objetos, considero um arranjo muito bem sucedido. Cada um que termina, vira de costas e sai, deslocando-se às cegas até chegar em sua cadeira. O fato do publico ter ciência da deficiência faz parte do dispositivo cênico. Existe uma espectativa e uma surpresa em relação aos deslocamentos. Estes deslocamentos são orientados através de cordas fixadas no chão com fica crepe preta.

Fig. 4: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

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Fig. 5: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

A prática com deslocamentos configurou-se como um treinamento pré-expressivo. A orientação é dobrar os joelhos e colocar as mãos em frente ao rosto, espalmadas para fora, para protegê-lo. Sem parar de mexer as mãos em frente ao rosto, os atores avançam no escuro, provocando esbarrões, que, amortecidos, transformam-se em encontros divertidos. Tornou-se uma diversão avançar e esbarrar; ou avançar, perceber e desviar. Até o ponto de correrem, os nove juntos, pelo espaço.

Fig. 6: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

Assim, treinamos e depois utilizamos deslocamentos orientados através de cordas. A prática poderia desenvolver-se com mais cordas. Utilizamos também uma das assistentesvidentes (como chamamos), como guia para levar os atores de um canto a outro, a cada início de novo ato ou cena. A figura das assistentes-vidente acabou por se revelar performativa. Os 131


desenhos dos movimentos e a lida em tempo real com a tarefa de desloca-los com agilidade, foram incorporados no espetáculo como contexto de bastidor revelado para a plateia – eixo extra-diegético. As assistentes-vidente Ana Paula Castro e Yasmin Toretta foram vestidas de “menino” pelo figurinista Antônio Apolinário, o que provocou uma leve articulação com a ficção (leve e precária, que não se impõe de pronto e nem com clareza). Se eu coloco uma atriz cega, embaixo de um foco, em posição frontal para a plateia, configura-se uma cena performativa, onde o que está em questão é o contexto real da atriz trabalhado cenicamente. Nove deficientes visuais bramdando um poema a viva voz, têm força performativa que não encontro comumente, a não ser que a plasticidade e composição cênica seja enquadrada de forma que gere performatividade.

Fig. 7: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

Considero que isto aconteça também com não atores que tragam a marca de suas vidas estampadas no corpo e no rosto. É cada vez mais comum o Teatro Pós-dramático se valer de pessoas que se fazem poéticas pela singularidade. O treinamento atoral de jovens nas escolas tende a homogeneizar os corpos. A performatividade entra como um princípio de composição cênica e isto nos liberta para criar com elementos advindos do contexto real dos atores.

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Fig. 8, 9, 10 e 11: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

O primeiro ato foi constituído com a apresentação de objetos da sua própria vida. Eu havia pedido objetos para trabalharem o enquadramentos dos andarilhos (com flores, cordas, baldes, bonecas, plantas, sacos, malas). Precisei faltar no ensaio seguinte e minha assistente filmou eles apresentando os objetos para que eu os visse. Quando vi o vídeo gravado, percebi que tínhamos uma cena. Os atores apresentando: cubarítimo, sonata, cobertor, urso, pedaço de osso guardado em um vidrinho, guia de cachorro, bonecas e vestidos de criança. Os arranjos contam com o contingente, o engano – as produções “sem querer” precisam ser impressas. Eu pensei uma coisa, eles trouxeram outra. E isto “deu cena”. 133


Fig. 12: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

Fig. 13: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

Outra cena performativa é Fernanda Oliveira abordando os espectadores: pergunta o nome de alguém, entra no facebook através do celular, descobre informações e revela. A ação se dá no instante presente. Ela trabalha com a dificuldade de realmente procurar no celular e o tempo que isto leva. O público espera até que ela encontre, revele as informações, enquanto brinca e improvisa: “Eu poderia ser agente do FBI”. A ideia desta cena veio de um desejo de apropriação da própria personalidade de Fernanda e da surpresa que senti quando ela fez isso

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comigo. Eu não sabia que existiam tantos aplicativos e que os cegos eram capazes de dominar a internet. Achei importante isto vir à tona durante o espetáculo. Houve um momento em que precisei escolher, sequenciar e enquadrar as estórias que eles trouxeram. Elas eram híbridas. Misturavam ficção e realidade. Algumas mais próximas da fição, outras mais próximas da realidade, outras misturando e alternando os dois contextos. As ficcionalizadas traziam um registro vocal que me lemvrava a dublagem, carregado de certa teatralidade. Estas foram enquadradas como radio-novelas da Radio Alecrim. As estórias reais foram enquadradas como testemunhos. Dois destes foram produzidos a partir da experiência do toque em folhas secas, água e espuma. A ideia era alterar o modo de enunciação das falas. A sensação do toque mudaria a forma de falar – pensei eu – quebrando com uma oralidade que me parecia artificial. Mas os materiais foram incluídos nas estórias que suscitaram. Foi assim que Antônio Fadini trouxe um dos fragmentos do espetáculo que mais mobiliza a plateia: em terceira pessoa ele conta a história de um bebê que esbarrava nos móveis enquanto engatinhava (e por causa disso sua mãe descobriu que era cego). Quando creceu, o menino juntava cadernos velhos e se juntava aos garotos que saiam da escola. Até que conseguiu estudar também. Estudou, trabalhou, constituiu uma família, teve tudo o que quis. No final, ele revela que o menino é ele. Foi o toque em folhas secas, água e sabão que suscitou a memória de Fadini para trazer esta história para o processo criativo: a sua mãe lavando roupa, ele caminhando nos campos de sua cidade natal. O nome “Radio Alecrim” veio da canção: “Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado. Foi meu amor, que me disse assim que a flor do campo é o alecrim”. Os atores trouxeram as canções: Alecrim, Enunciação, A Banda e outras da MPB. Com elas criamos uma “bandinha maluca” – com percussões de panela, talher, forma de bolo. No final o publico é convocado a cantar e dançar com eles, terminando em uma grande festa: “a cidade acordou”. Na Radio Alecrim foram introduzidas canções da época áurea do Radio, nos anos 40 e 50. Fernanda Oliveira e Janaína Reis cantam Aquarela do Brasil e Bandeira Branca à capela. A radio é finalizada com “Ave Maria”, cantada por Janaína, após o quadro “Momento de Fé”, outra estória trazida pelos atores. Com teor religioso, foi enquadrada como número da radio. Inventamos outros quadros, como “O que é o que é” e “Momento do Patrocinador”, com Janaína e Fernanda apresentando um aplicativo que lê os preços das coisas no supermercado e custa trinta mil reais, podendo ser financiado no Banco do Brasil com parcelas em cinco anos. O quadro ganha teor crítico e irônico. 135


Fig. 14: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago

Fig. 15: Quando Acordar a Cidade (2019). Foto Laysa Santiago.

A sinopse “andarilhos chegam a uma cidade adormecida para acordá-la” enquadrou os diversos fragmentos, com a ajuda da Radio Alecrim, que supostamente os andarilhos montam para acordar a cidade. Suas narrativas também são para acordá-la. A sinopse é relativamente simples e frágil, mas se situa com certo valor metafórico e funciona como um gatilho para a construção discursiva. A Radio Alecrim é bem humorada. Na radio-novela “A Morte” há sobreposição das vozes da empresária gananciosa e a sua filha primeiramente, e depois desta mesma com sua mãe, ambas representadas pelo mesmo ator José Carlos. A 136


artificialidade da construção dos quadros é revelada, nos bastidores, com a entrada e saída dos atores. As citações são abundantes. O humor no quadro do Homem do Tempo e de receitas “Credo, Que Sabor” são surpreendentes. Considerações No Cena Diversa, o deficiente visual é tomado como aquele que produz, usufrue e partilha de bens simbólicos, como “qualquer vidente”, e com uma destreza, potência e humor invejáveis; com o domínio da linguagem verbal e oral; com uma sensibilidade marcante para o ritmo e a sonoridade; voz para o canto, força, forma e potência para a produção artística. As pesquisas desenvolvidas no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator na Universidade de São Paulo representam as bases para desdobramentos metodológicos e novos recortes que se sucederam nos seis anos que teço a prática pedagógica, investigativa e de extensão na Universidade Vila Velha e que culminaram no projeto Cena Diversa. O jogo de enquadramentos e o olhar sobre a poética da cena como algo que escapa ao discurso, nos autoriza a manejar este jogo em busca incessante da produção estética, cada qual resultante de um dispositivo único e singular. O Cena Diversa se apresenta assim, para mim, depois de quatorze anos pesquisando, uma nova aposta e a perspectiva de deslocar o campo de investigação para novas construções, que tematizem, para além da poética cênica, a arte enquanto dispositivo de subjetivação. Percebi que é preciso pensar com dedicação sobre o lugar de representação deste teatro na vida dos sujeitos envolvidos e as operações para que produzam um discurso a partir desta experiência; a função da narratividade vivenciada diante do outro-público; perspectivas de continuidade do fazer artístico, para além do que a deficiência trabalhada em cena pode determinar para a as investigações sobre a estética teatral. Referências Bibliográficas. ARRUDA, R. K. Da poética do ator: Teatro & Cinema. Vila Velha, SOCA, 2019. BARBA, Eugenio; SAVARASE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Ed. Da UNICAMP, 1995 BRAGA, Bya. Ator de prova: questões para uma ação-física coral. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2007. BOGART, Anne. A Preparação do diretor: sete anos de ensaio sobre arte e teatro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2011. DUNKER, Christian. A Imagem entre o Olho e o Olhar. In: Sobre Arte e Psicanálise. 137


São Paulo: Escuta, 2006, v.1, p. 14-29 SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do Drama. Porto: Ed. Campo das Letras, 2002. STANISLAVSKI, Constantin. A Criação de Um Papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. UBERSFELD, Anne. Para Ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. WISNIK, J. M. O som e o sentido, uma outra história da música. São Paulo: Companhia das Letras,1989.

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Seis Registros para a Atuação em Cinema Rejane Kasting Arruda

RESUMO Neste texto desenvolvo uma orientação metodológica para o trabalho da atuação com cinema baseada na ideia de “registro”. O conceito é exposto bem como as modalidades que fazem parte da praxis proposta. Esta vem sendo desenvolvida desde 2011 na atividade pedagógica junto ao trabalho sistemático, primeiro como atriz e depois como diretora. A pesquisa teve durante três anos o apoio do CNPQ através do edital UNIVERSAL. Considero-a no entanto, ainda no início. Os procedimentos descritos estão ao dispor para que se construa, a partir de suas bases, desdobramentos, hibridismos e novas proposições.

Por “registro” entendo um arranjo corporal específico, que se apresenta como matriz (Burnier, 2001) no jogo do ator. Os registros que trabalhamos com os atores são: Naturalismo, Sujeira, Excesso, Performatividade, Teatralidade e Imobilidade, este último dividido em Neutralidade, Emoção com Contensão e Inumano. Estes registros são estudados a partir de referências para, primeiramente serem experimentados de forma pura e, em um segundo momento, alternados e hibridizados.

I. O Naturalismo, que se consolidou com Antoine na França e Stanislavski na Rússia durante a virada do Século XIX para o XX 87, tem princípios de construção que permeiam a teoria teatral desde o Século XVIII, quando Diderot, Goethe e outros, teceram as primeiras

Sabe-se que Stanislavski não fez apenas realismo e que sua pesquisa passa por várias estéticas. No entanto, para esta reflexão, estamos recortando este ponto. 87

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reflexões sobre o que seria o “natural” na cena teatral. Com estes teóricos, testemunha-se um princípio paradoxal: o “natural” é efeito de uma construção, ou seja, é um“artifício. O natural é um efeito de procedimentos. No início do Século XX, o Naturalismo se consolida enquanto linguagem teatral. Os marcos são “A Gaitova”, de Tchekhov, montada por Stanislavski no Teatro de Artes de Moscou e “Os Tecelões” de Hauptmann, dirigida por Antoine em Paris. O século XX, no entanto, interrompe o projeto naturalista quando, cada novo movimento estético que aparece, lança suas bases contra os princípios da mimese do real. O herdeiro do realismo passa, então, a ser um certo cinema dramático, que, por sua vez, precisou de uma sucessão de marcos, até que a atuação naturalista se estabelecesse como paradigma. Movimentos como o Neo-realismo Italiano e a Nova Holywood (a partir do qual podemos definir Jonh Cassavetes como um dos ícones) contribuíram para que hoje o cinema naturalista contemporâneo possa imprimir o que chamamos de “efeito de real” – dialogando com outras estéticas, como a do documentário direto e a contensão e planificação herdadas do cinema clássico. Este cinema, fundamentado na mimese da realidade, repete as demandas do teatro realista de Antoine e Stanislavski. É como se o cinema fosse um caso bem sucedido do realismo que, a partir das Vanguardas do XX, fracassou no teatro. Quando o propomos enquanto um registro atoral chave para a atuação em cinema (o primeiro registro a ser estudado), primeiramente deixamos claro que estamos falando de certo cinema: um cinema realista contemporâneo que demanda, de atores e não atores, uma atuação mimética cujo princípio é “como se fosse verdade” – explorando muitas vezes as fronteiras entre o documentário e a ficção. Trata-se de certa dilatação dos efeitos da cotidianidade, naturalidade, espontaneidade e mimese – através do corpo, fala e imagem do ator; registro por sua vez construído com operações que se precisa dominar: a divisão de foco com atividades física e a fala interna, além do movimento do olhar e uma emissão vocal específica. A divisão de foco com atividades físicas, pequenas, simples e cotidianas, realizadas “como que sem querer”, ou seja, automaticamente: uma espécie de distração, que oferece oposição à linha de ação contínua da ação dramática. Ações como mexer em uma bijuteria, bater com os dedos na prateleira, brincar com uma caneta, ajeitar a bolsa, mascar chiclete, fumar, beber, comer, “atrapalham” a linha de ação contínua; freiam, oferecem resistência, fazem perder um tempo a mais. Assim, o ator oscila entre esta atividade e a ação circunscrita pela relação com o outro (dramática). Eventualmente as duas linhas (a de atividades e a de ações) se cruzam e uma atividade ganha o estatuto de ação. Por exemplo, quando a atividade de fumar implica a ação de ganhar tempo para pensar antes de responder para o outro com o qual se está em relação (exemplo dado por Grotowski). 140


Mas a atividade pode se transformar em ação física. Por exemplo, se vocês me colocarem uma pergunta muito embaraçosa, que é quase sempre a regra, eu tenho que ganhar tempo. Começo então a preparar meu cachimbo de maneira muito "sólida". Neste momento vira ação física, porque isto me serve neste momento. Estou realmente muito ocupado em preparar o cachimbo, acender o fogo, assim DEPOIS posso responder à pergunta. (GROTOWSKI, 1988, pg. 01-02)

No caso do jogo da produção de linguagem naturalista para a atuação em cinema, o interessante é que estes encontros (entre atividade e ação interna) possam se desenvolver por evocação e não por representação. Ou seja, o ator se coloca em jogo com a atividade e, sem querer, por encontro com o enquadre ficcional (mundo do personagem), esta ganha o estatuto de ação. O registro da atuação naturalista exige, também, a divisão de foco com o material acústico interno. Por “fala interna” entende-se apenas: o que ator escuta internamente. Podese contar mentalmente até dez, “contar cadeiras do auditório” (Spolin, 2005), repertir para si mesmo uma regra de jogo ou um pensamento do personagem (modalidade stanskavskiana e kusnetiana). O termo, extraímos de Kusnet (1992), desde a pesquisa de mestrado 88, que objetivava uma retomada de ênfase desta instância em uma cultura teatral cuja prepoderância estava no corpo. O pensamento do personagem é apenas uma das modalidades possíveis de fala interna. É evidente a presença estrutural desta instância no jogo teatral e atoral. O ator deve colocar-se em pesquisa para a utilização da fala interna. Seja com uma lista de frutas, um pensamento segredado próprio, da personagem, uma instrução de jogo que repete para si, uma frase formulada a partir de uma substituição (que traz a verdade a partir da memória e o enlaçamento no próprio contexto de vida) 89; o ator precisa colocar-se em relação com a fala interna. O naturalismo depende disso, pois implica duas divisões de foco: com o elemento interno e com o elemento externo. Quanto à oralidade da fala naturalista, esta é mais um elemento externo dividindo

o foco e traz características específicas, como escanção do tempo, a irregularidade, a imprecisão e a hesitação, variações de velocidade.

A pesquisa “Apropriação de Texto: Um Jogo de Imagem” contou com bolsa da FAPESP e foi realizada no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator (CEPECA), de 2007 a 2009, sob orientação do Prof. Dr. Armando Sergio da Silva. 89 Ver Uta Hagen. 88

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II. Ter movimento “atrás dos olhos”: esta instância (o pensamento) se estabelece em ambos (imobilidade e naturalismo) como um movimento, ou seja, como algo vivo em um lugar onde não se pode precisar perfeitamente. Assim, o efeito de um pensamento real (que o ator produz inserindo a fala interna), gera poética. Inscrita no universo do personagem (cotidiano) a visualidade do pensamento se estabelece como “verdade”. Se há uma instância “interna” sendo exercitada, ela aparece para o público como presença de algo verdadeiro e esta pode ser treinada junto à divisão de foco com um objeto. Assim, retorna-se ao registro naturalista sem perder a concentração na fala interna. Ema Thompson e Dustin Hofmann conversando durante uma refeição em “Tinha que Ser Você” (Joel Hopkins, 2008). Encontramos uma displicência quanto à composição formal. A naturalidade se dá com a imprecisão, enquanto o foco de atenção se desloca para o elemento interno – acústico – que pode se oferecer para ser substituído pela fala externa e produzir o efeito de que esta foi criada improvisadamente naquele instante. A troca entre fala interna e externa é uma fórmula da emissão vocal naturalista. Apresentase como gatilho. Mas se trata de um texto fixo e o artifício de focar em uma frase interna enquanto se fala a externa é algo que se treina. Em Dustin Hoffman é possível perceber a escanção do tempo da fala, quando o ator gasta alguns segundos para procurar um material interno. Palavra ou imagem, é investindo a sua energia para “resolver o problema” (Spolin, 2005) de encontrar este material que se produz o efeito de naturalidade na fala. Isto porque aquela outra (externa) que se sucede a este momento de busca é substituto. E como substituto, causa a impressão de ter advido como uma escolha instantânea. A técnica da produção do registro naturalista é extra-cotidiana (Barba, 1995) portanto: implica desconforto, instabilidade, gasto de energia, tempo e trabalho. Existem estratégias experimentadas, por exemplo, para o ator formular uma fala interna a partir do seu contexto – trazendo a sua verdade para o jogo (a sua verdade como presença interna). Uma das estratégias é “engolir o texto”. O que o ator estava propondo 90 em improviso vai para o “interno” – enquanto, pela direção, lhe é dado outro texto. Isto como exercício nos serve em certos momentos. Este é um exemplo-testemunho de que o processo de criação de uma atuação em cinema exige estratégias. Quais estratégias serão utilizadas? Podemos inventar novas a cada processo. 90

Em improvisações durante processos colaborativos de trabalho.

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Outra estratégia pode ser a criação, pelos atores, de um roteiro de falas onde se colcoa também as falas internas – em oposição às externas. Um exemplo paradigmático para este exercício: a atuação de Robert de Niro em Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976), quando ludibria um policial, falando uma série de coisas que não tem relação alguma com o subtexto 91. Surge algo da dissimulação, da falsidade, do jogo entre falas internas e falas externas. Os atores podem inventar um contexto onde este jogo caiba para potencializar um subtexto absolutamente diferente do que se enuncia. São estratégias possíveis que não anulam a necessidade de invenção de novas.

III. Se tomarmos como premissa que a constituição de uma poética depende de efeitos de estranhamento, devemos nos perguntar o que pode estranhar no realismo, já que é, aparentemente, familiar. Neste sentido, teríamos duas coisas a dizer. Primeiro que, por se tratar de uma situação de representação (este é o pacto com o espectador, sabe‐se que o que está sendo visto não é do contexto da realidade e sim da ficção), o efeito de real estranha. Em segundo lugar, que a imobilidade se afirma como uma borda, um limite para o naturalismo, permitindo um jogo de alternências e rupturas. A imobilidade se apresenta heterogênea – registro outro. É um registro específico que podemos manejar e hibridizar. Um filme exemplar para a imobilidade é “Blade Runner” (Ridley Scott, 1982), em sua modalidade mais evidente: o “inumano”. Muitas vezes este registro torna o rosto do ator uma máscara pétrea, posta em personagens psicopatas ou ciborgues. Acreditamos que existam personagens que se coadulam mais facilmente ao registro da imobilidade. No entanto, é possível perfeitamente imprimi-la em personagens comuns, como borda do naturalismo, rasgando-o e excedendo-o. Outra modaldide da imobilidade é a neutralidade. Um filme paradigmático é “ O Garoto da Bicicleta” (Irmãos Dardenne, 2011). Tanto o garoto (Thomas Catoul) quanto a moça (Cécile de France) mantém o rosto imóvel enquanto a intensidade dos seus afetos é perceptível. O rosto imóvel não denuncia um “expressar” para o espectador. A expressão se dá pelas ações dramáticas e não pelo rosto. Preservando uma expressão neutra no rosto, sem “expressar” o que estão sentindo, os atores colocam o espectador em investigação.

Aqui situado como um conjunto de falas internas, atrelado a um universo ficcional não dito mas evocado para o espectador. 91

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Tomamos a “emoção com contenção” como terceira modalidade da imobilidade. O termo faz referência à ação de tentar conter a emoção. Trata-se de um registro bastante comum: o ator tenta segurar a emoção mantendo o rosto imóvel enquanto esta escapa.

IV. O filme “Entre os Muros da Escola” (Laurent Cantet, 2008), se apresenta como exemplo paradigmático de uma “atuação suja”: registro Sujeira. Os gestos são grandes e imprecisos. O efeito é de um documentário direto. Parece que a câmera (e o cineasta) são voyers de algo que está acontecendo de fato, de um contexto “real”. No entanto, é ficção. Foram utilizadas estratégias. Uma delas é o protagonista ser o autor do livro que o filme toma por base, de fato professor em escola municipal para alunos daquela idade e contexto social. Da mesma maneira, os alunos são não-atores, mas de contexto idêntico ao do filme. Esta estratégia aponta uma condição sine qua non para o efeito de realidade acontecer: o enlaçamento na situação‐dada. A partir do enlaçamento na situação, o registro que chamamos Sujeira tem

resolução formal específica, baseada no princípio de fazer desmoronar qualquer

ideia de representação. Se a atriz sai do enquadramento, debruçando-se sobre a mesa e esfrega a mão no rosto, como Margarita Terekhova em “O Espelho” (Tarkovsky, 1975), é porque não está representando. O mesmo acontece quando o

ator, em meio à crise de riso, sai por diversas vezes do enquadramento, forçando a camera a se reposicionar, gerando caos, como acontece com a conversa do casal à

mesa no inicio de Faces (Cassavetes, 1968). Este tipo de arranjo corporal dilui

qualquer impressão de representação, apresentando os personagens como “pessoas e não atores” (permito-me usar um clichê da preparação de atores para cinema).

Levamos os atores a realizarem improvisações com o registro Sujeira, como

norte para a construção corporal e verbal. Uma fala por cima da outra, a explosão

emocional, o deixar‐se levar pelo conflito, o gesto sujo e grande, a divisão de foco com os objetos, com o próprio corpo, com o ambiente; o enlaçamento na ação para que os impulsos (das falas e das ações) aconteçam.

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V. “Performatividade” é um termo polêmico, pois utilizado em contextos diferentes. Para além do seu uso corrente, surge com as propostas de Austin para a análise literária: segundo o autor, a palavra performa (age) – e não representa. Sabe-se das proposições de Schechner quando aplica o termo a qualquer acontecimento social, direcionando-o, principalmente, para ações culturais que convergem para uma espetacularidade cênica (e alargando, assim, o seu sentido no campo teatral), como rituais indígenas ou outras manifestações de raiz. O termo vem também como chave do “Teatro Performativo”, como é proposto por Josette Feral em resposta ao que Lehmann chamou Pós-dramático, justamente para não circunscrever a essência do teatro contemporâneo ao pós-drama, mas tentando extrair o que há de operatório, não na relação de oposição ao drama, mas nas operações de deslizamento do sentido. Feral introduz, para o Teatro Performativo, uma espécie de performar do olhar do espectador – que enquadra a obra e extrai sentidos múltiplos e deslizantes. Este seria um norte para pensarmos o que significa o termo performatividade, ligado a algo incerto, processual, ato e ruptura da representação. O termo utilizado em referencia ao que rompe: com o contexto da tessitura da obra; os códigos sociais e as representações pré-estabelecidas (ou as utiliza, citando-as de forma crítica e paródica), justapondo contextos diferentes e deixando aparecer o olhar do artista, que performa. A pergunta que me faço é como este termo pode ser utilizado em relação à produção cinematográfica e, principalmente, em relação à produção do ator. A partir desta questão, elegi exemplos e tomei-os como ponto de partida para desenvolver um pensamento a respeito da performatividade no cinema. Foram eles: “Febre do Rato” (Claudio Assis, 2011), “Fando Y Lis” (Jodorowsky, 1968), “Kika” (Almodovar, 1993), “Madame Satã” (Karim Ainouz, 2002). A escolha foi de forma aleatória (de acordo com o que lembrei do que já tinha visto e que me marcou). Inúmeros outros filmes poderiam ser escolhidos como modelares para o conceito de performativiadade. Percebendo a abrangência, nos deparamos com o problema de pensar o que opera a estrutura da performatividade, já que tantas são as modalidades. Em “Febre do Rato”, a cena que mais me chama a atenção é quando Irandhir Santos, transloucado, recita um poema em função de um ritual de casamento de dois amigos. A questão é: por que se trata de performatividade? Se levarmos em conta a ruptura do universo diegético, o ator deixa transparecer a sua relação com o ato de fala de um poema – relação que se pode dizer performativa. Por que? O que performa nesta cena? Há uma inscrição de outra linguagem (a poesia), acentuada em sua diferença pelo ator que o recita – de modo que a cena 145


se sustentaria autônoma. A ação está como um “a mais” no contexto diegético representado e conduz a outro contexto: o do ator em sua relação com a fala poética. O performar do ator aparece. O mesmo acontece em um diálogo com Matheus Nachtergaele, no bar. Irandhir Santos começa a cantar as falas. O performar do ator aparece. Ele está como um performer (e não como ator escondido atrás da mimese do personagem). Acontece um rasgo na tessitura de um contexto para aparecer outro, de maneira que se performa também o olhar do espectador na costura dos dois contextos. O mesmo na cena em que a comunidade ateia fogo no Judas na rua. Embora se trate de uma outra modalidade: uma ação sobre o contexto real, que não se repete (não se representa). Atear “realmente” o fogo, destruir o objeto, agir sobre o real de modo que não se possa repetir (a não ser que se construa outro boneco). Ação de risco, que se faz uma vez só; que se performa na sua relação com o real. Trata-se de outra modalidade, mas que também deixa transparecer o contexto do ator (agindo no real). Esta modalidade está presente também quando Irandhir picha um muro. Até aqui trata-se de duas modalidades diferentes onde a visualidade do contexto do ator agindo aparece: em relação ao performar palavras ou performar o mundo. Aqui, ainda, não se trata de performar personagens. No entanto, o conceito de performar pode ser deslocado para a representação mimética, quando algo desta aparece na visualidade deste performar. Qualquer acento e matizes de tipificação (que podem aparecer como paródia, crítica, citação, exagero ou esteriotipia), servem para evidenciar a realidade (o contexto) do ator performando. Trata-se de um terceiro tipo, também evidenciando o performar do ator (e também do espectador, quando percebe os diferentes contextos cuja visualidade salta aos olhos). Até aqui, parece-nos que a performatividade estaria centrada em uma espécie de “dar a ver o contexto do ator”, que age sobre o mundo – seja com um poema, uma ação real (queimar, pichar ou destruir) ou, ainda, simplesmente encenando algo para o olhar de alguém. Assim, os shows, de dança ou canto, que irrompem em um espaço institucionalizado pela diegese (como teatros ou bares) ou, ainda, no próprio cotidiano (onde, de repente, o ator começa a dançar ao invés de agir, cantar ao invés de falar) aparecem como atos performativos pelo mesmo motivo: o performar do ator (que se impõe como performer) extrapola o universo diegético. Neste caso, existem gradações, por exemplo, quando ações e gestos criam um ritmo, que se insitua comomaterial da poética atoral, mas ainda não se transformou em dança (poética autônoma). O ritmo dos passos, olhares, mãos, impõe-se como material destacado 146


pelo olhar do espectador para, em um segundo momento, virar dança, percebida, então, como uma outra linguagem, rompendo com o cotidiano mimético diegético. No exemplo de “Fando Y Lis” temos Lis, no começo do filme, comendo uma flor. Neste caso, mesmo que o enquadre seja oferecido pelo universo diegético (é Lis que come a flor), não aparecendo a visualidade do ato da atriz (porque enquadrada como personagem), algo estranho acontece quando se troca coisas de lugar. E o que aparece é uma performatividade do filme ou da poética jodorowskiana (que o ator assume como sua). Neste caso, existe uma quebra de padrão, ruptura dos códigos sociais onde a própria linguagem performa ao oferecer outros arranjos (inusitados e não usuais). Aparece a performatividade de uma linguagem plástica que o filme usa (e também o ator que a executa).

Fig. 1: Victoria Abril em “Kika” (Almodovar, 1993)

Fig. 2: “Kika” (Almodovar, 1993)

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No caso de “Kika” (Almodovar, 1993), temos a apresentadora de televisão “altamente performativa”. Por que podemos falar assim? Trata-se de um conjunto de elementos, que trazem a visualidade do performar: o próprio corpo, as suas vestes, imagem que se insinua de forma provocativa quando quebra qualquer padrão de apresentadora de televisão e traz (desloca) um contexto para o outro – promovendo uma espécie de encaixe, de prótese. O que poderia estar em um show, em uma espécie de “boate pós-moderna” (com toda a cadeia de significantes que isto implicaria, toda a rede de imagens de um contexto específico, que é o show erótico), aparece em um programa de TV onde se entrevista a mãe de um jovem assassino. O protótipo desta mãe, humilde em seu conservadorismo e imobilidade (inclusive de pensamento), o semblante reconhecível como “a mãe padrão”, honesta na sua tipificação (o que mais assombra); quanto mais esta mãe contrasta com o erotismo da apresentadora,

mais

efeito

de

performatividade

temos.

Colocamo-nos

diante

da

performatividade do “fora de lugar” novamente, implicado na poética e na escritura almodovarianas, que a atriz assume. Por fim, “Madame Satã” (Karim Ainouz, 2002) traz um rasgo no cotidiano quando estampa a performatividade em função de um show a ser realizado em um bar, mas que, já nos momentos da preparação, dentro de casa, invadem a cena: o canto, a dança, o travestimento, a maquiagem. Poder-se-ia dizer que se trata de um cotidiano diegético. É na sobreposição de contextos, diegético e performativo, que o olhar do espectador performa, costurando os dois – já que se trata de diferença. Por que o performar da canção, o travestirse, maquiar-se, falar um poema e dançar, são ações que se estabelecem como diferença em relação ao diegético? Porque dá-se a espetacularização. Estas ações se destacam como não dependentes da diegese para que a sua poética aconteça. A ação performativa é “por si” e aparece como “um a mais” em relação ao contexto diegético linear. A ação performativa brilha e se impõe como jogo de linguagem autônomo. Poderíamos dizer, assim, que a estrutura da performatividade está em sua propriedade de se fazer valer enquanto poética autônoma em relação ao contexto diegético com o qual se articula.

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VI.

A Teatralidade é a explicitação do desenho do corpo ou da voz, a valorização destas instâncias. Com seus traços são bem evidenciados, dizemos “limpo”. Esta “limpeza” do desenho do corpo evidencia que ali está um ator representando, construindo este desenho. A teatralidade evidencia o contexto da representação, portanto. Este registro pode esatr mais ou menos evidente, mais ou menos híbridizado. Gosto muito da construção de Anna Karina em “Uma Mulher é uma Mulher” (Godard, 1961). O piscar dos olhos, a ação de coçar o pescoço e de reclamar do marido: vejo teatralidade em seus gestos bem desenhados. Ainda assim, não se perde a singularidade desta construção. Mesmo que o ator jogue com esteriotipias, pode regálas de vida (Boggart, 2011). A teatralidade no cinema pode ser algo extremamente belo se o ator tiver engajamento interno, se portar enlaçamento na situação. E deve estar coagunada com a poética filmica para funcionar.

VII.

O Excesso é a expressão de uma temporária perda de controle. Se estamos trabalhando a dor, é dor demais; se choro, é choro demais; se riso, é desatar a gargalhar sem controle. A intensidade tem a ver também com duração: este estravazamento dura, dura mais e mais. O olhar desacredita no que vê tamanha força de estravazamento, initensidade, tamanho descontrole. O excesso desafia os limites, alarga-os. É sempre mais e mais; é descontrolado, descabido, fora do lugar, insuportável de se olhar. A questão é como autoprovocar-se para esta crise acontecer; quais procedimentos de preparação e qual o gatilho, o ponto sensível onde se toca; quais dispositivos permitem este jorro. Qualquer procedimento, de bioenergética à escrita de monólogos interiores, cartas para pessoas cuja relação implica enlaçamento afetivo, só vai funcionar se o ator se permitir, se quiser se lançar na crise que trará a perspectiva da reação corporal. Provocar a crise é uma tarefa do próprio ator. É preciso permitir-se. 149


“Gritos e Sussurros” (Bergman, 1972); cena em que a personagem de Harriet Andersson morre. Os gritos de dor são insuportáveis; a atriz ultrapassa o limite do aceitável chegando ao grotesco. Isto é o excesso: colocar-se diante do insuportável – e, por isso, um ato de entrega. Exige a consciência do querer isso; do desejo de atravessar os próprios limites e desconhecer-se naquela ação. Não se trata de planejamento ou uma partitura ensaiada. É uma crise deflagrada e flagrada pela câmera.

VIII.

Pontuamos características dos seis registros trabalhados em um processo de iniciação do ator na linguagem cinematográfica. Considera-se que este é o início de uma pesquisa e que a ideia dos registros serve para uma série de desdobramentos. Estamos investigando etapas anteriores que possam servir para um passo-a-passo até que o ator chegue com mais segurança e propriedade na formalização e treino destes registros; e hibridismos com outras sistemáticas de trabalho, advindas de outras escolas, a partir de uma leitura crítica e contextualizada sobre estas. Pretende-se que a pesquisa avance e que os atores possam dispor desta ideia para descobrirem seus próprios caminho no jogo da atuação.

Referências bibliográficas BARBA, Eugenio; SAVARASE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Ed. Da UNICAMP, 1995 BOGART, Anne. A preparação do diretor. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011. BURNIER, L. O. A arte do ator: da técnica à representação. Campinas, Ed. Hucitec, 2001. KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo, Ed. Hucite, 1992. SPOLIN, V. Improvisação para o Teatro. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2005.

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O atelier de figurino como lugar de criação colaborativa e afeto

Eraní Ferreira Soares

RESUMO O presente artigo propõe uma análise sobre do ateliê de figurino, como um lugar de colaboração criativa e afeto, fazer uma reflexão acerca do trabalho desenvolvido no atelier de figurino do curso de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha - UVV, criado em 2011. O trabalho se desenvolveu, enquanto ministrava a disciplina de Indumentária e Caracterização do Figurino. Atualmente, com a mudança da coordenação do curso, e mudança da grade curricular, a disciplina passou a se chamar Figurino I e II. Um dos objetivos do atelier de figurino, é dar suporte a outras disciplinas do curso, como também, é o lugar para o desenvolvimento da parte prática das aulas de figurino, local esse que se transformou num espaço de acolhimento e colaboração afetiva, para alunos do curso de artes cênicas, e de outros cursos da universidade.

Este texto surgiu da reflexão acerca do trabalho desenvolvido no Atelier de Figurino do curso de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha - UVV, criado em 2011, enquanto ministrava a disciplina de Indumentária e Caracterização do Figurino. Atualmente, com a mudança da coordenação do curso, a disciplina passou a se chamar Figurino I e II. Um dos objetivos da disciplina é dar suporte às aulas de direção por meio da construção de figurinos e acessórios para os espetáculos, bem como para outras disciplinas. Também faz parte do conteúdo temas relacionados com a Introdução ao Estudo de História da Indumentária e a Poética no Processo de Criação de Figurinos.

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Fig. 1: Oficina de extensão “Indumentária”.

O espaço onde acontecem as aulas pertence ao curso Design de Moda nos foi cedido pela coordenadora, para realização das atividades do curso de Artes Cênicas, pois não possuímos um laboratório específico para o curso. Este espaço é o Laboratório de Modelagem e Estamparia do curso de Design de Moda. O local foi escolhido por já ter a estrutura física necessária para nossas atividades e por atender às diferentes demandas do curso de Artes Cênicas. As disciplinas de ambos os cursos tem interesses a fins, apesar de que moda e figurino são áreas distintas, ora se relacionam, ora não. A moda sempre foi o reflexo das ações da humanidade e o cinema-teatro-novelas a grande vitrine disso tudo. O figurino para o teatro, em especial, vai muito mais além de roupas e acessórios. O figurino é um traje “mágico”, pois possibilita ao intérprete (ator-atriz) ser outra pessoa por um determinado período de tempo. A criação de figurino é um processo que envolve arte, design. Suas diversas categorias, por fim, reúnem-se para formar o produto final. Adriana Valese (2003, p. 18): Trata dessa questão ao apresentar o produto final: “pensar a arte e o design é pensar, também, nas transformações, nos processos, nas recepções e interpretações possíveis, através de seu caráter de comunicabilidade.” No que se refere ao teatro, envolve-se a linguagem do corpo, das cores, das formas e sons através da iluminação, vestuário, cenário e musica.

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Nesse sentido, para Martins: Quando nos referimos à linguagem, nos vêm à mente, a linguagem falada, escrita, isto se deve ao fato de estarmos habituados a pensar, que são as formas mais simples de nos comunicarmos, de produzir e interpretar conhecimento. Que, muitas vezes, fechamo-nos para outras formas de linguagens, que também expressam, comunicam e produzem conhecimento. Podemos dizer que a linguagem é um sistema simbólico, e toda linguagem é um sistema de signos (MARTINS, 1998, p. 37).

O atelier de figurino é o local onde são desenvolvidos os processos de criação, desenho, modelagens e costura, além das atividades práticas do curso. O espaço se torna um local de acolhimento, criação coletiva e também de afeto. Reproduzir ou criar formas?

Fig. 2: Atelier de figurino “Criação de Figurino”

Aqui vamos falar do destaque dado por Gilles Deleuze (1925-1995) à arte e ao afeto, pois são eles, em sua diversidade, os responsáveis por dar forma aos afetos que favorecem as experiências estéticas. São muito importantes para o desencadeamento do devir sensível, uma vez que, em arte não se trata de reproduzir ou criar formas, mas de captar forças. Deleuze sempre atribuiu à arte um papel de destaque em seus trabalhos e em 153


suas entrevistas, mas não enalteceu este ou aquele artista, pensou a arte enquanto criadora de sensações e experiências. Vejamos o que o filósofo francês escreveu a respeito: É de toda a arte que seria preciso dizer: o artista é mostrador de afetos, inventor de afetos, criador de afetos, em relação com os perceptos ou às visões que nos dá. Não é somente em sua obra que ele os cria, ele os dá para nós e nos faz transformar-nos com ele, ele nos apanha no composto (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 227- 228).

O conceito de afeto está concentrado na Educação, na História da Arte, na Filosofia e em outras áreas. Este conceito circula ao longo da historia, até os tempos atuais, pois os afetos estão presentes nas relações humanas. Em se tratando do significado de afeto no espaço, os alunos dos diversos períodos do curso e de disciplinas, tais como, Cenografia, Figurino, Corpo e Estágios se encontram para troca de experiências e colaboração criativa mútua: As práticas comunicativas no contexto da construção de projetos artísticos, no caso, com uma questão que parece ser relevante: são meios que parecem ser buscados por necessidade de comunicação sentida pelo grupo. Minha reflexão sobre algumas das especificidades dos processos em equipe, a partir do conceito de criação com rede, partiu das questões relativas ao contexto de produção, a formação do grupo e as instituições das duas instâncias das tendências dos processos-construção em grupo de um projeto comum à comunicação de tal projeto (SALLES, 2017, p.156-157).

Em todas as linguagens artísticas, o artista é quem apresenta, inventa e cria os afetos em relação às perspectivas que ele nos dá. Somos afetados e nos transformamos pela produção de suas obras (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 227). O atelier de figurino é um lugar de afeto, onde alunos e professores compartilham momentos de acolhimento e afeto. Novamente Deleuze contribui com nossas reflexões ao afirmar que a arte forma um “bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afetos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213). Ao considerarmos a reflexão quanto aos grupos de alunos e à criação coletiva, grupos são formados por indivíduos, afirmando ter encontrado algumas constantes que dizem respeito tanto aos criativos componentes individuais de um grupo criativo, quanto do grupo criativo no seu todo. A respeito da criação colaborativa, o que chama muito a atenção no grupo de figurino pode ser expresso pelo sociólogo italiano Domenico de Masi (2007, p.161162) aborda: Frequentemente convivência pacifica de pessoas de personalidades muito contrastantes: a flexibilidade de horários, mas também a capacidade, quanto À

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necessidade de sincronismo e pontualidade: a convivência interdisciplinar e complementaridade e afinidade cultural de todos os membros; a capacidade de aproveitar oportunamente as ocasiões de calibrar a dimensão do grupo com base na tarefa, de encontrar os recursos, de equilibrar a natureza afetiva com a profissional, de modo a permitir um fácil intercâmbio de papeis e funções (DE MASI, 2005, p.161-162).

A partir da oferta de Monitoria para Figurino e também o Projeto de Extensão o qual sou professora colaboradora, a Oficina de Figurino tornou-se um espaço de acolhimento para os alunos. Alguns alunos iniciantes no curso de Artes Cênicas se sentem perdidos em relação ao curso, com questões relacionadas a ter feito a escolha correta, muitas vezes por parte dos próprios familiares, por acharem que se trata de um curso sem perspectivas profissionais. Diante de tais considerações, o espaço tornou-se um local de discussão, onde os alunos expõem suas angústias, e também suas conquistas. A afinidade gerada entre os alunos que frequentam o Atelier de Figurino, em alguns momentos, gera uma percepção segundo a qual aluno ou professor está bem emocionalmente ou não. Por veze, essas percepções ocorrem de forma mais forte do que no âmbito familiar ou por aqueles que convivem no dia a dia com os integrantes do nosso grupo. O espaço também é um local que causa certo encantamento para os alunos, pois funciona como laboratório para o Curso de Moda e, em meio a tecidos, tintas, manequins, pincéis, a criatividade aflora, também é um local para a construção de trabalhos para Estágios dos alunos. Isso pode ser observado pelo brilho no olhar deles. Ainda relacionado ao grupo de alunos que frequentam as Oficinas do Atelier de Figurino, David Le Breton traz, ainda, uma colocação que corrobora a ideia das emoções como resultado direto da organização social e cultural de um grupo (RODRIGUES, 2009, p.117). O antropólogo enfatiza que um homem que pensa é sempre um homem afetado, que possui sua memória impregnada de certo conhecimento sobre o mundo e sobre os outros. Ele pontua: As emoções que nos acometem são formas organizadas da existência, identificáveis no seio de um mesmo grupo, porque elas provêm de uma simbólica social, embora elas se traduzam de acordo com as circunstâncias e com as singularidades individuais (RODRIGUES, 2009, p. 117).

A afetividade, afirma Adriana Vieira (2010, p.28), é parte integrante da subjetividade. As expressões são melhores compreendidas se considerarmos os afetos que as acompanham. Logo, os afetos determinam o comportamento humano e constitui um aspecto de fundamental importância na vida psíquica, pois se expressam nos desejos, sonhos, 155


expectativas, palavras e gestos que cada ser humano nutre ao longo da vida (VIEIRA; LOPES, 2010, p. 21). Segundo Mirian Celeste Ferreira Dias Martins (1998, p.129): “na verdade, toda sala de aula é retrato de uma história pedagógica, construída numa concepção de educação. A cada dia de aula, no encontro com professor e alunos, o retrato do espaço vai se esboçando”. O espaço do Atelier de Figurino é acolhedor, no sentido de que, quando alguns alunos iniciam o curso, estão um tanto deslocados em relação a esse novo contexto, como também pelo tamanho do espaço físico, pois o campus da universidade é relativamente grande. Segundo relatos de alunos, alguns se sentem indispostos, quando chegam cedo e não têm onde ficar; ou sem a companhia de amigos. Nesse sentido, o Atelier de Figurino, como alguns disseram, é um porto seguro.

Fig. 3: Desfile de figurino no “Perfoma-ES”.

Nesse aspecto, o teatro é fundamental para a socialização do aluno, como afirma a tradutora e escritora Ingrid Koudela (SPOLIN, 2010, p. 3,4) o teatro pode ser considerado como uma ferramenta para construir o seu próprio ‘’eu’’. É importante para o desenvolvimento do aluno e na formação de sujeito ao inseri-lo na sociedade. Trabalhar com as regras do teatro é muito educativo e instrutivo: existe o tempo de parar, de agir, de falar e de ouvir. Consideramos que o respeito é o princípio basilar do teatro. O Atelier se encontra sempre aberto para receber e acolher os alunos. 156


Fig. 4: Desfile de figurino no “Performa-ES”

Fig. 5: Atelier de figurinos “Preparação para apresentação de performance”

O ambiente é específico para desenvolvimento de atividades artísticas, para o desenvolvimento das várias linguagens artísticas, visto que está equipado com mesas compridas, cadeiras, araras (suporte para cabides), moulagens, tecidos, máquinas de costura. Isto tudo, devido ao Atelier ser usado também pelos alunos do curso de Design de Moda. No local encontram-se também tintas, pincéis, tesouras, roupas, assessórios, dentre outros materiais e instrumentos. Em alguns momentos, serviu de local para performances artísticas.

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Fig. 6: Performance realizada no “Atelier de Figurino”

Fig. 7: Oficina de extensão “Máscaras”

Segundo Fayga Ostrwer (1999, p.251) são condições internas e espirituais que permitirão aos indivíduos serem criativos: sua capacidade de engajar-se no que faz, de permanecer flexível e firme, mesmo em face de certas contingências da vida sem, no entanto, perder a integridade de suas atividades. É, sobretudo, o respeito pela vida. Que não é outro senão o respeito pelas matérias com que lida, bem como com suas linguagens, ou seja, engloba o respeito a si próprio. 158


Fig. 8: Interdisciplinaridade, Design de Moda e Artes Cênicas.

Nas práticas expressivas contemporâneas, em teatro, arte, e design, as ideias são representadas através de linguagens particulares, em uma busca pela interação entre o espaço onde os processos criativos são vivenciados e os materiais. Nas várias linguagens do teatro, os figurinos se mesclam, perpassando por diversos meios de expressão: desenhos, colagens, costuras, bordados, impressões, até resultar em formas híbridas. Conforme Lucia Santaela (2003, p. 135), são consideradas híbridas as produções artísticas que utilizam: linguagens e meios que se misturam e compõem um todo mesclado interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada. A magia do espaço e seus materiais afloram no desenvolvimento do processo criativo: O Experimentar é penetrar no ambiente, é envolver-se total e, organicamente com ele, isso significa o envolvimento em todos os níveis intelectual, físico e intuitivo. Dos três, o intuitivo, que é o mais vital para a situação de aprendizagem é negligenciado. A intuição é sempre tida como tendo uma denotação ou uma força mística possuída pelos privilegiados somente. No entanto, todos nós tivemos momentos em que a resposta certa simplesmente surgiu do nada ou fizemos a coisa sem pensar. Às vezes em momentos como estes, precipitamos por uma crise, perigo ou choque, a pessoa “normal” transcende os limites daquilo que é familiar, corajosamente entra na área do desconhecido e libera por alguns minutos o gênio que tem dentro de si. Quando a resposta a uma experiência se realiza no nível do intuitivo, quando a pessoa trabalha além de um plano intelectual conscrito, ela está realmente aberta para aprender (SPOLIN, 2010, p. 3-4).

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Para alguns alunos, também é momento de socialização, pois a universidade é um mundo novo em suas vidas. O teatro envolve uma atividade em grupo, onde ocorrem trocas de ideias, colaboração, organização de papéis e funções, percebe-se a sua potencialidade para a descoberta do outro e de si mesmo. Ao colocar em debate o quanto os processos ditos individuais, realmente, podem ser vistos como práticas de sujeitos isolados, falamos dos artistas em criação imersos e sobre determinados por sua cultura que, em estado de efervescência, possibilita encontro de brechas para a manifestação de desvios inovadores (SALLES, 2017, p.123).

Fig. 9: Oficina de figurino ministrada pelo monitor de figurino.

No Atelier de Figurino, alguns alunos realizaram projetos de extensão direcionados aos alunos de Artes Cênicas e outros cursos da universidade. As oficinas oferecem noções de costura, cor, confecção de máscaras e criação de figurino.

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Fig. 10: Apresentação Romeu e Julieta na “Abertura de Processos de Criação Cênica” da UVV

Até o presente momento foram desenvolvidos no Atelier a confecção de diversos figurinos para apresentação no evento criado pela coordenadora do curso. Inicialmente, foi chamada de “Abertura de Processos de Criação Cênica” para, posteriormente, ser nomeada como “Perfoma-ES”: diversas mostras das atividades desenvolvidas no curso de Artes Cênicas. Nesse desenvolvimento, os figurinos transformam a figura em arte, expressam e estão relacionados em espetáculos apresentados. Alguns deles foram: Romeu & Julieta, Alice, Peter Pan, Quem tem medo de Plínio Marco, entre outros. Como o curso de Artes Cênicas é um curso de licenciatura, os alunos cumprem um período de estágio. Os alunos levam para seus estágios, os conteúdos desenvolvidos nas oficinas, que eram, e continuam sendo, de grande valia para seus trabalhos desenvolvidos nas escolas de ensino fundamental e médio. As práticas nas oficinas ministradas pelos alunos despertam a vontade de seguir a vida acadêmica, de se tornar professor/ator.

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Fig. 11: Apresentação de “Peter Pan” no Performa-ES.

Fig. 12: Apresentação de “Alice Uma Quase Ópera Punk-rock Contemporânea” no Performa-ES.

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Outro aspecto também relevante é a interdisciplinaridade com outros cursos (Design de Moda e Produto), onde os alunos interagem, trocam experiências e colaborações, é muito enriquecedor. A arte é algo presente na vida humana, o ser humano representa e expressa suas emoções em todos os âmbitos da vida. Segundo Ernst Fischer, em seu livro, a Necessidade da Arte (1976, p. 12), notamos que: Milhões de pessoas leem livros, ouve música, vão ao teatro e ao cinema. Por quê? Dizer que procuram distrações, divertimento, a relaxação, é não resolver problema. Por que distrai, diverte e relaxa mergulhar nos problemas e na vida dos outros o identificar-se com uma pintura ou uma música, identificar-se com tipos de romances, de uma peça ou um filme? Por que reagimos em face dessas irrealidades como se elas fossem a realidade intensificada? Que estranho, misterioso divertimento é esse? E se alguém nos responde que almejamos escapar de uma existência insatisfatória para uma existência mais rica através de uma experiência sem riscos, então uma nova pergunta se apresenta: por que nossa própria existência não nos basta? Por que esse desejo de completar nossa vida incompleta através de outras figuras e de outras formas? Qual o por quê da penumbra do auditório, fixamos nosso olhar admirado em um palco iluminado, onde acontece algo que é fictício e que tão completamente absorve nossa atenção? É claro que o homem quer ser mais que ele mesmo. Quer ser um homem total.

Entender o papel da Arte no processo de ensino deve ser encarado como um

progresso no domínio dos procedimentos estéticos e visuais, além de outros benefícios que podem surgir. De acordo com Ana Mae Barbosa, (2005, p. 31-32), “A arte-educação é para clarificar os modos pelos quais o mundo social, econômico e político atua e como isso pode ser incrementado”. Considerações finais

O Atelier de Figurino é, portanto, um local de suma importância. Nele, são desenvolvidas algumas das mais significativas práticas do curso de Artes Cênicas. Porém, essas atividades são pouco conhecidas, talvez, pela localização da sala na qual ocorrem as nossas aulas e oficinas. O Atelier representa uma parcela importante na formação e permanência dos alunos durante seu percurso pelo curso porque as relações afetivas na contemporaneidade vêm sendo colocadas de lado, e nem sempre fazem parte do contexto acadêmico, ou em algumas vezes familiar. No Atelier, foram realizadas diversas atividades enriquecedoras para a vida acadêmica e pessoal dos estudantes, foi o local no qual alguns alunos descobriram habilidades 163


até então desconhecidas e que foram exploradas, pelas práticas e vivência no Atelier. Como uma das professoras do curso e da disciplina, é muito gratificante, perceber a importância da arte na vida das pessoas e no meio acadêmico. Tendo em vista o atual contexto político e sociocultural que vivemos, no qual há um grande descaso dos nossos governantes, a falta de importância que se dá à arte, em não perceber a sua ação transformadora, torna-se gratificante poder contribuir, mesmo com uma pequena parcela, na formação pessoal e acadêmica dos alunos que por aqui passam, fazendo com que esses momentos vivenciados no Atelier, sejam momentos de acolhimento e de afeto. Referências bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos São Paulo: Perspectiva, 2005. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992. DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos: descoberta e invenção. Vol. 1. Rio de Janeiro, 2005a. FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

MARTINS, Mirian Celeste Ferreira Dias. “Didática do ensino da arte.” São Paulo: FTD, 1998. OSTRWER, Fayga. Acaso e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

SALLES, C.A. Processo de criação em grupo: diálogos. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017. SANTAELA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paullus, 2003. SPOLIN, Viola. Improvisação para teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.

VALESE, Adriana; et al. Faces de design. São Paulo: Editora Rosário, 2003.

VIEIRA, Adriana Silva; LOPES, Maristela Diniz. A afetividade entre professor e aluno no processo de aprendizagem escolar na educação infantil e séries iniciais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia). Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – UNISALESIANO. Lins- SP, 2010. RODRIGUES, Daniel. Resenha. LE BRETON, David. “Paixões ordinárias: antropologia das emoções.” Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.

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Uma prática ordinária de contação de histórias nos cotidianos de uma escola

Dulcimar Pereira Isabela Malta

RESUMO O presente relato de experiência visa apresentar uma prática de contação de histórias com recursos teatrais na biblioteca de uma escola municipal na cidade de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Foram utilizadas as aproximações com as pesquisas com os cotidianos como eixo teórico-epistemológico metodológico e político. Nossa atuação contou com a participação de alunos de 1° ao 4º anos do ensino fundamental. Por meio dos resultados das práticas e políticas, apostamos na atividade integrada à comunidade como uma das possibilidades ante as situações de fracasso escolar.

Para entrar no paraíso geralmente é preciso usar a porta dos fundos (Anne Bogart)

A partir da experiência no curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, foi possível a composição com práticas teatrais na pesquisa multidisciplinar “Culturas Escolares, Currículos e Direitos Humanos: tensões entre uma produção de violências, situações de fracasso escolar e justiça social” 92, cujo objetivo foi compreender e problematizar as lacunas existentes entre as culturas escolares e as culturas discentes e os seus efeitos na produção das situações de fracasso escolar dos estudantes do 1º ao 4º anos do ensino fundamental da Unidade Municipal de Ensino Fundamental (UMEF) Asa Colorida 93. 92 Essa pesquisa foi desenvolvida pelo Programa de Pós-graduação em Segurança Pública da Universidade Vila Velha, cuja coordenação e orientação foi da Profª Drª Maria Regina Lopes, do Grupo de Pesquisa registrado pelo CNPQ “Currículos-formação em redes, cotidianos de escolas e direitos humanos”. 93 Nome fictício criado por Lucas Figueira (integrante do Grupo de Pesquisa) para preservar o sigilo da Instituição.

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A pesquisa aposta em currículos e formações docentes que incorporem as múltiplas culturas que convivem nas escolas, produzindo outras relações e docências criativas como possíveis alternativas para a redução das violências e ampliação da vida, com justiça social. Pensando na necessidade de levantamento de dados que gerassem pistas que nos aproximassem das culturas desenvolvidas nos cotidianos da escola, a aposta inicial de pesquisa se daria em Reuniões Pedagógicas 94 com o corpo docente da UMEF Asa Colorida, com práticas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal e de Jogos Teatrais de Viola Spolin que, uma vez adaptadas aos interesses da pesquisa, poderiam ser ferramentas úteis para nos aproximarmos das noções de fracasso escolar, violência, etc. trazidas pelas professoras da instituição. E, a partir dos dados produzidos, desenvolveríamos práticas com as professoras em que essas questões seriam trabalhadas. Todavia, ao longo da aproximação com os cotidianos da escola, encontramos alguns impasses para a produção dessa aposta primeira, como a dificuldade de comunicação com as professoras e os cancelamentos das Reuniões Pedagógicas em que colocaríamos nosso plano em ação. Ademais, com o cotidiano apontando para outras direções ainda mais urgentes, nossa prática sofreu deslocamentos e se transformou em uma parceria com a biblioteca da UMEF Asa Colorida, a partir de um movimento desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa e abraçado pela bibliotecária, chamado “Ocupe a Biblioteca”, onde utilizamos do teatro integrado à contação de histórias, além de linguagens artísticas visuais para incentivar a maior integração da Escola com o espaço da biblioteca. Dessa experiência com a contação de histórias surgiram estratégias cênicas que foram descritas nesse relato. A pesquisa foi realizada em uma Unidade Municipal de Ensino Fundamental localizada no Bairro Boa Vista – um local considerado periférico na região - em Vila Velha, Espírito Santo. A escola aqui será chamada de UMEF Asa Colorida por se tratar de uma questão ética de sigilo. A Instituição conta com setenta e quatro funcionários, nove salas de aula, salas de multimídia, acesso à internet, entre outros recursos. Atende crianças do 1º ao 4º Anos do Ensino Fundamental no período da manhã e do 5º ao 9º Anos do Ensino Fundamental no turno vespertino. Já durante a noite, possui também turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nessa amostra de pesquisa, trabalhamos com alunos de 1° ao 4º anos.

Reuniões Pedagógicas são espaços onde coordenador pedagógico e corpo docente se reúnem para refletir e procurar soluções para as questões que surgem da prática das salas de aula. Na UMEF Asa Colorida, elas não possuem uma realização periódica e são marcadas conforme as necessidades aparecem. 94

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Um caminho com os cotidianos A partir da sociologia de Michel de Certeau 95 com o objetivo de compreender e problematizar as redes que, de certo modo, produzem situações de fracasso escolar utilizamos como eixo teórico-epistemológico metodológico e político as aproximações e práticas de “pesquisa com os cotidianos” (FERRAÇO, 2007). Para Certeau (1996), O cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. [...] É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velados. [...] O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível (CERTEAU, 1996, p. 31)

Por meio das práticas cotidianas se revelam o que Certeau (1994) denominou de “artes de fazer” do “homem ordinário”, úteis para pensar a complexidade das redes que se tramam em meio aos diferentes movimentos experienciados nos múltiplos contextos de pertencimento desses sujeitos praticantes (Idem) - da escola, da família, do bairro, da igreja, das amizades, das mídias, entre outros tantos. Certeau propõe “uma inversão de perspectiva, de um deslocamento da atenção: dos produtos recebidos para a criação anônima” (DURAN, 2007, p. 118). Alves e Garcia (2000), sobre as pesquisas com os cotidianos da escola, destacam que há muitas generalizações a respeito do termo “escola”, mas há redes que são únicas em cada ambiente e que envolvem não somente a instituição escolar, mas os profissionais que nela atuam, as comunidades, as famílias, os alunos, o tempo/espaço em que se encontra, etc. As autoras salientam que a “escola da qual tantos falam é uma simplificação a partir de um paradigma reducionista” (Idem, p. 7) que ignora as inventividades e as complexidades presentes em cada escola. Por essa razão, a pesquisa com os cotidianos requer a recusa de referenciais teóricos que normatizem as produções das ações por seus autores (Filho, 2007). É necessário que se esteja sempre aberto a fluidez do novo, das relações tecidas em cada contexto. O pesquisador... “precisa estar à altura do cotidiano”, como disse Max Weber. Mais do que demonstrar isso ou aquilo, deve mostrar, dar a ver, fazer vir, desentranhar, Michel de Certeau (17/05/1925, França - 09/01/1986, França) foi um historiador e erudito francês. Intelectual jesuíta, dedicou-se ao estudo nas áreas da psicanálise, filosofia, ciências sociais, teologia, teoria da história, entre outras. 95

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fazer emergir, revelar, descobrir, desvendar, expor à luz. Não lhe basta conhecer o poder (institucional explícito), deve perceber o fluxo da potência (subterrânea). Se não pode provar o que aconteceu no passado nem prever o futuro, cabe-lhe narrar bem o presente. Mescla de antropólogo, de fotógrafo, de repórter, de cronista e de romancista, necessita captar e narrar a fluência, o extraordinário e a complexidade do vivido (SILVA, 2003, p. 73).

Nessa direção, é possível pensar no teatro como uma arte cotidiana exatamente por ter a capacidade de “narrar bem o presente”, como tem feito há séculos na história da humanidade. O teatro é uma linguagem universal, seja ligado a ritos culturais e religiosos, refletindo aspectos do cotidiano de cada povo, seus modos de vida ou expondo e questionando comportamentos. Por muitas vezes deu voz aos homens ordinários, como nos coletivos teatrais de cultura proletariada de famosos nomes como Erwin Piscator e Bertolt Brecht, na Europa do século passado (Verdier, 2018). Devido a esse caráter de “tradução” do meio em que se encontra, a aposta inicial dessa pesquisa seria o levantamento de dados qualitativos sobre as culturas docentes por meio de Jogos Teatrais de Viola Spolin e algumas dinâmicas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, que uma vez adaptados aos interesses de pesquisa, poderiam ser úteis para a compreensão do que as professoras da UMEF Asa Colorida pensam sobre situações de fracasso escolar, violência, entre outros temas pertinentes. Estruturamos três séries de recursos teatrais que seriam colocados em prática em Reuniões Pedagógicas. A partir dos dados levantados nas intervenções práticas na UMEF Asa Colorida, a aposta seria colocar em prática em três Reuniões Pedagógicas, Jogos Teatrais de Viola Spolin e algumas dinâmicas do Teatro Oprimido, de Augusto Boal. Os Jogos Teatrais de Spolin foram escolhidos a partir de elementos em suas “Áreas de experiência” que tivessem similaridades com as práticas de Boal, sendo úteis para introduzir os participantes na experiência do Teatro do Oprimido. Já as três intervenções do Teatro do Oprimido foram escolhidas pois tais práticas mostram-se produtivas por seu cunho altamente reflexivo. Esses encontros se dariam em aproximadamente vinte minutos com a participação de professores do 1º ao 4º ano do turno matutino, a pedagoga e o coordenador da Escola. As três intervenções contariam com o apoio de quatro atores profissionais. O primeiro encontro seria iniciado com o Jogo Teatral “Três mudanças” de Spolin (2014), seguido por “Teatro Imagem” (BOAL, 1991). A segunda intervenção ocorreria com a introdução do jogo teatral “Construindo uma história” (SPOLIN 2014) e depois trabalharíamos o “Dramaturgia Simultânea” (BOAL, 1991) do Teatro do Oprimido. O terceiro encontro de Reunião Pedagógica teria início com o 168


Jogo Teatral “Relatando um incidente acrescentando colorido” (Spolin, 2014), seguido por “Quebra da Repressão” (Boal, 1991) Ao longo de nossa jornada na escola, as Reuniões pedagógicas foram canceladas pela pedagoga e não encontramos outro momento pertinente para colocarmos em prática nosso plano inicial envolvendo o teatro. Recorremos então às conversas com essas professoras para compreendermos melhor o que pensavam sobre fracasso escolar, violência, entre outros temas afins, além da execução de um questionário com perguntas direcionadas aos estudantes sobre (a) a escola, tópico que contemplou perguntas sobre a opinião dos estudantes a respeito da Instituição de Ensino: o que mais gostavam e o que não gostavam, se faziam dever de casa, se compreendiam a relevância dos estudos em suas vidas. Inserimos também perguntas sobre (b) a comunidade em que viviam: se gostavam de morar lá, do que não gostavam, onde costumavam brincar e passear no bairro. Ademais, perguntamos sobre (c) a vida pessoal das crianças, onde tratamos temas pertinentes á rotina delas fora da escola: com quem moravam, se gostavam de dividir o cotidiano com essas pessoas, os passeios que costumam fazer com seus responsáveis, se mudariam algo em suas rotinas ou famílias e as atividades que desempenhavam em casa. A intervenção direta com os alunos foi muito profícua, uma vez que eles se encontravam receptivos para o diálogo conosco. Com as respostas das crianças, percebemos que os cotidianos das infâncias são bem parecidos. Em geral, costumam brincar em casa, utilizam jogos eletrônicos, possuem acesso a aparelhos celulares, os familiares se mostraram presentes na elaboração dos deveres de casa, os alunos são comumente acompanhados durante o trajeto de ida/volta da escola, costumam ajudar nas tarefas de manutenção de casa. Conhecem as dificuldades das comunidades em que moram: reclamaram das ruas cheias de lixo, esburacadas, da violência cotidiana de alguns bairros. Dentre essas respostas, algo que, particularmente, chamou a atenção foi o fato de que a maioria das crianças não apresentava diferenças significativas contra a escola, sendo que compreendem também a importância dos estudos para o futuro e a relevância das disciplinas lecionadas. Participamos também de reuniões de Responsáveis, de reuniões de Conselho de Turma e outros acontecimentos da escola. Um dos tópicos mais discutidos nessas reuniões foi a ausência dos familiares dos estudantes na escola e o grande número de situações de fracasso escolar na alfabetização. Os movimentos com as professoras representaram para o Grupo de Pesquisa situações críticas que nos fizeram traçar novos rumos ao pensar em práticas direcionadas a 169


elas. Tentamos por outros caminhos, mas optamos por respeitar alguns limites que as relações cotidianas nos impuseram. Compreendemos o teatro como uma atividade de caráter expositora daqueles que a desempenham, faz-se necessária uma relação em que haja desejo e confiança para ser colocada em prática, o que não era a realidade das relações que compartilhávamos com as professoras naquela ocasião. O momento de dissolução da ideia da prática inicial, possibilitou recorrer ao que disse a diretora teatral Anne Bogart, no livro “A preparação do diretor” (2011, p. 136) e trazemos na íntegra: Em caso de dúvida, quando você estiver perdido, não pare. Em vez disso, concentrese no detalhe. Olhem em torno, encontre um detalhe para se concentrar e faça isso. Esqueça um pouco o quadro geral. Ponha sua energia apenas nos detalhes do que já está ali. O quadro geral vai se abrir e se revelar se você ficar um pouco fora do caminho. No entanto, não vai se abrir se você parar. É preciso permanecer envolvido, mas não sempre com o quadro maior. Enquanto você estiver prestando atenção aos detalhes e aceitando a insegurança, andando na corda bamba entre controle e caos e usando os acidentes, permitindo o equilíbrio e entrando pela porta dos fundos, criando circunstâncias em que algo pode acontecer e ficar pronto para o salto, enquanto não estiver se escondendo e estiver pronto a interromper a lição de casa, algo certamente acontecerá. E provavelmente será adequadamente desconfortável.

As palavras de Bogart surgiram como um alento e exemplificam o que aconteceu na escola: ao encontrar impedimentos ao nosso plano primeiro, concentramo-nos nos detalhes, naquilo que ainda não havíamos enxergado nos cotidianos. Assim como os cotidianos da escola nos revelaram a impossibilidade, naquele momento, de execução da primeira prática teatral, também nos mostraram onde poderíamos encontrar outra possibilidade para o teatro na Escola. Vamos à biblioteca e retornemos ao teatro! Pela porta dos fundos, um caminho, um palco: a biblioteca Nunca havíamos entrado na biblioteca pois estava interditada pela iminente queda do muro da escola. Porém, com as reformas acontecendo, o local foi novamente aberto e, finalmente, conseguimos conhecê-lo. Encontramos um espaço amplo, em vias de transitoriedade. Os livros sendo cuidadosamente limpos e recatalogados pela bibliotecária Bia 96 e as estantes aos poucos sendo ocupadas. Tudo no ambiente estava em potente construção, pronto a ser ocupado. Conhecemos e conversamos com a bibliotecária 96

Nome fictício criado para preservar a identidade da participante.

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responsável e sua fala que mais chamou nossa atenção foi uma queixa em relação à forma como as crianças e os professores viam o espaço da Biblioteca. Ela nos disse que o espaço era algo à parte da Escola, não estava integrado com o resto dos movimentos que aconteciam na Instituição.

Fig. 6: Foto panorâmica da Biblioteca da UMEF Asa Colorida. Acervo pessoal.

A partir do que conversamos com Bia e a receptividade que encontramos na Biblioteca, nos unimos à bibliotecária para a construção de um movimento pedagógico que chamamos de “Ocupe a Biblioteca” 97. Nosso objetivo inicial era além de integrar o espaço da biblioteca ao resto da Escola, viabilizar nossas ações no colégio, permitindo que, por meio dos resultados obtidos, brevemente nos achegássemos novamente às professoras. Nóbrega (2002) trata de dois eixos para a dinamização de acervos da biblioteca: formação de um espaço convidativo e atividades diversificadas de leitura. Trabalhamos sob essas duas perspectivas. Com o Grupo de Pesquisa tendo uma abordagem multidisciplinar, recorremos à uma estudante de Arquitetura que, em conjunto com bibliotecária, pedagoga e diretora, fez uma pequena reforma que contou com grafites nas paredes e reorganização de mesas e estantes no espaço. Essas intervenções tiveram como objetivo a criação de um espaço mais humanizado, capaz de atrair mais pessoas para a biblioteca. Já o segundo eixo de intervenções baseado em Nóbrega (Idem), é a diversificação das atividades que envolvam a leitura. Por meio de um consenso entre Bia e o Grupo de Pesquisa, O nome do projeto “Ocupe a Biblioteca” foi livremente inspirado no movimento “Ocupe a Escola” que ocorreu no ano de 2016 e que tinha por objetivo lutar contra cortes no orçamento dedicado à educação. A movimentação se dava por meio de ocupação contínua das escolas pelos estudantes. O Espírito Santo também foi atingido pelos movimentos de ocupação de escolas e universidades em 2016. Durante o período em que os estudantes se instalaram nas instituições de ensino, ocorreram apresentações musicais, oficinas de teatro, além de debates sobre questões pertinentes à movimentação. Ademais alguns movimentos de ocupação das escolas também foram abraçados pela comunidade de fora das instituições de ensino. (Portal G1, 2016) Essas duas características do movimento Ocupe a Escola de 2016 foram incorporadas – a partir do nosso objetivo – pelo Movimento “Ocupe a Biblioteca”, uma vez que nossa ocupação baseou-se principalmente no fator artístico e também buscou a integração com a comunidade externa. 97

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promovemos um momento de contação de histórias na biblioteca, uma vez por semana, durante o recreio, como uma opção aos alunos que não gostavam das atividades culturais 98 desenvolvidas no horário do intervalo. Além disso, uma ação no período de recreio não demandaria a liberação de nenhum plano de aula das professoras. Bortolin e Burghi (2014) defendem a prática de contação de histórias em bibliotecas escolares, uma vez que as narrativas orais evidenciam diversidades textuais, facilitam a aproximação dos estudantes com o acervo de livros, fortalece as trocas de histórias entre familiares e alunos, além de ser um instrumento seguro de suporte à leitura em diferentes plataformas. A alfabetização é uma questão importante na escola e foi levantada pelas professoras durante a Reunião de Conselho de Turma, sendo um dos principais indicadores de situações de fracasso escolar na UMEF Asa Colorida.

Fig. 7: Grafite na biblioteca. Arquivo pessoal.

Durante o recreio da UMEF Asa Colorida, a instituição disponibiliza o som da Escola para a reprodução de músicas de funk. O resultado do questionário feito para os alunos demonstrou que há uma grande parcela de estudantes que não se identificam com a lista de músicas – que permanecem as mesmas desde que iniciamos nossa pesquisa em agosto de 2018. 98

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Fig. 8: Fotos das paredes da biblioteca. Arquivo pessoal.

As práticas de contação de histórias ampliam os sentidos de vida pelo conhecimento Todas as histórias literárias foram escolhidas em parceria com Bia e também por meio de indicações das professoras a fim de envolvê-las no processo de contação. Escolhíamos histórias curtas, passíveis de serem contadas em menos de dez minutos, ou seja, o período de recreio, depois que as crianças lanchavam. Escolhemos somente livros que estavam disponíveis na biblioteca, com o intuito de chamar atenção das crianças para o acervo da Escola. As contações sempre eram mediadas pela leitura dos livros, para que os estudantes tivessem a referência da leitura durante o momento da história. Antes de iniciarmos as contações, passávamos nas salas de aula para convidar os alunos para participarem conosco. Na hora do recreio, deixamos a porta da biblioteca aberta, pronta para receber os alunos. Trouxemos alguns tecidos para que as crianças se sentassem sobre eles para ouvirem a história de maneira mais informal do que na sala de aula. Inspiradas nos cadernos do diretor alemão Bertolt Brecht e no modo como descrevia seu processo de construção teatral em seus diários (Boy, 2013), descrevemos, a seguir, os quatro episódios de intervenções de contação de histórias que colocamos em prática na UMEF Asa Colorida.

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Primeira intervenção: “A verdadeira história dos três porquinhos” Livro: “A verdadeira história dos três porquinhos” (SCIESZKA, 1993) que retrata uma nova versão da história clássica dos “Três Porquinhos”, contada pelo personagem do Lobo Mau, onde ele explica o que o motivou a comer os porcos e, como tem sido injustiçado ao longo dos séculos. Utilizamos pequenas lâmpadas ligadas na tomada e as colocamos embaixo de uma cadeira simples da biblioteca. Seria o local para narrar a história do livro. Esse recurso foi chamado de “Cadeira Iluminada”. Como a história tratava de momentos em que o personagem do Lobo Mau espirrava, utilizamos um copo com água para simular um espirro com um jato de água que molhasse as crianças na plateia. A simulação do espirro do personagem do Lobo Mau com jatos de água funcionou muito bem, uma vez que criou nas crianças maior interatividade. Elas se divertiram bastante. Os olhos estavam concentrados em cada detalhe.

Fig. 9: Primeira contação de histórias. Acervo pessoal.

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A recepção das crianças foi muito positiva, pois ao serem perguntadas se haviam se divertido, foram categóricas ao responder positivamente, possibilitando a compreensão da importância da exploração de mais recursos que aumentariam a participação delas no momento da contação de histórias. Segunda intervenção: “A princesa desejosa” Livro: “A princesa desejosa” (BIAZETTO, 2012), cuja narrativa se passa em um reino onde a personagem da Princesa se apropria de todos os objetos de seus súditos. Ela só para com essa estranha mania ao encontrar novas aventuras com seu verdadeiro amor, o Príncipe. Nessa segunda intervenção, utilizamos novamente o recurso da Cadeira Iluminada, já com o objetivo de que as crianças associassem o signo da Cadeira com o período de contação de histórias. Além disso, uma participante do Grupo de Pesquisa e estudante de pedagogia, lia a história no livro enquanto outra ia utilizando de mímica, com uma boneca agarrada ao corpo, representando a personagem da Princesa da história. Além disso, ela também dava vida ao fantoche do personagem do Príncipe. Em partes da história em que a Princesa se apropriava de pertences das pessoas de seu reino, alguns objetos do público das crianças também eram capturados. Era bastante curioso o quanto essa interação se mostrava cara para as crianças que, em determinados momentos, ofereciam seus pertences, entrando na história.

Fig. 10: Segunda contação de histórias. Acervo pessoal.

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Nesse processo, um adesivo foi criado: “Eu ocupei a biblioteca!” para que os alunos levassem a lembrança ao final da história, como uma bonificação pela participação deles na contação de histórias e também para demarcar o local da biblioteca como um espaço passível de ocupação, além de ser uma ferramenta capaz de gerar curiosidade de outras crianças. A simples circulação do adesivo aumentou a interatividade das crianças e o desejo delas pelas próximas histórias. Terceira intervenção “A caixa de Jéssica” Livro: “A Caixa de Jéssica” (CARNAVAS, 2010), que trata da história de Jéssica, uma menina que “está se preparando para seu primeiro dia de aula. (...) Depois de muito pensar, experimentou algumas maneiras de fazer amizade na escola - levou sua caixa e, de dentro dela, tirou seu ursinho, bolinhos para os colegas comerem, sua cachorrinha para brincar com eles. Mas nada foi muito eficaz. Até que, de dentro de sua caixa, surgiu algo muito especial” (CATÁLOGO LITERATURA E PARADIDÁTICOS: INFANTIL, 2018) – ela mesma.

Fig. 11: Terceira contação de histórias na biblioteca. Acervo pessoal.

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Na terceira contação de histórias, dividimos a voz narrativa entre dois participantes do Grupo de Pesquisa e outro ficou com a mimese da história. Para isso, um dos recursos foi uma maquiagem de clown e uma saia de bailarina. Além disso, uma caixa de papelão que, com alguns furos e uma lâmpada de celular dentro de si, se transformou em um objeto de iluminação importante para a história. Ademais, novamente utilizamos a Cadeira Iluminada. A reação das crianças foi ainda mais calorosa com a utilização desses novos recursos. Como explicita a foto. A escola, como um local de rotinas diárias, abriu espaço para um estranhamento teatral, que fez com que as crianças participassem ainda mais do momento de contação de histórias. E, ao final da história, novamente entregamos os adesivos “Eu ocupei a biblioteca” para as crianças. Quarta intervenção: “O pote vazio” Livro: “O pote vazio” (DEMI, 2000), cuja narrativa, ambientada na China, conta a história de “um menino chamado Ping, que adorava flores. Tudo o que ele plantava florescia. O Imperador também adorava flores. Quando chegou o momento de escolher um herdeiro, ele deu uma semente de flor para cada criança do reino, dizendo: ‘Quem provar que fez o melhor possível dentro de um ano, será meu sucessor!’. Ping plantou sua semente e cuidou dela dia após dia. Mas os meses se passaram e a semente não brotou. Quando chegou a primavera, Ping apresentou-se ao Imperador levando apenas um pote vazio. A arte primorosa e a bela simplicidade do texto de Demi mostram como o fracasso constrangedor de Ping se transformou em triunfo, nesta fábula sobre a honestidade recompensada.” (GOOGLE BOOKS, 2019) Como já havíamos utilizado mímica, preferimos por fazer algo diferente: deixamos de lado maquiagem, iluminação específica ou a Cadeira Iluminada e, simplesmente nos sentamos no chão encorajando as crianças a se sentarem também. Como recurso havia somente o livro e uma lata com terra para ilustrar o pote do personagem Ping onde a semente não brotou. A experiência intimista nos trouxe uma outra experiência com as crianças, pois fizemos perguntas e conversamos mais proximamente com elas. A troca entre nós foi surpreendente.

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Fig. 12: Quarta contação de histórias na biblioteca. Acervo pessoal.

Uma possibilidade de abertura da porta dos fundos para a comunidade Segundo Hartmann (2014), pesquisadora da interseção da contação de histórias com as Artes Cênicas, a contação de histórias não é delimitada por regras absolutas, sendo um campo capaz de agregar interdisciplinaridades, como observado na nossa prática, em que a contação de histórias e as Artes Cênicas geraram uma junção profícua que germinou uma ampliação de estratégias que contribuíram para a atividade desenvolvida na Escola. De fato, a integração entre artifícios das Artes Cênicas e a contação de histórias é operativa tanto na prática quanto na teoria. Hartmann (Idem) trata da perspectiva contemporânea de: contador-performer como aquele que é apreciado enquanto artista da palavra incorporada, mestre na arte de enfeitiçar, conquistar, desafiar, divertir e emocionar plateias. O contador-performer acredita no poder da palavra e no poder da troca, da comunhão de palavras (Hartmann, 2012, p. 46).

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O

termo

contador-performer

nasce

de

uma

apropriação

da

perspectiva

contemporânea de ator-performer, o qual por diversas vezes borra a fronteira entre ator e personagem, podendo não contar com textos decorados ou uma direção que desenhe os contornos de uma peça, pois a equipe toda se envolve em um processo colaborativo (Idem). A autora afirma que o ator pode ser contador de histórias, bem como um contador de histórias pode ser considerado, se quiser, ator. A gênese tanto do teatro quanto da contação de histórias aponta para um lugar do comum, como meios da transmissão da cultura do “homem ordinário”, como dito por Certeau. Ambos apresentam em si um modo de fazer com contornos borrados, onde ator pode ser contador, ou contador pode ser ator. Embora haja meios de sistematização, não dependem disso para que ocorram e facilmente atingem outros saberes, gerando novos conhecimentos que talvez nunca dêem conta de ser enquadrados enquanto ciência. Durante a prática, o corpo foi colocado em cena com apoio de recursos cênicos de mímica, maquiagem artística, Cadeira Iluminada, etc. e, na maioria das vezes, sendo ancorada com a voz de narração de outros que sabiam pouco ou nada sobre a visão contemporânea do ator ou até mesmo sobre o lugar do contador-performer. Essa experiência interdisciplinar aponta para o fato de que a prática da contação de histórias pode ser considera uma possível “arte de fazer do homem ordinário”, a ser replicada na escola com o engajamento da comunidade externa. As interseções entre os saberes das Artes Cênicas foram importantes para melhorar a qualidade da contação de histórias, mecanismos simples que parecem ser interessantes para replicação aos interessados na contação de histórias na escola. Todavia, é necessário reafirmar tanto na escola quanto na comunidade das redes que circundam a escola, que a oralização de histórias é uma prática possível a todos. Bortolin e Burghi (2014) defendem que: o ato de contar histórias é uma atividade que pode ser desenvolvida pelo bibliotecário e também pelos profissionais e comunidade escolar: professores, pedagogos, pais e demais familiares. É uma atividade imprescindível para a escola, em especial, na biblioteca escolar, pois é nela que deverão ser formados os leitores (BERTOLIN; BURGHI, 2014, p. 221)

Muitos relatos do corpo docente da Escola evidenciaram que a participação das famílias e comunidade na Instituição ainda é baixa, um dos fatores que comprometem o rendimento de muitos alunos da UMEF Asa Colorida e tecem caminhos para a produção de 179


situações de fracasso escolar. A contação de histórias pode ser um dos caminhos para que haja maior interação entre comunidade e escola o que pode vir a incidir positivamente em ações ante as situações de fracasso escolar.

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CAPÍTULO III: SUJEITOS EM TRÂNSITO, ARTE E EDUCAÇÃO


A arte da dança circular como liberdade e expressão

Katyane Vieira Floriano Maria Riziane Costa Prates

RESUMO Este trabalho trata de interlocuções acerca da dança circular, a partir das narrativas de professoras, pelas experimentações vivenciadas no curso de dança circular promovido pela Gerência de Formação do município da Serra - ES no ano de 2018. O estudo teve como objetivo compreender o que pode a dança circular e o que ela promove na vida das pessoas. Tece rede de conversações com professoras a partir dos afetos experimentados com a dança. Faz uso teórico e metodológico dos conceitos de dança circular, corpos sociais, experiência e emoção a partir de Ostetto, Marques, Larrosa e Maturana, dentre outros. Pelo olhar das professoras cursistas em dança circular tenta responder o que pode a dança enquanto expressão de arte e liberdade? Conclui que a Dança Circular movimenta o pensamento e funciona como elemento potente de experimentação de outros modos de docência, expressão de si, como arte e liberdade.

Dança e corpo social como experiência A criança humana não vive dentro do corpo como uma lesma em sua concha. O ser humano vive no mundo com seu corpo (LANGVELD apud SHAPIRO, 1994).

O nosso interesse por dança começou cedo, porque fomos meninas arteiras, alegres, que não paravam quietas. Gostávamos de animar as festas fazendo palhaçada, dançando; tudo era motivo de comemorações. Não nos intimidávamos com nada: desfile, apresentação, vestirse de Emília. Arriscávamos até mesmo, a balançar bandeira em comícios, sabendo que no final teria sempre uma banda musical. As lembranças são diversas, como nos aniversários na casa de avó, as músicas que tocavam vivem nas nossas memórias. Era uma farra, uma alegria que contagiava. Diríamos 183


que estes momentos nos convocam experiências outras que ressoam e nos passam. Por experiência, entendemos com Larrosa (2011, p.05), como “isso que me passa. Não isso que passa, senão, isso que me passa”. Uma avó sempre dizia que festa boa tem que ter música boa e pessoas dançando. Ela pedia para colocar as músicas mais alegres, pois não gostava de festa parada. Sendo assim, a energia da música ia contagiando e as pessoas começavam a se remexer. A dança ia acontecendo e nos passava. Larrosa (2011) esmiúça seu conceito de experiência como “isso que me passa”, apontando que o “isso” supõe o acontecimento de algo que não sou eu, um princípio de alteridade, de exterioridade e de alienação. Alteridade porque isso que me passa é algo outro, exterioridade porque é exterior, fora de lugar, estrangeiro a mim e alienação porque isso que me passa é alheio a mim, não é meu, não está previamente planejado nem previsto “[...] nem por minhas palavras, nem por minhas ideias, nem por meus sentimentos, nem por meu saber, nem por meu poder, nem por minha vontade” (p.06). A dança surgia, assim, em nossa vida como acontecimento, como experiência que passava na escola, nos momentos festivos: dia da independência, dia do Índio, dia da água,

festas folclóricas e, claro, as festas juninas. Eram momentos mágicos, participar com os amigos nos ensaios. A grande roda, a briga de galo, a separação do vestido de quadrilha, escolher o penteado, pintar os dentes e usar as fitas no cabelo. Experiências que faziam da dança um coletivo, possibilitando não sermos lesmas em conchas como nos atenta Langveld na epígrafe, mas corpos em sociedade. Langveld ao comparar os seres humanos com caramujos, propõe o questionamento em relação a nossos corpos. Segundo o autor, os caramujos possuem conchas, cascos rígidos que os separam do mundo externo, criando um limite entre o que há dentro e fora, assim como, os seres humanos muitas vezes se colocam no mundo, se escondendo em suas próprias conchas e isolando-se. Para contrapor essa concepção de corpos conchas, o autor traz então a noção de corpo social, como um corpo partilhado, indissociável do meio em que habita e sendo, constantemente, atravessado pelo que ocorre nele (LANGVELD apud SHAPIRO, 1994). No período da adolescência, vieram participações nos grupos de dança, aulas de ballet, hip-hop, axé. Não tínhamos a técnica, mas estávamos ali para dançar. Foram espaços importantes. Neste tempo de nossas vidas, quando estávamos sozinhas, por vezes, podíamos ouvir músicas e nos desligarmos do mundo e dos nossos problemas. 184


A dança aparecia como um forte elemento de convocação para uma vida em sociedade. Através dela, nos entregávamos por completo, não pensávamos em técnica ou obrigações que um bailarino deve ter, queríamos somente a sensação de estar no/com o mundo. A tradição do ensino de dança tem se aprimorado ao longo dos séculos na construção de conchas para seres humanos: primeiramente, as conchas das danças codificadas – que vão do balé clássico ao hip hop, das danças da mídia ao flamenco, passando pelas manifestações de danças brasileiras, pelo jazz e pela dança contemporânea. Dependendo de como forem ensinadas, técnicas, passos e coreografias acabam por se tornar conchas prontas e fechadas que os alunos devem vestir e se acomodar dentro delas. Na grande maioria das aulas de dança, as técnicas codificadas, os passos pré-determinados e as coreografias prontas nos impedem de dialogar com os corpos presentes de nossos alunos, com seus corpos sociais. Aos professores de dança cabe uma escolha: educar “pessoas lesmas, corpos conchas” que eventualmente sabem dançar ou educar cidadãos que se apropriam da dança para fazer alguma diferença no corpo/mundo em que vivemos? (MARQUES, 2011, p.32).

Sair do corpo concha para fazer alguma diferença no aprender/mundo, pela experiência, nos levam a algumas indagações: seria a dança uma alternativa para a arte e a educação, como produção de uma vida compartilhada como liberdade? A experiência larrosiana, enquanto algo que me passa, ou seja, passa em mim, supõe que algo passa em minhas ideias, minhas representações, em meus sentimentos e saberes, onde a experiência tem lugar. Seria a dança uma possibilidade de ocupação dos lugares inabitados ou habitados na arte-educação?

Povoadas por essas sensações e relações com a dança, buscamos a escrita do que nos passa e transforma, como aponta Larrosa (2011). Assim, buscamos o grupo de dança circular na cidade da Serra, para compreender os afetos experimentados pelas professoras desse grupo, objetivando compreender o que pode a dança? As tardes no grupo de dança circular passaram a ser investigativas para nós. A dança mexia com a gente. A relação com o corpo e com os sentimentos parecia estar começando a nos mostrar novos caminhos. Caminhos de corpos sociais. A dança era um múltiplo de sensações, era refúgio, era experiência que nos passava. Tomados pela possibilidade do que pode a dança, indagamos com Marques (2011, p.32), enquanto artistas e professores: “[...] com que concepção de corpo trabalhamos em nossas salas de aula? Buscamos ensinar e educar ‘corpos conchas’ ou ‘corpos sociais’? Quais os desdobramentos dessas escolhas? ”. 185


Da tradição hindu aprendemos que a dança é uma forma ancestral de magia. Através dela a personalidade do dançarino se transforma, expande-se, chega à vivência do divino. Eis um, porém: para exercer a magia, para lançar encantamento sobre outrem, é preciso que o indivíduo em primeiro lugar encante a si mesmo (OSTETTO, 2010, p. 45).

A nossa constante busca por novas experiências e aprendizagens foram entrando em composições e escolhas por uma dança que transforma, que é magia, que expande a vivência do divino, como aponta Ostetto (2010). Esta escrita surge, assim, pela necessidade de narrar uma experiência com a dança circular, vivenciada com professores da rede municipal de ensino da Serra - ES, como experimentação potente de encontros e narrativas de qualidade de vida pelos educadores. Nessa movimentação e encontro intensivo, tecemos conceitos relacionados a dança circular e à docência, na busca por entender como a Dança Circular pode beneficiar a saúde emocional e pessoal dos professores. A tentativa, portanto, não é meramente pedagógica, pelo interesse em saber como esses professores fazem uso do que aprendem no curso de dança circular, mas a tentativa é intensiva, no sentido de compreender a força da dança na vida desses professores. Uma dança potente enquanto parada no deserto, na entrada de um oásis; não como mera intensão pedagógica de aprender dança para ensinar dança, mas uma dança como arte de liberdade, como pensamento nômade, como força estética, uma pausa, uma palavra, um abraço, um beijo, um toque/gesto no coração ou um aperto de mão. Que busca o pensamento nômade? Ele não busca: encontra. Encontro que permite conceber os processos de subjetivações como blocos de realidade, força artística, estética pensante, estética como acontecimento, realidade – e não verdade – como arte movediça engendradora de conceitos para um fazer filosófico complexo, múltiplo (LINS, 2014, p.139).

Nesse fazer múltiplo, nosso interesse, nessa pesquisa, apareceu bem cedo, convivendo com mães e irmãs professoras, pudemos acompanhar as alegrias e os cansaços das jornadas triplas, das vozes roucas, dos tempos de estresses, desânimos, mas também dos tempos de empolgação e vontade de fazer o melhor. Admirávamos essas professoras próximas a nós, sabíamos desse cansaço, dos esforços de noites sem dormir para dar conta de um trabalho, das vidas pessoais e sociais sendo afetadas pelo trabalho, mas sabíamos mais ainda do amor que as moviam por atitudes e

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ações emocionadas e amorosas, pelas lutas de cada dia, nas tessituras de invenção dos cotidianos escolares. Por isso mesmo, sustento que não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a torne possível como ato. [...] Esta emoção é o amor. O amor é a emoção que constitui o domínio de ações em que nossas interações recorrentes com o outro fazem do outro um legítimo outro na convivência. [...] Finalmente, não é a razão o que nos leva à ação, mas a emoção (MATURANA, 1998, p.22-23).

Assim, compartilhamos de um amor pela educação. Um amor político que produz cansaço e desgaste, mas acredita e respeita o outro como legítimo na relação. Buscamos, nesse movimento, um encontro com a dança circular, como oásis de professores e como cuidado de si, no sentido de compreender o que pode a Dança Circular? Aproximações com a dança circular A Dança Circular começou a ser desenvolvida por Bernard Wosien, bailarino coreógrafo, polonês/alemão, professor de danças e pintor. Em suas pesquisas, via potencial nos jogos de rodas, percebendo os símbolos que traziam tais danças, como harmonia, centralidade e presença. As danças de roda o encantavam, pois exigia ritmo básico e uma coreografia fácil de seguir. A ideia de Bernard Wosien era levar a dança para todas as áreas da sociedade. Ele acreditava que o estar em roda, era uma forma de cura. Santos (2019) aponta que Wosien, a partir das décadas de 1950 e 1960 pesquisou e divulgou danças circulares de vários povos, valorizando as diversidades das culturas. Essa proposta democratizou e expandiu a dança por todo o mundo, agregando práticas de vários povos, idades, gêneros, etnias e grupos sócio-econômicos. A dança circular, dessa forma, pode ser vivenciada por todos, pois nesta modalidade, os sujeitos da arte e da cultura podem ser as pessoas comuns, não apenas artistas ou bailarinos profissionais. No Brasil, as danças de roda marcam tradições ancestrais, pelas influências indígenas, afro-brasileiras e europeias. De norte a sul do país, as infâncias são marcadas, com cirandas e brincadeiras como práticas culturais, envolvendo a circularidade, a roda. Assim, as Danças Circulares são também conhecidas como Danças Circulares Sagradas ou ainda Danças dos Povos (SANTOS, 2019), tem por objetivos reunir pessoas para vivenciar experiências afetivas com a música, com o corpo e a sua harmonia com o mundo. 187


O movimento de Dança Circular é conduzido por uma pessoa chamada de focalizadora, alguém que estudou ou adquiriu alguma formação nesta modalidade. O papel do focalizador é o de ajudar as pessoas a interagir, a vivenciar a dança na roda, falando dos sentidos das músicas e gestos, mostrando passos coletivos de dança e contextualizando a história e a filosofia da dança e das Danças Circulares em particular. Nas Danças Circulares o que importa é que o grupo vivencie as danças, sejam estas meditativas, folclóricas e/ou contemporâneas, respeitando a forma como cada um coloca seu corpo em movimento e em diálogo com a presença das outras pessoas, buscando uma experiência de integração, em que emerge uma prática coletiva na qual as individualidades também têm seu espaço e seu papel. Algumas pessoas encontram nas Danças Circulares mais do que a possibilidade de aprender sobre uma arte, sobre outras culturas ou apenas para movimentar o corpo, pois podem conquistar igualmente uma experiência de autoconhecimento, de libertação, de solidariedade e, para alguns, até mesmo de outras expressões de amizade, de amor, de espiritualidade, todas essas expressões complexas e indizíveis de sociabilidade humana (SANTOS, 2019, p.1)

O nosso primeiro contato com a Dança Circular aconteceu no Centro de formação de professores do município da Serra-ES “Professor Pedro Valadão Perez”, com um grupo de professores, que estava participando de um curso de Danças Circulares ministrado por uma professora da rede. Nesta pesquisa, recorremos às redes de conversações, enquanto metodologia, no encontro com as professoras e com a dança, adotando uma perspectiva de interlocução de saberes e os seus desdobramentos para cada professor, cada participante do curso de dança circular e dos desdobramentos dessa participação. As redes de conversações contribuem para pensar os processos experimentados como força de criação, pois nada é dado. Segundo Carvalho (2009, p.187), a conversa “[...] não acontece sem ser criada e sustentada pela participação ativa [...]”, ou seja, são redes que se tecem pelas vivências por entre dança, docência e relações afetivas, consigo e com o outro. Esse trabalho foi buscado por nós a partir do interesse pela dança e por participarmos de alguns movimentos neste Centro de Formação. As aulas do curso acontecem uma vez por semana no horário noturno e tem duração de três horas diárias. Recordamo-nos do nosso encontro com a dança circular. Entramos na sala e percebemos que o movimento já tinha começado, mesmo antes de todos se organizarem para iniciar a roda. É como se houvesse uma preparação! Precisávamos silenciar todas as questões que tínhamos, para nos conectarmos com aquele ambiente. Um silenciar enquanto experiência 188


que está para além de nós, um desligamento para uma possível entrega ao que se passava, uma conexão com os outros que estavam ao nosso lado, com a dança, com o mundo. Experimentamos uma dança nova, por entre ansiedade e nervosismo pela sensação de quem experimenta algo pela primeira vez, perto de professores experientes, com corpos conectados àquela dança há muito tempo. Eliminamos barreiras e enfrentamos os obstáculos do desconhecido para colocarmo-nos em contato com a dança circular em plenitude. Ali éramos corpos em composição com a sensibilidade da dança. A Dança Circular se mostra, assim, como um momento único, a partir do encontro em uma conexão circular e transformadora dos corpos. É uma aventura, um instante de entrega e pertencimento, onde se envolver pelo novo e encantar-se com a imaginação faz parte do processo, como um caminho de grandes descobertas.

Fig. 1: Aula de dança circular - o coletivo / Fig. 2: O círculo na dança circular 99

Barton (2006) fala sobre como a Dança Sagrada nos liberta e nos faz entrar em contato com aquilo que queremos mudar. Somos responsáveis pelos nossos bloqueios, sentimentos, angústias, medos, sonhos. Através da Dança passamos a compreender e a nos permitir a passar por esse processo com entendimento. Os participantes da dança, por vezes, chegam nesse processo com intuito de se esvaziar de tudo aquilo que está saturado, do cansado do dia a dia, e uma forma de contribuição que a Dança Circular traz é à maneira como os exercícios são aplicados. Um dos exercícios que chamou a nossa atenção trata-se de uma prática simples, dividida em três partes que resultou em uma grande reflexão.

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Fonte: arquivo pessoal (Centro de Formação de Professores – Serra – ES - 2018)

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Na primeira parte a professora oferta aos participantes algumas cartas e nelas contém uma palavra e seu significado. Para a nossa surpresa, em determinado momento retiramos a palavra identidade, que nos fez pensar no quanto precisávamos pensar sobre essa questão. Na segunda parte cada participante lia em voz alta o que retirou, e por fim era devolvido para o centro da roda. Nossa atenção voltou-se a esse simples exercício, pois uma única palavra nos fez voltar a questionamentos internos, como por exemplo, aceitação pessoal e de como não se importar com os padrões impostos pela sociedade. Após essa prática iniciamos a roda. Se fosse para definirmos esse encontro com uma palavra seria união, pois no decorrer das atividades, o trabalho em equipe nos fez não apenas olhar para nós, mas olhar para o outro, aquele indivíduo que estava ali, disponível, entregue e imerso naquele ambiente onde estávamos todos com apenas um propósito, o de recarregar as energias. Percebemos, assim, que experimentar a dança no círculo é particular e possui vários sentidos e significados. Quando o participante se entrega, se doa e escuta o interior sem medo, ele está sujeito a mergulhar em suas emoções profundas. É uma passagem do desconhecido para um lugar de preenchimento, um caminho de pura intensidade e coragem.

Fig. 3: Dança como experimentação corporal 100

Emoções que seguem... A partir do momento em que nos permitimos experimentar a Dança Circular, descobrimos mais de nós, percebemos que ali não era somente mais uma dança, mas um encontro pessoal, uma transformação conjunta, promovendo em nós, certa delicadeza ao 100

Fonte: arquivo pessoal (Centro de Formação de Professores – Serra – ES - 2018)

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entrar em contato com o outro, no respeito à sua presença, ao seu olhar, ao seu gesto em coletividade, ampliando a abertura a partir de novas emoções. As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimento. Do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação. Na verdade, todos sabemos isso na práxis da vida cotidiana, mas o negamos porque insistimos que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais. Ao mesmo tempo todos sabemos que, quando estamos sob determinada emoção, há coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e que aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção (MATURANA, 1998, p.15).

Por quais emoções somos atravessados no encontro com a dança? O que a dança pode? Essas questões perpassam essa escrita. Sabemos da impossibilidade de respondê-las, mas apostamos na dança como possibilidade de saída da zona de conforto para uma abertura para o que ainda não está dado, no sentido de experimentar emoções outras. Poderíamos escrever páginas e páginas sobre o quão inexplicável é estar em constante envolvimento na roda, ainda assim, não teríamos palavras para definir tais emoções. Um ponto forte na dança é o encontro. Encontro consigo, com o outro, com o mundo, afirmando algumas expressões como: eu vou, eu posso fazer, eu consigo; pelo desafio de olhar nos olhos, tocar as mãos e nos transportarmos para lugares ainda não habitados. Como aponta Ostetto (2010, p. 52): A dança circular conduz às fronteiras do desconhecido. Ela não define, não explica. Apenas abre. E, por ela se abrir a significados e sentidos na experiência, para territórios conscientes e inconscientes, convida ao acolhimento do não conhecido, não pensado, não vivido. Dançando vamos, justamente, “lá” onde não entendemos. Vivemos o “entre”.

Estar no entre lugar, apontado por Ostetto, implica estar em constante mudança, vivendo em busca de perguntas que muitas vezes não temos respostas. Descobrir como entramos em composição com o outro, são dúvidas e pensamentos que se passam. A conexão com a espiritualidade e a divindade está ligada a essa busca. A Dança Circular oferece esse lugar de conexão direta com algo mais espiritualizado e que pode colocar as pessoas em outras esferas de relação. Ela é uma forma de expressão, uma dança utilizada no lugar de palavras.

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Celebro a vida honrando a beleza de cada ser, acolhendo os desafios com paciência e determinação. Aprendo sobre o meu ritmo em contato com o ritmo coletivo, sintonizando com o centro, dando e recebendo o melhor de mim e dos outros. Visito o sentimento de alegria e paz, na busca do eterno equilíbrio em movimento, que faz meus passos serem firmes e suaves. Aprendo que a liberdade das asas se conquista pelo exercício dos pés. Céu e terra visitam o meu corpo e me convidam a ser maior do que minhas polaridades. O caminho das Danças Circulares Sagradas é profundamente transformador. É belo e amoroso. As mãos confiam e se deixam guiar. O olhar expande e aprende a enxergar. Os passos não nos deixam estagnar. A música acalenta, o círculo sustenta e o ritmo pulsa. O coração alarga, a mente silencia e o corpo respira. A alma agradece (DUBNER, 2015, p.01).

Quando começamos primeiramente a nos olharmos, enxergando que tudo está dentro do nosso corpo, todos os elementos, os materiais necessários para percebemos que a nossa procura sempre veio de dentro para fora. Compreendemos assim, o ponto principal das nossas dúvidas e perguntas. Coloco o meu corpo para funcionar ao meu favor, pois o material necessário está em mim. O corpo é o lugar sagrado. Quando percebemos esse lugar de plenitude entre corpo e mente, passamos a compreender a grandeza do dançar. Passa-se, então, a vivenciar tudo a sua volta, o centro principal não deveria ser nós, é tão mais interessante servir. Esse encontro, essa harmonia com uma divindade, com algo que se está no lugar bem maior que nós, nos revela a importância de estarmos inteiramente entregues. Na dança, o homem está diante do incompreensível: angústia, medo, atração, mistério. As palavras de nada servem. Para que dar a isso nomes como Deus, Absoluto, Natureza, Acaso? O que é preciso é entrar em contacto. O que o homem busca, para além da compreensão, é a comunicação. A dança nasce dessa necessidade de dizer o indizível, de conhecer o desconhecido, de estar em relação com o outro. É um lugar comum falar da solidão do homem moderno no seio de uma civilização dilacerante. O homem, contudo, não sofre apenas dessa solidão, mas também, e principalmente de uma divisão profunda de seu ser. Nós dissociamos a educação do corpo da educação do espírito e ambas da desse centro (e aqui, mais uma vez, tropeçamos nas palavras) a que chamamos, segundo nossos costumes, alma, coração, intuição, conhecimento transcendente (FUX, 1983, p.23).

Vivemos cada vez mais ansiosos, angustiados, preocupados com pequenas preocupações. São tantas informações, que não dá tempo de verificar. Sendo assim, armazenamos tudo para não ficarmos para trás. Procuramos pela cura da alma. Queremos evoluir rápido e de qualquer forma. Pílulas para o emagrecimento, inteligência, etc. Pílulas para ser conhecido ou ter dinheiro não existem. Tudo é tão ilusionista, que acabamos aceitando! Essa aceleração contínua só nos afasta do nosso encontro pessoal. Desejamos tudo tão depressa, que esquecemos de parar e escutar o silêncio que vem de dentro. A caminhada 192


não vai se transformar do dia para a noite, é como se fosse um ritual, precisamos nos conectar com nosso interior, com a divindade, com o nosso centro. A dança traz esse poder de libertação. Ela fala por si, é forte, tem voz e dá voz ao que precisa ser retratado. A conexão é simplesmente interessante para um dançarino ou para alguém que está começando. Tudo vira desafio, um pulo, um giro, mas quando o sujeito se insere de corpo, mente e coração, ele entende a intensidade e a pureza da dança. A partir de então passa-se a compreender o processo de libertação. Quando entendemos o significado do pertencimento pessoal, usando a arte como o refúgio para todas as barreiras e impedimentos. A arte da dança ou a dança como arte faz com que enxerguemos as coisas por outros ângulos. Nesse movimento de busca por liberdade e aprendizagem, entramos em composição com professoras que praticam a dança circular a algum tempo, recorrendo aos seus olhares sobre a dança, bem como seus usos ou não em suas salas de aula, no sentido de responder às seguintes indagações: Seria a dança uma possibilidade e alternativa de ocupação dos lugares inabitados na arte e na educação, enquanto produção de uma vida compartilhada como liberdade?

Criando sentidos para a dança com professoras Falar da dança circular, possibilita problematizar a necessidade dela em outros espaços que não somente a formação de professores. Um ambiente que talvez possa abarcar tal empreitada é a escola. Talvez a dança circular possa compor currículos diferenciais que para além da matemática, física, química, biologia, história e tantas outras matérias, possa produzir conhecimentos escolares que articulam modos outros de expressão e entendimento de si e do mundo. Acreditamos que a escola abre espaço para novos caminhos, novas ideias, novas buscas e incentivos e os alunos podem mudar a si e ao mundo. A arte tem o poder de criação e de transformação. Ela forma pessoas capazes de elaborar a sua própria opinião, é um manifesto na educação, é um incentivo à criação, à expressão, à reflexão e transformação. No movimento de experimentação da dança circular no curso ministrado no centro de formação de professores da Serra-ES, fomos tecendo conversas as cursistas, sobre seus olhares sobre a dança, acreditando com Paulo Tatit e Arnaldo Antunes que: 193


O seu olhar lá fora O seu olhar no céu O seu olhar demora O seu olhar no meu O seu olhar, seu olhar melhora Melhora o meu [...] O seu olhar agora O seu olhar nasceu O seu olhar me olha O seu olhar é seu O seu olhar, seu olhar melhora Melhora o meu [...] 101

A professora Maria aponta que a dança é uma das formas mais puras de expressão sócio cultural. Segundo ela, ao dançar nos tornamos livres, presentes, verdadeiros, são laços e desenvolvimento em família, um lugar de meditação e terapia, onde aprendeu a aceitar e respeitar o outro com suas características e diferenças. Ela diz que o seu objetivo inicial no curso era buscar por algo que pudesse contribuir para a sua formação enquanto educadora, mas a partir do momento que foi apresentada à Dança Circular, sentiu que ali era o lugar onde ela poderia aliviar as tensões implícitas do cotidiano escolar. O curso, não só para ela como para o coletivo, foi transformador, algumas das lições que Simone relata que trouxe para si, foram em relação à concentração, união e respeito, além de ir percebendo, gradualmente, a leveza, conscientização humana e evolução pessoal. A professora Joana aponta que através dessas experiências vividas no curso de Dança Circular no Centro de formação continuada da Serra, decidiu trabalhar outras danças nas escolas onde atuava, danças de matriz africana, em especial o Congo, o Samba, e a Capoeira, um percurso acompanhado de impasses e vitórias do conhecimento, pois foram muitas descobertas e lutas, para quebrar os preconceitos existentes em relação a alguns ritmos.

101

Música: O seu olhar - Paulo Tatit / Arnaldo Antunes.

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A dança circular convoca a experimentação de diferentes ritmos, sem preconceitos, sem separação. O círculo convoca união, estar juntos. A dança circular ensina a compartilharmos nossas forças, nossas potências. Assim começa o relato da professora Cristiane. Ela parafraseia o artigo de Joseph Fattal Júnior “Danças Circulares e o EU Sagrado”: A dança circular é foco, objetivo, equilíbrio, liberdade, sucesso e ganha asas para a realização, “Ninguém é mais que ninguém... ninguém menos também, somos UNO”. Segundo Cristiane, no primeiro momento ela relutou para não entrar no curso, pois estava passando por um momento delicado em sua vida pessoal, mas com o incentivo das outras professoras ela decidiu fazer o curso. A questão inicial foi: Porquê ela estava ali? Sendo assim, começou a refletir sobre sua vida, as experiências que havia passado até aquele momento e o quanto o curso poderia acrescentar em sua vida pessoal, profissional e principalmente emocional. Um dia, a professora que ministrava o curso de Dança Circular disse que no grupo haviam pessoas participando, mas que não estavam “presentes” e sim conectadas, ainda, em suas obrigações diárias. Acrescentou que o principal sentido da formação, era exatamente a conecção com a dança, o desligamento com os afazeres diários e pediu aos professores ali presentes que se desligassem das suas casas, trabalhos, obrigações ou outras funções. A formadora foi explicitando a importância e diferencial do curso, dizendo que o foco não podia ser o certificado, o interessante era pensar na formação como uma experiência de vida, envolvendo-se inteiramente. Neste movimento, a professora Cristiane declarou que, com o passar do curso os professores estavam mais maduros e conscientes em relação a formação, entendendo a proposta que a formadora estava tentando passar. Relatou ainda que muitas vezes tentou desistir do curso, pois passou por diversos problemas pessoais chegando até desistir da sua própria vida, mas que o curso contribuiu para o seu controle emocional e espiritual. Os apontamentos das professoras mostram outras relações com este curso. Relações que não se colocam como pedagógicas, no sentido de aprender uma dança para ensinar aos alunos, mas uma relação de experiência larrosiana, como algo que passa e transforma.

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Considerações finais A Dança Circular movimenta o pensamento e, como aponta Kohan (2007, p.48), “pensar é mexer num dicionário, dar potência a algumas palavras, calar outras, travar, afinal, uma luta de sentidos e significados”. Nesse movimento, interessou-nos dar potência ao que pode a dança circular, ao que ainda não experimentamos e podemos experimentar. Talvez possamos, a partir da dança, nos tornarmos livres, presentes e verdadeiros, pelo alívio das tensões do cotidiano escolar, no respeito ao outro como ele é, como apontou a professora Maria. Talvez possamos ir sentindo uma evolução pessoal, uma leveza, como apontou a professora Simone, ou como apontou a professora Joana, atuar de modo diferenciado na escola, quebrando preconceitos existentes e arraigados. O que pode a dança? Talvez reconfigurar novos modos de agir, de ser professor, de ser gente, de atuar no mundo, de compartilhar forças e potências como apontou a professora Simone. E ainda ser uno, como apontou a professora Cristiane, parafraseando Joseph Fattal Júnior. A Dança Circular pode funcionar, assim, como potência de vida, de experimentação como expansão do desejo e da ação que compõem um coletivo, disposto a viver experiências outras, que podem produzir uma vida melhor de ser vivida. A Dança Circular pode ser, assim: arte de liberdade e expressão.

Referências bibliográficas BARTON, Anna. Danças Circulares: Dançando o Caminho Sagrado. Guarulhos – SP: Triom, 2006. CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis, RJ: DP ET Alii; Brasília, DF: CNPq, 2009. DUBNER, Deborah. Dança circular e psicologia. Publicado em 27/08/2015. Disponível em: http://www.dancacircular.com.br/artigos/55/danca-circular-e-psicologia. Acesso em 20/11/2018. FUX, Maria. Dança, experiência de vida. 4ª ed. São Paulo, Summus, 1983. KOHAN, Walter. Omar. O que pode um professor? Revista Educação – Dossiê Deleuze pensa a educação, São Paulo: Segmento, ano I, ed. esp., p. 48-57, 2007. LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v.19, n2, p.04-27, jul./dez. 2011 196


LINS, Daniel. Nietzsche: vida nômade – estadia sem lugar. In: MARQUES, Davina; GIRARDI, Gisele; OLIVEIRA JR., Wenceslao Machado de.; Conexões: Deleuze e territórios e fugas e... . 1ed. Petrópolis, RJ: De Petrus et Alli; Campinas, SP: ALB, Brasília, DF: CAPES, 2014. MARQUES, Isabel. Notas sobre o corpo e o ensino de dança. Caderno pedagógico, Lajeado, v.8, nº1, p.31-36, 2011. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Tradução: José Fernando Campos Fortes. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. OSTETTO, Luciana Esmeralda. Para encantar, é preciso encantar-se: danças circulares na formação de professores. Cad. CEDES, Campinas, v. 30, n. 80, p. 40-55, Apr. 2010. SANTOS, Andrea Paula. Danças Circulares. Disponível em: <http://dancacircularufabc.wordpress.com/o-que-sao-dancas-circulares/>. Acesso em 07 de junho de 2019. SHAPIRO [TAYLOR], Sherry. Dança em uma época de crise social: em direção a uma visão transformadora de dança-educação. Revista Comunicações e Artes v. 17, n. 28, p. 65-74, 1994.

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Educação como práticapolítica de formação e humanidade: uma experiência com o transporte escolar no município de Araçuaí – MG Viviane Patrícia Costa Prates Maria Riziane Costa Prates

RESUMO Trata da produção da educação como praticapolitica nos usos do transporte escolar no município de Araçuaí-Minas Gerais, na gestão municipal dos anos de 2013 a 2020. O projeto: Motorista educador, criado pela secretaria municipal de educação no ano de 2016, oportunizou encontros, experiências e formação como invenção de novos modos de relação entre alunos, motoristas, comunidade e escola. Tece contribuições teórico-metodológicas com Espinosa, Foucault, Certeau, Maturana, Freire, dentre outros, pelas apostas nos contextos de formação e humanidade, pelo cuidado de si e do outro, em composições de alteridade e diferença. Conclui pela necessidade de traçar novos caminhos, pela implicação coletiva com as políticas públicas como experimentação de novas maneiras de existir e produzir educação, por processos que aumentam a potência de aprendizagem e vida.

Este texto surge como invenção e ampliação de novos modos de existência na educação, pela problematização e, talvez, desconstrução dos processos de diminuição da potência da vida e da força dos bons encontros. O desejo de compreensão e resolução de uma problemática observada na ausência de pertencimento da coisa pública no município de Araçuaí, Estado de Minas Gerais; move essa escrita. Neste município a depredação do patrimônio era frequente, os carros escolares encontravam-se em situação de calamidade, os ônibus do transporte escolar tinham seus bancos rasgados pelos próprios alunos usuários, e as brigas durante o percurso escolar eram recorrentes. Havia, ainda, um desconhecimento dos fatos e motivos de tais atitudes por parte da comunidade, tanto escolar como de moradores. Esses acontecimentos levaram-nos a buscar uma melhor compreensão dessa realidade para ação sobre e com ela. Com Ferraço; Soares; Alves (2018, p.09), apostamos na potência de Certeau com sua: [...] proposta/aposta teórico-metodológico-epistemológico-política, para pensar a contemporaneidade e os modos possíveis para nos movimentarmos no mundo, diferindo e tecendo outras/novas possibilidades para a produção de conhecimentos e para uma vida afirmativa no encontro com o Outro, com a alteridade, informados

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por interesses e desejos de seus praticantes-pensantes para muito além, e apesar do que é imposto pelos mercados e pelas políticas de Estado [...].

Acreditando em redes que se tecem nas práticas coletivas e apostando nos cotidianos como espaçostempos de invenção, de criação e do fazer com, os acontecimentos transformaram-se em reflexões sobre o lema então escolhido pela secretaria de educação do município: Educação e vida no planeta, utilizado como logomarca, em discussões do grupo de trabalho na gestão da secretaria de educação.

Fig. 1: Logomarca da Secretaria “Educação e vida no planeta” Araçuaí/MG. Gestão 2015-2020 - Fonte: Arquivo pessoal

Diante das situações ocorridas no transporte escolar e o entendimento da Educação e vida no planeta como práticapolítica 102 de formação e humanidade, e compreendendo ainda o Lema da administração municipal: Tempo de cuidar 103, enquanto perspectiva foucaultiana do cuidado de si e do outro 104; seguimos buscando saídas possíveis. Compreender o cuidado de si com Foucault, requer uma problematização da vida, para que desta problematização crie para si modos de vida que apresentem coerência e conhecimento, enquanto constante inquietação e atenção aos modos como conduzimos a vida, criando modos de ser e, consequentemente, éticas de existência não isolada, mas que necessita e se faz com o outro. Como aponta Foucault (1985, p. 50), o cuidado de si ou cultura de si: Certeau (1994, 1996) aponta as práticas como políticas – praticaspolíticas cotidianas, que desafiam o institucionalizado. 103 A administração municipal de Araçuaí: Tempo de cuidar (2013-2016) e (2017-2020), com o Prefeito Dr. Armando Jardim Paixão e Vice-prefeita Drª Rita de Cássia Capdeville, trouxeram à educação novos ares, enquanto cuidado de si e do outro, em um processo de ampliação de uma vida bonita. 104 O cuidado de si e do outro em Foucault (1985), trata de uma arte de viver, uma estética da existência que consiste em tomar sua própria vida como matéria a dar forma. 102

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[...] tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber.

Nesse sentido, Freitas (2009), adverte que a educação não se trata da tarefa de medir a quantidade de saberes aprendidos, mas, “[...] a educação é, antes, o que produzindo formas de experiência de si conduz o indivíduo a tornar-se sujeito” (p.14). Acreditando na possibilidade da educação como veículo de produção de novos sujeitos, com novas formas de relação e forças políticas de participação, para constituição de diferentes realidades, seguimos com o coletivo educacional da gestão municipal e profissionais da educação, desbravando o município de Araçuaí, com suas peculiaridades, idas, vindas, distâncias e buscas. Assim, iniciamos os trabalhos mobilizando conversas, entendimentos, realizando encontros com os motoristas do Transporte Escolar, para uma escuta dos sentimentos surgidos na realidade experimentada e possíveis encaminhamentos, como praticaspolíticas cotidianas de busca de pistas que pudessem apontar outros modos de cuidado consigo, com o outro e com a coisa pública. Larrosa (2004, p.12-13) aponta que: [...] nunca se sabe aonde uma conversa pode levar... uma conversa não é algo que se faça, mas algo no que se entra... e, ao entrar nela, pode-se ir aonde não havia sido previsto... e essa é a maravilha da conversa... que, nela, pode-se chegar e dizer o que não queria dizer, o que não sabia dizer, o que não poderia dizer... e, mais ainda, o valor de uma conversa não está no fato de que ao final se chegue ou não a um acordo... pelo contrário, uma conversa está cheia de diferenças... mantendo-as e não as dissolvendo... e mantido também as dúvidas, as perplexidades, as interrogações... e isso é o que a faz interessante... por isso uma conversa pode manter as diferenças até o final, porém cada vez mais afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mesmas... por isso uma conversa não termina, simplesmente se interrompe... e muda para outra coisa.

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Situando o município de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha, escolas e transporte escolar...

Fig. 2: Mapa do Vale do Jequitinhonha Fonte: Imagens google

O Município de Araçuaí está localizado no Nordeste de Minas Gerais, no Médio Jequitinhonha, a uma distância de 678 km de Belo Horizonte capital. O Vale do Jequitinhonha está divido em três microrregiões, assim denominado: Alto Jequitinhonha, cujo pólo é Diamantina, Médio Jequitinhonha cujo pólo é Araçuaí e Baixo Jequitinhonha cujo pólo é Almenara. Daí ser Araçuaí uma espécie de elo natural entre todas as distâncias e proximidades do Vale, ligando em seus caminhos todas as cidades erguidas no curso do Rio Jequitinhonha. A cidade contabiliza uma população de aproximadamente 36.013 habitantes (IBGE, 2010) ocupando uma área de 2.236,275 km² (IBGE, 2010), localizada na mesorregião do Jequitinhonha com densidade populacional de 16,10 hab./km² (IBGE, 2010). De acordo com o censo (IBGE, 2010), a taxa de escolarização entre a faixa etária de 6 a 14 anos de idade foi de 97,5% em 2010, colocando o município na posição 475 de 853 dentre os municípios mineiros e na posição 2.904 dentre os 5.570 municípios brasileiros. A economia do município está baseada nos seguintes setores: setor de prestação de serviços, atividades industriais (mineração) e agropecuária (cana, feijão, mandioca, milho, banana, manga, coco, bovinos, aves). A Secretaria Municipal de Educação de Araçuaí atende a zona urbana e rural, tendo sua sede na área urbana.

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Escolas da zona urbana

Nível de Ensino Educação Infantil Educação Infantil e Anos iniciais do Ensino fundamental Educação de Jovens e Adultos - EJA – Anos iniciais do Ensino Fundamental EJA – Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio

Nº de escolas 03 02

Total de alunos 549 517

01

14

01

151

Educação Infantil e Anos iniciais e Finais do Ensino fundamental Educação Infantil e Anos iniciais e Finais do Ensino fundamental EJA – anos iniciais do Ensino Fundamental Total de alunos atendidos no município

06 nucleadas

679

10 multisseriadas 01

258

Zona rural e zona urbana

2.196

Escolas da zona rural

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Fig. 3: Tabela – Escolas de Araçuaí e alunos atendidos

Vale ressaltar que a distância entre a sede e algumas escolas chega a ser entre 80 a 150 km, compreendendo em sua maioria, ainda estrada de chão. Assim, a necessidade do transporte escolar.

Fig. 4: Gráfico Transporte escolar Fonte: Arquivo da SME

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Fig. 5: Comunidades atendidas pelo Transporte escolar Fonte: Arquivo da SME

É importante salientar que o Vale do Jequitinhonha é considerado, uma das regiões com menor poder aquisitivo do Brasil. Sendo assim, não é possível desconsiderar os modos de vida precários experimentados por grande parte da sua população e a necessidade de produção de políticas públicas ampliadas e articuladas. Nesta escrita trazemos marcas de um projeto que vem dando certo micropoliticamente, enquanto relato de uma experiência vivida, como alteridade, pelo respeito ao outro como legítimo outro na relação, como convoca Maturana (1998). Trata-se de uma outra possibilidade de experimentar relações no transporte escolar e nas comunidades, como uma vida coletiva e bonita, tomando como princípio as políticas de amorosidade apontadas por Freire em muitos dos seus escritos e por Maturana. Por isso mesmo, sustento que não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a torne possível como ato. [...] Esta emoção é o amor. O amor é a emoção que constitui o domínio de ações em que nossas interações recorrentes com o outro fazem do outro um legítimo outro na convivência. As interações recorrentes no amor ampliam e estabilizam a convivência; as interações recorrentes na agressão interferem e rompem a convivência (MATURANA, 1998, p.22).

Tomadas por um amor político, buscamos espaçostempos de conversa para, pela força de um coletivo, promover ações educativas como atitude social e bons encontros como política pública amorosa, efetiva e inclusiva como alteridade.

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Espaçostempos de conversas: bons encontros de formação e humanidade

Fig. 6: Reunião na Secretaria com Motoristas do Transporte Escolar. Fonte: Arquivo da SME

Ao desbravar a realidade espaço-temporal do município de Araçuaí, na tentativa de ampliação de novos modos de fazer educação e pensar coletivamente as demandas geográficas e pedagógicas do município e, a partir das questões apontadas pelo transporte escolar, pela ausência de pertencimento à coisa pública; a tentativa foi promover encontros, bons encontros ao modo espinosano. Pensar a conversa-formação pela lógica dos bons encontros, ou paixões alegres (ESPINOSA, 2011), requer o entendimento de que a potência de ação é aumentada a partir das afecções do corpo. Nesse sentido, foi preciso oportunizar conversas para que bons encontros pudessem acontecer. Movimentos de conversa foram instaurados, como experiências de formação, promotoras de uma relação ética, como possibilidade de aproximação, de escuta do outro, na sua alteridade e possibilidade de ação. Após alguns encontros e audiências com os motoristas, para compreensão do que se passava no movimento do transporte escolar, surgiu a necessidade de trabalhar a parte educativa no que tange ao bom relacionamento Motorista/Aluno; pais e demais responsáveis pelo educando; servidores da rede de ensino público municipal e estadual que recebem o transporte escolar. Nesse sentido, em 2016 a partir de demandas relacionadas ao transporte Escolar no município de Araçuaí – MG, a Administração Tempo de Cuidar, através da Secretaria Municipal de Educação, lança o projeto Motorista Educador: Conduzindo um presente para o futuro! Esse projeto surge pela necessidade de otimizar tanto as rotas de transporte escolar próprias como também as terceirizadas, compreendendo a parte financeira e, principalmente, a parte educativa, pela valorização do profissional que, cotidianamente trabalha com a 204


educação dos meninos e comunidades usuárias desse serviço, pela necessidade de entendimento do próprio fazer cotidiano.

Fig. 7: Banner do projeto: Motorista Educador: Conduzindo um presente para o futuro! Fonte: Arquivo da SME

Nesse movimento de busca por encontros formativos com os motoristas para pensar as relações estabelecidas no transporte e a sensação de pertencimento e cuidado com a coisa pública, surgiu, ainda, a necessidade de otimização das rotas próprias e terceirizadas, para maior possibilidade de cuidado e organização. Assim, foi realizada uma descrição das rotas, com mapeamentos realizados pela equipe topográfica da prefeitura do município de Araçuaí, no sentido de estar mais próximos às comunidades atendidas, para melhor visibilidade do trajeto, suas necessidades e localidades atendidas.

Fig. 8: Mapa das localidades atendidas pelo transporte escolar Fonte: Arquivo da SME

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As ações de sistematização das rotas e dos trabalhos foram acompanhadas de encontros a partir do projeto, para escuta das demandas dos motoristas. Dentre os apontamentos, a necessidade de uniformes para identificação no trabalho, bem como a necessidade de conversas com as comunidades. Sendo assim, os uniformes e encontros foram providenciados pela secretaria de educação.

Figura 9: Entrega de uniformes aos motoristas/ Figura 9: Motoristas conversam com as comunidades atendidas pelo transporte escolar. Fonte: Arquivo da SME

E assim, pelas possibilidades de ampliação e aposta nos cotidianos como espaçostempos de produção de conhecimentos e vida social, conversas foram sendo tecidas, enquanto bons encontros, a partir da formação pelo projeto motorista educador e pela expansão dos modos de relação e humanidades, por entre educadores, motoristas, crianças e comunidades. Nesse desenrolar do projeto Motorista educador, as tessituras formativas foram se implicando no cotidiano, com narrativas dos motoristas compondo “[...] uma trama de conhecimentos e artes de fazer nos diferentes contextos em que vivem, criando sempre diferenças com o desvio produzido pelas práticas” (FERRAÇO, SOARES, ALVES, 2018, p.10). Nos espaçostempos de conversas, a partir das indagações aos motoristas sobre como se sentem nesse movimento formativo, alguns apontam sobre suas relações com o projeto e com os alunos do transporte escolar: Sou motorista do transporte escolar das linhas Araçuaí /Itira e Itira / Araçuaí. Fico muito feliz em fazer parte deste projeto. É muito gratificante transportar esses alunos que são o futuro do país e ensiná-los o que sei, o pouco que sei, passar para eles a minha sabedoria, também fazer parte da vida desses alunos como também da família, ser parceiro, membro das famílias. De certa forma ou de outra, alguns

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problemas os pais chegam e expõem pra gente. É gratificante também alguns pais chegarem e falar: Que bom que o carro está bem melhor do que antes, sem bagunça! Não sei se deveria estar falando, mas tempos atrás, havia muita bagunça, agora não. É gratificante fazer parte desse projeto, principalmente, pelo reconhecimento dos pais dos alunos. É isso aí! (MOTORISTA 1). Eu tenho muita cautela no que eu faço, no que eu empenho. Desde quando o aluno adentra ao veículo, transporte escolar, ele está ali sobre minha responsabilidade que, de uma certa forma ou de outra, eu já passo a fazer parte daquele grupo de alunos ali. Olha, a partir de agora vocês estão sobre minha responsabilidade! Vou conduzí-los até às suas devidas escolas com segurança. E também vamos fazer um papel de motorista amigo! Não quer dizer que vou sentar e dizer: todo mundo em silêncio, por favor! Vamos dialogar no que for necessário, “com respeito” porque vocês saíram da casa de vocês para irem para a escola e não foi para festa, portanto, no ônibus eu exijo, exijo não, eu peço que seja um lugar de respeito, mas também de amizades e um bom diálogo. O que os alunos precisarem de mim estarei ali para ajudá-los, com certeza darei resposta correta para eles, não vou ensiná-los nada de errado e o que eles fizerem de errado, eu corrijo. É assim! (MOTORISTA 2). Dificuldades a gente encontra todos os dias, mas nada que não possamos resolver. Todos os dias há um pouco de dificuldades. Porque a gente todos os dias tem certos problemas, de repente o aluno passa por um problema em casa e leva aquilo para dentro do ônibus ou para a escola e tal. Mas assim, eu chamo: ô fulano, o que está acontecendo? Faz favor, vamos conversar um pouquinho? Aquele papo amigo, aquele papo saudável. Mas assim, o que eu penso em respeito ao futuro dos alunos é que estamos transportando ali pessoas para o futuro do país, entendeu? O que acontece, a gente sabe que adolescente não é fácil de lidar, mas não há nada impossível, tudo através do diálogo, da boa conversa. Eu vejo boas perspectivas, porque é o futuro do país, os novos grandes alunos, grandes professores, grandes profissionais. Eu quero fazer parte desse futuro desses adolescentes, não vou falar dessas crianças, mas desses adolescentes que serão adultos do futuro e gente do bem, profissionais do bem (MOTORISTA 3). Bom dia! boa tarde! com licença! Nossa, isso tem tudo a ver, não só para o transporte escolar, mas em qualquer lugar que você esteja, uma palavrinha mágica, bom dia! Boa Tarde! Isso já ensina o cidadão a ser educado desde aquele momento. O adolescente, a criança, a educação, já vem de berço, mas a gente tem que ir lapidando, pois isso é muito importante, Bom dia! Boa tarde! Como vai fulano, tudo bem? E a família como vai, os pais? Isso é gratificante você receber um sorriso daquele aluno ao entrar no veículo. Agora, quando chega aquele com a cara fechada, eu logo pergunto: Oh, o que houve? e tal. Por que você está assim? Vem cá, vamos conversar? Nesse momento eu me sinto fazer parte da família, assim, não sendo enxerido não, porque eu quero participar da vida dele, porque ele está ali comigo, eu o estou conduzindo até as escolas e tal. É tão bom, os pais chegam e dizem: meu filho está tão diferente, o que está acontecendo? É lógico que é do bom para o melhor (MOTORISTA 4).

Os apontamentos dos motoristas mostram a potência de ação como alegria em fazer parte do projeto, pelas melhorias na estrutura, na relação com as comunidades, na produção de políticas de amizade e conversas com os alunos enquanto educação transformadora de atitudes e modos de pensar e agir na condução da própria vida. A potência de ação é apontada por Espinosa como alegria e força de existir, e a variação negativa dessa potência constitui a tristeza. Alegria e tristeza, assim, não são estados 207


fixos de um corpo, mas experiências vividas nos encontros com o que pode aumentar ou diminuir nossa vitalidade. Ora, por tristeza compreendemos o que diminui ou refreia a potência de pensar. Portanto, à medida que a mente se entristece, sua potência de pensar é diminuída ou refreada. Logo, nenhum afeto de tristeza pode estar relacionado à mente à medida que ela age, mas apenas afetos de alegria e de desejo, os quais à medida que ela age, relacionam-se também à mente (ESPINOSA, 2011, p.139).

Compreendendo com Espinosa a alegria como potência de ação, o projeto motorista educador talvez tenha possibilitado movimentos que vão se abrindo em diferentes composições. A diretora de um departamento da secretaria de educação, apontou que, em reuniões entre alunos e pais, alguns motoristas se colocam como protagonistas e retomam o projeto como parte do processo educativo, colocando-se em um empoderamento da função, ou em um estado de alegria espinosano, enquanto potência de agir e se colocar no mundo. No decorrer do projeto, algumas situações foram experimentadas, ressaltando-se os conflitos entre adolescentes e motoristas, onde foram encontradas as maiores dificuldades em se tratando de relações interpessoais e a existência de fragilidades para a evasão escolar. Relatamos as histórias e seus desfechos, permeados pelas experimentações formativas no projeto motorista educador, bem como as tentativas de bons encontros com todos os sujeitos praticantes do transporte escolar.

No caminho da Itira tinha uma pedra... Numa sexta feira, final da tarde, a secretaria recebeu o comunicado de que os alunos do ensino médio de uma comunidade X, colocaram uma tábua cheia de pregos na estrada com a intenção de furar os pneus do transporte escolar e que alguns (suspeitos de uso de drogas) estariam escondidos (às margens da estrada) para bater no motorista. Deve-se considerar que os bancos do carro já se encontravam deteriorados pelo mau uso, por parte dos alunos. Entendendo ser uma atitude preventiva, a secretária interditou o retorno do carro até que encontrassem uma solução. Na segunda feira, a mesma pediu auxílio ao Conselho Tutelar e à Polícia Militar. O carro precisou ser escoltado por essas duas categorias. 208


No entanto, para conseguir amenizar a situação, foi necessário colocar um monitor para acompanhar o carro por uns meses. Entendendo a educação como um outro caminho, produtor de autonomia, socialização e compreendendo a necessidade de defesa do direito de aprender a viver e conviver, foi realizada uma reunião na comunidade com todos os envolvidos (diretores das escolas estadual, municipal, comunidade, pais, Conselho Tutelar) para uma análise da situação.

Fig. 10: Reunião com a comunidade sobre o transporte escolar. Fonte: Arquivo da SME

Atualmente, não há mais a necessidade de monitoria na referida linha escolar; o ônibus foi trocado por um novo. A entrega do carro foi feita à comunidade (pais e/ou responsáveis), em frente à escola, com a presença da secretária (que fez a rota com os alunos dentro do ônibus). O momento foi utilizado para reflexões com a comunidade sobre o cuidado com o patrimônio e com as atitudes dos nossos educandos. No momento, a rota encontra-se seguindo o seu fluxo normal com garra e energia de todos os envolvidos. Sobre as pedras retiradas do caminho: o quilombo Após receber a visita de dois quilombolas na sede da Secretaria, houve a necessidade de averiguação sobre a forma de atendimento no transporte escolar, de quatro alunos do referido Quilombo. Como o lugar é complicado de chegar e perigoso, pois existe um morro 209


íngreme, de aproximadamente 1000 metros, foi necessário combinar os extremos: os alunos subiriam até a parte alta da estrada e o ônibus chegaria até um lugar chamado de Viradouro. Em um primeiro momento não foi tão simples assim: existia no meio do caminho uma caixa d`água e um transformador, sendo preciso acionar os órgãos estaduais que cuidam desses serviços: Companhia de Saneamento Integrado do Norte e Nordeste de Minas gerais S/A (COPASA – COPANOR) e Companhia Energética de Minas Gerais S.A (CEMIG) além das máquinas municipais para alargamento da referida estrada. Uma jornada se iniciava com a comunidade quilombola. Entre visitas, conversas e outros, cabe aqui dizer: a secretária de educação convidou o encarregado de transporte escolar e o motorista para realizarem a experiência dos alunos, ou seja, subirem o morro. Foi uma experiência fantástica! Reafirmando que a vivência do fato sensibiliza a atitude. Uma pergunta pairava no ar: Como contribuir enquanto política pública para que esses alunos chegassem à escola? Não era possível permitir que o ônibus descesse, a cancela era também estreita para a largura do ônibus. O que ficou ressoando desse encontro com a comunidade quilombola? Uma aluna que tinha os olhos brilhantes à espera de uma chance de estudar...um caderno que esperava ansioso em suas linhas a escrita de um sonho...aprender e ensinar. Aprender e ensinar fazem parte da existência humana, histórica e social, como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem, o amor, o ódio, o espanto, o medo, o desejo, a atração pelo risco, a fé, a dúvida, a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia. E ensinar e aprender cortando todas estas atividades humanas (FREIRE, 2014, p.12).

Acreditando com Freire na atividade humana de aprender e ensinar, iniciou-se a conversa para a retirada dos obstáculos, com o Secretário Municipal de Agricultura acompanhando o caminho, com o aval do Prefeito enquanto pessoa que se preocupa em cuidar, foi realizado o

alargamento da estrada pelas máquinas municipais e os outros

obstáculos retirados; a comunidade resolveu o problema da cancela; o Viradouro foi otimizado. E, chegando o dia da boa notícia, por existir um atraso considerável no calendário escolar, a referida escola, faria um reforço particular. Sendo assim, foi possível comtemplar a alegria das crianças, os olhos do pai lacrimejando de felicidade e uma política pública realizada em prol da inclusão e da cidadania. 210


Um serviço !!! um povo !!! uma história !!! Para não concluir... A produção de bons encontros com os motoristas, alunos, comunidades e transporte escolar, a partir do projeto motorista educador, se coloca, assim, como experiência de problematização das lógicas instituídas de transporte, escola, aprendizagem, comunidade escolar; secretaria de educação e políticas públicas, pelas brechas de criação de outras lógicas de conversas e diálogos aos modos freireanos, em que os discursos são diferentes e os sonhos também, mas isso não impede de sonharmos juntos. O importante é que a pura diferença não seja razão de ser decisiva para que se rompa ou nem sequer se inicie um diálogo através do qual pensares diversos, sonhos opostos não possam concorrer para o crescimento dos diferentes, para o acrescentamento de saberes. [...] Saberes de suas experiências feitos, saberes “molhados” de sentimentos, de emoção, de medos, de desejos (FREIRE, 2014, p.11).

Pensar a educação como práticapolítica de formação e humanidade, requer o entendimento das incompletudes mútuas, das interações entre todos, pelo princípio maior da educação. Considera-se que a mudança na relação motorista e trabalho, bem como alunos e transporte escolar, possa ter contribuído ainda nos resultados do processo educativo, tendo em vista a escalada positiva do município de Araçuaí na última avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (ideb – 2017), como apontado no quadro abaixo:

Fig. 11: Ideb 2017 de Araçuaí – MG / Figura 12: Transporte escolar Fonte: www.inep.gov.br / Fonte: arquivo da SME

Sabemos que toda avaliação é provisória e relativa, mas os resultados, de certo modo, apontam que os caminhos estão sendo trilhados, na busca de uma educação que promova dignidade a todos os envolvidos, pela possibilidade de dizer e ler o mundo.

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Foi exatamente porque nos tornamos capazes de dizer o mundo, na medida em que o transformávamos, em que o reiventávamos, que terminamos por nos tornar ensinantes e aprendizes. Sujeitos de uma prática que se veio tornando política, gnosiológica, estética e ética (FREIRE, 2014, p.12).

A educação como praticapolitica acontece quando estamos implicados em inventar novos modos de existência e problematizar os contextos vividos, pela produção de processos que aumentam a potência de vida. Sendo assim, de repente o mundo fica melhorado por forças coletivas que acreditaram, agiram e vem traçando novos caminhos. Referências bibliográricas CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis/RJ: Vozes, 1994. ______. A invenção do cotidiano: morar e cozinhar. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. ESPINOSA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. FERRAÇO, Carlos Eduardo; SOARES, Maria da Conceição Silva; ALVES, Nilda. Michel de Certeau e as pesquisas nos/dos/com os cotidianos em educação. Ed UERJ. Scielo books. RJ, 2018. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. FREIRE, Paulo. Política e educação. Organização Ana Maria de Araújo Freire.1.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. FREITAS, A. S. O ‘cuidado de si’ como articulador de uma nova relação entre filosofia, educação e espiritualidade; uma agenda de pesquisa foucaultiana. In: 32ª Reunião anual da ANPED, Caxambu, 2009. Anais eletrônicos... Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/32ra/index.html. Acesso em 20/06/2019. IBGE. Censo cidades 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em 20/06/2019. LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Tradução de José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte. Editora UFMG, 1998.

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CAPÍTULO IV: SUJEITOS EM TRÂNSITO, ARTE E PSICANÁLISE


Clínica artística: A experiência analítica como produção de uma obra de arte Maria Carolina de Andrade Freitas Thiago Victor de Oliveira Canal

RESUMO A Psicanálise e a arte são forças que partem de pontos independentes na produção de efeitos disruptivos no sujeito, entretanto a linearidade de ação não é característica de ambas. Dessa maneira, produz-se a questão: é possível existir interseções desses dois contingentes no espaço da clínica? Assim objetivamos investigar se a clínica psicanalítica e os efeitos produzido no encontro com as artes e/ou com o belo, conceituado como experiência estética na filosofia, são passíveis de entrecruzamentos, (des)encontros e (re)criações no âmbito da vida. Para tanto, empreendemos uma aposta na escrita ensaística que contempla a arte, a psicanálise e a experiência estética como presentificadas em Freud, Lacan e Kant. A (in)conclusão aponta que os atravessamentos da arte na clínica da Psicanálise, se faz dissonante de alguns discursos hegemônicos da clínica psicológica na atualidade, tendo como produto a aposta na vida, a transcendência do imediatismo, do bem estar e da cura.

“Da nossa vida em meio da jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada.’’ (Alighieri 2005 p. 25). A cena de abertura do Canto I do livro “Divina Comédia” de Dante Alighieri, inspira o inicio da construção do cenário dessa produção. Nas palavras desse canto, é representada a tomada de uma direção distinta do percurso habitual, levando à escolha de outro modo de caminhar, que se deriva para fora do estabelecido como a “verdadeira estrada”. Arriscamo-nos a utilizar esses versos para afirmar certa política de escrita (Rancière, 1995). Sair de um caminho antevisto para abrir distintas trilhas. É a partir disto que se delineia a aposta desta tentativa de transcrição. Divina Comédia emergiu na produção dessa obra como uma forma de sustentar outra escrita. O protagonista da história, Dante, anseia por estar com sua amada, Beatriz. Entretanto, Dante, no inicio da história (como remetido no primeiro parágrafo), está em uma floresta escura, tenebrosa. Na tentativa de fuga dessa floresta, que surge oportunizada diante da visada 214


de uma montanha, nosso herói se vê impedido por três feras que simbolizam a concupiscência do homem. Todavia, eis que encontra diante desse contratempo Virgílio, um novo personagem, que surge como um guia, o provedor de outra possibilidade, convocando Dante a um novo caminho, tortuoso, difícil, que atravessa o inferno e o purgatório para chegar ao paraíso onde está Beatriz. O que Virgílio desvela é o que gostaríamos de destacar. É o convite e a possibilidade de trilhar um outro caminho. É na exaltação ao desviante que se constituirá a presente produção. Buscando convocar o leitor a partilhar, ou pretensiosamente, a pensar, alguns cursos da clínica psicanalítica. Não tencionará aqui apontar o inédito ou novo, mas abrir outras perspectivas acerca de alguma aposta sobre a clínica analítica em seus entrelaçamentos com a arte. E que se inicie com o personagem de Virgílio como figurativa a esse anseio. Na trama, Virgílio ostenta um papel de importância, contudo, exprime coadjuvância na história de Alighieri. Mas, empregaremos a Virgílio o protagonismo do desviante. Esse protagonismo é o impensado e sua ótica sui generis será exaltada nesse trabalho. Sobre o passível julgamento da impavidez do termo obra ao se referir a esse escrito, argumenta-se: seu emprego não se dá ao acaso, e justo é o seu destroncamento mediante sua admissão. Obra, é adotada como sinônimo de criação, resultante de um trabalho. E nesta produção, também se teve por desígnio relacionar a discussão elencada à temática da arte, sendo utilizada com o intuito de atribuição alusiva, sem a aspiração de objeto, de obra de arte. Adota-se uma proposta mais estética da arquitetura textual. Essa obra terá contornos de uma escrita ensaística, e é sobre o calhar da admissão do método como desvio (GAGNEBIN, S.d) que assim é feita alusão a Divina Comédia, tomando-a por referência o percursos de seus personagens e a tentativa de aproximação de ordem desviante: pensar a clínica psicanalítica atravessada pelos contornos artísticos, estéticos e ontológicos, com toda potência e confluência que possa existir entre esses vetores.

Ato 1: Contexto histórico da psicanálise A história da Psicanálise, de uma maneira geral, é discutida e pensada sobre um prisma de influências centrais compositoras de seu corpo, que em muito contribuíram para seu complexo nascimento. (ELLIOT, 1994) O cerne do pensamento corrente na história da Psicanálise, referente a seus embriões constituintes, passa por Charcot no Hospice de la Salpêtrière em Paris, onde Freud buscou 215


obter novos conhecimento de perspectivas neurológicas, e principalmente, as novas descobertas sobre a histeria. Passou pela utilização da hipnose (FREUD, 2009/1886), que anos mais tarde seria abandonada por conta da sua ineficácia no tratamento (BARATTO, 2009). Joseph Breuer, professor e amigo de Freud, também inscreveu sua marca na composição da Psicanálise. Além de discípulo figurar ao seu lado no famoso caso da histérica Anna O., Breuer foi o desenvolvedor do método catártico utilizado no tratamento das histéricas, que posteriormente alicerçou o surgimento da associação livre, única e exclusiva regra fundamental da Psicanálise. Não obstante, Freud, através da Psicanálise, promoveu dentro das limitações tecnológicas e dos conhecimentos disponíveis, uma nova perspectiva de pensar e acessar conteúdos que extrapolam os signos orgânicos e empíricos, característicos dos conhecimentos que pautavam seus alicerces antecedentes. “Ver-se-á que Freud, um pensador à frente do seu tempo, descolou o psíquico da esfera fisiológica e propôs tratá-lo em si mesmo, através da fala” (JORGE, 2007 p.54). A Psicanálise assume um papel de ruptura aos saberes vigentes do final do século XIX e início do século XX, rompendo em certa medida também com a ciência vigorante. Freud foi certamente tributário de seu tempo e dos pensamentos e ditames da época, mas certamente, ultrapassou o legado que recebeu, a partir da própria formulação do seu pensamento. Disseminando a partir disso, aliados, críticas e rompimentos. No entanto, nunca foi a ideia original de Freud romper com a ciência, ele se manteve sempre na perspectiva de a Psicanálise obter validade científica e se manteve fiel a essa ideia e aos princípios de sua época (LACAN, 1988/1964). E ainda assim, o conhecimento instituído por Freud efetua, segundo o próprio, um dos três golpes narcísicos da humanidade. O que se figura com a citação: “o Eu não é senhor da sua própria casa” (FREUD, 2009/1917, p.90). Célebre frase que indica, de forma categórica, a noção de uma nova condição interposta: a da sustentação de um inconsciente ativo, distinto ao que era até então. Anteriormente a Freud e sua elaboração sobre o sujeito do inconsciente, a consciência era elencada como âmago do psiquismo e instância que respondia por quase todas as ações do indivíduo. Assim o percurso constituinte da Psicanálise é geralmente remontado, a partir dos princípios precedentes citados e utilizados por Freud para instituição do saber psicanalítico. (Garcia-Roza, 2009/1994) Entretanto, com todos esses vetores que se tornaram atuantes na formação do corpo teórico da Psicanálise, outra via se fez fundamentalmente presente como aliada: a Arte. Desde 216


a composição inicial das premissas teóricas psicanalíticas, a arte participou da formação e elaboração da Psicanálise, de maneira quase intempestiva algumas vezes. Atualmente, a arte tem comparecido nas discussões e pensamentos de alguns psicanalistas, possibilitando reflexões sobre as atuações e caminhos teóricos e clínicos. Assim como foi ponto de elaboração e discussão histórica da metafísica e da esfera ontológica da filosofia. É neste ponto de interseção que mobilizamos esta breve discussão sobre a arte e suas infinitas interfaces com a clínica psicanalítica. Ato 2: O atravessamento da arte Rivera (2007) sustenta que “não é à toa que Freud concede à arte um papel de peso na própria fundação da psicanálise” (p. 17). Assim, mediante a importância de se ter a arte como cerne circundante da discussão deste trabalho, é válido situar o seu papel constitutivo para a Psicanálise. Freud se apropria da análise de obras literárias, biografias e uma série de obras de arte para retratar e tornar inteligível as forças convocadoras do pensamento psicanalítico, tornando assim possível conglutinar o seu desdobramento. Isso se revela de forma mais clara no emprego dos mitos gregos como modulação para simbolizar alguns pontos que o autor aspira destacar, manifestas em suas observações clínicas. Esses enredos eram representados por tragédias teatrais, onde se buscava base ilustrativa das emoções humanas e da condição do homem (Lobo, 2004), sendo pertinente para Freud de modo cognoscível abordar tais representações. Um dos mitos utilizados por Freud, que teve grande relevância, foi o de Narciso (Freud, 2009/1914). A forma de retratar o resplendente pensamento de amor do indivíduo sobre si mesmo, é algo que se encontra no íntimo da tragédia. A representação da temática abordada na trama ajudou Freud a se debruçar na teoria do desenvolvimento sexual, se tornando um conceito capital para a teoria. Outro mito que assume conotação de destaque é a tragédia do Édipo Rei, de Sófocles. O fundamento da obra reverberou em praticamente todos os escritos de Freud, influenciando toda teoria psicanalítica através da elaboração do conceito do complexo de Édipo (Freud, 2009/1923, 1924, 1925). Vários artistas tiveram também grande contribuição para Freud explanar alguns temas importantes e para construção de textos relevantes. Leonardo da Vinci foi um dos quais, mediante uma psicobiografia da sua vida e das suas obras, em um texto chamado 217


Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância (Freud 2009/1910), Freud pode debater sobre sublimação, criação artística e os efeitos nutridos pelo inconsciente para as inspirações artísticas. Pode-se destacar também a influência de Fiódor Dostoiévski, escritor Russo pelo qual Freud detinha grande admiração, levando-o a compor um importante texto nomeado Dostoiévski e o parricídio (2009/1928), que retoma como em Totem e Tabu (2009/1913), a tese do parricídio como a principal fonte de sentimento de culpa do homem. William Shakespeare teve também grande papel na influência estruturante da Psicanálise. Freud recorreu a análise de obras como Hamlet, MacBeth, Rei Lear, O Mercador de Veneza para elucidar temáticas analíticas pertinentes a questões abordadas nessas obras. As obras shakespearianas emergem em muitos textos de Freud, alguns deles são: Personagens Psicopáticos no Palco (2009/1905), Sobre a Psicoterapia (2009/1906), O Tema dos Três Escrínios (2009/1913) e O Estranho (2009/1919). Freud indica, como aludido, sua rendição a literatura, e como essa exerceu um papel preponderante no estabelecimento da Psicanálise (Jorge e Pereira, 2005). Essa submissão se explicita com notoriedade em textos como Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (2009/1905) e Conto de Jensen “Grádiva” (2009/1908). Nesse último, o autor frisa a importância e a sensibilidade de escritores servindo como reflexo sobre possíveis caminhos do pensamento em Psicanálise, diante de complexos ainda inexplorados: os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (FREUD, 2009/1908 p.5).

Dessa forma, um indício da influência artística para a teoria freudiana se faz desenhada aqui, a grosso traço, e aponta a posição de aprendiz da Psicanálise em relação à arte (Autuori, 2005). Assim, o influxo da arte na Psicanálise vem se apresentando diante as mais variadas formas de atuação conjuntiva até os dias mais hodiernos, (re)fazendo percursos em concomitância. Desta maneira, a combinação entre arte e Psicanálise se assemelha, se estreita e constrói várias faces da prática do analista. Tal repercussão adentra até o mais prezado, clássico e por vezes impensado solo de atuação: a clínica. Freud, em o Conto de Jensen “Grádiva”, aponta o artista como expoente que se aproxima ao que é aferente e que se ajuíza em suas observações clínicas psicanalíticas, 218


apontando no texto a importância dessa junção artista e psicanalista, utilizando a fragilidade científica como parâmetro afirmativo do pressuposto dessa união: Entre as precondições constitucionais e hereditárias de um delírio, e as criações deste, que parecem emergir prontas, existe uma lacuna não explicada pela ciência lacuna esta que achamos ter sido preenchida pelo nosso autor. A ciência ainda não suspeita da importância da repressão, não reconhece que para explicar o mundo dos fenômenos psicopatológicos o inconsciente é absolutamente essencial, não procura a base dos delírios num conflito psíquico, e nem considera seus sintomas como conciliações. Acaso nosso autor ergue-se sozinho contra toda a ciência? Não, não é assim (isto é, se eu puder considerar como científicos os meus próprios trabalhos), pois já há alguns anos - e, até bem pouco tempo, mais ou menos sozinho - eu mesmo venho defendendo todos os princípios que aqui extraí da Gradiva de Jensen, expondo-os em termos técnico. (...) Assim fiquei bastante surpreso ao verificar que o autor de Gradiva, publicada em 1903, baseara sua criação justamente naquilo que eu próprio acreditava ter acabado de descobrir a partir das fontes de minha experiência médica. Como pudera o autor alcançar conhecimentos idênticos aos do médico - ou pelo menos comportar-se como se os possuísse? (FREUD 2009/1908 p.31)

No caso desta citação, ainda que Freud remeta-se à formação do delírio e as dificuldades de explicação da ciência da época para tais fatos, convém-nos traçar a importância que o autor concede à arte como dispositivo de compreensão clínica. Ou seja, Freud, já no inicio do século XX, aponta-nos a importância da clínica se atentar à arte no entendimento de elementos que se fazem presente na atuação do psicanalista. E a manutenção da sensibilidade a essas exposições artísticas nunca devem cessar na Psicanálise. Assim é que, neste ensaio, diante da convocação que nos é feita por Freud, empreende-se pensar os elementos que permeiam a confluência entre a clínica da Psicanálise e a arte.

Ato 3: A veia artística da clínica Vimos que Freud (2009/1905, 1908, 1910, 1913, 1917, 1927), ao se debruçar no desenvolvimento da teoria do sujeito da Psicanálise, validou sua aproximação com a vertente artística através da sua apropriação. O estreitamento desta direção em relação à clínica, indicada pelo próprio autor, constitui também o cerne deste ensaio. Exalta-se a condição de criação de novas perspectivas de vida (savoir-faire à savoir y faire) através da produção do processo analítico, como sugere Kon (1996 como citado em Hosenfeld, 1999), que busca trazer a concepção clínica enquanto potencial de produção 219


artística, dizendo que “o fazer psicanalítico é criação de realidades novas, e não desvelamento arqueológico de realidades esquecidas, o que o torna comprometido com o fazer artístico” (p.2). Sendo assim, o fazer clínico psicanalítico não responde a uma demanda estrita de acesso a conteúdos históricos ontogenéticos. O exercer e a sustentação da atuação da clínica são amparados pelo valor único e singular de como goza cada sujeito em cada nova atualização, pois o inconsciente é preconizado por uma organização atemporal que se atualiza e se interpola, como afirma Freud (2009/1930), “o elemento primitivo se mostra preservado ao lado da versão transformada que dele surgiu” (p.77). Por conseguinte, a produção clínica se pauta no contato com a atualização dos conteúdos inconscientes do paciente que os repetem, mudando o cenário, os atores, a cronologia, mas não o significante. Essa atualização, através da repetição que insiste em não cessar, é passível de dois conceitos do pensamento aristotélico retomados por Lacan (1988/1973), o primeiro, é o de Autômaton, que seria a insistência do automatismo da cadeia significante inconsciente, que sempre retorna, e o segundo conceito é o de Tiquê, que retrata um encontro com o Real, que “se encontra para além do Autômaton” (Lacan, 1973 p.56), conforme explicitado em seguida: Assim, não se confunde a repetição com o retorno dos signos, nem com reprodução, ou a conduta pela rememoração agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velada em análise, por causa da identificação da repetição com a transferência, na conceitualização dos analistas (LACAN, 1973 p. 56).

Em encontro com o Real, se configura a produção da clínica, da impotência ao impossível. A novidade pela repetição da Tiquê se produz conjuntura de atribuição de novas significações, deslocando o caminho seriado significante característico do Autômaton. Esse encontro possibilita pensar a clínica como produtora do novo. De maneira que, diante do condensado, a confrontação com esse âmago, poderá ajudar o sujeito a construir e vivenciar suas experiências, certa liberdade para obrar novas formas de significação de vida. Badiou (2004) e Frayzer-Pereira (2006) propõem condição análoga e aproximativa do evento criador de uma obra de arte e a clínica psicanalítica, promulgando a veia artística criativa presentificada na análise. No plano das artes, os autores sugerem que a passagem à matéria artística eleva-se do plano da impotência até sua forma artística. O que remete à ideia de superação. Ou seja, o 220


movimento criativo é a condição de se produzir arte a partir de um antecedente cristalizado, do pensamento ou da matéria e fazer passar ao esplendor da criação. Já na clínica psicanalítica, transita-se entre o verbalizado, através de uma cadeia significante remontada, série do Autômaton, enquanto impotência, ao não dizível possibilitado pelo Tiquê. O que faz uma passagem da impotência para uma experiência com o Real, ou seja, com o impossível. Isto promove uma experiência visceral: a da impossibilidade total de apreensão simbólica, sendo elemento suscetível a novas formas de experiência. Deste modo, se torna exequível a tentativa de uma analogia acerca da criação da obra de arte, com a atuação do psicanalista. Sinaliza-se que em ambas parte-se de um ponto para acessar a condição de outra produção subjetiva potencial. O que se pode estabelecer mediante o encontro com a criação, que remete a própria vida, ao movimento de passagem da impotência ao impossível. Assim, pensar os efeitos do contato com significantes velados e a promoção de interrogações diante de verdades estabelecidas, são alguns dos movimentos criativos que podem ser operados na atuação clínica. Enfatiza-se, portanto, o caráter de produção e criação artística que, dados ao enfoque deslocador, desvelam-se como operadores do obramento da/na vida. Esse sopro operador sinaliza ser oriundo da arte e da clínica, na perspectiva de uma atuação analítica que seja também análoga à produção artística. Referimo-nos a afirmação de uma perspectiva a uma clínica artística: a de que o dispositivo analítico constitua-se como agente vaporoso de operação atuante, como um sussurro, ou um enigma, concernindo à reverberação sutil no plano subjetivo. Então, o que é isso que indubitavelmente promove esse amalgamar entre ambos? Que possibilita resplandecer de alguma forma no subjetivo de quem faculta essa colisão da clínica enquanto gênese artística?

Ato 4: (in)Viabilidades em cenários (in)alterados As produções artísticas e a clínica psicanalítica exibem valores potenciais na fabricação de elementos tensionadores. Todavia, tais realizações são colocadas no plano das não garantias, tendo em vista que o contato com a arte ou a experimentação terapêutica de qualquer seguimento psicológico não asseguram a produção de efeitos transformadores, já que estes últimos se dão mediante condições subjetivas (Pereira, 2014). 221


Contudo, o que nos importa neste ensaio e que se destaca é que, diante do contato com algo presentificado – como o desvelamento significante, que possibilita um obramento ressignificante, ou, no questionamento da fantasia fundamental; bem como no tocante ao que se desdobra diante de uma escultura, tela, poema, música, ou com o belo de uma forma geral – poderá assim haver a gênese de um novo elemento. Sob a forma de interrogação, exclamação ou silêncio reticente, um elemento fruto de um encontro, um encontro com o inesperado, ocasiona, em verossimilhança tanto da clínica quanto no toque da arte e suas vertentes, uma transformação. É nesse ponto que se deterá a discussão no momento que se segue: sobre o efeito de deslocamento oportunizado pela arte e pelo o belo, através da experiência estética. E, é na estética que se deposita a tentativa de sustentação das questões colocadas ao final do ato anterior. Busca-se, desta forma, entrecruzar os efeitos produzidos pela arte, pela clínica e pelo encontro de ambas.

Ato 5: La belle (in)différence A humanidade vem se utilizando das mais variadas formas de arte para mediar suas vivências no mundo desde o principio da espécie. Ilustrou-se com desenhos, grafismos abstratos e hieróglifos o cotidiano real das pessoas, o mundo em que viviam e o período nos quais estavam inseridos (Almeida, 2010). A filosofia em sua história também resguardou interesse pela arte e pelo belo. Através da estética, demonstrou toda sua inclinação sobre a questão dos efeitos da arte e do belo na produção da vida. No século XV, adentrou com mais intensidade na discussão estética (noção de arte e de bela arte, produção da arte, fenomenologia dos efeitos da arte), sendo que o interesse se consuma, com mais veemência, no final do século XVIII e início do século XIX. O filósofo alemão Alexandre Baumgarten sistematizou a estética como disciplina filosófica (agora que sistematizada Estética) e isso culminou em um maior foco de interesse desse campo de conhecimento. Contudo, as discussões de tal campo eram resumidas ao cunho metafísico-objetivo e intelectualista oriundos da tradição racionalista, que atribuía a beleza ao plano da realidade, e a partir do reconhecimento do atributo e apreendendo-o, o indivíduo poderia estabelecer um 222


juízo estético do belo, universalmente compartilhado, ou seja, a conceituação dos efeitos da arte e suas possibilidades se reduziam a mera condição intelectualizada do se pensar sobre o belo (Santos 2010). Nas palavras de Santos: Os assuntos estéticos até então ou eram tratados à mistura com reflexões de natureza moral e psicológica (a propósito dos sentimentos), ou com considerações metafísicas (a ideia de beleza convocava as – ou era convocada pelas – de perfeição, de harmonia, de ordem, de simetria, de regularidade). (SANTOS, 2010 p.37).

Baumgarten, instituindo a Estética como discussão filosófica, possibilitou grande retesamento conceptivo do assunto no campo da filosofia. Contudo, é em Kant que será atado o nó referencial de discussão nesse quinhão do trabalho. E nele se encontra uma proposta adversa à estética em relação ao seu precursor Baumgarten. Ter-se-á por referência seus escritos de 1790, Crítica da faculdade do juízo. Não se tem por objetivo propor um aprofundamento, análise de eventuais percalços, mudanças e reavaliações na consolidação do pensamento kantiano que possam ter havido, mas unicamente a apropriação dos conceitos elencados que possibilitam propor um entendimento sobre a arte enquanto elemento promotor de deslocamentos, vivências e experiências no plano do subjetivo. Tendo essa delimitação estabelecida, Kant apresenta uma perspectiva distinta da de Baumgarten, em primeiro plano, já no emprego do conceito de estético. Essa referência em Kant será mais pautada na ideia de sensível, sendo este imediato e passivo, referindo-se a como o sujeito capta a realidade. Por isso, a definição sobre o sensível em Kant torna-se antagônica ao discurso intelectualizado como afirmado pela noção de Estética no momento histórico precedente ao pensador (Santos,1994). A doutrina kantiana ainda se tornará dissonante quanto ao aspecto racionalista empregado por Baumgarten e seus pares, conforme relata Santos (2010): Kant não reconhece que seja possível subordinar questões estéticas propriamente ditas a regras ou princípios a priori e elaborar uma ciência ou doutrina estética, como parece ser a pretensão de Baumgarten, pois segundo crê, os princípios do gosto ou são meramente empíricos, ou são na sua maioria, empresa vã por pretender sujeitá-los a princípios racionais e propor a seu respeito uma ciência ou uma teoria. (SANTOS, 2010, p.40).

Kant abandona o domínio metafísico e se aproxima aos efeitos psicológicos e experienciais, se utilizando de dois pólos, o objetivo (o objeto, isto é, aquelas manifestações que condicionam ou que provocam o que sentimos e julgamos) e o subjetivo (o sujeito, o 223


artista, o expectador que sente) (Frayze-Pereira, 1994). Valoriza os “elementos heterogêneos, como o prazer sensível, os impulsos, os sentimentos e as emoções” (Frayze-Pereira, 1994 p.36) e atribui magnitude superior ao fator subjetivo em detrimento ao valor racionalista. De forma que, o autor percebe o belo enquanto vetor resplandecente no sujeito e problematiza a questão racional acerca dessa relação. Em suas próprias situa Kant (2008/1790): Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação não através do entendimento ao objeto com vista ao conhecimento, mas mediante a imaginação ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte, não é lógico, mas estético, pelo que se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo. (KANT, 2008/1790, p.47)

O que se intenta é pensar os efeitos da arte em Kant como vivência estética, apontando seu caráter subjetivo radical, uma vez que a experiência com a arte coloca como aspecto secundário o conhecimento intelectualizado do objeto tal e qual. Assim, o epicentro da discussão ontológica kantiana é a experiência estética em suas condições subjetivantes, proporcionada pelo contato com a arte e com o belo, que destaca como o autor atribui relevância a esse componente (Santos, 2010) Portanto, a ideia de contato reverberante da arte e do belo não é mero predicado da obra finda, produzida pelo artista ou pela contemplação do belo, mas parte de um plano de investimento do sujeito em algo que o toca. Algo que afete, uma vereda captada ou contemplada. Santos (2010) refaz uma vertente do pensamento ontológico a partir da discussão estética pautada em Kant e referencia a condição de contemplação do belo para mostrar que a experiência estética perfaz a existência de uma falta. É a capacidade de ser afetado do homem que indica a existência dessa falta, da condição de ser mobilizado pela própria experiência estética. Assim, os “puros espíritos e o próprio Deus” (p.46) não são passíveis de serem afetados, pois gozam da perfeição. Desta forma, torna-se possível pensar os efeitos da arte como potência de condição subjetivante, da mesma forma que elevar o processo clínico à dimensão de criação de obra. Em outras palavras, a experiência estética pode se dar tanto no contato com a obra de arte quanto no processo clínico, uma vez que em ambos os casos, se colocam o contato com a criação, a colisão criativa e a produção de novos horizontes. Sendo assim, a arte e, por que não a clínica possa viabilizar a experiência de diferir, da produção de abertura a novos prismas. A experiência estética, portanto, apresenta sua 224


importância clínica, mesmo sendo ainda pouco vislumbrada. Kon (1996 como citado em Hosenfeld, 1999) aponta para o poder da estética na produção analítica dizendo que “se a arte é cúmplice, a estética pode trazer subsídios valiosos para o fazer psicanalítico. É assim que a obra envereda por um caminho dos mais criativos ao propor pequenas amostras dessa possibilidade que é infinita e ainda pouquíssima explorada” (p.2). Ato 6: O toque da sombra do inominável Encontramos nas palavras de Freud em Moisés de Michelangelo (Freud, 2009/1913), valiosas pistas, já que muitos de nós, sujeitos tributários da linguagem, em algum momento vivenciamos algo semelhante ao narrado por ele, ao menos em alguma grandeza: Não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. (...) Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte (...). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. (FREUD, 2009/1913, p.143).

Fig.1 Moisés, Michelangelo v

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O que Freud compartilha conosco é a referência a algo que se presentifica, de maneira indescritível, no contato com a arte (Frayze-Pereira, 2006). Dessa forma, transpondo para o plano da clínica, em potência, a experiência estética e os efeitos desta sobre o sujeito – como exemplificado por Freud – comportam a impossibilidade de simbolização total da arte, já que somos todos “falta-a-ser” (Lacan 1988/1973). Permeados pela linguagem, sofremos diante da incapacidade da completude expressiva. Assim, é impossível obter a total apreensão e entendimento dos efeitos da arte sobre nós. Condição desejante de nossa existência. O conceito de Real criado por Lacan se torna pertinente ao entendimento de tais provocações. O Real lacaniano alude a aquilo que não cessa de não se inscrever e que sempre retorna. Então, que seja o Real (in)explorado na tentativa de tratar como impossível em sua potência da clínica artística. Na perspectiva de produção que busca abordar o Real, não para velá-lo, mas sim para afirmá-lo como litoral, algo a partir do qual se contorna, uma sombra, uma aparição (Valerim, 2011). Roudinesco (1998) define o Real como uma “volta na realidade para um lugar no qual o sujeito não o encontra, a não ser sob a forma de um encontro que desperta o sujeito do seu estado ordinário” (p.182) nunca condicionado a uma total apreensão simbólica. A partir do conceito de Real lacaniano e em articulação com a discussão sobre a clínica artística, Jorge e Pereira (2005) nos apresentam a forma no qual o Real comparece diante do contato como a sombra do objeto perdido, causadora de desejo e de busca por um novo momento com o que não se inscreve, mas que podem surgir no toque da arte e/ou na clínica: O Real está fora até o momento em que um corpo vivo é marcado pelo significante. A partir daí, o Real se inscreve na estrutura como aquilo que faz buraco. É nesse sentido que podemos dizer que o Real, apesar de resistir a qualquer simbolização e, justamente por isso, apagar todo o sentido, comparece no simbólico, sob a forma de falta de um significante. (JORGE E PERERIRA, 2005, p.31).

A falta do significante pode ser experimentada no encontro estético, já que o mesmo pressupõe certa emergência não simbolizável. Como sujeitos desejantes, a experiência subjetiva diante do Real, tanto na clínica como diante da obra de arte, pode abrir-nos a um campo de ruptura, o que oportuniza um encontro sensível e estético, sinalizando a presença do inominável (Otávio e Dionísio, 2014), pois como afirma (Lacan, 1971, citado por Safatle, 2005) “o subjetivo é algo que nós encontramos no Real” (p.3). Sendo assim, o encontro com a sombra do (assombrado) objeto perdido constitui um vislumbrar frágil do Real: aonde se desenha o subjetivo. 226


É o sujeito do inconsciente que se mira na atuação analítica, na clínica. A partir disso é que se encontra toda potência de modulação para a criação da experiência estética. Desta forma, o contato com a obra clínica pode produzir um efeito tensionador: indagações, transposições de um sintoma ao sinthoma... A emergência do “Real em sua articulação entre o gozo e o inconsciente” (Quinet, 2009, p.167). São as interpelações potenciais acerca do sintoma, viabilizadas no percurso de uma análise, como retoques finais da obra clínica, que possibilitam ao sujeito a destituição subjetiva, como processo de recriação de si. Nas palavras de Lacan: quando havido resolvido o desejo que sustentara em sua operação o psicanalisante, ele não tem mais vontade, no fim, de levantar sua opção, isto é, o resto que, como determinante de sua divisão, o faz decair de sua fantasia e o destitui como sujeito (LACAN, 2003, p.257).

Menegassi (2010) constata a aproximação da destituição subjetiva ao conceito de sinthoma em Lacan: No começo, o sujeito está identificado ao seu sintoma pela crença que nele tem. No final, esta identificação se dá pela descrença radical em seu sintoma, produzida pela destituição subjetiva. A destituição subjetiva seria a condição para que o sujeito se relacionasse com o seu sintoma de forma salubre, daí este sintoma vir a ser para Lacan o sinthome. (MENEGASSI, 2010, p.107).

Assim, é mediante o movimento de transposição do sintoma, que se possibilita a destituição subjetiva, onde “aquilo que ocorre quando o sujeito se reconhece na opacidade de um objeto pulsional que o constitui ao mesmo tempo lhe escapa” (Safatle 2005 p.9), de forma que o sintoma, enquanto verdade estabelecida assume agora contornos de sinthoma como “efeito do Simbólico no Real” (Quinet 2009, p.173). No reencontro com o ranço do objeto perdido, mediante sucessivos substitutos e deslocamentos simbólicos, é que se perspectiva novos desvelares e novas condições criativas de vida (Jorge, 2000).

Ato 7: (in)Conclusão É em direção à vida que a perspectiva da clínica artística se move, no intento da produção de vida, de coautoria desse processo, ou de testemunho à criação afirmativa da vida como arte. Foucault (2011) propõe a construção da vida como obra de arte. Uma estética da existência: 227


Criar alguma coisa que aconteça entre as ideias, e ela deve ser feita de modo a tornar impossível dar-lhe um nome, cabendo então a cada instante dar-lhe uma coloração, uma forma e uma intensidade que nunca dizem o que ela é. Essa é a arte de viver. A arte de viver implica em matar a psicologia, criar consigo mesmo e com os outros individualidades, seres, relações, qualidades inominadas. Se não pudermos chegar a fazer isso na vida, ela não merece ser vivida (...) fazer de seu ser um objeto de arte, isso é o que vale a pena (FOUCAULT, 2011, p. 107 – 109).

A vida deve ser admirada como arte, e a atuação clínica devem ser pincel, aquarela, palavra, escrita e inspiração para o falta-a-ser. Ser criativo ante sua própria existência. Diante do obramento, a produção da clínica exige a responsabilidade do analista com o processo de vida do paciente. O que queres? É a pergunta do desejo. O analista deve indagar: o que queres obter? É assim que diante da afirmação de que “não há clínica sem ética” se propõe uma atuação que se pode denominar de “além da”: adequação moral, adequação social, aceitação dos ideais comuns. Pois não há clínica sem ética e a ética da Psicanálise refuta muitas escalas do instituído socialmente. A clínica psicanalítica adentra no campo de atuação que se inicia no suposto fim. É dessa forma que a análise deve começar, além da adequação e do bem-sentir, na contramão do saber hegemônico e científico (Miller, 2002). Isto posto, arriscamo-nos a afirmar a proposta de atuação de uma clínica artística que justamente endosse outra perspectiva distinta da atual cultura cientificista e racionalizada. Ou seja, pensar uma clínica artística dissonante ao instituído socialmente que se interessa pelas pulsações subjetivas. Seguindo caminho trilhado por Miller (2002) acerca da responsabilidade da ética do psicanalista, enfatizamos: Este “não há clínica sem ética” também se julga pelo modo como agente aceita ou não uma demanda de análise. Pois, como diz Lacan, são sempre inocentes os que entram em análise. O que equivale a dizer que o culpado é o analista. Os que entram são inocentes por que não sabem que o verdadeiro final de análise é a destituição subjetiva, coisa que, curiosamente – mesmo sendo algo diferente –, se parece com o desenvolvimento da personalidade (MILLER, 2002, p. 99).

Sendo assim, a clínica artística se sustenta para além das entrevistas preliminares e ad infinitum, uma vez que, o bem-estar não é o fim da análise mediante a ética psicanalítica, mas seu início. A obra se inicia na aceitação do paciente em análise via associação livre como ferramenta de produção. A obra aponta seu tracejado desta forma, mas só se (in)constitui, com 228


esplendor, na atuação do para-além. E é isso que a clínica pautada na arte se torna, uma clínica da exaltação à vida. Exaltando a vida, essa é a proposta criada enquanto expectativa remetida à ideia de uma clínica artística. Entretanto, o que se (in)conclui com todas essas questões? Estéticas, psicanalíticas, de arte, de vida... de desvios? Aos nos atentarmos aos elementos que emergem na trilha por vezes nebulosa desse ensaio, que não tinha por pretensão a busca por uma clareira, reflexionemos sobre alguns adventos. Ora, não é o campo clínico da Psicanálise área afim da arte e, por conseguinte, da filosofia em seu pensamento sobre a experiência estética? Após o emprego de alguns pontos de vista nessa obra, podemos concluir que sim. Ainda assim, não é negada a existência de um universo de condições de ampliar, construir e desconstruir essa colocação pretensiosa. Também não se tem por proposição na clínica da psicanálise ser mecanismo de tensionamento, tendo como um dos agentes de atenção do analista os encontros com os substitutivos do objeto perdido, e o que esse frágil embate pode produzir? Seguindo esse pensamento, não seria o ranço do objeto perdido também encontrado nas artes, como o que Freud vislumbrou em Moisés de Michelangelo? Bem, o que considerar diante disso? Talvez, que a clínica artística atue enquanto potencial conjunção de novas possibilidades da/na vida do sujeito. Podendo ser apresentada como análoga à produção da vida como obra de arte. Então, se diante de uma obra, e na clínica, se tem por possibilidade o vislumbrar a sombra do Real, não seria também a criação clínica, enquanto produtora de arte, amasiada pelo choque da experiência estética, potência para encontro com o inominável? De forma que, a criação da obra clínica possa ser uma, diante de infindáveis e inimagináveis meios para esse encontro com o Real? E isso não seria, talvez, propiciado pela experiência estética, do encontro com o belo, e com a arte de vida que se cria no âmbito clínico? O ensaio busca uma precipitação do objeto e a aposta em uma experiência diante de um prisma alternativo. Essa ideia já foi elencada no inicio desse trabalho, contudo permitimos seu reemprego para alicerçar uma pergunta que desejamos direcionar ao leitor: Que tipo de clínica buscamos (des)construir? Subsistir na clínica dos nossos dias, que busca a todo custo a cura e a satisfação de anseios que não se conseguem mais delimitar? Ou uma clínica artística, situada no desejo e em uma estilística de si?

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Artivismo: ensaio para uma vida não-fascista Maria Carolina de Andrade Freitas Murilo Kill Batista

RESUMO Este trabalho ensaístico surge como uma possível interlocução entre psicanálise, política e arte. Que poder têm os corpos ditos abjetos? É a pergunta condutora das elocubrações neste ensaio que aponta na arte ativista uma profícua estratégia para as novas insurgências. Frente a ascensão de discursos fascistas, vidas dissidentes estão cada vez mais na iminência do desaparecimento. Neste contexto a arte advém como suporte privilegiado de ressonâncias que possibilitam a afirmação e construção da vida. São privilegiados no ensaio acontecimentos e criações ocorridos na Grande Vitória, Espírito Santo.Transitando entre teóricos de distintas áreas dos saberes, o texto articula em vertigens elaborações da vivência como bicha amante da arte, primeiras experiências como analista em formação em uma clínica-escola e o advento da última eleição no Brasil.

Prelúdio

Ó Deus serpentecostal que habitais os montes gêmeos, e fizestes do meu cu o trono do vosso reino, santo, santo, santo espírito que, em amor, nos forjais, felai-me com vossas línguas, atiçai-me o vosso fogo, dai-me as graças do gozo das delícias que guardais no paraíso do corpo. (Motta, 2008)

Antes um nada desconhecido, passou então a ser deboche, espanto e em seguida mortificação até que se tornasse cólera. Este ensaio nasce de uma necessidade de escritura. Uma tentativa de unir os três temas: arte, política e psicanálise; três bases que incidem no desejo (amor-bicha, liberdade e clínica). Sua construção, marcada por momentos inéditos, exigiu contínua reinvenção diante da ascendência de Bolsonaro... É sempre mais difícil ancorar palavras no espaço 105.

“É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”. A frase é de Ana Cristina César, poeta marginal brasileira da década de 70.

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O ensaio autoriza a liberdade estética na aposta em uma desidentidade, por isso a escolha; retirar-se quando se faz da redução dos termos uma verdade. Como testemunha da própria desidentificação, é possível libertar-se de alguns fantasmas de verdade. Explicitar as interações nos limites do psíquico e somático, sem cair no engodo da limitação; ensaiar é criar um espaço aberto onde jogam as forças, buscar outras formas de enxergar em si e no mundo as possibilidades de vida. Trazer como cura o percorrer as veredas de um exílio por via das palavras. Sem garantias, é certo. Pois como em uma análise, um ensaio depende de implicação pelo desejo – identificação que tem dentre muitos, o nome amor – que não cura, mas autoriza desejar. Desde muito os tons azuis da vida, deboche e rupturas; adolescência rebelde do olhar tímidoinfantil-culpado 106. A arte possibilitou contornos privilegiados às violências na escola, família e rua. Não foram poucas. O preço nunca é baixo quando está marcado no jeito do corpo um signo de usurpação do desejo. Eleição de heróis na adolescência que pagaram muito. Agenor Neto agonizou em praça pública, Ana Cesar se atirou ao vazio, Janis Lyn precisou da última dose, Jean-Nicolas não teve pernas suficientes para sustentar-se. Mortos entre os vinte e sete e trinta e sete em um intervalo de precisos cem anos de solidão. Um grito de revolta que se renova a cada geração. E rio. Com o riso faço do grito solitário vida ativa.Vida atenta por ouvidos sempre dispersos que ressoam vazios, como tudo o que aqui proponho: desconstruir é desvelar o oculto. O advento da última eleição presidencial foi cruelmente vivido por cada um de nós; do trabalho em sindicato à guerra ideológica em seus seios familiares, materiais clínicos de afirmação da vida surgiam vertiginosamente. Uma clínica institucional em uma cidade que corriqueiramente encabeça rankings de feminicídio, racismo e apagamentos de corpos LGBTs. Clínica de desprivilegiados que, por sentirem nos corpos a devastação dos fascismos, não ousam dizem que “é só política”. Uma clínica que, apesar de escolar, teve seu cínico sentido restituído em vivência artísticopolítica. Não é incomum ouvirmos que Vitória é uma das melhores capitais para se viver. Jhony e Saulo não suportaram as seguidas apunhaladas no Terminal de Vila Velha que matariam muito mais que dois viados. O corpo da puta e travesti Layza Mello só não sobreviveu aos quatro tiros na Carlos Lindemberg. Em Cariacica, às 6h30 da manhã, Rafael foi tomar café da manhã na avó, no caminho tomou pauladas e teve o crânio esmagado por um pedaço de concreto; Rafael tinha 14 anos. Algumas vidas, dizem, não merecem ser vividas; isso é o que nos mostram os atos concretos. Se algumas pedradas são o suficiente para matar um corpo, qual a finalidade de todas as outras? Em 2017, segundo o IBGE, estimadamente quatro milhões dezesseis mil e trezentos e cinquenta e seis corpos popularam o estado que tem nome de Espírito Santo. No primeiro turno da eleição presidencial de Definição que Edmund White dá aos olhos de James Dean em biografia sobre Arthur Rimbaud em A vida dupla de um rebelde.

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2018, armados pelo voto, 1.122.131 decidiram sustentar nas urnas uma lógica odiosa que põe à sua própria imagem a única possibilidade de santificação do espírito.A mim me soa um erro, neste momento temeroso, escrever algo que não o diga. O amor precisa ser reinventado 107; há séculos somos alertados. Algo novo se irrompe a qualquer um que já se tenha permitido ressoar como falso testemunho nesta aparente caótica e intensa corrida das verdades. Somos sobreviventes, é sabido; para em todo tempo ruim, a viadagem se perpetuou. A sensação de estarmos nos alastrando, de sermos vistos como novo fenômeno vem da voz que já não tanto mais se permite abafar. Perpetuamo-nos em murais do amor entre Khem umhotep e Niankhkhem um, 2.400 anos antes do pecado da cruz; vasos da Grécia Antiga, estátuas de imperadores em Roma, nos vitrais demonizados da Idade Média, criações no Renascimento, nos pálidos triângulos rosa para além das câmaras; tomados como vírus, perpetuamo-nos em arte. Para além da reprodução dos artesanatos, a vida como produção se dá pelo método singular da criação artística de desenquadre aos moldes. Quando capaz de afetação, as marcas são indeléveis, anunciando a existência da Grande Máquina, nos repondo pequeninos frente às cifráveis formas do horror humano. Grandes mobilizações não representam mais o acontecimento da resistência marginal; ela é difusa, múltipla, instante. Arte como política da existência, como saída possível do domínio do pensar, fazer e viver. Em sua lição de 10 de Maio de 1967, Jacques Lacan 108 em A lógica da Fantasia, comenta “o inconsciente é a política”. Seguindo esta lógica, seria um erro a interpretação subjetiva do discurso político, assim como quando ouvimos, vide eleição presidencial brasileira de 2018, a patologização dos discursos dos candidatos em uma tentativa de deslegitimá-los; seja na dita psicose do Daciolo ou no suposto narcisismo patológico do Messias. Esse diagnóstico selvagem subjuga o que há de discurso político ao nível da subjetividade; tomar a obra política como inconsciente, alimento comum do pretensioso analista, é uma estéril interpretação calcada na inferência de que algo do sujeito há de ser desvelado. Por outro lado, se seguirmos a lógica lacaniana de que o inconsciente é a política, estaremos de acordo também com a tese de que o sujeito se constitui a partir da separação, de que o inconsciente é o discurso do Outro, tornando o sujeito efeito do significante por estar submetido à sua lei, restaurando nas análises a complexa indissociabilidade do individual e coletivo. Se pensarmos a política, enfatiza Rosa (2018), tomando o inconsciente como um discurso, o próprio inconsciente já será transindividual. A indissociável relação entre individual e coletivo é discutida por Freud em seus escritos sociais. No texto O Futuro de Uma Ilusão, Freud (1927) afirma que argumentos não têm validade frente às paixões dos homens e mais, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, o autor aponta que a

Célebre afirmação de Arthur Rimbaud em sua Temporada no Inferno, A Virgem Louca. Psicanalista francês que propõe o retorno a Freud em um momento onde estava em evidência uma psicanálise do Eu.

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massa não se questiona sobre a verdade e, consciente de sua enorme força, é concomitantemente intolerante e sustentada na autoridade; o autor acrescenta que o respeito à força é predominante, fazendo com que a bondade soe como fraqueza; assim, a massa elege um herói forte, temido e violento, que a domine e oprima, e conclui que “no fundo inteiramente conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição” (Freud, 1921, p.27). Pelos mecanismos da projeção e introjeção, podemos compreender as formações reativas que produzem um corpo-estranho que sirva à intolerância da massa. Faz-se importante uma breve introdução dos efeitos recentes do que Rolnik (2018) nomeia como inconsciente colonial-capitalístico, que tem em sua essência, o abuso perverso da força de trabalho. Aos desavisados, vale evidenciar que a produção artística é um trabalho. Levando em conta o mecanismo freudiano da introjeção que, na tentativa de aplacar a auto depreciação, pela sua interpretação fantasmática da causa de sua angústia como algo da ordem do patológico, leva o sujeito a tomar para si a causa de sua desestabilização, tendo que recorrer a soluções imediatas, comumente vindas de indústrias farmacológicas; a autora salienta que “o fato de sua tensão ser quimicamente controlada não implica em absoluto que a subjetividade se colocará mais disponível para escutar [...] é que os químicos administrados neutralizam não só a angústia, mas igualmente os afetos que a provocaram e tampouco viabilizam a recomposição de seu contorno anterior” (Rolnik, 2018, p.71). Do mesmo lado, temos o mecanismo da projeção, onde a causa do mal-estar é interpretada como vinda de fora, tornando assim necessária a escolha de um corpo expiatório. Corpo destituído de singularidade torna-se indigente. Corpo em branco que permite a pintura de uma tela horrenda. Tela que agora carrega a razão de seu mal-estar; antes um corpo que faria ruir a conservação de sua própria imagem, agora outro, demonizado, um corpo eleito como estranho, o que “[...] pode levar a ações extremamente agressivas, cujo poder de contágio tende a criar as condições para o surgimento de uma massa fascista.” (Rolnik, 2018, p.74). E ouço o questionamento: que práticas são possíveis de afetar a intransponível massa fascista?

Como atualizar lendas folclóricas-urbanas Pergunte à cinco pessoas: “Você já ouviu a lenda da bicha esquisita?” Caso elas tenham interesse, conte a história da sua vida. Manual de uso da Grande Vitória: para & por corpos negros-bichas. 2017.

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Em O estranho, Freud põe em primazia a importância do espectador se permitir afetar pela obra, afinal, a arte alcança produções de saberes apaixonados que seriam impossíveis pelas vias de outros discursos. Quando um psicanalista se debruça sobre a estética, visa geralmente à evidenciação do “estranho”, que se relaciona [...] ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror, e também está nítido que o termo não é usado sempre em um sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante. É lícito esperarmos, no entanto, que exista um núcleo especial [de significado] que justifique o uso de um termo conceitual específico. Gostaríamos de saber que núcleo comum é esse, que talvez permita distinguir um ‘inquietante’ no interior do que é angustiante (Freud, 1919, p. 329330).

Guerra e Burgarelli (2018) apontam que, sem limitar a arte à análise biográfica do artista ou reduzi-la às significações, Freud inaugura uma metodologia que habita o limiar entre psicanálise e arte. Como o estranho torna-se familiar e vice-versa? A questão é que aos termos não cabe oposição, mas ambiguidade. O efeito de estranho é uma noção fronteiriça entre arte e psicanálise; para além de um conceito, o estranho é afeto e produz efeitos a quem o experiencia. Não propomos aqui nenhuma pretensiosa cientificidade. Se temos algum objeto, não sabemos responder o porquê. Uma pesquisa deve fazer surgir o novo: é justamente deste novo que surge a possibilidade do saber caminhar. É importante ressaltar que o novo sobressai pelas faltas deixadas pelos saberes preestabelecidos. Escolhemos um tema efervescente, com pouca produção acadêmica formalizada. Caminhamos com a estranha psicanálise – saber estabelecido há mais de século – sem abrir mão de outros saberes e referências familiares que já não mais sei precisar. A única certeza da qual não conseguimos abrir mão, é a de que “a prática da letra converge com o uso do inconsciente” (Lacan, 1964/2003, p. 200). Deveria ser óbvio, mas não: enfatizamos aquilo o que nos é caro. Por isso sei mais de Pedro quando o ouço dizer de Paulo. Há em nós cegueira terrível quando tentamos observar o mundo para além de nós. Estranha fumaça familiar indissipável entre o eu e o Outro. Eu é um outro, disse Rimbaud. Pois sou onde não penso, me guio com Freud. O contato com a arte é impossível de se reproduzir; a cada vislumbre uma parte de nós se vê circunscrita pelos furos da obra, um encontro com o Outro. Promotora de contemplação e reflexão, Nunes (2018) ressalta o papel da arte, em suas mais variadas formas e linguagens, capaz de dialogar com o público diferentes realidades. Se o homem primitivo não tinha noção da inauguração de um movimento ao inscrever-se a si nas paredes, hoje, dotados para além das mãos que visam à reprodução, utilizamos também da razão para a reinvenção da própria condição. Assim como o homem, a arte sofre com o processo de sua própria industrialização. Regidos pelo capital, a possibilidade de atuação de desejos dissidentes é cada vez mais negada, sendo substituída pelo 238


domínio das técnicas e sua consequente utilidade e produtividade, mecanizando o processo artístico, pondo em risco a experiência individual. Transformada em entretenimento, a Indústria Cultural 109 vem como uma distração do indivíduo para que o mundo passe despercebido; mas, mesmo sob a ameaça de tornar-se comercial, é inalienável da arte o provocativo, incômodo e angustiante contato com o Outro. Nos últimos cinco anos, de maneira crescente, os ativistas têm visado à integração das artes como tática. Artivismos. Criações estéticas autônomas de reclamações éticoletivas. Reivindicação do direito de existir na cidade. Levando em consideração a indissociabilidade entre ética e estética em momentos-limite, a partir de desconstruções dos ideais, incendeio do imaginário: o ARTivismo é arte popular crítica, enunciado subalterno, oposto aos diferentes mecanismos de controle dos corpos e afetos, propositor do rompimento com a unidade. Contrário ao caráter elitista da obra, artivismo é um acontecimento; seu grito pela diferença constituinte se dá pela apropriação de espaços públicos no intuito de disseminar acon-fusão dos protestos de rua tradicionais com gêneros artísticos atuais – como as performances e as instalações urbanas –; são mais táticas que estratégia, carecem de um plano ou de um programa político específico, ultrapassam os axiomas deterministas e militantes: “não há um plano, pois as próprias práticas divergentes no espaço são o plano. Têm um potencial mais instituinte, onde do plano constituem suas formas de atuar [...] Tampouco há um sujeito romântico nem messiânico contido no artivismo, já que empiricamente maquiam divergências coletivas desassujeitadas, o que não implica desconhecer sua ancestralidade geracional, de classe ou de gênero, mas que se assumem como disputas transversais e móveis no espaço social” (Solis, Andrades e Rebolledo, 2017, p.97). Uma arte que, além de não receber apoio do mercado, questiona as próprias concepções de mercantilização da criação da vida, portanto, horizontal pelo conteúdo que visa interferir no funcionamento da sociedade através da micropolítica dos afetos. Independente do fato de estar atrelada a coletivos ou não, chegando onde as artes canonizadas não alcançam, através da produção de uma obra-discurso, seus tons ressoam por uma linguagem que, além de expor mazelas, fura. Que poder pode ter a arte de um corpo em um país onde alguns corpos estão sempre na iminência de um trágico desaparecimento? Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um moem umento da cultura que não fosse também um moem umento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista

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Theodor Adorno (1903 – 1969) e Max Horkheimer (1895 – 1973).

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histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (Benjamin, 1940, p. 222-232).

Entre os que se sustentam no paradigma, ou aqueles reativos por horror às diferenças, ou ainda aqueles que acreditam em uma reversibilidade ao dito tradicional, bem como e, até mesmo, aqueles que reconhecem, discutem ou vivem na pele as dissensas dissidências: consenso é que, tanto as práticas, quanto as subjetivações que tangem a sexualidade estão a todo o tempo em efervescentes reconfigurações. Se existe a possibilidade de uma bipartição dos posicionamentos, aposto na confluência dos opostos; assistimos à eclosão catastrófica das classificações políticas, ‘esquerda e direita’, redução a dois termos de toda uma gama ideológica. Há um embate desigual contínuo entre poder e cidadania, tensionamento cindido por discursos que, em sua base comum, clamam pela conservação; seja da forma tradicionalmente instituída da vida ou da potencialização disso, o que comumente chamamos de “minha vida”; esta última, oposta ao princípio da igualdade, a despeito da primeira, possível apenas pela aposta nas vias éticas da singularidade na multidão. Em cenário de lutas subjetivas que jorram sangue, algumas reinvenções e reproduções são cinicamente desconhecidas – ou simplesmente não reconhecidas – pelos que pregam a naturalização binária dos afetos; a questão trans talvez seja a melhor ilustração: com expectativas de vida que chegam a ser menos da metade da média do país, pela ausência ou negação do reconhecimento, a estes, muitas vezes impõe-se uma luta pelo mais básico da conservação da própria existência. Violência e morte pairam sobre nosso povo. Até mesmo o mais bem resolvido precisa amar com cautela para que não vire estatística. No Brasil, segundo a ONU e o MEC (Brasil, 2009), Vitória é uma das capitais mais homofóbicas de todo o País. Cada vez mais incrustado e sorrateiro, o ódio aos gays, lésbicas e bissexuais tem produzido números aterrorizantes e, para além dos números, estão as vidas que são apagadas e aniquiladas, dia a dia, pelo medo, nojo, ódio e assujeição. Mas a existência é um jogo de forças, agonística em eterno movimento; o poder não está apenas nas mãos do mais forte, não é estanque, mas circula e movimenta-se pelos atos e discursos, mesmo em oposições tão falsamente propagadas como simétricas quanto, por exemplo, a hetero/homo e esquerda/direita. O alto teor de força investida na tentativa de conservação de si e do mundo, onde alucinatóriamente – portanto, de forma narcísica – uma subjetividade que teme a desintegração quando em contato com experiências paradoxais é, no fim, uma experiência de violência e morte; afinal, é a partir de instrumentos de controle e morte que sustentam seu discurso proclamado pró-vida. Esta conservação visa à completa paralisação de experimentações que possibilitariam a diferença inventiva; pois se há uma significativa falha na desagregação ética do que se considera seu mundo e o do outro, o contato com o estranho familiar faria ruir a sua própria base de construção subjetiva. A crença na desintegração do mundo, é o início da de si; como um sujeito que, logo após perder aquele o qual 240


acreditava ser seu grande amor, vê-se reduzido ao súbito nada. Esses que pregam a universalização do bem-estar social, os que abrem mão da autonomia do pensamento e da experimentação: discurso pobre que necessita ser sustentado em nome de um grande outro. Deus. Estado. Capital. Ao retirar de si a responsabilidade, turvam-se as possibilidades de micropolítica, da reapropriação das forças relacionais inventivas, produzindo relações estéreis que encontram o limite na diferença do pensamento; afinal, “um forte egoísmo nos protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar” (Freud, 1914, p. 29). O instituído atua em nós, concomitante à força da resistência, o discurso inatista ganha voz na agonística da libertação do que cada um, infantilmente, postula como o mal. As redes sociais têm como desdobramentos a potencialização dos movimentos identitários e sua disseminação em prol da desconstrução da cisheteronormatividade. A resistência às normatizações institucionalizadas reconstrói identidades alternativas que, muitas vezes, acabam se cristalizando, essencializando e reproduzindo padrões binários e punitivistas; os mesmos utilizados na discriminação, classificação e opressão. Mas há quem insista em um potencial subversivo, de combate às opressões, que constitui um inominável particular que recebe vários nomes; um deles, “máquina de guerra”, que talvez possa ser medido pelas linhas que fluem nos limites dos movimentos das massas organizadas, na atuação dos ditos ativistas e militantes em suas solitárias – porém não sozinhos – lutas. Existência poética como instância última da política: linha tênue que separa vício de hábito. Aos literatos é comum a exemplificação de o que é uma “máquina de guerra” pelas vias da relação cultivada entre Riobaldo e Diadorim na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O conceito elaborado por Deleuze e Guattari diz respeito à vida nômade e desterritorializada, que encontraria na relação entre desejo e sua repressão à potencialidade criativa das linhas de fuga. Contraposta à Máquina de Estado, a Máquina de Guerra é criativa e oposta à soberania que, quando reduzida à “guerra”, perde sua potência de mudança e criação, reduzindo-se à pura destruição. Aplicar este conceito à literatura e a outras artes significa enxergarmo-nos nas obras e, a partir disso, adotar a criação como postura política (Marques, 2009). É visivelmente crescente a politização da população em cenário de crise política e este fenômeno estende-se até às lutas identitárias. Mesmo com todas as tentativas sociais de invisibilização das diferenças, sempre haverá aqueles que levantarão suas vozes e porão em riste o dedo para aquilo que há de excludente e injusto no mundo. Todo dia de luta é doloroso para o humano, mas há um requinte de crueldade nos dias quando o objeto desta luta é o mínimo da própria existência. Serão justamente esses últimos, os que reexistem em luta, que tornarão cada vez mais difícil pôr em ato práticas que levam as diferenças para o armário. A partir dos eventos de junho 2013, segundo Sant’anna, Marcondes e Miranda (2017), presenciamos a artificação da esfera pública e a politização da arte, inaugura-se no Brasil uma outra movimentação de transformação da experiência artística em elemento político. Este processo de 241


transformação muito assume a ideia de performatividade preconizada pela teoria Queer. Desde o início deste século, as Teorias Queer, fortemente baseadas nas formulações de Butler, vêm sendo amplamente discutidas no Brasil. Traduzindo literalmente, “queer”, enquanto adjetivo, significa algo análogo a “aberração”, denotando anormalidade e perversão, enquanto substantivo, “bicha” e “viado”; portanto, normalmente utilizado em tons de ofensa. Mais que sua simples tradução, ao ser apropriado por pesquisadores na década de 90, a Queer propõe, a partir do encontro dos Estudos Culturais norte-americanos e do pósestruturalismo francês, a afirmação da diferença e o questionamento das normatizações. Os essencialismos então passam a ser utilizados de forma estratégica visando, primordialmente, ao reconhecimento jurídico; passando a ocupar um lugar secundário nas afirmações, transcendendo a "demanda de igualdade jurídica por meio dos direitos sexuais" (Miskolci, 2011, p. 58), pois, em seu cerne está justamente a crítica da judicialização da vida e dos modelos identitários, avançando também no que Foucault (1984) elabora como dispositivo da sexualidade e o respectivo entrelaçamento de sujeito, desejo e verdade; para além do gênero, a própria essencialização do sexo passa a ser questionada enquanto justificada por relações biologicistas, até porque, a própria lógica essencialista passa então a ser questionada, assim como a normativa falocêntrica que é responsável pelo modelo de subjetivação vigente; não faltam contundentes críticas dos teóricos Queer a este (mau)caráter muitas vezes assimilado nas teorizações de Freud e Lacan. A performatividade na teoria queer diz da instabilidade e singularidade identitárias dos sujeitos, condicionais de sua existência. As normas e suas exceções possibilitam a existência da performatividade que transforma indivíduos em sujeitos; performatividade essa que permite o alcance do reconhecimento a partir da transição da região de uma exterioridade indiferente para a centralidade do domínio discursivo-social do sujeito. Cabe ressaltar um elogio que Preciado (2018) tece a Freud. Para além do usual desmonte da pulsão e sua dissociação da ordem instintiva, ele evidencia a forma que Freud usou do próprio corpo como ponto de reverberação das frequências dos efeitos de suas teorizações. Célebre talvez seja o notável uso e prescrição da cocaína, ou uma carta ignorada endereçada a Fliessonde relata a evidenciação

de desejos homossexuais após uma cirurgia experimental de vasectomia.

Experimentações que chegam àqueles pontos onde o divã não toca no corpo; naquele ignorado vão estrutural da coluna por onde fluem os afetos reais. Se todo belo poema subversivo materializar-se em corpo e, sob essa condição, todo corpo aberto encarnar a poiesis 110como sua criação, é então possível – se, como a linguagem, o limite dos corpos – a transformação do nascido em construído. A questão, aponta Silva (2017), é que nem toda beleza é consenso entre o crivo literário higienista; o que torna difícil a disseminação da literatura Derivada do Grego Antigo, ποιεῖν, que se relaciona com o ato em si de criação humana; uma criação que instaure uma nova visão realidade.

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considerada dissidente, escatológica e subversiva. Entre as frágeis e lineares construções de cênico e obsceno, há toda a vasta e sublime experiência dos sujeitos a desvelar; amores que vivem a contragosto, de orgasmos e risadas, sem o medo de mãos dadas. Em setembro de 2017, após ostensivas críticas de religiosos e do Movimento Brasil Livre, a exposição “Queer Museu” ganhou repercussão nacional ao ser cancelada pelo seu financiador, o Santander Cultural; no mesmo mês a performance ‘La Bête’ é açoitada nas redes sociais quando uma criança se aproxima de um homem nu. Os espumantes gritos contra a zoofilia e pedofilia expostas vinham de gargantas, cujos olhos dissonantes, nem sequer haviam visto a exposição. Não sem surpresas, ditos liberais encabeçam a censura. No mês consecutivo, a Assembleia Legislativa do Espírito Santo aprova um projeto de lei que proíbe “expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a nudez humana”; no seguinte dia desta aprovação, obra que constituía uma série – intitulada “Peito Aberto”, de Caio Cruz – sobre mastectomia, é vedada em exibição. Não são raros os casos em que se apresentam obras do século XVI e o expectador as toma como frutos deteriorados da sociedade atual. A leitura e disseminação de uma versão distorcida aparecem como suporte das críticas conservadoras. A desonestidade intelectual se perpetua na tentativa de desmerecer pelo ridículo tais manifestações artísticas. Fechamentos e censuras não nos são novos. Completamos pouco mais de 50 anos desde o Golpe Militar de 1964. Governos fascistas e ditatoriais, por toda a América Latina, deixam marcas e consequências que, quando não bem elaboradas por um povo, retornam com aspecto de novas formas de repressão. Arte e política são intimamente ligadas; a censura tenta impor no real a tentativa de apagamento dos gêneros e sexualidades dissidentes. A ameaça fascista, por capturar o que pulsa na democracia – deixando lugar nenhum para o desejo e articulando um cínico espaço “para todos”, onde está reclusa a diferença – torna-se uma constante, um perigo que espreita em cada esquina; frente à ameaça constante, a mobilização popular, o enfrentamento direto, o debate democrático e a ocupação da cidade podem estancar a sangria frente à iminência da reimplantação de um regime fascista. O que há de novo, desde de 1964, quando nas mãos do Estado estava o domínio da violência? Hoje a população civil é fortemente autorizada e convocada para a vigilância e extermínio da diferença. Então, não seria a passagem do Um para o um-a-um um momento compatível com táticas artísticas que promovam as micro profusões do contato com a diferença? Das marcas da nossa ditadura, muitas precisam incendiar. A prática da encenação como instrumento de transformação, rompendo os limites entre ator e espectador: uma das mais belas referências que o regime nos legou. Boal (1975) em seu exílio desenvolveu o Teatro do Oprimido; um convite a todos para que se autorizem atores, participantes imersos nas obras realizadas. Em seu livro descreve o processo de reformulação das falhas dos antigos métodos nas novas situações; subverte então a lógica tradicional palco/plateia, transformando a base das relações que os sujeitos mantêm 243


entre si. A nós não nos cabe um discurso que preconize a renúncia virtuosa; modelos e super-homens não nos cabem mais em luta; se houver uma referência, que seja àqueles abaixo dos monumentos. A massa antes irresponsável em posição de expectadora é convocada a protagonista da própria história; agora a possibilidade de, na carne, uma fagulha de alteridade. Fagulha que atinge cada pequeno um, agora capazes de iniciar a queima do espesso véu que os separa dos outros. Se o silêncio é a ordem, o artivista tem o dever de incendiá-lo; permitir dizer e se fazer ouvir a estranheza. Desde o fim da última Grande Guerra e a subsequente derrota do Eixo, o fascismo – nacional e internacionalmente – remodelou-se em contornos antes inimagináveis. O ódio e a intolerância espalham-se com suas raízes destrutivas em escala planetária. A psicanálise por muito tempo respondeu de maneira naturalista e determinista a essas questões, ou seja, colocava nos traços psíquicos a razão direta das práticas sociais. Em sua fala ao Departamento de Cultura da atualmente falida Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Joel Birman afirma que o conceito de pulsão de morte, este que interpreta a violência e destrutividade humanas, serviu muito bem como uma chave universal de explicação do nefasto na existência social dos sujeitos, assim como com o nazismo e o fascismo; assim como o conceito de sexualidade perverso-polimorfa, fundamento para leitura das perversidades do social. Este modelo mofado de leitura tende a dar lugar ao pensamento de como a ordem simbólica em funcionamento com as estruturas sociais dão condições ao sujeito de existir sob certas regularidades psíquicas; é fundamental que os analistas abram mão do amor ao poder promovido pelo fascismo e se coloquem como denúncia dos silenciamentos. Freud (1987) sustenta que os escritores estão adiante da psicanálise; por se nutrirem de fontes ainda não acessíveis à ciência, conhecem uma vasta gama de coisas que a nossa filosofia ainda não permitiu sonhar. Recorro então ao meu poeta-amigo, O Alquimista do Verbo. Rimbaud (1871) em sua dita Carta do Vidente afirma que eu é um Outro; criticando a inteligência caolha dos velhos, põe como condição do poeta o conhecer a si mesmo para que então possa se fazer vidente através do “pensado desregramento de todos os sentidos”; deve buscar e exaurir em si todos os venenos para que restem apenas as “quintessências”, tornando-se assim o “grande doente”, “grande maldito”, “grande criminoso”; torna-se também o “grande Sábio” por chegar ao desconhecido das “coisas inaudíveis e inomináveis”. Evidencia-se que esta produção não é estática nem sozinha, o presságio é que “virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!”. Retorno então à tese 7 de Benjamim (1987), Sobre o Conceito de História. Apesar de elaborada no nazismo, não sem surpresas, permanece atual. Se para transcendermos a animalidade – em busca da civilidade – precisamos suprimir os instintos, barbárie e civilização tornam-se indissociáveis. O autor sustenta a inexistência de uma dicotomia entre cultura e barbárie: o processo civilizatório pressupõe que haja em seu seio, na marcha dos vitoriosos sobre os corpos dos vencidos, sujeitos que, por reconhecerem na carne o preço do processo civilizatório, causam horror aos 244


expectadores da festa sangrenta. Um monumento da cultura que é aceito sem uma reflexão torna-se apenas objeto de transmissão da história do vencedor. A experiência estética é a de algo que o espírito não teria nem do mundo nem de si mesmo, a possibilidade prometida pela sua impossibilidade. A arte é a promessa da felicidade que se quebra (Adorno, 1970, p.757). Nesta direção, Freud (1916) elabora o conceito de pulsão. Situado no limite entre o psíquico e o somático, a pulsão é fator motriz humano. Quando o acasalamento deixa de ser regulado pelo olfato, pelos hormônios e instintos, passa então a ser questão da ordem do olhar, acíclico. O advento da linguagem faz ruir o domínio de um objeto sexual preestabelecido, regular e satisfatório. Diante da queda da moral da natureza, cabe a cada um reinventar-se em suas possibilidades na tentativa de amenizar o desprazer. A civilização é calcada na renúncia à satisfação pulsional; a questão que se coloca então é a capacidade do sujeito conciliar as reinvindicações individuais às exigências sociais. Quando incapaz de reprimir suas energias sexuais agressivas, a infelicidade assola com um sentimento de culpa que já não se sabe se vem de si ou da cruz. O mal-estar é inerente ao processo civilizatório. A forja da cultura, o convívio com os pares, ao invés de dar conta do desamparo, amplia o mal-estar do sujeito frente à civilização (Freud, 1930). Na relação antagônica com o corpo, a cultura promove a união dos sujeitos à custa da ampliação do sentimento de culpa. A partir do crime e da lei é que se nasce o sujeito, cindido pelo recalque, regulado pelo mecanismo pulsional do superego. O assassinato do Pai da horda e a disseminação da culpa pelo ato aos irmãos faz com que Ele retorne sob a forma de Lei. Em outras palavras, o Complexo de Édipo é a marca da passagem da natureza à civilização. A Falta agora está marcada no corpo, porém, não há mais continuidade entre objeto e satisfação. Foi feita a troca das parcelas de possibilidade de felicidade pela estabilidade da segurança. Frente ao imperativo do mal-estar, a arte surge com o papel privilegiado de traçar novas consequências à entrada do corpo na cultura. Safatle (2005) em interlocução com Freud afirma que saber passar da particularidade do fantasma à universalidade da obra é o segredo mais íntimo do criador literário diante do qual o trabalho psicanalítico encontra o seu termo. A obra então alcança o patamar de afirmação de um modo próprio de desejar e se satisfazer; reestruturando o que antes soava como imperativo vindo da cultura, o artista agora lhe devolve como produto de si. Se a essência da obra está em uma Outra cena, ela não coincide com sua letra; caberia então ao psicanalista desvelar a verdade da forma estética, ao invés de “bancar o psicólogo quando o lhe desbrava o caminho”(Lacan, 1965/2003, p. 200). Caio Fernando Abreu (2012) em sua crônica não datada e intitulada Cor de Rosa, Uma Ova!, conclui que a contemplação dos cacos na tentativa de compreensão do quebra-cabeça, talvez seja mais saudável que uma viagem à Disneylândia. “Sim, arte salva. Ou consola. Ou torna pelo menos suportável” (p. 92). 245


Abrigar o desamparo, em manoelês arcaico, eis o papel da arte. Desamparado não é apenas o homem sob a ponte, mas também um sujeito preso em um cubículo. O desamparo é uma expressão que vem se intensificando no consultório. Palavras que não têm ninguém dentro: desamparado está o sujeito silenciado, no vertiginoso desuso da palavra em prol da violência autoritária. Por isso devemos construir ruínas: desconstruções que abrigam o desamparo, possibilitando o nascimento da palavra amor na posteridade. Não tratamos aqui de reproduções fidedignas ou fugas da dita realidade, mas da elaboração de um novo modo de lidar com o trágico mal-estar. Muito além do desvio da pulsão em benefício da civilização, a sublimação pelo viés artístico passa então a ser compreendida como o movimento do sujeito com o que há de seu mais particular em direção à descristralização das normas para que a existência torne-se suportável. Ao invés de mecanismo de conciliação social, impulso constante de sobrevivência e transformação. A sublimação, portanto, é destino imposto da pulsão pela civilização. Do casamento entre morte e vida, nasce a criatura torta da cultura. A arte talvez se imponha como cultivo de uma praga familiar: cupim que transforma os cômodos em incômodo pó. Viver no armário e sua saída não compõem questões herméticas. Em sua Epistemologia do Armário, Sedgwick (2007), a respeito dos amores que não ousam dizer seus nomes, critica a elasticidade mortífera da presunção heterossexista e a descaracterização do “armário gay” como característica apenas das vidas das pessoas gays, apostando que cognição, sexualidade e transgressão na cultura ocidental estão prontas para um alinhamento resistente das relações assimétricas. Talvez seja importante pôr de lado a procura por potencial transformador na teatralidade fantasmática da ignorância institucionalizada, para então desvelar o segredo-aberto das dissidências sexuais no século XX que respondem e, portanto, evocam as incoerências da heterossexualidade compulsória. A relação do sujeito com o armário não finda ao assumir-se, mas pode fazer transcender as conceituações categorizadoras de gênero e minoria à sua potência performática. Enquanto as questões reduzirem-se às dicotomias, é óbvio que qualquer discussão que se proponha ampla, não elaborará nada além de ratificar o mesquinho lugar do invertido ou reduzir suas performances à farsa. A transmissão de ideias via modelos pedagógicos não leva muito mais que à reprodução; se a redução dicotômica dos fatores e a cegueira ao outro são os problemas, o artivismo surge como uma proposta política de transformação direta da realidade ao evidenciar as potentes produções dos corpos signos da vulnerabilidade. Contemplar as especificidades de onde é exibida, produzida e se põe a interagir, assim como a implicação com questões críticas são centrais para a arte ativista; pois assim poderão ser produzidos pontos alternativos de visão que incluam o mundo para além de si, devolvendo à estética seu caráter político. Os conflitos urbanos são codificados pelo viés artístico – desde que implicados, geralmente inteligível a sujeitos não educados em arte formal – em uma encenação de que as lutas políticas não mais se resumem a movimentos, mas, sobretudo reinvindicações sobre produções de posições 246


discursivas; corpos expressivos de rearranjos subjetivos, insurgência de outras possibilidades que colocam à margem os antagonismos paradigmáticos, disseminando a indissociabilidade entre estética, sujeito e política. Os artivismos questionam através de intervenções as relações de poder que os produzem em direção da destituição do caráter pequeno-burguês das cidades; sujeitos agora que assumem sua marginalidade à política formal, apostando na autogestão e na afetação do outro como mecanismos de elevação de cidadania, onde cada obra é um movimento de resistir à indiferenciação cultural. A sensação de desamparo na cidade é de grande importância na constituição subjetiva. A multidão anônima nas grandiosas construções em proporções desumanas sempre semelhantes; habitar a cidade pressupõe pressão e monotonia, mas também a possibilidade de encontros e fluxos. A poesia torna-se ação, a manifestação um espetáculo. Política e estética convergem-se. Artista e ativista compartilham uma linguagem. Abaixo as grandezas! A espontaneidade resistente tem local e data marcados, onde o que está em jogo muito além da obra é o ato criador. Dinamitar os limites impostos entre vida e arte. Encarnar a congruência entre atos e ideias; o artivista experimenta em si usos e desusos, marginalidade de uma vida nos limites das encenações e linguagens. Se dizem para mudarmos o mundo, digo para mudarmos a nós; buscar o amor e exaurir em si os venenos para que, a partir da ética, a vida como criação seja intensificada e difundida. As queimas dos museus do Brasil já são sinais mais que suficientes de que a arte agora precisa é de incendiar as ruas. As ações diretas, agora estetizadas, convocam o povo a valorização de suas identidades irrepetíveis. Através da elevação da criação artístico-política à produção de intersubjetividades descentralizantes que promovam os estranhamentos; um ou mais corpos que se mostram capazes de encarnar e encenar a mais terrível destruição e mais sublime salvação: eis a insurgência do artivismo bicha. A Bicha não existe. Aposto no devir bicha como impedimento da mortificação melancólica, urgência minoritária que convoque o desejo a agir. Devir bicha e devir mulher se tocam, inquietantes. Ser bicha é ser revolucionária ao encarnar o paradoxo, fresco como um dia de domingo 111. É não caber em definições e classificações, bicha é fazer incidir a diferença na mudança das estratégias insurgentes; qualquer um pode encarná-la: é o ato democrático de desvio da primazia do falo ao cu pessoal e universal, confrontamento com o individualismo aniquilador e contato com o estranhofamiliar. Estará em marcha uma revolução bicha em seu devir e artivista em estratégias?

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Poema Falo, de Paulo Augusto. 1976.

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CAPÍTULO V: SUJEITOS DA/NA/À SOCIEDADE


Hermenêutica do sujeito empreendedor: Ponderações sobre a governamentalidade neoliberal estadunidense fomentada pelas elites empresariais112 Pablo Ornelas Rosa Paulo Roberto Neves Costa

RESUMO As questões que permeiam o governo e o controle das populações através de perspectivas científicas foram sendo estudadas desde o surgimento da Sociologia Política, por volta do século XIX, a partir dos autores clássicos desta disciplina que se posicionavam de maneira bastante distinta sobre os pontos de vista epistemológicos, teóricos, metodológicos e políticos. Todavia, as concepções acerca da forma pela qual as diferentes elites governam e como suas estratégias são incorporadas e reproduzidas pelos indivíduos e por toda a população foi sendo modificada paulatinamente através da emergência de novas epistemologias e teorias que passaram a fomentar diversificadas análises sobre a incorporação de verdades que resultou na legitimação das tecnologias de poder que vigoram na contemporaneidade. Neste artigo, procuraremos aproximar as análises apontadas por Max Weber e Michel Foucault, autores que compartilham referenciais teóricos bastante próximos, no intuito de verificar como são operadas as ações e os discursos proferidos pelas elites empresariais objetivando produzir um sujeito empreendedor e, assim, um capital humano bastante funcional para a governamentalização da racionalidade neoliberal estadunidense que prepondera em grande parte dos países na contemporaneidade, inclusive no Brasil.

Introdução A constatação de que as sociedades modernas se dividem em classes sociais pode ser localizada tanto nos escritos de Karl Marx e Friedrich Engels (1997) quanto nos escritos de Max Weber (2000), autores tidos como clássicos da Sociologia Política. Para os primeiros, foi a partir do desenvolvimento do modo de produção capitalista, fundamentado na expropriação Esse artigo resulta de uma apresentação realizada no Instituto Max Weber de Sociologia da Universidade de Heidelberg, entre os dias 15 e 30 de maio de 2014, a partir de uma pesquisa comparativa internacional financiada pela DAAD e CAPES, chamada de International Managment Studies – IMS, da qual os autores participaram como pesquisadores 112

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do trabalho do proletariado pela burguesia, que se intensificaram certos tipos de relações sociais amparadas na exploração do trabalhador em decorrência da busca constante pela acumulação de capital, principal característica das sociedades modernas ocidentais. Entretanto, para o segundo, elas não se constituem apenas em relações econômicas, mas também em outros tipos de relações que podem perpassar ordens políticas, culturais, religiosas, morais, dentre outras. Sendo assim, a analítica weberiana, mesmo não desconsiderando a perspectiva marxiana e marxista, acaba ultrapassando as barreiras econômicas apontadas por Marx e Engels que situam as relações de poder e de dominação exclusivamente pela luta de classes 113. Para Weber (2000), o poder é entendido como a capacidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, enquanto que a dominação é entendida como a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato. Contudo, o autor distinguiu três tipos puros de dominação, certamente uma das categorias mais utilizadas pela sociologia weberiana: dominação legal racional, na qual a obediência apoia-se na crença da legalidade da lei e dos direitos de mandos das pessoas autorizadas a comandar a lei; dominação tradicional, na qual sua legitimidade se apoia na crença de que o poder de mando tem um caráter sagrado, herdado dos tempos antigos; e a dominação carismática, na qual a legitimidade da autoridade do líder carismático lhe é conferida pelo afeto e confiança que os indivíduos depositam nele. A novidade da Teoria da estratificação social desenvolvida por Weber está na centralidade da busca pela compreensão das diferentes posições dos indivíduos em relação às sociedades não a partir de um único critério, mas a partir de sua inserção em várias esferas da realidade. Assim, se do ponto de vista econômico as pessoas dividem-se em “classes sociais”; do ponto de vista político se encontrarão divididas em “partidos” e, enquanto o aspecto cultural, poderão se diferenciar por meio dos “estamentos”. A classe diz respeito aos interesses econômicos das pessoas em relação às diferenças na posse dos bens. O partido se relaciona com a diferente distribuição do poder e o estamento está relacionado aos diferentes

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Embora neste trecho tenhamos reduzido às análises de Marx & Engels a uma perspectiva economicista encontrada, por exemplo, nos escritos de Sousa (2006), é importante ressaltar que em outra ocasião escrevemos um artigo - publicado na Revista Veredas da História, intitulado “Experiência e Cultura: Uma Possível Aproximação Entre Antropologia, Sociologia e História em E. P. Thompson e Marshall Sahlins” - defendendo outra abordagem (Rosa, 2009), localizando, a partir da obra Grundrisse, por exemplo, apontamentos tangenciados por relações de cunho cultural. 252


estilos de vida das camadas sociais, juntamente com o prestígio e a honra conferida em cada uma delas. Weber também foi responsável pelo desenvolvimento de umas das mais cuidadosas análises sobre o fenômeno da organização burocrática que perpassou a história do Egito, do Principado Romano, do Estado Bizantino, da Igreja Católica, da China, dos Estados Europeus Modernos, das grandes empresas capitalistas modernas, dentre outros, avaliando suas vantagens e tarefas, relacionando-a com o direito e com os meios de administração. Ao constatar que o fenômeno da racionalização e, consequentemente, da burocratização, nas sociedades ocidentais modernas atinge todas as esferas da vida social e não somente o Estado, Weber averiguou que a burocracia moderna é regida pelo princípio das áreas de jurisdição fixas e oficiais através de regulamentos estabelecidos por meio de leis, documentos ou normas administrativas escritas; agindo por meio de princípios hierárquicos disponibilizados pela construção de diferentes níveis de autoridade que operam em postos distintos; promovendo treinamento especializado e completo exigindo atividades oficiais que capacitam o trabalho do funcionário; articulando uma avaliação do desempenho do cargo a partir de regras gerais supostamente estáveis e exaustivas que podem e devem ser aprendidas. Para Weber, o desenvolvimento das sociedades modernas ocidentais só foi possível porque houve um processo de racionalização do mundo intensificado a partir de um período que se convencionou chamar de “Iluminismo” ou “Século das Luzes”. Foi somente através da chamada racionalização do mundo que pudemos alcançar este tipo de conhecimento que prepondera nas sociedades ocidentais modernas: o chamado conhecimento científico. Em decorrência deste processo foi possível emergir toda uma racionalidade voltada para a conquista de ganhos econômicos através do investimento em trabalho objetivando prosperar. Ao Analisar aquilo que chamou de ética protestante na Alemanha do século XIX, Weber (2004b) constatou que esta se relacionava intimamente com o chamado espírito do capitalismo, pois ambas compartilhavam certo tipo de ethos perpassado também por aspectos de ordem cultural. Quando Marx e Weber se propuseram a analisar a burguesia ou o suposto empresariado capitalista constataram que estes se destacavam não apenas por sua considerável importância do ponto de vista da dimensão econômica, mas, principalmente por seu caráter constitutivo de outra dimensão política, considerando esta classe social peculiar não apenas em termos de sua organização política para defesa de seus interesses particulares, como também para a possibilidade do exercício da dominação e de tudo aquilo que diz respeito às 253


suas formas de pensar e agir em relação à empresa e ao funcionamento deste campo econômico. No entanto, para Weber os conceitos e análises referentes à ação política das classes dominantes, assim como a qualquer outro fenômeno social, não consegue alcançar uma explicação geral e essencial da sociedade capitalista, mas sim apresentar uma interpretação situada historicamente. Embora Weber não tenha desenvolvido necessariamente uma sociologia dos empresários ou da classe capitalista que ultrapassasse o seu tempo histórico, também não se furtou em problematizar aquilo que acreditava ser o papel histórico da burguesia. Conforme Weber (1986) é impossível desconsiderar a fluidez das relações sociais como algo fundamental nas sociedades capitalistas modernas, uma vez que existe uma enorme variedade de pontos de vista concretos a partir dos quais a realidade empírica pode adquirir diferentes significados. Não obstante, como autor tendia a não priorizar as classes sociais, seria difícil tratar sociologicamente a sua ação coletiva, e em particular a sua ação política, porque de certa forma ela exigiria certas regularidades, orientações, objetivos e práticas coletivamente organizadas. Logo, seria impossível deixar de tratar das classes sociais como agentes imprescindíveis no processo de organização das sociedades, onde a elites empresariais atuam de forma vigorosa. Embora tenha desenvolvido um aparato conceitual limitado historicamente para tratar das nuances em que o empresariado capitalista estava situado na modernidade, uma vez que viveu durante o final do século XIX e início do século XX, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber analisou o comportamento capitalista a partir das influências de uma ética religiosa de cunho calvinista e não a partir da estrita existência de interesses econômicos comuns ao grupo que conduziram uma ação propriamente coletiva ou política. Deste modo, o sentido da ação foi problematizado pelo autor muito mais em função de seu fundamento ético do que econômico ou político. É importante esclarecer que a definição de “empresário capitalista” é inferida na obra de Weber como um tipo ideal e, portanto, deve ser tratada não somente como um elemento destinado a detectar e analisar a ocorrência das ações sociais deste grupo de maneira mais generalizante, como também para tratar dos fenômenos concretos particulares e individualizantes que escapam ao conceito desenvolvido inicialmente pelo autor. Embora o “empresário” ou o “empresariado” tenha passado a ser tratado como um grupo ou classe que opta por estabelecer relações concretas com o mercado, o desenvolvimento de sua ação 254


política acaba sendo marcada pela reivindicação de leis que incidem diretamente sobre as relações econômicas. Aproximações entre Weber e Foucault no estudo das elites empresariais Apesar de Foucault não interpretar a realidade do ponto de vista taxionomista e, portanto, não de um ponto de vista estritamente conceitual, conforme são desenvolvidas as análises de Weber, ambos compartilham criticamente certos referenciais teóricoepistemológicos, como, por exemplo, certas miradas das teorias de Kant e Nietzsche, o que possibilita uma aproximação de ambos os autores. Além disso, tanto Weber quanto Foucault constatou que as sociedades ocidentais modernas se caracterizam por uma tendência à racionalização que resulta na maximização dos ganhos. Como Weber viveu entre o final do século XIX e início do século XX, ele não teve a oportunidade de analisar certas experiências a partir dos desdobramentos do capitalismo que emergiram sob o nome de racionalidade neoliberal, tratada por Foucault (2008b) em sua aula no Cóllege de France, proferida entre 1978 e 1979, intitulada Nascimento da Biopolítica. Nesta sua obra, Foucault (2008b) verificou certas peculiaridades entre as políticas econômicas neoliberais implementadas em diferentes países, constatando que o modelo de racionalização que preponderava era o neoliberalismo estadunidense, que segundo o autor se apresentava como “(...) uma racionalidade bem mais rigorosa ou bem mais completa e exaustiva. No neoliberalismo americano, trata-se de fato sempre de generalizar a forma econômica de mercado” (Foucault, 2008b: 333). Para Foucault (2008b), a grande particularidade do neoliberalismo estadunidense é que ele se constitui em toda uma forma de pensar em termos de investimento, de custo de capital, de benefício de capital investido, benefício econômico e psicológico que passa a incidir sobre a vida de toda a população, governamentalizando-a 114. Assim, embora não tenha sido possível para Weber refletir sobre os desdobramentos deste tipo de racionalidade - que, outrora, havia conseguido verificar como tendência -, cremos que os escritos de Foucault possam nos dar

Para Foucault (2000; 2006; 2008a; 2008b; 2010), a governamentalidade trata de um conjunto de estratégias e procedimentos de poder emergentes nos séculos XVII e XVIII, que toma como alvo os indivíduos e as populações, utilizando-se de dispositivos de saúde e segurança e apoiando-se na economia política como forma predominantemente de conhecimento, tendo a multiplicar uma série de aparelhos e saberes específicos relativos às práticas de governo. 114

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algumas pistas acerca deste tipo de racionalização neoliberal estadunidense que prepondera em grande parte dos países ocidentais na contemporaneidade, dentre eles, o Brasil. (...) o neoliberalismo americano não é – como é na França destes dias, como ainda era na Alemanha no imediato pós-guerra – simplesmente uma opção econômica e política formada e formulada pelos governantes ou no meio governamental. O liberalismo, nos Estados Unidos, é toda uma maneira de ser e de pensar. É um tipo de relação entre governantes e governados, muito mais que uma técnica dos governantes em relação aos governados. Digamos, se preferirem, que, enquanto num país como a França o contencioso dos indivíduos em relação ao Estado gira em torno do problema do serviço público, o contencioso nos [Estados Unidos] entre os indivíduos e o governo adquire ao contrário o aspecto de problema das liberdades. É por isso que eu creio que o liberalismo americano, atualmente, não se apresenta apenas, não se apresenta tanto como uma alternativa política, mas digamos que é uma espécie de reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda. É também um método de pensamento, uma grade de análise econômica e sociológica (FOUCAULT, 2008b: 301).

Acreditamos que as análises acerca deste tipo de racionalidade que perpassam certas tecnologias, técnicas e mecanismos de incorporação e reprodução de discursos e práticas que Foucault (2006) chamou de governamentalidade, somadas às atualizações da analítica weberiana propostas por Boltanski & Chiapello (2009) em sua obra intitulada O Novo Espírito do Capitalismo, assim como os apontamentos de Sennett (2006; 2009), por exemplo, podem contribuir para uma melhor compreensão das visões de mundo da elite empresarial brasileira. Sendo assim, este artigo, que se ampara em uma pesquisa de pós-doutorado, procurará analisar e compreender quais são as tendências do ponto de vista da produção de verdades provenientes de certa racionalização neoliberal estadunidense presente nos discursos e nas práticas de determinado grupo que chamaremos de elite empresarial. No intuito de articular esta definição, propomos a junção tanto da metodologia de pesquisa produzida por Costa (2012) através de um ponto de vista permeado pela articulação entre as ações referentes a fins e valores perpassados pelos campos econômicos e políticos sob um viés mais institucional, quanto pela genealogia do poder analisada por Foucault (2008b) que trata da governamentalização da racionalidade neoliberal estadunidense encontrada nas ações e nos discursos proferidos pela elite empresarial brasileira, ultrapassando, assim, as barreiras da institucionalidade, na medida em que sugere uma análise operada por meio da produção de verdades através de sujeições e assujeitamentos. Contudo, não trataremos de elites empresariais, no plural, mas sim no singular, pensando-a por meio da governamentalização de certa racionalidade neoliberal presente nos discursos e nas ações da 256


elite empresarial brasileira, dado que neste segundo sentido não a trataremos como um grupo homogêneo, harmônico, coeso, etc., mas como uma forma de pensar amparada na produção de verdades. Neste sentido, entenderemos o poder exercido pela chamada elite empresarial brasileira também sob uma ótica foucaultiana 115, caracterizado pelo desenvolvimento de uma crítica ao modo tradicional de tratá-lo como sinônimo de algo que se possui e cujo sentido de seu exercício é a repressão. Segundo a perspectiva apontada pelo autor, as relações sociais são baseadas em relações de poder que não são pensadas como algo que se adquire ou se detém, mas como algo que se exerce a partir de numerosos motes permeados por relações móveis e desiguais. Para Foucault (2000), o poder está em toda parte e em todos os lugares, portanto, não deve ser concebido necessariamente como algo que possa ser apropriado e desapropriado, ele deve ser tratado mais propriamente do ponto de vista relacional e estratégico. Ao tratarmos da elite empresarial não somente através da sociologia compreensiva weberiana que procura encontrar o sentido das ações sociais operadas por este grupo, mas também sob uma ótica foucaultiana amparada nas estratégias prático-discursivas proferidas por estes gestores e produtores de sujeitos e racionalidades, não apenas evitaremos a imprecisão dos diversos conceitos e expressões utilizadas para tratar dos processos históricos relacionados ao empresariado - a exemplo de “burguesia”, “classe dominante”, “elite econômica”, “empresários”, “líderes empresariais”, “empresariado” e “elite empresarial” - e os demais problemas decorrentes deste tipo de análise, como também contribuiremos para a retomada do debate teórico sobre este tema, colaborando com a construção de uma metodologia sociologicamente eficaz que não trate exclusivamente das institucionalizações, mas também da produção de verdades e, consequentemente, da governamentalização deste tipo de racionalidade que fomenta a produção do homo oeconomicus. No neoliberalismo – e ele não esconde, ele proclama isso -, também vai-se encontrar com a teoria do homo oeconomicus, mas o homo oeconomicus, aqui, não é em absoluto um parceiro da troca. O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital,

As posições aqui assinaladas não vão necessariamente ao encontro de apontamentos majoritariamente institucionalizados porque pressupõem que “as produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam” (FOUCAULT, 2010: 229).

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sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda (FOUCAULT, 2008b: 310- 3011).

Governando para além do Estado, governando as condutas Em meados do século XVIII, o chamado Século das Luzes, a razão tornou-se proeminente através do conhecimento científico que questionava as verdades estritamente religiosas, espirituais e doutrinárias, na medida em que multiplicava seu domínio por meio de poderes políticos. No entanto, foi a partir do século XIX que os questionamentos sobre a potência da razão começaram a emergir com mais intensidade nas sociedades ocidentais. Em “Omnes et Singulatim: Uma Crítica da Razão Política”, Foucault (2010) mostrou que foi a partir de Kant que a filosofia começou a buscar impedir a razão de ultrapassar os limites do que era dado na experiência. Não obstante, o autor constatou que o desenvolvimento e a organização política dos Estados modernos fizeram com que a filosofia também assumisse o papel de vigiar os abusos do poder da racionalidade, dando-lhes certa esperança de vida. “O laço entre a racionalização e os abusos do poder político é evidente. E ninguém precisa esperar a burocracia ou os campos de concentração para reconhecer a existência de tais relações” (FOUCAULT, 2010: 356). Ao reconhecer que o poder político foi se tornando cada vez mais centralizado nas sociedades europeias, Foucault (2010) propôs analisar uma espécie de mutação menos conhecida acerca destas relações de poder fundamentadas no desenvolvimento de técnicas voltadas para os indivíduos, destinadas a dirigi-los de forma contínua e constante: “Se o Estado é a forma política de um poder centralizado e centralizador, chamemos de pastorado o poder individualizador” (FOUCAULT, 2010: 357). Por mais que este poder individualizador pareça ser o oposto à transformação do poder centralizador e centralizado decorrente do Estado, Foucault (2010) mostrou como o pastorado passou a ser associado a ele. Segundo o autor, as noções de que o rei, o chefe ou mesmo a divindade eram pastores seguidos por rebanhos de ovelhas, não fazia parte da interpretação de gregos e romanos, salvo certas exceções decorrentes das primeiras literaturas homéricas e, sobretudo, das reflexões de Platão sobre a Antiguidade Clássica a partir de sua obra intitulada Política. Assim, foram os hebreus que desenvolveram e ampliaram o tema pastoral caracterizado pela ideia de que somente Deus é o pastor de seu povo – com exceção a 258


monarquia, a exemplo de Davi que foi invocado por Deus sob o nome de pastor com a missão de reunir o rebanho. Procurando evidenciar o contraste com o pensamento grego, Foucault (2010) mostrou como este assunto passou a ter tamanha importância não só no pensamento cristão, mas também nas instituições sociais. Segundo ele, o pastor, para os cristãos, exercia o poder sobre um rebanho mais do que sobre um território, diferentemente da forma como ocorria entre os gregos. Além disso, cabia a ele reunir, guiar e conduzir o seu rebanho de forma a apaziguar as eventuais hostilidades no interior da sociedade, fazendo com que prevalecesse certa unidade. Assim, se o pastor desaparecesse, o seu rebanho se dispersaria. O pastor ainda tinha que assegurar a salvação de seu rebanho. Contudo, não se tratava apenas de salvar a todos quando estivessem diante do perigo. Tudo era uma questão de benevolência constante, individualizada e final, onde o pastor velava pelo alimento de seu rebanho, provendo cotidianamente sua fome e sede, na medida em que também as controlava, fazendo com que todas as velhas fossem recuperas e salvas, sem exceção. Ainda havia outra diferença entre cristãos e gregos provenientes da ideia de que o exercício do poder era uma “dever”. Por mais não fossem familiares aos gregos e romanos, a noção de que o rei, o chefe ou a divindade eram pastores seguidos por rebanhos de ovelhas, foi Platão quem trouxe a reflexão mais sistemática sobre o tema do pastorado na Antiguidade Clássica, influenciando o cristianismo no ocidente. Por mais que considerasse que o médico, o agricultor, o ginasta e o pedagogo eram qualidades características dos pastores, Platão defendia a ideia de que estes profissionais não deveriam interferir na política. Para ele, eram os homens detinham o poder político, e não os pastores. “Em suma, o problema político é o da relação entre o um e a multidão no quadro da cidade e de seus cidadãos. O problema pastoral concerne à vida dos indivíduos” (FOUCAULT, 2010: 366). Para Foucault (2010), o “problema do Estado-providência” não ratifica apenas as necessidades ou as novas técnicas de governo no mundo atual. Ele deve ser constatado por ser uma das numerosas reaparições do ajustamento entre o poder político exercido sobre os sujeitos civis e o poder pastoral que se exerce sobre os indivíduos vivos. Assim, objetivando examinar a construção teórica a partir da literatura cristã dos primeiros séculos, amparadas em autores como Crisótomo, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo, Cassiano e Bento, Foucault (2010) reconheceu que os temas hebraicos acabaram sendo transformados em aproximadamente quatro níveis. 259


O primeiro deles trata da responsabilidade do pastor em relação ao destino do rebanho, tratando-o não apenas em sua totalidade, mas também de cada ovelha em particular. “Na concepção cristã, o pastor deve dar conta não somente de cada uma das ovelhas, mas de todas as suas ações, de todo o bem ou mal que elas são suscetíveis de fazer, de tudo o que lhes acontece” (FOUCAULT, 2010: 366-367). Desta forma, os laços estabelecidos entre o pastor e as ovelhas não concerne unicamente à vida dos indivíduos, mas todos os seus atos em seus mais íntimos detalhes. O segundo nível destas mutações refere-se ao problema da obediência ou da desobediência. Enquanto que na tradição hebraica Deus era um pastor e o seu rebanho deveria segui-lo, submetendo-se às suas leis, regras e vontades, para os cristãos, a relação entre o pastor e suas ovelhas fundamentava-se na dependência individual e completa. Não obstante, a obediência dos gregos baseava-se muito mais nas leis, regras e normas fundamentadas na vontade da cidade, do que na subordinação a Deus. O terceiro nível pressupõe formas de conhecimento específicas, particulares e individualizantes entre o pastor e cada uma de suas ovelhas, fundamentadas na ideia de que não basta saber em que estado se encontra o rebanho. O pastor deve estar constantemente informado sobre as necessidades reais de cada um de seus membros, suprindo suas eventuais penúrias. Procurando saber o que acontece com cada um deles a fim de garantir o conhecimento individual sobre o seu rebanho, o cristianismo apropriou-se de dois instrumentos essenciais que operavam no mundo helênico: o exame de consciência e a direção de consciência. Deste modo, o pastorado cristão estabeleceu vínculos bastante estreitos entre estas duas práticas, fundamentados na condução: ser guiado era um estado no qual os indivíduos estariam perdidos caso tentassem escapar. Assim, enquanto a direção da consciência passou a constituir um laço permanente, uma vez que a ovelha não se deixava conduzir a fim de ultrapassar vitoriosamente alguma passagem perigosa na medida em que ela se deixava conduzir constantemente pelo pastor, o exame de consciência acabava atuando não com o propósito de cultivar a consciência de si, mas permitir que ela fosse revelada inteiramente ao seu diretor. A quarta transformação, que conforme Foucault (2010) talvez tenha sido a mais importante, pressupõe que todas estas técnicas cristãs de exame, confissão, direção de consciência e obediência tiveram como objetivo trabalhar para a sua própria “mortificação” neste mundo. Para o autor, a mortificação não era a morte, mas uma renúncia tanto a este 260


mundo quanto a si mesmo, ou seja, era uma espécie de morte cotidiana na qual os indivíduos supostamente abriam mão de suas vidas para viverem sua plenitude em outro plano espiritual. Podemos dizer que o pastorado cristão introduziu um jogo que nem os gregos nem os hebreus haviam imaginado. Um estranho jogo cujos elementos são a vida, a morte, a verdade a obediência, os indivíduos, a identidade; um jogo que parece não ter nenhuma relação com aquele da cidade que sobrevive através do sacrifício dos cidadãos. Ao conseguir combinar estes dois jogos – o jogo da cidade e do cidadão e o jogo do pastor e do rebanho – no que chamamos de Estados Modernos, nossas sociedades se revelaram verdadeiramente demoníacas (...) nossa civilização desenvolveu o sistema de saber o mais complexo, as estruturas de poder as mais sofisticadas (FOUCAULT, 2010: 369-370).

Ao procurar demonstrar como o cristianismo deu forma ao poder pastoral que acabou sobrepondo-se constantemente aos indivíduos através de tecnologias, técnicas, mecanismos, processos e procedimentos amparados em verdades, Foucault (2010) também mostrou como esse poder individualizador, apesar de ter sido exercido timidamente pelos gregos em decorrência da frequente utilização do exame de consciência e da direção de consciência, ainda era alheio aos seus pensamentos. O considerável recorte histórico relatado por Foucault (2010) neste seu trabalho intitulado “Omnes et Singulatim”: Uma Crítica da Razão Política não teve como propósito apresentar a tecnologia de poder pastoral e seu desaparecimento na Europa cristã, católica e romana nos dez séculos seguintes, mas demonstrar como a sua presença ocorreu naquele período de forma acabrunhada e não da maneira triunfante como acontecera em outras épocas. Segundo o autor, a inerme utilização do poder pastoral naquele período resultava de diversos aspectos tais como as razões econômicas, uma vez que o pastorado das almas, além de ocorrer efetivamente em espaços urbanos, era incompatível tanto com a miséria quanto com a economia rural extensiva existente nos primórdios da Idade Média; razões de natureza cultural, na medida em que o pastorado era uma tecnologia que requeria certo nível de cultura tanto por parte dos pastores quanto por seu rebanho; questões estruturais de cunho sóciopolítico, já que o feudalismo se fundamentava em laços pessoais bastante diferentes do pastorado; dentre outras causalidades. As reformas realizadas no interior da igreja daquela época, principalmente aquelas referentes às ordens monásticas, objetivavam restaurar o rigor do poder pastoral entre os monges, a exemplo das recém criadas ordens dominicanas e franciscanas. Diante das adversidades provenientes de suas crises internas, a igreja jamais deixou de procurar reencontrar e restabelecer suas funções pastorais. No entanto, foi no decorrer da Idade Média 261


que a população começou a presenciar frequentes lutas centradas no poder pastoral, onde os adversários da igreja que descumpriam com suas obrigações passaram a rejeitar sua estrutura hierárquica, saindo à procura de novas formas espontâneas de comunidade, onde o rebanho poderia localizar o pastor que lhe conviesse. Neste seu trabalho, Foucault (2010) não procurou tratar de questões referentes à formação dos Estados, muito menos analisar os diferentes processos econômicos, políticos e sociais que dele procedem. Tampouco pretende ponderar sobre as diferentes instituições das quais os Estados se utilizaram para garantir sua sobrevida. O que ele busca é simplesmente apresentar algumas indicações fragmentárias sobre algo que se encontra entre o Estado, como forma de organização política, e os mecanismos e tipos de racionalidade que operam sobre a população, garantindo o exercício de seu poder, que pode muito bem ser localizado nas estratégias utilizadas pelas elites empresariais no intuito de capturar indivíduos por meio da produção de verdades provenientes de certa razão empreendedora perpassada por relações entre saberes e poderes. Para ele, as práticas políticas são semelhantes às técnicas utilizadas pela ciência, pois elas operam por diferentes tipos de racionalidades e não pela razão em geral. Como a racionalidade do poder do Estado era pensada anteriormente a partir de um ponto de vista consciente e amparado por sua singularidade, ela não se encontrava circunscrita em práticas irrefletidas e ofuscadas. Para Foucault (2010), a racionalidade que fundamentava a crença na importância do poder do Estado foi elaborada por meio de dois corpos de doutrina: a razão de Estado e a teoria da polícia. Ambas as expressões rapidamente foram submetidas a sentidos limitados, equivocados e pejorativos. A doutrina da razão do Estado procurava encontrar as diferenças entre os princípios e os métodos do governo estatal, enquanto que a doutrina da polícia buscava definir quais eram os propósitos da atividade racional do Estado, determinando os objetivos que deveria perseguir, bem como as formas gerais com que empregaria seus instrumentos. Portanto, foi após a apresentação de certa genealógica do poder pastoral, desenvolvida em sua obra intitulada “Omnes et Singulatim”: Uma crítica da Razão Política”, que Foucault (2010) passou a analisar efetivamente aquilo que cognominou de razão de Estado. No entanto, foi em suas obras intituladas Segurança, território, população e Nascimento da Biopolítica que Foucault (2008a; 2008b) mostrou outra tecnologia de poder

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destinada ao governo da população para além da razão de Estado, propondo a emergência de uma nova arte de governar que começou a ser formulada em meados do século XVIII 116. No primeiro deles, Foucault (2008a; 2008b) ampliou a compreensão da biopolítica, inscrevendo-a a partir do que chamou de arte de governar, tratando mais especificamente daquilo que designou de governamentalidade. Entretanto, foi somente no segundo que o autor desenvolveu de forma ainda mais aprofundada a noção de biopolítica, entendendo-a não como ideologia 117 ou representação social, mas como uma tecnologia de governo dos corpos, situada no pensamento liberal e no neoliberalismo, tratando da governamentalidade liberal a partir de suas versões alemãs e estadunidenses. Essas noções são sintetizadas a partir do momento em que o autor afirma que o Estado, além de não possuir essência, não é ele próprio fonte autônoma de seu poder, sendo, nada mais que a sua perpétua estatização. Portanto, a existência do Estado está fundamentada em uma espécie de governamentalização de sua própria necessidade, em sua própria existência, como se tivéssemos naturalizado certa concepção hobbesiana da natureza humana maléfica. A perspectiva genealógica foucaultiana demonstra como certas verdades são governamentalizadas pela população e como certas tecnologias de poder operam por meio de normalizações e dispositivos de segurança, incidindo densamente nas decisões jurídicas e políticas. Desde o século XVIII, vivemos na era da governamentalidade. Governamentalização do Estado, que é um fenômeno particularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política, a governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver. Se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não Essa nova arte de governar se caracteriza essencialmente, creio eu, pela instauração de mecanismos a um só tempo internos, numerosos e complexos, mas que têm por função – é com isso, digamos assim, que se assinala a diferença em relação à razão de Estado – não tanto em assegurar o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, [o] crescimento indefinido do Estado, mas sim limitar do interior o exercício doo poder de governar. Creio que essa arte de governar é, evidentemente, nova em seus mecanismos, nova em seus efeitos, nova em seu princípio. Mas só o é até certo ponto, porque não se deve imaginar que essa arte de governar constituiria a supressão, o apagamento, a abolição, a Aufhebung, como vocês preferirem, dessa razão de Estado (FOUCAULT, 2008b: 39). 117 Foucault verificou que a ideologia é uma noção que não se pode utilizar sem precaução por três motivos: Em primeiro lugar, porque ela está sempre em oposição a algo que seria a verdade, pois para o autor, o problema não é fazer a divisão entre o que, em um discurso, provém da cientificidade e da verdade e aquilo que provém de outra coisa, mas sim ver historicamente como se produzem efeitos de verdade dentro do discurso que não são em si mesmos nem verdadeiros nem falsos; em segundo, porque ele se refere necessariamente a algo assim como o sujeito; e em terceiro, porque ela está em uma posição secundária em relação a algo que funciona para ela como infraestrutura ou determinante econômico e material. Em decorrência disso que a história do saber ou das formas de exercício do poder, tal como concebe Foucault, é uma história de práticas, e não de ideologia (CASTRO, 2009: 223). 116

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competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal, etc; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade (FOUCAULT, 2006: 292).

Partindo de diferentes tipos de racionalidades envolvidos por procedimentos, mecanismos, tecnologias, saberes, técnicas e instrumentos destinados a orientar a conduta dos indivíduos, Foucault (2008a; 2008b) procurou explicar de que maneira a governamentalidade passou ter a população como principal objeto, o conhecimento científico (medicina, direito, economia política, etc.) como saber privilegiado e os dispositivos de segurança como mecanismos básicos de atuação. Sendo assim, é importante constatar que a questão do governo das condutas dos indivíduos e das populações tomaram novos rumos com a chegada da década de 1970, quando algumas análises genealógicas sobre o poder começaram a emergir no cenário francês e internacional, sobretudo, a partir das aulas proferidas por Michel Foucault (2008a; 2008b) no Còllege de France, intituladas Segurança, Território, População e Nascimento da Biopolítica que trouxeram importantes contribuições sobre uma nova dinâmica das tecnologias de governo que não estavam mais atreladas à imposição exclusiva da lei e do contrato social de cunho eminentemente institucional como formas de manter a soberania do Estado ou de qualquer outra instituição. Mais importante que explicar a composição da soberania de um Estado seria compreender, conforme Michel Foucault, a formação de uma ampla “governamentalidade” nos tempos modernos. Em seus termos, esta figura política diz respeito a um conjunto de estratégias e procedimentos de poder emergentes nos séculos XVII e XVIII, que toma como alvo os indivíduos e as populações, utilizando-se de dispositivos de saúde e segurança e apoiando-se na economia política como forma predominantemente de conhecimento, tendo a multiplicar uma série de aparelhos e saberes específicos relativos às práticas de governo (PRADO FILHO, 2000: 142).

Com a ascensão da analítica foucaultiana vimos emergir no campo acadêmico uma série de elementos que foram tratados por diferentes autores, dentre eles Nikolas Rose (2011), que passou a constatar o surgimento de uma nova forma de gestão contemporânea desenvolvida a partir da governamentalização dos selfs provenientes de tecnologias de poder operadas através da captura dos indivíduos e das populações por meio de uma racionalização pensada sempre em termos de ganhos. Contudo, é imprescindível constatar que essas tecnologias passaram a serem operadas, do ponto de vista do indivíduo, através do 264


disciplinamento e, do ponto de vista da população, por meio daquilo que Foucault chamou de biopolítica. Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo de individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homemespécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana (FOUCAULT, 2000: 289).

Essas técnicas amparadas na governamentalização do empreendedorismo de si que passaram a capturar não somente a população por meio de práticas e discursos proferidos pelas mais distintas instituições sociais que a fomentam, mas também os sujeitos individualmente e em toda a sua subjetividade, proporcionando observações, análises e inscrições sobre ele, foi sendo paulatinamente produzidas por aquilo que Foucault (2006b) tratou como racionalidade neoliberal estadunidense, criando dispositivos para potencializar o rendimento de seu desempenho funcional. A emergência dessa nova razão empreendedora se sobrepõe ao poder de coerção do Estado soberano, na medida em que passou a incorporar tecnologias disciplinares concomitantemente àquilo que Foucault chamou de biopolítica, tendo como inspiração a formação de um sujeito produtor de si mesmo que transforma seu corpo em um material humano de investimentos através de um esforço que cultiva o fortalecimento de um self empreendedor para cada indivíduo. Portanto, essa emergente racionalidade administrativa contemporânea acaba discursando, criando e proporcionando aos indivíduos um poder de “escolha” que passa a alimentar em termos de ganhos uma somatória que supostamente compõe o seu capital humano. Considerações finais Como o estudo dos grupos ou classes dominantes não é algo incomum na Sociologia Política, nossa proposta é trazer e aproximar alguns autores que não tratam necessariamente desta temática para o estudo deste campo no intuito de contribuir com novos olhares e abordagens. Embora Marx & Engels (1986; 1997) tenham tratado da burguesia, ou da suposta elite econômica de sua época através de uma perspectiva situada na luta de classes, Weber 265


(1986; 2000; 2004a; 2004b) acabou ultrapassando estas barreiras totalizantes, na medida em que possibilitou a elaboração de uma abordagem hermenêutica fundamentada na procura dos sentidos das ações encampadas pelas elites empresariais, reconhecendo que a dominação pode estar situada em outras esferas, como, por exemplo, as políticas e culturais. Não obstante, foi Foucault (2008a; 2008b; 2010) quem demonstrou a ascensão e declínio de algumas tecnologias de poder ao longo da história que disciplinavam, normalizavam, garantiam uma suposta segurança da população e a controlavam. Ao longo deste artigo, vimos diferentes tecnologias de poder situadas em distintos tipos de governo apresentadas por Foucault (2008a; 2008b; 2010), que perpassaram o poder pastoral, o poder soberano, o poder disciplinar e a biopolítica, por exemplo. Sendo assim, acreditamos que esta abordagem centrada na aproximação entre as analíticas weberiana e foucaultiana podem contribuir de forma significativa para o entendimento das racionalidades produzidas e governamentalizadas pelas elites empresariais não somente no Brasil, mas também em outros países, fomentando o entendimento deste sujeito empreendedor que emerge a partir de uma racionalidade neoliberal iniciada nos Estados Unidos, que passou a ser difundida na maior parte dos países na (pós-)modernidade. Referências bibliográficas BOLTANSKI, L. & CHIAPELLO, E. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009. COSTA, P. R. N. Como os empresários pensam a política e a democracia: Brasil, anos 1990, Opinião Pública, Campinas, Vol. XI, nº 2, Outubro, p. 422-449, 2005a. _______________ Empresariado, regime político e democracia: Brasil, anos de 1990. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 20 nº. 57, fevereiro, 2005b. _______________ A Elite Empresarial – Teoria e método na análise da relação entre empresariado e democracia. 36º Encontro Anual da ANPOCS. GT16 – Grupos Dirigentes e Estruturas de Poder. Águas de Lindóia/SP: ANPOCS, 2012. COSTA, P. R. N. e ROMKO, I. G. 2. Methodological Notes for the Study of Economic Elite in Brazil. 5º Symposium Brazil-Germany. Stuttgart: University of Stuttgart, 2011. COSTA, P. R.N. Elite econômica no Brasil em perspectiva comparada. Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq. Curitiba: UFPR, 2011. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2000. 266


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Gênero e poder entre médicos, escravas e prostitutas residentes nos espaços da Corte do Rio de Janeiro Marcelo Ribeiro de Castro Carla Geovana Fonseca da Silva de Castro

RESUMO

O presente artigo discute as tensões entre médicos, escravas e prostitutas residentes na Corte do Rio de Janeiro durante o século XIX. A título de tratamento metodológico, adotamos a revisão bibliográfica, onde lançamos mãos das obras de Cunha (1845), Sá (1845) e Jardim (1847). Foi possível concluir que escravas e prostitutas também foram responsáveis pela organização de espaços públicos e privados da Corte. Com as devidas proporções, isso nos permite inferir essas mulheres na condição de sujeitos históricos daquela época.

Os médicos e a disputa pelos espaços de trabalho Os médicos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ) deveriam, no último semestre do curso, apresentar publicamente uma tese, como pré-requisito para que saíssem da Faculdade qualificados como Doutor em Medicina. Acredita-se vir daí a ideia de que todo estudante de medicina, ao terminar seu curso superior, tenha seu título de graduação legitimado pela sociedade brasileira na condição primária de Doutor. Entre os diversos assuntos propostos pelos membros da banca, cabia aos médicos a escolha de três que contemplassem todas as áreas de concentração da estrutura curricular da Faculdade, a saber: Ciências Acessórias, Ciências Cirúrgicas e Ciências Médicas. Entre os assuntos escolhidos pelos formandos, um dos tópicos deveria ser transformado em dissertação, enquanto os demais deveriam ser estudados, analisados e apresentados na condição de proposições. Este último apresentava, de forma esporádica, conceitos, características, localização, forma de manifestação, sintomas e estágio de evolução das doenças mais comuns. Em relação à dissertação, esta deveria conter um estudo mais

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criterioso, uma elaboração mais sistemática e cuidadosa dos formandos, constituindo-se, assim, no corpo principal da tese. No decorrer de todo o século XIX, as intervenções médicas na organização dos corpos, tempos, espaços, instituições e, acima de tudo, nos modos de ser e constituírem-se masculinos e femininos contribuíram para a qualificação dos médicos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro na condição de formadores de opiniões, responsáveis, muitas vezes, pela definição dos comportamentos morais e imorais daquela época. Esses médicos, como detentores de prestígio social e político, tencionavam uma disputa com os demais sujeitos - parteiras, barbeiros, curandeiros, rezadores, - que, desde o período Colonial, faziam das práticas terapêuticas forma de subsistência própria e familiar. Havia assim uma disputa pela legitimação das práticas médicas, em que homens e mulheres sem diploma superior passaram a ser perseguidos pelas diversas políticas de higienização da Corte. Os médicos, os advogados e os engenheiros determinavam um modelo de organização social da Corte capaz de servir de referência para as demais províncias do Império. Tudo indica que os médicos constituíram-se, dentro deste cenário, como um dos responsáveis pela normalização dos corpos que habitavam a Corte durante todo o século XIX. Nesse instante, vale reconhecer que tanto os advogados quanto os engenheiros deram contribuições significativas à organização dos espaços ocupados pelos corpos das mulheres escravas e das mulheres prostitutas da Corte do Rio de Janeiro. Aos médicos, entre outras atribuições, cabia orientar comportamentos e modos de vida de todos os sujeitos que residiam na Corte - nobres, brancas pobres, forras, escravas, prostitutas, crianças, idosos, etc. Desta feita, o discurso médico pautava-se por um conjunto de preocupações referente à saúde coletiva e individual, preocupando-se sempre em estabelecer controle total sobre os corpos. As políticas de ordem médica sustentavam-se em um discurso higienista e patriarcal e influenciavam diretamente as formas e os modos de sobrevivência na Corte. Disposições sobre saneamento, casamentos, controle de alimentos e do exercício da profissão, entre outros, estavam na pauta diária de preocupação médica. A medicina, aos poucos, configurava-se como parceira indispensável do Estado para controlar os indivíduos, principalmente os oprimidos. Nesse instante, vale recorrer aos estudos de Silva (2004), em que a autora toma para análise três teses defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiros no último quartel do século XIX, chegando à seguinte conclusão: 269


Os discursos médicos foram escritos com a marca de classe estampada nas linhas e entre linhas do texto e pelas proposições higienistas de seus representantes intelectuais. Eles informam tanto uma linguagem liberal como de reformismo social no encaminhamento de suas propostas, tornando-se representantes e objetos de posições políticas bem definidas. (SILVA, 2004, p. 109).

O discurso e as práticas terapêuticas adotadas pelos médicos intelectuais tinham endereço certo, ou seja, sob suposta neutralidade política, responsabilizavam os corpos oprimidos pelas doenças físicas e morais que atingiam os moradores da Corte e vitimavam os corpos da boa sociedade. É possível perceber ainda nos discursos médicos preocupações com acidentes geográficos, climatização, materiais de construção habitacional, localização de cemitérios, tipologia sanguínea, entre outros. As influências médicas na organização social da Corte Imperial eram tantas que os homens de branco ditavam as normas básicas e imprescindíveis de ser, estar e tornar-se sujeito histórico em plena sociedade escravocrata. Os médicos brasileiros eram os intelectuais responsáveis por apresentar soluções, encaminhamentos, curas de doenças, entre outros assuntos que julgassem de sua competência. A maioria estava preocupada em apresentar soluções que levassem a organização social da Corte a uma melhor “civilização”, tendo como referência os interesses da aristocracia agrária e da elite urbana. Muitos médicos, a partir da segunda metade do século XIX, levantaram voz contra o modelo escravocrata de produção e passaram a defender um modelo de força de trabalho livre. Isso não os impediu de continuar identificando os corpos das escravas e das prostitutas como possuidores e propagadores de doenças capazes de corromper a alma e o espírito dos desavisados. Essa compreensão médica aponta para uma visão totalmente conservadora e preconceituosa, a ponto de culpabilizar as pessoas pobres pelos males de toda ordem quê insistiam em permanecer nos espaços da Corte, desde o período Colonial. Os médicos que atuavam na capital do Rio de Janeiro eram filhos das elites do Império. Dentro desse contexto, pode-se inferir que os discursos dos intelectuais do século XIX, realizados e constituídos por homens brancos ligados diretamente aos interesses das elites residentes na Corte Imperial, contribui para legitimar os fazeres dos médicos formados daquele período. Formação e intervenções médicas nos tempos e espaços da Corte

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As intervenções médicas se tornavam, no decorrer do Primeiro e do Segundo Reinado, a esperança de uma Corte mais salubre, capaz de combater o alto índice de mortalidade infantil, as péssimas condições de saneamento e, ainda, as precárias condições de trabalho, principalmente no que se refere às atividades relacionadas à mão-de-obra escrava. Neste instante, vale recorrer à contribuição de Capistrano de (ABREU apud RIBEIRO, 1992, p. 21), ao fazer a seguinte afirmação: “Da higiene pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios de sol e os diligentes urubus”. Dessa passagem torna-se possível inferir que as ações e as intervenções específicas no campo do higienismo e, depois, do sanitarismo eram tão tímidas que passavam quase despercebidas. Tudo indica que, por meio dos médicos, diversas famílias que residiam na Corte passaram a adotar normas e hábitos ligados à higiene corporal. Os tipos de discursos e intervenções médicas apontam para uma política de permanência de uma sociedade classista e patriarcal, na qual a secundarização das mulheres das elites ficava à sorte da procriação e dos afazeres do lar. Em se tratando das brancas pobres, forras, escravas, prostitutas, não lhes eram concedidos reconhecimento por seus trabalhos, mesmo que esses fossem legítimos e necessários para a sobrevivência. Os médicos, com seus discursos, influenciavam a construção de novos hábitos e costumes familiares, tipos de ensino (e a quem deveria ser ministrado), tipo de construção das casas, escolas e creches, contribuindo, assim, para a proliferação de novos hábitos e costumes de vida alternativos em relação adotados pelas pessoas no período Colonial. Também atuavam fortemente na condição de mantenedores da ordem da Corte e, sob um pretenso discurso neutro, adotavam práticas que definiam a organização geográfica de casas e escolas, tipos de vestimenta de mulheres, homens e alunos; localização dos cemitérios; forma de alimentação adequada; tipos de casamentos e grande quantidade de trabalhos tinha foco na Educação Physica dos corpos. Nesse momento, recorremos a idéia de conhecimento humano como bem universal construído a partir de um processo dinâmico de se pensar o mundo e os sujeitos nele inseridos. Por exemplo: nos espaços e tempos Coloniais muitas eram as intervenções higienistas adotadas por “médicos não titulados” 118. É justamente nesse período que se tem notícia das primeiras atividades médicas realizadas no Brasil. Nesse contexto, podemos afirmar que:

“Médicos não titulados” é o tratamento dado aos barbeiros, bruxos, videntes, rezadoras, parteiras ente outros sujeitos que faziam das práticas e intervenções médicas dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, meios de promoção de cura do físico e da alma. 118

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Os pioneiros da medicina no Brasil eram os cirurgiões barbeiros, os barbeiros, os boticários e seus aprendizes. Possuíam condição humilde, sendo quase todos judeus, cristãos-novos ou meio-cristãos. (GONDRA, 2000, p. 14).

Já nos primeiros anos do Estado Imperial, a formação médica limitava-se às escolas europeias. A maioria dos médicos que atuava no Brasil era formada pela Universidade de Coimbra. Atrelada ao incipiente nível de conhecimento técnico, era comum a falta de perícia médica acompanhada da ausência de uma postura ética profissional, que concebia os corpos oprimidos - mulheres pobres, escravas, escravos, prostitutas, crianças fruto de relação ilegítima, etc - como objeto de descobertas científicas. Tudo nos leva a crer que práticas como partejar e sangrar ocorriam com extrema semelhança entre as ações orientadas pelos “médicos não titulados” e pelos formados. Nessa mesma linha de raciocínio, Coelho (1999) faz a seguinte advertência sobre as práticas médicas: Os médicos autopsiavam os cadáveres de pacientes humildes - em geral escravos e a minúcia e gosto com que relatavam suas descobertas nas sessões da Academia – tecidos necrosados, órgãos intumescidos, carne e ossos dilacerados – fazem crer na existência de uma inimaginável margem de impunidade no exercício profissional. (COELHO, 1999, p. 109).

Se não bastassem as intrigas internas pela tomada do cliente de seu colega de profissão, visto como concorrente, havia ainda a necessidade de melhorar suas práticas de atendimento, uma vez que estas pouco se distinguiam da de curandeiros, parteiras, pajés, sacerdotes, entre outros “médicos não titulados”. Práticas como as de banhos escaldantes, sangrias, aplicação de sanguessugas, purgantes, entre outras, eram recomendadas por vários profissionais da saúde. Assim, os médicos disputavam espaços de trabalho entre si e também com os sujeitos que viviam da cura dos males físicos e espirituais dos corpos do Império. Além de tudo isso, muitos médicos desenvolviam atividades também no campo da política, para lhes garantir melhor renda e mais prestígio social. Os médicos não diplomados eram em maior número, uma vez que os diplomados não conseguiam responder pelo atendimento a toda a população. Ainda em relação aos médicos cirurgiões, Coelho (1999) acrescenta que a esses cabia: Garantir o tratamento de doenças externas, a fiscalização das boticas para que não vendessem substâncias nocivas ou medicamentos por preços que onerassem a economia dos súditos, o exame a candidatos a cirurgião, sangrador, parteira ou dentista, passando atestações ou provisões aos aprovados. (COELHO, 1999, p. 96).

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Os médicos diplomados até o início do Império apresentavam extrema deficiência no que concerne ao conhecimento cultural e científico. Coelho (1999) desconfia de que, nessa época, o prestígio social da medicina era tão precário quanto sua autoridade cultural. As práticas dos médicos diplomados pouco se distinguiam daquelas realizadas por “médicos não titulados”. As práticas terapêuticas e a organização da medicina europeia exerceram influências rotineiras na medicina brasileira. Técnicas realizadas por médicos europeus eram reproduzidas paripassu pelos “médicos não titulados” e, de igual forma, pelos profissionais formados. Atinente a esse contexto, surge a influência da medicina francesa no solo brasileiro. Já nas primeiras décadas do século XIX, a Medicina Social, também conhecida como movimento higienista, ganha força política em solo francês, determinando, inclusive, as formas de organização dos espaços públicos, privados e das Instituições Jurídicas daquela época. É justamente no decorrer da solidificação do Estado Imperial Brasileiro que os médicos titulados higienistas foram adquirindo a confiança das elites do Império e, consequentemente, passaram a ter trânsito livre em diversas residências da Corte. Assim, aos poucos, a formação médica apontava para a consolidação de um progresso no desenvolvimento das normas higiênicas e sanitárias, consolidando-se como a panaceia de todos os problemas. Os médicos passaram a perceber que as mulheres da elite Imperial, bem como suas respectivas residências seriam aliados para impor, também, noções de hábitos alimentares. Assim, criticavam com veemência as formas de construção das residências, tendo em vista que elas eram projetadas de forma impermeável ao exterior, apresentando arquiteturas fechadas, salas quentes e abafadas com o esgoto da cozinha, muitas vezes, correndo ao mesmo tempo que se preparavam alimentos. A partir das contribuições de Ribeiro (1992), é possível constatar as péssimas condições sanitárias do século XIX, mais precisamente sobre os anos 1850. Esse mesmo autor aponta que, em plena metade do século XIX: Os dejetos humanos, o lixo, eram retirados das residências por escravos e lançados nas praias, nas valas, nos terrenos baldios. Os numerosos pântanos, os reservatórios de água descobertos, nas ruas e nas habitações, favoreciam a criação e o desenvolvimento dos vetores das moléstias infecto-contagiosas, (RIBEIRO,1992, p. 79).

Ao reconhecer a necessidade de se mudar esse quadro, os médicos apresentavam um conjunto de regras normativas higienistas a respeito da organização dos espaços presentes nas 273


estruturas físicas, jurídicas e também nos espaços urbano-sociais da Corte. Dentro desse contexto, os médicos conseguiram, por meio do conhecimento possível da época, perceber, a partir das primeiras décadas do século XIX, a necessidade urgente de “novos modelos” de família, homem, mulher, moradia, criança, etc. Passaram a indicar o uso de materiais e equipamentos mais modernos nas construções das residências e recomendavam o distanciamento dos escravos de dentro das casas, uma vez que eles não apresentavam pureza d’alma nem hábitos higiênicos necessários para a promoção da saúde. Sendo assim, tanto a presença quanto os afazeres domésticos realizados por mãos escravas iam sendo repensados mediante as novas normas higiênicas que, aos poucos, iam se consolidando por mio de novos hábitos e costumes sociais. Na metade do século XIX, ganha maior visibilidade a proibição do tráfico de escravos: o escravismo, que até então representava a principal força de trabalho da época e que tinha uma vida média de sete anos, perde espaço para a mão-de-obra assalariada. A proibição do tráfico negreiro, atrelada à pequena perspectiva de vida dos escravos, contribuía para que as famílias das elites do Império passassem a investir na mão-de-obra dos imigrantes europeus que desembarcavam nos portos brasileiros. Assim, a classe operária dava seus primeiros passos de existência tentando dar conta das ações de mercado interno, alavancadas principalmente pela produção cafeeira e pela construção das estradas de ferro. Com a chegada da mão-de-obra de trabalhadores europeus ao Brasil, surge, de forma cadenciada, a institucionalização do serviço assalariado, junto ao qual toma forma, de modo ainda primitivo no território brasileiro, a estruturação do modelo econômico capitalista. Nesta época, muitas famílias das elites do Império passaram a contratar empregados oriundos dos países europeus, pois, uma vez que seus pares quisessem visitá-los, era mais que prudente e saudável o serviço caseiro ser realizado por serviçais brancos e não mais pelos negros, mulatos ou mestiços. Nesse contexto, os médicos associavam o corpo branco à longevidade, à robustez e bom vigor sexual, procurando também modificar a conduta física, moral e cultural de seus pacientes. Os médicos, nessa época, apresentavam-se como agentes de coerção. Tais agentes “eram convertidos, manipulados ou reorientados nos seus mais diversos interesses e formas de agir. Este foi o momento da inserção da medicina higiênica no governo político dos indivíduos”, (COSTA, 1983, p. 28). Com o passar do tempo, o Estado passou a reconhecer a medicina social como um parceiro imprescindível na solução das questões de ordem higiênica e, posteriormente, sanitarista, ações entendidas como imprescindíveis na erradicação de 274


epidemias, endemias, febres, focos de infecção, entre outras mazelas que o governo colonial não conseguiu extirpar e que insistiam em permanecer em diversos espaços e Instituições do Império. Escravas e prostitutas como sujeitos históricos Como dito anteriormente os médicos da (FMRJ) apresentavam em seus estudos assuntos, como: doenças sexualmente transmissíveis, casamentos, prostituição, escravidão, endemia, epidemia, localização de residências, escolas e cemitérios, vestimentas, alimentação, gesta/atividades físicas, questões de ordem moral e religiosa, enfim, atuavam na condição de verdadeiros intelectuais responsáveis pela organização e dos corpos e espaços do Estado Imperial brasileiro. Entre os diversos estudos realizados no século XIX, destacamos a seguir alguns que apontavam preocupações com os corpos das escravas e das prostitutas, a saber: Dr. Herculano Augusto Laysance Cunha publicou estudo de conclusão de curso intitulado: A Prostituição em Particular na Cidade do Rio de Janeiro (1845). Já o Dr. Miguel Antonio Heredia de Sá, publicou: A cópula, onanismo e prostituição no Rio de Janeiro (1845). O Dr. David Gomes Jardim, por sua vez, publicou: Algumas considerações sobre a hygiene dos escravos (1847). Esses trabalhos, entre outros, detinham atenção específica às normalizações médico-higienistas para os corpos das escravas e das prostitutas. O tipo de organização político-social do século XIX, a divisão de classes sociais, a permanência da quase imperceptível visibilidade dos corpos femininos, uma sociedade hegemonicamente patriarcal, entre outras situações contribuíram para o afloramento das contradições e tensões nas relações de poder e subjetividade presentes no cotidiano dos corpos das escravas e das prostitutas. Elas sobreviviam em uma sociedade que insistia em estabelecer marcas e papéis próprios para os corpos femininos da boa família imperial, como: cuidar do lar, atender às necessidades do marido, tratar dos filhos e conceber a procriação como algo naturalizado. Os corpos femininos que fugissem a essas marcas caracterizavam-se como corpos marginalizados. Essas marcas se estabeleciam e se legitimavam junto aos corpos femininos da boa família imperial, restando aos corpos femininos da classe dominada, entre eles escravas, prostitutas e mulheres forras, serem concebidos enquanto mercadorias de consumo, de prazer e de força de trabalho imediata. Corpos que, na maioria das vezes, possuíam prazo de 275


validade determinado e não eram reconhecidos por parte do Estado, na condição de sujeitos históricos. Os corpos femininos da classe dominante, por sua vez, eram dotados de normas e condutas higiênicas que contribuíam diretamente na formação de uma boa família imperial, de uma procriação saudável e, ainda, na purificação e salvação espiritual dessas mulheres e da sua família. Em contrapartida, os corpos das mulheres escravas e das mulheres prostitutas possuíam marcas de debilidades, sendo acusados de proliferação de doenças físicas, morais e espirituais. Muitos foram os corpos das escravas e das prostitutas responsabilizados pela proliferação de diversas doenças infecto-contagiosas. Apesar de a preocupação médica ocorrer em maior proporção com as formas de higienização e normalização dos corpos femininos da boa família Imperial, é possível identificar ao longo das décadas do Império Brasileiro estudos médicos que apontavam preocupações higienistas, especificamente, com escravas e prostitutas da época. Os médicos produziam seus estudos acreditando na organização natural e invariável dos fatos sociais e, inclusive, entendiam a maternidade como acontecimento natural e necessário ao corpo da mulher. Partiam do princípio que o determinante biológico era fonte exclusiva para explicar todas as relações sociais da época. Para a grande maioria desses médicos, os fatos sociais e históricos, bem como o comportamento das escravas e das prostitutas, deveriam ser tratados na mesma ótica de compreensão dos processos de desenvolvimento retilíneo e harmonioso da natureza, ou seja, ser escrava ou prostituta era algo naturalizado e intencional de certos corpos femininos. O fácil acesso normalizador que os médicos tinham sobre os corpos femininos do império contribuiu como alternativa de aproximação entre a família e o Estado, entre o público e o privado. A população, lentamente, reconhecia o Estado e os seus representantes, entre eles os médicos, como aliados fundamentais na solução dos problemas de caráter higienista. Os médicos encontravam nos corpos femininos da boa família imperial, bem como nas suas respectivas moradias, um dos principais aliados para impor normalizações de certos hábitos alimentares. Assim, criticavam com veemência os modelos de residências da época já que estes, até então, eram projetados de forma impermeável ao exterior, apresentando arquiteturas fechadas, salas quentes e abafadas com o esgoto da cozinha, muitas vezes, correndo junto à preparação dos alimentos. 276


Os médicos com pleno poder de intervenção na organização do Estado Imperial conseguiram, a partir do terceiro quartel do século XIX em diante, apontar a necessidade de uma nova construção de hábitos alimentares e modelos de residências. Passaram a indicar o uso de materiais e equipamentos mais modernos nessas construções e recomendavam, sempre que possível, a restrição de escravos e escravas dentro das residências, uma vez que os mesmos não tinham seus corpos dotados de pureza física, espiritual e moral. Mesmo com as indicações médicas acima, tanto as escravas quanto as prostitutas ocupavam, não raramente, os mesmos espaços geográficos, chegando a confundirem-se em algumas situações como um único corpo. As escravas, por sua vez, manifestavam-se no mesmo espaço do corpo da mulher da boa família imperial, destacando-se por ocuparem o espaço público, privado, íntimo e particular. Muitas eram as escravas que com a permissão dos seus Senhores saiam às ruas da Cidade do Rio de Janeiro com tabuleiros sobre a cabeça para vender pés-de-moleque, cocada, angu, acarajé, pastéis e frutas, etc. Isso tudo ocorria em função da necessidade de sobrevivência dos corpos femininos oprimidos do império brasileiro. Os corpos femininos da classe oprimida produziam seus dividendos no espaço público, ora no espaço privado do seu Senhor. Essa dupla função estava atrelada diretamente ao fator econômico, tendo em vista sua capacidade de gerar renda direta e indiretamente para os senhores. Estudos de conclusão de curso dos médicos da FMRJ apontam à existência de três ordens de prostituição pública, sendo cada uma com os seus adornos e com as suas peculiaridades que descrevemos abaixo. A primeira ordem prestava seus serviços aos Senhores, integrantes do governo, juristas e, também, aos médicos. As poucas mulheres integrantes desta ordem gozavam, entre outros privilégios, da não perseguição daqueles que consideravam a prostituição como algo profano e nocivo à construção da boa família imperial. A segunda ordem possuía, consideravelmente, uma maior concentração de prostitutas em relação à primeira. Essas mulheres encontravam-se espalhadas pelas ruas e vielas da Cidade do Rio de Janeiro. Acreditamos estar presente nessa ordem, grande percentual de mulheres que freqüentavam ao mesmo tempo os espaços públicos e privados do século XIX. Já a terceira ordem reunia as rameiras da mais baixa estirpe. As mulheres ligadas a esta ordem eram as que mais sofriam com a perseguição física e a discriminação moral por parte dos instrumentos ideológicos do Estado Imperial. 277


Ainda é possível identificar nessa época um outro grupo de prostitutas, denominado de prostituição clandestina. Esse corpo caracterizava-se quando eram consumadas as relações sexuais, por vias de força, dentro das dependências do espaço privado entre os Senhores e suas escravas. A legitimidade desse último grupo de prostituição sustentava-se uma vez que as escravas, na condição de propriedade particular do seu Senhor, deveriam estar prontas para servi-lo sempre, inclusive atender a seus desejos sexuais. Os corpos das escravas no espaço privado, em algumas vezes se confundiam com os corpos das prostitutas no espaço público. O corpo da mulher escrava era responsável tanto por algumas atividades especificas do lar, quanto pelas atividades realizadas no espaço público. A compreensão da sua identidade estava atrelada aos diferentes espaços físicos ocupados em cada momento. Já o corpo da mulher da boa família imperial, sempre que ocupasse o espaço público, era prudente e de boa índole fazê-lo acompanhado de uma criada, seu marido e seus filhos. O corpo da mulher da boa família imperial ao ocupar o espaço público na companhia de marido, filhos e criados ratificava suas marcas de dócil, reprodutor e puro, enquanto o corpo da mulher escrava, quando presente no lócus público, despertava a atenção de seus Senhores para que não caísse nas tentações do mundo da rua. As manifestações corpóreas das escravas e das prostitutas nos espaços público, privado, íntimo e particular do século XIX, associada às acusações de responsáveis pela proliferação de doenças infecto-contagiosas e a não adoção de hábitos higiênicos, contribuíram diretamente para que os médicos da FMRJ demonstrassem preocupações de identificação e normalização dos corpos femininos oprimidos do Império Brasileiro. Por fim, acreditamos que a atenção médica voltada para os corpos femininos dessas mulheres estava focada na possibilidade da oferta de serviços de melhor qualidade, tanto nos espaços públicos quanto nos privados e, principalmente, nos momentos de intimidade e particularidade desses corpos com os seus interlocutores. Referências bibliográficas CAPISTRANO de Abreu. Phases do Segundo Império. In: Ensaios e Estudos (crítica e história). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. CASTRO, Marcelo Ribeiro. Escravas, prostitutas e médicos: normalizando modos de vida da Corte do Rio de Janeiro. Campo Grande, MS: UFMS, 2016.

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CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais. São Paulo: Record, 1999. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983. CUNHA, Herculano Augusto Laysance. A Prostituição em Particular na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Imperial, 1845. (These FMRJ). DIAS, Maria Odila L. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989. GONDRA, José Gonçalves. Artes de civilizar: medicina, higiene, e educação escolar na Corte Imperial. 2000. (Tese de doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro. 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. JARDIM, David Gomes. Algumas considerações sobre a hygiene dos escravos. Rio de Janeiro: Typographia Imperial, 1847. (These FMRJ). KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. Rio de Janeiro: Acces, 1994. RIBEIRO, Lourival. O Barão de Lavradio e a Higiene no Rio de Janeiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1992. SÁ, Miguel Antonio Heredia de. A cópula, onanismo e prostituição no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Imperial, 1845. (These FMRJ). SILVA, Maria Cecília de Paula. A Educação Física Escolar/Saúde: o discurso médico no século XIX. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v. 25, n. 2, p. 97-112, jan. 2004.

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SOBRE OS AUTORES ALLAN MAYKSON é ator, encenador, professor, músico, poeta, compositor, pedagogo e arteterapeuta; Pesquisador em Teatro com ênfase na interface Artes Cênicas, Arteterapia, Filosofia, Educação e Autismo. É fundador do projeto “Palco Azul” de música e teatro para Autistas”; Graduado em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha onde articula teoria e prática no grupo de pesquisa "Poéticas da Cena Contemporânea" como colaborador externo. CARLA GEOVANA FONSECA DA SILVA DE CASTRO é doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP e Especialista em Desenvolvimento Humano e Social do Espírito Santo. DULCIMAR PEREIRA é doutora em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo; Professora da Universidade Vila Velha nos cursos de Pedagogia e Artes Cênicas; Professora de educação básica na Prefeitura Municipal de Vitória; Contadora de histórias; Integra os grupos de pesquisa: Currículos-formação em redes, cotidianos de escolas e direitos humanos" (coordenação da Profª Drª Maria Regina Lopes Gomes) e "Aprendizagens afetivas na diferença: Direitos Humanos e Educação por uma Ética e Estética da Existência e Produção de Segurança Pública" (coordenação da Profª Drª Maria Riziane Costa Prates). ERANÍ SOARES é mestranda em Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em Educação Artística/Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), possui Curso de Pós- Graduação Lato Sensu, Especialização em Abordagens Contemporâneas em Arte-Educação (1999). Atualmente é professora da Universidade Vila Velha nos cursos de Design de Produto, Design de Moda e Artes Cênicas, nos quais ministra as disciplina de História do Design, História da moda, figurino, composição e cor. ISABELA MALTA é atriz, escritora e pesquisadora nas áreas de Teatro, Psicanálise, Educação, Cotidianos Escolares e Pedagogia Teatral. Diretora e professora de teatro em oficinas com a comunidade local, onde articula as pesquisa às práticas laboratoriais; integrante da Cia DiLata, com ênfase em teatro performativo; formada em Licenciatura em Artes Cênicas (2019) na Universidade Vila Velha e pós-graduanda em Ensino da Língua Inglesa pela Universidade Estácio de Sá (2019). LEONARDO CETTO GIORI é graduado em Psicologia pela Universidade Vila Velha. Tem interesse pelo estudo dos processos de subjetivação nas diferentes manifestações artísticas, com ênfase nas correspondências entre sujeito, visualidade e imagem. MARIA CAROLINA DE ANDRADE FREITAS é pesquisadora e doutora em Educação pela UFES. Mestre em Psicologia Institucional também pela UFES. Psicanalista e Professora Titular da Universidade Vila Velha. 280


MARCELO FERREIRA é mestre em Artes/UFES. Professor da Graduação em Música/FAMES. Professor da Graduação em Artes Cênicas/UVV(2016-2019). Dramaturgo. Diretor, ator e bailarino/CIA TEATRO URGENTE. Pesquisador em arte performativa. MARCELO RIBEIRO DE CASTRO é Master Coach Profissional, pedagogo, professor de Educação Física, mestre em Educação Física, doutor em História Social, docente da Universidade Vila Velha/ES, idealizador do Projeto Polo Aquático na Rede de ensino de Vila Velha, ex-coordenador dos Cursos de Educação Física dos Centros Universitários São Camilo e Salesiano. MARIANA ZENELATO SANTOS é atriz graduada em Artes Cênicas pela Universidade Vila Velha, uma das fundadoras da Cia Di Lata. MURILO KILL é psicanalista, nascido em 13 de Novembro de 1993, diz não acreditar em signos mas se gaba por seus sete astros em Escorpião. Busca num beijo do namorado inspiração para dizer quem é: examinador da experiência que encontrou nas artes resistência diante das duras visões. PABLO ORNELAS ROSA realizou estágio pós-doutoral em saúde coletiva na UFES, em sociologia na UFPR e atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutoramento em psicologia institucional na UFES. É doutor em ciências sociais pela PUC/SP, mestre em sociologia política e bacharel em ciências sociais pela UFSC. Professor nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia Política (Mestrado Acadêmico) e em Segurança Pública (Mestrado Profissional) da UVV. É professor convidado no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Educação e Tecnologia (Mestrado Profissional) na FVC e no curso de especialização em direito penal e criminologia da PUC/RS. PAULO ROBERTO NEVES COSTA é doutor em Ciências Sociais, Mestre em Ciência Política e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política – PPGCP, diretor do Grupo de Estudos Empresariado e Ação Política e editor-chefe da Revista de Sociologia e Política da Universidade Federal do Paraná – UFPR. REJANE K. ARRUDA é atriz, diretora, professora, pesquisadora, mestre (2009) e doutora em Artes Cênicas (2014) pela Universidade de São Paulo; especialista em Cinema (2014) pela Universidade Estácio de Sá. É professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha e líder do grupo de pesquisa “Poéticas da Cena Contemporânea”. Autora dos livros “Bisturi: Ator e Cinema” e “Da Poética do Ator: Teatro & Cinema”.

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MARIA RIZIANE PRATES é doutora em educação, Mestrado, Especialização e Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora daUniversidade Vila Velha, na graduação em Pedagogia e Artes Cênicas, Pedagoga do Núcleo de Acessibilidade (NACE-UVV) e no Mestrado em Segurança Pública (UVV). Professora da Educação Infantil no município da Serra, atuando na formação continuada de professores (Centro de Formação-SEDU-SERRA). Realiza pesquisas no campo da educação formal e não formal, com ênfase em Currículos, Formação de professores, Produção de subjetividades, Educação inclusiva, Aprendizagem éticoestético e afetiva, Infâncias e Docências, Diversidade e Diferença. THAIS FURTADO NASCIMENTO, Universidade Vila Velha.

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THIAGO VICTOR DE OLIVEIRA CANAL é psicólogo/psicanalista clínico, entusiasta da vida além de apaixonado por filosofia. Não vive sem literatura e música. Percebe a única condição de verdade sendo exposta pela arte e seus tentáculos, principalmente quando as certezas e as durezas perdem terreno.

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