Revista Contraste #06

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o momento em que um sentimento penetra o corpo

ĂŠ polĂ­tico


contraste 6

EDITORIAL EXERCÍCIOS FÍSICOS marina dúbia AS TÉCNICAS DO CORPO marcel mauss DESPIDO arthur moura campos O CORPO COMO UM TEXTO VIVO tadeu dos santos TERRITÓRIOS CORPORAIS yuji kodato REFLEXÕES SOBRE CIDADE, OLHOS E PELE malu cardoso UM CORPO SOLTO NO MUNDO lucas henrique de souza FAROL QUE SE ILUMINA clarice niesker SOBRE CASCAS marina dúbia

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O CORPO INEVITÁVEL DO ARQUITETO bruno stephan

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A PRÁTICA DO PARKOUR E A ESCALA DO CORPO NA CIDADE nicolas le roux

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DE CORPOS PLURAIS: DEFICIÊNCIA E CIDADE EXCLUDENTE pedro lang

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EM ESTADO DE ENCONTRO eduardo bruno e marcelo denny

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PARAGENS PARADISÍACAS natália polesso

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102 josé cabral filho PARA ALÉM DO CORPO CRAVADO DE LIKES 106 112 114 120 122 124 138 146 148 154 156 160 174 178 180

EMBALAGENS linn da quebrada MULHER amara moira A PROSTITUIÇÃO COMO TRINCHEIRA TRANS josé saramago ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA jordan peele CORRA! cláudia adão CIDADE, EXTERMÍNIO E SEGREGAÇÃO rosana paulino SOBRE O ATO DE PRODUZIR mel duarte É TRETA, PRETA camila medeiros GÊNERO, CORPO E CASA helena zelic INOLVIDABLE natália mota CAIXA DE PANDORA ENTREVISTA COM DOM BARBUDO kaique xavier CORPO A CORPO carolina de jesus QUARTO DE DESPEJO alice dos anjos, gabriel madeira e júlia flock REFLEXÕES


e dito rial

al


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verdade e controle social, o corpo editorial da Revista Contraste tenta revisitar o que é esquecido: a existência. Quem somos em meio a tudo isso? O que temos a dizer? Como reverter esse contexto atípico? A produção do sexto número da Contraste surge desse ímpeto de entender como responder ao crescimento de um discurso que anula existências diferentes da normativa. Entendemos que o retorno à existência passa primeiramente pela materialidade humana, que simultaneamente nos iguala enquanto grupo e nos diferencia enquanto indivíduos únicos e insubstituíveis. Compreendemos, assim, que existe uma entre as infinitas camadas que nos compõe, que é a primeira a ser notada e que pauta todas as bases das relações sociais: o corpo. E o que seria o corpo? Acreditamos que o corpo é tudo: invólucro e casca, dor e prazer, massa e textura. Ele é sistema, ao mesmo tempo em que é unidade primária da organização humana. Um tema que permite muitas entradas para sua leitura e inesgotáveis respostas. A intenção, no entanto, não é resolver a questão, tampouco oferecer verdades ou abordagens completas sobre os corpos, mas sim mostrar que é dessa complexidade que surge o potencial de debate. Partimos da ideia de compreender o corpo - ou melhor, os corpos - em sua totalidade, ou seja, assimilar sua diversidade e suas particularidades, reconhecendo o poder de cada um, e, assim, a capacidade de transformação desses quando unidos aos demais. Esse processo nos possibilitou perceber a urgência de debatermos nossa corporeidade e todas as suas esferas, tão intrínsecas a nossa história e à condição humana. A partir disso, costuramos assuntos que abrangem parcelas modestas, mas profundamente relacionadas ao corpo: raça, gênero, religião, tecnologia, sexualidade, identidade, entre outros. Temas que desenvolvem, principalmente, um olhar crítico sobre a importância política do corpo. A sexta edição é publicada neste cenário de retrocessos. Esperamos que a revista contribua para inspirar aqueles que são afetados diretamente por tais regressos, incentivando-os a gerar debates e a promover novas abordagens sobre como nossos corpos, em toda sua vulnerabilidade, são fonte de um enorme potencial transformador. Que essa edição explicite as fragilidades da nossa existência, assim como sua multiplicidade, enquanto demonstra nossa capacidade de empatia. Que consigamos nos engrandecer em conhecimento, mas, principalmente, em mobilização política. Afinal, nossa existência é frágil, mas também é manifesto.

editorial

Dentro de um cenário conturbado, de disputas maniqueístas, pós


marina dĂşbia

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CÍ CIOS

SI COS marina dúbia

graduada em artes plásticas pela ECA USP, se dedica ao estudo da dança e corporalidades através de aulas, cursos e workshops

ilustração: joão montagnini

Das minhas narinas o ranho, da garganta o catarro, da boca a saliva, expelidos, projetados, corpo a fora, e vou-me contraindo, vai-se apertando mais dando nó e nó sobre si este corpo que já não meu explode e espirra e tosse e da vagina a menstruação e o muco, dos olhos as lágrimas, das feridas o sangue, do ânus o cocô, da uretra o xixi e de todos aqueles poros, aquelas centenas de poros comprimidos e espremidos o sebo e o suor e o óleo e a bílis das espinhas. Fico nauseada, mas a limpeza é radical. Não sobra nada. Também já não sou eu.

exercícios físicos

EXER


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AS TÉCNICAS marcel mauss

sociólogo e antropólogo francês

ilustração: pedro cancelliero victor

I. Noção de técnica do corpo (...)

Quando uma ciência natural faz progressos, ela nunca os faz no sentido do concreto, e sempre os faz no sentido do desconhecido. Ora, o desconhecido se encontra nas fronteiras das ciências, lá onde os professores “devoram-se entre si”, como diz Goethe (eu digo devoram, mas Goethe não é tão polido). É geralmente nesses domínios mal partilhados que jazem os problemas urgentes. Essas terras a desbravar contêm, aliás, uma marca. Nas ciências naturais tais como elas existem, encontramos sempre uma rubrica desonrosa. Há sempre um momento, não estando ainda a ciência de certos fatos reduzida a conceitos, não estando esses fatos sequer agrupados organicamente, em que se planta sobre essa massa de fatos o marco de ignorância: “Diversos”. É aí que devemos penetrar. Temos certeza de que é aí que há verdades a descobrir; primeiro porque se sabe que não se sabe, e porque se tem a noção viva da quantidade de fatos. Durante muitos anos, em meu curso de Etnologia descritiva, tive que suportar essa desgraça e esse opróbrio de diversos” num ponto em que essa rubrica “Diversos”, em etnografia, era realmente heteróclita. Eu sabia perfeitamente que a marcha, o nado, por exemplo, que coisas desse tipo eram específicas a sociedades determinadas; que os polinésios não nadamcomo nós, que minha geração não nadou como nada a geração atual. Mas que fenômenos sociais eram esses? Eram fenômenos sociais “diversos”, e, como essa rubrica é um horror, pensei várias vezes nesse “diversos”, ao menos toda vez que fui obrigado a falar disso, de tempos em tempos. (...) Eu via como tudo podia ser descrito, mas não organizado; não sabia


que nome, que título dar a tudo aquilo. Era muito simples, eu só precisava referir-me à divisão dos atos tradicionais em técnicas e em ritos, que considero fundada. Todos esses modos de agir eram técnicas, são técnicas do corpo. Todos cometemos, e cometi durante muitos anos, o erro fundamental de só considerar que há técnica quando há instrumento. Era preciso voltar a noções antigas, aos dados platônicos sobre a técnica, quando Platão falava de uma técnica da música e em particular da dança, e ampliar essa noção. Chamo técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em que o homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral. Peço-vos então a permissão de considerar que adotais minhas definições. Mas qual é a diferença entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato tradicional, eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida em comum, os atos morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro? É que este último é sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é efetuado com esse objetivo. Nessas condições, cabe dizer simplesmente: estamos lidando com técnicas do corpo. O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo. Imediatamente, toda a imensa categoria daquilo que, em sociologia descritiva, eu classificava como “diversos” desaparece dessa rubrica e ganha forma e corpo: sabemos onde colocá-la. Nessas condições, cabe dizer simplesmente: estamos lidando com técnicas do corpo. O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais

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natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo. Imediatamente, toda a imensa categoria daquilo que, em sociologia descritiva, eu classificava como “diversos” desaparece dessa rubrica e ganha forma e corpo: sabemos onde colocá-la. Antes das técnicas de instrumentos, há o conjunto das técnicas do corpo. Não quero exagerar a importância desse tipo de trabalho, trabalho de taxonomia psico-sociológica. Mas já é alguma coisa: a ordem posta nas ideias, onde não havia nenhuma. Mesmo no interior desse agrupamento de fatos, o princípio permitia uma classificação precisa. Essa adaptação constante a um objetivo físico, mecânico, químico (por exemplo, quando bebemos) é efetuada numa série de atos montados, e montados no indivíduo não simplesmente por ele próprio mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que nela ocupa. Além disso, todas essas técnicas se ordenam muito facilmente num sistema que nos é comum: a noção fundamental dos psicólogos, sobretudo Rivers e Head, da vida simbólica do espírito, noção que temos da atividade da consciência como sendo, antes de tudo, um sistema de montagens simbólicas. Eu não acabaria nunca se quisesse vos mostrar todos os fatos que poderíamos enumerar para demonstrar esse concurso do corpo e dos símbolos morais ou intelectuais. Olhemos para nós mesmos, neste momento. Tudo em nós todos é imposto. Estou a conferenciar convosco; vedes isso em minha postura sentada e em minha voz, e me escutais sentados e em silêncio. Temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não. Assim, atribuiremos valores diferentes ao fato de olhar fixamente: símbolo de cortesia no exército, de descortesia na vida corrente. lI. Princípios de classificação das técnicas do corpo 1. Divisão das técnicas do corpo entre os sexos (e não simplesmente divisão do trabalho entre os sexos) 2. Variação das técnicas do corpo com as idades 3. Classificação das técnicas do corpo em relação ao rendimento 4. Transmissão da forma das técnicas


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1. Técnicas do nascimento e da obstetrícia 2. Técnicas da infância. — Criação e alimentação da criança 3. Técnicas da adolescência 4. Técnicas da idade adulta a. Técnicas do sono b. Vigília: Técnicas do repouso c. Técnicas da atividade, do movimento d. Técnicas dos cuidados do corpo. Esfregar, lavar, ensaboar e. Técnicas do consumo. Comer f. Técnicas da reprodução g. Há, por fim, as técnicas de medicação, do anormal: massagens etc. Mas deixemos de lado. IV. Considerações gerais Questões gerais talvez vos interessem mais do que essas longas enumerações de técnicas que apresentei. O que sobressai nitidamente delas é que em toda parte nos encontramos diante de montagens fisiopsicosociológicas de séries de atos. Esses atos são mais ou menos habituais e mais ou menos antigos na vida do indivíduo e na história da sociedade. Vamos mais longe: uma das razões pelas quais essas séries podem ser montadas mais facilmente no indivíduo é que elas são montadas pela autoridade social e para ela. Cabo de infantaria, eis como eu ensinava a razão do exercício em fileira cerrada. Eu proibia a marcha ordinária e a formação de filas duplas, e obrigava o esquadrão a passar entre duas das árvores do pátio. Eles marchavam colados uns aos outros, mas percebiam que a ordem que eu lhes dava não era assim tão estúpida. Há em todo o conjunto da vida em grupo uma espécie de educação dos movimentos em fileira cerrada. Em toda sociedade, todos sabem e devem saber e aprender o que devem fazer em todas as condições. Naturalmente, a vida social não é isenta de estupidez e de anormalidades. O erro pode ser um

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III. Enumeração biográfica das técnicas do corpo


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princípio. Só recentemente a marinha francesa passou a ensinar seus marujos a nadar. Mas o princípio é este: exemplo e ordem. Há portanto uma forte causa sociológica em todos esses fatos. Espero que concordeis comigo. Por outro lado, já que se trata de movimentos do corpo,tudo supõe um enorme aparelho biológico, fisiológico. Qual a espessura da roda de engrenagem psicológica? Digo propo-sitalmente roda de engrenagem. Um seguidor de Comte diria que não há intervalo entre o social e o biológico. O que posso vos dizer é que vejo aqui os fatos psicológicos como engrenagens e que não os vejo como causas, exceto nos momentos de criação ou de reforma. Os casos de invenção, de posição de princípios, são raros. Os casos de adaptação são de natureza psicológica individual. Mas geralmente são comandados pela educação, e no mínimo pelas circunstâncias da vida em comum, do convívio. Por outro lado, há duas importantes questões na ordem do dia da psicologia - a da capacidade individual, da orientação técnica, e a da característica, da biotipologia - que podem contribuir para o breve levantamento que acabamos de fazer. Em minha opinião, os grandes progressos da psicologia, nos últimos tempos, não foram feitos na área das chamadas faculdades da psicologia, mas sim em psicotécnica, e em análise dos “todos” psíquicos. Aqui o etnólogo depara com as grandes questões das possibilidades psíquicas dessa e daquela raça, dessa e daquela biologia desse e daquele povo. São questões fundamentais. Mas penso que aqui também estamos diante de fenômenos biológico-sociológicos. Creio que a educação fundamental das técnicas que vimos consiste em fazer adaptar o corpo a seu uso. Por exemplo, as grandes provas de estoi-


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cismo etc., que constituem a iniciação na maior parte da humanidade, têm por finalidade ensinar o sangue-frio, a resistência, a seriedade, a presença de espírito, a dignidade etc. A principal utilidade que vejo em meu alpinismo de outrora foi essa educação de meu sangue-frio, que me permitia dormir em pé num degrau à beira do abismo. Creio que essa noção de educação das raças que se selecionam em vista de um rendimento determinado é um dos momentos fundamentais da própria história: educação da visão, educação da marcha - subir, descer, correr. É, em particular, na educação do sangue-frio que ela consiste. E este é, antes de tudo, um mecanismo de retardamento, de inibição de movimentos desordenados; esse retardamento permite, a seguir, uma resposta coordenada de movimentos coordena dos, que partem então na direção do alvo escolhido. Essa resistência à perturbação invasora é fundamental na vida social e mental. Ela separa entre si, ela classifica mesmo as sociedades ditas primitivas: conforme as reações são mais ou menos brutais, irrefletidas, inconscientes, ou, ao contrário, isoladas, precisas, comandadas por uma consciência clara. É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência. Não é graças à inconsciência que há uma intervenção da sociedade. É graças à sociedade que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente. É graças à razão que a marinha francesa obrigará seus marujos a aprender a nadar. (...)


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des pido arthur moura campos

é poeta e estudante de arquitetura e urbanismo da FAU USP

sem carapuça ou carapaça se somos somos carcaça só caroço ou couraça o que não for carniça será somente casca


despido

ilustração: bárbara bucker

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tadeu dos santos é graduado em educação física e pedagogia, especialista em psicopedagogia, tem formação em psicanálise, é mestre em educação e doutor em ciências da religião

ilustrações: pedro henrique simplicio


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Historicamente o candomblé, no Brasil, desde os tempos de Nina Rodrigues, passou por inúmeros processos de mudança. Contudo, socialmente, ainda procura seu espaço, lutando por libertar-se de preconceitos, conquanto velados e em menor intensidade — é bom que se diga —, buscando impor-se como uma religião que não seja vista (ainda o é, infelizmente) como exótica e praticada “exclusivamente” por negros. Husserl, no século XIX, já chamava a atenção dos antropólogos sobre as dificuldades de comparação de nossa cultura, que tende para a objetividade e cientificidade, em relação às culturas que vivem na dimensão mítica. Os rituais dessas culturas, que sempre foram marcados por festas e danças, fugindo aos padrões culturais da Idade Moderna, incomodavam também as instituições religiosas e o Estado, que consideravam tais manifestações, produzidas especialmente pelos negros e índios, como parte de uma cultura inferior. Os reformadores denunciam que as festas estavam estreitamente associadas a momentos de luxúria, embriaguez e prazeres da carne. Malgrado todas as proibições, as festas para os negros escravos representavam um momento de descanso, devoção, renovação de ânimo e perpetuação de seus valores, mesmo distantes de sua terra. O candomblé conseguiria, assim, firmar-se entre nossa cultura ocidental, guardando em suas tradições os princípios da festa e da dança, para cultuar suas divindades. Essa capacidade de celebração, que inclui o Eros e folgança, fez com que o candomblé não se encolhesse a face da culpa e do terror, por serem suas divindades desprovidas de moralidade, tornando-se um culto alegre e festivo, graças à música e à dança, e oferecendo a seus adeptos uma maneira própria de se ver e estar-no-mundo, diferentemente de outras religiões, que pretende mudá-lo. A regra no candomblé é ser feliz na terra, com ajuda dos orixás, não havendo necessidade de internalização de valores morais que apontem para um mundo distante deste. Por ser uma religião ágrafa, os valores que o fiel aprende se dão por meio da inserção no terreiro e pela experiência vivida, pela qual se vai adquirindo um saber, construído paulatinamente por meio de uma estética do corpo, e não por meio de palavras.


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Essa leitura que o corpo irá produzir e manifesta não só pela iniciação, mas também com as incisões que ele sofre, as indumentárias que paramentam os orixás, a comida, as formas de saudação etc. Como se vê, a iniciação no candomblé é um longo processo vivenciado pelo adepto, atuando no corpo e com o corpo, o que faz dele um verdadeiro altar vivo. Neste passo reside a diferença com a religião ocidental, que enxerga o corpo sob um prisma dicotômico: alma e matéria. Ao abandonar a ordem mítica, a cultura ocidental, principalmente após Descartes, deu ênfase à palavra escrita, primando por um conjunto de sinais regidos por leis fixas (códigos), que levaram a uma construção metafísica de pessoa. O corpo é compreendido, nessa relação, como algo à parte do sujeito. No entanto, a cultura africana e o candomblé guardam muitos aspectos da cultura oral, em que os fatos não estão divorciados da atividade humana. Aprende-se ouvindo, repetindo, caçando, dando-se, portanto, primazia aos símbolos. O corpo passa a ser, assim, o principal espaço de apreensão do real. Neste artigo minha proposta é retomar o processo de iniciação no candomblé, com o fito de descrever como o corpo é construído esteticamente, tornando um texto vivo para ser lido pela sociedade. Para tanto, retomo as entrevistas realizadas com o Pai Cido de Òsun Eyín, durante os anos de 2001 e 2002, no Ilê Dara Àse Òsun Eyin, localizado em São Paulo. Apesar do hiato entre 2001 e 2018, a forma de conceber o corpo no candomblé́, abre a possibilidade para pensarmos a questão da sexualidade, do espaço e do tempo, da aprendizagem, doença e cura, e outros temas que estão no cerne das atuais discussões acadêmicas.

o borí Para o Pai Cido de Òsun Eyín, o borí: “É uma das principais iniciações para que o iniciado tenha a cabeça feita ou raspada. É uma oferenda feita independentemente do orixá. É para o psicológico, para o intelectual, é para o orí. O ori tem uma função importantíssima, pois sem cabeça ninguém vive. Essa oferenda é feita para Oxalá e Iemanjá, já que foram os criadores da cabeça. Quem moldou e quem criou.


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a iniciação A iniciação no candomblé é um processo lento e contínuo, cuja tradição reside na oralidade e, como tal, a palavra falada, portadora de força, é uma poderosa condutora de axé (força vital). Para Silva (2000, p.44), “falar é um ato mágico que impregna por contaminação simbólica o sujeito da fala e seu ouvinte”. Desenvolver uma escuta atenta e silenciosa, atrelada a paciência, humildade e respeito para com os mais velhos, é uma norma de etiqueta dessa religiosidade. Mello, Barros e Vogel (1998) descrevem esse processo no candomblé como uma pedagogia iniciática, na qual o neófito deve perguntar o mínimo possível e prestar a máxima atenção. Mello, Barros e Vogel (1998) atentam, contudo, para o fato de que o abiã nunca vai ao mercado sozinho; estará sem-

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Quem assumiu o nosso orí foi Iemanjá, então a iniciação de borí é obrigatória. Até depois da iniciação, antes de qualquer oferenda, a principal é o borí. Essa não é dispensada de jeito nenhum. Sem borí não há iniciação. O borí prepara o orixá, para que este possa manifestar-se. Cabeça ruim não tem orixá”. Observa-se, nas palavras de Pai Cido de Òsun Eyín, que a função do borí é restabelecer o equilíbrio, pois mitologicamente, embora cada pessoa escolha seu ori, os caminhos vão sendo traçados ao longo da vida.¹ Como criador do ori, a presença de Oxalá é fundamental nesse ritual, pois ele é o principal orixá funfun, filho de Olorun, encarregado por este de criar o mundo e os homens, recebendo os títulos de Ajala, Ajalamo e Ala-morerê. Outra presença obrigatória é a de Iemanjá, representação da individualidade, harmonizadora dasenergias positivas e negativas (o que explica a coreografia de sua dança, levando as mãos, alternadamente, para frente e para trás da cabeça). Após todo o ritual, a cabeça do noviço, o qual passa a chamar-se abiã, é com o ojá. Deitar-se-á então na esteira, coberto por um lençol branco, e repousará, com a cabeça voltada para o igbà-ori. Como observam Barros, Mello e Vogel (1998), a cabeça, recém-chegada a terra, deve descansar da longa travessia.


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pre acompanhado de um ebômin, detentor de maior experiência nos ritos, e graças a quem tomará contato com o novo mundo que se desvela. Ir ao mercado, portanto, para esses autores, representa uma das etapas que denominam de “rito de passagem”. Considerando as colocações dos autores supracitados, podemos sugerir que o processo de iniciação no candomblé, busca levar o adepto às origens da nascente dos valores culturais e sociais da tradição. Como relata Augras (1983, p.17), nessa religião “não se assimila apenas, mas se vive. Tamanha é a transformação do iniciado, que recebe novo nome: tornou-se outro. A iniciação, o recomeço, é, portanto, metamorfose”. Dessa forma, a expressão “rito de passagem”, adotada por Barros, Mello e Vogel (1998), torna-se mais adequada que ritual de iniciação, pois como observou o folclorista e etnólogo belga Van Gennep (1997), há, nos rituais de passagem, três fases distintas: a) separação: o indivíduo é afastado por um período do seu grupo; b) margem: um período liminar, considerado por Turner, ausência de estatuto, a morte; c) agregação: volta à sociedade, depois de ter adquirido um novo estado. Com efeito, podemos analisar o proposto pela teoria de Van Gennep e retomada por Turner (1974) a partir do relato do Pai Cido de Òsun Eyín: “O terreiro é uma cabaça e, como cabaça, representa o útero, o que nos permite comparar o processo de iniciação a um parto. Antigamente, a criança nascia e ficava sete dias sem receber visita, para que os de fora não trouxessem o mal do sete. Com o iaô dá-se o mesmo. Ele fica sete dias recolhido, porque passa sete dias guardado nas folhas e no efun, sete dias de renovação, todos os dias depois que ele raspa. Só sai sete dias depois da feitura, quando, antes de ganhar novamente às ruas, dirige-se ao barracão para dar o nome. Passa pelo processo de renovação, de segredo e de fundamentos, que a cabaça nos traz. O fundamento da gestação, do parto, da criação da vida e da morte. Porque o iaô, ao entrar para fazer o santo, tem que ter bem claro que está entrando para viver e para morrer, pois onde há vida, existe morte: início e fim, nascimento e pó (que é a terra). Jogamos o efun, pó branco que representa a argila, oriunda da terra. Alguns denominam esses sete dias de efun, outros, de prefuré; seja como for, é o tempo despendido para preparar o iaô. Eis por que a


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iniciação é algo importante: porque ela é a vida em si mesmo. Ela é a realidade da vida”. Como se vê, o processo de separação ocorre a partir do momento em que o fiel adentra o terreiro, para realização dos ebós, das oferendas, do borí e de outras obrigações. Ao perder o contato com o mundo externo, um outro mundo lhe é revelado, correspondendo àquilo que Turner (1974) chamou de liminaridade: o fiel passa por um processo de invisibilidade social, perdendo o estatuto antigo. Observa-se tal momento, no candomblé, a partir do instante em que o fiel, adentrando o terreiro, deixa para trás sua antiga vida. Tem-se, aí, a realização de uma pequena cerimônia, ocasião em que ele despe suas roupas, que são rasgadas, e banha-se numa fonte ou numa cachoeira (água doce), a simbolizar seu renascimento. A partir de então, o fiel passa a ser tratado, sucessivamente, como embrião, recém-nascido e criança de peito. Como nos revelou Pai Cido de Òsun Eyín, o neófito, quando em reclusão, recebe instruções, aprende cantos e danças e se inicia nos fundamentos da religião, por meio do que lhe foi sendo dito, feito e mostrado.

o assentamento Outra importante etapa do processo de iniciação se dá com o assentamento, também conhecido como “altar do orixá”.Esse processo ocorre com a fixação de objetos ou elementos da natureza (ferro, árvore) cuja substância e configuração abrigam a força dinâmica de uma divindade. Uma vez consagrados esses elementos, são eles depositados no ibá, e este é colocado no peji. A centralidade do conjunto é dada por um òta, pedra do orixá. Conforme relata Pai Cido de Òsun Eyín: “Os nossos orixás são feitos de pedras, e essas pedras são cultuadas centenas, milhares de anos. Enquanto eu existir, ainda que essa casa aqui exista por quatrocentos anos, quatrocentos anos essa pedra existirá junto com ela. Porque essa pedra será evocada durante os rituais, porque no candomblé os nossos orixás passam a ser pedra, e não coisa feita pela mão do homem. Essas pedras são colhidas e cultuadas desde o momento em que se faz o santo. Tendo eu, portanto, trinta anos de santo feito, são


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o orukò Segundo Barros, Mello e Vogel (1998), todo esse processo de metamorfose que se dá por meio do ritual de passagem, poderá ser lido na cerimônia do nome, que representa o nascimen-

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trinta anos que aquela pedra come sangue de bode todo ano. Daí por que passa ela a existir, todos os anos, aqui dentro, com as oferendas secretas, como se fosse Oxum. Essas oferendas são os rituais de evocação. No momento de evocação, essa pedra passa a ser uma peça importante na da gente”. Ressalta-se tal importância com o desvelo com que os filhos-de-santo cuidam do peji. O ossé (semana) constitui-se num rito semanal de limpeza e troca de águas dos altares dos orixás. Cada dia da semana é dedicado a um — ou mais — orixá (quarta-feira, por exemplo, é dedicado à justiça, por ser dia de Xangô). Para Prandi (2001), essa forma de agir vem desde os tempos imemoriais, do velho calendário iorubá, adaptado ao Brasil pelos afro-descendentes. Destaque-se, ainda, como outro momento relevante as cerimônias em que ocorrem sacrifícios. O ibá, como se viu, recebe o sangue dos animais imolados em oferenda. Essas cerimônias ocorrem nas festas dos orixás, nos processos de assentamento, na feitura dos filhos-de-santo e em outras obrigações, nas quais se fortalecem os vínculos entre o orixá e seus devotos. O sangue, como já mencionado, é um poderoso condutor de axé. Assim, há que se destacar a existência de dois momentos distintos de fixação do orixá: o primeiro, no orí; e o segundo, com o assentamento propriamente do orixá, ocasião em que se reafirmam os laços entre este e seu devoto, preparando-se, então, o iaô para incorporar sua divindade. Compreende-se facilmente que o assentamento é uma forma de preservação da memória ancestral, como relatou Pai Cido de Òsun Eyín: O candomblé não tem como proposta a reencarnação, pois o que fica é a memória; tudo que se memoriza, passa a existir. Se eu andei por aqui, passei por aqui, eu estou aqui. Morro, mas morre a carne, não minha memória, não o meu santo. Isso porque pedra não morre!


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considerações finais Todo o processo descrito acima, só é possível porque a noção de pessoa no candomblé é pensada como um todo, resultado de todas as partes do corpo, diferentemente da noção disjuntiva presente no ocidente. Todos os sentidos do corpo: olfato, tato, visão, audição e paladar, são considerados centros de força, e o processo de iniciação coloca em equilíbrio esses centros. Do mesmo modo que a pessoa é múltipla e construída ao longo do processo iniciático, o corpo manifesta suas múltiplas forças e é

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to. Para esses autores, o iaô que morreu para o mundo em algum momento passado, renascerá agora. As três saídas que ocorrem, nada mais são do que as três formas de mostrar o iaô. O orukò, comumente chamado de cerimônia do nome ou saída de iaô, é uma das festas públicas de maior importância dentro do candomblé, e uma das mais concorridas, também. Representa o nascimento de um novo filho, que, nas palavras de Barros, Mello e Vogel (1998), expressa o “crescei e multiplicai-vos” do candomblé. Como afirmam esses autores, uma casa de candomblé atesta sua existência a partir do momento em que tira seu primeiro barco de iaôs. Nesse universo religioso, a saída de iaô representa a capacidade do Ialorixá ou da Babalorixá de gerar novos filhos, atestando sua capacidade sacerdotal. Para o fiel, o orukò representa a ligação definitiva com a religião e o estreitamento dos laços com a nova comunidade. Essa ligação, todavia, se deu após um longo processo iniciático. A lavagem de contas e o borí, como já vimos, representam os primeiros compromissos firmados entre o fiel, a casa e o orixá. A sequência de outros rituais e o aprofundamento do fiel na seita consubstancia-se no processo de iniciação. Sendo assim, o orukò é uma forma de confirmar publicamente a inserção social do recém-iniciado no novo grupo. Após o ritual, o corpo do iniciado assume a forma de um texto vivo para ser lido na comunidade, trazendo a lume o status atingido pelo iniciado, sua visão de mundo e a característica predominante do grupo a que pertence.


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construído esteticamente, tornando um texto vivo para ser lido pela sociedade. O momento da leitura é o da festa e o da dança de transe, pois será nos rituais públicos, por meio do transe, que o fiel irá mostrar à sociedade o estágio espiritual em que se encontra, a visão de mundo do grupo e o ethos de seu povo. Serão os toques, as cantigas e os gestos que farão o público compreender que naquele corpo, se manifesta o sagrado, e poderá assim receber o axé. Dessa forma, o corpo se constrói, nos rituais do candomblé, graças à aprendizagem de valores sociais, culturais e religiosos, que se dá por meio da oralidade, dos atos, gestos e da experiência vivida no quotidiano do terreiro, que se expressam na festa pela dança

nota

¹ Exu, por exemplo, nos mostra a encruzilhada, ou seja, revela que temos vários caminhos a escolher. Ponderar e escolher a trajetória mais adequada é tarefa que cabe a cada orí, por isso equilíbrio e clareza são fundamentais na hora da decisão e é por meio do borí que tudo isso é adquirido (REIS,2000, p. 279)


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AUGRAS, M. O Duplo e a Metamorfose. Petrópolis: Vozes, 1983. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Trad. De Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes,1994 COX, H. A Festa dos Foliões. Petrópolis: Editora Vozes, 1974. GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GENNEP, A.V. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1997. LEITE, F. A questão ancestral: notas sobre ancestralidade e instituições ancestrais em sociedades africanas iorubá, agni, senufo. São Paulo, USP (Tese de Doutoradoem Sociologia), 1983. ______. Valores civilizatorios em sociedades negro-africanos. África, 18-19 (1): 103- 117 1995-1996. PRANDI, R. Os Candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: HUCITEC – EDUSP, 1991. ________. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ________. A religião e a multiplicação do eu: transe, papéis e poder no candomblé. Revista USP, n.o 9, pp. 133-144, 1991. ________. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.o 47, pp. 43-58, 2001. _________. Exu, de mensageiro a diabo: sincretismo católico e demonização do orixá Exu. Revista USP, n.o 50, pp. 46-65, 2001. ________. Conceitos de vida e de morte no ritual do axexê: tradição e tendências recentes dos ritos funerários no candomblé. In: Martins & Lody (org.). Faraimará – o caçador traz alegria. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. QUERINO, M. Costumes Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. REIS, A. M. Candomblé: a panela do segredo. São Paulo: Mandarim, 2000. RODRIGUES, N. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1977. SANTOS, J. E. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. SILVA, V. G. O antropólogo e sua magia. São Paulo: EDUSP, 2000. TURNER, V. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1974. VOGEL, A., MELLO, M.A.S., BARROS F.P.. A Galinha d’Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 1998.

o corpo como um texto vivo

referências bibliograficas


L

“Mas ela é apenas uma superfície de registro dos sinais da aparência. Romper sua superfície jamais permitiria que se visse o que há por detrás, já que a própria pele é um existir que se dá a ler, a ver e a tocar. Em vez de considerá-la como uma superfície intermediária entre o de fora e o de dentro, parece que, no dia-a-dia, ela é mais uma superfície de auto-inscrição, como um texto, mas um texto particular, pois seria o único a produzir odores, sons e a incitar o tocar.” ¹ henri pierre jeudy

¹JEUDY, Henri Pierre. O Corpo como Objeto de Arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002

E

32 henri pierre jeudy

PE


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yuji kodato

fotรณgrafo e realizador de documentรกrios, videoarte e filmes experimentais

territรณrios corporais

Territรณrios corporais


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territรณrios corporais


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39 territórios corporais

Territórios corporais é um projeto em artes visuais que utiliza macrofotografia para investigar o corpo humano. As imagens ampliam detalhes mínimos da pele em vastos territórios, abrindo uma série de questões, muitas vezes contraditórias, sobre como percebemos nossos corpos. São retratos que revelam algo fortemente íntimo das pessoas fotografadas — marcas pessoais e detalhes que nunca haviam sido vistos ou revelados de maneira tão próxima —, ao mesmo tempo que não oferecem condições de se reconhecer quem são. Fotografias que por vezes são interpretadas como que carregadas de uma verdade científica, graças à precisão de detalhes possibilitada pela lente macro, mas que por outras vezes se tornam completamente abstratas, colocando o corpo em um lugar de forte estranhamento em que não somos capazes de dizer ao certo o que vemos. Imagens que trazem uma confluência entre o belo e o feio, gerando sentimentos que variam do asco/repulsa ao encantamento/ curiosidade. Retratos ao mesmo tempo pessoais e universais, familiares e estranhos, que oferecem outras maneiras de ver, indagar e se relacionar com o corpo.


reflexĂľes sobre

cidade, olhos e pele

maria luisa buratto cardoso arquiteta e urbanista formada pela FAU USP


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cidade através de nossa pele... É curioso constatar que, apesar de sermos seres totalmente revestidos por pele, os olhos acabam sendo nossa principal - se não exclusiva - superfície de contato com o mundo. No dia a dia das metrópoles contemporâneas, a negligência da esfera tátil se expressa não apenas em nossos sapatos apertados e no suor de nossas camisas, como também na monotonia de texturas e na ortogonalidade infinita das ruas. Tendemos a evitar nos aproximarmos dos elementos da cidade e de seus habitantes, já que a lógica pragmática e higienista que rege nossa relação com o entorno urbano inibe os anseios de nossa pele e dos sentidos que derivam dela. Nós repelimos a cidade de nosso corpo e a cidade nos repele de volta. Para o arquiteto, crítico e professor finlandês Juhani Pallasmaa, embora nossa experiência de mundo seja resultante de uma combinação dos cinco sentidos, grande parte da arquitetura é produzida sob a consideração de apenas um: a visão. A supressão das demais dimensões sensoriais, em especial a tátil, estaria conduzindo os ambientes construídos ao empobrecimento e à perda da vitalidade, provocando uma sensação de isolamento e alienação nas pessoas. O corpo e os sentidos vem sendo progressivamente desconsiderados na construção dos edifícios e das cidades. Nas dinastias do Egito Antigo e na Antiguidade Clássica, as dimensões do corpo humano eram amplamente utilizadas na métrica, no peso e na materialidade da arquitetura. Segundo Pallasmaa, esse atributo foi perdendo força ao passar dos séculos e a monumentalidade e higiene ótica predominaram. Com a modernidade e seus decorrentes processos de globalização e mercantilização, a humanidade tem

reflexões sobre cidade, olhos e pele

Tenho me perguntado como seria viver a


42 maria luisa buratto cardoso

presenciado uma mudança crescente em sua experiência sensorial e perceptiva do mundo, a qual é refletida pela arte e pela arquitetura. Apenas recentemente começamos a redescobrir nossos sentidos negligenciados e a consciência de tal alienação corporal representa, de certa maneira, uma insurgência tardia contra a dolorosa privação da experiência perceptiva que temos sofrido, especialmente no contexto da Revolução Técnico-científico-informacional. Nesse ponto, Pallasmaa aponta que; se é dever dos arquitetos e urbanistas fazer com que a cidade tenha um papel emancipador ou curador e que intensifique a vida, é necessário promover uma reflexão muito mais elaborada sobre o modo com o qual os espaços vêm sendo pensados e construídos e como a relação destes com nossos corpos e nossos sentidos poderia ser melhorada. Podemos traçar diversas hipóteses para tentar compreender o motivo da omissão do tato, da audição, do olfato e do paladar na conformação das cidades contemporâneas. No caso de São Paulo, a precariedade de seu crescimento acelerado do século XX somada ao frágil apreço pelos espaços públicos fizeram com que a cidade se desenvolvesse sem uma verdadeira preocupação com o nível de desproporcionalidade e agressividade de suas construções em relação ao corpo dos cidadãos. Tal descuido culminou com a profusão de edifícios em escala monumental e dotados de formas, cores e materialidade totalmente desconexas entre si. Ora erguem-se novas pontes exclusivas para automóveis, ora surgem mais e mais shopping centers e condomínios murados que atuam como verdadeiros obstáculos na vizinhança. Todos eles refletem o nosso modo de


vivenciar a cidade, que é tomado por relações pragmáticas e automatizadas com o entorno e oferece pouquíssimas oportunidades de apropriação sensorial. Movidos por interesses de mercado, os principais agentes de produção do espaço urbano acabam por privilegiar aspectos como fluidez e eficiência em detrimento do bem-estar, convívio e atividades de lazer dos cidadãos enquanto pessoas. Segundo a arquiteta e professora Paola Berenstein Jacques, a implementação de soluções urbanas que priorizam a impressão visual da cidade perante o mercado e a encaram como peça publicitária de persuasão instantânea origina o fenômeno da espetacularização da vida urbana contemporânea. O termo refere-se ao processo urbanístico que associa a “Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, à produção do espaço urbano. Segundo Debord, a sociedade de sua época (passível de comparação com a nossa) estava contaminada por imagens e sombras da realidade, de modo que tudo o que era consumido e vivenciado teria se tornado uma mera representação, escondendo os reais acontecimentos e alienando a população. Jacques critica os projetos urbanísticos de fachada que sugerem ordem e consenso mas que ocultam os conflitos e as desigualdades existentes. Sob a justificativa da revitalização e da inovação, a arquitetura espetacular homogeiniza os espaços públicos e é responsável pela negação de seus dissensos, pelo empobrecimento das experiências corporais nestes espaços e, sobretudo, pela negação, eliminação ou ocultamento da vitalidade e identidade dos locais mais populares das cidades. Nesse contexto, ambientes históricos existentes são recriados e equipamentos de arquitetura monumental são implantados, originando processos como os de


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estetização e midiatização. Da espetacularização decorre a redução da experiência urbana e o enfraquecimento da corporalidade, uma vez que os espaços urbanos se tornam simples cenários, com pouco incentivo à apreensão corporal e sensorial através de ações como andar a pé. No contexto da metrópole, diferenças sociais, econômicas e culturais entre as pessoas condicionam, em muitas ocasiões, a existência de conflitos que se traduzem no desconfiança, no desconforto e no distanciamento. As estratégias de marketing urbano criam imagens homogêneas, pacificadas e consensuais da cidade procurando sanar tais conflitos, mas não conseguem apagar as diferenças latentes e pulsantes que são naturais aos espaços dissensuais. Os espaços públicos pressupõem a existência de conflito. Ainda que a população frequentadora apresente uma identidade comum, é impossível que os indivíduos partilhem dos mesmos interesses, valores e opiniões políticas ou que pertençam às mesmas classes sociais, gênero, faixa etária e etnia. A riqueza e a beleza destes espaços está justamente no enfrentamento de tais barreiras em prol de uma convivência cidadã sadia e construtiva. Segundo esse raciocínio, lugares que buscam a eliminação dos conflitos estarão, provavelmente, fadados ao esvaziamento, à desertificação e ao desinteresse. Utilizar-se do desacordo e do desentendimento como alicerces do planejamento urbano poderia, segundo Paola Berenstein, ser uma estratégia para criar ambientes mais vivazes e que efetivamente buscam lidar de modo ponderado e diplomático com as diferenças: “Não se trata de uma proposta de instauração de um ambiente urbano belicoso, mas sim de uma oposição à pacificação consensual e segregadora das cidades. Enquanto


a construção de consensos, que busca esconder os conflitos, é uma forma de despolitização, o desentendimento, a explicitação de dissensos, seria uma forma ativa de resistência, de ação política.” Afinal, viver a cidade através de nossa pele perpassa por entraves ideológicos e políticos. Ocupar os espaços públicos, reconhecer seu potencial e procurar ativar nossos receptores a partir dos estímulos sensoriais locais é um dos primeiros passos para uma nova forma de habitá-los. No entanto, para que estes espaços sejam capazes de promover tais impulsos, é necessário que as diretrizes projetuais valorizem a dimensão, sensibilidade, formato, movimentos, curvatura e até a temperatura de nossos corpos e que incorporem esses atributos na produção do espaço urbano. Isso significa, fundamentalmente, repensar construções com viés espetacular e consensual, procurando deslocar o projeto urbano da esfera visual para a tátil (e porque não, auditiva e palato-olfativa). Até que isso não ocorra, seguimos vivendo uma cidade revestida por meros cenários.

referências bibliográficas PALLASMAA, Juhani. Os Olhos da Pele. Editora Bookman, Porto Alegre, 2011. JACQUES, Paola Berenstein. Notas sobre espaço público e imagens da cidade. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 110.02, Vitruvius, jul. 2009 <http://www. vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.110/41>. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. ContraPonto Editora. Rio de Janeiro,1997.


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um corpo

solto

no mundo lucas henrique de souza

estudante de arquitetura e urbanismo da fauusp

Um corpo solto no mundo, como uma pequena bolha de ar dentro de um imenso reservatório de água. Sem lugar próprio, ou melhor, com alguns não-lugares impróprios, perpassa, como se fosse um inofensivo espírito, através de mil paredes, mas como um bebum, é indesejado. Um corpo fantasmagórico e embriagado, hora pela bebida, hora pela tristeza que parecem lhe impor. O cotidiano sufocante, a preguiça que não é preguiça, mas cansaço, as horas preso dentro de uma lata perfeitamente confeccionada e que tanto lhe ajuda, os dias e dias enfiado na caixa que lutou pra chamar de escola, e as sucessivas tentativas de ser feliz, mesmo com a falta de esclarecimento de quem deveria lhe ensinar a viver. O mesmo corpo, que já chegou além de onde podia, que supõe ir aonde quer, e que pretende avançar despretensiosamente para um futuro incerto e igualmente despretensioso, ainda em condição de bolha, se sente imerso num outro reservatório, desta vez cheio de líquido diferente, viscoso, difícil de ser percebido e retirado. Líquido que, de branco, não tem nem suas intenções. Isso porque parecendo evitar algo que é natural, esse corpo não diz, mas é santo. Sexualizam sua inocência e a sua expressividade, que quanto mais se pretende


47 um corpo solto no mundo

verdadeira e natural, é distorcida em impressões de outros corpos, curvados pelo peso de suas próprias existências. Mas o grande problema é que tudo não passa de abstração. Ou seria fingimento? Fingimento de um corpo que precisa trabalhar, mas não o faz porque não consegue - contradição tão patética que causa asco no sociedade. Não reconhecem o sufoco que a engrenagem faz para rodar o restante da máquina. Corpo sem trabalho nem é corpo, é saco de batatas. Fritas, repletas de gordura, sal e condimentos, fazendo mal ao corpo que, diariamente, adoece um pouco mais. Dos capilares às veias, das veias ao coração, do coração ao estômago, do estômago aos rins e, dos rins, aos fins. O corpo aprendeu na escola e, agora, aprende com a vida. Mas a verdade é que este corpo trabalha o tempo todo. Dos minutos em que planeja uma piada imbecil, passando pelos segundos em que ouve gargalhadas espontâneas ou condescendentes, até às frações de segundo em que sente emoções demasiado negativas com relação a alguém, a máquina não para de trabalhar. Trabalha bem enquanto máquina: adapta-se, é versátil, cabe em qualquer canto do galpão da vida. Enquanto corpo, porém, não passa de um ser humano, que gostaria de ter, como outro qualquer, o direito de escolha de ser aquilo que quisesse. Água, fantasma, bebum, rim, trabalho, máquina... corpo. Entre discursos de ódio, dogmas frágeis, casamentos problemáticos e imposições sem cabimento, o corpo continua solto. Constrói, dentro de sua própria bolha, uma casa igual a dos seus sonhos de criança: grande, minimalista, com paredes cheias de quadros que eternizam momentos felizes, marcantes e verdadeiramente inocentes de sua vida. E assim deve ser o mundo, com vários corpos flutuando, cada qual em sua película particular, uma mais frágil do que a outra, prestes a explodirem com as menores e mais fúteis das contestações.


lucas henrique de souza

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49 um corpo solto no mundo

ilustração: eduarda simões


50 clarice niskier

farol que se ilumina


51 farol que se ilumina

clarice niskier

atriz e escritora, deixou de lado a formação em jornalismo para se dedicar ao teatro. a profissão lhe rendeu o Prêmio Shell de melhor atriz por sua atuação em Alma Imoral

ilustrações: lia soares


52 clarice niskier

Um dos comentários mais surpreendentes que ouvi após uma sessão da peça A alma imoral, monólogo que apresento há alguns anos no teatro, foi o de uma artista plástica: “Parabéns, Clarice, eu sabia que você ia escapar da loucura da sua casa”. Levei um susto. Que diabos uma coisa tinha a ver com a outra? Mas depois entendi o que ela estava querendo dizer, e sorri. Não havia maldade alguma em seu olhar, nem na sua voz. Há 40 anos, sua filha, adolescente, foi uma das melhores amigas da minha irmã mais velha. Ela, muitas vezes, esteve em nossa casa. Era uma mulher atraente, à frente de seu tempo, estávamos na década de 1970, eu tinha uns 14 anos, minha irmã mais velha, uns 17. Ela presenciou algumas brigas entre minha mãe e minha irmã, que, em alguns dias, saía batendo a porta e ia embora com ela, para dormir na casa da amiga. Minha mãe chegou a ir à delegacia pedir que resgatassem minha irmã de sua residência. Meu pai, admirador de seu trabalho, aberto ao diálogo, não sabia o que fazer: minha irmã arrancara a parte de cima do biquíni no píer de Ipanema, Rio de Janeiro, e estava disposta a vivenciar sua liberdade sexual, fosse qual fosse o preço a pagar. Minha mãe desesperava-se, não aceitava. Exigia, com os nervos à flor da pele, obediência a uma ordem familiar mais conservadora. [...] O fato é que minha irmã mais velha perdera a virgindade antes do casamento e minha mãe se entregara ao sofrimento. Nasci em 1959, ainda presenciei isso. Tinha dias que nossa casa era realmente um pandemônio. Mas o que aquela artista vira em mim, aos 14 anos, para afirmar que sempre soubera que eu escaparia daquela fase tão difícil? Não faço a menor ideia. Arriscaria um palpite: meu corpo.


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Copacabana, agarrava com uma das mãos a barra de ferro dos ônibus e ia de carona com eles pelas avenidas. Lia pouquíssimo, escrevia muitíssimo. Minha irmã mais velha leu a coleção de Monteiro Lobato que tinha lá em casa, eu não. Foi ela quem me iniciou nas reinações da literatura. Eu era física. Guardo boas lembranças dessa época, muitos poemas, algumas medalhas, tudo no fundo do armário até hoje. Talvez meu corpo gritasse por socorro entre as cortadas na quadra, as braçadas na piscina, as boladas contra as adversárias em campo. Engessei a perna algumas vezes e, adulta, administrei duas crises de hérnia de disco na lombar. Talvez aquela senhora tenha escutado esse grito.Vontade louca de conversar.”Clarice é a mais comunicativa de todas”, dizia mamãe. Eu pressentia uma tragédia caso a comunicação não fosse restabelecida. Eu desejava o futuro. Ali, no teatro, nos abraçamos. Eu devia ter dito baixinho em seu ouvido: nos salvamos todos. Meu pai nunca aceitou levar minha mãe às obscuras clínicas terapêuticas dos anos 1970. Por meio de um esforço financeiro, levou-a para conhecer a Europa. Com toda a simplicidade de seu coração, quando voltou, ela disse: “se eu morasse na Europa, não teria ficado tão nervosa com sua irmã”. Nos grandes centros urbanos, a questão da liberdade sexual já estava sendo discutida, os jovens saíam da casa dos pais para morar com os amigos, tudo era mais natural e não demonizado como aqui. Amo meu pai por sua atitude. Se por um lado deixou a coisa se estender demais - foram muitos gritos e brigas por dois longos anos -, por outro sabia que um banho de cultura podia curar minha mãe, e curou. Assim que voltaram, ela aceitou fazer psicanálise. Depois, fizemos todos. Eu devia ter perguntado por sua filha, após o abraço. Mas não deu tempo. O encontro foi rápido. Lembro-me que ela disse que a peça era política. Sim, nossa alma é política. Mas eu devia ter dito: nosso corpo é político. Nele, as histórias das civilizações: sujeição e liberdade. Ele é o nosso destino, nossa espiritualidade, nossa encarnação, nosso ponto de chegada e de partida. Nele, a história de nossa família, êxodos, exílios, aconchegos, proteções, medos e traumas. “Há 40 anos você viu a alma imoral em meu corpo como hoje no teatro?”, eu devia ter perguntado. Mas não foi possível. [...]

farol que se ilumina

rida de obstáculos, cabo de guerra; e fui ciclista maluca nas ruas de

Lembro-me que ela disse que a peça era política. Sim, nossa

em uma colônia de férias; adorava atletismo, salto em distância, cor-

alma é política. Mas eu devia ter dito: nosso corpo é político.

primeira colocada em uma maratona com mais de cem participantes

Nele, as histórias das civilizações: sujeição e liberdade. Ele é o

ra de queimado, capitã de vários times em olimpíadas intercolegiais;

nosso destino, nosso ponto de chegada e de partida.

Da infância à adolescência, fui atleta. Mirim, amadora, mas atleta. Joguei vôlei, tênis de mesa, pratiquei natação; fui excelente jogado-


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[...] oh meu amor!, como te amo e como amo os teus terríveis malefícios, ah como te adoro, escrava tua que sou. Mas eu sou física, meu amor, eu sou física e tive que esconder de ti a glória de ser física [...] (1999, p. 28) Ai, a glória de ser física. Meus sonhos de outrora, o de entrar para o melhor time de vôlei do mundo era o desejo de alcançar com o corpo as alturas, na rede, na luta, na vida. Unir fôlego e raciocínio, inteligência e força física, entusiasmo e controle de si. Crença na unidade. Observador e observado. Farol que ilumina e é iluminado por dentro ao iluminar o outro que o vê, o transforma, o engrandece, o enfraquece, o ignora e o reinicia. Haverá prazer maior? Dor maior? Haverá outra condição possível nessa dimensão da vida? Não será

dos outros, objeto mecânico que comprova ou não dogmas resultantes de pesquisas em cadáveres dissecados, fantoche de preceitos ideológicos totalitários que impõem marcha em direção ao nada, suporte e utensílio do “Eu”, grito aos sete ventos minha crença em uma unidade substantiva e paradoxal em nós, capaz de interagir consigo mesma e com infinitas outras unidades, apesar da solidão incomunicável que a constitui, condição que, longe de ser fonte de impedimentos, é fonte preciosa de aproximações. Dar conta dessa unidade desvendada em pensamentos, consciências, instintos, vozes, pulsões, funções, movimentos, músculos, órgãos, gozos, ossos, libido, alma, recalques, sonhos, sangue, fezes, desejos, e influenciada fortemente, a meu ver, por aspectos tanto biológicos quanto culturais e socioeconômicos, demanda tal disposição para entendimentos, observações e relações que, muitas vezes, nos parece missão impossível. Afinal, para que tanto esforço? Para que nos abrirmos ao Outro e para nós mesmos, por meio de nossa unidade sensível? Melhor seria nos fecharmos em verdades absolutas. Mas, apesar de tudo, podemos reconhecer o que diz Maurice Merleau-Ponty:

o ignora e o reinicia. Haverá prazer maior? Dor maior?

sente, e não coisa imutável aos próprios olhos e aos olhos

que o vê, o transforma, o engrandece, o enfraquece,

[...] Se meu corpo é a manifestação material e imaterial de tudo o que é vivo e presente, de tudo o que vivencia e pres-

ilumina e é iluminado por dentro ao iluminar o outro

essa a nossa própria vida? [...]

Crença na unidade. Observador e observado. Farol que

clarice niskier

Escreve Clarice Lispector no conto A partida do trem, do livro Onde estivestes de noite:


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individual, de uma contradição fecunda que a submete ao olhar de outrem - é o remédio para o ceticismo e para o pessimismo. Se se admitir que a sensibilidade está fechada nela mesma e se buscar a comunicação com a verdade e com outrem somente no nível de uma razão sem carne, então não há muito a esperar. Nada é mais pessimista e cético do que aquele famoso texto onde Pascal, ao se perguntar o que é amar, observa que não se ama uma mulher por sua beleza, que pode perecer, nem por seu espírito, que ela pode perder, e conclui subitamente: “Portanto, nunca amamos ninguém, amamos somente qualidades”. É que Pascal procede como o cético que se pergunta se o mundo existe, e observa que a mesa é somente uma soma de sensações, a cadeira, outra soma de sensações e conclui por fim: nunca vemos nada, vemos somente sensações. Se, ao contrário, como exige o primado da percepção, chama-se de mundo aquilo que percebemos, e de pessoa, aquilo que amamos, há um tipo de dúvida sobre o homem, e de maldade, que se torna impossível. Certamente, o mundo que se encontra desse modo não é absolutamente seguro. Mede-se a ousadia do amor, que promete além do que sabe, que pretende ser eterno, embora uma doença, um acidente, talvez o destrua... Mas é verdade que, no momento dessa promessa, ama-se para além das qualidades, além do corpo, além dos momentos, mesmo não sendo possível amar sem qualidades, sem corpo, sem momentos. (2015, pp. 51-52)

farol que se ilumina

O primado da percepção - o reconhecimento, no próprio coração de nossa experiência mais


56 clarice niskier

Certa vez, apresentei A alma imoral em um festival. No teatro trabalhava uma funcionária analfabeta, como nos contou depois, responsável pela limpeza do camarim. Ficou comigo até a hora de eu entrar em cena. Quando a peça acabou e retornei ao camarim, encontrei-a chorando, com as mãos apoiadas na vassoura, o queixo apoiado nas mãos, entregue ao mais fundo sentimento. Amir Haddad, diretor teatral, estava comigo,”o que aconteceu?”, perguntamos. Ela disse que tinha assistido ao espetáculo: “Não entendi nada, mas achei tão bonito”. Amir, na mesma hora, falou: “Minha amiga, você entendeu tudo. Olha só como você está. Só não sabe verbalizar o que entendeu”. Ela nos olhou. Depois de um tempo, disse: “Isso foi”. Experiências de vida, no fluxo sanguíneo das ideias. Voz, som, sopro, palavras e gestos formam um corpo, acariciam a pele do outro, evocam afetos. O que a senhora do teatro entendeu teve enorme impacto sobre mim. Eu não sei o que ela entendeu. Sei que A alma imoral traz a filosofia e a religião para o domínio do corpo, legitima o corpo nesses domínios do saber e do sagrado. [...] Acredito no primado da percepção e no primado da percepção do público. Ele não é burro, como muitos gostam de afirmar. Pode não gostar de nós, é um direito dele. E, claro, pode não nos entender. Mas o contrário também é verdadeiro. Se nós não o vemos, ficamos burros. O desejo obsessivo do desejo do outro sobre nós é uma fixação perversa, masoquista, motivo de inúmeras frustrações, chantagens emocionais, vaidades excessivas e até suicídios, sim-


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Um dia, na saída do espetáculo, uma atriz me disse na lata: coloquei silicone nos seios, você acha que eu poderia fazer a peça nua como você faz? Fiquei olhando um tempo para ela. Não sabia o que responder. Disse mais ou menos o seguinte (e isso vale dia a dia para mim): “olha, se você realmente se sentir nua diante do público, vulnerável, desarmada, conectada com a dimensão humana da mortalidade, pode, claro”. Nossa unidade é nossa unidade. O importante é compreender que o “todo” é maior do que a soma de suas “partes”. Os autores do artigo “Corpo, saúde e doenças”, Roy Porter e Georges Vigarello, do livro História do corpo, afirmam, no segmento do

ra do teatro entendeu teve enorme impacto sobre mim.

acariciam a pele do outro, evocam afetos. O que a senho-

Voz, som, sopro, palavras e gestos formam um corpo,

artigo intitulado “A anima”, o seguinte:

Alguns aspectos da filosofia natural de Newton incentivaram os cientistas a rejeitar concepções estritamente mecanicistas do corpo e a levantar questões mais amplas sobre as propriedades da vida. O que implicava reabrir antigos debates sobre temas antigos, como a doutrina da alma. A obra de Stahl é muito significativa sob este ponto de vista. Fundador da eminente escola prussiana de medicina, Georg Ernest Stahl (1660-1734) defendia argumentos antimecanicistas clássicos. Os “todos” são maiores que a soma de suas partes. A atividade humana dirigida para fins supõe a presença de uma alma, compreendida como poder de presidência, intervindo de modo constante, a própria quintessência do organismo. Mais do que um “fantasma” cartesiano “numa máquina” (que está ali presente mas essencialmente separado dela), a anima (a alma) de Stahl é o veículo sempre ativo da consciência e da regulação fisiológica: um guardião, um protetor contra a doença. A doença, segundo ele, é um efeito, um distúrbio das funções vitais provocado por males da alma. O corpo, estritamente falando, é guiado por um espírito imortal. Porque a alma age diretamente nem a anatomia geral, nem a química tem no fundo grande poder explicativo: para compreender as operações do corpo é preciso compreender a alma e a própria vida [...] (2012, pp. 466-467).

farol que se ilumina

bólicos ou não. Além de operações plásticas questionáveis.


58 clarice niskier

De forma intuitiva, desde sempre compreendi o corpo como um lugar para o desnudamento e expressão da alma, nunca como o lugar de seu aprisionamento. Como o texto da peça A alma imoral afirma, há uma tensão em nós entre as forças do corpo moral (forças conservadoras) e as forças da alma imoral (forças transgressoras), que forma um Ser que luta bravamente para não se dilacerar. A alma briga por nós e briga para sobreviver em nós. O corpo se reproduz e se conserva e a alma transgride as leis desse corpo, para preservá-lo, não por meio da reprodução, mas pela evolução. Esse é o coração do texto do rabino Nilton Bonder, autor do livro A alma imoral, no qual a peça se baseia. No coração da matéria, o imaterial. No coração do espírito, sua porção mortal. [...] O cartunista francês Jean Giraud, conhecido pelo pseudônimo Moebius, criou uma história em quadrinhos intitulada “O homem é bom?”. Um astronauta está perdido em um planeta. O planeta é habitado por selvagens. Milhares de selvagens começam a persegui-lo. Ele sobe em uma pedra para proteger-se. Os selvagens o capturam e o levam para o chefe. O chefe arranca um pedaço de sua orelha e a mastiga. Argh, ele a cospe no chão. Não, o homem não é bom. Os selvagens vão embora e abandonam o homem nu e perplexo, no planeta estranho. Moebius surpreende nossa lógica, acostumada a pensar se o homem é bom ou mau em sua essência, não em sua carne, e faz uma crítica mordaz, por meio do corpo, ao homem, lobo do homem. Nossa carne não é boa se desprovida de um corpo. O esquartejamento do corpo para deleite e consumo é uma monstruosidade. Todo esquartejamento é uma monstruosidade. Um peito de silicone não pode presidir um corpo.

Todas as monstruosidades da nossa história estão ligadas à tentativa de eliminar do corpo a alma, como afirma Nilton Bonder e tantos outros autores. Todo conhecimento depende do corpo para existir. Esse não reconhecimento é a tragédia da nossa civilização.


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do seu destino, tira o continente de afetos dos seus pés. Todas as monstruosidades da nossa história estão ligadas à tentativa de eliminar do corpo a alma, como afirma Nilton Bonder e tantos outros autores. Todo conhecimento depende do corpo para existir. Esse não reconhecimento é a tragédia da nossa civilização. (Lembro-me de minha avó, imigrante polonesa, que confundia a palavra destino com intestino. No hospital, já bem idosa, um dia me disse: “meu destino está doendo muito”; lembro-me do meu parto, uma cesárea, quando me percebi dentro e fora ao mesmo tempo, essa doideira, essa fronteira, a barriga aberta, o médico dizendo ao meu marido, “vai, tira seu filho”, “não, pode tirar você”, os risos, a comoção, as contrações cardíacas da alegria, o recém-nascido, sua corporeidade absurda, o nascimento, festa absoluta do corpo, tanto sentido faz a vida, prazer e medo de pertencer a essa roda de aparecimentos e desaparecimentos, a essa humanidade, cuja carne não é boa, cuja carne é imprescindível, é a delícia das delícias, os suplícios dos suplícios, cuja anatomia é só um mapa do tesouro, da unidade rara e tensa, original e vulgar, contida em bilhões de seres humanos sobre a Terra, por onde passou o poeta que grita: “comigo a anatomia ficou louca / sou todo coração”, ‘Maiakovski’).

farol que se ilumina

E o terror político decepa os corpos, o ser-com-o-outro, a alteridade, arranca as vísceras do ser humano, altera a rota


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escrito a partir das experiências no grupo de estudos: laboratório de dança, moldagem e escrita, ministrado entre junho e julho de 2018 por erika kobayashi, filipe dos santos barrocas, mariana viana e renato jacques, no sesc consolação.

marina dubia

artista e escritora

SOBRE CASCAS MORNAS, DESEJO QUE AFINAL FOSSEM MINHAS.

marina dubia

A cebola; ainda é a imagem mais pungente desse modo de crescimento. Camadas internas, novas, empurram as camadas primeiras, mais externas, à periferia, o tempo atravessa a carne fazendo do cerne pele; o essencial é excretado continuamente. Dizer em sequência seria evocar uma conexão algo profunda de continuidade e comunhão; as camadas partilham apenas de um núcleo (ou aparelho) excretor comum. Cada camada tem sua estrutura, suas fibras; o que agora é casca já foi promessa. O que agora é casca expandiu, distanciou, foi de encontro ao mundo por uma necessidade que não é sua, foi de encontro à morte por demanda do futuro, por demanda das ondas implacáveis do crescimento, pelo espaço da necessidade, eu não é uma opção. O novo, e a vida, engajam um sistema de pressões, de dentro para fora – ou é a morte, o mundo e a oxidação, que agarram e puxam o interno? Produzimos cascas sobre cascas, peles sobre peles (também imagens sobre imagens), de dentro para fora sob pressão interna e demanda externa. A expansão desdobra e empurra – o processo tende à lentidão, à minúcia, e à força. Sem perfeccionismo. Camadas migram à superfície com graus variados de atenção: caem, e aí nos damos conta. Algo havia se formado ali. E como dói o ar, nem sempre fresco, sobre a superfície delicada e fina, ainda algo macia, que acaba de ser exposta. E a coisa que caiu, um molde da coisa de onde caiu. Frente e verso é uma visão viciada. O verso da casca é a frente atual da coisa. O passado dança na nossa cara, e prevê o futuro; mesmo assim nos surpreendemos quando cai o véu. É que a ligação entre passado e futuro é apenas esta: estarem conectados. Conectam-se pelo movimento das cascas, pela espessura do molde, pela travessia.


sobre cascas mornas, desejo que afinal fossem minhas

ilustração: clara oliveira gastelois

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62 bruno stephan

O CORPO INEVITÁVEL DO ARQUITETO Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado (FOUCAULT, 2009, p. 7 - 8). Para Michel Foucault, o corpo é uma prisão. Em O Corpo Utópico e a Heterotopia, reúnem-se duas conferências dadas pelo filósofo que parecem comentar as repercussões de sua própria obra e colocar provocações sobre elas. São textos curtos, mas que lançaram, com efeito, uma temática eternamente contemporânea. Foi o trecho acima, em específico, que me tocou durante meus estudos, pela identificação pessoal com a própria descrição de Foucault sobre si. De que forma ler Foucault complementa o entendimento do corpo? Trabalha-se aqui com definição de Marcel Mauss: o homem total é algo além dos processos puramente biológicos. Incorpora-se também uma faceta psicológica e social para nossa existência. Foucault, sob esse ponto de vista, descreve o corpo como o nosso condicionamento na realidade. Uma fatalidade inescapável, e ao mesmo tempo a nossa única forma de conhecer seus arredores. Para cada indivíduo, seu corpo é o limite de sua exis-

bruno stephan

arquiteto e urbanista formado pela FAU USP


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“(...) talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental (FOUCAULT, 2013, p. 9). A alma utópica a qual Foucault se refere não é apenas a ideia alma perenal cristã em si, mas a própria concepção de uma parcela da existência que não tem repercussões materiais, que está alhures, para além dos fatos. Poderia usar-se analogamente o conceito de mente, psique, inconsciente ou qualquer caracterização que desvincula o homem da existência corpórea. A alma é a razão, a essência. O corpo é ignorante, um mal necessário. O mito da alma é a utopia no mais alto grau. Desconstruir o mito da alma, contudo, não significa que esta ideia seja de todo uma mentira deslavada, ou, novamente, que o corpo não exista para além de sua biologia. É, na prática, a manifestação de um ceticismo muito característico do teórico. Uma tentativa de pontuar como o estabelecimento de uma universalidade como a da alma poderia vir a ser usada para fins de controle. Em Vigiar e Punir, explica:

o corpo inevitável do arquiteto

tência, seu mundo. É como se articula e como constrói sua própria noção de subjetividade. É a moldura invariavelmente diminuta através da qual absorvemos os fenômenos objetivos. É a condição de um nada (um corpo humano, limitado e efêmero) que é tudo (afinal, compõe toda nossa existência). Qual seria então a antítese do corpo? Para o autor trata-se da utopia – o local sem corpo. A corporeidade é fim de todas as utopias – estas que são afastadas propositalmente da história, do tempo, da vida. O utópico, ideal, tem como prerrogativa de existência a definição de uma universalidade, norma de perfeição que se deseja atingir. Para tanto, o anormal é considerado imperfeito. Entretanto, existe nos corpos a diversidade e impureza. Por isso, a utopia precisa apagar o corpo para tentar se efetivar – extinguir aquilo que é anômalo.


“Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em tomo, na superfície, no interior do corpo (...) Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber (...) (FOUCAULT, 1987, p 32 - 33). A alma é a própria virtude de uma natureza humana, e se coloca, assim, como o homem de fato. Talvez por isso seja uma acepção tão perigosa, por se situar como ao mesmo tempo natural e externa. Há quem possua a crença que seria possível incidir sobre a essência dos homens sem agir sobre seus corpos. E ainda extrapolaremos essa colocação: “Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados (...); sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma ‘alma’ o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” (FOUCAULT, 1987, p 33). Veem-se aqui como existem projetos que se apropriaram do entendimento de alma para efetivar seu poder, justamente com a justificativa de não estar incidindo sobre os corpos, mas sobre a própria natureza humana. Para tais narrativas, o homem sempre está em algum lugar diverso. A alma se sobrepõe ao corpo e nos faz esquecer-se de nossas condições verdadeiramente humanas. Os projetos utópicos seriam então, dispensáveis, cruéis, frívolos? Abandonemos por um momento todo o ceticismo e


65 o corpo inevitável do arquiteto

prossigamos além. Percebe-se que – embora apresentado por Foucault em toda sua nudez e perversidade – o utópico é interessante a sua maneira. A ideia seria de que é apenas a partir da materialidade fornecida pelo condicionamento de um corpo que se pode desenhar efetivamente a utopia. Se ela é, verdadeiramente, um projeto de uma perfeição, a premissa do que é perfeito só pode ser dada a partir de um ponto de imperfeição. A utopia nunca sucederá no hic et nunc, mas é fruto sempre da nossa existência material, de nossa corporeidade que se quer exaltar ou combater. Nossa própria forma de existir que gera a vontade de traçar espaços utópicos. Podemos imaginar lugares nos quais não sejamos, lugares da alma. Mas, também é só a partir do ser que podemos ter vislumbres do não-ser. De qualquer maneira, o ser do corpo é o ponto de partida para tudo.


66 bruno stephan

É aqui que Foucault remaneja todo o seu discurso em relação ao corpo. Traça um discurso diametralmente oposto ao colocar que: “Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, que era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia. Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante” (FOUCAULT, 2009, p. 14). Da mesma maneira que estamos inevitavelmente vinculados a uma realidade concreta, também ela se apresenta para nós de maneira altamente subjetiva. Sempre nos posicionamos em relação a ela. O corpo é a maior das nossas singularidades. É a maneira como nos definimos e definimos o nosso estar no mundo, num processo errático, incerto, nos afastando ou distanciando de nossas utopias. Todos os lugares só existem para nós como subjetividades, portanto o corpo é o grande criador de todos os lugares, reais ou não. Mesmo que a utopia tenha uma relação complexa com o corpo, o que podemos concluir enfim é que elas são, por excelência, inalcançáveis. Seriam aperfeiçoamentos ou inversões de sociedades vigentes, estabelecidos por analogias – mas essencialmente irreais. Qual teria sido a necessidade de traçar um panorama tão complexo desse conceito? Segundo o filósofo, toda a utopia parte do corpo, e posteriormente tem uma chance de retornar à existência. Todas as utopias possuem seu corpo, mas algumas específicas são efetivamente realizáveis e podem adquirir espacialidade. São elas as heterotopias. São elas onde o imaterial ganha forma. Um espaço carregado de significado, de uma construção social, no qual aquilo que a princípio pertenceria ao campo da alma pode-


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Renova-se a perspectiva futura do ofício arquitetônico. O arquiteto, para além de todas as contradições e limitações do corpo, pode ser um estudioso e planejador de heterotopias. Pode materializar e fixar aquilo que se supunha sem corpo. Seu trabalho é infinito, já que todas as culturas criam tais lugares, que aparecem de inúmeras maneiras: A biblioteca é a heterotopia do conhecimento e do tempo, por tentar acumular dentro de si todo o saber da história humana. O espelho é a heterotopia de si mesmo, por possibilitar, ainda que o indivíduo veja a si próprio. O cemitério é a heterotopia da morte. A mesa de jantar é a heterotopia da família. A escola é a heterotopia da disciplina... “E se se imagina, enfim, que o barco é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar que vive por si mesmo, que é fechado sobre si e é entregue, ao mesmo tempo ao infinito do mar, e que, de porto em porto, de bordo em bordo, de bordel em bordel, vai até as colônias buscar o que elas guardam de mais precioso em seus jardins, vocês compreenderão por que o barco foi para a nossa civilização, desde o século XVI até nossos dias (...) a maior reserva de imaginação. O navio, essa é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos definham, a espionagem substitui a aventura, e a polícia, os corsários” (FOUCAULT, 2013, p. 121). A heterotopia e, por consequência, a heterotopologia não são apenas necessárias para a compreensão da sociedade sob a perspectiva do corpo: tentar estabelecer um espaço heterotopológico, arrisca-se dizer, é a única forma de se projetar levando em consideração o corpo inegável dos indivíduos, suas vidas.

o corpo inevitável do arquiteto

ria finalmente tomar forma, tangível e sensível. A consideração sobre a heterotopia é a primeira vez na qual parece que Foucault nos fornece uma perspectiva esperançosa – uma fuga, em termos, para a prisão que é nosso corpo. Elas conformam todas as nossas possibilidades de viver enquanto habitantes de um corpo. Estes cenários podem ser catalogados, categorizados, estudados no que ele define como heterotopologia.


68 bruno stephan

Seguindo o viés heterotopológico preconizado pelos escritos foucaultianos, decidi para minha conclusão de curso de arquitetura encarar diretamente o problema do corpo como prisão. O nada que é tudo; esse viria a ser o título do projeto: o corpo que ao mesmo tempo nos aprisiona e condiciona mas no qual existem ao mesmo tempo todas as possibilidades de vida e liberdade. Uma espécie de aquário, que isola cada um de nós, mas que é propriamente nosso mundo, nossa realidade. Sentia que nada seria melhor para exemplificar essa temática do que o programa arquitetônico da piscina pública. Um local onde o corpo de todos está em evidência, desnudo. Em que todos estão à deriva. Não há maneira correta de se nadar, nem um objetivo unívoco para se alcançar – todos seguem sem rumo, sem finalidade, mas prosseguem nadando. Dirigi minha atenção para a periferia sul da cidade de São Paulo ao notar uma excepcional falta dessa programática na região. Mesmo sendo uma delimitação cercada por represas e mananciais, o contato com a água parecia inexistente dada a falta de locais de banho públicos. Ao mapear os Centros Educacionais Unificados (CEUs) de São Paulo (que possuem cada um seus complexos aquáticos próprios, enfim), notei uma península da Represa Billings em ponto intermediário entre os três centros mais próximos (Três Lagos, Navegantes e Vila Rubi). Era o Parque Cocaia, que despertara meu interesse como nenhum outro local já havia. Aos poucos tentei estabelecer vínculos com a localidade. Pesquisando notícias por acaso notei uma entrevista com uma habitante dali. Era Sônia Vieira, diretora de uma escola pública, a EMEF Padre José Pegoraro, falando sobre sua vivência como mulher, negra, mãe solteira e periférica. Entrei em contato com a instituição e logo estava visitando-a constantemente. O terreno da Padre José Pegoraro era deveras curioso por se tratar de uma imensa gleba ocupada por pastos (raridade no Grajaú, com seu espaço urbano ocupado por


69 o corpo inevitável do arquiteto

quadras grandes e densas) da qual só uma parcela (ainda que com área considerável) tinha sido reservada para o colégio. A área destinada para o esporte e recreação era surpreendentemente extensa, com duas quadras externas e uma arquibancada. Logo descobri que esse ambiente ficava aberto durante os fins de semana e nas férias. Seria isso por exigência da diretora, apesar da preocupação com a segurança do patrimônio e zeladoria. Embora pudesse se ver a enorme represa daquele terraço, o contato com a água era inexistente: a chegada no Reservatório Billings era impedida por ocupações irregula-


70 bruno stephan

res. Depois ainda soube que a população considerava aquelas bandas impróprias para o nado por conta da poluição e contaminação das águas. A possibilidade de levar a figura da piscina pública como espaço democrático, de libertação do corpo estava lá, de toda forma. Estava naquele descampado, naquelas quadras e naquela instituição. A vontade de um refresco num dia de calor. O anseio daqueles corpos por recreação na água que era vista no horizonte (porém intangível) era latente. De forma a não intensificar a problemática da alienação e domesticação dos corpos, procuramos – eu, juntamente com os alunos e equipe da Padre José Pegoraro – estabelecer uma dinâmica de projeto participativo. Mapeamos a identidade, as idiossincrasias do bairro realizando dinâmicas, discussões, debates, aulas e atividades das mais diversas naturezas com os estudantes. Mantínhamos nossos olhos aguçados e registrávamos todas as ocasiões escrevendo, fotografando e desenhando. No fim, conseguimos realizar, com nossa força limitadíssima de trabalho, intervenções pontuais na escola. Além disso, produziu-se todo um levantamento emotivo, que foi editado e catalogado por mim e pelos participantes da empreitada. O projeto em si – desenhado para acompanhar esse estudo – era um percurso urbano articulado por piscinas públicas (nunca fugi desse objetivo primário). Tentava englobar pontos citados, discutidos e desenhados pela população do estabelecimento. Considero que o processo de aproximação e aprendizado tenha sido infinitamente mais precioso do que o que foi projetado ou poderia ser projetado por mim sozinho. O desenho surgiu como aplicação mais rica e embasada do que estivera estudando, que era, para todos os fins e meios, a vida. Estava desenhando arquitetura, afinal, para o corpo apreendido do Grajaú e não para almas incorpóreas, inventadas, impostas. Trabalhava com necessidades e potencialidades que nunca teria notado sem caminhar pelo Parque Cocaia, sem conversar e me divertir com os estudantes, sem conhecer a equipe trabalhadora do colégio.


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referências bibliográficas MAUSS, Marcel. “As Técnicas Corporais” (2003b). “Relações Reais Entre a Sociologia e a Psicologia” (2003a). Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 [1934]. FOUCAULT, Michel. "De espaços outros”. Estudos avançados [online]. 2013, vol.27, n.79, pp.113-122. ISSN 0103-4014. Disponível em: < http://dx.doi. org/10.1590/S0103-40142013000300008 >. Acesso em: 27 jun. 2017. ______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. ______. O Corpo Utópico e as Heterotopias. São Paulo, SP: Editora N-1, 2009 (1ª edição). ______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985. ______. História da Loucura: Na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 2012. ______. Vigiar e Punir. Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 2009 (37a edição).

o corpo inevitável do arquiteto

Terminei o longo estudo do bairro e a atividade projetual com a crença forte de que o estudo do corpo deveria ser um paradigma do ofício do arquiteto. Projeta-se não para criar utopias arrebatadoras, mas para se adequar aos desejos e sentimentos de seres humanos de carne e de osso, que vivem vidas com complexidades só percebidas colocando-se os corpos inegáveis em proeminência – tanto os daqueles que um dia poderão vir a habitar sua obra como o do próprio arquiteto.


per cur so

a prรกtica do parkour e a escala do corpo na cidade

nicolas le roux

bstรกculos no

incorporar os 72


nicolas le roux

arquiteto e urbanista formado pela FAU USP

fotos

: thiag

o sim

bol

“ ‘Irregularidades’, tais como diferenças de nível, ocorrem em toda a parte, e, em vez de nos esforçarmos em minimizá-las, trarmos

em

deveríamos, articulá-las

ao tão

contrário,

nos

conscientemente

concenque

pos-

sam ser exploradas ao máximo. ” HERTZBERGER, 1991 O corpo humano é capaz de se movimentar de maneiras muito variadas, apesar de, muitas vezes, poucas delas fazerem parte do nosso repertório. O processo de sedentarização das nossas sociedades acabou nos acomodando com o andar como principal forma de movimentação, e ainda assim muitos de nós precisam de recomendações médicas para fazer isso alguns minutos por dia. A mecanização nos permitiu alcançar novas distâncias e novas alturas. Contudo, se por um lado podemos atravessar a cidade com muito mais facilidade do que alguns séculos atrás, temos cada vez menos liberdade de nos movimentarmos em situações cotidianas sem o auxílio das máqui-


74 nicolas le roux

nas. A prática do Parkour é uma maneira de recuperar a consciência para a nossa capacidade de movimentação,

e

pode

se

tornar

uma

ferramenta

podero-

sa para os arquitetos enxergarem o espaço construído através de um olhar sensível à escala de movimentação do corpo. O Modernismo abraçou a máquina como grande conquista da humanidade e incorporou na arquitetura e na forma urbana a mecanização como diretriz. Le Corbusier, um dos principais precursores da Arquitetura Moderna, descreve em diversos textos sua admiração pela máquina e como ela se tornaria uma verdadeira extensão do corpo humano. A fusão seria tão poderosa que a arquitetura deveria ser pensada para incorporar a mecanização em sua forma e, consequentemente, na forma urbana. Em Nova York Delirante, Koolhaas descreve como duas importantes invenções exploradas ao extremo permitiram a Nova York se tornar o que é hoje: o carro e o elevador. Grande parte da dinâmica urbana passou a depender


75

incorporar os obstรกculos no percurso


76 nicolas le roux

tanto dos deslocamentos horizontais de longas distâncias, permitindo às cidades se expandirem infinitamente para que seus habitantes pudessem morar a quilômetros de distância do trabalho, quanto dos deslocamentos verticais mecanizados, já que dificilmente se constroem nos grandes centros urbanos edifícios com menos de 10 andares, e imagine alguém morar no 35º andar e ter que subir 656 degraus a cada vez que chegar em casa. Se, por um lado, essas máquinas nos levaram a construir grandes cidades e novas formas de habitá-las, por outro lado, cada vez mais fomos fazendo cidades que não nos permitem nos movimentarmos sem a ajuda de equipamentos. Aquilo que deveria nos libertar também nos aprisionou. Em meio a esses centros urbanos cada vez mais construídos para a máquina, surge a prática do Parkour. Essa forma de movimentação foi criada há pouco mais de 20 anos por um grupo de jovens em Paris. Ela deriva de um conceito chamado “Método Natural”, modelo de treinamento físico idealizado por Georges Hébert em meados do século XX. Segundo esse método, o treinamento físico incorporaria movimentos encontra-


77 incorporar os obstáculos no percurso

dos em grupos humanos expostos à natureza, como a corrida, o equilíbrio, o quadrupedal (andar em quatro apoios), o salto e a escalada. Essa estratégia permite fortalecer o corpo ao mesmo tempo em que se pratica a movimentação. No Parkour, esse conceito foi adaptado para a movimentação na cidade, partindo da ideia de conseguir ultrapassar obstáculos e se movimentar livremente pelo espaço urbano, onde era praticado. Desde então, os praticantes de Parkour, chamados de traceurs*, vem desenvolvendo novas formas de se movimentar pelo espaço e exploram as diferentes situações urbanas como oportunidades de criação: uma escadaria, um conjunto de muretas, desníveis de calçadas e praças, guarda-corpos e corrimãos. Todos esses elementos que constroem os espaços públicos podem *Traceur, tradu-

se tornar palco para a prática do Parkour. Enquanto costumamos

zido do francês sig-

vê-los como obstáculos ou simplesmente utilizá-los da manei-

nificaria “aquele que

ra usual, o traceur os vê como oportunidades de movimentação,

traça”. Faz alusão a

explorando diferentes possibilidades de uso em um percurso al-

traçar um percurso a

ternativo. Os desníveis não precisam ser vencidos através das

ser percorrido.

escadas. Os guarda-corpos não precisam representar barrei-


nicolas le roux

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incorporar os obstรกculos no percurso


80 nicolas le roux

ras. As muretas não precisam ser contornadas. Não se trata de se colocar em risco, mas sim de explorar novas formas de uso do espaço dentro das possibilidades oferecidas pelo corpo. Em Paris, a escala do corpo ainda está presente em grande parte da cidade, já que muito dela se construiu antes da mecanização e do pensamento modernizador que incidiu na maneira de desenhar o espaço urbano. Nos edifícios de 6 andares típicos da cidade, eram os primeiros os mais valorizados, próximos da rua e fáceis de acessar. Em cidades como essa, as pequenas praças e espaços públicos são muito presentes no tecido urbano e fazem parte do cotidiano dos habitantes, entremeadas às ruas e passagens. Mas em muitas outras, mais novas, como é o caso de grande parte do Brasil, o tapete asfáltico nivelou o espaço para a fluidez do veículo. Os edifícios foram se tornando maiores e mais isolados uns dos outros. Os espaços públicos deixaram de fazer parte do cotidiano e a cidade foi sendo pensada de maneira funcional: a rua é desenhada para o escoamento de veículos e cargas, um espaço liso e sem obstáculos. Essa funcionalidade aparente dos espaços urbanos resulta na perda da escala humana e afasta as pessoas do uso. Nesses espaços, não existe lugar para a prática do Parkour, pois nada está desenhado para a escala do corpo. O uso do espaço urbano depende desses pequenos lugares de estar e passagem, onde se pode sentar, colocar uma mesa de bar ou vencer um desnível através de uma escadaria. E é lá também que a oportunidade para a prática do Parkour surge de maneira quase natural. Desenvolver um olhar para identificar essas situações é, portanto, uma ferramenta útil tanto para o traceur quanto para o arquiteto, que deve ser capaz de se colocar no lugar dos usuários da cidade quando está distante em sua prancheta. Trata-se de desenvolver uma sensibilidade para as especificidades dos lugares, de aprender a enfrentar cada situação sem recorrer ao caminho mais fácil incorporando os obstáculos na sua prática.


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incorporar os obstรกculos no percurso


deficiência e cidade excludente

de corpos plurais

pedro lang

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pedro lang é arquiteto e urbanista pela FAU USP

ilustração: beatriz mello

Existe um receio em mim de exemplificar de forma individual, com a minha vivência, o contexto da deficiência física. Primeiro por possibilitar uma interpretação de pena ou mesmo, no sentido oposto, de grande conquista pessoal, que não me interessa. E segundo, e de maior importância, por não representar a realidade da maioria dos que convivem com as barreiras criadas entre corpos com impedimentos e ambientes físico e socialmente excludentes. O intuito aqui, no entanto, é afastar uma visão generalizada da deficiência e aproximá-la do indivíduo. Proponho-me, então, a expor algumas questões próprias, para chegar no que considero importante. Certa vez expressei a mim mesmo seguinte pensamento:


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Indesejadas articulações O que não deveria, se

O que deveria, não cumpre. Impede.

Cede

par

te

E o resultado disso se mostra dor.

E se de tudo, do sabor que brota na garganta, o fel, amargor...

E o odor denunciando o

m e d o...

Se de tudo isso nasce uma vontade, que não cede ao certo e que se desdobra ao incerto, Eu aceito viver e aprender com essas indesejadas articulações.

E criar minhas próprias, onde posso ser

forte O sentimento que se mostrou necessário ser escrito àquele tempo é uma busca por encorajamento. Uma necessidade de perceber e encarar realidades quanto às limitações físicas. Limitações essas que foram surgindo e se intensificando com o passar dos anos, e me fazendo perceber que, mesmo dentro da minha própria vivência e conhecimento delas, novas provavelmente surgiriam, e uma readaptação às condições impostas seria necessária. Constantemente. Simultânea à consciência dos limites do corpo, vinha uma vontade de realização. De buscar caminhos que pudessem preencher minhas necessidades e desejos, mesmo sabendo das dificuldades que sempre existiriam. De, através dos meus interesses, seja nos estudos, no trabalho ou no lazer, conquistar liberdade, independência, autonomia. Hoje, se escrevo ainda sem considerar que tenha a autonomia que persigo, afirmo, sem dúvidas, estar nesse caminho desfrutando de liberdade e de uma certa independência. Embora repleto de

de corpos plurais: deficiência e cidade excludente


84 pedro lang

percalços, esse caminho tem me permitido estar onde gostaria de estar; me dedicar aos estudos em uma área que me interessa, que me inspira; e ter acesso a lazer, a vivências. Em outras palavras, tenho podido, mesmo com as dificuldades diárias que o ambiente ao meu redor impõe, buscar preencher e alimentar minha essência como indivíduo. Me aproximo do ponto que gostaria de chegar. Pois essa essência, tão plural quanto os corpos que a contém, está presente em todos. Sem exceção. É intrínseca à natureza humana. Porém, a realidade observada no meio em que vivemos não a contempla. Exclui. Atenho-me, então, ao contexto da deficiência física (não ignorando a influência das questões sociais como um todo em nossa sociedade), para exemplificar o contexto dessa exclusão: Na minha situação, por exemplo, necessito de cadeira de rodas para me locomover, mas pela fraqueza que influencia também meus braços, ir à rua sozinho, sem depender de alguém, exige que essa cadeira seja motorizada. Equipamento pesado e que não vence grandes declividades, degraus, muito menos escadas. Quando estou, então, por conta própria na cidade, dependo de bom funcionamento e adequações às minhas necessidades ao longo de todo o trajeto. Ao sair de casa, no acesso e uso do transporte, na chegada ao destino e no seu uso de forma plena. Da mesma forma, deve ser adequada minha residência. Precisarei também de pessoas disponíveis (família, cônjuge, amigos ou profissional cuidador), para me auxiliar com questões básicas diárias, como deitar na cama ou trocar de roupa. Portanto, preciso ter assegurado que o ambiente físico ao meu redor e todas essas questões que influenciam minha independência, sem exceção, sejam garantidas. A não garantia de um desses fatores irá me privar da possibilidade de autonomia e busca por realização pessoal, seja ela qual for.


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de corpos plurais: deficiĂŞncia e cidade excludente


86 pedro lang

Vivendo na sociedade em que vivemos, com as questões sociais e a desigualdade, com a influência que a condição financeira de cada indivíduo tem sobre o acesso à infraestrutura, percebe-se como é brusca a linha que separa as duas situações. Entre ter o direito à mobilidade e à cidade, ou não. Minha vivência aqui relatada é, portanto, uma exceção. Não por conquistas próprias (muito pouco disso), mas por oportunidades que me foram dadas, por privilégios que tive. Sou uma exceção na faculdade onde estudo, mas também na rua, no ponto de ônibus... Evidências, estas, da exclusão que causa distanciamento entre indivíduos de realidades e vivências distintas e tem como consequência a ignorância e o preconceito. Esse distanciamento resulta na perda da representatividade, no silenciamento da voz das minorias, retirando da sociedade o conhecimento de como incluir, por não compreender suas reais necessidades. E o preconceito resulta na associação da imagem da deficiência à incapacidade (nos mais diversos níveis), além de tornar esses corpos um defeito a ser reparado ou corrigido, sendo vistos como uma tragédia pessoal ou uma herança de mutações genéticas, afastando da sociedade a percepção do dever e da possibilidade de incluir, por não compreender o real foco do problema (não o corpo, mas o ambiente com o qual interage). O ponto que gostaria de chegar é esse círculo vicioso, no qual ambientes altamente excludentes e a ignorância e o preconceito se retroalimentam, perpetuando a atual condição. Mecanismo que parece se repetir em outras formas de exclusão social e que aparenta ter na educação, na inclusão e na igualdade de oportunidades no ensino de base e na convivência durante a aprendizagem e socialização uma alternativa promissora para melhorias. O acesso à educação possibilita a descoberta, a aproximação com os interesses pessoais que permitem o crescimento individual, que dão fundamentos na busca por realização e, como consequência, para a conquista de autonomia. Mas de forma coletiva o ensino inclusivo permite que, desde a formação, possa ser dada a voz e a representatividade às diferenças. Imaginar que estudantes das mais diversas condições e vivências poderiam compartilhar o ambiente de aprendizagem em igual oportunidade, tendo contato com as diferentes formas de perceber e se relacionar com o mundo e as apreendendo com a convivência, poderia trazer uma possibilidade de quebra dessa repetição. Uma conscientização da ideia de igualdade na diversidade dos corpos, das variadas


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fortes

referências bibliográficas BARBOSA, Lívia; DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo (Organizadores). Deficiência e Igualdade. Brasília: Letras Livres: Editora Universidade de Brasília, 2010 p.. 248 DEÁK, Csaba. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo : EDUSP, 2010. p. 346

de corpos plurais: deficiência e cidade excludente

necessidades que estes têm para usufruir da cidade e de tudo que ela oferece, contribuindo na construção de uma cultura de inclusão. Ou seja, uma compreensão de coletividade, um modo de se pensar os espaços e ambientes de forma a atender a todos. Sim, é um cenário utópico. E não se ignora aqui a realidade de uma estrutura social construída na manutenção de desigualdade desde tempos de colônia. Não se vê com ingenuidade o quão enraizada e de complexa e lenta transformação para melhorias é a conjuntura, de quão desafiadora é a implementação de tais ideias nas mais diversas situações urbanas e contextos sociais da nossa sociedade. Porém, a utopia tem uma importante função de direcionamento de ideal, de referência. Como a grande árvore que, distante no horizonte, guia o rumo do arado em sua longa e precisa reta a sulcar fértil o solo. Luto pelos frutos do caminho de uma utopia a serem colhidos hoje ou depois, provavelmente não por mim. Uma utopia de sociedade consciente da pluralidade de seus corpos e de suas essências. De indivíduos com oportunidade e liberdade de encontrar o lugar onde possam ser


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EM ESTADO DE

encontro o corpo como expoente da arte contemporânea brasileira

eduardo bruno

encenador, performer, especialista em semiótica e mestre em artes cênicas pela ECA USP

marcelo denny

diretor de arte, encenador, professor de artes cênicas e doutor em artes cênicas pela ECA USP


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“Que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorno há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar” (FOUCALT, 2013, p.15). O corpo não é uma entidade fora de mim da qual me aproprio, o corpo não é uma estrutura fixa, muito menos um lugar sem conflito. Ao contrário disto tudo, o corpo é a única forma que tenho de experienciar, de ser e de agir no mundo, ou seja, minha primeira ordem política é a do corpo. Minha primeira insurreição é entender o Eu-corpo que sou. Para adentramos nas questões que envolvem o corpo, e suas políticas do sensível, tomaremos como base principal inicial desta escrita um texto de Foucault intitulado O corpo utópico (2013). Partimos dele, pois acreditamos que a forma como Foucault apresenta a ideia de corpo pode nos pôr a deslocar algumas questões em torno do corpo e principalmente do corpo na arte. Um primeiro exemplo seria a forma como o autor nos apresenta o corpo na infância. Para as crianças, o corpo não seria uma estrutura tão fixa e organizada, as crianças, diferente de nós na vida adulta, percebem o corpo (e por consequência a si mesmas) como um campo de experiência disperso. É por este motivo que socialmente precisamos organizá-las para que desenvolvam um corpo rentável e normatizado. Um corpo onde as experiências possam ser codificadas e gramaticadas, onde regras possam ser processadas e introduzidas, pois para as normas e as regras a existência só é possível se for no próprio corpo. Contudo, segundo Deleuze e Guattari (2012), o Corpo sem Órgãos é uma contraposição ao nosso corpo-cotidiano organizado e


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que funciona como uma máquina produtora de capital. O corpo-cotidiano é o corpo que se tornou organismo, que é útil para a sociedade e que realiza determinados fins pré-estabelecidos pelos aparelhos de estado. Para que o corpo seja útil é necessário esmagar seus desejos, estratificar e coordenar seus modos de operação. O organismo não é corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer, um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair trabalho útil (DELEUZE, 2012 p.24). Na contramão disso, o Corpo sem Órgãos, para retomar a capacidade revolucionária e intensiva, precisa ser vivenciado enquanto um corpo improdutivo, indócil e não rentável. Um corpo que deixa de ser um instrumento e volta a ser um conjunto de sensações que produz e faz produzir políticas outras. Nessa perspectiva, na tentativa de profanar o corpo-cotidiano, podemos apontar as formas como as artes, principalmente as performativas, se inserem no corpo e junto ao corpo constituem outro entendimento dele. As artes, talvez, sejam o último espaço onde a utopia pode adentrar o corpo, fazer do corpo um espaço outro, desorganizando-o e deslocando-o do controle e da delimitação historicamente conectados a ele. Uma utopia, ou melhor, uma heterotopia da existência, que resiste e reside no corpo: A máscara, a tatuagem, as pinturas instalam o corpo em outro espaço, fazem-no entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem deste corpo um fragmento de espaço imaginário que se comunicará com o universo das divindades ou com o universo do outro (FOUCALT, 2013, p.12). Nessa perspectiva, podemos compreender a arte como uma instância de deslocamento e desdobramento de uma outra política sobre o corpo, instalando nele possibilidades de existência para além das hegemonicamente vigentes. Claro que temos conhecimento que nem toda experiência artística pretende pensar e ativar formas disruptivas de sensoriedades do corpo. Contudo, estas não nos são importante destacar, pois, assim como os demais mecanismos de


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captura da experiência e de controle do corpo, as artes retificadoras e normalizadoras só empobrecem os devires do corpo. Com isso posto, então, quais experiências estéticas podemos apontar na contemporaneidade enquanto provocadoras de uma política sensorial dos corpos, principalmente no recorte brasileiro? De início podemos retratar as experiências desenvolvidas pela artista Lygia Clark através de seus objetos e ações relacionais.Tal termos designam genericamente uma produção realizada pela artista, entre os anos de 1976 até 1988, no qual o partícipe (anteriormente entendido enquanto observador e receptor) é convocado a realizar uma experiência corporal como condição de acontecimento da obra. Logo no início, podemos perceber que as obras de Clark estavam começando a apontar uma experiência estética que partia da relação do partícipe com objetos, para tencionar a criação de sensoriedades As artes, talvez, sejam o não funcionais. Para tal, é importante último espaço onde a utopia destacar o período histórico em que pode adentrar o corpo, tais proposições estéticas foram criafazer do corpo um espaço das para m elhor entendermos de que outro, desorganizando-o e forma elas podem ser lidas enquanto deslocando-o do controle e da ações disruptivas para o período histódelimitação historicamente rico que fazem parte. conectados a ele. Clark iniciou sua produção artística em um período onde o Brasil atravessava uma fase de acelerada modernização. Um dos emblemáticos exemplos deste período é a construção de Brasília, capital federal, símbolo da arquitetura e do pensamento modernista brasileiro. Nessa perspectiva, ao adentrar no projeto modernista, o Brasil, se inseria em um modo de organização social que valorizava os utilitarismos que derivam dos modos de produção industrial. Junto a isto, desenvolve-se, também, uma excessiva crença de que o progresso só seria possível pelo funcionalismo com possibilidade de implantação universal. Se contrapondo a esta perspectiva modernista, Lygia Clark, em 1960, desenvolve a série Bichos. São esculturas feitas em alumínio, possuidoras de dobradiças que promovem articulação das diferentes partes que compõem o “corpo” do objeto. Com este trabalho, Clark convida o partícipe a se relacionar com a obra, a partir da reorganização das peças, possibilitando que a escultura torne-se uma estrutura passível de diálogo. Com esta provocação, a artista desvincula o objeto (Bicho) de um funcionalismo intensamente implantado pelos objetos industrializados e o oferece enquanto espaço de produção


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de experimentações criadoras. Ao dessacralizar o objeto e propor que ele seja entendido enquanto estado de jogo, Clark aponta um novo olhar sobre o entendimento da relação sujeito e objeto. Esta provocação é tão importante para a arte brasileira que em 1961 o trabalho foi premiado como a melhor escultura nacional pela VI Bienal de São Paulo. Nesta mesma seara, Clark continuou a criar trabalhos relacionais, todavia alguns de cunho mais coletivo e que valorizam a articulação e a vivência compartilhada em torno de uma experiência sensorial não funcional, desencaixada e única para os partícipes. Dentre elas destacamos Baba antropofágica e Canibalismo, ambas realizadas primeiramente no ano de 1973. Baba antropofágica é um trabalho onde um grupo se distribui ao redor de uma pessoa deitada no chão, com carretéis de linhas dentro da boca. A ação se inicia quando o grupo começa a desenrolar o carretel, que está na boca, até que ele se esvazie. Ao final do processo, todos abrem os olhos e se reconectam com a baba separando os fios molhados até que a malha seja desfeita. Com isto posto, podemos perceber como a baba designa a essência da proposição. Segundo Stratico (2011), ela reflete um caráter animalesco e primitivo, pois enquanto o adulto cospe, o bebê baba, e faz referência a um descontrole do corpo, pois o louco baba e o enfurecido baba de ódio. Nessa perspectiva, a obra provoca o uso de As obras de Clark estavam uma baba incontrolada e irracional, que rompe e elimina a precária divisão começando a apontar entre o sujeito e objeto artístico. Sendo uma experiência estética assim, não há obra a ser observada pasque partia da relação do sivamente por um espectador, pois, em partícipe com objetos, para trabalhos como este, o ato de compartitencionar a criação de lhar sensorialmente a experiência estética é que constitui o trabalho artístico. sensoriedades não funcionais. Em Canibalismo, Clark propõe uma experiência artística que possui similitudes com a Baba antropofágica, contudo, neste caso, o trabalho ocorre por meio de um grupo de partícipes vendados que tem de tatear o corpo de outro partícipe, que esta deitado no chão. Ao centro, este corpo veste uma roupa especialmente feita para tal proposição, com bolsos largos, fechados com zíper e repletos de frutas variadas. Cabe ao grupo “cego” ao redor, tatear o corpo e “devorá-lo”, abrindo os bolsos e fendas por todo corpo para comer suas “entranhas” de frutas. Da mesma forma da obra anteriormente analisada, o que se tem no trabalho é


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uma construção coletiva de uma experiência de reconexão do corpo social. Uma tentativa de expandir as barreiras do contato entre os corpos, fazendo do ato de “comer o outro” uma forma de redescobrir a potência que existe nas trocas e nos toques entre sujeitos, mesmo que desconhecidos anteriormente. Tomando esta perspectiva da arte enquanto relação, o teórico francês Nicolas Bourriaud (2009) nos apresenta o seguinte contexto: “Uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (2009, p.19). Tal fala contempla bastante a produção artística de Lygia Clark, ainda que o mesmo não a tenha citado em nenhum momento do livro Estética Relacional. Continuando nossa cartografia de uma arte sensorial e de política disruptiva no Brasil, caminharemos agora para alguns expoentes mais atuais, entre eles a série da artista cearense Juliana Capibaribe intitulada Performances Íntimas. Realizada no ano de 2013, a artista divulgou uma série de ações íntimas que ela estaria disposta a cumprir junto a alguém, desde que ambos criassem uma garantia de segurança. Dentre as ações a artista provocava: dormir de conchinha, passar a tarde gemendo e suspirando juntos, deixar ela dar um banho no partícipe, etc. Em um trabalho como esse, o corpo do artista e do partícipe é tencionado a perceber e a produzir outras qualidades de sensoriedades no encontro. Como outro expoente, podemos apontar a intervenção urbana criada pelo Grupo EmFoco, de Fortaleza. No ano de 2014 o grupo realizou uma série de intervenções urbanas que tencionavam a questão do consumo, da espetacularização e do controle social. Dentre elas destacaremos o trabalho intitulado Price Time ou hora da xepa. A performance interventiva consistia em realizar a venda de ações (limpeza de qualquer coisa, contos eróticos autobiográficos na orelha, atitudes socialmente entendidas enquanto gays, massagens com cremes caros, etc.) em uma feira popular da cidade (Feira da Parangaba). Ao final, ao recolher o valor de cento e cinquenta reais, o grupo inverteu a ordem perguntando em um microfone o que as pessoas fariam por este dinheiro. O ganhador foi um homem que quebrou com a própria bunda um coco. Em ações como esta, pouco diferente das anteriormente apresentadas, o sensorial do partícipe é convocado a perceber hiperbolicamente a forma como nos relacionamos hegemonicamente na contemporaneidade, ou seja, através do consumo e da espetacularização das subjetividades. Ao comprar alguém, ou ao ser comprada por alguém, a performance apresenta como somos vendidos e com-


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prados cotidianamente para fazermos ações exclusivamente a favor da obtenção do capital. Ações estas que podem até serem violentas, desagradáveis e humilhantes para nossos corpos, mas que continuamos a fazer cotidianamente em uma constante alienação da existência através do capital. Após atravessarmos este diverso percurso artístico, podemos chegar a alguns pontos que dialoguem com as questões disparadas no início do texto. As heterotopias do corpo produzidas por esses trabalhos aqui apresentados convocam os partícipes e os artistas a uma nova percepção do corpo, tanto para criar possibilidades outras de relações inter-humanas, quanto para desnormatizar as relações cotidianamente produzidas. Se o corpo é a primeira tomada de poder que tenho que ter para produzir um modo outro de sociabilidade, então Se o corpo é a primeira talvez seja por isso que a arte contemporânea convoque-o tanto para o jogo, tomada de poder que tenho para a cena e para a performance. que ter para produzir um Nessa perspectiva, a arte relaciomodo outro de sociabilidade, nal hoje pode ser entendida de diversas então talvez seja por isso formas e com diversas nomenclaturas, que a arte contemporânea assim como nos apresenta Bishop convoque-o tanto para (2012): sociallyengaged art, communio jogo, para a cena e ty-based art, experimental communities, para a performance. dialogic art, litoral art, interventionist art, participatory art, collaborative art, contextual art e social practice. Com tantos batismos, tais estéticas vão se caracterizar basicamente pelo encontro e pela criação disruptiva de novas formas de sensorialidade do corpo. Barganha cada vez mais difícil em um mundo cada vez mais veloz, onde o “Eu” é entendido pela exposição radical nas redes sociais. Estamos oprimidos com o medo da violência, dos vírus (de computador ou não), confusos, sentimos necessidade de expressar de forma simples, viver se tornou complexo e solitário. Buscamos saída no uso de religiões, drogas (lícitas ou não), horas em chats nos expondo espetacularmente para anônimos ou frente a uma avalanche de anúncios de consumo. Um mundo com um grande número de relações interpessoais superficiais e de normatizações do ser/estar em sociedade. No contrassentido das políticas dominantes, a arte como provocadora de encontros, confrontos, debates, experiências e compartilhamentos pode ser um exercício de deslocamento na percepção do corpo subjetivo e social. Com isso, artistas e não-artistas fazem


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referências bibliográficas BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory art and the politics of spectatorship. London; Nova York, Verso, 2012. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo, Martins Fontes, 2009. DELEUZE, Gilles e Felix Guattari. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2012. FOUCAULT, Michel. O corpo utópico; as heterotopias. São Paulo, N-1, 2013.

em estado de encontro

políticas estetizadas e estetizações políticas para além das subalternações impostas aos corpos e, criando fabulações de mundos possíveis mais alargados, tencionam, provocam e profanam o télos imposto pela norma.


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PARA GENS PARADI SÍACAS

natalia borges polesso escritora gaúcha e doutora em teoria da literatura, ganhou o prêmio jabuti de 2016 na categoria contos pela obra Amora

Quando ela estica o braço na medida do irreal, a latinha escorrega de sua mão. A parede é mesmo muito alta pra ela fazer tudo sozinha. Teimou que conseguiria. O estampido do metal na pedra provoca em Tatiana um susto. A companheira dividia sua atenção entre a Pam e a rua e, naquele momento, olhava para o nada e sussurrava num volume incompatível com a própria ideia do sussurro: não vem ninguém! E não vinha mesmo. A rua era morta. A cidade era morta. Depois das vinte horas, não havia mais gente nas calçadas. As pessoas se aglomeravam em pontos específicos, por necessidade: um restaurante; dois supermercados; um bar; um mercadinho de hortaliças; e duas farmácias, que ficavam abertas até a meia-noite. As farmácias eram os estabelecimentos de mais sucesso dentre os habitantes. Já não vendiam apenas remédios e perfumaria, tinham água, refrigerantes e, bem ao fundo, uma pequena bancada de conveniências com produtos alimentícios, além das tradicionais barrinhas de cereais. Na porta de uma, o anúncio: em breve buffet de sorvetes. Na outra, era comum


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crianças faziam nebulização. Para além de tudo, era uma cidade quente. Entre esses lugares e suas casas, as pessoas desapareciam dentro de seus carros com películas escuras demais nos vidros. Nem cachorro, nem mendigo, vez ou outra, um corredor noturno, uma ciclista ousada. Fora isso, era raro ver qualquer viva alma. Pam perdeu a latinha quando se desequilibrou. Preferiu segurar bem a grade com as duas mãos. As pernas balançaram soltas no ar. – Essa grade vai cair. – Vai nada, ta bem firme – e balançou um pouco mais antes de saltar – dá pra pisar bem no meio da grade e segurar ali ó. Pam apontava um relevo do prédio art déco da antiga prefeitura. – Pode ser. Mesmo assim tu vai precisar de apoio pra alcançar. – É que tem esse toldinho que colocaram agora. Pra quê? – Pam analisa o prédio mais uma vez – Posso colocar o pé por dentro da grade, se essa basculante abrir. Pra que grade, se a bosta da janela é basculante? Não passa ninguém nessa abertura. Saltou e agarrou a grade com as duas mãos, enquanto cutucava o vidro da janela com a ponta do tênis. – Sei lá. Essa cidade é esquisita. Tu viu o que fizeram com o bar da Tania? – O que fizeram com o bar da Tania? Pam desceu. Sentaram as duas escoradas no muro. Tatiana colocou na orelha o fone que estava pendurado na blusa de Pam. – Dá pra subir naquela basculante que tem ali do lado, se pendurar na sacadinha e já eras. – Amor, tu tá muito obcecada. Deixa eu te dizer uma coisa, ninguém vai ver se a gente trouxer uma escada. Sério. – A gente não tem uma escada. – Então faz mais pro lado mesmo, não precisa ser bem acima. – Mas aí tu sabe que não vai valer merda nenhuma, se eu não puder fazer num lugar difícil e se parecer desconectado dessa placa ridícula de “Galeria de Arte da Cidade”. É ridículo, Tati, Galeria de Arte da Cidade? Sério? O gênio que nomeou o lugar deve etiquetar a casa também. Mesa, Poltrona, Escrivaninha Da Casa. Pam sacudiu a cabeça. Tatiana olhou o prédio quadrado da antiga prefeitura, quadrado e bege. Quadrado, bege e sujo de poeira e ter-

paragens paradisíacas

ver velhinhos tomando sucos naturais ao entardecer, enquanto


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ra avermelhada. Pam achava que tudo naquela cidade se cobria daquela poeira-sangue, como se não houvesse uso capaz de tirar o pó das coisas e tempo fosse mais denso ali. Tatiana gostava. – Vamos voltar amanhã, a gente traz o aparelho que limpa com jato de água. Aquele que mãe me deu e nunca usamos. Dá pra usar ele, pra escrever limpo, sabe? Só com água. Essa parede tá imunda. – Não tem tomada. – Deve ter. É uma pracinha. No Natal tem aquele monte de luz que ninguém aproveita. Tem que ter tomada. – Eu quero pichar. Não quero escrever limpo. Tatiana ficou olhando um tempo para Pam, que se levanta limpando a poeira das calças. Pam e Tatiana são funcionárias municipais, professoras. Pam foi

transferida para cuidar da pequena galeria de arte, que se instalou na antiga prefeitura. Depois do episódio do vernissage, porém, o que ocorreu foi uma mudança abrupta de planos e uma reinauguração, apenas com obras de um renomado artista local, casualmente irmão do prefeito. São quadros mal executados de paisagens rurais próximas à cidade: Paragens Paradisíacas. A exposição selecionada previamente foi fechada. Pam foi relocada para cuidar do uso das dependências do teatro municipal, que está há mais de ano parado. Tatiana segue sem poder dar aulas de educação física, porque o ginásio está interditado e a quadra está tomada por carrapatos, devido ao matagal que cresceu e se alastrou durante os meses em que não houve manutenção da escola. – Terça. Pode ser? A coisa não vai ter esfriado ainda. – O que aconteceu com o bar da Tania? – Pintaram a fachada e tiraram a placa do videokê. – Sério? – Seríssimo. Pintaram de branco e azul e pelo que consta o letreiro já rabiscado, vão pintar: drogaria. – Somos uns doentes mesmo. Não vai sobrar nada. Mais tarde deitada em sua cama, Pam pensa que quer escrever algo bem ofensivo na parede do prédio, desenhar um caralho gigante, ela tem raiva e urgência, quer algo que expresse o sentimento, mas não sabe bem como. É preciso se deslocar para ver


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em jogar estrume na porta. Lembra do encontro que teve com a artista depois do episódio. Ela estava um bagaço. A mulher não consegue mais sair à rua sem ser chamada de pervertida. A exposição consistia em desenhos e pinturas de santos nus, acompanhados de trechos de orações relativas às imagens. Trabalhava no museu de uma igreja de freis capuchinhos nas redondezas e um dos freis a auxiliou na pesquisa da iconografia. Perdeu o emprego. Ela era lésbica, Pam era lésbica, Tatiana era lésbica, todas se conheceram no bar da Tânia, que era também era. O frei não. Só que, por associação, a coisa ficou feia pra ele. Foi assim que o comunicaram da transferência: a coisa ficou feia para o senhor, melhor se afastar por tempo indeterminado. Ele aquiesceu. Mudou-se. Todos se chocaram com a nudez dos santos; se chocaram com as figuram masculinas juntas no quadro das graças, chamaram de orgia, assim como encontraram zoofilia em São Roque nu, com seu cachorro e violência gratuita em Jesus abatido, segurando uma pedra triangular cor-de-rosa; alguns até questionaram a cor da pele de São Moisés. Antes de a exposição ser fechada, uma horda de beatas, enroladas em bandeiras do Brasil, protagonizou uma série horrenda de rezas, gritos e desmaios, que culminou na destruição completa das telas, numa cena que poderia ser adjetivada como apocalíptica. Pam assistiu a tudo sem conseguir reagir. Estava um pouco afastada e foi impedida pela segurança de intervir. A artista assistia petrificada ao apogeu do grotesco. As imagens não saiam da cabeça de Pam, que agora pensava em meios de dar o troco. Até que teve uma ideia. Na frente da antiga prefeitura, atual Galeria de Arte da Cidade, há uma estátua do negrinho no pastoreio. A peça de bronze faz parte de uma série de estátuas, alusivas às lendas do sul e estão espalhadas cidades do interior. Esta é de um menino nu amarrado sobre um formigueiro. Ninguém se importa com a violência daquela imagem. Ninguém se importa com a violência daquela narrativa. É natural. É só uma estátua, Pam já ouviu, o simbólico passando longe. Vestiria o menino. Passaria dias dando água à estátua do menino, limpando suas chagas, matando as formigas que o picam para sempre. Era isso. Isso faria. Vestida de virgem Maria. Acordou de sonhos muito esquisitos. – Tatiana. Contou tudo. – Acho que tu pode te complicar com isso, Pam.

paragens paradisíacas

melhor, é preciso que eu me afaste , repete como mantra. Pensou


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– Mas é só um ato. Uma performance. Sei lá. Eu posso não dizer que é arte, melhor até, digo que é uma ação pra conscientizar as pessoas, qualquer coisa. – E depois? – Depois eu fico pelada e jogo a tinta vermelha que vai tá dentro do aparelho. Ah, e vou raspar o cabelo, tu me ajuda? – Quando tu quer fazer isso, amor? – O cabelo hoje. A coisa toda quando tiver gente na rua. Cedo. Onze e meia da manhã, o dia que tu puder. Tatiana ficou um minuto em silêncio, depois levantou para pegar a máquina de raspar. – Tu sabe que podemos perder nossos empregos ou sermos presas, provavelmente os dois. – Nunca. – Pâmela, eu não sei como tu me conquista com as ideias mais esdrúxulas. – Não é esdrúxulo. É arte. E é não podemos deixar essa gente pensar que pode passar impune. Quero enviar uma nota pra imprensa também. – Tá bom. A Virgem Maria de cabelos raspados, vestindo apenas um manto azul, causou um estranho movimento na cidade. Os donos das farmácias puseram cadeiras na frente dos estabelecimentos e ofereceram refrescos a preços mais baixos para atrair a clientela. Tinham os melhores lugares para capitalizar o espetáculo. Aos poucos as pessoas foram se aglomerando. O bar se alocou com um isopor perto do ato, caso algum passante quisesse beber algo mais forte. O trânsito se desviou naturalmente para aquela rua, os motoristas passavam, retornavam e passavam novamente, estacionavam os carros e fingiam ir até uma das duas farmácias, bem na frente da pracinha. Houve até um pequeno engavetamento.

A ordem havia sido perturbada. Os mercados fecharam ao meio-dia para que todos pudessem ir ver “uma louca, vestida de nossa senhora na estátua do negrinho.” O restaurante providenciou quentinhas a quinze reais com entrega. Um senhor resolveu sair armado, por via das dúvidas, disse a si mesmo. O prefeito, ao chegar, ficou extasiado. Imediatamente assumiu a autoria do projeto que chamou de teatro


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tando para lançar sua campanha de reeleição. Ninguém achou ruim. Só Pam, que ficou sem saber o que pensar. Parece que sua ação tinha sido tão eficaz quanto falha. Quando foi espirrar a tinta, o jato falhou. Abriu o tanque de água e, com as mãos tingidas de vermelho, acariciou o menino-estátua, passou o resto de tinta no rosto e no corpo, mas antes que pudesse tirar o manto, alguém gritou: a virgem pariu o menino! E todos aplaudiram.

À noite, Tatiana consola Pam, que pensa no potencial transformador da arte. Mas que também pensa na ignorância paralisante. Mas que também pensa no cinismo político. Pam olha para Tatiana e pergunta se ela quer se mudar dali. – E ir pra onde? – Não sei. Outra cidade. Alguma paragem paradisíaca.

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espontâneo da Cidade. E fez um pronunciamento rápido, aprovei-


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para além do corpo cravado de likes: a revolução deverá ser lúdica! jóse dos santos cabral filho

professor titular da escola de arquitetura da ufmg

ilustrações: gabriel vilela

Corpo, tecnologia e o fim da política Desejo, sedução e gozo - esta é a base funcional das redes sociais. E os algoritmos sabem disso, ou melhor, os programadores dos algoritmos sabem disso. Usando da automação viabilizada pela Cibernética, programadores criam armadilhas imagéticas que nos capturam num loop de puro deleite que desconsidera a distinção entre mundo privado e mundo público. Com o fim dessa distinção vem o fim da política como nós a conhecíamos. Simples assim. Ou nem tão simples assim: a compreensão deste cenário é um dos desafios mais complexos e urgentes da atualidade, pois está em jogo nossa capacidade de fabricar e habitar o tecido social. De fato, as redes sociais, como o nome indica, são literalmente armadilhas de captura social. A estratégia do enredamento se dá através da captura, da publicação e da dispersão do meu desejo, e, por extensão, do meu corpo como o lócus do desejo. Com a promessa de um gozo oceânico, o corpo é então dispersado numa correnteza de imagens. E com o ‘infinite scroll’ (barra de rolagem infinita), uma das mais perversas invenções de nossos dias, nossa navegação se transforma em uma espécie de queda livre numa cisterna cujas paredes são imagens superficiais, lisas e sedutoras. Mas, como já disse Caetano Veloso, ‘a queda é uma conquista’ 1 e certo é que a experiência de quem se lança nessa cisterna imagética não é a de vazio repetitivo, mas sim a de constante novidade, com a promessa de que a próxima imagem será nova e me-


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lhor. Só que, como denuncia Aza Raskin2, inventor arrependido do ‘infinite scroll’, essa é exatamente a estrutura do vício: oferecer uma recompensa no próximo gole, que seria o último, mas nunca é. Nessa queda insólita não há um fundo: só um fluxo de difícil interrupção, o que efetivamente tem criado um déficit de atenção coletivo, já considerado por especialistas um problema de saúde pública. Outro elemento estruturante desse gozo infindável é o antigo hyperlink, agora potencializado por algoritmos gerenciadores de um processo opaco de associação de conteúdos que nos são encaminhados sem a nossa solicitação. Aqui o processo de livre associação, estratégia freudiana fundamental para acessar os recônditos do inconsciente, é operado por algoritmos inteligentes e carregados de propósitos. Temos, então, uma espécie de psicanálise automática que, ao invés de curar, aliena, prometendo um gozo fácil computado em likes. E tudo para que minha atenção seja vendida no mercado de grandes dados. Paradoxalmente, este corpo do universo informacional é um corpo sem informação, uma redundância imagética: fotografamos nossos selfies repetidas vezes até eles se encaixarem em um modelo ideal pré-definido. Nessa pouca informação está a sedução do corpo na rede: absorção instantânea que demanda o grau zero do feedback, um click. Disponibilizado para ser cravado de likes, o corpo agora é uma mescla de imagem e carne que se engaja e se delicia em pura estética e erotismo, pairando numa progressão sem progresso, suprimindo a distinção entre público e privado.


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Política e Cibernética como artes do trânsito Tal supressão é grave se considerarmos que, como coloca Vilém Flusser, a política é o ato de levar informação do mundo privado para o mundo público, onde é elaborada e devolvida para o domínio privado. Flusser remete o surgimento da política à criação dos primeiros assentamentos humanos no período neolítico, quando deixamos de ser nômades e passamos a construir arquiteturas que distinguiam espaços privados e espaços públicos. Neste sentido, a política é arte do trânsito, da comunicação e a noção de controle está em seu âmago. “A questão fundamental da política é: quem regula o trânsito?”, sintetiza Flusser.3 Ele argumenta, ainda, que com o fim da distinção entre público e privado ocasionado pelas comunicações digitais, a política como nós a conhecíamos tem seu fim. De fato, se o controle do fluxo da informação no neolítico era feito principalmente pela arquitetura, modernamente temos uma ciência do controle e da comunicação: a Cibernética (que não se confunde com a informática, nem com a Internet). Como uma ciência abstrata do feedback, ela viabilizou tanto os sistemas de automação industrial quanto as redes sociais. O que demoramos a perceber é que, como ciência do controle e da comunicação, ela é, portanto, a ciência da política, como demonstrado pelas últimas eleições no Brasil e no mundo, definidas pela manipulação automatizada das redes sociais.

A revolução será lúdica Se a invenção da política é contemporânea da invenção da arquitetura, não resta dúvida que uma reinvenção da política só vai se dar junto com uma reinvenção da arquitetura. Os novos sistemas de automação e controle da informação demandam novas paredes, novas janelas e novas portas. O que controla a informação hoje não é mais a parede de tijolo e sim a firewall dos sistemas computacionais: a política salta da parede de tijolo à parede de fogo! Assim, podemos dizer que os jovens arquitetos e designers têm um papel fundamental numa verdadeira mudança política já que eles, mais que outros profissionais, podem repensar a nova relação entre público e privado, ou seja, podem redefinir o modo como se dará o trânsito da informação entre esses lugares. E esta redefinição deverá ser da ordem do jogo, para escapulir das arma-


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referências bibliográficas VELOSO, Caetano. “Santa Clara, Padroeira da Televisão”. Circuladô. Rio de Janeiro, Estúdio PolyGram, 1991 2 RASKIN, Aza. Silicon Valley Renegades Take On Tech Obsession. Disponível em: <http://www. wsj.com/video/silicon-valley-renegades-take-on-tech-obsession/2D3A120C-C88F-4C81-A005-1439E464A507.html>. Acesso em 06 dez. 2018. 3 FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes, 2015 4 SCOTT-HERON, Gil. “The revolution will not be televised”. Pieces of a Man. New York, RCA N 1

para além do corpo cravado de likes: a revolução deverá ser lúdica!

dilhas já criadas para cooptar qualquer mudança radical. Em suma, a revolução será arquitetônica e festiva - uma superação lúdica dos aspectos negativos da tecnologia. Mas não se trata de uma não se trata de uma ‘gamificação’ de nosso cotidiano, esta é só mais uma estratégia mercantilista de apropriaçãodo nosso impulso lúdico para jogar. Melhor mirar no exemplo dos DJ’s e MC’s, estes seres deliciosamente heterotróficos, que através da colagem e da apropriação transformam o excesso de informação em um caldo primordial para a criação. DJ’s, MC’s e similares são um exemplo preciso da chamada Cibernética de Segunda-Ordem, onde o observador se inclui no sistema observado e recursivamente atua sobre si mesmo e sobre o sistema, ou seja, brinca com o sistema. A lição é esta: o corpo pode se jogar na rede, mas é jogando com a rede que ele pode superar a trama do enredamento e voltar a ser um corpo vivo fora da armadilha. Como cantava Gil Scott-Heron nos anos 1970: “The revolution will not be televised. The revolution will be live.” 4 Só que hoje, com os avanços tecnológicos, a ‘live’ pode ser um esquema de retroalimentação lúdica. Joguemos com o jogo político, então; mas, ciberneticamente, por favor!


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embalagens fotos e edição: laura miguez modelxs: fefa, marina cortés calle e marina martins direção de arte: yugo borges assistência: alessandra montera e joão montagnini


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De noite pelas calçadas Andando de esquina em esquina Não é homem nem mulher É uma trava feminina Parou entre uns edifícios mostrou todos os seus orifícios Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto Está sempre em desconstrução Nas ruas pelas surdinas é onde faz o seu salário Aluga o corpo a pobre, rico, endividado, milionário Não tem Deus Nem pátria amada Nem marido Nem patrão O medo aqui não faz parte do seu vil vocabulário Ela é tão singular Só se contenta com plurais Ela não quer pau Ela quer paz Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho Mulher Mulher, mulher, mulher, mulher mulher, mulher, mulher

linn da quebrada

bicha, trans, preta e periférica nem ator, nem atriz, atroz bailarinx, performer e terrorista de gênero

Nem sempre há um homem para uma mulher, mas há 10 mulheres para cada homem E uma mulher é sempre uma mulher Nem sempre há um homem para uma mulher, mas há 10 mulheres para cada homem E uma e mais uma e mais uma e mais uma e mais outra mulher E outra mulher


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mulher É sempre uma mulher? Ela tem cara de mulher Ela tem corpo de mulher Ela tem jeito Tem bunda Tem peito E o pau de mulher! Afinal Ela é feita pra sangrar Pra entrar é só cuspir E se pagar ela dá para qualquer um Mas só se pagar, hein! Que ela dá, viu, para qualquer um Então eu, eu Bato palmas para as travestis que lutam para existir E a cada dia conquistar o seu direito de viver e brilhar Bato palmas para as travestis que lutam para existir E a cada dia batalhando conquistar o seu direito de Viver brilhar e arrasar Ela é amapô de carne osso silicone industrial Navalha na boca Calcinha de fio dental Eu tô correndo de homem Homem que consome, só come e some Homem que consome, só come, fodeu e some


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A PROSTITUIÇÃO COMO TRINCHEIRA TRANS

amara moira

autora do livro ‘E se eu fosse puta’ (2016) e professora de literatura. Em 2018 foi a primeira mulher trans a obter o título de doutora em teoria literária pela Unicamp usando seu nome social.


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Prostituição: espaço que se abre quando todos os demais (família, escola, mercado formal de trabalho) se fecham para nós, mulheres trans e travestis, mas também espaço onde nunca foi necessária a aprovação de legislação para garantir que as não poucas pessoas que o frequentam se sintam no dever de respeitar o nosso nome e gênero. Nos demais espaços todos, públicos e privados, bancos, escolas, hospitais, delegacias, a legislação sempre precedeu o reconhecimento de nossas identidades, em todos exceto nesse, forma eficientíssima de dizerem que pertencemos a esse espaço, que só ali fazemos sentido. E mais: a zona de prostituição não só respeita nossos nomes e gêneros, como também permite e mesmo cobra que, de maneira radical, assumamos a nossa identidade feminina, essa que fez com que, em casa e na escola, fôssemos violentadas e até expulsas, essa que, onde quer que estejamos, nos torna motivo de olhares e chacotas, essa que insistem em nos dizer que é inaceitável, impossível. Eis então o lugar onde encontramos liberdade para forjarmos quem somos e onde nossa presença não é sujeira estatística (como é importante estar junto a suas iguais, junto a pessoas que conhecem de perto os conflitos que você vive), lugar onde podemos wconstruir outro tipo de relação com nossos corpos e existências. Não uma existência tranquila no entanto, uma vez que, segundo dados da ANTRA¹ (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 70% dos 179 assassinatos de


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A zona de prostituição não só respeita nossos nomes e gêneros, como também permite e mesmo cobra que, de maneira radical, assumamos a nossa identidade feminina

pessoas trans que aconteceram em 2017 no Brasil, país ano após ano campeão mundial nessa modalidade, teve trabalhadoras sexuais como alvo. Importante caracterizar essa prostituição também como, via de regra, bastante distante da noção de “prostituição de luxo”: prostituição envolvendo valores minguados e alta rotatividade de clientes (e isso, em boa parte dos casos, para obtermos apenas o suficiente para a subsistência), prostituição exercida em geral nas ruas frias, madrugada afora, com nossos corpos seminus repletos de adereços delicados, calçando sapatos que dificultam o movimento, justo o momento em que estamos mais vulneráveis a ataques, mais à mercê da violência². E esses corpos, nossos corpos? Existindo numa sociedade que, para todos os registros oficiais, só sabe entendê-los como aberrações físicas e mentais, sinal de mau-caratismo e/ou prova de depravação, mas corpos de qualquer forma existindo, existentes, resistentes, corpos violentados mas ainda assim muitíssimo requisitados, sirva isso como indício mais que claro de que talvez eles não sejam assim tão absurdos, inaceitáveis quanto insistem em nos dizer. Não fosse assim e como entender o fato de estarmos sobrevivendo há décadas desse dinheiro, desse desejo? A prostituição é onde temos podido existir, mas não existimos ali sozinhas. O estigma que nos abraça faz com que muitas vezes nos confinemos num gueto seguro, a zona de prostituição, espaço onde se mora e se trabalha, nem sempre sendo possível diferenciar o tempo de cada um. E, ao redor dessa bolha, toda uma economia se arma, o tio do cachorro-quente, aberto até alta madrugada, a senhorinha das roupas e calçados, vindo de tarde vender produtos, a kombi dos medicamentos rodando o bairro, a lanchonete, o mercadinho, o salão de beleza, a pensão, a travesti mais velha que, já não conseguindo, ou não que-


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nessa pensão, uma economia inteira sendo alimentada pelo dinheiro desses clientes, pelo dinheiro dessas mulheres trans e travestis. Sim, há muitos clientes, inúmeros, quase todos homens cis — “cis”, o contrário de “trans”, “tudo o que não é trans”, pois, se há quem cruzou essa linha simbólica que separaria homens de mulheres, ou seja, alguém que criado para ser homem reivindicou uma identidade feminina (a mulher trans, a travesti) ou que, criado para ser mulher, rechaçou essa identificação e afirmou-se homem (o homem trans), é preciso que haja também o oposto, quem não cruzou essa linha, quem permanece apenas de um dos lados dela: em outras palavras, quem tendo sido criado para ser um desses dois termos (homem OU mulher) existe e se reconhece exatamente de acordo com o que essa palavra que lhe criou diz, “cis”. Homens cis, então, esses clientes, homens casados e solteiros, negros e brancos, ricos e pobres, dentro e fora dos padrões de beleza, homens dos mais variados tipos, tendo em comum apenas, quem sabe, a expectativa de poderem desfrutar dos nossos corpos e serviços de maneira sigilosa. Envergonhadíssimos do desejo que nutrem por nós mas, ainda assim, incapazes de sofrear ou mesmo de se livrar desse desejo que os acompanha, atormenta, não lhes resta outro remédio que nos buscar na calada da noite, nas brechas do trabalho, antes de voltarem às suas vidas públicas, oficiais. E a guetificação da população trans colabora com essa discrição desejada, seja por reduzir brutalmente os valores que podemos cobrar, seja por tornar mínima a chance de sermos vistas no shopping que ele frequenta, ou perto do seu trabalho ou da escola onde ele deixa as crianças. Certamente se livrariam desse desejo, caso pudessem... mas, como é comum de se ouvir de suas próprias bocas, “provou uma vez, vicia”.

70% dos 179 assassinatos de pessoas trans que aconteceram em 2017 no Brasil, país ano após ano campeão mundial nessa modalidade, teve trabalhadoras sexuais como alvo

a prostituição como trincheira trans

rendo, viver de programas, vira cozinheira ou empregada


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A prostituição é onde temos podido existir, mas não existimos ali sozinhas. O estigma que nos abraça faz com que muitas vezes nos confinemos num gueto seguro, a zona de prostituição, espaço onde se mora e se trabalha, nem sempre sendo possível diferenciar o tempo de cada um

E o que teríamos assim de tão diferente, viciante? Curioso pensar que, numa sociedade tão absurdamente ciscentrada (isto é, centrada em parâmetros “cis”) como a nossa, o genital com que nascemos seja tanto aquilo que impede a validação social dos nossos gêneros quanto um dos atributos corporais mais solicitados naprostituição que existe para nós. Muitas vezes sem sequer imaginarem que nem todas (muito poucas, talvez) lidam de forma tranquila com aquele pedaço do corpo, o justo pedaço com que nos ensinam que a compreensão que temos do nosso gênero é delirante, doentia, não pode ser levada a sério. Uma vida ouvindo que somos homens em decorrência desse genital, uma vida sendo violentadas por não cabermos no que a palavra “homem” diz, no que se espera de um corpo nascido com pênis, uma vida ensinadas que, por causa dele, desse pênis, não pode(re)mos ser quem somos, quem nos dizemos ser e, então, basta chegarmos a esse espaço e rapidamente descobriremos que na visão da maioria desses clientes somos, não uma “mulher com pênis”, como gostaríamos, mas sim um “pênis com mulher”, pênis numa moldura de “mulher”, bunda, peitos, cabelo comprido, vestido, maquiagem e, coroando isso tudo, o pênis. “Pênis com mulher” porque, em função mais uma vez desse ciscentramento, é preciso que o genital não perca a capacidade de definir o que se é, o que somos. Nossos clientes, como nós, têm pênis e querem seguir convictos de que são homens por conta desse pênis, ainda que peçam para vestir nossas calcinhas entre quatro paredes ou pra ser “mulher” de outra “mulher” na cama, sempre entre aspas. Tudo experimentação, fantasia, assim como outra frase que se ouve bastante nesses momentos: “você é mais mulher do que muita mulher”. Mais mulher do que muita mulher, mas mulher mesmo, sem “mais do que”, nunca.


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pos, o pênis, é hiper requisitado, mas é também onde temos podido subsistir pelas últimas décadas, sobrevivendo à política de extermínio levada a cabo tanto pelo Estado quanto pela sociedade civil. Não faz muito pixavamse os muros da capital com frases como “limpe São Paulo, mate um travesti por noite” e não à toa, ainda hoje, os outros dois espaços em que não somos sujeira estatística são o cárcere e o cemitério. Se aos poucos vamos conseguindo transformar essa situação e nos fazer presentes em mais e mais espaços, se aos poucos vamos nos tornando referências na ampla gama de atividades que compõe a sociedade e não mais apenas no trabalho sexual (que não é qualquer trabalho sexual, mas via de regra o precário e mal remunerado), isso se deve às tantas gerações trans que, ao se assumirem, sacrificaram as trajetórias de vida que vinham construindo e tiveram que fazer dessa prostituição precária uma trincheira nessa guerra silenciosa. Lutemos então, sim, para que esse espaço deixe de se caracterizar pela compulsoriedade, mas não nos esquecendo que, ainda hoje, é lá onde se encontra o grosso da nossa população, sendo nosso dever garantir que seu exercício não mais se dê em meio à precariedade.

notas

¹ “Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017”. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf ² Abordo de forma mais detalhada esse universo no meu livro autobriogáfico E se eu fosse puta (hoo editora, 2016). A obra, esgotada por vários meses, foi recentemente reeditada com uma pequena alteração no título, para brincar com o conservadorismo e as tentativas de censura: E se eu fosse puRa (hoo editora, 2018)

Na visão da maioria desses clientes somos, não uma “mulher com pênis”, como gostaríamos, mas sim um “pênis com mulher”, pênis numa moldura de “mulher”

a prostituição como trincheira trans

Sim, esse é um espaço de imensa vulnerabilidade e onde aquilo que mais nos ensinam a odiar nos nossos cor-


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(...) era verdade que os cegos estavam mortos, que não podiam mover-se, reparem, não se mexem nem respiram, mas quem nos diz a nós que esta cegueira branca não será precisamente um mal do espírito, e se o é, ponhamos por hipótese, nunca os espíritos daqueles cegos estiveram tão soltos como agora estão, fora dos corpos, e portanto mais livre de fazerem o que quiserem, sobretudo o mal, que, como todo mundo sabe, sempre foi o mais fácil de fazer. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.90


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ensaio sobre a cegueira

ilustração: michael vago


QUINTAL - MAIS TARDE Chris e Rose conversam com PARKER DRAY, 60, e APRIL DRAY, 57 anos. Eles são um casal com bochechas de vespa rosadas. Chris e Rose tentam mascarar o tédio e o

BACKYARD - LATER Chris and Rose talk to PARKER DRAY, 60, and APRIL DRAY, 57. They are a rosecheeked tipsy wasp couple. Chris and Rose try to mask boredom and annoyance.

aborrecimento. APRIL Quem se importa com a cor da pele? Meu

APRIL Who even cares about skin color? My God.

deus. CHRIS Muitas pessoas se importam. -PARKER

CHRIS A lot of people do.-PARKER

Eu te disse, April. O mundo se importa, é da

I told you, April. The world cares, It’s human

natureza humana se importar. Não é que

nature to care. It’s not like one’s better than

exista um melhor que o outro. Quando você

the other. When you look at the big picture,

olha o panorama geral, verá que ele está

you’ll see its always shifting. The question

sempre mudando. A questão sobre qual cor

of “What skin color is more “culturally

de pele é mais “vantajosa culturalmente” é

advantageous” that is.

isso. ROSE Me desculpe... O que você está dizendo? PARKER Bem, pegue este país. A pele clara tem sido preferência nos últimos duzentos anos, mas agora a tendência mudou de novo, não foi? Preto está na moda!

ilustração: pedro cancelliero victor

ROSE I’m sorry... What are you saying? PARKER Well take this country. Fairer skin has been in favor the first couple of hundreds of years, but the pendulum has swung back again hasn’t it..? Black is “in fashion!”

COR R A !

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GET OUT

get out (2017), jordan peele


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corra!


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Cidade, extermínio e segregação urbana e racial

Escrevendo na própria carne E se a pesquisa também for a sua estória? O corpo estendido no chão poderia ser o meu, do meu irmão, do meu companheiro… Daí você é convocada, e pesquisar, além de ser um ato de resistência, remete a sobrevivência, como respirar, comer, viver. Calma! Eu já te explico, você já vai entender... Março de 2015, eu recém ingressa no mestrado, iria estudar o Fórum de Moradores do Jardim Lapenna, mas mudei… Provocada por um encontro no trajeto para o meu trabalho: vi os corpos de três jovens que tinham sido assassinados durante a madrugada. Fiquei impactada! Os índices que demonstram a existência de um genocídio da juventude negra já me inquietavam, mas aqueles três rapazes, transformados em três corpos, “aquele dado” tão

cláudia rosalina adão

graduada em serviço social pela PUC SP, mestra em ciências pelo PPG mudança social e participação política da EACH USP e doutoranda na FAU USP. é membro da rede quilombação de ativistas a antirracistas

ilustrações cedidas por: marcelo d’salete

professor, ilustrador e autor de histórias em quadrinhos. estudou design gráfico, é graduado em artes plásticas e mestre em história da arte. é ganhador do Jabuti (2018) e do Eisner Awards (2018)


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“Continuam, é assim... não param de nos matar (...)” No ano de 2012¹, 42.416 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, o que equivale a 10% dos homicídios no mundo, fazendo com que o país ocupe um lugar de destaque no ranking dos países mais violentos. A taxa média de homicídios global é de 6,2 por 100 mil habitantes, ao passo que a do Brasil está próxima de 30 vítimas para cada 100 mil pessoas. 93,3% dos vitimados por homicídios são jovens do sexo masculino e, desse percentual, 70% são negros (WAISELFISZ, 2015). Entre os jovens de 15 a 29 anos, o homicídio corresponde à principal causa de mortes não naturais. Na cidade de São Paulo, a taxa de homicídio é de 12,6 por 100 mil habitantes, índice abaixo da média nacional, de 21,9 por 100 mil habitantes. Ainda assim, a juventude negra é a mais vitimada pela violência letal. A taxa de vitimização de jovens negros na capital paulista² é superior às do estado de São Paulo como um todo. Armas de fogo são responsáveis por 78% das mortes entre a população jovem negra na capital. A concentração dessas mortes está nas periferias da cidade e não é um fato episódico, mas construído historicamente, tendo como disparador o processo de segregação urbana e racial da cidade , daí a importância de compreender como ocorreu o processo que levou essa população a viver nas periferias da cidade. A presença do negro no Estado de São Paulo data de 1530 e tem relação com a importação de escravos do Reino de Portugal para o estado (BASTIDE & FERNANDES, 2008), mas somente no século XVII, com o descobrimento das minas auríferas, forma-se

cidade, extermínio e segregação urbana e racial

materializado, foi uma combinação da dimensão e peculiaridade de um homicídio, um jovem com um nome, um corpo, pertencente a uma família, morador de um determinado território, com uma história que compõe uma estatística e desnuda um processo histórico de segregação e desigualdade. Por que em alguns lugares da cidade a probabilidade de encontrar um corpo negro caído no chão é maior que em outras? Por que eu fico tensa se meu irmão sai da minha casa às 11 horas da noite e demora para avisar que chegou bem em seu destino? A juventude negra, é a maior vítima de homicídios no Brasil, o fenômeno se repete na cidade de São Paulo. Há uma articulação perversa entre vulnerabilidade, morte, pobreza e raça. Nas periferias da cidade de São Paulo, há uma concentração da população negra e de violência letal. Tal articulação está atrelada ao processo de segregação urbana da cidade.


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um primeiro fluxo regular de escravos para São Paulo. O negro desempenhou um importante papel no período de mineração, mas o destaque foi ainda maior pela sua representação na constituição e desenvolvimento da “grande lavoura”. O desenvolvimento de São Paulo seria inconcebível sem o trabalho escravo negro, agente promotor da desagregação do antigo sistema econômico, favorecendo um tipo de exploração econômica mais complexa. A necessidade de renovação constante da mão-de-obra escrava que trabalhava na lavoura, considerando-se sua vida útil de apenas 10 anos (BASTIDE & FERNANDES, 2008), provocou o aumento da presença de negros em São Paulo. O crescimento da grande lavoura em São Paulo coincide com o período de colapso do trabalho escravo no Brasil, ocorrido por pressão da Inglaterra, que buscava impedir restrições aos seus produtos. A abolição da escravatura relaciona-se, portanto, à expansão do mercado consumidor, impulsionado pela Revolução Industrial. Neste período, São Paulo já se configura como uma cidade agroexportadora e sede administrativa da produção cafeeira. No chão da cidade Concomitante às atividades da economia cafeeira, acontece a primeira fase da industrialização no Brasil e a produção industrial de São Paulo supera a de todos os estados brasileiros, por esse motivo São Paulo foi a cidade que mais se urbanizou. A diferenciação urbana e a produção social do espaço são importantes para compreender o contexto de urbanização em São Paulo e o deslocamento da população negra. O espaço urbano é produto do trabalho social humano e esse produto é apropriado de forma diferenciada, sendo o produto dessa apropriação diferenciada, a terra-localização ou localização (VILLAÇA, 2015) e diferenciado a partir de sua localização, composta pela infraestrutura urbana, as construções e a facilidade para acessá-lo. O Estado tem papel crucial na produção de localizações. A riqueza e o bem-estar de territórios particulares aumentam à custa de outros. As condições geográficas desiguais não advêm apenas dos padrões desiguais de dotação de recursos naturais e vantagens de localização, também são produzidas pelas maneiras desiguais em que a própria riqueza e o próprio poder se tornam altamente concentrados em certos lugares, como decorrência de relações assimétricas de troca. Uma das tarefas essenciais do Estado


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Territórios negros Nasci no Bixiga, na rua onde hoje fica o Teatro Oficina! - Sua avó , quando veio de Minas para São Paulo foi morar em um cortiço na Rua da Glória (região central da cidade); - Quando seus avós chegaram aqui na Vila Dalila só tinha mato³. As três memórias acima são da minha família, a primeira de meu pai, Claudio, e as duas últimas de minha mãe, Margarida, e são um pequeno recorte do deslocamento da população negra na cidade de São Paulo.Vivemos há muitas décadas na zona leste de São Paulo, mas, como no caso de tantas outras famílias negras, esse não é o nosso lugar de origem. A história dos negros e negras na cidade de São Paulo é marcada pelo deslocamento, segregação racial e urbana e pela construção de territórios de resistência. Tratar destes territórios engloba a dimensão das vivências, relações, trabalhos, produções de cultura e de resistência, e reprodução de desigualdades sociais. Além do trabalho na grande lavoura, os negros e negras ocupavam-se dos serviços domésticos e do pequeno comércio. A circulação desta população, como escravos e/ou libertos, pelas ruas, como vendedores, ambulantes, quitandeiras, pessoas em trânsito para os trabalhos domésticos nas casas senhoriais, escravos de tabuleiro, fazia parte do cenário do centro velho da cidade. Próximo a essa região, concentravam-se as áreas de moradia das elites. Configurava-se também, como territórios negros da época,

cidade, extermínio e segregação urbana e racial

é tentar preservar o padrão de assimetrias espaciais de troca que seja mais vantajoso para ele (HARVEY, 2014). A diferenciação espacial pela localização e a intervenção estatal, ganham outra dimensão no início do século com a intensificação da urbanização, deixando mais visível a segregação socioespacial. O capitalismo industrial, ao exacerbar a divisão social do trabalho e a luta de classes, acentuou a divisão social do espaço: era quase natural que as classes dominantes continuassem a apropriar-se dos setores urbanos mais valorizados, justamente por sua localização privilegiada, por sua acessibilidade, e pela infraestrutura disponível, deixando os bairros menos privilegiados para as classes mais baixas. A população negra compunha e compõe as classes mais baixas , e para ela foram destinadas as localizações com menor infraestrutura urbana da cidade.


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os quilombos urbanos, como os Campos do Bexiga – na época Mata do Saracura - e as irmandades e as regiões de Santa Efigênia, Barra Funda, Lavapés. No pós-abolição, negros e negras continuaram habitando essas regiões, vivendo em porões e cortiços. A constituição de um mercado imobiliário dual, começou com a proibição de instalar cortiços na zona central definida pelas Posturas de 1886 e reiterada pelo Código Sanitário de 1894. Dos territórios negros à formação das periferias Na administração do prefeito Antônio Prado (1899-1911) foram realizados os chamados “trabalhos de melhoramentos da cidade”: o alargamento e a construção de ruas, a construção de praças, a transferência e as demolições de mercados. Neste período, a população negra foi desalojada de seus territórios. Os “trabalhos de melhoramentos da cidade” inseriam-se nos planos urbanísticos, forma pela qual o Estado exercia o seu controle sobre a produção do espaço urbano. As relações de poder se estabeleciam no âmbito urbano, por um lado, em torno do privilégio dado às elites, no direcionamento dos recursos públicos e na construção de seus bairros, e, de outro, pela exclusão que atingia a população urbana mais pobre. Estes trabalhos culminam com o processo de periferização das classes populares (abertura de loteamentos, autoconstrução em bairros distantes das áreas equipadas pela rede de transporte público da cidade, segundo uma lógica de higienização). Amparadas pela ideia de higienização dos bairros mais pobres – espaços em que se verificava uma relação direta entre insalubridade e doenças como a febre amarela, entre outras – as intervenções da época aproveitavam tal justificativa para promoverem a expulsão da população mais pobre das áreas centrais e renovar esses bairros com novos padrões de ocupação. Em São Paulo a origem da intervenção do poder público no controle da produção do espaço urbano e da habitação deu-se através de medidas urbanísticas higienistas. A autoconstrução de casas, na qual os próprios habitantes construíam as suas moradias em loteamentos irregulares ou em favelas, e a pressão daqueles para que o Estado reconhecesse estas áreas e instalasse serviços públicos, foi o padrão de formação das periferias da cidade de São Paulo, representando o símbolo de padrão de segregação centro-periferia, predominante durante o desenvolvimento da cidade dos anos 40 aos 80 (CALDEIRA, 2013). O Código de Obras de São Paulo de 1932 permitia o reconhecimento dos loteamentos irregulares da periferia sem, no entanto, esta-


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Caminhos desiguais Com o objetivo identificar a localização espacial dos territórios com maior vulnerabilidade social dos municípios de São Paulo, foi criado pela Fundação SEADE o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) com grupos enumerados de 1 a 7, quanto maior o número, pior a condição de vida, apresentando os seguintes níveis: baixíssima, muito baixa, baixa, média, alta, muito alta e muito alta rural. As regiões com maior vulnerabilidade social estão concentradas nos extremos da cidade, e, as de menor, na região do quadrante sudoeste. Em 2010, 70,1% da população da cidade de São Paulo vivia em áreas de baixa, muito baixa ou baixíssima vulnerabilidade social e 7,5% da população residia em territórios de alta vulnerabilidade social. Os grupos de menor vulnerabilidade social concentram-se nas subprefeituras da Lapa, Pinheiros, Santo Amaro, Vila Mariana e Butantã. Nos extremos do município, nas subprefeituras de Campo Limpo, Capela do Socorro, São Miguel, Guaianases e Parelheiros, há a concentração dos grupos de alta e muito alta vulnerabilidade. Ao analisar a distribuição dos homicídios no espaço urbano da cidade de São Paulo, o Instituto Sou da Paz6, constatou que as localidades de maior incidência de homicídios concentram-se nas

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belecer os critérios norteadores, deixando-os a cargo dos técnicos municipais e da Diretoria de Obras, o que deu ao Estado condições de selecionar, muitas vezes, segundo interesses eleitorais e imobiliários, as áreas a serem urbanizadas, marcando a constituição destes territórios pelo descaso do Poder Público no que tange à garantia de condições dignas de vida e infraestrutura de acordo com as necessidades dos habitantes destas localidades. A segregação negra está atrelada ao processo de zoneamento social. Olhar para a composição étnica da população da cidade de São Paulo e para as regiões que cada segmento habita, demostra que a segregação também é racial. A população negra representa 37% dos habitantes da cidade de São Paulo, brancos representam 60.6%, e amarelos, 2,2%4. Parelheiros, M’Boi Mirim e Cidade Tiradentes, localizadas nos extremos da cidade, são as três subprefeituras com maior percentual de negros, 57%, 56% e 54% respectivamente, em contraste com as subprefeituras de Vila Mariana e Pinheiros, localizadas no quadrante sudoeste, ambas com um percentual de 7% de negros5.


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áreas correspondentes à 6ª seccional, que reúne diversos distritos policiais da zona sul e abrange os bairros de Parelheiros, Santo Amaro e Cidade Ademar, representando 25,3% dos homicídios. Em segundo lugar está a 8ª delegacia seccional, que abrange as subprefeituras de Guaianases e Cidade Tiradentes, correspondendo a 13,7%; as 2ª e 5ª seccionais, cujas jurisdições encontram-se nas subprefeituras de Pinheiros, Vila Mariana e Lapa, apresentam o menor volume de registros de homicídios, 4,4% e 3,6%, respectivamente. Mataram o Davi Davi, meu primo, foi assassinado em 1992, aos 22 anos. Até hoje a minha família não sabe muito bem o motivo e a autoria da execução. O que sabemos e o que sentimos é a falta que ele faz, a dor que sua morte nos causou, das tantas coisas que ele poderia ter realizado, abraços não dados, fotos que não foram tiradas, conversas que não aconteceram, festas e momentos marcantes que ele não pode compartilhar conosco. Vinte e seis anos se passaram, e eu continuo vendo pelas ruas, jornais e revistas, relatos de muitos “Davis” sendo executados, arrancados de suas vidas, de suas famílias, de suas possibilidades; estórias que têm muitos pontos de contato: a cor da pele, o lugar de moradia, a trajetória familiar: as mortes dos “Davis” vêm se tornando algo cotidiano e natural. Helicópteros, faixa amarela, tiros, corpo negro caído no chão fazem parte do cotidiano das periferias do Brasil há décadas. Não é episódico, trata-se de um processo construído sistematicamente. A distribuição racial, a vulnerabilidade social e a distribuição de homicídios na cidade de São Paulo demonstram a construção desse processo e escancaram a sonegação a direitos básicos. demonstrando as condições de vida precárias vivenciadas nas periferias por grande parte da população negra. Essa realidade impõe a necessidade de medidas urgentes de reversão da condição de vulnerabilidade a qual negros e negras estão submetidos, que passa por criar uma nova forma de ser cidade, que se proponha a reverter o processo histórico de segregação racial e urbana.


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cidade, extermínio e segregação urbana e racial


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Sigo respirando... Continuam, é assim... Simplesmente não param de nos matar, prender, violentar. Essa senzala, 100 ±100±100 com alas que se reinventam nesses mais de 300 anos. Então, a saída é desistir? Já que isso não acaba mesmo! Respirar? Você está me pedindo para respirar é isso mesmo que eu estou ouvindo? Sim, minha irmã, é isso: pare! Olhe para o seu corpo, sinta a sua respiração. Pense em algum ancestral seu, pode ser sua avó, mãe, avô… tente ir mais fundo, pense nos ancestrais deles e delas… se você for mais fundo ainda na sua imaginação, talvez consiga visualizar as praias da África, os reinos, as terras de onde elas e eles foram arrancados, porque aqueles(as) ancestrais existiram e resistiram. Você, de certa forma, está aqui, hoje, com a oportunidade de escrever outra estória, nesse tempo, nessa terra, aqui, agora… Um dia você também será lembrada e deixará a sua marca, daí resistir não acaba sendo uma opção, mas uma condição de existência. Não precisa ser sozinha(o) não é sozinha(o). Entendeu? Siga respirando!


137

¹ Estudo Global sobre Homicídios 2013 Escritório das Nações Unidas sobre drogas e crimes (UNODC, 2013) ² Evolução de homicídios na cidade de São Paulo -Instituto Sou da Paz ³ Falas de Margarida e Claudio, meus pais 4 Censo do IBGE - 2010 5 Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial da cidade de São Paulo 6 Homicídios na cidade de São Paulo: diagnóstico das ocorrências registradas entre janeiro de 2012 e junho de 2013

referências bibliográficas

BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008 BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. 4ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2004 CALDEIRA. Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2013 DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós- abolição. São Paulo: editora Senac, 2005 FERREIRA, João Sette Whitaker. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. LABHAB, 2005. Disponível em <goo.gl/kQyM6Y> Acesso em: 20 jan. 2016 HARVEY, David. O novo imperialismo. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2014. INSTITUTO SOU DA PAZ. Homicídios na cidade de São Paulo: diagnóstico das ocorrências registradas entre janeiro de 2012 e junho de 2013 Disponível em <http://www.soudapaz.org/upload/pdf/3_homicidios_sp_ligiarechenberg.pdf.> Acesso em: 15 jun. 2015 KOGA, Dirce. Medidas de cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. São Paulo: Cortez, 2003 OLIVEIRA. Reginaldo José de (org). A cidade e o negro no Brasil: cidadania e território. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2013 ROLNIK, Raquel. Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro), Estudos afro-asiáticos. Rio de Janeiro, n.17, p. 29-41, 1989 ________. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, Fapesp, 1997 SANTOS, Milton. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002 SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial –Relatório igualdade racial em São Paulo: avanços e desafios – Relatório SP Diverso. São Paulo, 2014. Disponível em <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/ secretarias/upload/igualdade_racial/arquivos Relatorio_Final_Virtual.pdf> Acesso em: 25 out. 2016 SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Planejamento – Município em mapas: índices sociais, 2004. Disponível em <http://www9.prefeitura.sp.gov.br/sempla/mm/ mapas/indice5_1.pdf.> Acesso em 28 abr. 2017 UNODC, 2013. Relatório mundial sobre drogas. Nações Unidas. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpobrazil//Topics_drugs/WDR/2013/Sumario_Executivo_Portugues_FINAL.pdf.>Acesso em 12 mai. 2017 VILLAÇA, Flávio. O território e a dominação social. In: Margem esquerda. São Paulo: Boitempo. V. 24, p. 31-36, 2015 WAISELFISZ, Jacob. Mapa da violência 2015: mortes matadas por armas de fogo. Unesco, Brasília, 2015. Disponível em < https://www.mapadaviolencia.org.br/ pdf2015/mapaViolencia2015.pdf> Acesso em 12 mar. 2015

cidade, extermínio e segregação urbana e racial

notas


rosana paulino

artista visual brasileira, educadora e curadora. é doutora em artes visuais pela escola de comunicações e artes da universidade de são paulo e especialista em gravura pelo london print studio

SOBRE O ATO DE

PRODUZIR


139

sobre o ato de produzir


140 rosana paulino

Pensar uma justificativa para a realização de um trabalho de arte leva a questionar: Por que fazer arte? Ou ainda, como justificar o que o/a artista produz? Não creio que existam explicações claras e precisas que sustentem o ato da criação. Esta é uma questão que tem acompanhado a história da humanidade e para à qual não temos uma boa resposta. Podemos l apenas considerar que a arte existe e está disponível para nossa apreciação e desfrute e que a sua produção é algo que, em algumas pessoas, parece obedecer a um desejo quase irreprimível de comunicação. Esta transmissão de conteúdos singulares que pulsam dentro do ser, nestes casos, se dá através da realização do trabalho artístico. Devemos considerar, entretanto,

que

esta

colocação,

talvez

excessivamente simplista, não leva em conta os fatores extremamente complexos que instigam alguém a realizar uma obra artística, pois esta é uma discussão que não caberia nestas páginas. Convém deixar claro, porém, que estamos falando daqueles seres comprometidos com uma busca que, em alguns casos, chega mesmo a dar sentido à vida e não daqueles preocupados em utilizar a arte apenas como meio para se alcançar status e fama. (...) Sempre pensei em arte como um sistema que devesse ser sincero. (...) Acredito que o grande desafio desta postura como artista está em “ligar-me”, de maneira simbólica, ao ambiente do qual provenho, resgatando e trabalhando assim algumas das raízes que me levaram a ser quem sou e que ajudaram, de certa forma, a


forjar minha poética. É claro que esta posição é, em si mesma, um risco que resolvi assumir, pois a obra que adota estas características – e este é também o caso daquelas que optam por discutir questões políticas – corre, sem dúvida nenhuma, o risco de se tornar ilustrativa ou anedótica. Porém, como não responder aos desafios impostos a mim como artista, uma vez que o grupo do qual provenho talvez seja a principal fonte de inspiração do meu trabalho? Que sentido há em filiar-me a uma “arte internacional” na qual não acredito e que pretende, de forma autoritária e etnocentrista, decidir os caminhos da contemporaneidade? Onde se situa a artista que subia em pés de fruta, que assistiu a diversas festas religiosas quando criança, que teve em sua criação um mundo mágico relacionado à cultura popular e que, depois de crescida, não se reconhece no universo da arte contemporânea que a circunda? (...) Retornando aos aspectos sobre a relação entre o veículo escolhido para a expressão artística e a forma como ele é conjugado à ideia a fim de transmitir uma mensagem, é necessário ainda notar que este uso tem como um de seus principais motivos o resgate do/a artista como produtor, dotando assim de significado o ato do fazer, da manualidade, o que esta mais próximo do universo das artes ditas populares do que aquele ocupado pela arte contemporânea. Mas escutar com carinho e atenção aquilo que as artes e a cultura popular nos falam não é tarefa fácil. Não há como negar que, tendo recebido um treinamento como artista que passa pela frequência a uma Universidade de elite, por ter estudado fora do país e ao cumprir todo um


rosana paulino

142


ciclo universitário que vai do bacharelado ao

através do trabalho, novas leituras, novas

doutorado, minha visão de mundo é diferen-

compreensões. Este talvez seja o grande

te daquele criador que não passou por estas

desafio a ser enfrentado, pois não se trata

experiências. Porém, a raiz da qual procede-

de reproduzir elementos desta cultura e

mos é, em muitos casos, a mesma. Mas fica a

sim de produzir a partir do contato com

dúvida: quanto da raiz resta na criação artís-

ela. Parodiando Oswald de Andrade, seria

tica, quanto vem do treinamento e dos círcu-

como deglutir, mastigar estes elementos e

los socioculturais frequentados?

posteriormente regurgitar algo de, senão com a pretensão do novo, ao menos sincero

Introjetar a arte popular em si, sentir a cultura da qual provenho, refletir e oferecer,

e verdadeiro em relação aquilo que desejo realizar como artista. (...)


rosana paulino

144


145 sobre o ato de produzir

referências bibliográficas Trecho extraído de: PAULINO, Rosana. Imagens de Sombra. Tese de Doutorado. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. USP: São Paulo, 2011) Série Assentamento. (2012-2013) Técnicas Variadas em papel e tecido. Série Bastidores (1997) Imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura. 30,0cm diametro Rainha (2006). Terracota e vidro - 55,0x36,0x24,5 Atlântico Vermelho (2017) Impressão digital sobre tecido, recorte e costura - 127,0 x 110,0 As gentes. Página do Livro História Natural (2016) Técnica mista sobre papel - 28,5x38,0


146 mel duarte

é treta, preta É treta preta,

muita treta.

da merenda. Capitalismo invade

Trabalhar longe e a passagem

acaba com sua renda

e

sair na rua numa noite de sexta, esperar o ônibus de quase parado te diz uma pá de besteira e não satisfeito

batendo punheta.

É treta preta, muita treta. Enquanto a

mas ter discernimento pra escolher sua meta é um item

diz que é laico mas só da brecha,

e quando precisa de

tentar impor uma decisão na sua vida! É preta… é treta! de você se contesta! Mas para pra pensar,

quem é que

e quem adestra? Passam-se anos e ainda querem nos então

porque

de

tantos

resquícios?

Crianças

ainda

enquanto mulheres sofrem sendo espancadas a cada

15

quando o ego fala mais alto que o senso crítico, esfalcam

vai sendo esquecido. É preciso retomar ensinamentos mútuo! Para que uma pequena parte que impera, lembre que também saiu de um útero.


147

só aumenta, enquanto eles compram jatinho com a verba

só uma cesta básica pra família não dá conta. É treta preta, volta e ele nunca chega, daí um

malandro safado, no carro

com a humilhação, ainda faz questão de mostrar que

está

farda faz a vez do capeta. Maldade tá solta, eu sei, atenta, básico da caixa vida ferramenta. O estado eu sei, te testa,

suporte pra lidar com suas feridas, utilizam da religião pra

Filho do cão aqui, faz hora extra, explora, massacra e aí de

rege essa orquestra? Para pra entender, quem é adestrado manter em silêncio, dizem que estamos em uma nova era, passam fome,

meninos nem chegam a ser homens,

segundos. Penso se para esse mal inventaram um antídoto, pois lares, aumentam-se os cárceres e o sonho de Palmares dos antigos, aplicar o matriarcado e praticar o respeito

orgulhosa por nascer com um pau entre as pernas

é treta, preta

mel duarte

escritora, poeta, slammer e produtora cultural. foi destaque no sarau de abertura da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) em 2016


148 camila medeiros

ilustração: larissa superti


estudante de arquitetura e urbanismo da fauusp

Desde os anos 1970, autoras feministas vêm criticando as noções e papéis relacionados ao gênero, tratando-o como objeto social e buscando suas raízes. Temas que abrangem desde a subjetividade feminina até a sua participação como sujeito histórico no sistema capitalista foram problematizados a partir de distintos olhares. O que está posto, no entanto, é que o gênero, e toda sua carga de atribuições, é uma noção social e histórica, e, portanto, passível de mudança. É notável que na passagem do século XIX para o XX se deu a diferenciação das esferas públicas e privadas, porém, para além disso, consolidaram-se os papéis de gênero, associando o homem ao trabalho produtivo e ao mundo público e a mulher ao trabalho reprodutivo e ao mundo privado. Essa definição delineia o culto da domesticidade, que determina o papel da mulher como reprodutora e, em meados do século XX, desagua na personagem da dona de casa, símbolo da mulher ideal (FEDERICI, 2017). No processo de paulatino distanciamento entre o trabalho e o lar, a casa vai se tornando ao mesmo tempo expressão e refúgio da modernidade, articulando um movimento dialético em relação à

gênero, corpo e casa

camila medeiros

149

gênero, corpo e casa


150 camila medeiros

cidade. Este universo recluso, ainda assim, é constantemente atravessado pelo mundo público e carrega o peso do trabalho doméstico como contradição inerente. O que está em jogo não é somente a separação do trabalho da casa, mas sim a conformação de uma divisão sexual do trabalho que, como se viu, designa aos homens a esfera produtiva do mundo público e às mulheres a esfera reprodutiva do mundo privado, dessa forma orientando um aos interesses do capital e outro à manutenção da vida cotidiana. Por isso, a mulher, símbolo do domínio privado, será o elemento central na busca pela resolução dessa contradição, tendo seu corpo disciplinado e os elementos arquitetônicos ao seu redor mobilizados como instrumentos nessa empreitada de apagamento do trabalho doméstico. Assim, vão se consolidando os papéis de gênero que até hoje resistem, ainda que sobre bases cada vez mais frágeis. Porém, como já foi dito, se estas definições são históricas, necessitam de um elemento que legitime sua existência: a naturalização. Logo, a figura da dona de casa é a matéria necessária para a estruturação da aptidão natural da mulher às questões do lar. Dessa forma, a subjetividade feminina se configura a partir de uma identidade que não é sua, individual, mas sim familiar: um fenômeno estratégico para a percepção da mulher não só como representante da família, mas também como acessório doméstico (CARVALHO, 2008). O papel social da mulher e a sua conformação como sujeito é pautado a partir desse conflito que se estabelece entre o trabalho doméstico e a idealização do lar como local da negação do trabalho. A construção do que é ser mulher vai se dar, portanto, sempre no sentido de resolvê-lo. Se a casa existe como universo privado em oposição ao público, e o trabalho é a expressão da esfera pública, o trabalho doméstico é a manifestação maior desta contradição. Logo, o seu apagamento é o principal operador na dissolução desse conflito, instrumentalizando-se sobre o corpo feminino. É sob esta análise que a naturalização se torna essencial para o reconhecimento da desvalorização do trabalho reprodutivo, corroborando para a conceituação deste como não trabalho. Na empreitada de invisibilização do trabalho doméstico, a casa, o trabalho e o corpo feminino serão as três unidades fundamentais, sintetizadas no disciplinamento do corpo. A casa é o cenário maior desse processo: para além de um olhar focal sobre a modernidade, é indispensável pois constrói conjuntamente a


151 gênero, corpo e casa

narrativa na qual a domesticidade é parte crucial. A especialização do universo doméstico é uma força potente nessa busca por apagar as marcas do trabalho uma vez que conforma as fronteiras materiais e imateriais à atuação dos corpos. A racionalização, sob esse ponto de vista, passa também pela ideia da conformação de um saber oficial. A adaptação dos princípios higienistas e tayloristas, assim como a introdução de novos objetos e equipamentos domésticos próprios da expansão industrial e do mercado consumidor serão agentes transformadores do cotidiano, impondo novos padrões de comportamento aos quais as mulheres deverão se adequar. A cozinha é um espaço exemplar desse processo. Progressivamente, se insere na casa, porém separada e transformada em laboratório pelos saberes higienistas: surgem novos equipamentos em função da instalação dos sistemas de água e gás, aparece uma linha de produção dos alimentos e a sujeira, que é característica como resultado de trabalho, é quase eliminada, se não relegada às áreas de serviço (PAULILO, 2017). A vivência do corpo feminino neste espaço, antes ligada a saberes tradicionais e informais, é transformada em função da técnica, fazendo deste não um processo neutro, mas sim político e ideológico no sentido da elaboração de mecanismos disciplinadores (SILVA, 2008; MOREIRA & RAGO,1984). A especialização atinge também o ambiente construído: surgem novos espaços da casa, o hall de entrada, a sala de estar e a sala de jantar, que conformam sua zona social, na qual a linha pública sempre está presente, mas sob o olhar do visitante, como vitrine (HOMEM, 1996; CARVALHO, 2008). A cozinha, a área de serviço e o quintal, ao contrário, conformam todo um espaço da casa independente, relegado aos fundos, no qual o visitante jamais saberá o que acontece e no qual se chega sem deixar rastros. Espaço onde a linha pública se manifesta na marca do trabalho doméstico, o trabalho que não se conseguiu eliminar, mas se conseguiu apagar e invisibilizar. A racionalização atua na construção de espaços cada vez mais específicos, estabelecendo fronteiras mais fixas na diferenciação entre o lugar do trabalho e do não trabalho; e também na demarcação dos significados simbólicos desses espaços e de quais corpos são pertencentes a eles (MCCLINTOCK, 2010). Assim, se constitui a arquitetura do não visto nas casas modernas. A ela, somam-se também os corpos não vistos, constantemente disciplinados por essas fronteiras materiais e imateriais, lugares no qual se pode estar porque não se é vista ou lugares que podem existir desde que não sejam vistos. No Brasil, a escravidão deixou fortes mar-


152 camila medeiros

cas que persistem até hoje, a empregada doméstica é uma delas, constituindo a corporificação do conflito do trabalho no lar. Ao contrário do que se passou nos países centrais, nos quais a figura da dona de casa de classe média teve um papel central, no Brasil as mulheres de classe média e de elite não se tornaram trabalhadoras, mas, dando continuidade ao projeto da escravidão, contrataram quem fizesse o trabalho doméstico para elas, mantendo também a estrutura da divisão sexual do trabalho (ÁVILA, 2009). Este corpo alheio à família desmascara o permanente conflito, pois adentra o universo privado para exercer trabalho. Ademais, este trabalho é remunerado somente porque é contratado, transgredindo também a linha tênue entre trabalho produtivo e reprodutivo, uma vez que as tarefas domésticas realizadas por essa mesma mulher e que são remuneradas na casa de quem a contrata, jamais o seriam na sua própria casa. A empregada doméstica coloca em xeque os preceitos da separação público e privado e escancara a existência do trabalho produtivo dentro da casa. Assim, sofre ainda mais intensamente a ação dos mecanismos de disciplinamento: a atuação do seu corpo é mais restrita, circunscrita à zona de serviços, e nos outros ambientes é tratada como corpo não visto: seu objetivo é passar sempre despercebida. A figura da dona de casa teve seu ápice na década de 50, concretizada nas propagandas das esposas e mães perfeitas em seus aventais sempre limpos. Ainda assim, na segunda metade do século XX teve início a problematização dessa personagem em consequência do questionamento dos papéis de gênero. As mulheres começaram a adentrar o mercado de trabalho, ganhando cada vez mais espaço e reconhecimento no mundo público, no entanto, isso não significou, pelo menos no Brasil, o enfraquecimento das estruturas da divisão sexual do trabalho. A permanente e quase inabalável presença da empregada doméstica nas casas brasileiras de classe média e alta significou que, ainda que algumas mulheres deixassem o trabalho reprodutivo pelo produtivo, isso não resultava em conflito uma vez que o trabalho doméstico era realizado por outra mulher. Assim, a libertação de uma mulher não significou a libertação de outra, mas só foi possível pela maior exploração desta (ANTUNES, 2005). Atualmente, as casas ainda são o repertório da arquitetura do não visto: o elevador e o corredor de serviços, a cozinha, a área de serviço e o emblemático quarto da empregada, o menor cômodo da casa, refletem na sua existência toda uma história de apagamen-


153

referências bibliográficas ÁVILA, Maria Betânia de Melo. Divisão sexual do trabalho e trabalho doméstico. O tempo do trabalho das empregas domésticas: tensões entre dominação/exploração e resistência. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Pernambuco, 319p., 2009 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870 - 1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2008 FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. São Paulo: Elefante, 2017 HOMEM, Maria Cecília Naclério. O palacete paulistano e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1867-1918. São Paulo: Martins Fontes, 1996 MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade do embate colonial. 2010 MOREIRA, E. F. P. & RAGO, L. M. O que é taylorismo. São Paulo: Brasiliense, 1984 PAULILO, Clarissa de Almeida. Corpo, casa e cidade: três escalas da higiene na consolidação do banheiro nas moradias paulistanas (1893-1929). Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Design e Arquitetura) – FAUUSP, 2017 SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008

gênero, corpo e casa

tos. Transitam sobre essa casa os corpos pertencentes e não pertencentes, balizados pelas fronteiras materiais da arquitetura e imateriais dos significados simbólicos e sexuados dos diferentes espaços. Nas casas brasileiras de classe média, esses lugares deixaram de ser somente femininos para se tornarem, além disso, espaços das trabalhadoras domésticas, adicionando à problemática do sexo também a questão de classe e raça.


154

inolvidable

Helena helena Zelic zelic

helena zelic

é poeta, comunicadora, militante do movimento feminista e autora dos livros “Durante um terremoto” (2018) e “Constelações” (2016)


155 inolvidable

perguntou o que é mulher apenas para destrinchar respostas depois perguntou o que é o fogo brincava mas não sabia exatamente se da combustão vinha o calor ou vice-versa se vinha das pernas o toque ou o toque nas pernas duas mulheres sussurram sílabas mais altas do que deviam tudo é mais do que devia menos o silêncio duas mulheres atracadas no topo do mundo visíveis a olho nu as vizinhas comedidas às senhoras que passeiam com seus cães também idosos em passos lentos a dança sincrônica dos passos dos cachorros duas mulheres uivam ao mesmo tempo

no topo do mundo a grande janela no meio da rua e em cima dela uma e a outra tenho medo de deixar esta imagem sumir pelos dias repito-a na fronte dos olhos a luz cabisbaixa dos postes da prefeitura a formar meias luzes seu rosto e o meu as mãos espelhadas tenho medo de que suma na memória a dobra da perna repito-a até que encontre a palavra exata e sua tradução em mil línguas e a minha e a sua.


fotรณgrafa e estudante de design daFAU USP

natรกlia maria barreto mota

de

caixa

natรกlia maria barreto mota

156


d o r a pan



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caixa de pandora


fotografia: Mr. Leather


161

entrevista

entrevista com dom barbudo

BDSM


162 dom barbudo

DOM BARBUDO é o nome pelo qual gosta de ser chamado. Adepto às práticas BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), ser o dominador durante as sessões é fator que adiciona ‘‘dom’’ ao seu nome. De São Paulo, loiro, barba ruiva, mais de 40 anos, 1,65m, 68 kg; se diz ser mandão e controlador. Se atrai em descobrir zonas erógenas no corpo, e colocar os fetiches dos submissos em prática, deixando claro que a sua maneira. Leather (couro) é um material símbolo da cultura dos praticantes de BDSM e fetichistas, principalmente no mundo gay, onde denota práticas e estilos de vestir organizados ao redor de atividades sexuais e erotismo. Dom Barbudo foi o vencedor da primeira edição do Mr. Leather Brazil realizada em março de 2017, disputando em Chicago, o concurso International Mister Leather, ficando em 10º lugar. Possui um espaço destinado às práticas de BDSM e ao sexo que, segundo ele, possui um toque de conforto e requinte, mas não perdendo o toque de sensualidade, o qual nomeia de Masmorra. Um lugar equipado com todos os acessórios que costuma utilizar durante as sessões de BDSM, algemas, chicotes, mordaças, coleiras, velas, etc. Existem regras para adentrá-la, levando em conta seus interesses, e a proibição de menores de 18 anos na realização das práticas BDSM. Foi na Masmorra, no dia 17 de janeiro de 2018, que Dom nos recebeu para discutir seu modo de vivenciar o prazer e sua visão sobre a cena BDSM. CONTRASTE: Em que momento da vida você descobriu as práticas BDSM e como foi esse processo de descoberta para você? DOM BARBUDO: Bom, nós estamos falando de uma idade que eu tenho bem distante da idade de vocês, então na minha época, quando começou a sexualidade e tudo mais, não tive acesso à internet; não tive acesso a essas possibilidades que fazem com que a gente tenha prazer fácil hoje em dia, então era tudo mais complicado. Eu, por ser gay numa cidade onde a oferta não era tão fácil, vi muitos filmes pornôs, e nesses filmes pornôs dessa época – e revistas pornôs, também – tinha muito visual leather e visual BDSM. Mas como a gente não conecta às vezes as coisas, por não termos o contato com aquela realidade, aquilo tudo parecia imaginação, criado para ser um cenário de filme, ou um cenário de revista – nunca imaginei que aquilo fosse real.... Até que eu fui numa viagem para


163

querendo uma como submissos”

experiência

os Estados Unidos, no ano 2000, com um namorado meu e a gente estava na fila de um bar. Aquele bar era um bar leather. E eu não sabia, não tinha a menor ideia que aquilo existia. Quando eu me deparei com tudo aquilo de uma vez só, eu me dei conta, caiu a ficha: aquilo não era só imaginação. Não era só filme, nem revista – isso existe. E é praticado. Claro que eu demorei para entender tudo isso... C: E depois, como você levou isso para a sua vida? Porque aí você conheceu, ficou extasiado, só que tem ainda uma distância, né? DB: Tem. Aí eu voltei para São Paulo, nós voltamos, porque nós éramos namorados, e eu fui procurar – era uma relação aberta já – fui procurar contatos e pessoas por tudo que era lugar, até que descobri um grupo no Orkut. E comecei a interagir com eles, comecei a ir nos bares gays que tinham um dia de leather, não BDSM, e eu já ia com couro. Lembro que as pessoas me olhavam, riam, ficavam apontando e falando de mim, e eu lá duro – claro que parecendo um avestruz, né? Mas era assim que eu me colocava: ia nas boates e ficava todo de couro. C: Sabemos que pessoas diferentes entram em contato com você para visitar sua masmorra e realizar fetiches, tanto seus quanto delas. Como funciona o primeiro contato, quais são as regras e como evitar a falha no consentimento? DB: Bom, as pessoas vêm por várias fontes. Primeiro, hoje em dia, tem muitos aplicativos gays – tem o Grindr, o Hornet, o Scruff – então vêm por esse canal, pelo meu site, também, pelo Facebook, pelo Instagram… E sempre [me apresento] como Dom, em todos os lugares eu estou como Dom. Eu sou Dom, então eles vêm querendo uma experiência como submissos. Aí acontece a primeira abordagem, eu pergunto o que a pessoa gosta, o que ela busca, passo algumas

entrevista

“eu sou Dom, então eles vêm


164 dom barbudo

regras – do tipo não fico com menores de 18 anos – e é tudo consentido. E a partir do questionário que eu vou fazer a sessão com ele. C: E você nota que eles sempre têm esse discernimento do que é um limite para eles? DB: Olha… Sim. Eu não sou um cara agressivo, eu não faço além da conta. Para mim o BDSM está ligado... O meu maior fetiche, vamos começar assim, o meu maior fetiche é iniciar as pessoas. Então eu não tenho um intenso tesão em machucar, em bater, em trancar, não é isso que eu gosto. O que eu gosto é aquele cara que sente muito medo, que chega aqui tremendo, e que vai aos poucos conhecendo as coisas e pedindo para que eu faça as coisas com ele, mas esse envolvimento, esse tesão aí é o que me atrai. E isso que eu vou entregar é um ouro para vocês, porque as pessoas não sabem muito bem disso, mas as primeiras coisas que eu faço com um submisso são pelas quais ele vai sentir muito tesão depois. Por exemplo, se ele chegar, não me ver, e eu lamber o pescoço dele, quando eu perguntar para ele qual é a parte do corpo que ele sente mais tesão, ele vai dizer pescoço. C: Jura? Mas isso é uma característica psicológica? DB: É. Então por isso que, dependendo do cara, eu vou fazer algumas práticas iniciais com ele antes de ele me ver ou antes de ele preencher o contrato, que são as práticas que eu teria tesão em fazer com ele, para depois ele sentir o tesão e marcar elas para que eu faça. C: Olha essa estratégia... – Dom ri – C: E você recebe bastante pessoas? DB: É, eu estou no número 412. C: Inexperientes? DB: Olha, desses 412, eu acho que 97% foram inexperientes... Os que vieram experientes, vieram dizendo que eram inexperientes.


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DB: Eles me enganaram! [Dom diz entre risadas] Porque já leram isso em algum lugar e sabem que são excluídos. Ninguém é bobo! C: O que é fetiche para você? DB: As pessoas misturam tudo no mesmo saco, ligando fetiche com desejo. O fetiche, em si, é uma palavra que está muito ligada a alguma peça – ou uma peça de sapato, ou uma peça de vestuário, ou um acessório... – então ele tem uma conexão material. Fetiche é isso, o cara tem fetiche por couro. Então se ele vê um cara de couro, ele vai sentir muito desejo, muita atração, muita vontade, muito tudo. E a outra coisa é o desejo, que daí o cara tem vontade de ser humilhado; às vezes o tesão em si não está ligado à questão de ser humilhado propriamente, ele quer, no contexto gay, um cara que seja másculo, condutor, sedutor e mais forte que ele, num conceito que seria um “homem alpha’’... masculino e tudo mais, que conduz tanto ele, que ele gosta de ser até humilhado para isso. Daí que vem o sentido da humilhação; humilhação por humilhação não faz muita conexão mental. Não sei se ficou claro para ti o que é fetiche. Por isso que as mulheres, por exemplo, têm tanto fetiche por sapato. C: Está mais ligado a uma peça, do que... DB: A uma situação material, a um bem material.. Agora tu vai ter fetiche por pelos, por exemplo. Um homem peludo, por exemplo. C: Mas então não ficou muito claro para mim a diferença entre fetiche e desejo. DB: Tá. Fetiche tu tem por alguma coisa que tu vê nas pessoas e que te desperta algum tesão. Por exemplo, um sapato, uma jaqueta,

“o meu maior fetiche, vamos começar assim, o meu maior fetiche é iniciar as pessoas”

entrevista

– todos riem –


166 dom barbudo

fotografia: Mr. Leather

uma cueca, uma calcinha… Entendeu? Então assim, se tu – independe da mulher que tiver – se tu tiver tesão por calcinha vermelha, quando tu vê um homem, vê uma mulher com uma calcinha vermelha, vai sentir muito tesão. E aí, tirou a calcinha, virou o desejo pela mulher. C: Você acredita que existem fetiches mais normalizados que outros? DB: Olha, eu não encaro assim, porque depois desses 412


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C: Mas acho que não é nesse sentido a pergunta. Quando eu falo normalizados seria mais comuns. Por exemplo, ao meu ver, a podolatria, é um fetiche que me parece mais comum e mais aceito na sociedade do que o voyeurismo, por exemplo. O que você acha? DB: Aí é que tá, eu acho que a gente tem que contextualizar de qual sociedade que tu está falando; por exemplo, eu já convivo numa sociedade [Dom diz entre risadas] que a podolatria é água com açúcar! – todos riem – C: É, eu acredito que sim. DB: Então é isso, a podolatria é mais difundido, porque a podolatria, por exemplo, num contexto hétero – eu não sou hétero, já tive uma relação com namorada e tudo, mas não sou hétero, sou gay, bem gay, então assim... – Por exemplo, quando uma mulher está com um sapato novo, imagino que também venha o tesão do cara em querer lamber os pés dela, porque isso também está ligado ao desejo dele em transformar ela numa deusa... que daí vai lamber os pés da deusa, ela vai dominar, mesmo que instintivamente, por aquela situação. Então acho que tem alguns fetiches que acontecem instintivamente e aí são mais comuns, todo mundo faz, mesmo não se dando conta que aquilo pode ser uma prática de BDSM. C: A maioria das pessoas vivem a cultura BDSM de forma velada. Como é para você que pratica o BDSM de forma profissional, documenta suas sessões e as disponibiliza num website, desmistificando tais atividades? Como foi superar esse tabu? Qual importância disso? DB: Eu gosto de encarar isso como uma questão mais ingênua, por uma autoproteção, eu imagino que as pessoas que me cercam, da minha questão familiar e profissional, nunca me viram na internet.

entrevista

caras eu já vi muitos fetiches, muitos desejos, dos mais diversos possíveis. Eu entendo que esses fetiches e esses desejos estão ligados a vários fatores: primeiro à criação; segundo a uma conexão que o cara teve quando era mais jovem, como um filme que ele viu e conectou com alguma coisa que ele tivesse vontade de fazer. Então os fetiches, eu não encaro como uma doença, ou que alguns são mais saudáveis que os outros, não tem isso.


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Eu, ainda para me proteger, fico imaginando que muitas pessoas do meu contato não lêem [o site]. E os que lêem, não se manifestam. Primeiro, por duas coisas: eu não vinculo a minha vida pessoal – eu sou o Dom Barbudo lá, não tem o meu nome lá. Não vai ter; se uma entrevista como essa precisa do meu nome, a gente não faz. Eu não ganho nada com BDSM. Nem anúncio no site tem, então eu realmente não ganho. Mas assim, eu acho que isso é importante, porque eu vim num momento em que eu fui um dos primeiros do BDSM e que não tem registro histórico disso no Brasil. Agora tem, agora

“as pessoas não sabem muito bem disso, mas as primeiras coisas que eu faço com um submisso são pelas quais ele vai sentir muito tesão depois” tem festas que a gente vai, agora tem o registro do Concurso Mister Leather, tem um monte de coisa; eu sou o primeiro Mister Leather, então surgiu dali. Eu fiz mais o site por uma organização e hoje é uma satisfação pessoal, eu perco horas da minha vida naquele site. C: Este trecho foi retirado do artigo Couro Imperial, de Anne McClintok, que analisa a relação sadomasoquista de um casal vitoriano: “como o S/M é o exercício teatral da condição social, ele é a antinatureza de maneira autoconsciente, não no sentido de que viola o direito natural, mas no sentido em que nega a existência de um direito natural em primeiro lugar.’’ De acordo com a autora a relação sadomasoquista provoca a ordem social tradicional, mostrando que as normas podem ser reversíveis. O que você pensa a respeito dessa afirmação? DB: Eu acho que é muito verdadeira sim, porque as pessoas vêm em busca daquilo que normalmente elas não vivenciam. Elas vêm buscar o lúdico, uma situação, explorar ou vivenciar um momento que foge totalmente do controle dela. Por exemplo, tem muita gente poderosa, com n funcionários, com cargos de chefia, com


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C: É uma procura de um escape da realidade, eu acho. DB: É... É uma realização de um desejo, né? De uma fantasia, de um fetiche que não realiza num contexto social. C: Isso eu acho que também torna... Porque eu acredito que a gente tem um pouco que aquilo que é proibido é mais gostoso, dá um tesão assim, então uma coisa que é meio velada, meio escondida da vida normal dele, que aí você vê ele lá na Faria Lima de terno e gravata, com uma maleta, você nunca imaginaria que ele ia estar aqui... DB: Exatamente! Realizando os n fetiches dele e todas aquelas coisas. C: Qual a diferença em entender o corpo todo como uma zona erógena e não apenas zonas erógenas em algumas partes do corpo? DB: Então, eu acho que é por isso que eu sou tão conhecido pelos caras que querem experimentar o BDSM. Quando vivenciam isso – porque eu realmente não fico fixo nas partes que todo mundo busca dos corpos, eu vejo o resto – aliado ao desconhecido, porque ele não sabe o que vai acontecer com ele, e ao medo... é uma bomba relógio! O cara treme! De prazer, de medo, de tudo junto. C: De acordo com este trecho retirado do mesmo artigo“cenários de S/M são produzidos voluntária e cooperativamente, e o mais frequente é a encenação das fantasias do(a) masoquista”. Segundo Anne, quem detém o controle da fantasia, portanto, é o submisso. Tal afirmação contraria o senso comum. O que você tem a dizer sobre isso? DB: Então, essa é uma pergunta de mesa redonda, todo mundo faz: Quem domina? É o submisso ou é o dominador? E eu enten-

entrevista

funções gerenciais ou de poder mesmo – aquele cara que caneta e a partir dele muita coisa acontece – e ele vem para receber ordens. Pra rastejar, pra pedir, pra implorar que eu domine ele. É uma inversão. Ou vem um cara dentro de um contexto de uma relação hétero em que ele é o ativo, e ele controla a casa, e ele controla a esposa, e ele tem o domínio sobre toda a situação, e vem ser um submisso, querendo ser passivo, querendo obedecer, querendo até, acidentalmente, de repente, deixar algum vestígio para que ela perceba.


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do que é o seguinte, é uma mistura dos dois. A cena é feita pelos dois. O submisso vai me dizer os limites e vai me dizer o que ele gosta ou não. Agora como que eu vou fazer aquilo... é meu. Então é nesse sentido que ele, não domina, mas ele tem o privilégio de estabelecer os limites. Quem não deixa o submisso estabelecer os seus limites, dizendo que está dominando 100%, está descumprindo a base número 1, que é o consentimento. Então para eu fazer alguma coisa com o cara, ele tem que consentir, para que seja bom para os dois – lembrando que este é o meu contexto. Tem pessoas fora do Brasil, em outros países onde o BDSM é mais difundido há muito tempo, que já levam isso como uma questão de modo de vida, entende? Que têm essa relação submisso, escravo, dominador, estabelecida. No meu contexto não, é mais suave a coisa... É mais pela descoberta. Então essas que vão para o estilo de vida, elas estão mais, acho, de acordo com a questão da relação 24/7. Os outros, como eu, é mais pelo desejo, pela fantasia, pela descoberta, não vivenciam isso o tempo todo – não estou de couro. Até estava antes de vocês chegarem… – todos riem – DB: Mas não estou agora. C: Você acredita que o prazer é algo sentido no corpo, ou ele pode vir de uma ideia ou situação? Como Pet Play, por exemplo. DB: As duas coisas. Hoje eu já percebo que o desejo é muito mais mental do que físico. Enquanto tu está estimulando aquela fantasia que o cara te trouxe – e aí é importante a conversa, porque ele vai te contando os desejos dele, o que que ele está pensando – e quando tu transporta ele para a fantasia dele; e aí um parênteses, já vou te dar uma pergunta e uma resposta de graça: por isso que acho que um dos meus melhores acessórios do BDSM é a venda. Porque tu coloca venda na pessoa e ela perde a conexão com o que está acontecendo; ela não está olhando mais, e ela vai entrando na fantasia dela, na imaginação dela, e aquilo tudo vai ganhando um poder muito grande. Então o desejo está muito ligado a isso. Claro que também tem a questão sensorial, quando tu está tocando nas partes do corpo, que o cara também já me informou quais são as mais acentuadas para ele, ele vai sentir tesão, também, então as duas coisas estão caminhando juntas. Por isso que muita gente pode


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fotografia: Vi Grunvald

entrevista

ter um “orgasmo mental’’, digamos assim, sentir muito prazer e sair daqui e gozar 6 vezes, e aqui durante a sessão não gozar. Porque o gozo, a ejaculação não é o final do prazer; ele pode se estender. Ele pode ficar com tanto medo de mim, ou medo da situação, ou estar tão tenso, que não ejacula. Mas o prazer dele vai ser durante anos, se masturbando para mim. Por isso que essas fantasias de Pet Play, de entrar dentro de um saco, de ser algemado, de entrar numa gaiola; todas são fantasias que ele está cultivando, alimentando ali. Pode ser um filme que ele viu. Por exemplo, depois de tanta coisa que já fiz, tem um filme hétero que eu gosto de ver. É uma situação lá no filme hétero que é uma troca de casais e aí tem um momento, um momento, em que o cara olha para o outro com uma cara de desejo – claro que são atores, que já está combinado isso – e eles começam


172 dom barbudo

“A cena é feita pelos dois. O submisso vai me dizer os limites e vai me dizer o que ele gosta ou não. Agora como que eu vou fazer aquilo... é meu.” a se pegar. A partir do momento que eles começam a se pegar já não me importa muito, mas aquele momento que ele olha, eu já vi mais de 1000 vezes! [Dom ri] É o gatilho de cada um, entendeu? C: Na cena BDSM qual a importância da imagem e de como as pessoas se apresentam? DB: Eu acho que a imagem é super importante. Por isso que eu evito dizer que eu já tive experiências como submisso, porque dentro do imaginário das pessoas eu nasci 100% dominador. Porque é isso que as pessoas estão buscando. E isso também está muito ligado à cultura das pessoas. Isso é valorizado. É um contexto, digamos assim: eu encaro a comunidade como sendo uma cena para todo mundo. Todo mundo quer exercer papéis. Como na sociedade. Tem o juiz lá, se tu não chamar o juiz de “Excelência, Vossa Majestade, Doutor...’’, ele vai ficar puto. Pode não parecer, mas ele te destrata. Então ele quer exercer aquela função que ele galgou. O submisso quer ser chamado, identificado e visto como submisso. O dominador vai ser visto como dominador porque as pessoas estão querendo ver ele como dominador. Eu não vou chegar numa cena e falar “Ah, eu sou um dominador e quero ser tratado como submisso’’. Não. Tem gente que eu chego que já vem querer ajoelhar aos meus pés – é uma cena, mas com os seus papéis, assim como na sociedade.

nota entrevista: bárbara rennó e mariana ribeiro transcrição: mariana ribeiro


173 entrevista

fotografia: masculinidade


kaique xavier da silva

estudante de arquitetura e urbanismo da fauusp

CORPO A CORPO 23:10 hrs Ele me beijou e eu fiquei

entranhas desbravando mares, abrindo

excitado. Deixei os meninos na rua, -Falou

caminhos que eu desconhecia, de norte a

cuzão. Falou viado.- Entrei em casa,

sul, de leste a oeste, língua e pele. Minha

tirei a camiseta, a bermuda e o calçado.

virilha virgem e crua, sedenta, molhada

Tomei um banho. Putz, esqueci de fechar

e imatura. Eu? Eu abria espaço nas suas

o portão, esqueci as chaves e o que havia

frestas, nas suas costas, no seu peito, nos

lá fora, e tudo o que havia lá fora, menos

seus olhos, no seu corpo por onde entre o

ele. Ali, no cantinho do banheiro, no meu

azul das janelas entre abertas eu deixava

barraco, eu sentia o seu suor e o seu corpo

os meus dedos entrarem, e com eles...

molhado, me prensando contra a parede.

minha língua, minha boca e finalmente

Que delícia. Ele entrou e ninguém viu.

o meu pau. 23:10 hrs Sua pele na minha

Me lembro como se fosse hoje, tínhamos

e os meus lábios molhados, era o que eu

13 anos. Era um 5 contra 1. Era a nossa

queria, e penso em você nos espasmos

primeira vez. E eu contei as horas em

finais, mas o meu gozo, te corta a presença.

gemidos, em arrepios e em segundos

Que se quer esteve ali de fato. Eu desliguei

suados. Sua mão na minha, minha coxa

o chuveiro e vi você partir. Sozinho. Sem

na sua, e o desejo e os apertos, e o calor, o

saber o que foi aquilo e medo, e nojo, e crise

sussurro, o corpo aqui e a mente em você,

e você e o desconhecido, eu mesmo. Não,

a boca levemente aberta, corada, lábios,

espera. Volta aqui. 23:14 hrs Eu me deito

pele, frenesi e contração e contorção e

na cama e na cama na mesa, e você vem

uma palavra suja entre um beijo e outro.

junto, dá as cartas, ao meu lado, dentro de

Que foda. Seus dedos transpassavam

mim, não mais no meu corpo, não mais na

minha nuca, penetravam minhas

minha pele, eu penso em você.

23:15 hrs Era como a profundeza de um oceano, era como um

navio lançado ao mar, era como a certeza de um grande vazio ou uma taça de vinho, da qual felizmente eu estava disposta a me embriagar. Mas aquele ainda não era o momento. E que porra de vinho barato 23:16 hrs Era também como o fim do mundo, era como um pecado, algo que me levasse ao altar, do qual eu precisasse me redimir. Próximo demais daquele arrombado. 23:17 hrs Eu mesmo e os meus pensamentos estavam confusos e dispersos, indo e vindo, em palavras repetidas, desconexo, discorrido como palavras jogadas sem função sintática. Um menino me beijou, e eu não sabia o que aquilo significava, era como um sim e não, um se entre o desejo e o não devo, mas não era no coração, embora ele pulsava, também não era na mente, embora ela se desestabilizara, era no corpo, onde tudo fluía.


175 corpo a corpo

23:18 hrs E em meio ao prazer, ao riso contido e ao frio na

barriga, o medo tomou seu lugar à mesa, tecendo toda aquela camada de sensações, sensações que eu se quer imaginara poder sentir outrora. Doce amargo momento de ruptura. Um beijo, e eu não sei porque eu deixei, não sei porque eu gostei, gostei e queria mais, não sei porque me deitei e pensei nele, pensei digo... como homem, homem a homem, menino a menino. -Humm, Que porra é essa mano.- e me retraio na

cama. Foi quando mesmo excitado, passei a dizer não. E negar o próprio prazer, e a própria espontaneidade do corpo, do pênis ereto e rígido involuntariamente, assim eu me negava a você, sacrificando cada pensamento, sobrepondo a minha vontade própria com verdades criadas, forçadas, tudo para caber na caixinha do normal. Foi só uns amassos no escuro, foi só um troca-troca na broderagem, sem graça, eu penso e digo. Nada tinha de significado naquilo, éramos dois meninos, dois meninos no despertar da primavera. Precisei de um esforço exaustivo para me enganar, para não dizer a mim mesmo que sim, que eu gosto, que eu adorei, e queria mais. Então, conturbado, deixei que ela se deitasse na cama, abri um espaço para minha maior aposta e me sentia seguro. O afeto, o carisma, vieram à mesa, uma aposta cara e disputada. Ela se chamava Bia, era dela de quem eu gostava, e eu pensava nela nas horas vagas, e pensava em vê-la, em matar a saudade, e mais do que nunca eu me forcei a acreditar que eu à amava, mas o meu corpo era inerte ao seu toque Merda, embora o meu coração sorrisse quando eu a via e eu já não podia ver a hora É isso!!! Mas então ela chega perto, e eu disfarço, e me pergunto por que pensei na minha colega de sala naquele momento, sem perceber que a sua presença já me denuncia, você pode pensar que não, mas ela não era algo mais que um escudo, um escudo entre outro menino e eu...


176 kaique xavier da silva

23:19 hrs Os meus pensamentos

transitavam entre duas linhas tênues, entre duas saudades e desejos, embora eu goste de caminhar entre opostos não me parecia ainda confortável ser um e outro, os dois ao mesmo tempo, no mesmo pensamento, na mesma mesa, na mesma cama, no mesmo lugar, um trio, Anderson, Bia e eu e uma rodada sufocada. Eu me sentia sozinho, com medo, inseguro diante do fim do mundo. Ela ocupava um espaço no meu coração, e ele algum lugar perto da minha virilha. Eu? Eu estava na ponta da puberdade, jovem demais, inconsequente demais, não sabia reconhecer o desejo e não sabia diferenciar esses afluentes que muitos juram desaguar no mesmo mar: amor e desejo. 2 e 2 e um deles certamente não era real.

23:20 hrs Me enrolo na coberta e meus pensamentos se dispersam, cuido para que nada escape por entre as frestas do tecido rasgado, de repente, me sinto vigiado. O que

diria minha mãe? E o meu padrasto? E a minha família e amigos que não eram muitos, mas eram tudo que eu tinha... Uma rodada perdida. Bicha, Franguinho, Viado. Na rua, descalço. Na calçada, pedinte, pedindo fudendo, fedendo. Sem emprego, abandonado, de salto e desarmado, vergonha, caminha na estrada sem família, na história no armário, aidético, nem Deus quer. Uma piada na TV aos sábados... Não sei se foram exatamente essas palavras que pensei naquele momento, mas foram baixas, promiscuas e vulgar, escassas contrapartidas, as minhas referências, de um impulso, de um desvio. Do meu eu. Das janelas e portas abertas, nos passos das cicatrizes e feridas, nas pegadas acesas e apagadas, marcadas, levadas pelo vento, perseguindo dores vivas e dores mortas, perdidas, recuperadas, inventadas, revirei aquele arquipélago de remorsos e arrependimentos, que já não era o mesmo, que se tornara presente, aquele passado, em busca de tudo e de tudo de nada, sob o qual os meus impulsos se atracaram, como um navio em um porto buscando o ponto onde tudo mudou, como águas secas e ancoras de papel, como um pensamento, uma música pop e um gesto e uma semântica deteriorada. Olho pela janela do ônibus e vejo no outdoor um homem apenas de cueca e um mundo de imagens que me leva a um vazio de devaneios e digressões.


177 corpo a corpo

23:40 hrs Entre o medo e o desejo, entre a integridade e o prazer, entre

o sagrado e o profano, entre ela e ele, entre opostos, naquela noite eu dormi nos entres, agarrado a ela, onde tudo ficaria bem, me defendendo dele, onde tudo ficaria mal. Mas eu não sabia quantos capítulos isso iria durar, eu não sabia quantas páginas aquele beijo iria perseguir, ou com quantos medos se pagava (apagava) o desejo. Embora o meu coração fosse inerte por desconhecer aquilo que um dia viria a chamar-se amor tudo o que eu queria era corpo, o corpo a corpo e nada mais.


dom barbudo

quarto de despejo diรกrio de uma favelada


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16 de junho Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensamento: será que Deus esqueceu-me? será que ele ficou de mal comigo?

entrevista

Quando eu fui catar papel encontrei um preto. Estava rasgado e sujo que dava pena. Nos seus trajes rotos ele podia representar-se como diretor do sindicato dos miseráveis. O seu olhar era um olhar um olhar angustiado como se olhasse o mundo com despreso. Indigno para um ser humano. Estava comendo uns doces que a fabrica havia jogado na lama. Ele limpava o barro e comia os doces. Não estava embriagado, mas vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto com fome! …Encontrei com ele outra vez, perto do deposito e disse-lhe: O senhor espera que eu vou vender este papel e dou-te cinco cruzeiros para o senhor tomar uma media. É bom beber cafezinho de manhã. Eu não quero. A senhora cata estes papeis com tantas dificuldades para manter teus filhos e deve receber uma migalha e ainda quer dividir comigo. Este serviço que a senhora faz é serviço de cavalo. Eu já sei o que vou fazer da minha vida. Daqui uns dias eu não vou precisar de mais nada deste mundo. Eu não puder viver nas fazendas. Os fazendeiros me explorava muito. Eu não encontro emprego porque já sou idoso. Eu sei que eu vou morrer porque a fome é a pior das enfermidades.

1 de agosto Eu deitei, mas não dormi. Estava tão cansada. Ouvi um ruído dentro do barraco. Levantei para ver o que era. Era um gato. Eu ri, porque eu não tenho nada para comer. Fiquei com dó do gato. 2 de agosto Vesti os meninos que foram para a escola. Eu saí e fui girar para arrancar dinheiro. Passei no Frigorífico, peguei uns ossos. As mulheres vasculharam o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. Até eu digo que é para os cachorros. 6 de agosto Fiz café para o João e o José Carlos, que hoje completa 10 anos. E eu apenas posso dar-lhe os parabéns, porque hoje nem sei se vamos comer. 7 de agosto Deixei o leito às 4 horas. Eu não dormi porque deitei com fome. E quem deita com fome não dorme. carolina maria de jesus

escritora brasileira, negra, mãe de três crianças, trabalhava como catadora de papel na maior parte do tempo. teve seus livros publicados após ter seus cadernos de relatos autobiográficos lidos pelo jornalista audálio dantas

ilustração: luiz imbiriba


180 corpo editorial

alice dos anjos picariello gabriel madeira cardoso júlia flock membros do corpo editorial da sexta edição da revista contraste

refle xões

Confluência do que somos, ou supomos ser: Corpo - matéria, textura e cheiro; fruto de uma união de genes - E consciência - alma, espírito e ser. Assim que nascemos, imergimos em um mundo e em uma cultura, estamos expostos, frágeis e vulneráveis. Nos revestimos de uma performatividade que nos é imposta, e, ao passo que também nos unimos com outros corpos, desenvolvemos nossos valores, descobrimos nossas verdades, doemos, sofremos, rimos, e nesse tempo incorporamos massas e grupos - no nosso gênero, na nossa etnia, na nossa orientação sexual. Tudo revelado como fragmentos, que, sem ordem nem hierarquia, querem compor nossa existência em uma confusão particular de tantos nós. Cabe a esse corpo costurar os retalhos e lhes dar coesão em uma unidade: Com pedaços de mim eu monto um ser atônito, como disse Manoel de Barros1. Desde eras mercantilistas e o início do acúmulo capitalista de bens vê-se o corpo como algo a parte do sujeito. O sujeito como a essência, o intelecto. O corpo como efêmero, recipiente - como um copo que recebe água. E cuja supressão assume um caráter político: “O campo político, que se empenha em organizar as modalidades corporais segundo as finalidades que lhe são próprias, evoca uma tecnologia meticulosa dos corpos, uma política do detalhe, mui-


181 reflexões

to mais que a tomada em mão sem mediação do Estado, meio de dominação das classes dominantes.” (LE BRETON)2. A distinção corpo/essência instaura paulatinamente uma relação de desigualdade: começa a se fazer presente na história ocidental distinções entre trabalhos intelectuais, valorizados, e trabalhos corpóreos, vistos como necessários, mas infrutíferos e imorais. Se esse apagar do corpo manteve-se presente na cultura social desde o mercantilismo, ele será catalisado, mais recentemente, pela maquinização do viver proposta pelo modernismo. No nosso país, especificamente, esta construção dissociada do ser e do corpo, com a desvalorização deste último, arraigada no período colonial e expressa ao longo de toda nossa história: dos corpos negros e indígenas abusados sistematicamente à aniquilação física de indivíduos na ditadura militar. Disto incidem as questões propostas a investigação ao longo da revista: O que é a falta de estímulos sensoriais no modo como a cidade é produzida senão fruto dessa condição? Ou a valorização imagética no espaço virtual em detrimento da realidade física? O extermínio e segregação urbana de corpos negros, a supressão doméstica feminina, a rejeição de LGBTs... Todas se misturam em suas particularidades, claro. Pode ser simplista dizer que o distanciamento corpo e essência é o único fruto de todas as mazelas,


182 corpo editorial

mas assume a importante função de denotar seu caráter político. Como escreve Clarice em Farol que se ilumina: “Nele [o corpo], as histórias das civilizações: sujeição e liberdade. Ele é o nosso destino, nossa espiritualidade, nossa encarnação, nosso ponto de chegada e de partida. Nele, a história de nossa família, êxodos, exílios, aconchegos, proteções, medos e traumas.” De onde vem, portanto, o poder e a potência desse corpo tão vulnerável em um mundo pré-estabelecido, injusto, desigual, violento? Butler irá dizer que, certamente, é o poder dos corpos em aliança, a conjunção de vários destes em um mesmo tempo-espaço, ou em um mesmo ideal. Essa é a distinção: a diversidade de corpos que se une. O que existe nesse mundo, sua perversidade e sua esperança, tudo fora constituído por um extenso passado de imensuráveis camadas e de tantos outros corpos soltos no mundo. Alguns que morreram nas mãos de outros, ou que dedicaram uma vida inteira a uma luta, ou, ainda, que se arriscaram em prol de um ideal -Deste passado de lutas e deste presente de resistência, é que mantemos as raízes da nossa existência. É possível, então, que a união, corporificada, através da ocupação e mobilização dos espaços, sejam eles físicos ou metafísicos, consiga transformar esse cenário.


183

BARROS, Manuel de. Livro sobre nada, Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. BRETON, David Le. A Sociologia do Corpo, Petrópolis: Vozes, 2012. 3 Este texto foi elaborado, essencialmente, a partir de reflexões contidas no livro Corpos em Aliança Política, de Judith Butler. 1 2

reflexões

Muitas vezes, em tempos de obscuridade, não reconhecemos nosso poder, ainda mais quando um contexto neoliberal nos empurra para um limbo individualista e egoísta de nós mesmos, pautado em sentimentos de impotência, segregação e esquecimento. Sim, esquecemos que não existimos sozinhos, e que, muito pelo contrário, é a união que garante nossa existência. É nosso dever nos lembrar constantemente de que somos uma parte de um todo e que muitos, assim como nós, compartilham desejos para um mesmo futuro, vontades para um mesmo mundo. E a efetividade destas esperanças só será possível no cultivo e construção da coletividade: seja em nossos círculos mais restritos, seja em um âmbito nacional. Ainda há motivo para persistir e ele está dentro de você e de mim e de nós3.


agradecimentos direção da faculdade de arquitetura e urbanismo da usp, andré luís ferrara e tadeu maia, toda a equipe da seção técnica de produção editorial da fauusp, clice de toledo sanjar mazzili, ana lanna, luiz recamán, maria carolina nassif, arthur de paula, maria luisa cardoso, murilo romeu, teresa carvalho, maria gabriela feitosa dos santos, microutopías republicações adrienne rich, carolina de jesus, clarice niesker, henripierre jeudy, jordan peele, josé saramago, linn da quebrada, marcel mauss, marcelo d’salete, mel duarte, rosana paulino, yuji kodato

ilustradores e fotógrafos bárbara bucker, beatriz mello, bruno stephan, clara galestois, eduarda simões, gabriel madeira, gabriel vilela, joão montagnini, larissa superti, laura miguez, lia soares, luiz imbiriba, pedro cancelliero, pedro henrique simplício, michael vago, thiago simbol, yuji kodato autores, entrevistados e transcrições alice dos anjos, amara moira, arthur moura campos, camila medeiros, cláudia adão, dom barbudo, eduardo bruno, gabriel madeira, helena zelic, josé dos santos cabral filho, júlia flock, kaique xavier da silva, lucas henrique de souza, marcelo denny, maria luisa cardoso, mariana ribeiro, marina dúbia, natália borges polesso, nicolas le roux, pedro lang agustin, tadeu dos santos


diagramação alice dos anjos, andreia oliveira, bárbara rennó, gabriel madeira, giulia montone, isadora trevisan, joão pedro laginha, júlia flock, laís stanich, lorine rangel, mariana ribeiro, pedro cancelliero victor, yugo borges

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tiragem: 600 exemplares corpo de texto: roboto slab e crimson títulos e destaques: montserrat e bodoni notas de rodapé e numeração: roboto miolo: chambril avena e color plus tóquio 80g capa: supremo alta alvura 250g

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corpo editorial alice dos anjos, andreia oliveira, bárbara rennó, gabriel madeira, giulia montone, isadora trevisan, joão pedro laginha, júlia flock, laís stanich, lorine rangel, maria luiza mello, mariana ribeiro, pedro cancelliero victor, yugo borges

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di

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número 6 agosto de 2019 ISSN 2317.2134

contraste.edit@gmail.com issuu.com/revcontraste facebook.com/revcontraste instagram @revistacontraste


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