Edição Nº 23 - Campina Grande, 2013

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R E V IST A BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

S達o Paulo 2013


Diretoria

Abralic 2012-2013

Presidente

Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB)

Vice-Presidente

Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB)

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Conselho Fiscal

Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Univ. Mackenzie) Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto) Carlos Alexandre Baumgarten (FURG) Rogério Lima (UnB) Germana Maria Araújo Sales (UFPA) Marilene Weinhardt (UFPR) Luiz Carlos Santos Simon (UEL)

Suplentes

Adeítalo Manoel Pinho (UEFS) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)

Conselho Editorial

Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.

ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Estadual da Paraíba Central de Integração Acadêmica de Aulas R. Domitila Cabral de Castro S/N 3º Andar/Sala 326 CEP: 58429-570 - Bairro Universitário (Bodocongó) Campina Grande PB E-mail: revista@abralic.org.br


R E V IST A BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. S達o Paulo n.23 p. 1-230 2013


2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compa­rada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editora Ana Cristina Marinho Lúcio Comissão editorial Antônio de Pádua Dias da Silva Diógenes André Vieira Maciel José Hélder Pinheiro Alves Revisão Priscilla Ferreira

Editoração Magno Nicolau (Ideia Editora Ltda.)

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991 v.1, n.23, 2013

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


Sumário

Apresentação Antônio de Pádua Dias da Silva 7

Artigos

Por um comparativismo do pobre: notas para um programa de estudos Alfredo Cesar Melo 9

Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional Eurídice Figueiredo

Intertextualidade em prol de uma Estética da Transgressão no Heavy Metal: A Ozzy Osbourne, o Louco, o Demônio, a Celebridade Flavio Pereira Senra Da literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagens João Manuel dos Santos Cunha

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Focos múltiplos: comparatismo e mídia nas crônicas de Xico Sá Luiz Carlos Santos Simon 97 Outros Países das Maravilhas para Alice: novas perspectivas para a Literatura Comparada apresentadas a partir do estudo de caso de Alice no País das Maravilhas Manaíra Aires Athayde Paulo Pereira

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Amor e morte em “Dido, a Rainha de Cartago” de Christopher Marlowe Maria da Conceição Oliveira Guimarães 171 Literatura comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários Paulo Sérgio Nolasco dos Santos

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Afrontando fronteiras da literatura comparada: da transnacionalidade à transculturalidade Zilá Bernd 211

Pareceristas ad hoc Normas da revista

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Apresentação

A proposta de lançar um número da Revista Brasileira de Literatura Comparada – RBLT cuja discussão estivesse centrada na problematização e apresentação de outros ou novos parâmetros de viabilização do comparativismo literário, se deu em razão de a própria Associação Brasileira de Literatura Comparada, sobretudo em seus congressos, se mostrar propensa a novas relações dos estudos comparados, ora reiterando as antigas bases, ora proporcionando outros caminhos que contemplem os outros suportes, as outras linguagens, outras questões. Com o número 23 – A literatura comparada hoje – esperávamos receber artigos que problematizassem estas questões postas, principalmente porque os estudos comparados no Brasil, como todos percebem, foram atravessados por outras propostas e modos de abordar os textos literários na medida em que estes também migraram do seu antes e quase único suporte – o livro – para outras mídias, o que exige, na perspectiva comparativista, adequações necessárias antes pensadas unicamente na relação livro-livro e seus condicionantes: língua, cultura, contextos, imagens, tempo, autores, estilos. Nessa linha de raciocínio, os estudos culturais ganharam foro privilegiado em nossa cultura, alterando a paisagem do comparativismo literário fortemente enraizado na cultura acadêmica. As relações literatura e outras mídias também contribuíram para o enlarguecimento dessa visão que, sem abandonar a tradição da disciplina literatura comparada, avança, de forma migratória, para os estudos comparatistas, muitas vezes tomando estes estudos “fora do eixo” da antiga base, provocando aligeiradas tensões


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entre os estudiosos e co-fundindo-se em sua dinâmica ou práxis de trabalho. Os artigos selecionados para compor o número desta RBLT, não somente pela chamada, mas, sobretudo, pela composição de outros olhares dentro e sobre o mesmo campo de estudo, trazem esta discussão. O leitor irá encontrar textos que revisam o conceito de literatura comparada a partir do tema motivador do XIII Congresso Internacional da ABRALIC: o regional, o nacional e o transnacional ou “à luz de conceitos de multi, inter e trans-disciplinaridade e multi, inter e trans-culturalidade”. A discussão do eixo temático por pesquisadores experientes na área é uma prova de que a chamada da RBLT avança naquilo que sustenta a sua filosofia de existência: a base comparativista e suas interfaces com outras mídias, outros suportes, outros aportes, outros modos de ver e interpretar, sobretudo o que ainda se fazia estranho para os estudos clássicos que era incorporar à prática dos estudos comparados em literatura, porque somente em literatura, os objetos da cultura de massa, por exemplo. Dessa forma, os artigos deste volume contemplam também estudos na perspectiva interdisciplinar, intermidiática e intertextual, a literatura que migra para produtos new media como iPad, o Second Life e os games. A RBLT quer contribuir com as discussões em torno do objeto que a sustenta e que é o fundamento da ABRALIC. Problematizar suas bases, seu modus operandi, seu suporte, sua base teórico-metodológica parece-nos viável em tempos de criação e invenção de outras práticas interpretativas.

Campina Grande - Paraíba Antônio de Pádua Dias da Silva


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Por um comparativismo do pobre: notas para um programa de estudos

Alfredo Cesar Melo*

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir, em caráter exploratório, possíveis caminhos para os estudos de literatura comparada no Brasil, levando em conta a crescente importância dos debates em torno da inserção do Brasil no Sul Global. No artigo discuto duas possibilidades de abordagem para o estudo da cultura brasileira num contexto de comunicação Sul-Sul. Palavras-Chave: Sul Global; Estudos pós-coloniais, Literatura Comparada. Abstract: This article sets as its goal to discuss, in an experimental fashion, possible routes to the comparative literary studies in Brazil, bearing in mind the growing importance of the debates about the Brazilian insertion into the Global South. In this article, I discuss two possible approaches to the study of Brazilian literature within a context of South-South communication. Keywords: Global South; Postcolonial Studies; Comparative Literature. * Universidade Estadual de Campinas. 1 Tal indistinção chega a ser uma questão institucionalizada, a ponto de José Luis Jobim, então presidente da Abralic, ter que refletir sobre as razões que levam a Abralic se chamar Associação Brasileira de Literatura Comparada, e não, simplesmente, Associação Brasileira de Literatura (JOBIM, 2006, p. 95).

Se “estudar literatura brasileira é, em boa parte, estudar literatura comparada”, como afirmava Antonio Candido, em 1946, pode-se dizer que a melhor crítica literária brasileira do século 20 fez justiça ao lema elaborado por Candido (2000, p. 213). E fizeram de tal modo que é difícil separar os estudos de literatura brasileira da literatura comparada.1 Essa indistinção é notória, por exemplo, na obra mais significativa de Antonio Candido. Como caracterizar um livro como Formação da literatura brasileira senão


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como um finíssimo exercício de literatura comparada, em que os modelos europeus, tanto da Arcádia como do Romantismo, vão sendo gradualmente adaptados às terras americanas? Um texto como “Dialética da malandragem”, já na fase mais madura de Candido, sintetiza bem o emprego de uma moldura comparatista para entender as especificidades do Brasil. No seu estudo sobre Memórias de um sargento de milícias, Candido inicia a discussão sobre gênero literário definindo o romance malandro a partir de uma contraposição ao gênero do romance picaresco. Para isso, faz distinções entre o pícaro e o malandro que se remetem às diferenças de formações sociais da Espanha e do Brasil. No decorrer de sua análise, para demarcar as singularidades de uma ética malandra, Candido compara a sociabilidade iluminada no romance brasileiro com a ética puritana figurada no romance A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne (CANDIDO, 1998). Algo semelhante pode ser visto na obra de Roberto Schwarz, que já no seu primeiro estudo de fôlego sobre Machado de Assis, disserta sobre “as ideias fora do lugar”. Todo o argumento do famoso ensaio de Schwarz está estruturado em bases comparatistas. Para Schwarz, o liberalismo seria uma ideologia de segundo grau, pois, no Brasil, o discurso liberal não apresentava qualquer verossimilhança ao tentar mascarar o processo social de exploração. Na Europa, o discurso liberal correspondia às aparências da vida social, necessitando da contraintuição de um Marx para revelar a sua lógica; enquanto no Brasil, devido à escravidão, a qualquer transeunte o discurso liberal soaria grotescamente falso. A partir desse arcabouço conceitual eminentemente comparativo, Schwarz estuda as dificuldades de importação do romance no Brasil – sobretudo na obra de José de Alencar – para, finalmente, analisar a maneira como Machado de Assis consegue transformar gradualmente os pressupostos sociais do Brasil – bastante diversos dos europeusem triunfos formais do melhor romance brasileiro (SCHWARZ, 1977, p. 13-26). Outro crítico que, ao longo da segunda metade do século 20, se debruçou sobre esse mecanismo de diferenciação da forma literária brasileira frente aos modelos europeus foi Silviano Santiago. No seu clássico


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ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, Santiago teoriza sobre esse estatuto secundário ou derivativo geralmente atribuído às culturas periféricas como a brasileira. Combatendo as noções de fonte e influência – que haviam marcado até então a disciplina da literatura comparada -, Santiago argumenta que “[a] maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (SANTIAGO, 2000, p. 16, grifos do autor). Empregando o conceito barthesiano de “obra escrevível”, Santiago argumenta que o escritor latinoamericano está sempre produzindo “a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira” sobre o texto europeu, contaminando-o e transformando-o em algo novo (SANTIAGO, 2000, p. 20). Apesar de serem críticos literários se utilizando de marcos teóricos bem distintos entre eles, como a antropologia social britânica, o marxismo e o pósestruturalismo, os três críticos mencionados referem-se a um problema real, cuja presença é identificada desde os primórdios da literatura brasileira: ansiedade dos letrados brasileiros de pertencerem a uma cultura secundária, incapaz de originalidade. Se há algo em comum nos trabalhos de Candido, Schwarz e Santiago é a teorização sobre uma derivação criativa na cultura brasileira. Ao dar um sinal positivo na diferença da cultura brasileira frente à europeia – algo que os modernistas haviam feito no plano artístico –, a geração de críticos literários da segunda metade do século 20 talvez tenha dado, assim, sua mais valiosa contribuição para o estudo da literatura comparada no Brasil: a relativização da hierarquia entre centro e periferia. Esse talvez seja o grande paradigma do comparativismo brasileiro no século 20 – o paradigma da antropofagia modernista, da ressignificação do legado europeu por parte do letrado brasileiro, visto agora como ativo produtor de cultura. Em outras palavras, ao colocar em relevo a questão da autonomia criadora da literatura brasileira, estamos também nos referindo ao paradigma da formação da literatura brasileira. Tal paradigma está longe de ter se exaurido e continua a render frutos para a nossa mais exigente crítica literária. A pujança dessa episteme – apenas para dar


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alguns poucos exemplos entre os pesquisadores mais jovens – pode ser identificada na fecunda análise de Pedro Meira Monteiro sobre a relação entre Visconde de Cairu e as máximas moralistas de La Rochefoucauld (MONTEIRO, 2004); no fino estudo de José Luiz Passos sobre o diálogo do romance machadiano com temas shakespereanos (PASSOS, 2009); ou na investigação incontornável de Gilberto Pinheiro Passos sobre o intertexto francês na obra de Machado de Assis (PASSOS, 1996). O que estou propondo neste artigo é pensar as relações do Brasil com o mundo além dessa bipolaridade (Brasil X Europa; periferia X centro; ex-colônia X exmetrópole), o que não significa, já adianto, negar a sua importância, nem negligenciar o fato de que as relações assimétricas de poder com a Europa estruturam a nossa cultura. Não se trata, portanto, de invalidar uma moldura de análise, focada na relação entre centro e periferia, para celebrar uma outra, marcada pelas relações Sul-Sul, nem sugerir que a relação do Brasil com países igualmente periféricos implique alguma forma idealista de simetria de poder. É necessário examinar os dois tipos de relação (centro X periferia; Sul-Sul) simultaneamente, abraçando suas dificuldades e ambiguidades. Como veremos a seguir, trata-se de adicionar mais um grau de complexidade a essa moldura comparativa que já temos, mostrando que há outras relações além das bipolaridades tradicionalmente estudadas pela crítica brasileira. Seria o caso, conforme a sugestão de Silviano Santiago (2013), de não apenas focar na noção de formação – muito centrada na autonomia em relação ao centro – e pensar mais seriamente a ideia de inserção no mundo, levando em conta outras possíveis relações do Brasil com outras culturas que não aquelas centrais. Para isso, proponho dois tipos de moldura de análise para um comparativismo mais direcionado às relações SulSul: o primeiro teria a ver com a ideia de comparação como co-aparição, que poderia servir de paradigma para estudos comparativos de autores e culturas que, na maior parte das vezes, se ignoram em razão da própria dinâmica da divisão internacional de conhecimento, que dificulta a comunicação e difusão de cultura entre países do Sul Global; enquanto a segunda moldura teria


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Dipesh Chakrabarty analisa esse sintoma causado pela divisão internacional do conhecimento em seu livro Provincializing Europe: “There are at least two everyday symptoms of the subalternity of non-Western, third-world histories. Thirdworld historians feel a need to refer to works in European history; historians of Europe do not feel any need to reciprocate. Whether it is an Edward Thompson, a Le Roy Ladurie, a George Duby, a Carlo Ginzburg, a Lawrence Stone, a Robert Darnton, or a Natalie Davis - to take but a few names at random from our contemporary world - the “greats” and the models of the historian’s enterprise are always at least culturally “European.” “They” produce their work in relative ignorance of non-Western histories, and this does not seem to affect the quality of their work. This is a gesture, however, that “we” cannot return. We cannot even afford an equality or symmetry of ignorance at this level without taking the risk of appearing “old-fashioned” or “outdated.”” (CHAKRABARTY, 2007, p. 28). Tradução minha: “Há ao menos dois sintomas cotidianos da subalternidade de histórias não-ocidentais e terceiromundistas. Historiadores do terceiro mundo sentem a necessidade de se referir aos historiadores europeus, enquanto estes não sentem necessidade de agir reciprocamente. Seja um historiador como um Edward Thompson, um Le Roy Ladurie, um George Duby, um Carlo Ginzburg, um Lawrence Stone, um Robert Darnton, ou uma Natalie Davis – apenas para mencionar alguns nomes contemporâneos -, seu modelo historiográfico é sempre culturalmente europeu. Eles escrevem seus trabalhos ignorando as histórias nãoocidentais e isso não parece afetar a qualidade de seus trabalhos. Este é um gesto que, no entanto, não podemos retribuir. Não podemos nos dar ao luxo de propormos uma simetria de ignorâncias, sob o risco de parecermos “antiquados” e “desatualizados”.

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a ver com uma moldura interidentitária do Brasil (entre Próspero e Caliban), que obriga a revisão de uma série de representações cristalizadas na crítica cultural sobre o Brasil. Se estamos acostumados a compreender a cultura brasileira como uma desvio criativo de um modelo europeu, a inserção do Brasil no contexto lusófono africano pode nos ajudar a criar uma outra representação, na qual muitas vezes o Brasil se mostra como modelo para as culturas lusófonas na África. Comparação como com-parison (co-aparição) Utilizo o termo co-aparição, inicialmente empregado por Jean Luc-Nancy e depois retrabalhado por Natalie Melas no seu livro All the difference in the World. Co-aparição seria um conceito que tenderia afastar a conotação normativa que a palavra “comparação” ganhou no decorrer de sua institucionalização nos estudos literários (MELAS, 2007, pp. 58-72). Co-aparição também permite o estudo comparativo de formas, culturas, e dinâmicas sociais que não necessariamente entraram em contato, mas que, nem por isso, seria de menor interesse deixar de cotejá-las. A divisão de conhecimento eurocêntrica irradia do centro para as margens. A estrutura rígida desse fluxo de informação permite pouco compartilhamento e trocas culturais entre os países na periferia. As consequências dessa divisão internacional do conhecimento são notórias. Seria impensável que intelectuais mexicanos, brasileiros e argentinos, por exemplo, não tivessem um conhecimento amplo da história cultural europeia. De outro lado, um intelectual brasileiro que não tenha familiaridade com grandes autores peruanos e cubanos não teria sua formação considerada falha ou precária. Somos impelidos a conhecer o centro e ignoramos outros países, cujas histórias e processos sociais são bastante semelhantes.2 É importante frisar que houve considerável contato cultural entre brasileiros e hispano-americanos e que bons estudos comparativos foram feitos acerca desse intercâmbio. Apenas para dar alguns poucos exemplos: Raul Antelo estudou a apropriação que Mário de Andrade


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faz da literatura hispano-americana (ANTELO, 1986); Jorge Schwartz analisou como o artista argentino XulSolar incorpora temas brasileiros (SCHWARZ, 2011); assim como Leopoldo Bernucci meticulosamente examina o quanto da obra de Euclides da Cunha fora transfigurada pela pena de Mário Vargas Llosa (BERNUCCI, 1989). Todos esses são estudos que mapeiam bem o contato entre a cultura brasileira e as culturas hispano-americanas. Tratam-se de investigações comparativas que se fiam no liame existente entre dois sistemas literários, o que não deixa de ser um fator limitante. Uma das vantagens da ideia de comparação como co-aparição é exatamente a de poder estabelecer pontes nas quais a divisão internacional do conhecimento criou abismos. É poder perceber a co-emergência de formas literárias e dinâmicas sociais de culturas que se ignoram, mas que vivem, cada uma a seu modo, as contingências da experiência pós-colonial. Estudar as co-aparições dessas sociabilidades periféricas constitui um passo importante para criarmos um arquivo pós-colonial, isto é, de unir e comparar produções culturais geralmente segregadas pela divisão internacional de conhecimento e seu fluxo frequentemente unidirecional (centro em direção à periferia). Tomemos o exemplo do ensaísmo latinoamericano. Qualquer leitor da tradição do pensamento social brasileiro que entre em contato com os ensaios de cunho interpretativo- histórico-sociológico da América hispânica perceberá inicialmente duas coisas: a imensa similaridade que os textos hispano-americanos e brasileiros guardam entre si, na infrene busca para dar um sentido à nação; e a solene ignorância mútua que cerca, na imensa maioria das vezes, essas duas tradições do pensamento. O caso da convergência entre as obras do brasileiro Gilberto Freyre e do cubano Fernando Ortiz é paradigmático. Afinal de contas, as semelhanças entre os dois ensaístas latino-americanos são dignas de nota: ambos estiveram na fronteira entre a literatura e a antropologia, escrevendo as obras seminais do nacionalismo cultural de seus respectivos países (Casa-grande & senzala no Brasil e Contrapunteo cubano em Cuba), além de terem inserido


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seus discursos numa moldura por muito tempo considerada antirracista - que almejava separar os conceitos de raça e cultura - e de terem criado metáforas de incorporação e negociação culturais: plasticidade e transculturação (que juntamente com a antropofagia são metáforas centrais do campo discursivo latino-americano). No entanto, praticamente não existe diálogo entre esses dois autores. Não se pode dizer que houve qualquer influência de um sobre o outro. Torna-se imperativo estudar, como dois intelectuais, completamente independentes e apartados um do outro, desenvolvem estratégias bastante similares para lidar com a questão da originalidade criativa das culturas periféricas. Para isso, proponho uma comparação entre os conceitos centrais de seus projetos intelectuais: plasticidade na obra de Gilberto Freyre e transculturação na obra de Fernando Ortiz. Esses conceitos são metáforas poderosas de negociação cultural que iluminam aspectos diferentes, e às vezes complementares, desse mesmo processo de negociação. O encontro entre diferentes culturas e etnias na América Latina se deu sob a égide da colonização, com todas as assimetrias de poder típicas desse sistema. As metáforas forjadas pelas obras de Freyre e Ortiz têm como referente as dimensões ambivalentes de tal processo. Da tensão desse encontro cultural tanto surgem formas de dominação que prezam pela continuidade das relações de poder colonial (o entendimento do conceito de plasticidade será fundamental para destrinchar analiticamente essas tendências), como manifestações de resistência e tentativas de subversão das relações vigentes (aspectos esses que ganham maior inteligibilidade à luz do conceito de transculturação). A importância de tais metáforas de negociação é percebida mais agudamente quando se leva em conta o papel que desempenharam, numa época em que culturas periféricas, como a brasileira e a cubana, tinham que lidar com o mal-estar da cópia, que levava que tais nações se considerassem culturas sem originalidade, e, portanto, condenadas a reproduzir as ideias e instituições européias (SCHWARZ, 1987, p.29). No entanto, mais do que lidar com esses problemas, por meio de suas metáforas, num plano meramente teórico


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ou abstrato, pode-se dizer que a própria construção de seus textos também se deve a um processo de negociação cultural. Mais do que um simples objeto de estudo, a negociação cultural estava no núcleo da prática discursiva de Gilberto Freyre e Fernando Ortiz. Tanto Gilberto Freyre quanto Fernando Ortiz buscavam legitimidade para seus trabalhos por meio da associação de suas respectivas obras à autoridade de grandes nomes da antropologia de então (Franz Boas e Bronislaw Malinowski, respectivamente). Mas, ao mesmo tempo em que inscrevem seus discursos como sendo parte dessas tradições antropológicas, delas também muito discrepam. Enrico Mario Santí é enfático em afirmar que Fernando Ortiz não era e nem podia ser considerado funcionalista, como Malinowski assim o havia designado, no seu famoso prefácio a Contrapunteo (SANTÍ, 2002, p.230-35). De acordo com o próprio Malinowski, para o funcionalista, a cultura seria um vasto aparato com que homens faziam frente a problemas concretos com a finalidade de satisfazer suas necessidades. Ora, nada mais longe da abordagem que Ortiz faz do tabaco, que é um vício, e do açúcar, que é um luxo. Nenhum dos produtos é uma necessidade vital nas suas respectivas comunidades. Outra diferença significativa entre Ortiz e os funcionalistas é o uso da História. O funcionalismo estudava as comunidades sincronicamente, enquanto Ortiz sempre encontrou na História e no desenvolvimento diacrônico da sociedade as fontes para sua reflexão antropológica (RIVEREND, 1978, p. 25). De qualquer modo, sempre que a diferença entre Ortiz e o funcionalismo é colocada pela crítica do autor de Contrapunteo, há um resultado positivo. A diferença é marcada pela criatividade, pelo senso imaginativo e pela maneira pouco convencional de escrever do antropólogo cubano (CORONIL, 1995: p. 35). Algo semelhante pode ser dito em relação a Freyre. Seu estudo estaria muito distante daquilo que, na teoria antropológica, tem-se chamado de culturalismo boasiano. A prosa de Freyre está longe da aridez metódica da escrita de Franz Boas, e muito mais próxima da imaginação romanesca, antecessora daquilo que seria cunhado posteriormente como “história íntima”, com seu apego ao concreto, às cores, aos sabores, aos detalhes, nisso


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antecipando toda a tradição francesa de história da vida privada (MELLO, 2002, p. 261). O que podemos concluir é que tanto Freyre como Ortiz reivindicam a legitimidade do centro de produção de saber como uma forma de se comunicar com esse centro, sem, no entanto, submeter-se à totalidade de suas normas disciplinares. Eles entremeiam a antropologia com imaginação e sugestões da oralidade de suas culturas. Muitas vezes se rendem a uma mimese do objeto, ou seja, deixam-se misturar, imiscuir-se ao objeto que estudam, aderindo a seu ponto de vista, acrescentando, assim, uma dicção própria a seus textos. Compare-se a maneira empática com que Ortiz narra a chegada do tabaco na Europa para curar as doenças da razão, com os ensaios sobre magia e mito de Malinowski, e se verá que, enquanto o antropólogo polonês segue todas as regras de distanciamento e neutralidade discursivas, Ortiz desenvolve uma narrativa que adere ao ponto de vista do tabaco. Da mesma forma, Gilberto Freyre revitaliza a língua portuguesa, fazendo uso da oralidade e das construções mais eruditas, realizando na sua própria linguagem “um equilíbrio de antagonismos”, que seria o próprio objeto de estudo do ensaísta brasileiro. Desse modo, Ortiz e Freyre criam textos que são marcados pela diferença em relação ao discurso do centro - com o qual, não obstante, nunca deixam de dialogar. Se é certo que o ensaio resiste à pureza discursiva das disciplinas intelectuais - como a Antropologia - ao mesmo tempo em que mobiliza esses mesmos discursos (RAMOS, 2001, p. 233), será com Gilberto Freyre e Fernando Ortiz que o ensaísmo latino-americano atingirá a mais plena consciência de sua dimensão heterogênea e aglutinadora de discursos. Gustavo Pérez Firmat chama a atenção para a dicção ensaística de Contrapunteo (PÉREZ FIRMAT, 1995, p. 52), na qual Fernando Ortiz habilmente emprega a paralepsis – que é uma figura de linguagem que consiste em querer dizer algo, afirmando o seu contrário (por exemplo, quando Ortiz afirma que não pretende emular El libro de buen amor, para em seguida escrever sua versão própria do livro de Juan Ruiz). Já Ricardo Benzaquen de Araújo destaca o tom de conversa que o


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ensaísmo freyreano adota, “parecendo facilitar que ele arme um raciocínio francamente paradoxal, fazendo com que cada avaliação positiva possa se suceder uma crítica e vice-versa”, criando, assim, “um ziguezague que acaba por dar um caráter antinômico à sua argumentação” (ARAÚJO, 1994, p. 208). Por trás de cada uma dessas estratégias – a paralepsis de Ortiz e a argumentação antinômica de Freyre –, pode-se entrever um pensamento em movimento, sendo estruturado e organizado por uma subjetividade criadora, o que dá uma tensão peculiar aos seus textos. Isso não se daria com a monografia científica, já que a sistematização teórica trata de elidir as possíveis arestas que só a inconsistência epistemológica e a heterogeneidade dos tons ideológicos do ensaio são capazes de potencializar. É curioso notar como, mesmo estando tão apartados, e ignorando-se mutuamente, Freyre e Ortiz chegam a um resultado formal – o ensaio, com seus limites e potenciais – muito similar. Voltando à idéia de comparação como coaparição, espero ter demonstrado como ganhamos com cotejamentos em torno a configurações socioculturais que não necessariamente influenciam uma a outra (como os ensaios de Freyre e Ortiz), mas que têm uma imensa capacidade heurística de iluminar dimensões muito semelhantes da experiência pós-colonial, ao mesmo tempo em que auxilia a estabelecer os contornos específicos da cada uma dessas experiências. Comparar produções culturais feitas no Brasil com aquelas de países caribenhos, africanos, ou asiáticos pode ajudar a mapear identidades e marcar diferenças entre as maneiras dessas culturas se auto-representarem. A constituição de um arquivo pós-colonial, que seja capaz de resgatar a pluralidade da experiência pós-colonial, se faz cada vez mais necessária numa época em que os estudos póscoloniais nas universidades metropolitanas estão sendo guiados por uma perspectiva “indiocêntrica” (para usar a expressão da escritora argentina Beatriz Sarlo, apud ORTEGA; NATALI, 2007, p.310). Há teóricos como Jorge Klor de Alva (1995) e Gayatri Spivak (1993) que consideram que o processo da descolonização não seria extensivo à América Latina, uma vez que o continente tem uma outra história, e seu


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Tradução: evoluiu para uma posição teórica mais geral para ser contraposta à hegemonia política, intelectual e acadêmica no Ocidente 3

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processo de emancipação política, ocorrida no século XIX, passou por outras dinâmicas sociopolíticas. A teoria pós-colonial, embutida no argumento de Klor de Alva e Spivak, é tão indiocêntrica que toma a Índia como um modelo normativo de pós-colonialidade. Se os estudos latino-americanos podem incorporar os estudos póscoloniais aos seus debates, a recíproca também deveria ser verdadeira para os estudos pós-coloniais praticados nas universidades metropolitanas. Como lembra Fernando Coronil, obras importantes como Colonial Discourse and Postcolonial Theory (WILLIAMS AND CHRISMAN, 1994), Post-Colonial Studies Reader (ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2006), Relocating Postcolonialism (GOLDBERG E QUAYSON, 2002), Postcolonialism Theory: A Critical Introduction (GANDHI, 1998), não incorporam a longa experiência latino-americana à sua reflexão (CORONIL, 2008, pp. 402-403). Mais recentemente, Robert Young, um dos mais atuantes representantes dos estudos pós-colonial nas universidades metropolitanas, reconhece que a teoria pós-colonial tem uma genealogia plural, encontrada nos diversos discursos anticoloniais do terceiro mundo. No seu livro Postcolonialism: An Historical Introduction, Young menciona intelectuais que pensaram a experiência latino-americana (Las Casas, Mariátegui, Ortiz, Che Guevara) como participantes desse discurso anti-colonial. No entanto, faz uma distinção bastante vacilante entre a “crítica pós-colonial” e os “discursos anti-coloniais”. Segundo Young, a crítica pós-colonial marca o momento em que a experiência política e cultural da periferia marginalizada “developed into a more general theoretical position to be set against western political, intellectual and academic hegemony” (YOUNG, 2001, p. 65).3 Tal “posição teórica geral” está associada aos “heartlands of the former colonial power”(YOUNG, 2001, p. 65), isto é, aos centros europeus de produção intelectual. Em outras palavras, Young reproduz uma hierarquia colonial na sua distinção: a teoria pós-colonial é um produto das universidades ocidentais, que estuda e examina os discursos anti-coloniais para colocar em xeque concepções eurocêntricas. O discurso anticolonial, produzido localmente, é matéria a ser moldada


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pelas categorias produzidas pela teoria metropolitana. O desnível é evidente. É preciso estar atento para não reproduzir, dentro dos estudos pós-coloniais, hierarquias que foram alvo de tanta luta e resistência entre intelectuais de países periféricos. É necessário pensar o Brasil no contexto do Sul Global, dentro de sua heterogeneidade. Comparar é imperativo, mas sempre dentro de uma moldura de coaparição, sem criar hierarquia entre os termos, isto é, sem estabelecer a experiência anglófona como um marco normativo que deve mensurar a experiência brasileira. Moldura interidentitária: entre Próspero e Caliban No seu artigo “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, Pós-Colonialismo e Interidentidade”, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, um dos principais teóricos do Sul Global, defende uma hipótese arrojada e polêmica, que tem causado intensos debates nos estudos pós-coloniais lusófonos: a cultura portuguesa habitaria uma zona de “interidentidade”, por ter sido um poder colonizador (Próspero), ao mesmo tempo em que uma “colônia informal” (Caliban) da Inglaterra. A hipótese de Boaventura, que coloca Portugal como ponto articulador dessa identidade porosa entre colonizador e colonizado, vem sendo seriamente questionada por muitos estudiosos (cf. MADUREIRA, 2008). Ainda assim, creio que uma moldura interidentitária - entre Próspero e Caliban daria rendimentos até mais interessantes caso aplicada à situação do Brasil. Se levarmos a sério essa posição interidentitária do Brasil, muito da própria imagem que construímos acerca da cultura brasileira precisaria ser revista. Como notamos no início do artigo, boa parte da crítica literária e cultural brasileira tem compreendido o Brasil dentro do paradigma centro-periferia, no qual o Brasil é frequentemente identificado como um país periférico, sofrendo com a dependência cultural. Ora, já está mais do que na hora de tirar as conseqüências do status de média potência mundial desfrutado pelo Brasil,


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no qual estabelece relações de poder com outros países a partir de outros arranjos. O caso da África lusófona parece ser o mais ilustrativo. Faz-se necessário discutir com mais vagar essa posição ambivalente da cultura brasileira no mundo. Numa monografia dedicada ao estudo das relações entre Brasil e África, Fernando Arenas mostra a ambivalência que rege a interação entre Brasil e África lusófona. De um lado, há ações que claramente denotam solidariedade entre países “terceiro-mundistas”. O Brasil, por exemplo, exportou para Moçambique a tecnologia social do Bolsa Família; e ajudou a fundar a primeira universidade pública do Cabo Verde. Por outro lado, a presença de empresas brasileiras, como Companhia Vale do Rio Doce, Petrobrás e Odebrecht, tem exercido um impacto predatório nas economias e no meio-ambiente de Angola e Moçambique. Fazemos as vezes de parceiros pós-coloniais no mundo lusófono e, ao mesmo tempo, de neocolonizadores. Ademais, a cultura brasileira teria aquilo que Arenas chama de “capital afetivo” (ARENAS 2011) - que é a simpatia nutrida pelos africanos diante de nossas manifestações culturais como música, telenovela e futebol. Convém lembrar que essa relação ambígua com a África não vem dos tempos recentes, com a política externa do governo Lula. Pelo contrário, trata-se de relação antiga, que nunca foi devidamente teorizada. Basta lembrar que, nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil defendeu Portugal nos fóruns multilaterais para que a antiga metrópole pudesse manter suas colônias. Gilberto Freyre foi um intelectual instrumental para essa missão, forjando a teoria do lusotropicalismo - teoria que estudaria a predisposição do lusitano para colonizar regiões tropicais. O Brasil narrado por Freyre serviria como exemplo da boa colonização portuguesa. No entanto, o que acontece no Atlântico Sul é mais complexo do que uma simples colaboração de um intelectual conservador com um regime fascista. Se o Brasil narrado por Freyre passa a ser extremamente conveniente para as narrativas oficiais do governo português, esse mesmo Brasil discutido nas obras seminais de Freyre servirá de inspiração para intelectuais caboverdianos - como Baltasar Lopes e Gabriel Mariano


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- articularem um projeto de independência cultural em relação a Portugal. A imagem do Brasil no Atlântico lusófono passa, então, a ser pendular - apropriada tanto por Próspero (Portugal), como por Caliban (Cabo Verde). Baltasar Lopes foi um dos fundadores do movimento Claridade, formado por um grupo de letrados interessados na investigação da identidade cultural cabo-verdiana. Desde seu início, o grupo se inspirou principalmente no modernismo nordestino do Brasil. Lopes confessa ter lido avidamente os romances de Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Armando Fontes e Marques Rebelo, e as poesias de Jorge de Lima e Manuel Bandeira. Seu romance Chiquinho, publicado em 1947, tem uma forte afinidade com os romances sociais do Nordeste brasileiro, guardando alguma coisa do memorialismo de José Lins do Rêgo e da crítica social de Jorge Amado. Para Lopes “esta ficção e esta poesia revelava-nos um ambiente, tipos, estilos, formas de comportamento, defeitos e virtudes, atitudes perante a vida que se assemelhavam aos destas ilhas” (LOPES, 1956, p. 6). O impacto que a cultura brasileira teve sobre o fundador do Grupo Claridade pode ser percebido na descrição pormenorizada que o próprio Lopes faz de sua leitura de “Evocação do Recife”, poema de Manuel Bandeira. Lopes lia o poema visualizando Cabo Verde. Vila da Ribeira Brava, sua cidade natal, seria o Recife da poesia; um velho conhecido seu, Nhô Pedro António, faria as vezes de Totônio Rodrigues com o pince-nez, e a moça tomando banho nua, observada com alumbramento por Bandeira na Caxangá, era imaginada nos tanques da Ribeira do João. Tal como Tomás Antonio Gonzaga, poeta arcádico estudado por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira, que colocava uma ninfa neoclássica nos ribeirões de Minas Gerais, Lopes vislumbrava os personagens e situações narrados pela literatura brasileira dentro de cenário cabo-verdiano. Numa das passagens de Aventura e rotina, Freyre reconhece os fortes vínculos culturais que unia Cabo Verde ao Brasil: “Mais de um cabo-verdiano foi o que me disse com a maior clareza: que se sentia mais brasileiro do que português da Europa. Que Cabo Verde deveria ser província do Brasil” (FREYRE, 1953, p. 246). É possível verificar, no testemunho de Baltasar


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Lopes, o imenso impacto do livro brasileiro em Cabo Verde. Pode-se dizer que tal impacto - ainda não teorizado - não se restringiu a Cabo Verde. Em seu estudo sobre a recepção de Guimarães Rosa na África lusófona, Anita Moraes oferece subsídios importantes para essa reflexão (MORAES, 2012, p. 29-45). No seu estudo, Moraes mostra como o encontro - muitas vezes fortuito - com a ficção de Guimarães Rosa marca um ponto de inflexão nas trajetórias de escritores como Luandino Vieira, Ruy Duarte e Mia Couto. Em todos os relatos, os escritores revelam como a obra rosiana mostrou-se fortemente inspiradora para que tais escritores pudessem escrever os seus livros. Se, de acordo com Homi Bhabha, em seu “Signs taken for wonders”, o livro inglês representa, inicialmente, uma fonte de recalque para o colonizado; o livro brasileiro descortinava, por sua vez, possibilidades de desrecalque. Minha principal hipótese é a de que a literatura brasileira (sobretudo a prosa de Guimarães Rosa) forneceu aos escritores lusófonos africanos um modelo de narrativa transcultural que foi de extrema importância e utilidade no processo de formação das literaturas nacionais africanas de língua portuguesa. Se as ligações entre literatura brasileira e literatura africana lusófona estão bem documentada bem documentadas (HAMILTON, 1994; ORNELAS, 1996; CHABAL, 1995), faz-se necessário tirar as consequências da natureza emuladora dessa relação. Ao incorporar a oralidade de uma cultura tradicional (caipira) à alta literatura, a ficção rosiana apresentava aos escritores africanos de língua portuguesa um achado formal que seria imprescindível na construção das literaturas nacionais africanas de língua portuguesa. Tanto o escritor angolano Luandino Vieira como o romancista moçambicano Mia Couto já declararam que Guimarães Rosa foi uma fonte de inspiração determinante na maneira como estes próprios escritores conceberam a literatura de seus países. Como a maioria dos estudos comparativos em literatura (estudos pós-coloniais, estudos sociológicos, marxismo) tem focado suas análises na dicotomia entre colonizador/colonizado, ocidental/oriental, centro/periferia, Norte/Sul, Prospero/Caliban, uma questão necessita ser colocada: como devemos dar conta de relações


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entre países que são considerados de “terceiro mundo”, “subdesenvolvidos”, “não-ocidentais” e do hemisfério Sul? Essa relação Sul-Sul seria uma relação baseada na emulação ou na colaboração? Que tipo de dinâmica de poder seria criada entre esses países? Essas são as principais questões que devem estruturar um programa de estudos focados no Sul Global. Primeiro, no entanto, são necessários alguns esclarecimentos conceituais. O que vem a ser narrativa transcultural e porque esse tipo de narrativa ofereceria uma moldura conceitual importante para entender as relações literárias Sul-Sul? Narrativa transcultural é um termo cunhado pelo crítico literário uruguaio Angel Rama. De acordo com Rama, escritores latino-americanos como José Maria Arguedas, Gabriel García Marquez, Roa Bastos e João Guimarães Rosa seriam “narradores transculturais” (RAMA, 1982, pp. 15-67). Esse tipo de narrador trabalharia como uma espécie de “tecedor” literário, costurando alta literatura com a oralidade de culturas mais tradicionais. Vale a pena salientar que o conceito transculturación, cunhado por Fernando Ortiz e apropriado por Rama, implica necessariamente a formação de novas identidades e culturas. Transculturação é um processo que sempre leva à síntese de um binarismo, formando, assim, um terceiro espaço, resultante de negociações várias. Logo, a narrativa transcultural não seria propriamente nem literatura modernista nem ficção regionalista, mas uma produção cultural num entrelugar epistemológico, capaz de incorporar avanços formais da vanguarda com a revitalização do legado popular. Parece, portanto, bastante compreensível que esse modo particular de narrativa tenha atraído escritores africanos lusófonos, uma vez que países como Moçambique e Angola estavam enfrentando o desafio de reconstruir a nação das ruínas de guerras coloniais e civil. Costurar as diferentes vozes e visões de mundo dos variados grupos sociais e étnicos num texto nacional seria uma maneira de cicatrizar simbolicamente as feridas do conflito e criar uma comunidade imaginada. É sintomático, por exemplo, que o angolano Luandino Vieira tenha escolhido o musseque (uma vizinhança inter-étnica) como o local primordial de


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Tradução minha: Os musseques de Vieira são áreas fronteiriças onde os diferentes grupos sociais e étnicos se encontram: do colono pobre europeu ao rico comerciante mestiço; do mercador caboverdiano ao trabalhador negro, do assimilado empobrecido ao pretensioso ambaquista. 5 Tradução minha: Em culturas que pertencem à periferia do sistema-literário (o que quer dizer: quase todas as culturas, dentro e fora da Europa), o romance moderno surge não como um desenvolvimento autônomo, mas como um compromisso entre influências formais ocidentais (geralmente inglesas ou francesas) e materiais locais. 4

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sua ficção. De acordo com Patrick Chabal, “Vieira´s musseques are a frontier area where a mixture of social and racial groups meet: from the poor white settler to the rich mestiço trader, from Cape Verdean merchant to the black laborer, from the impoverished assimilado to the pretentious ambaquista” (CHABAL, 1995, p. 22).4 O musseque seria, assim, um espaço poroso no qual a comunicação e a negociação entre diferentes grupos ainda eram possíveis. Já o escritor moçambicano Mia Couto, no seu romance Terra Sonâmbula, narra a história de um encontro entre um idoso, Tuahir, e um orfão, Muidinga, dois fugitivos de um campo de refugiados que acabam vivendo num ônibus queimado cercado de cadáveres. Muidinga encontra um caderno próximo a um dos corpos e começa a ler em voz alta os eventos escritos no caderno por alguém chamado Kindzu. A narração do romance alterna os dialógos entre Muidigina e Tuahir com entradas do caderno. Em um certo ponto do romance, voz e palavra escrita começam a se entrelaçar à medida em que Mudinga vai preenchendo as lacunas do texto de Kindzu com sua própria imaginação e desejo de ter uma família. O leitor do romance não consegue distinguir as entradas reais do diário de Kindzu da leitura que Muidinga faz do diário. No romance de Mia Couto, textos são espaços permeáveis que devem ser apropriados e contaminados pela imaginação e desejo do povo. Tais narrativas transculturais - viajando do Brasil para África lusófona - podem fomentar novas discussões teóricas da chamada literatura mundial. Baseado na teoria do sistema-mundo de ImannuelWallerstein, Franco Moretti, no seu artigo “Conjectures on World Literatura”, procura estabelecer uma “lei da evolução literária”, afirmando que “in cultures that belong to the periphery of the literary system (which means: almost all cultures, inside and outside Europe), the modern novel first arises not as autonomous development but as a compromise between a western formal influence (usually French or English) and local materials” (MORETTI, 2000, p. 58).5 Respondendo a Moretti, Efraín Kristal menciona algumas exceções à lei de Moretti, encontradas na literatura hispano-americana, assim, questionando seriamente a eficácia do modelo teórico proposto por Moretti. Kristal


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argumenta, por exemplo, que, na literatura hispanoamericana, a poesia - e não o romance - era o gênero literário dominante até 1920. Ademais, ao criticar o modelo de Moretti, Kristal estaria argumentando “in favor of a view of world literature in which . . . themes and forms can move in several directions – from the centre to the periphery, from the periphery to the centre, from one periphery to another” (KRISTAL, 2002, p. 65).6 Essa visão da literatura mundial - proposta por Kristal -, na qual formas e temas viajam de um ponto periférico para outro, é certamente adequada para pensar as relações culturais, em geral, e literárias, em particular, do Sul Global - já que se trata de estudar as relações entre Brasil e África lusófona. Se nós entendermos que narrativas transculturais são um tipo de “compromisso”, dentre tantos outros possíveis, entre forma ocidental e práticas narrativas locais, seria apropriado afirmar que “compromissos” - especialmente a partir da segunda metade do século 20 - viajaram tanto quanto formas europeias. Seria tão importante mapear as viagens dos “compromissos” (narrativas transculturais) de uma periferia para outra como traçar os fluxos culturais do centro para periferia. Conclusão Se a prática da literatura comparada é constitutiva daquilo que chamamos de estudo da literatura brasileira, uma ampliação do alcance daquilo que consideramos literatura comparada certamente terá efeitos na maneira como nós entendemos a nossa cultura e o espaço que ocupa no mundo. Descrevi neste artigo duas possíveis abordagens para estudar a relação do Brasil com o Sul Global. Longe de serem exaustivas, tais abordagens devem e podem se somar a muitas outras. Reitero aqui as vantagens analíticas de cada uma: com a noção de comparação como co-aparição podemos estudar culturas, literaturas e autores que, de fato, não tenham nenhum liame entre si. Trata-se de agregar analiticamente aquilo que a divisão internacional de conhecimento fragmentou. A outra

Tradução minha: De uma visão de literatura mundial na qual temas e formas pudessem se movimentar em várias direções – do centro para periferia, da periferia para o centro, de uma periferia para outra periferia. 6


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vantagem da co-aparição estaria na maneira de cotejar experiências pós-coloniais sem parâmetros normativos da experiência anglófona ou francófona. Cada configuração cultural periférica deve ser compreendida dentro da sua especificidade, e não como desvio de um suposto modelo canônico. Trabalhar com a noção da cultura brasileira como pertencente a uma zona interidentitária - capaz de se revelar tanto como inspiração descolonizadora quanto presença neocolonizadora no continente africano - nos leva a pensar como as relações Sul-Sul estão longe de ser simétricas ou ideais. Frequentemente pensamos a cultura brasileira como aquela que de algum modo imitou, apropriou, canabalizou o alheio para se constituir. É chegada a hora também de pensar a cultura brasileira como objeto de emulação, com todas as ambivalências e problemas que essa emulação traz. Só poderemos renovar a prática comparatista quando formos capazes de conectar a disciplina da literatura comparada a uma noção mais precisa da geopolítica do saber e da cultura.

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Eurídice Figueiredo*

Resumo: O texto propõe uma revisão do conceito de Literatura Comparada a partir das mudanças operadas no mundo literário desde a descolonização dos países africanos e as diásporas de escritores que se instalaram nos países ocidentais, embaralhando o próprio conceito de Literatura Nacional. Em seguida, sugere a possibilidade de trabalhos comparativos entre as literaturas dos países que foram colonizados, longe da ideia de influência de literaturas centrais sobre as literaturas ditas periféricas. Palavras-chave: Literatura Comparada; literaturas diaspóricas; estudos pós-coloniais. Abstract: This text proposes a revision of the concept of Comparative Literature considering the transformations that have taken place in the literary world since the decolonization of African countries. The work of diasporical writers who moved to Western countries calls into question the very notion of a National Literature itself. The text then suggests that it is possible to perform comparative studies of literatures of formerly colonized countries that differ from the traditional approach which focuses on the influence of Central Literatures on Peripheral ones. Key words: Comparative Literature; Diasporical Literatures; Post Colonial Studies.

Universidade Federal Fluminense/CNPq. *


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Literatura Comparada: textos fundadores Tomo como mote para a minha reflexão o livro que Eduardo Coutinho e Tania Carvalhal organizaram em 1994 com o título Literatura Comparada: textos fundadores, no qual incluíram artigos publicados de 1886 até 1974. O livro trouxe uma relevante contribuição para os estudos da área, já que colocaram à disposição do público brasileiro artigos escritos em várias línguas, dispersos em revistas ou livros de difícil acesso. Quase vinte anos depois, relendo o livro para escrever este texto, parece-me importante ressaltar alguns elementos. Considerando que a Literatura Comparada nasceu na França em torno de 1830 (JEUNE, 1994, p. 223), não surpreende que haja hegemonia da linha francesa no livro. No século XIX a nova disciplina se configurou a partir da ideia de centralidade da Literatura Francesa, cujo principal postulado era a influência que exercia sobre as demais. O nacionalismo e a primazia da França eram os alicerces do pensamento que se delineava de maneira bastante inflexível. A contrapartida veio dos professores (muitos deles emigrados europeus) dos departamentos das universidades americanas, que adotaram uma posição mais aberta e mais cosmopolita. Muitos deles já não faziam distinção rígida entre Literatura Geral ou Literatura Mundial e Literatura Comparada. Remak questiona a assertiva do crítico francês Van Tieghem segundo a qual a literatura comparada envolvia investigações limitadas a dois países. “Por que uma comparação entre Richardson e Rousseau deveria ser classificada como literatura comparada, ao passo que uma comparação entre Richardson, Rousseau e Goethe [...] seria atribuída à literatura geral?” (REMAK, 1994, p. 186).Além disso, uma nova questão metodológica se abria para o diálogo entre a Literatura e outras áreas do saber. A definição de Remak é bem ampla e se aproxima daquilo que se pratica até hoje. A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes


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[...], a filosofia, a história, as ciências, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana (REMAK, 1994, p. 175).

Note-se no livro de Coutinho e Carvalhal a ausência da América Latina tanto como sujeito do discurso (não há autores latino-americanos) como objeto do discurso (não há menção às Literaturas Nacionais da região senão de passagem). A África e o Oriente aparecem uma ou outra vez nos textos como áreas exóticas que um dia viriam participar desse concerto de nações literárias. Deve-se destacar também a ausência de negros e demulheres. René Wellek mostra que há um paradoxo na evolução da literatura comparada já que, apesar de ela ter surgido como uma reação contra o nacionalismo limitado, como um protesto contra o isolacionismo, acabou desembocando numa competição entre países, cada um querendo provar que mais exerceu influência sobre os demais ou que melhor assimilou um grande escritor estrangeiro (WELLEK, 1994, p. 112-114). Novas literaturas Passados quase 40 anos da publicação do último texto que compõe a antologia, o que mudou? Na América Latina aconteceu o chamado boom que inseriu, de maneira cabal, as literaturas hispânicas do subcontinente no cânone da literatura. Mas o fenômeno talvez mais impressionante foi a emergência tanto de literaturas africanas quanto de literaturas de países asiáticos (como Índia e Paquistão) escritas nas línguas europeias. Uma nova característica mudou o mapa das grandes literaturas: escritores “étnicos” (seja pela cor seja pela religião: negros, mestiços, muçulmanos), provenientes das antigas colônias, deixaram seus países e se radicaram nas metrópoles dos países ocidentais começando a dar novas configurações às literaturas nacionais. As primeiras publicações (tanto de poesia quanto


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de romance ou teatro) de autores que viriam a ser considerados fundadores das novas literaturas africanas começaram em torno dos anos 1950: no mundo da francofonia, Léopold Sédar Senghor (do Senegal) publicou a Anthologie de la nouvelle poésienègre et malgaxe, em 1948, e Kateb Yacine (da Argélia) publicou o romance Nedjma, em 1956; no mundo de língua inglesa, Chinua Achebe publicava o romance, recentemente traduzido entre nós, O mundo se despedaça, enquanto Wole Soyinka (ambos da Nigéria) representava suas primeiras peças em Londres em 1958. As literaturas das antigas colônias portuguesas na África emergem no mesmo movimento. Em 1953, é publicado o caderno Poesia negra de expressão portuguesa, organizado por Francisco José Tenreiro e Mário de Andrade, que, segundo Benjamin Abdalla, foi concebido na esteira da Antologia de Senghor, que recebera como prefácio o famoso texto de Sartre, Orfeu Negro (ABDALLA, 2008, p. 80). Um pouco mais tarde (1964), saía Luuanda, de Luandino Vieira, que se tornaria um clássico da literatura angolana. O que parece ser um denominador comum nessas literaturas, bem como em alguns autores do Caribe e da América Hispânica, é a tentativa de se apropriar da tradição literária, transformando-a de modo a integrar as tradições orais que caracterizam essas culturas. O barroco Em grande parte da obra desses autores predomina o barroco, que permite a mistura, o hibridismo, a profusão de elementos que decorrem da mestiçagem cultural. Severo Sarduy assinala que o barroco “reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico”, ou seja, os escritores barrocos fazem uma crítica da história oficial, adotando uma visão crítica, contestatária. Barroco em sua ação de pesar, em sua queda, em sua linguagem afetada, às vezes estridente, multicor e caótico, metaforiza a impugnação da entidade logocêntrica que


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até então nos estruturava em sua distância e sua autoridade; barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida. Barroco da Revolução (SARDUY, 1979, p. 178).

Desenvolvo este aspecto no artigo “O humor rabelaisiano de Patrick Chamoiseau e Mário de Andrade”, publicado na revista Alea: Estudos neolatinos, vol. 7, n. 2, dez. 2005. Disponível em www.scielo. br e retomado, com pequenas modificações, no meu livro Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura (7letras, 2010). 1

Esses escritores barrocos fazem uma invocação épica da História através da alegoria, da fantasmagoria, situando-se numa visão revisionista que se insurge contra os paradigmas de modernização difundida pelo Ocidente, ao mesmo tempo em que incorpora os elementos da tradição europeia, inclusive a do próprio barroco. Há neles uma visão não linear e não naturalista da História. Segundo Chiampi, o barroco se dinamiza no nível de uma temporalidade paralela que seria a da meta-história: “é o nosso devir permanente, o morto que continua falando, um passado que dialoga com o presente por seus fragmentos e ruínas, quem sabe para preveni-lo de tornar-se teleológico e conclusivo” (CHIAMPI, 1998, p. xvii). As histórias contadas pelos escritores barrocos se embaralham, se entranham, em metamorfoses que produzem uma profusão de sentidos. As narrativas não são nem lineares nem miméticas, as intrigas e as relações entre os personagens não são muito claras nem muito lógicas. O leitor encontra-se no terreno do indecidível, há uma hesitação justamente porque os romances não são “realistas” (no sentido dos romances europeus do século XIX). A liberdade destes escritores decorre do fato de eles não terem a pretensão de desvelar “a verdade”; é antes uma maneira de conservar uma liberdade que se abre a todas as liberdades. Incorpora-se a tradição rabelaisiana do barroco que a França havia apagado por séculos, introduzindo o riso, o erotismo, a carnavalização, a linguagem desregrada e inovadora, o realismo grotesco.1 Considerando que o Prêmio Nobel não é garantia de qualidade, mas constitui um sintoma de mudanças dos cânones, torna-se pertinente destacar o aumento significativo de não europeus que foram premiados, sobretudo desde os anos 1980. Hispano-americanos tiveram seis prêmios (três antes de 1980, três depois): Gabriela Mistral (Chile), em 1945, Miguel Ángel Astúrias (Guatemala), em 1967, Pablo Neruda (Chile), em 1971, Gabriel


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Garcia Marquez (Colômbia), em 1982, Octavio Paz (México), em 1990, Mário Vargas Llosa (Peru), em 2010. O Caribe de língua inglesa teve dois: Derek Walcott (Santa Lúcia), em 1992, e V.S. Naipaul (Trinidad e Tobago), em 2001. A África teve quatro: Wole Soyinka (Nigéria), em 1986, Naguib Mahfouz (Egito), em 1988, Nadine Gordimer (África do Sul), em 1991, John Coetzee (África do Sul), em 2003. O Japão e a China tiveram dois cada um: Yasunari Kawabata (Japão), em 1968, e Kenzaburo Oe (Japão), em 1994; Gao Xingjian (China), em 2000, e Mo Yan (China), em 2012. A Turquia, um país periférico da Europa, teve um: Orhan Pamuk, em 2006. Merece destaque o Nobel concedido à escritora afro-americana Toni Morrison, em 1993. Um aspecto que afeta a percepção do “nacional” é o fato de as línguas europeias terem sido apropriadas e transformadas por esses escritores descentrados: são muitas as variações de francês, inglês, espanhol e português. Acabou a relação, mesmo que tênue, da tríade: um país, uma língua, uma literatura. Assim, novas apelações surgiram para designar o fenômeno - literaturas diaspóricas, literaturas migrantes, literaturas transnacionais. Nesse panorama movediço, em que os antigos alicerces ruíram, a Literatura Comparada já não pode mais ser a mesma. Do conceito de influência ao de intertextualidade A literatura não é mais apanágio dos países europeus, já que a cada ano surgem novos escritores, oriundos de países quase desconhecidos do grande público, com formas literárias inovadoras. O conceito de influência continua na berlinda. Ultrapassada a visão positivista do século XIX francês, ele foi apresentado, em artigo de 1967, pelo crítico russo Victor Zhirmunsky.2 Ele considerava que a influência envolvia sempre a transformação social do modelo, ou seja, cada modelo é reinterpretado e adaptado “às condições literárias e sociais que determinaram sua influência, às novas relações de tempo e espaço, à tradição literária nacional em geral e à individualidade

É bom lembrar que a União Soviética ocupa uma posição periférica se comparada com a hegemonia francesa e norteamericana. 2


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O tradutor usa a palavra escritura para écriture; eu prefiro usar o termo mais comum da língua portuguesa, escrita, e creio que esta é a tendência atual. 3

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ideológica, psicológica e artística do autor em questão” (ZHIRMUNSKY, 1994, p. 208).Franco Moretti, em artigo publicado em 2000, afirma que o romance europeu, transposto em culturas periféricas, revela “uma conciliação entre uma influência formal ocidental (em geral francesa ou inglesa) e matérias locais” (MORETTI apud VASCONCELOS, 2011, p. 68). Como Sandra Guardini Vasconcelos (2011, p. 68) aponta, a adoção de modelos abstratos para explicar a difusão do romance, tal como é feito por Moretti, tende a deixar de lado o particular, ou seja, o objeto em seu contexto histórico. No Brasil, já há algum tempo, evita-se falar de “influência”, porque nela subjaz a ideia de uma relação de subalternidade das literaturas dos países colonizados em relação às dos países colonizadores. A crítica a essa relação de dependência foi feita por ensaístas brasileiros, dentre os quais eu destacaria a figura de Silviano Santiago, no sentido de repensar o estatuto da literatura brasileira em relação às literaturas europeias, com destaque para artigos como “O entre-lugar do discurso latino-americano” (Uma literatura nos trópicos, de 1978), “Apesar de dependente, universal” (Vale quanto pesai, de 1982). Do ponto de vista da teoria do texto, desde Mikhaïl Bakhtin, Julia Kristeva e Roland Barthes, fala-se muito mais de intertextualidade, conceito mais neutro, que dá conta do fato de que todo escritor é, antes de tudo, leitor. Para Barthes, a “escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).3 Ao mostrar que “o texto é um tecido de citações” (BARTHES, 1988), as quais, por sua vez, emanam de outros textos, Barthes dessacralizava a figura do autor como criador único e autoconsciente do texto. Ao tirar o foco do autor, Barthes privilegiava o leitor, aquele que teria o encargo de dar sentido ao texto no processo de leitura: “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 1988, p. 70).


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Manifeste pour une “Littérature-Monde” enfrançais No dia 16 de março de 2007, o jornal Le Monde publicou um Manifeste pour une “littérature-monde” em français, assinado por 44 escritores, dentre os quais Edouard Glissant, Tahar Ben Jelloun, Dany Laferrière e Maryse Condé. Alguns meses mais tarde, foi publicado um livro, Pour une littérature-monde, do qual participaram alguns dos signatários do Manifeste e outros escritores que não o haviam assinado. Inicialmente é preciso observar que o ponto de comparação postulado é a existência de uma literatura de língua inglesa que não teria um rótulo análogo a “francófono” e cujos autores produziram “romances ruidosos, coloridos, mestiços, que diziam, com uma força rara e palavras novas, o rumor destas metrópoles exponenciais em que se chocavam, se misturavam, se mesclavam as culturas de todos os continentes” (Manifeste, tradução minha). Na reivindicação dos signatários do Manifeste, percebe-se a superação do “nacional” em benefício de uma visão “transnacional” da literatura na medida em que a maioria deles pertence, ao mesmo tempo, a várias “comunidades imaginadas” (Anderson), ou seja, são escritores que vivem uma realidade de hibridismo e mestiçagem. O livro Les littératures de langue française à l’heure de la mondialisation (2010), organizado por Lise Gauvin, publicou o Manifeste pour une littérature-monde em français, que estava inédito em livro desde sua publicação no jornal. Este livro assinala a posição crítica dos quebequenses em relação ao Manifesto e a favor da francofonia literária, embora reconheça o ranço colonial que subsiste no termo francofonia, tal como usado no terreno da política internacional. Literatura do Commonwealth Contrariamente à afirmação presente no Manifesto de que em inglês não haveria rótulo análogo à francofonia, Salman Rushdie, em artigo intitulado “A literatura


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do Commonwealth não existe”, escrito em 1983 (1993, p. 77), mostrava que a expressão “literatura do Commonwealth” — utilizada então para agrupar os escritores oriundos dos países que outrora fizeram parte do Império Britânico — era inapropriada, porque incluía escritores provenientes de países que não faziam parte do Commonwealth (como a África do Sul e o Paquistão). Mas o argumento principal tinha a ver com as mesmas questões colocadas pelos signatários do Manifeste pour une “littérature-monde” quase 25 anos depois, ou seja, que o termo tinha uma ressonância paternalista e colonialista. Haveria, de um lado, a literatura inglesa propriamente dita — a superior, a sagrada — e, de outro lado, a literatura da periferia que reagruparia um bando de rudes recém-chegados ao mundo das letras. Ele considerava particularmente desagradável a expressão “literatura do Commonwealth” por ela se constituir em “gueto de exclusão”. É importante destacar que ele concebe a literatura inglesa como toda a literatura escrita em língua inglesa, como Tahar Ben Jelloun considera que todos os que escrevem em francês fazem literatura francesa (e não francófona). Assim, separar a literatura inglesa seria conferir-lhe um caráter “segregacionista nos planos topográfico, nacionalista e talvez até mesmo racista” (RUSHDIE, 1993, p. 79). A regra base que sustenta o edifício do gueto “literatura do Commonwealth” seria que a literatura é expressão da nacionalidade, o que ele contesta. Assim, a recepção nos países centrais varia: se os livros recriam tradições orais e populares, com elementos das culturas ancestrais, eles são apreciados, enquanto que aqueles que mesclam as tradições ou rompem com elas parecem suspeitos. O escritor pós-colonial é, então, acusado de falta de autenticidade. Ora, por que se exige autenticidade de um escritor africano, asiático ou latino-americano, e não se exige autenticidade de um escritor francês ou inglês? Porque, como afirma Rushdie, a autenticidade é a herdeira do velho exotismo. “Ela exige que as fontes, as formas, o estilo, a língua e os símbolos derivem todos de uma tradição pretensamente homogênea e contínua” (RUSHDIE, 1993, p. 83). A busca de autenticidade é falaciosa, porque mesmo as tradições são múltiplas e já misturadas, não existe


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nada puro e homogêneo, senão de forma abstrata e imaginária. Nimrod, escritor nascido no Chade, afirma que o que os racistas europeus recusam é a mestiçagem cultural: O que dizer do escritor africano? Tudo se passa como se ele tivesse de produzir uma literatura exótica destinada aos europeus e a si próprio, o que leva a destinar à nostalgia uma África que desapareceu há muito tempo [...] A literatura atravessa sua existência e o leva a escrever não uma literatura de africanos autênticos mas a de africanos urbanos — em todos os sentidos do termo — que é a prova inaudita do mestiço cultural em que eles se transformaram (NIMROD, 2007, p. 223).

A exigência de representar o autenticamente nacional coloca-se tão somente para os periféricos, porque ninguém pergunta sobre a francidade dos escritores franceses nem sobre a anglicidade dos escritores ingleses. A criação literária, nos dias de hoje, tanto nos países centrais quanto nos países que passaram pelo processo de colonização, não segue paradigmas rígidos. Lusofonia? No que se refere aos países africanos de língua portuguesa, o termo lusofonia tende a não ser apreciado por atrelá-los de modo simbólico a Portugal, como salienta Laura Padilha (2007), que vê a lusofonia como extensão do lusismo, maneira de afirmação de Portugal. Ela considera que lusofonia significa mais do que o simples aspecto linguístico e, nesse sentido, vai de encontro à posição de Eduardo Lourenço. Como nos espaços de língua francesa e inglesa, o português foi transformado para se moldar às peculiaridades da vida cultural dos diferentes países africanos e, principalmente, para incorporar elementos da tradição oral, como acontece em outras áreas diglóssicas, ou seja, países que falam mais de uma língua, com estatutos diferentes (a língua ocidental e outra/s língua/s ágrafa/s). Essa “reinvenção linguística e cultural” da língua portuguesa foi chamada por David Mestre de “geogramática” (PADILHA, 2007, p. 106).


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Do ponto de vista da legitimação, publicação e distribuição de livros, os autores africanos ainda passam por Lisboa, mas é de se destacar a amplitude do mercado editorial brasileiro que abre as portas para esses escritores. E é também importante lembrar que os laços com o Brasil são antigos, já que os primeiros escritores, que participaram dos movimentos de independência, foram leitores dos brasileiros, como Guimarães Rosa e Jorge Amado, o que provocou uma transversalidade bastante produtiva. Língua e linguagem Rushdie ressalta que a flexibilidade do inglês possibilita que escritores de várias partes do globo o reinventem para exprimir suas necessidades. A partir da etimologia de traduzir — traducere, levar além — o autor afirma que eles são homens “traduzidos”, pois foram levados para longe de seus locais de nascimento. Apesar de normalmente se dizer que se perde no processo de tradução, Rushdie aposta que se pode também ganhar (1993, p. 28). O fato de eles terem uma dupla perspectiva, de dentro e de fora, permite que sua visão estereoscópica (RUSHDIE, 1993, p. 30) seja particularmente interessante. De maneira semelhante, escritores africanos como Nimrod afirmam que eles inventaram uma nova maneira de escrever em francês, porque exprimem realidades que são parcialmente distantes da cultura e da sensibilidade francesas. “O francês consegue falar nossas línguas sem deixar de ser francês” (NIMROD, 2007, p.230). Patrick Chamoiseau, Raphaël Confiant e Jean Bernabé, no Eloge de lacréolité, explicam como os antilhanos conquistaram a língua francesa: “Nós estendemos o sentido de certas palavras. Nós desviamos outros. E metamorfoseamos muito. Nós a enriquecemos tanto no léxico quanto na sintaxe. Nós a preservamos em muitos vocábulos cujo uso se perdera. Em suma, nós a habitamos. Em nós, ela ficou viva. Nela, nós construímos nossa linguagem” (BERNABÉ; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1989, p. 47, grifos dos autores, tradução minha). Edouard Glissant concebe a crioulização como um


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processo de transformação da linguagem na narrativa antilhana, que se nutre dos contos crioulos e adota a economia da língua crioula no interior da língua francesa. “É preciso abrir caminho através da língua em direção de uma linguagem que não reside talvez na lógica interna dessa língua. A poética forçada nasce da consciência dessa oposição entre uma língua de que se serve e uma linguagem da qual se necessita” (GLISSANT, 1981, p. 237). A crioulização pretende engendrar uma linguagem capaz de tecer as poéticas crioulas, barrocas, presentes na oralidade tradicional, em contraste com a economia da língua francesa, muito mais concisa, clara e clássica. E as possibilidades de leitura de autores de origens muito variadas aumentam, facilitadas pela rapidez com que as obras literárias são traduzidas. Trata-se de uma “polinização cruzada” (RUSHDIE, 1993, p. 31), em grande parte devido à multiplicação dos centros e à maior divulgação e circulação de bens culturais no mundo globalizado. Assim, cada escritor pode escolher seus predecessores a partir de suas afinidades eletivas. Salman Rushdie, por exemplo, coloca-se como herdeiro de Gógol, Cervantes, Kafka, Melville e Machado de Assis, uma árvore genealógica poliglota, dos quatro cantos do mundo. Decididamente, os escritores que estão produzindo uma literatura transnacional eliminaram todo tipo de gueto, seja ele nacional, territorial ou linguístico. República mundial das letras Como os escritores antilhanos e africanos de língua francesa, Rushdie postula que a língua inglesa deixou de ser propriedade dos ingleses há muito tempo e que, nesse sentido, não há mais centro. Destruir o centro tem como corolário destruir a noção de periferia, à qual são relegados os escritores provenientes da imigração. Este ponto é importante como matéria de discussão. No caso do inglês, a colocação parece ser bastante apropriada, porque o poderio americano desestabilizou a posição da Inglaterra enquanto centro. Já os escritores canadenses de língua inglesa, próximos demais dos Estados Unidos, preferem


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reforçar o polo de Londres, que lhes fornece um capital cultural em contraposição à dominação do seu vizinho do sul (CASANOVA, 1999, p. 176). Entretanto, no caso francês, Paris continua a exercer uma primazia tanto política quanto cultural no espaço francófono e, como aponta Pascale Casanova, se ela desempenhou o papel de centro de consagração para inúmeros escritores norte-americanos (Faulkner, os negros a partir do movimento do Harlem Renaissance) e latino-americanos (sobretudo do chamado boom), paradoxalmente, para os escritores de língua francesa, Paris não pode funcionar como uma espécie de “terceiro lugar específico” (CASANOVA, 1999, p. 177). Como não há outro local que possa exercer a função de centro de consagração, o mal-estar e a marginalização dos escritores francófonos redundaram no Manifesto. No caso das literaturas africanas de língua portuguesa, Lisboa ainda conserva seu poder de legitimação e de divulgação de livros e escritores, embora o peso demográfico e editorial do Brasil tenda a desequilibrar a balança de Portugal. Assim, é preciso reconhecer que as capitais dos antigos e atuais impérios — Paris, Londres, Lisboa, Nova York — ainda são centrais no jogo do poder cultural, e não é por acaso que é nessas grandes cidades que os escritores de todo mundo se encontram e dialogam. Assistiu-se, nas últimas décadas, à renovação do romance pela intervenção de autores vindos do Sul, como observa Milan Kundera: “uma nova grande cultura romanesca caracterizada por um extraordinário sentido do real ligado a uma imaginação desenfreada que ultrapassa todas as regras da verossimilhança” (KUNDERA,1993, p.43). Salman Rushdie também aponta para o caráter inovador da produção dos países pobres e das minorias deserdadas dos países ricos e para o intercâmbio e a intertextualidade existentes entre diferentes regiões do planeta: por exemplo, o realismo mágico latino-americano foi absorvido e reciclado por escritores da Índia, como ele próprio (1993, p. 85). Haveria uma república mundial das letras — para usar a expressão de Pascale Casanova — sem fronteiras políticas e linguísticas. Mas, paradoxalmente, se os autores das periferias estão mais aptos a renovar do que os escritores dos centros literários,


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é aí — nos grandes centros — que os escritores “do sul” devem ser consagrados, para terem uma oportunidade de sobreviver. Não é por acaso que os escritores de língua francesa que reivindicam a pertença a uma literatura-mundo se comparam aos escritores de língua inglesa que são, hoje, os mais inovadores, os mais vendidos e os mais citados. Abaixo deles viriam os latino-americanos, tanto os romancistas do boom quanto novos escritores, como Roberto Bolaño, Rodrigo Fresán, Santiago Gamboa e outros. Com algumas exceções, naturalmente, pode-se afirmar que os maiores prosadores da contemporaneidade são pessoas com duplas ou múltiplas identidades, pessoas que não estão coladas a nenhuma nação de modo monolítico, pessoas híbridas que se situam no entre dois, no entrelugar. Temas da ABRALIC Creio que os temas dos congressos da ABRALIC de 2011 e 2013, respectivamente “Centro, centros” e “A internacionalização do regional” estão conectados às questões que estou levantando, porque têm a ver com a noção de “Universal” propalada pelo Ocidente, que, vendo-se como centro, relegava ao folclore e ao exotismo tudo o que não se conformasse com ele. Se, historicamente, houve, na América Latina, a oposição entreregionalismo (geralmente associado a romance rural) e cosmopolitismo/universal, isso se deve ao fato de se considerar o primeiro como sendo atrasado enquanto o urbano teria caráter universal e seria, portanto, associado ao moderno (ao centro). Ora, agora, no século XXI, as barreiras parecem borradas: escritores que têm os pés fincados na região são tão universais quanto aqueles que situam seus romances nos grandes centros urbanos. Por outro lado, num mundo globalizado e caminhando para a homogeneização, eles tornam-se valorizados no mercado internacional justamente porque têm um diferencial a oferecer. Para citar um exemplo: os romances e novelas de Milton Hatoum


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não só se passam sempre em Manaus como se nutrem da complexidade sóciocultural da Amazônia. E foi por essa razão que foi convidado pela editora escocesa Canongatea participar da coleção Mitos, cuja proposta era de que escritores produzissem novelas-releituras de lendas de seu país. Assim nasceu Órfãos do Eldorado, livro imediatamente traduzido para o inglês para a tal coleção. A própria noção de região tende a se alargar no sentido postulado por Ángel Rama e Ana Pizarro, ou seja, as grandes regiões ultrapassam as fronteiras nacionais e linguísticas. Assim, o Cone Sul, a Amazônia e o Caribe são macro-regiões marcadas por uma história e uma cultura comuns, o que permite estudos comparados que levem em conta essa dimensão. Saímos, assim, do eixo Norte-Sul, ou seja, Europa versus os países por ela colonizados, para trabalhar no eixo Sul-Sul, aprofundando as ligações existentes entre as literaturas das macro-regiões. A região já se internacionalizou há muito tempo, só Carolina não viu. Conclusão A clausura do/no nacional tem impedido a compreensão de que movimentos e tendências surgidos em um país ou área linguística têm correlação com outros muito mais amplos que atingem outras regiões, constituindo-se em macro-regiões. Assim, as inter-relações que se podem vislumbrar no presente podem suscitar outros desdobramentos a fim de se detectarem as linhas de força das literaturas colocadas assim em diálogo. A internacionalização do regional se dá porque novas redes transnacionais se formam permitindo a circulação de ideias e a criação de novos padrões de comportamento, novos gostos, muitos deles bastante hibridizados. Um exemplo analisado por Marilene Weinhardt (2013) é o romance Roliúde, de Homero Fonseca. Não se pode deixar de evocar a Bollywood da Índia, similar, portanto, à Roliúde do Nordeste brasileiro, ambos remetendo a Hollywood, a meca do cinema americano. Estamos todos no mesmo mundo globalizado, para o bem e para o mal.


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Nesse mundo em que os trânsitos se dão tanto de forma real quanto virtual, em que a “polinização cruzada” de que fala Rushdie torna-se regra em vez de ser exceção, a Literatura Comparada se impõe como disciplina aberta para a experiência da outridade, porque a experiência de escritores e leitores não se circunscreve aos limites de uma nação. Embora as grandes áreas linguísticas tenham um canal de comunicação já dado de antemão, a mediação da tradução impõe-se cada vez mais, permitindo que mais leitores tenham acesso a obras de todos os recantos do planeta.

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A intertextualidade em prol de uma estética da transgressão no heavy metal: Ozzy Osbourne, o louco, o demônio, a celebridade

Flavio Pereira Senra*

Resumo: No contexto pós-moderno, torna-se cada vez mais necessário adotar um enfoque interdisciplinar, intermidiático e intertextual no tocante aos Estudos Comparativistas e Culturais. Desse modo, partindo do universo da Cultura de Massas, o artigo propõe-se a investigar como o discurso estético do cantor de Heavy Metal Ozzy Osbourne é construído com base em inter-relações com outros discursos e saberes, de forma que se possa estabelecer um culto à personalidade midiática. Para investigar tais negociações identitárias, estéticas e ideológicas, são desenvolvidas análises comparativas entre o vídeo a vivo The Ultimate Ozzy e o documentário nazista O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Adicionalmente, evidencia-se como o artista promove o esvaziamento do imaginário religioso (do Cristianismo) e do discurso científico psiquiátrico (o conceito de “Sanidade”). Palavras-Chave: Estudos Culturais. Intertextualidade. Semiótica. Heavy Metal.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. *

Abstract: In the post-modern scenario, it becomes more necessary to adopt an interdisciplinary, inter-media and intertextual approach when it comes to Cultural and Comparative Studies. Therefore, through the perspective of the Mass Culture universe, this paper analyzes how the aesthetical discourse of the Heavy Metal singer Ozzy Osbourne is built on inter-relations with other discourses and areas of knowledge, in a way that it can be established a Cult of Media Personality. In order to investigate these identity, aesthetic and ideological negotiations, the paper develops comparative analysis between the live vídeo footage The Ultimate Ozzy and the nazist documentary The Triumph of the Will, of Leni Riefenstahl. In addition, it is shown how the artist promotes the emptiness of the religious imaginary (of Christianity) and of the scientificpsyquiatric discourse (the concept of “Sanity”). Keywords: Cultural Studies. Intertextuality. Semiotics. Heavy Metal.


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No contexto pós-moderno, mostra-se cada vez mais pertinente, na seara dos Estudos Culturais e Comparativistas, uma abordagem de natureza intertextual. Pode-se afirmar que na contemporaneidade, marcada por notória fragmentação e pluralidade, o termo “texto” retoma seu significado original, conotando não apenas uma forma de composição semântica organizada em torno de um registro linguístico verbal, mas sim uma “maneira de tecer”, ou, simplesmente, “coisa tecida” (CUNHA, 1982). Essa definição mostra-se bem mais abrangente, e eleva o vocábulo texto ao patamar de qualquer organização discursiva que transmita um significado, independentemente se revestido de um discurso verbal ou não-verbal (audiovisual, imagético, musical etc.). Esse enfoque intertextualizado é aplicável a uma questão relevante do contexto contemporâneo: a efervescência de um panorama cultural moldado pelas necessidades do mercado, próprio da sociedade de consumo em nos inserimos, que se convencionou chamar de Cultura de Massas. A despeito de quaisquer tentativas de se determinar critérios que classifiquem determinado tipo de produção cultural como “de massas” ou “elevada”, à medida que o homem adentra o século 21, torna-se mais evidente ao pensamento crítico de um modo geral que tais limites culturais vão se tornando frágeis, plásticos, líquidos, ou, simplesmente, irrelevantes. Evidencia-se, na esfera da Cultura de Massas, a produção de uma série de discursos que, em um nível explícito ou não, ancora-se em uma série de outros discursos oriundos de outras áreas do conhecimento, estabelecendo com essas relações distintas, sejam parafrásticas, paródicas ou (e) descontrutivas. Essas (re)negociações com outros textos servem à construção de um discurso estético que, além de ser um produto de consumo, é, adicionalmente, um produtor de ideologias, de modos de vida e de identidades para o receptor. Tal argumento pode ser aplicado ao cantor britânico de Heavy Metal Ozzy Osbourne, que, ao longo de sua extensa carreira, ancorou sua imagem pública a elementos de uma série de campos semânticos referentes a signos considerados marginais, opositores e transgressores. Os maiores exemplos estão nos epítetos do vocalista veiculados


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na grande mídia: “Homem Louco”, “Príncipe das Trevas” e “Servo do Demônio”, tanto em nível artístico/profissional quanto em nível biográfico/pessoal.1 Essa tentativa de se criar uma Estética da Transgressão para Ozzy Osbourne foi construída através de canais midiáticos diversos: fonográficos, iconográficos e audiovisuais, e estabelece um culto à personalidade midiática do artista. Triumph des Wahnsinn2

Além dessas nomenclaturas terem sido utilizadas na mídia especializada, há lançamentos de Ozzy que fazem referência a elas, como o disco Diary of a Madman (“Diário de um homem louco”), de 1981, e a caixa especial Prince of Darkness (“Príncipe das Trevas”), de 2005. 2 Em alemão, “Triunfo da Insanidade”. 1

Grossíssimo modo, compreende-se o culto à personalidade como um processo de propaganda políticoideológica que tem por objetivo principal construir a imagem de um determinado governante exaltando (em geral, de forma idealizada e exagerada) todas as suas melhores características. Esse tipo de promoção da figura do chefe de um Estado-Nação se fez recorrente em contextos ditatoriais, como na União Soviética e na Alemanha (respectivamente, com Josef Stálin e Adolf Hitler). Praticamente todos os braços da comunicação publicitária (a mídia impressa, o rádio, a televisão), bem como plataformas de propagação das artes (o cinema, a música, a escultura e a pintura) podem ser controlados pelo Estado com esses fins. Deve-se ter em mente que um dos maiores propósitos do culto à personalidade é agregar signos diversos à figura do Chefe de Estado, de forma que possa ser criada uma imagem do líder que não apenas denote poder, mas que também transmita segurança para as massas. Temse, então, uma associação direta entre o indivíduo que comanda o país e a própria ideia de Nação, ou, em outras palavras, o indivíduo Chefe de Estado e o estado em si são, ideologicamente, um só. O “grande líder” é elevado a um patamar de símbolo, de ideia, de representação metonímica do que é a Nação em si. Se for levado em consideração que o conceito de Estado-Nação é muito caro na era moderna para a delimitação de identidades, pode-se facilmente inferir que em regimes totalitários em que se fez presente esse tipo de propaganda, a identidade nacional era imediatamente atrelada à figura do grande líder. Ou


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seja, ser um filho daquela nação implicava diretamente ser um filho do “Grande Pai” que a comandava politicamente. Nesse âmbito, no caso do cantor Ozzy Osbourne, recursos midiáticos distintos exercem um papel fundamental na construção de um culto à sua figura pública. Um exemplo está em seus shows filmados e oficialmente lançados em vídeo, em que as tomadas procuram enfatizar o poder do cantor sobre as multidões. É o caso do vídeo The Ultimate Ozzy. Por ser um lançamento especial, em comemoração ao disco de platina triplo conferido ao álbum “The Ultimate Sin” (OSBOURNE, 1985), alternam-se imagens do próprio show com outras cenas, como o videoclipe da canção “Shot in the dark” (OSBOURNE, 1985, p. 09). No decorrer do referido videoclipe, tem-se o início da apresentação de Ozzy Osbourne. Sobrepondo o áudio da plateia à canção, é exibida uma série de tomadas do público, em diferentes ângulos, mostrando uma casa de espetáculos superlotada, com fãs diversos apertados na grade de proteção próxima ao palco, e são dados diversos closes em fãs erguendo os braços, gritando em frenesi. Tal recurso já caracteriza, nos minutos iniciais do vídeo, Ozzy Osbourne como um ser capaz de incutir elevados níveis de adrenalina nas multidões. Mais do que isso: é uma forma de representar o poder do ente individual sobre o coletivo, o que contribui significativamente para a dinâmica do culto à personalidade. Eis que, com os instrumentistas já posicionados, pode-se ver a imagem de um estranho objeto pendurado no teto, sendo descido por correntes até o nível no palco. O ângulo da câmera aliado ao áudio dos gritos da multidão proporciona ao espectador a impressão de que ele próprio está presente no evento, entre os fãs. O objeto em questão à medida que desce revela-se um gigantesco boneco que emula a imagem do próprio cantor, com os cabelos compridos desgrenhados e alourados, exatamente de acordo com seu visual na época. Contudo, imprimindolhe características soturnas através de caracterizações como os gigantescos olhos avermelhados, a bocarra com dentes pontiagudos, a imensa língua para fora, as garras nas mãos e as asas de morcego interligadas aos braços (que por sua vez,


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“Vamos ter uma noite insana hoje!” 3

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estão fechados enquanto esse totem monstruoso desce ao palco). Quando a estranha estátua toca o solo, eis que uma explosão ocorre com diversas faíscas brilhantes voando para todos os lados. Um rápido close nos fãs espremidos na grade, erguendo os braços e batendo cabeça, aumenta a expectativa para o que ocorrerá. Eis que a criatura abre os braços e vê-se que o colo do monstrengo possui o formato de um trono, e lá está Ozzy Osbourne sentado nele, vestindo uma capa brilhante, contemplando o público com uma expressão séria e autoritária. Esses elementos permitem uma imediata associação da imagem do cantor à de alguma figura monárquica ou imperial. Novamente, a câmera mostra a plateia, enfatizando diversos rostos, todos eufóricos com a chegada do “grande líder”. Pode-se afirmar que o recurso cênico de fazer Ozzy Osbourne descer do teto é análogo à descida de alguma entidade metafísica superior advinda dos céus, uma analogia que dialoga perfeitamente com a mecânica de culto à personalidade discutida. Ainda, a estátua monstruosa em questão, ao retratar Ozzy como uma espécie de criatura bizarra e sombria, realça os signos que são constantemente vinculados ao cantor, no caso, os relacionados ao demônio, ao louco, ao ser das trevas e outros similares. Sempre em consonância com “O Fortuna”, a mudança de imagem ocorre exatamente no momento em que ecoa uma intensa batida de tambores. À medida que cresce a dinâmica da canção, com o coro cantando cada vez mais forte, Ozzy corre pelo palco, gritando, conclamando o público a acompanhá-lo nessa “noite insana” (let´s have a crazy night tonight,3 ele afirma). Percebe-se nesse ponto um recurso curioso: o cantor, imerso em sua performance de palco hiperbólica, emite um grito agudo ao microfone e logo em seguida aponta-o para a plateia, para que ela repita o gesto, gritando em uníssono. O gesto é repetido algumas vezes. A mixagem de áudio destaca a resposta do público, aumentando o volume do grito da multidão, enfatizando, dessa forma, o domínio que o artista exerce sobre seus fãs. A câmera prossegue mostrando imagens do cantor de diversos ângulos, tanto próximo quanto distanciado das lentes, de direções distintas do ambiente, o que privilegia a noção espacial que se tem da casa de espetáculos


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dando a ela uma impressão de grandeza e profundidade em suas proporções físicas. Tal recurso é importante, pois evidentemente enfatiza a quantidade de pessoas que estão lá para venerar o artista, criando a imagem de um local imenso (com capacidade para comportar um número elevado de pagantes) completamente lotado. Em questão de segundos a câmera intercala as imagens de Ozzy Osbourne com outras da plateia, com as pessoas apertadas umas as outras (dando ao espectador do vídeo a ideia de superlotação, novamente), extasiadas, gritando. A mixagem de áudio favorece a vibração do público, pondo o som da multidão eufórica em volume análogo a “O Fortuna”. Esse tratamento dado ao som culmina no grande clímax da canção, com o áudio da gritaria da multidão amplificado ao máximo. Nesse momento, Ozzy ergue seus braços para o alto, com o olhar arregalado, imerso em um transe. A câmera em movimento posicionada no ângulo da plateia permite a captação da imagem do cantor no palco e, ao mesmo tempo, da vasta multidão imitando seu gesto, com os braços para cima. Eis que Ozzy inicia o culto com a já esperada saudação ritualística: “Let the madness... begin!”.4 Um grandioso efeito pirotécnico nesse instante contribui para o tom apoteótico da cena, um recurso utilizado justamente nos preciosos segundos em que o baterista marca no contratempo o andamento da canção que iniciará o espetáculo: “Bark at the moon”. Mal o show começou e o público já presenciou uma espécie de “clímax”, com todos já envolvidos e dominados pelo grande líder que seguem nesse instante. As estratégias de captação de áudio e vídeo presentes em The Ultimate Ozzy permitem uma comparação com o emblemático Triumph des Willens5 (RIEFENSTAHL, 1935). Trata-se de um longa-metragem propagandista encomendado e produzido pelo regime nazista que narra o Congresso Nacional-Socialista ocorrido em Nuremberg no ano de 1934. Produzido e dirigido pela cineasta Leni Riefenstahl, o filme faz um evidente enaltecimento da figura de Adolf Hitler, mostrando o quanto ele era importante para o progresso material da Alemanha e, acima de tudo, para a felicidade do povo.6 Lançado em 1935, Triumph des Willens tornou-se um divisor de águas na história do

“Deixem a loucura... começar!” 5 “Triunfo da Vontade”. 6 Diga-se de passagem, o führer acompanhou e inspecionou toda a produção do filme, agindo literalmente como um produtor executivo não-oficial. 4


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cinema graças às técnicas inovadoras de Riefenstahl. Uma delas foi o emprego de música em perfeita consonância com as imagens. A trilha sonora em questão, de Richard Wagner (um compositor cuja obra é associada ao nazismo) exerce um papel determinante no efeito que as imagens captadas geram sobre os espectadores. O filme tem início com uma imagem dos céus da Alemanha, mostrando apenas as nuvens. Em seguida, a câmera paulatinamente aproxima suas lentes e exibe a cidade de Nuremberg, em uma panorâmica dos céus. São mostradas tropas marchando, enfileiradas. A trilha sonora wagneriana, “Die Meistersinger von Nürnberg” (“Os cantores-mestres de Nuremberg”), contribui para o tom épico da cena. Paralelamente, são exibidas imagens do avião oficial de Hitler sobrevoando os céus, com sua sombra cruciforme sendo projetada sobre as casas e as pessoas. Já no aeroporto, uma multidão de civis aguarda a chegada do aeroplano. A opção em filmar essas pessoas é importante, pois através do foco na aglomeração do povo, no momento que antecede a chegada do grande líder, tem-se um retrato da veneração em torno de sua figura. A beleza do cenário e a imponência da composição musical de Wagner reforçam a ideia que se quer transmitir de uma Alemanha gloriosa. Com o pouso do avião e a descida de Adolf Hitler, a câmera alterna cenas da multidão celebrando estrondosamente a sua chegada, batendo palmas e gritando. Rápidos closes em rostos felizes e comovidos de homens, mulheres e crianças são alternados com a figura de um sereno e sorridente Hitler, constituindo sua imagem como aquele que iria “restaurar” a Alemanha. A mixagem de áudio é determinante nesse ponto, pois o som da multidão em polvorosa aumenta gradativamente de volume, ao ponto de atingir uma altura desproporcional com as saudações gritadas em uníssono assim que Adolf Hitler sai do avião (“Hail!”). As cenas seguintes aprofundam essa “estética do culto” à figura de Hitler. Em um carro oficial, o então chanceler da Alemanha está de pé, fazendo a típica saudação com o braço esticado, gesto imitado pelas centenas de pessoas (tanto militares quanto civis) que se amontoam nas laterais da estrada por onde passa o cortejo


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oficial. Tomadas em close das costas e da mão de Hitler são alternadas com cenas da população em êxtase imitando o gesto, recurso que privilegia a saudação feita ao público e a influência deste sobre o povo alemão. A câmera, em movimento, dá ao espectador a sensação de estar dentro do carro oficial, ao lado do fürher. Deve-se salientar que o áudio e o vídeo são combinados constantemente, de maneira a sempre fomentar a ideia da comoção que Hitler causa nas pessoas. À medida que o carro oficial se aproxima da praça central de Nuremberg, em um crescendo, vão mudando as tonalidades da canção “Horst-Wessel-Lied” (“A bandeira nas alturas”), hino oficial do Partido Nazista, sendo sobreposta pelo áudio da multidão que saúda Hitler. Já dentro da cidade de Nuremberg, a câmera, em segundos, alterna cenas diversas da arquitetura local com outras de pessoas que se amontoam nas janelas de suas casas saudando Hitler, na esperança de que ele veja cada uma delas. Há um determinado momento em que uma mãe com uma criança no colo se aproxima do carro oficial, ao que o chanceler acaricia o bebê. Logo em seguida há tomadas de diversos menores de idade, demonstrando sua empolgação pela presença de Hitler. Ainda de pé em seu carro e com o braço estendido em sua saudação ao povo, Adolf Hitler é conduzido até seu destino: o hotel onde ficaria para descansar de sua jornada. A câmera prossegue com a mesma dinâmica de exibição de imagens em close do líder e da população excitadíssima com sua presença, com algumas outras tomadas em soldados e seus uniformes. No clímax dessa primeira parte do filme Hitler surge na sacada da janela de seu hotel para saudar a população. Já sem a trilha sonora de Richard Wagner, o único áudio é a ovação do povo, que evidentemente tem seu volume bastante elevado no exato momento em que o Fürher surge na janela. Esse recurso, aliado às tomadas da multidão estendendo seus braços para saudar a figura do grande líder, reiteram a dinâmica do culto à personalidade a que se propõe esse filme. Triumph des Willens foi um sucesso de bilheteria em território alemão e, interessantemente, apesar de sua proposta política de glorificação do Nazismo, foi aclamado em outras partes do mundo, chegando a receber prêmios


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na França, na Suécia e até mesmo nos EUA. Muito do sucesso do documentário se deve aos paradigmas cinematográficos criados por Leni Riefenstahl, estes tão impactantes na história do cinema que muitos diretores nas décadas seguintes iriam, explícita ou veladamente, usá-los na produção de suas obras. Os exemplos são vários e incluem Francis Ford Coppola, em seu clássico filme de guerra Apocalypse Now, mais especificamente na cena de diversos helicópteros voando ao som da composição wagneriana “Cavalgada das Valquírias”. A imponência dos batalhões do Império marchando alinhados em diversos filmes da saga Guerra nas Estrelas com a célebre marcha imperial ao fundo também leva a crer que George Lucas bebeu dessa fonte. Os diretores de Coração Valente e Cruzada (Mel Gibson e Ridley Scott, respectivamente) já declararam que tomadas aéreas desses filmes foram inspiradas na linguagem cinematográfica de Riefenstahl. Nem mesmo a Disney se exclui dessa lista de exemplos, vide O Rei Leão, com a cena em que o vilão Scar discursa para uma multidão de hienas malignas que marcham alinhadas em cenário sombrio, durante a execução de sua música-tema, “Se preparem”. De um modo geral, filmes que de alguma forma abordam a mecânica do culto à personalidade, são devedores diretos ou indiretos de Triunfo da Vontade. O registro ao vivo de Ozzy Osbourne The Ultimate Sin emprega técnicas que foram utilizadas pela primeira vez no filme de Riefenstahl. Levando-se em consideração a proposta de culto à personalidade estabelecida em ambos os filmes, pode ser estabelecido um contraponto entre o registro ao vivo do cantor inglês e o referido documentário de propaganda do partido nazista. Coincidentemente, algumas das imagens promocionais mais recentes de Ozzy Osbourne o mostram caracterizado como um típico oficial militar:


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[Figura 1: Foto promocional, 2010]

Na foto em questão, vê-se Ozzy Osbourne caracterizado com uma farda negra, que, em alguns aspectos, permite uma associação com aquela utilizada pelos nazistas, vide as cruzes de ferro penduradas em seu uniforme7. Em relação ao seu emprego no decorrer do Terceiro Reich, havia um critério de categorização: a de primeira classe era usada no ombro esquerdo; a de segunda classe era suspensa por fitas em outras partes do uniforme e a grã-cruz de ferro, em maior destaque, era pendurada no pescoço. À exceção desta última, vê-se que o “general Osbourne” ostenta algumas cruzes de primeira e de segunda ordem, bem como algumas medalhas diversas. É evidente que o cantor jamais teve qualquer afiliação ao Nazismo ou a organizações militaristas ao longo de sua trajetória musical e pessoal. Seu figurino obedece a propósitos puramente estéticos, e são justamente as cruzes de ferro os elementos mais significativos da imagem. Essas sugerem uma carreira extensa de um general ou de algum outro oficial de alta patente que tenha obtido muitas condecorações por grandes feitos militares. Levando-se em consideração que essa imagem é datada de 2010, ou seja, com um Ozzy Osbourne de 62 anos e com 41 anos de carreira, fica estabelecida uma clara analogia entre o fato de o cantor chegar a esse

Deve-se ressaltar, todavia, que a Cruz de Ferro não é um símbolo de origem nazista, e sim uma condecoração surgida no Reino da Prússia em 1813. O Império Alemão a resgatou, utilizando-a para condecorar oficiais durante a Guerra Franco-Prussiana, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. O Terceiro Reich utiliza uma versão personalizada dessa cruz, com a suástica impressa sobre ela. 1


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estágio de sua vida ainda atuante no ramo musical com, metaforicamente, a imagem de um sobrevivente de várias “guerras”, como a infância de pobreza, a conturbada saída do Black Sabbath, o alcoolismo, as querelas públicas com fanáticos religiosos e as acusações judiciais de incitação ao suicídio, dentre outras passagens turbulentas de sua trajetória profissional e pessoal. Até mesmo os ferozes conflitos internos tão presentes em suas canções podem ser incluídos nessa lista de “guerras pessoais” travadas pelo artista (muitas de conhecimento público). É possível ver nessas condecorações militares uma alusão indireta aos relatos diversos que compuseram a mitologia de Ozzy Osbourne. Tem-se nessas medalhas e cruzes de ferro uma forma de enfatizar, de forma simbólica, os elementos humanos da vida desse olimpiano, aqui recorrendo à terminologia de Edgar Morin para referir-se às celebridades (MORIN, 1986). O emprego de elementos do campo semântico do militarismo na imagem reproduzida relaciona à figura de Ozzy a diversas representações de autoridade. Seguindo esse viés, pode-se afirmar que os demais elementos presentes na imagem também exercem um papel significativo na construção dessa mensagem. Na Figura 1, o cantor posa em uma floresta repleta de árvores ressecadas, com diversas folhas caídas no chão, como um típico dia de fim de outono. As árvores ressecadas representam a ausência de vida, e imprimem um tom sombrio à imagem. A atmosfera soturna é reforçada pelas cores presentes na cena, todas frias e com tonalidades escurecidas. Nesse ponto, a névoa ao fundo também auxilia nesse propósito. Ao centro, em destaque, vê-se o cantor fazendo uma de suas famigeradas expressões faciais exageradas, com a boca aberta e os olhos arregalados (como se estivesse gritando, enfurecido, fora de seu estado normal), olhando fixamente para a lente da câmera. Esse recurso permite que se tenha a impressão de que Ozzy Osbourne está a olhar diretamente para qualquer pessoa que se coloque na frente da foto a contemplá-la, estabelecendo, dessa forma, uma interlocução com quem lê a imagem. Desse modo, levando-se em consideração todos os signos veiculados nessas imagens promocionais, torna-se possível


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ver no cantor a figura de algum “General das Trevas” ou “Autoridade Militar do Heavy Metal” que, com seu “arsenal de insanidade”, estabelece uma relação intrínseca de medo e/ou fascínio com seu público. No tocante à loucura, a definição recorrente do adjetivo “louco” refere-se ao indivíduo que age ou pensa em desacordo com as normas vigentes, podendo tornarse um elemento danoso para a sociedade. Dessa forma, cria-se uma estigmatização da insanidade que faz com que ela deva ser excluída e erradicada. Surge neste ponto uma questão importante: o termo “louco” com a sua carga semântica “maldita” é cunhado pelo homem racional, por aquele que irá promover o afastamento do “doente mental” do convívio com os demais seres humanos. Recorrendo a Foucault, podemos afirmar que tentar revisitar a história dos loucos no pensamento ocidental é se deparar com a história dos silenciados – uma história escrita pelos “mentalmente sadios”. Pode-se identificar na Idade Clássica o grande estabelecimento da alteridade entre razão e “desrazão”. A loucura é vista concomitantemente como uma forma de transgressão, de exceção e de invalidação da razão cartesiana do referido período. Dessa forma, o dito “louco” tornase um elemento a ser excluído do pensamento racional filosófico ocidental. Tal premissa sustenta a necessidade de se banir esse grupo de indivíduos do espaço social, o que justificou a construção dos asilos psiquiátricos, espaço de confinamento exclusivo para os ditos mentalmente doentes. Sob esse viés, vê-se como a loucura não é um objeto de estudo crítico, e sim uma justificativa “plausível” para uma forma de afastamento e reclusão do “louco”. Com o surgimento da psiquiatria no século XIX, a loucura passa a ser um campo de estudos científicos. Logo, tem-se uma subordinação completa da concepção de loucura à concepção de razão, na qual esta detém a fundamentação teórica necessária para compreender, categorizar, isolar e, finalmente, corrigir o indivíduo “alienado” da realidade. Através da internação em asilos psiquiátricos, o discurso médico-científico torna-se a justificativa irrevogável da necessidade de segregação desses indivíduos. O louco não deve permanecer no


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seio familiar para receber qualquer tipo de assistência, nem tampouco integrar a população, já que ele não se constitui como força de trabalho para o capitalismo em constante desenvolvimento. Sob essa lógica, um indivíduo considerado “são” pode ser visto como um “cidadão” (leiase: uma ferramenta de produção para a economia vigente e um reprodutor das práticas sociais tradicionais). O arcabouço teórico racionalista em questão apregoa que é “necessário”, para o próprio bem-estar do enlouquecido, abrigá-lo em um local especial onde receberá os “cuidados” adequados, o que gera, inevitavelmente, nos que estão fora dos muros dos manicômios percepções distintas em relação aos “loucos”, ora de compaixão absoluta, o que enfatiza a “inferioridade” e “inabilidade” social dos insanos; ora de ódio, mediante o grau de periculosidade dos “dementes”. Compreendem-se esses cuidados como o conjunto de práticas definidas pelo Estado, ou seja, pelo sujeito racional, que considera o louco um risco aos outros – e a si mesmo. Logo, com o advento dos asilos psiquiátricos, pode-se afirmar que a loucura “encontrou uma pátria que lhe é própria: [...], algo que isola a loucura e começa a torná-la autônoma em relação ao destino com o qual ela estava confusamente misturada” (FOUCAULT, 1978, p. 382-384). Ainda sobre esse espaço, tem-se nele a representação máxima do empoderamento do discurso da razão e do esvaziamento de qualquer critério de verdade que pudesse ser atribuído ao “louco”. Nesse cenário insere-se a figura do psiquiatra, ferramenta maior para o restabelecimento da razão provisoriamente perdida do paciente. O caráter de reversibilidade do estado de desvio mental é evidenciado já que é uma maneira de reafirmar o discurso científico como elemento controlador e disciplinador da desrazão. Esse antagonismo é evidenciável na relação médico-paciente, onde aquele é o sujeito e este o objeto. A passividade do louco no processo é importante, pois é o que permite que ele, enclausurado nessa espécie de prisão, seja julgado como um “culpado” por um crime. O reencontro com a razão e o posterior reencaminhento à sociedade só pode ocorrer com o autorreconhecimento do erro, com o enfrentamento da loucura por parte do


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próprio portador do desvio mental. Assim, a alteridade de membros da “sociedade normal” versus pacientes do asilo é erradicada, fazendo do indivíduo “curado” e “reintegrado” mais um daqueles que irá estigmatizar e excluir os loucos. Ozzy Osbourne ao longo de sua carreira assumiu o epítome de madman, personificando o estigma da exclusão social, usando-o como elemento identitário. Entretanto, essa abordagem da loucura enquanto signo estéticoideológico não promove um afastamento, mas opera como um dos vetores comunicacionais que aproximam o cantor de seu público, fomentando o culto existente em torno de sua identidade midiática. Assumindo que é o elemento estranho ao mundo racional, o outro da razão, Ozzy, ao passo que satisfaz as fantasias de muitos de seus fãs que por diversas razões podem compartilhar de um sentimento análogo de tensão Eu versus o Mundo, também desconstrói e debilita qualquer discurso teórico-científico a respeito da loucura, associando-a com a ideia de liberdade, e não com a de confinamento. O paradigma da insanidade, invertido, torna-se um elemento potencializador da figura do indivíduo perante a sociedade, uma forma de distanciá-lo do restante dos homens não por ser “inferior” ou “irracional”, mas por ser dotado de uma superioridade singular, dada a sua racionalidade sui generis, inalcançável pelos demais. Esse recurso estético-ideológico é um dos mais recorrentes na constituição de Ozzy Osbourne como celebridade, tendo o próprio artista dialogado com essa ideia de várias formas. Um exemplo disso está na já discutida dinâmica de seus espetáculos, em que o público, já em delírio durante a execução de “O Fortuna”, grita cada vez mais pelo seu ídolo. É quando Ozzy solta seu já aguardado bordão: “Let the madness... begin!”, e no exato último acorde da canção de introdução, a banda entra em ação e tem início o espetáculo. Com a recorrência de tais práticas em seus shows, Ozzy Osbourne estabelece entre ele e seus fãs uma dinâmica análoga à do ritual e do culto, no tocante ao caráter de repetição e permanência de uma série de características que hão de definir e dar propósito a uma tribo (MAFFESOLLI, 2006) em particular. Entretanto, o caso de Ozzy Osbourne, tem como premissa principal a


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enunciação erguida em torno não de uma ordem coletiva, e sim de uma construção individual, no caso, o self do próprio emissor da mensagem. The Godfather of Heavy Metal

No caso, as bandas proeminentes fim da década de 1970, do decorrer dos anos de 1980, 1990 e 2000. 9 Respectivamente, “Instituição do Metal” e “Padrinho do Metal” (ou “Poderoso Chefão do Metal”). 10 Já em, Portugal, o título do filme foi O Padrinho. 8

É recorrente no seio da mídia especializada o debate a respeito de que banda teria sido a fundadora do que hoje se compreende por Heavy Metal. Por mais que existam algumas divergências, é comum apontar o Black Sabbath como, se não o grupo que seria o mais merecedor de tal “paternidade”, um dos que exerceram influência mais direta na gênese do estilo. Ozzy Osbourne foi um dos membros-fundadores do Black Sabbath e mesmo em sua carreira-solo muitos dos maiores clássicos de sua banda original foram (e ainda são) executados ao vivo. O próprio músico em entrevistas reforça esse senso de pertença a uma espécie de “panteão sagrado” dos primórdios da música pesada, de um grupo seleto de grandes ídolos musicais de indivíduos8 que, por sua vez, também vieram a se tornar ídolos musicais (os “olímpicos de outros olímpicos”). Essa questão “de origem”, somada à projeção da imagem do cantor no decorrer de sua carreira-solo, solidificou o nome de Ozzy Osbourne como uma figura “paternal” do universo cultural do Heavy Metal, sendo reverenciado como uma Institution of Metal ou The Godfather of Heavy Metal (ALLEN, 2002).9 Este último epíteto apresenta duplo significado. A palavra “Godfather” traduz-se como “Padrinho”, termo que, de acordo com o Catolicismo, designa aquele que deverá orientar seu afilhado no caminho considerado virtuoso – o da bondade, generosidade e, previsivelmente, o da religião. Com isso, considerar Ozzy Osbourne como “padrinho” do Metal implicaria que ele estaria, até então, guiando o estilo, ciceroneando seus milhares de “afilhados”, sejam músicos renomados ou fãs, nos caminhos do que seria a “religião do heavy metal”. Todavia, o mesmo termo “Godfather” remete a uma cultuada trilogia cinematográfica, The Godfather, intitulado O Poderoso Chefão10 no Brasil. A trilogia narra a saga da família mafiosa


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Corleone, italianos que possuem um rígido senso de honra dentro de seu clã patriarcal, defendendo-o com violência. O que se percebe aqui é uma acepção dupla do caráter de “padrinho” de Ozzy Osbourne: concomitantemente uma figura paterna bondosa e um “chefão” temido e violento. Ambos os significados remetem a uma concepção de poder notoriamente masculino que exerce o papel de líder, gerenciador e agregador de uma estrutura familiar. Tais acepções remetem aos sentimentos de adoração/amor e violência/medo atrelados ao cantor, identificáveis nas imagens a seguir.

[Figura 2:”The Godfather of Metal”, foto promocional, 2010]


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[Figura 3: capa do album No rest for the Wicked, de 1988]

As imagens reproduzidas possuem um traço em comum: o artista sentado em um trono. Considerando este um objeto cuja simbologia é de fácil decodificação, torna-se evidente a sugestão de que Ozzy Osbourne seria alguma espécie de figura monárquica no universo da música pesada e, principalmente, entre seus fãs. Deve-se, contudo, analisar em mais detalhes cada uma dessas duas representações de “realeza”. A Figura 2, datada de 2011, é uma foto promocional intitulada The Godfather of Metal, veiculada na imprensa durante a divulgação de seu então álbum mais recente (Scream, OSBOURNE, 2010). Nela, vê-se o cantor todo trajado de negro, sentado em uma cadeira cuja aparência remete diretamente à ideia de um trono. Destaca-se o fato de que Ozzy está descalço e com as unhas dos pés pintadas de preto. O fundo da imagem, completamente branco e sem cenário algum, estabelece um contraste com a cor negra, destacando-a. O elemento que mais reforça o tom soturno da imagem é a estranha capa que cobre Ozzy Osbourne, composta por penas de coloração negra. Estas por sua vez remetem diretamente à imagem de um corvo, animal que na tradição cultural europeia remete ao


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mau agouro e à desgraça. A “ave negra dos românticos” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 293) é tida como aquela que sobrevoa os campos de batalhas à espera de cadáveres para poder se alimentar. Esse gosto por carniça se faz presente em diversas lendas judaicas e cristãs que descrevem o animal como um arauto da morte. Na mitologia grega, o corvo é caracterizado como uma ave amaldiçoada. Originalmente um pássaro de coloração branca, o corvo teria recebido de Apolo a missão de ser o guardião de Coronis, amante do deus. Tendo a ave se descuidado e permitido que a mulher fugisse, Apolo, enfurecido, amaldiçoa o animal, tornando-o tão negro quanto a noite. Outra lenda de origem grega veiculada à ave também aborda a temática da punição. Nesta, conta-se que o corvo deveria apanhar água para uma cerimônia dos deuses. Entretanto, o animal, desejando obter alguns figos de uma árvore, resolve esperar pelo amadurecimento das frutas para poder comê-las. Essa decisão evidentemente fez com que o corvo se atrasasse muito, o que deixou os deuses indignados com tal irresponsabilidade. O corvo foi então castigado a ficar sem beber uma gota de água sequer durante todo o verão. Como resultado, sua garganta secou ao ponto de lhe render uma eterna rouquidão, o que seria a razão principal para os corvos serem aves que, ao invés de um melodioso canto, emitem um crocitar estridente e feio. Vê-se que esses elementos auxiliam a compor a imagem do corvo como um ser condenado, que vive da morte e que traz o mau agouro consigo. Logo, o que se tem na referida imagem é a idealização da figura de Ozzy Osbourne como um “rei negro”, envolto em seu manto feito de penas de corvo, contemplando seus súditos com um olhar calmo (e até um tanto quanto blasé). Os elementos que remetem ao campo semântico do soturno relacionam-se com a concepção artística de Ozzy como “Príncipe das Trevas”. Já a Figura 3, capa do disco No rest for the Wicked, mostra novamente a imagem do cantor sentado em um trono. Contudo, ainda que a simbologia atrelada a este elemento seja a mesma da figura anterior, esta caracterização “imperial” de Ozzy Osbourne traz consigo signos mais


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específicos. Primeiramente, evidencia-se a opção pela ausência de cores, dando a impressão de se tratar de uma fotografia em preto-e-branco envelhecida e já começando a dar sinais de amarelamento em sua superfície. Tal opção cromática reforça o tom sombrio da imagem. A expressão do músico é marcada por um semblante quase que sem expressão alguma, bem diferente da exegese demonstrada em muitas de suas fotos oficiais promocionais e imagens de espetáculos ao vivo. Percebese novamente o recurso da maquiagem negra em volta dos olhos, o que evidencia seu olhar enigmático. O que chama a atenção na capa são os outros elementos que a compõem, como o próprio trono onde está sentado o artista. O assento monárquico nesta fotografia é feito de madeira e possui crânios como ornamentações principais. Dos quatro crânios afixados acima do assento de Ozzy, três são de origem animal. A julgar pelo formato desses e por seus chifres, fica sugerido que são de crânios de bodes, um dado relevante, tendo em vista que o animal em questão carrega consigo uma série de simbolismos distintos. Em culturas pagãs o bode é associado à força, à libido e à fecundidade. Essa simbologia em muito se assemelha com a que o carneiro carrega na mesma cultura, contudo, há uma oposição a ser levada em consideração: o carneiro remete ao dia, ao sol, enquanto o bode, à noite e à lua. Tal aspecto se torna relevante se for lembrado que, em simbologias subsequentes, estabeleceu-se a imagem do bode como animal associado ao oculto, às trevas e ao demônio. Tal associação teve início quando a Igreja Católica com o rei Felipe IV da França desmantelaram a Ordem dos Templários. No ano de 1307, ela os acusou de serem adoradores de um (suposto) demônio que eles denominavam Baphomet. Tal “denúncia” foi amplamente explorada como justificativa para difamar os cavaleiros publicamente e lançá-los ao fogo. Foi exatamente da representação dessa figura que veio a inspiração para a caracterização de Satã como uma sinistra criatura com chifres de bode ou até mesmo a própria cabeça do animal. Em verdade, Baphomet não era um demônio anticristão, mas uma entidade pagã “demonizada” pela Igreja. Diversas outras práticas pagãs foram consideradas


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demoníacas durante o processo de crescimento político do Cristianismo na Europa da Idade Média. Uma dessas foi o sacrifício de um bode durante as festas em louvor a Dionísio. A partir desse ponto criou-se a mitologia cristã de que o sacrifício deste animal seria o gesto requerido para a expiação dos pecados do mundo: Depois fez chegar a oferta do povo, e tomou o bode da expiação do pecado, que era pelo povo, e o degolou, e o preparou por expiação do pecado, como o primeiro. (BÍBLIA SAGRADA; Levítico 9:15) Então Arão fará chegar o bode, sobre o qual cair a sorte pelo SENHOR, e o oferecerá para expiação do pecado (Ibidem; 16;09) Também oferecereis um bode para expiação do pecado, e dois cordeiros de um ano por sacrifício pacífico. (Ibidem; 23:19)

Além dos crânios de bode, há também o de um de um ser humano, posicionado bem acima da cabeça de Ozzy Osbourne. Curiosamente, este também possui grandes chifres retorcidos, similares aos de um bode, o que por si só sugere que essa seria uma ossada de um... demônio. Torna-se evidente que todos esses elementos que adornam o trono onde senta o cantor remetem ao campo semântico do oculto e do demoníaco, fazendo do trono presente na imagem uma espécie de assento de um homem que seria praticante de rituais que estabelecessem uma interconexão entre o elemento humano e o satânico. Essa ligação entre esses dois planos é sugerida pelo topo do trono, onde se vê um crânio de um bode em cima do ser humano/demônio, posicionados exatamente na linha da cabeça de Ozzy Osbourne. O alinhamento desses três elementos sugere uma relação intrínseca entre o elemento demoníaco (o bode e o misterioso crânio humano com chifres) e o próprio cantor. Deve-se atentar também para as vestimentas de Ozzy Osbourne na referida imagem. O cantor usa um manto amarrado com uma corda na cintura. Tal fato seria um mero detalhe se não fosse pelo constante diálogo estabelecido entre as construções imagéticas do artista e o universo religioso, mesmo que seja uma relação marcada por tensão


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“Não há paz alguma para os ímpios, diz o Senhor” (BÍBLIA SAGRADA, Livro de Isaías, 48: 22). 11

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ou oposição. A imagem do manto carrega consigo alguma espécie de representação religiosa em diversas culturas. Essa vestimenta é para o monge ou a monja um indicativo simbólico de seu isolamento do restante do mundo e de seus votos a Deus. Vestir o manto nesse caso representa “a retirada para dentro de si mesmo a para junto de Deus, a consequente separação do mundo e de suas tentações e a renúncia aos instintos materiais” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 589). É considerado, além de uma entrega completa ao universo sagrado, um sinal de escolha voluntária pelo caminho da sabedoria. Ainda no campo semântico da religiosidade cristã, diversas imagens de santos e até do próprio Cristo mostram essas figuras trajando um manto, em geral, marcado por simplicidade, sem luxo, o que seria um óbvio sinal de humildade. O manto que Ozzy Osbourne veste na capa de No rest for the Wicked segue esse padrão. O traço que torna mais evidente o diálogo com o universo cristão é o próprio título do álbum, que faz referência direta a um versículo da Bíblia que diz: There is no rest for the wicked´, says the Lord (BIBLEHUB; Isaiah 57: 2011). O que se percebe na referida imagem é o emprego de uma série de referências religiosas sob um viés desconstrutor. Se o elemento “trono” legitima o caráter divino do rei, aqui se tem um trono marcado por um caráter demoníaco. O versículo que dá nome ao disco, logo, sugeriria que o personagem encarnado pelo cantor na capa do disco seria uma representação metonímica de todos os “ímpios sem paz” condenados por Deus. Seguindo o viés da desconstrução do discurso religioso, pode-se até afirmar que as três crianças presentes na capa exercem um papel determinante. O elemento infantil está intimamente ligado a uma conotação de inocência, de um estado anterior ao pecado, uma ideia cara ao pensamento cristão por se tratar de uma fase da vida humana anterior ao desenvolvimento da sexualidade. Ainda sobre a abordagem cristã da infância, há na Bíblia referências diretas às crianças como os seres mais dignos de adentrarem o reino dos céus, como: “[...] qualquer um que não receber o reino de Deus como uma criança, não entrará nele” (BÍBLIA SAGRADA, Lucas, 18:17). Inclusive, deve-se lembrar que, na tradição cristã, os anjos


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são comumente representados como crianças. Considerando esses fatos, pode-se encarar a presença das crianças na imagem como um esvaziamento dessa mitificação cristã da infância. Vê-se que as meninas presentes na capa vestem-se como maltrapilhas e têm os cabelos despenteados, imprimindo-lhes um aspecto sujo. Fica implícito que elas são tão “ímpias” quanto o “rei” sentado no trono, como se fossem sua “prole” ou suas “jovens súditas”. Considerando os elementos presentes na capa de No rest for the Wicked que imprimem sobre Ozzy Osbourne a imagem de uma figura de liderança de cunho religioso (o trono e o manto) e, ao mesmo tempo, tendo em mente a inversão do paradigma cristão presente na capa, poderia se afirmar que o cantor encarna a imagem de uma espécie de “Messias do Mal”. Essa interpretação, além de ser coerente com a inversão dos signos religiosos na imagem, faria dessa fotografia uma representação às avessas de pinturas de Jesus Cristo na presença de crianças, imagens essas recorrentes na tradição cristã que, por sua vez, fazem uma alusão a um versículo da Bíblia em específico: “[...] Jesus, porém, chamou-as e disse:/Vinde a mim as crianças, que o reino dos céus é daqueles que se parecem com elas.”(BÍBLIA SAGRADA, 18:15-16). Essa caracterização da figura de Ozzy Osbourne como um “Cristo às avessas” se mostra mais explícita em outras de suas imagens promocionais:

[Figura 4:Capa do álbum Down to Earth, de Ozzy Osbourne, 2001]


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[Figura 5: Christ, pôster de Ozzy Osbourne, 2010]

Nas imagens em questão, respectivamente datadas de 2001 e 2010, nota-se um claro intertexto com a iconografia de Jesus Cristo, mais especificamente, no momento de sua crucificação, o que é perceptível pela posição dos braços do cantor. No caso da Figura 4, capa do disco Down to Earth, percebe-se ao longo do corpo de Ozzy uma aura cruciforme. Um exame atento da imagem revela que nos pulsos e no pescoço do cantor há grilhões que o prendem à cruz. Mas o ponto que chama mais a atenção é a escolha de cores presentes na fotografia, privilegiando tons negros e azulados. A opção por essas tonalidades justifica-se pela maneira como é representada a figura de Ozzy, com seus ossos à mostra através de sua pele, o que torna essa capa um “raio-x de um messias crucificado”. Todavia, ainda que boa parte da formação óssea do cantor esteja visível, há partes de sua epiderme que estão presentes nessa radiografia, como suas tatuagens. Outra característica digna de nota é a cabeça tripartida do cantor, com uma face central que mistura típicos elementos de um crânio (vide a ausência de um nariz) com outros de uma face “normal” (os olhos, mesmo que quase que totalmente engolidos pelas negras e exageradas órbitas oculares). As cabeças laterais de Ozzy gritam, o que imprime a elas um tom de desespero. Sabendo que o propósito de uma radiografia é mostrar o interior de uma pessoa, pode-se inferir que o raio-x desse


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messias da confusão, além de sua constituição óssea, exibe sua loucura (representada pelas três cabeças, sendo que as duas em desespero podem, simbolicamente, representar o conflito trazido pela insanidade, as “outras vozes” que falam em sua mente) e suas tatuagens, uma das “marcas registradas” do cantor. Os crucifixos ostentados por Ozzy Osbourne são mais um elemento que imediatamente remetem à figura de Jesus Cristo. Em relação à Figura 5, uma foto promocional veiculada no formato de um pôster durante a divulgação do disco Scream, destaca-se um objeto sobre a cabeça do cantor: uma réplica da coroa de espinhos, feita de material pouco definível, com formas pontiagudas e retorcidas. Nesse ponto, os cabelos compridos de Ozzy Osbourne auxiliam bastante na construção intertextual, já que todas as representações iconográficas feitas de Jesus Cristo o retratam com cabelos longos. Nota-se a presença de signos que constroem um tom sombrio, como as largas roupas negras (em particular, um sobretudo, que lembra um manto, elemento já discutido) e o já comentado recurso da maquiagem negra em torno dos olhos. A intensa iluminação de cor vermelha é também um ponto digno de nota, pois, dentre, suas muitas simbologias (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 944) há aquela que associa essa tonalidade ao campo semântico do demoníaco, por ser uma cor representativa do fogo. A tradição ocidental cristã construiu a imagem do reino do inferno como um local “onde o fogo nunca se apaga” (BÍBLIA SAGRADA, Marcos, 9: 43). Também há na Bíblia associações entre essa cor e o pecado: (...) “Quando vossos pecados forem como o escarlate/Como neve eles embranquecerão/Quando eles forem vermelhos como a púrpura/Como lã tornar-seão” (BÍBLIA SAGRADA, Isaías, 1: 18). Dessa forma, essa imagem, por mostrar um Ozzy Osbourne “crucificado”, traz consigo todas as acepções tradicionais recorrentes ao campo semântico do messianismo, como o tom de adoração em torno de sua figura, a necessidade que seus seguidores têm dele, a crença do retorno messiânico e, evidentemente, o sacrifício. Este último em particular pode ser lido na biografia do artista, especialmente em episódios envolvendo protestos


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“Olhe para você mesmo / Ao invés de olhar para mim/ Com acusação no olhar/Você me quer crucificado Por ser profano/ Se você se considera sem pecado /Seja o primeiro a atirar a pedra” (“Você não é diferente”, em OZZY OSBOURNE, 1983:02). 12

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por parte de grupos religiosos contra a sua música e sua figura. Esse intertexto com o messianismo cristão também se faz presente em versos de canções de Ozzy, como: Look at yoursely/instead of looking at me/With accusation in your eyes/Do you want me crucified for my profanity/ (...)/ If you think you´re without sin/ be the first to cast the Stone (You´re no Different, em OZZY OSBOURNE, 1983: 02). 12 Percebe-se em You´re no different o emprego de elementos do discurso religioso, como a dicotomia sagrado versus profano para definir, a relação da sociedade contra Ozzy Osbourne, respectivamente. A associação entre a figura de Jesus Cristo com o martirizado eu-lírico da canção fica evidente com a menção das intenções dos outros em crucificá-lo, além da referência explícita à resposta de Jesus Cristo a aqueles que lhe indagaram sobre o que deveria ser feito com uma mulher adúltera, cercada por uma pequena multidão ávida para apedrejála: “Aquele dentre vós que se considera sem pecado que seja o primeiro a atirar a pedra” (BÍBLIA SAGRADA, João, VIII, 3: 11). Levando-se em conta que, de um modo geral, a subjetividade estética construída nas canções de Ozzy Osbourne possui uma forte carga autobiográfica (ou seja, um caso de aproximação explícita entre o sujeito poético e seu autor), pode-se afirmar que os versos dessa canção criam para o cantor a identidade de uma espécie de “Messias do Metal”. Ainda, deve-se mencionar que, na referida passagem do Evangelho segundo João, encontra-se uma significativa representação da imagem de Cristo enquanto desconstrutor de paradigmas sociais. De acordo com o texto bíblico, o ato de apedrejamento público de uma mulher adúltera fazia parte da lei deixada por Moisés. Logo, o episódio em que Jesus Cristo desafia aqueles que se consideravam limpos de quaisquer pecados a lançarem a primeira pedra pode ser lido mais do que apenas uma crítica à hipocrisia de se tentar estabelecer um julgamento moral de outra pessoa. Há, em verdade, uma clara desconstrução de um discurso moral institucional vigente, pois, afinal, Cristo se opõe a um código que rege as relações interpessoais de seu tempo, um discurso propagado pelos fariseus, então detentores de grande poder político. Dessa forma,


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o intertexto estabelecido na canção de Ozzy Osbourne com essa passagem bíblica associa ao cantor um dos traços mais marcantes da figura de Jesus Cristo: o caráter de transgressão às verdades proferidas pelas instituições de poder. Tal construção identitária de cunho messiânico corrobora a mecânica de culto à personalidade recorrente na produção da imagem pública de Ozzy Osbourne, associando-o a diversos signos pertencentes a um universo de figuras de autoridade (o General, o Monarca), de patriarcalidade (o “Padrinho”/ “Chefão”) e/ou de religiosidade (o Messias). Além de tais alusões fomentarem uma nítida estética da adoração em torno da figura do cantor, cada uma delas também vincula a ele características específicas determinantes de sua constituição. É o caso da ideia de poder associada à figura do general veterano; da soberania atrelada ao monarca em seu trono e, no caso do messias, de sua “missão divina” de salvar os demais homens, mesmo que através de sua martirização e subsequente morte. Dessa maneira, vê-se como uma série de recursos intertextuais, veiculados em diferentes mídias, permitem que Ozzy Osbourne (enquanto figura midiática) se aproprie de discursos canônicos/tradicionais, de forma que, através de releituras, associações, esvaziamentos e/ ou desconstruções, possa estabelecer uma Estética da Transgressão como o alicerce-mor de um culto à sua personalidade.

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Fotografia Figura 1: Foto promocional oficial 2010. Fotografia por Jennifer Tzar. Disponível em <www.ozzy.com>. Acesso em 19 mar. 2013. Figura 2: “The GodFather of Metal”. Foto promocional, 2011. Direção de arte e fotografia por Jennifer Tzar. Disponível em <www.ozzy.com>. Acesso em 20 mar. 2013. Figura 3: Capa do álbum No Rest for the Wicked (OZZY OSBOURNE, 1988). Design e Arte por JOULE, Steve. Maquiagem por CANNON, Greg. Fotografia por COSTELO, Fin, HARRISON, Tony Figura 4: Capa do álbum Down to Earth, 2001. Direção de Arte por David Coleman. Fotografia de Nitin Vadukul. Figura 5: Christ. Pôster de Ozzy Osbourne, 2010. Créditos da imagem pertencentes a Ozzy Osbourne Management. Disponível em <www.ozzy.com>. Acesso em 02 mar. 2013.


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Da literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagens João Manuel dos Santos Cunha*

Resumo: Desde o estabelecimento do cinema, as ligações entre literatura e a nova arte vêm sendo detectadas. Na verdade, ainda que amplamente pensados como constructos diferentes, eles são naturalmente propícios à linguagem. Se atentarmos para uma certa história cultural dessas relações, no entanto, verificaremos que, geralmente, ela foi feita de segregações. Era essa a moldura vigente até o desenvolvimento de teorias semiológicas que viriam a afinar o estudo das relações entre linguagens, no contexto da revisão pós-estruturalista, chegando às teorias da intermidialidade contemporâneas. No âmbito de um recente e produtivo comparatismo indisciplinado, é preciso reconhecer que críticos e teóricos “antigos”, operando em diversos campos do conhecimento, contribuíram com ideias que repercutem ainda hoje, no quadro de uma compreensão totalizante que não considera limites entre textualidades fílmicas e literárias. Essa é a constatação examinada neste ensaio, aplicada ao tema da tradução interlinguagens. Palavras-Chave: literatura e cinema, literatura comparada, intertextualidade

* Universidade Federal de Pelotas – UFPel

Abstract: Since the establishment of cinema, the existence of connecting points between literature and the newer art has been pointed out. In fact, though widely thought of as being different things, they are naturally open to the work of language. If we look at a certain cultural history of these relations, however, we find that, more often than not, it has been one of segregation. That was the framing that existed until the development of semiotic theories refining the study of the relations between languages in the context of poststructuralist approaches, which culminated in the contemporary creation of theories dealing with intermediality. As part of a recent and productive trend


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toward the undisciplining of comparativism, we must recognize that “traditional” critics and theorists operating in various fields of knowledge have also contributed ideas that resonate even today as part of a more totalizing understanding that ignores the boundaries between literary and filmic textualities. This text is an attempt to discuss those notions, as applied to the theme of intersemiotic translation. Keywords: literature and cinema, comparative literature, intertextuality

Refletindo sobre a supervivência das imagens, Georges Didi-Huberman, em Sobrevivência dos vagalumes, considera que “a imaginação – esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento – nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro” (2011, p. 61). Ainda que recortada do denso ensaio em que o historiador da arte interroga extensivamente a história das imagens e do pensamento, conectando-se com práticas e ideias de um vasto conjunto de artistas, filósofos e escritores, como Pier Paolo Pasolini, Walter Benjamin ou Giorgio Agamben, a assertiva pode ser tomada como fundamento para se pensar igualmente a permanência da linguagem, considerada como inerente ao pensamento e à imagem. Tomada assim, no contexto de um tempo em que, segundo o próprio Didi-Huberman, “o valor da experiência caiu de cotação” (2011, p. 126), a metáfora da imagem como a luz que aparece, desaparece, reaparece e redesaparece incessantemente, sobrevivendo, como a frágil luminescência dos pirilampos, estimula a reflexão sobre o tópico da história do pensamento teórico-crítico no quadro das conexões entre as linguagens da literatura e do cinema. É essa hipótese que anima a reflexão aqui desenvolvida, com investimento na recuperação de imagens-pensamento estatuídas desde Serguei Eisenstein, George Bluestone, Pier Paolo Pasolini, Christian Metz e Peter Wollen, chegando a Jacques Derrida e Robert Stam e, bem recentemente, a Evando Nascimento. Muito antes do desenvolvimento das teorias que viriam a afinar a metodologia de aproximação dessas linguagens, a partir dos anos sessenta – no contexto da


Da literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem

O termo foi institucionalizado a partir de proposição de Gilbert Cohen-Séat, diretor da Revue Internationale de Filmologie, Ikon – Presses Universitaires de France (1947-1962), criada por professores da Universidade da Sorbonne, como Roger Caillois, Edgar Morin e Roland Barthes, para veicular resultados das investigações sobre a nova disciplina, justamente denominada “filmologia”, a qual buscava estabelecer noções fundamentais e limites do conhecimento sobre as relações do cinema com outros campos do pensamento e da criação estética, como psicologia e sociologia. A reflexão essencial sobre o tema encontra-se em COHENSÉAT, Gilbert, Essai sur les principes d’une philosophie du cinéma. Introduction générale, 1946. 1

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revisão pós-estruturalista –, no entanto, críticos e teóricos de diversos campos do conhecimento contribuíram com ideias que sobrevivem − num continuum ainda que modulado por intermitências. Alguns desses constructos repercutem ainda hoje, na moldura de uma compreensão totalizante e na esteira de abordagens que consideram a transcendência dos limites entre textualidades. Reciclando postulações formalistas e mesmo de uma “filmologia”1 sedimentada a partir da França, os estudos literários e fílmicos, agora compreendidos como práticas interdisciplinares que levam em conta condições culturais, históricas e de recepção de textualidades, podem, ainda, aproveitar contributos de uma “velha” mas nada negligenciável abordagem das relações entre literatura e cinema. Do amplo arco teórico que contém essas contribuições, recupero a de um “antigo” crítico, George Bluestone, ativo desde os anos quarenta e autor de uma obra que, em alguns aspectos, adiantou de muitos anos pressupostos que hoje poderiam embasar uma possível “teoria dos media”. Em 1957, ele publica Novels into film: the metamorphosis of fiction into cinema, em que apresenta o seu entendimento para casos de “adaptação” cinematográfica para textos literários. Nessa obra, ele defende a ideia incontornável de que livro e filme são objetos estruturados em meios formais completamente diversos: o da imagem, no cinema, e o da palavra, na literatura. O que se conforma, entretanto, na transposição entre os dois meios, é a construção parafrásica, pela qual o cineasta “se constitui não somente como tradutor de autor literário, mas autor de texto novo” (BLUESTONE, 1957, p. 62, tradução minha). Ainda que algumas das conclusões de Bluestone tenham sido arguidas, principalmente com relação à valorização que ele faz do texto literário em detrimento do fílmico, é forçoso reconhecer, no entanto, que, no conjunto dessas formalistas articulações pré-pósmodernismo, há ideias que permaneceram e se mantém ainda hoje no cerne da problematização sobre o tema das “adaptações”. Uma delas é a de que, metaforizados em outros mas sendo ainda eles mesmos, figurados que


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são em um outro meio e instalados em um outro tempo e em um outro espaço, os personagens das narrativas literárias, em trânsito para as telas dos cinemas, restam vivos no imaginário tanto do leitor como do espectador, como se fossem “heróis de lendas populares, apartados da aventura da linguagem, vivendo uma vida mítica própria” (BLUESTONE, 1957, p. 63, tradução minha). Gosto de voltar a essa constatação do “antigo” crítico norte-americano, quando me ponho a refletir sobre o estatuto da narrativa e da consequente condição dos personagens nessa movimentação entre espaços textuais, eis que nela encontro material ainda rentável para a discussão sobre as relações entre as linguagens literária e fílmica, restritas ou não ao tema das “adaptações” da literatura ao cinema. Esse é um dos aspectos de uma questão que vem se constituindo como um tema recorrente no atual quadro dos estudos comparados em literatura e que abordarei na sequência. Nos últimos anos tem se constituído uma zona comum entre o campo dos estudos literários e o dos estudos fílmicos: a dos “estudos de mídia”. Nessa recente conjuntura, se examinados em intersecção, e para além das impropriamente denominadas “adaptações fílmicas para textos literários”, literatura e cinema compartilham espaço fecundo para a análise textual comparativa. Por outro lado, se considerarmos que esses meios expressivos se inter-relacionam de modos diversos, no contexto de um universo midiático bastante amplo, que incluiria meios tão diferentes como televisão, jornal, música popular, graphic novels, internet, histórias em quadrinhos ou videojogos e artes visuais, pode-se pensar que se configurariam como participantes de um campo investigativo que, necessariamente, não elegeria apenas objetos estéticos como corpus, apartando-se do paradigma hermenêutico que caracterizou os estudos literários e fílmicos até o último quartel do século XX. Poderiam ser investigados, assim, em uma rede de processos intermidiáticos, localizada no vasto campo das práticas culturais. Sob essa estimativa, o reconhecimento de que o complexo processo cinematográfico se efetiva numa relação intermídias permite pensar o filme como objeto


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Uso os termos “processo” e “procedimento” na acepção proposta por Christian Metz; “processo” diz respeito ao amplo conjunto dos atos sociais, culturais, econômicos etc., agenciados para a produção do objeto filme; “procedimento”, ao exercício dos códigos e subcódigos fílmicos que enformam a linguagem cinematográfica. Assim, para ele, o “cinema é fato da ordem do processo” e o “filme”, do “procedimento”. Para detalhes, ver: “O filme”/ “O cinema”; “Estudar os filmes: dois caminhos diferentes”, in: METZ, Christian [1971] 1980, p.57104. Anos depois, André Gaudreault usaria os mesmos dois vocábulos mas com sentido diferente, no âmbito da tentativa de verificar a paulatina construção da própria linguagem do cinema, considerando a evolução da técnica narrativa durante as duas primeiras décadas da história do cinema. Para detalhes, ver: GAUDREAULT, André, 1989. 3 A noção de texto fílmico, “eminentemente complexa, pode ser entendida como uma rede de significações múltiplas”, cf. MIMOSORUIZ, Duarte, 1989, p.235; ou, em outra acepção, “o resultado provisoriamente ‘parado’ do trabalho com códigos: isto é, o filme”. Cf. METZ, Christian, 1980, p. 338. 2

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cultural como outro qualquer, cuja natureza ultrapassa a própria especificidade dos procedimentos técnicos2 inerentes à linguagem fílmica, para se constituir como produto de práticas intersubjetivas como tantas outras, inclusive a literária. O estabelecimento da natureza dos meios expressivos do cinema como sendo do domínio da “linguagem” e a consequente constatação de que o filme conforma-se como “texto”3 – construção teórica consolidada desde os estudos de Christian Metz, no final dos anos sessenta – franqueou avanço efetivo para a aproximação de textos literários e fílmicos em perspectiva pós-estruturalista. A reflexão do semiólogo sobre a natureza do processo cinematográfico e dos procedimentos fílmicos possibilitou comparação de forma sistematizada, com rendimento teórico-crítico que chancelou a ultrapassagem de fronteiras disciplinares: O cinema não é uma língua, sem dúvida nenhuma, mas pode ser considerado como uma linguagem, na medida em que ordena elementos significativos no seio de combinações reguladas, diferentes daquelas praticadas pelos idiomas e que tampouco decalcam a realidade. Assim, sendo uma linguagem, permite uma escrita, isto é, o texto fílmico (METZ, [1971]1980, p. 338, grifos meus).

A formulação de Metz repercutiu entre a crítica e a teoria cinematográfica e a literária desde então, gerando profícuo aproveitamento para os estudos que se ocupam das relações entre literatura e cinema, por investigadores como, na França, André Gaudreault (1988), JeanneMarie Clerc (1993), Michel Serceau (1999) ou Francis Vanoye (1989); na Alemanha, Peter Wollen (1984); e, na Itália, Pier Paolo Pasolini (1982). No Brasil, elas ecoaram nas articulações desenvolvidas pioneiramente por Haroldo de Campos (1969) e por Julio Plaza (1987), bem como, mais recentemente, em Evando Nascimento (2002, 2013), por exemplo, quando pesquisadores como esses pensaram a questão da tradução intersemiótica e o problema da intraduzibilidade do signo estético entre


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línguas e entre linguagens. No amplo quadro dos estudos sobre “adaptação fílmica para textos literários”, é preciso ainda considerar a contribuição de Linda Hutcheon, investigadora canadense, em livro publicado em 2006 e recentemente traduzido no Brasil com o título de Uma teoria da adaptação (2011). Em Peter Wollen, muito antes que se configurasse uma possível “teoria da intermidialidade”, mas na esteira dos estudos de Metz, encontramos a seguinte constatação sobre a natureza da linguagem do cinema, vista em relação com a de outras linguagens: [...] a linguagem ou a semiótica do cinema compreende, assim como a linguagem verbal, não só o indexal e o icônico, mas também o simbólico. Na verdade, tendo em consideração as origens do cinema, marcadamente mistas e impuras, seria espantoso que fosse de outro modo. O cinema não só se desenvolveu tecnicamente a partir da lanterna mágica, do daguerreótipo e outros instrumentos semelhantes – a sua história do realismo –, mas também a partir da banda desenhada, dos espetáculos do Wild West, dos autômatos, dos romances de cordel, dos melodramas, da magia – a sua história de narrativa e do maravilhoso (WOLLEN, 1984, p. 153).

Tais aportes consideraram intersecções do cinema com a linguística e a literatura, imprimindo em seus fundamentos teorizações surgidas ao tempo em que o pensamento clássico sobre o cinema nos anos vinte apontava para a natureza impura e híbrida do processo fílmico. Em Serguei Eisenstein, notadamente, já se encontrava discutida e demonstrada de forma clara essa condição, no período em que o teórico e cineasta russo desenvolveu o conceito de “cinematismo”. Foi a partir da metodização dos princípios da montagem de planos, que ele articulou a noção de “cinematismo”. A concepção de “montagem”, aplicada tecnicamente ao cinema, é construída por ele como uma possibilidade natural da percepção do mundo pelo homem, encontrandose presente na relação direta do olhar humano sobre a


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Na esteira dessa articulação semiológica einsteiniana, é importante resgatar a visão de um escritor brasileiro que, nos anos dez do século XX, chegou à conclusão semelhante sobre a natureza das imagens fílmicas em sua relação com o olhar do homem. O carioca João do Rio (1881-1921) via o “cinematographo” como “o arrolador da vida atual, como a grande história visual do mundo”. Em crônica escrita em 1908 e publicada como “Introdução” ao livro Cinematógrafo: crônicas cariocas (primeira edição impressa em Portugal como Cinematógrafo, Porto, Chardron, 1909), ele constatava, pioneiramente, que, “se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem tem no crânio um cinematógrafo de que o operador é a imaginação. Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditável. Tudo quanto o ser humano realizou não passa de uma reprodução ampliada da sua própria máquina e das necessidades instintivas dessa máquina. O cinematógrafo é uma delas”. Cf. RIO, João do, Cinematógrafo: crônicas cariocas, 2009, p.4-5. Disponível em: <http://www. academia.org.br/antigo/media/ Cinematografo>. Acesso em: 20 set. 2012. 5 Eisenstein chegou a experimentar a adaptação de obra literária, quando, em 1930, em passagem pelos Estados Unidos, roteirizou o romance Uma tragédia americana (An american tragedy, Theodore Dreiser, 1925) para os estúdios da Paramount, filme que não chegou a dirigir; em 1951, o romance foi filmado por George Stevens com o título de A place in the sun (no Brasil, Um lugar ao sol). Na Rússia, trabalhou com o escritor Isaac Babel no roteiro de O prado de Beijin, em 1935. Cf. EISENSTEIN, Serguei, 1987, p. 355. 4

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realidade, mas também desenvolvida pelas linguagens artísticas desde sempre.4 Sua atividade teórica, concomitante à da criação de filmes, evoca a pintura de Leonardo da Vinci, El Greco, Toulouse-Lautrec; a escultura de Bernini e Rodin; bem como o teatro Kabuki, as representações circenses e do music hall, e a música de Debussy e Scriabin, para aproximar o cinema de outras textualidades. Para refletir sobre a natureza cinemática da relação do sujeito com o mundo, ele invoca ainda a qualidade cinemática na literatura de Máximo Gorki, Leon Tolstoi, Charles Dickens e James Joyce, além de apontar o componente pictórico das “imagens montadas” na formatação dos ideogramas chineses e japoneses. Valendo-se de uma metodologia que evidenciava a prevalência de um “olhar cinematográfico sobre o mundo, Eisenstein recorre, ainda, aos murais de Orozco, à gravura de Utamaro e ao cubismo de Picasso. Afirma, assim, a essência de um cinema que se expressa, como outras linguagens artísticas, pelo “modo cinemático de ver o mundo, de estruturar o tempo, de narrar uma história, ligando uma experiência à seguinte” (EISENSTEIN, 1980, p. 8, tradução minha). O termo “cinematismo” (cinématisme) significava para ele, então, a ideia de que “existem formas fílmicas fora do cinematográfico” (1980, p. 9); ou seja, criou o neologismo e o empregava para designar um movimento de retroação conceitual e analítica do cinema sobre as artes tradicionalmente consolidadas. Ou, ainda: para o metteur en scène do teatro de vanguarda e cineasta que também pensou o cinema que praticava – além de fotógrafo, roteirista, cenarista, desenhista e pintor –, o mundo apreendido pelo olhar do sujeito, traduzido em conexão direta, é cinema antes e apesar de o cinema ser uma possibilidade de linguagem técnica e estética. É esse termo cunhado ainda nos anos vinte que dará título a um livro que ele preparou em vida, mas que só seria editado postumamente, em 1980, com o título de Cinématisme – peinture et cinéma. Ainda que não tenha tratado especificamente do tema da tradução de obras literárias para o cinema,5 sua concepção do conjunto das linguagens como sendo a manifestação de uma


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“cinematografia sem cinema” colocaria, necessariamente, a literatura e o cinema num mesmo nível de “escrita” estética. Assim, postulando uma espécie de “estética geral”, Eisenstein define não só um método analíticocomparativo de obras consideradas na totalidade da cultura, como incorpora à sua teoria fílmica constructos de outros meios expressivos. Essa visada ultrapassaria a própria condição de arte-síntese do cinema para se constituir como uma possibilidade de compreensão do lugar e do funcionamento das imagens no mundo cultural. O conjunto dessas especulações corresponderia, assim, aos fundamentos do que atualmente se postula como sendo uma provável “teoria da intermidialidade”, inserida, naturalmente, num possível campo dos “estudos de mídia”. Pier Paolo Pasolini, cineasta e escritor, refletindo sobre conceitos como “língua” e “linguagem”, no âmbito do cinema e da literatura – ao mesmo tempo em que Christian Metz articulava uma “semiologia do filme como um estudo dos discursos e dos textos” ([1969] 1980, p.11) –, afirma que “o cinema se constitui como uma linguagem da realidade” ([1965] 1982, p. 187). Em conferência proferida no Festival de Cinema de Pesaro, em 1965, depois publicada como “Cinema de poesia”, em Empirismo herege (1982), ele defende a tese de que seria possível pensar sobre a linguagem dos filmes no mesmo contexto linguístico da distinção entre prosa e poesia na literatura. É nesse texto que propõe a denominação de “língua da prosa” e “língua da poesia” – tópico que veio a se constituir como um dos mais valorizados e mal compreendidos temas abordados no ensaio – para caracterizar os procedimentos cinematográficos que ele identificava em certo tipo de cinema da época. A “língua da poesia” seria aquela em que o espectador pode perceber a câmera em exercício dos procedimentos fílmicos, como, por exemplo, em travellings ou vazamentos de luz e, principalmente, no enquadramento por planosequência, pelo qual se elide corte e montagem de planos. Já na “língua da prosa”, a presença do cineasta/ narrador por detrás da filmadora não seria percebida. O


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uso das palavras “prosa” e “poesia”, emprestados da teoria literária, como se vê, acabam por definir procedimentos formais específicos do âmbito da cinematografia e não apontam para uma necessária articulação comparativa com aqueles da literatura: “cinema de poesia” não corresponderia à “literatura em verso”; “cinema de prosa” não seria o equivalente de “literatura em prosa”. Essa articulação, no entanto, acabou por se constituir como ponto de partida para o pensamento sobre a cinematografia vinculada não só a um cinema dito “de arte” − ou aos “cinemas novos” a partir dos anos cinquenta −, como ao cinema “industrial”. Na atual conjuntura de produção e circulação de filmes – já vistos como produtos de um “hipercinema” (LIPOVETSKY, SERROY, [2007] 2009) −, distribuídos massivamente tendo em vista o circuito comercial de salas de cinema e veículos como a televisão e outros meios digitais, o debate “poesia-prosa” instalado sob o viés da tese de Pasolini perdeu tanto em consistência como em produtividade. Não é meu objetivo aprofundar aqui a discussão sobre esse ângulo da “semiologia pasoliniana”: recupero-a com o intuito de atualizar aspecto que interessa para pensar o sentido de língua e linguagem no contexto atual dos estudos comparados em literatura e cinema, fulcrando a questão no tema da tradução interlinguagens. Importa, para isso, o sentido da relação que Pasolini, no ensaio referido, estabelece entre cinema e realidade. Sendo uma língua, como ele postula, o cinema se exercita como uma “língua escrita da realidade” (1980, p. 186). Para ele, a realidade já é cinema, eis que se constitui como um “plano-sequência infinito”. Ou seja, o autor-cineasta o que faz é “escrever” a própria realidade com a “língua do cinema”. Pela via dessa faculdade, o cinema possibilitaria a tradução do mundo por meio da montagem de planos enquadrados do real, estatuto mesmo da linguagem cinematográfica. É a montagem, portanto, a operação criadora que aporta sentido para uma realidade que, sob essa contingência, pode ser também pensada como sendo “linguagem”. O que se pode perceber, então, em Pasolini, é a permanência do pensamento-imagem de Eisenstein, tal como ele o expressou em Cinématisme ([1929], 1980).


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Partindo da concepção de linguagem em Pasolini, o norte-americano Robert Stam conclui, reafirmando a tese do italiano, que tanto a realidade quanto sua representação em filme são discursivas. O que lhe permite atestar que “[...] a relação entre o cinema e o mundo é de tradução. A realidade é ‘o discurso das coisas’ que o cinema traduz em um discurso de imagens, o qual Pasolini designou como ‘a linguagem escrita da realidade’” (STAM, 2003, p.133). A conclusão de Pasolini sobre o mundo ser “um cinema em estado de natureza”, (1982, p. 186) fundase na ideia de que o cinema é língua porque possui uma dupla articulação, tal como as línguas verbais.6 Nesse ponto, Pasolini distancia-se de Christian Metz, o qual, como vimos, ao localizar na faculdade da linguagem do cinema a sua possibilidade de produzir textos, descarta justamente a sua qualidade de língua (METZ, [1969] 1980, p. 337-338). Consequentemente, para Pasolini, é o cinema – como “língua escrita” e como processo de linguagem – que permite a legibilidade do mundo; e o discurso expressivo possibilitado pela montagem cinematográfica é o que possibilitaria a apreensão do significado dessa realidade. No momento em que, quase cinco décadas depois das teses de Pasolini (o texto em referência veio à luz em 1965) e mais de oitenta anos após as teorias “multimidiáticas” avant la lettre de Eisentein (circa 1929), ainda é intensa e produtiva a discussão sobre a relação entre as duas linguagens. Ainda que o debate atual se desenvolva sob a égide de uma provável “teoria da intermidialidade”, é impossível não reconhecer nas postulações nada ingênuas – e, na essência, coincidentes – desses pensadores a ideia incontornável de que literatura e cinema, para além de traduzirem o mundo em discurso, o que fazem é produzir texto do mundo. Estabelece-se, assim, uma relação que coloca essas textualidades, tanto quanto o produto de outras linguagens que buscam entender a “vida real”, no mesmo nível de traduções do mundo que se integram na amplitude de uma rede que se tece “entre meios” e na amplitude da cultura. Quando consideramos essas premissas, podemos pensar texto literário e texto fílmico como objetos

O ponto de referência teórico para essa formulação de Pasolini é a distinção proposta em 1960 pelo linguista francês André Martinet entre os elementos mínimos de significação (monemas) e os da articulação (fonemas), os quais possibilitam o reconhecimento da dupla articulação numa língua. Sobre a “dupla articulação das línguas”, ver: MARTINET, André, Elementos de linguística geral, 1985. 6


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No desenvolvimento de sua “teoria da transtextualidade”, Gérard Genette não trata especificamente da relação entre textos literários e fílmicos, mas cita essa possível tradução transtextual, usando o termo “transmodalização” para se referir às adaptações teatrais ou cinematográficas (GENETTE, [1982] 2006, p. 40). 7

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imbricados num vasto campo do conhecimento que poderia ser denominado de “estudos textuais” e que abrangeria, naturalmente, de forma indistinta, a produção cultural gerada no entrecruzamento de meios expressivos e em circulação intermeios. Tais condições permitem o equacionamento de uma metodologia aplicável, pontualmente, ao exercício da interpretação sob o viés da tradução interlinguagens. Do ponto de vista do pensamento que tem sustentado metodologicamente o comparatismo literário, o que se constata é que, desde a articulação e a sistematização das chamadas “teorias da intertextualidade” (Kristeva, pós-Bakhtin; Genette, pós-Kristeva)7, o tema das relações de produção e recepção de textos transcendeu o campo específico dos estudos linguísticos ou literários. Localizando-se em contexto de saberes cooperativos, esse fato permitiu que se invocasse a intersecção com outras áreas disciplinares e do conhecimento em geral. Consequentemente, a interdisciplinaridade deixou de ser estratégia eletiva para se constituir como práxis natural e incontornável para leitura de textos literários, considerados na vasta dimensão da produção cultural. Face a essa constatação, a obra literária passa a ser vista como um produto da cultura e a literatura como uma prática discursiva intersubjetiva como muitas outras. O resultado é que a interdisciplinaridade perde também sua especificidade, “uma vez que os estudos literários passam a inscrever-se na esfera da cultura, marcada justamente pela confluência de áreas diversas do saber” (COUTINHO, 2011, p.24). Atentando para o atual estado do pensamento crítico e teórico sobre a produção e a recepção de textualidades culturais, estimadas as considerações que têm sustentado a discussão até aqui delineada, textos literários e textos fílmicos, então, devem ser pensados não mais em relação binária. Nessa contextura, recorte metodológico importante tem sido o que permite examinar essa condição a partir das chamadas “adaptações fílmicas para textos literários”. Esse exercício acadêmico tem se constituído como um must no quadro do comparatismo contemporâneo e tem convocado em larga escala a


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manifestação de outros constructos teóricos – como o dos estudos de tradução, por exemplo, ou o dos estudos culturais. Em ensaio publicado recentemente,8 Evando Nascimento desenvolve reflexão atenta e elaboração fértil sobre a natureza da tradução não só entre línguas, como, de forma ampla, entre linguagens, literárias ou não. É desse texto que parto para pensar o tópico da adaptação como tradução interlinguagens, privilegiando esse aspecto para problematizar o fato já sedimentado entre a crítica e a teoria de que “toda tradução implica interpretação” (NASCIMENTO, 2013, p.78). Um dos temas abordados por Nascimento, retomando articulação de Jacques Derrida, é, justamente, a da natureza da tradução entre linguagens como uma questão de interpretação. Ora, o que tem sido explorado na análise da tradução intersemiótica da literatura para o cinema é a condição preliminar do tradutor como intérprete do hipotexto. Ou seja, vigeria o pressuposto de que, antes mesmo do exercício técnico tradutório – criação de roteiro escrito para a posterior transposição em imagens cinematográficas – o que o tradutor faz é interpretar o texto literário, dele se apropriando para, a seguir, transcriá-lo por meio de um outro código, no exercício de uma outra linguagem, criando objeto novo – o filme –, ainda que incontornavelmente ligado ao seu hipotexto. Valendo-se da perspectiva derridiana, Evando Nascimento introduz percuciente olhar sobre o tema, ao arguir o fato de que, já no exercício de interpretação, está implicada a prática tradutória: o olhar que traduz o mundo em linguagem é que possibilita interpretação. Essa constatação permite que se pense o tópico da tradução em contexto absolutamente amplo, mas ao mesmo tempo bem preciso, em que o sujeito, como intérprete da realidade (“o discurso das coisas” pasoliniano; o “cinematismo” einsteiniano), já está posto como tradutor, eis que, ao enunciar o mundo, articula “ato de fala” e traduz o mundo pela linguagem. Interpretar o mundo, então, seja por meio de que língua ou linguagem for, será sempre um ato de tradução, produtor e condutor de sentido. Como se pode perceber, as constatações de

O ensaio é versão ampliada de intervenção intitulada Traduzindo o intraduzível: entre literatura e filosofia, apresentado pelo pesquisador e discutido em mesa-redonda constituída no Congresso da ABRALIC de 2011, da qual participaram ainda Márcio Seligmann-Silva (UNICAMP) e Mauricio Cardozo (UFPR). Na ocasião, Evando Nascimento (UFJF) refletiu sobre a natureza da tradução não só entre línguas como, de forma ampla, entre linguagens, incluindo outras que não apenas a literária, demonstrando que “a sobrevida e a supervivência dos textos (literários ou não dependem do idioma do outro”, pensando a questão da tradução como “o lugar da verdadeira universalidade e do cosmopolitismo, um lugar de trânsito entre culturas”. Dentre suas conclusões, embasadas em Walter Benjamin, Jacques Derrida, Goethe, Paul Ricoeur e Haroldo de Campos, estavam as de que “o texto traduzido é sempre um híbrido de pelo menos duas culturas” e “o tradutor é na verdade um mediador de culturas”. Essas ideias aparecem amplamente discutidas em ensaio publicado em 2013 – agora sob o título de “A tradução incomparável”, capítulo do livro – Ética e estética nos estudos literários − que reúne os textos integrais das intervenções realizadas nas mesas-redondas e nas palestras programadas no XII Congresso Internacional da ABRALIC. Cf. anotações pessoais, material cedido pelo próprio Evando Nascimento na ocasião (2011), e que é o texto do qual parto para embasar a discussão elaborada neste artigo, bem como de texto disponível em: <http:// www.abralic.org.br/anais/ cong2011/AnaisOnline/pdf/ programacao.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2012. 8


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Nascimento nos convocam a pensar sobre o sentido mesmo do termo tradução, quando examinamos o tema das chamadas adaptações da literatura para o cinema ou mesmo das traduções intersemióticas de forma ampla. O mais evidente sentido para a palavra tradução, inclusive em entrada de verbetes de dicionários da língua portuguesa, é o de que “traduzir é passar para outra língua”, ou “transpor de uma língua para outra”. Se atentarmos, no entanto, para a origem etimológica do vocábulo, verificaremos que tanto “traduzir” como os correlatos “tradução” e “tradutor” têm origem no latim traducere ou transducere, com a significação essencial de “fazer passar, pôr em outro lugar”; ou seja, “conduzir, levar através de”; “conduzir além”. São essas formas que se encontram também em idiomas como francês, espanhol e italiano. Em português, além dos termos “traduzir”, “tradução” e “tradutor”, existe o registro de “trasladar”, “transladador” e “trasladação”, com o mesmo significado e origem dos equivalentes em língua inglesa e com a mesma acepção dos vocábulos translator e translatoris: “aquele que leva para outro lugar”. Em alemão, a origem do vocábulo correspondente não é latina, mas o significado é praticamente o mesmo, “traduzir”: übersetzen (über: “além, noutra parte”; setzen: “pôr, colocar”). Nesse contexto de sutis mas determinantes possibilidades de sentido, Evando Nascimento, pensando em largo espectro o alcance do significado de “tradução”, na esteira de Jacques Derrida, apresenta a oportunidade para que se reflita sobre “a tradução como metáfora”: [...] Mas o caso é que, tradicionalmente, aplicamos mais o significado dicionarizado de tradução a sua modalidade interlinguística, as outras seriam apenas formas metafóricas de tradução. Todavia, justamente o que interessa a Derrida é o valor de metáfora, quer dizer, de transporte, de transferência e de translação (translation) que se encontra em toda e qualquer operação de sentido e de comunicação. Se “toda interpretação é uma tradução”, mais do que um jogo de palavras, isso quer dizer que toda interpretação, todo ato de decifração sígnica implica [...] deslocamento contextual, uma transferência ou translado de sentido


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de um contexto a outro (NASCIMENTO, 2013, p. 83, grifos do autor).9

“Conduzir de um lugar para outro”, “transferir”: é essa a árdua tarefa do tradutor, a de conduzir textualidades de um lugar a outro, sabendo, de antemão, que sempre restará uma zona opaca ao final do trabalho, constituída por aspectos que, forçosamente, se extraviaram na transferência e geraram restos textuais. Quando se trata da tradução entre sistemas de signos estéticos, como no caso da transladação do literário ao fílmico, é certo que o risco da perda – mas também o do ganho – é ainda maior. E é isso o que potencializa o fato de que, nesse movimento interlinguagens, fica implícita a natureza metafórica da tradução, presente desde o primeiro ato tradutório: o do olhar sobre o mundo. Nessa direção é que também aponta Evando Nascimento, constatando que, na modalidade de tradução intersemiótica, aquela que se faz entre mais de um sistema de signos, “[...] transladar é perder para poder ganhar novos sentidos e atributos, de uma língua ou linguagem a outra, em perpétuo movimento de comunicação tradutória, quer dizer, transferencial” (NASCIMENTO, 2012, p. 13). A tradução fílmica para textos literários tem como resultado, portanto, uma construção híbrida, resultado da mistura de discursos, de linguagens e de meios organizados pelo tradutor-interpretador. Ainda que seja possível balançar as inevitáveis perdas e os nada desconsideráveis ganhos de sentido para as histórias narradas, agrada-me pensar que compete também ao tradutor fílmico – o responsável pela transladação de discursos e pela relativização de meios expressivos – a condução dos personagens de um a outro lugar ficcional. Transferidos de seu lócus hipotextual, eles ganham uma outra vida em uma outra diegese. Figurados por meio de uma outra linguagem, são instalados em um outro tempo e em um outro espaço. Traduzidos-metaforizados em outros, mas sendo ainda eles mesmos, restam como imagens sobreviventes. É para essa condição que já apontara George Bluestone em sua já clássica conclusão sobre a sobrevivência das

É nessa altura do ensaio que Nascimento trata da tradução e o “incomparável”, afirmando que Derrida “não deixou de ironizar o fato de Jakobson nomear a tradução interlinguística como ‘tradução propriamente dita’, como se as outras modalidades não fossem tão tradutórias, quer dizer, tão impróprias e quase impossíveis, quanto essa...” (A tradução incomparável, 2013, p. 83 et seq.). 9


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personagens na passagem das folhas de papel em branco e preto das narrativas literárias para o écran de luz e sombra das salas de cinema. Constatação que permanece como um dos fundamentos do pensamento sobre a tradução entre linguagens, mesmo agora, no momento em que se pensa no destino das personagens de papel em trânsito para a luminescência das telas midiáticas na worldwide web. Quando se busca localizar a fundação da história das relações entre palavra literária e imagem fílmica, constatamos, no entanto, que ela começa bem antes. Atravessando o século vinte, a supervivência da imagempensamento de Serguei Eisenstein, pirilampejando desde os princípios do cinematógrafo, produz luz suficiente para iluminar ainda hoje o pensamento sobre as relações entre palavra e imagem. O que nos leva de volta à figuração de Georges Didi-Huberman, pela qual ele postula que a imaginação – “esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento” – possibilita, desde sempre, a via pela qual o “Outrora encontra o Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro” (2011, p. 61).

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Luiz Carlos Santos Simon*

Resumo: As práticas comparatistas no Brasil têm sido reavaliadas recentemente em debates que ganham espaço em publicações eeventos da ABRALIC. Uma consequência desses debates é a reclamação de que muitos trabalhos afastam-se das tendências comparatistas e da revisão das proposições teóricas presentes nas novas leituras de autores fundadores da Literatura Comparada. Trazer à cena a crônica de Xico Sá, com suas diversas alusões à cultura da mídia, é um passo para diminuir distâncias entre as pesquisas contemporâneas focalizadas também em textos literários contemporâneos e alguns valores que são relevantes para a leitura comparatista. Palavras-Chave: Literatura Comparada. Crônica. Cultura da mídia. Xico Sá. Abstract: Comparative practices in Brazil have been recently re-evaluated in debates that take place in publications and events of ABRALIC. One consequence of these debates is the claim that many articles keep away from the comparative tendencies and the review of theoretical propositions presented in the new readings of foundational authors of Comparative Literature. To bring to light Xico Sá’s chronicle, with its many allusions to the media culture, is a step forward to diminish distances between contemporary researches focused also on contemporary literary texts and some values which are relevant to the comparative reading. Keywords: Comparative Literature. Chronicle. Media culture. Xico Sá.

* Universidade Estadual de Londrina (UEL).


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As reflexões de pesquisadores brasileiros sobre Literatura Comparada – algumas recentes, outras nem tanto – são atravessadas com frequência por dois tópicos. Um deles tem caráter histórico que muitas vezes se associa a componentes de teorização: trata-se da releitura de textos clássicos, fundadores da disciplina, com a observação atenta das nuances teóricas e ideológicas que se agregaram às diferentes proposições ao longo do tempo e oriundas de lugares também muito diversos. São exemplos destacados dessas iniciativas volumes publicados na última década do século XX, como Literatura Comparada: textos fundadores, organizado por Eduardo F. Coutinho e Tania Franco Carvalhal (1994), e Literatura Comparada: história, teoria e crítica, escrito por Sandra Nitrini (1997). Mais recentemente ainda,a revisão da Literatura Comparada ganha, nos estudos brasileiros, a companhia de inquietações sobre o estatuto e sobre a situação contemporânea da disciplina e da ABRALIC,materializando-se nas apresentações de trabalhos nos congressos da associação, em textos selecionados para os vários números da Revista Brasileira de Literatura Comparada e outras iniciativas editoriais da associação, em publicações dos autores já citados e de outros como Rita Terezinha Schmidt, que organizou, em 2010, a reunião de ensaios Sob o signo do presente: intervenções comparatistas; Ivete Lara CamargosWalty, que se deteve, em Centro, centros: literatura e literatura comparada em discussão (2011), sobre a análise de artigos incluídos na mencionada revista; e Marilene Weinhardt (2013), que aborda, em texto incorporado ao livro Memórias da Borborema: reflexões em torno de regional, os rumos da disciplina, levando em consideração o tema proposto para o encontro da ABRALIC realizado em 2012, em Campina Grande, na Paraíba: a internacionalização do regional. O segundo tópico não se distancia muito do primeiro, uma vez que se trata de derivação do que acabei de designar como “inquietações” quanto ao perfil da Literatura Comparada e, no contexto brasileiro, das práticas de pesquisa que se realizam sob essa denominação. Refiro-me ao debate sobre uma suposta inadequação do termo “Comparada” para adjetivar “Literatura”, polêmica que se estenderia também ao nome da ABRALIC e a vários


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dos exercícios analíticos expostos nos congressos, em seus anais e também nas revistas da associação. Não se deve imaginar que esse incômodo assuma grandes proporções nem que enseje um movimento organizado para propor medidas radicais, como a alteração do nome da ABRALIC para ABRALIT ou seleções rigorosas de trabalhos para os eventos e publicações da associação, ainda que esse rigor às vezes assuma lugar de destaque nas discussões. A sugestão de novo nome para a ABRALIC, com a supressão do adjetivo, ou mesmo da criação de uma nova associação, até aparece, mas sem a exposição de muitos argumentos e também sem ostensivas consequências e repercussões, como, por exemplo, em texto escrito por Marisa Lajolo (2005, p. 31): “por que será que não temos uma ABRALIT?”. A consistência da ABRALIC acaba sendo o fundamento da contestação dessa ideia, empreendida duas vezes por José Luís Jobim, em publicações de 2006 e 2011. É curioso – e também bastante saudável – verificar que tanto a ideia de Lajolo quanto a reação de Jobim miram a necessidade de uma representação política forte da área de Literatura, no âmbito da defesa da pesquisa em estudos literários, e de seu gerenciamento de aporte financeiro pelos órgãos públicos nacionais. No entanto, o questionamento do emprego da expressão “Literatura Comparada” para a designação das atividades de pesquisa em nosso meio pode gerar a desconfiança de que persiste o apego à ideia de que as práticas comparatistas mais convencionais, como o confronto entre textos literários pertencentes a diferentes nacionalidades, ainda sobrevive como o emblema maior da Literatura Comparada. É evidente que todas as preocupações registradas até aqui e seus desdobramentos em ensaios, guardadas as devidas proporções, são de grande relevância para o debate sobre a Literatura Comparada. O histórico da disciplina conjugado com a interpretação e o acompanhamento das recentes publicações da área, muitas delas internacionais, são essenciais para a atualização dos estudos comparatistas e para a formação de um arcabouço teórico igualmente imprescindível para aquele que quer se munir de reflexões avançadas que propiciem leituras amadurecidas dos textos literários em geral. Deve-se considerar ainda que muitas


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dessas publicações cumprem o papel de iniciação e de garantia de oportunizar o acesso aos leitores: quantos dos textos fundadores reunidos por Eduardo F. Coutinho e Tania Franco Carvalhal não permaneceriam dispersos ou restritos a livros esgotados ou ainda sem tradução para a língua portuguesa, não fosse a iniciativa dos organizadores do volume? Também no que diz respeito às constantes reavaliações da ABRALIC e da produção de conhecimento que ela abriga, é preciso reconhecer que se trata de prática extremamente saudável para balizar os rumos da pesquisa na área: trabalhos como os de Ivete Walty e Marilene Weinhardt assumem a condição de parâmetros para que não deixemos de perceber a dinâmica da organização da associação e das atividades científicas que se manifestam em seus congressos e suas publicações. Finalmente, mesmo a discussão sobre a propriedade do uso da expressão “Literatura Comparada” exerce a contribuição de suscitar o exame contínuo do cotidiano de nossas pesquisas comparatistas, seja na indagação dos modelos teóricos empregados em cada trabalho apresentado nos eventos e nas revistas, seja na análise do formato da associação de estudos literários que almejamos, incluindo-se aí as potencialidades políticas que podem derivar desse grupo articulado. O reconhecimento da grande importânciados estudos em Literatura Comparada que se caracterizam por diferentes naturezas não deve, contudo, obscurecer determinadas questões levantadas no confronto dessas práticas de pesquisa tão diversas entre si. Se há em muitas das publicações citadas uma concentração específica sobre os percursos da disciplina, suas variações metodológicas e inclinações ideológicas ao longo do tempo e também um olhar analítico voltado para a releitura da produção ensaística – e aqui cabe esclarecer que a produção focalizada na maioria das vezes é a dos estudiosos tradicionalmente identificados com o comparatismo – que se veicula na associação, é preciso perceber que a dimensão da ABRALIC atingiu um grau quase inimaginável, como se pode constatar pelo número de trabalhos apresentados nos congressos. Aliás, talvez até seja o caso de problematizarmos a situação nos seguintes termos: o que está em jogo é a


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dimensão da ABRALIC ou a dimensão dos congressos da ABRALIC? Rita Terezinha Schmidt dispôs-se a enfrentar a questão de avaliar essa “compatibilidade razoável entre identidade e crescimento” (SCHMIDT, 2011, p. 266), estabelecendo o contraste, a partir da coleta de dados recentes, entre o número de associados e o número de trabalhos inscritos para o congresso da associação. É uma questão espinhosa até porque exigiria o exame minucioso dos trabalhos apresentados, além da própria subjetividade envolvida na demarcação de limites para o comparatismo contemporâneo. De qualquer modo, a inquietação é justificável, pois traz para o centro da discussão a reflexão sobre a identidade da Literatura Comparada e de nossa associação brasileira que adota esse nome, inclusive para nos prevenirmos quanto ao risco de convivermos com um abismo intelectual, científico e até bibliográfico: no mesmo espaço, configurado pelos congressos e publicações da associação, as afinidades entre as revisões do comparatismo e trabalhos que ignoram tais contribuições podem estar se tornando cada vez mais raras. É nesse sentido que o diálogo entre práticas de pesquisa tão distantes pode e deve ser estimulado. Uma das formas de estreitar essa relação é valorizar o reconhecimento de tendências recentes na Literatura Comparada, como evidencia Eduardo F. Coutinho: “Agora, o interesse maior do comparatista deslocou-se (...) da preocupação com a natureza e função da literatura no plano internacional, para a tentativa de compreensão das diversas contradições da categoria do literário em diferentes culturas” (COUTINHO, 2001, p. 289). Ainda que se percorra tantas vezes o trajeto da disciplina, que se estabeleçam repetidamente as distinções entre Escola Francesa e Escola Americana e que se mencione a necessidade de superação do método de fontes e influências, um procedimento que pode gerar maior impacto para a adesão a exercícios efetivamente comparatistas na contemporaneidade é a canalização da ênfase para o repertório de objetos que podem ser pesquisados. Dentro da amplitude desse repertório, sobressai o fascínio despertado pela produção literária contemporânea na agenda dos pesquisadores. E, nessa relação de interesses e desejos que movem os


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estudos, é preciso perceber que as manifestações abordadas são marcadas pela problematização do literário e pela aproximação da mídia, constituindo o espaço daquilo que Coutinho aponta como contradições. É também nessa atitude, responsável pela ampliação do terreno a ser percorrido pelas pesquisas em Literatura Comparada, que se ampara João Manuel dos Santos Cunha, para desenvolver seu trabalho “Comparatismo literário e multiplicidade midiática: os limites de uma impossibilidade”: Nesse contexto, outros agentes e saberes foram integrados de forma indissociável ao quadro da reflexão comparada sobre o literário, visto em sua relação com diversas linguagens, códigos estéticos ou suportes textuais, incluindo aqueles inicialmente denominados como meios de comunicação de massa e hoje reconhecidos, de forma genérica, como mídia. [...] O que se referia [...] como uma impossibilidade metodológica tem se estabelecido em possibilidade investigativa nada negligenciável para pensar o literário face às evidências midiáticas da cena cultural (CUNHA, 2011, p. 178-179).

Esse percurso, caracterizado pelas observações dos cruzamentos entre literatura e mídia, é,em parte,o que elejo aqui, substituindo os contos e os romances abordados no ensaio de Cunha pela atenção destinada à crônica. As narrativas focalizadas naquele trabalho, selecionadas a partir do acompanhamento meticuloso do processo de enraizamento das intersecções entre palavra e imagem, oferecem-se como vasto material para análise. Assim, ainda que reconheça passos iniciais das convergências entre o literário e o midiático nas produções de autores como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, Cunha prefere deter-se sobre a prosa de ficcionistas mais recentes, como Amílcar Bettega Barbosa e Daniel Galera. Trata-se de uma opção que não se esquiva das “evidências” observadas pelo pesquisador. A crônica brasileira contemporânea assume um papel peculiar nessa rede de confluências. Basta pensar em dois traços muito significativos para a história do gênero: seu vínculo com os jornais e com as revistas, suportes fundamentais para sua afirmação no Brasil desde o


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século XIX, e a configuração do texto como produção que preserva compromisso e intimidade com o tempo presente. Em ambas as situações, o que se nota é a proximidade entre crônica e mídia. O fato de ser concebido como texto a ser integrado às páginas da imprensa já contribui para eliminar eventuais distâncias e estranhamentos diante do universo da comunicação, em que a própria crônica ocupa espaço. De modo semelhante, o apego aos acontecimentos da véspera ou da semana e a sintonia com a vida contemporânea impulsionam o cronista a dirigir seu olhar para o ambiente midiático, especialmente e de forma crescente nos dias atuais, quando as tecnologias proporcionam a intensificação de acessos a múltiplas manifestações artísticas, culturais e comunicacionais. Nesse sentido, a escolha das crônicas de Xico Sá, todas reunidas em um só volume, para a abordagem a ser aqui desenvolvida, pode até parecer um recorte excessivamente específico ou restrito, uma vez que não se abre para o restante da produção do autor e ainda deixa de contemplar outros nomes da geração composta por jovens cronistas em atividade, como Antônio Prata, Arnaldo Bloch, Eliane Brum, Fabrício Carpinejar, Fernando Bonassi, Luís Henrique Pellanda, Marcelo Rubens Paiva,Martha Medeiros, Miguel Sanches Neto, Milly Lacombe e Tati Bernardi, entre outros que publicam regularmente nos veículos de imprensa e na internet e já transferiram suas crônicas para livros. O espaço aqui disponível não permitiria, contudo, que se reservassem quinhões, mesmo que diminutos, para cada um desses autores. Além disso, a restrição deliberada ao livro de Xico Sá, publicado em 2010, Chabadabadá: aventuras e desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha, tem a função de demonstrar como as relações entre o literário e o midiático adquirem intensidade e se manifestam em um número grande de crônicas e sob diferentes realizações. Deve-se destacar ainda que o foco dirigido para a produção do autor selecionado ajuda a tornar mais evidente um aspecto muito relevante tanto da constituição da crônica quanto para a prática comparatista exercitada por nós, no Brasil: trata-se da identificação do gênero com a condição brasileira, entendida como “aclimatação” por Antonio Candido (1992) e Davi Arrigucci Jr. (1987).


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Chabadabadá desperta a atenção não só por seu título, mas, também, por sua capa e suas dimensões. É um livro quadrado com 19 cm de altura e os mesmos 19 cm de largura, fugindo do padrão mais convencional do livro mais alto do que largo. Quanto ao título e às ilustrações que aparecem na capa e ao longo de diversas páginas do livro, cabe registrar trechos incluídos pelo autor na advertência, que já antecipam o entendimento dos textos e de sua relação de sentido com os demais recursos gráficos da publicação: Aos amigos e amigas que se sentirem furtados nas suas boutades, teses, chistes e frases de efeito, o autor justifica: a intenção foi poupá-los de eventuais desastres no casamento e manter a harmonia nos lares. Sempre que fui fiel a tais créditos, promovi, não por gosto, redemoinhos desnecessários nos consórcios amorosos. Ademais, o leitor ainda pode se deparar, aqui e ali, com toda uma sorte de vigarices semânticas, sinceridades do peito, dores de amor à Leonard Cohen ou à Waldick Soriano, confissões de mal-amadas, boleros, chabadabadás, orações aos moços, truques de falsos donJuans e outros subgêneros. P.S. – O título do livro nos remete ao refrão da trilha sonora do filme “Unhommeet une femme” (Um homem, uma mulher), de Claude Lelouch, 1966. No Brasil, o “chabadabadá” era cantado, por gozação, como “sábado ela dá, sábado ela dá...” P.S. 2 – Benicio é um dos maiores e mais respeitados ilustradores do país. Seu traço inconfundível já foi visto na publicidade, no cinema e na indústria editorial. As ilustrações reproduzidas em Chabadabadá fazem parte de seu acervo de capas pulp, que ele desenhou ao longo de sua carreira para edições de pocket books (SÁ, 2010, p. 7).

A explicação sobre o título, presente no primeiro post-scriptum, já remete ao aproveitamento da cultura midiática como um procedimento constante ao longo do livro. Além disso, o autor não perde a chance de mencionar o modo de apropriação popular daquele refrão entre os brasileiros, como uma espécie de reivindicação de espontaneidade e de um caráter popular para os próprios


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escritos em sintonia com as práticas sociais observadas e até valorizadas pelo autor, práticas igualmente espontâneas e populares. A exposição do vínculo de Benicio com a publicidade, o cinema e os livros de bolso representa também uma forma de assumir identificação entre o espaço profissional pelo qual o ilustrador sempre circulou e, em certa medida, os próprios textos de Xico Sá. Uma das questões que já desponta, nesse texto de advertência, diz respeito exatamente a essa identidade: em que medida, mais precisamente, resiste a ideia de equivalência entre os textos do autor e a cultura midiática, mais de uma vez apontada como referência já na advertência do livro? Não se deve ignorar que, no segundo parágrafo, as alusões admitidas a “vigarices semânticas”, a “confissões”, “boleros”, “orações” e a Waldick Soriano estão obviamente acompanhadas da ironia do cronista. A questão não é o descompasso entre a antecipação dessas referências e a presença dos elementos no decorrer das crônicas: o cantor Waldick Soriano, típico representante da música brega, por exemplo, é efetivamente citado em mais de um texto. O que se deve tentar entender é como essa gama de manifestações culturais, que se insinuam como numerosas e diversificadas, é absorvida no conjunto das crônicas do livro. Essa investigação requer uma leitura mais pormenorizada dos textos presentes no volume. Antes, porém, de ingressar na análise particularizada das crônicas selecionadas, é interessante expor a diversidade e a frequência dos nomes citados ao longo do livro, para que se forme uma imagem mais fiel da natureza das citações. Numa breve leitura, sem pretensões de obter absoluta exatidão, foram contabilizados mais de oitenta nomes de personalidades vinculadas a vários setores da cultura, como literatura, música popular, cinema e televisão, nas pouco mais de cento e cinquenta páginas que exibem textos do cronista. Como vários desses nomes são mencionados em mais de uma crônica – são exemplos Nelson Rodrigues, Roberto Carlos, Honoré de Balzac, Sonia Braga, Alan Delon, Oscar Wilde, Paulo Cesar Pereio e Waldick Soriano –, é bastante viável que as citações ultrapassem uma centena. Quanto às esferas culturais em que transitam essas celebridades, revela-se


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um quadro muito heterogêneo: se há menções a figuras típicas da cultura midiática sem qualquer prestígio fora do universo do mero entretenimento, como Benito de Paula, Adriane Galisteu, Márcio Greyck, Costinha, Marylin Monroe, Paulo Coelho, Giuliano Gemma e até o herói de desenho animado He-Man, abre-se espaço também para autores que estão entre os mais prezados no meio literário, como Guimarães Rosa, Charles Baudelaire, Graciliano Ramos, James Joyce, Manuel Bandeira, Marcel Proust e Clarice Lispector, além dos lugares reservados para algumas personalidades da música popular e do cinema que gozam de certo reconhecimento no âmbito erudito, tais como Chico Buarque, Cartola, Frank Sinatra, Woody Allen, Catherine Deneuve, Luis Buñuel e Pedro Almodóvar. É notória, portanto, a diversidade no catálogo de referências de Xico Sá: nas crônicas, aparecem brasileiros, europeus e norte-americanos; as citações vão desde artistas canônicos até expoentes da cultura brega, desprovidos de talento artístico, passando pelos estágios intermediários; atividades distintas, como música popular e literatura, cinema e televisão, fornecem as fontes para a interlocução do cronista. Às crônicas, então, para uma avaliação mais específica de como se caracterizam as conjugações de referências com origens tão heterogêneas e se os procedimentos de Xico Sá confirmam aquilo que Douglas Kellner (2001, p. 52) identifica como um fenômeno contemporâneo: o esfacelamento da hierarquia entre comunicação e cultura. Na crônica “Do que podemos aprender com King Kong e John Wayne”, observamos já no título a referência ao gorila gigantesco criado para o cinema e a um ator do meio hollywoodiano com grande projeção no mundo inteiro. O ponto de contato para as duas referências, assim como em muitos outros textos do livro, é a difícil relação entre homens e mulheres, que, segundo o cronista, já era ameaçada por desacertos desde os anos 1960 e 1970, período em que os filmes foram produzidos.As linhas iniciais da crônica trazem imagem certeira para diagnosticar a insegurança masculina quantoao papel a ser assumido no convívio com novos padrões de comportamento feminino:


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E eis que a galega linda, gostosa e bela, toda adjetivosa, a Jessica Lange, saca?, se vira para o tarado primata, obsessivo como um tio Nelson em flor, e conclui, minuto de candura em uma cena de pânico entre mamíferos desproporcionais e em estágios diferentes, Ilha da Caveira, exterior, crepúsculo selvagem de um dia qualquer: - Você não está vendo que isso não vai dar certo?! (SÁ, p. 14).

A reprodução da cena até esse momento da crônica pode criar a expectativa de que o autor se posiciona a favor da mulher e contra o homem, sem necessariamente emitir algum juízo sobre o filme, na versão dirigida por John Guillermin, em 1976. O que pesaria para essas interpretações seriam as caracterizações da atriz e do animal: Jessica Lange foi, nos anos 1970, uma inequívoca representante da atriz sensual que desempenhou papéis de mulheres sensuais, e é esse o traço destacado pelo cronista no trecho; enquanto isso, ao gorila já se fixa a qualificação de “tarado” e “obsessivo”. No entanto, logo após essa passagem, surge uma ressalva que condena conjuntamente filme, atriz e personagem feminina: “De facto, tudo levava a crer na razoabilidade da sentença da loira, embora tal criatura [...] fizesse aquela cara de biscate zoofílica de última catega.” (SÁ, p. 14). A partir dessa frase, marcada pela transformação da condição de “linda, gostosa e bela” em um ser vulgar, desprovido de recursos dramatúrgicos, já não se sustenta qualquer ideia de que o filme terá a defesa do cronista em seus elementos estéticos. A cena inicial pode até funcionar como ilustração adequada para os desajustes nas relações de gêneros, mas a desqualificação técnica do filme e do elenco serve também para a equivalência com os desastres que constituem os relacionamentos frustrantes entre homens e mulheres, assim identificados – tanto o filme quanto os relacionamentos – pelo autor, em trecho que recupera em parte o subtítulo do livro: “obviedades no piscinão de metáforas dos encontros e desencontros do macho perdido e da mulher que se acha” (Sá, p. 14). Se os investimentos de King Kong não convencem tanto, nem como produção cinematográfica nem como


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representação de abordagem com êxito do homem dianteda mulher, a saída do cronista é o retrocesso maior no tempo em busca de imagens que apresentem outro perfil de relação amorosa entre um homem e uma mulher. O autor localiza tais imagens no filme Quando um homem é um homem, dirigido, em 1963, por Andrew McLaglen e estrelado por John Wayne e Maureen O’Hara. O nome do ator é precedido pelo epíteto “glorioso”, conquista que se deve provavelmente à rudeza com que seus personagens enfrentam todas as adversidades na ampla filmografia de John Wayne: índios, ladrões, outros malfeitores e, no caso do filme em questão, a resistência da esposa, decidida a pedir o divórcio. São as peripécias experimentadas pelo casal que promovem a cena mais exaltada pelo cronista, mais complacente com esse faroeste do que em relação a King Kong: Deseja reconquistá-la com ganas nem que seja obrigado a sujar as botas no atoleiro sem fundo do amor e da sorte. E é justamente na lama uma das pelejas mais corajosas e bonitas de um homem e de uma mulher desde que o Criador resolveu usar o barro para fazer algo à sua imagem e semelhança (SÁ, p. 15).

Na seleção de cenas operada pelo autor, não há dúvida de que sua preferência recai sobre o filme de John Wayne. Para se compreender essa escolha, é preciso pôr à parte tanto as questões estéticas quanto as questões de gênero, sobretudo essas últimas. É preciso pensar sobre a cena muito mais pelo vigor com que o personagemenfrenta seu desafio, empenho que precisaria ser desvinculado da ideia de violência físicaou de opressão contra a mulher. Não é esse emprego de força que seduz o cronista. O vigor exibido por Wayne atrai o cronista, porque traduz a intensidade de um desejo que não mais existe, acuado por uma série de interdições, de códigos de conduta que levam muitas vezes à hesitação masculina e à degradação da manifestação da virilidade. O tom nostálgico com que o autor encerra a crônica é a demonstração final da identificação com um determinado modelo de imagem que guarda poucas afinidades com as práticas amorosas


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contemporâneas e com os padrões de comportamento masculino: “Ali começou nossa provação, nosso calvário... Da lama para a luta no gel, viejo John Wayne, foi um pulo. Que falta você nos faz, meu brother, meu chapa” (SÁ, p. 15). Entre a cena do ator batalhando na lama pela preservação do amor e a imagem patética de programas televisivos com homens e mulheres se engalfinhando, com uma suposta e artificial sensualidade, na banheira com gel, o cronista marca sua posição com clareza, sugerindo a ideia de que, mesmo no interior da cultura midiática, já sobressai uma hierarquia de imagens, à espera de uma reavaliação crítica. Na crônica “V de veneno, V de Vanzolini e V de vingança”, a referência cultural desloca-se do cinema para a música popular, concentrada na figura do compositor Paulo Vanzolini, autor da bastante conhecida canção “Ronda”. Motivada pelas homenagens dedicadas ao compositor – lançamento de filme, shows e conferências –, a crônica consiste na articulação da trajetória de Vanzolini como zoólogo com a letra da canção “Ronda”, reproduzida integralmente em parágrafos espalhados pelo texto, e com as relações amorosas contemporâneas caracterizadas pelo ciúme e por escândalos, temática da referida canção. Para a integração dessas questões, Xico Sá não deixa de informar que a especialidade do zoólogo é o estudo dos répteis. Nem por isso, o texto assume rumo científico: “Criatura que rasteja, seja macho, fêmea ou bicho, é com ele mesmo. A sua música está repleta de gente que esperneia, desassossego, como a dama que procura o seu marido, amante ou cacho em uma longa viagem ao fim da noite paulistana” (SÁ, p. 28). Fica mais explícito o elo entre o cientista Vanzolini e sua ocupação como compositor de canção. Torna-se também claro que o rastejar de homens e mulheres será o ponto a ser focalizado e atualizado pelo cronista. O assunto, porém, não é tratado com formalidade, mas transferido para a mesa do botequim, acentuando o caráter prosaico e espontâneo que emerge tanto em eventuais conversas sobre o tópico quanto nas crônicas em geral. Num dos momentos de reavaliação da ronda pela cidade, com a procura do ser amado presumivelmente em algum bar à noite, e entre uma e outra reprodução de trecho da letra


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de “Ronda”, surge aadaptaçãodessa busca para o estágio contemporâneo das transações afetivas: O problema é que agora somos nós, os homens, que rondamos em vão à procura da cria das nossas costelas, opinariam amigos que se pelam de medo de um chifre. Até que faz sentido. Sintoma dos tempos, coisas da vida. Bem feito. Eu acho é pouco. Levamos o troco da história (SÁ, p. 29).

Mais uma vez é processada a releitura crítica de uma manifestação da cultura midiática. O que desponta como curiosidade, nessa crônica, é o aproveitamento integral da letra da canção reproduzida em sua totalidade. Assim, não se trata de uma referência breve, casual, pontual, mas de uma incorporação plena que pode ser interpretada como uma adesão efetiva e afetiva da crônica ao texto original. Ao mesmo tempo, o trecho transcrito estimula a constatação de que o texto escrito por Xico Sá não se reduz à mera repetição de “Ronda”. Ao atualizar a situação abordada na canção e expor a inversão de papéis acompanhada dos comentários sobre essa inversão, o cronista gera acréscimos quanto ao texto de Vanzolini e prossegue em sua contribuição para a afirmação de um discurso que, embora simples – como se percebe nas cinco últimas frases do trecho transcrito –, constitui prática que ainda não pode ser considerada tão comum, mesmo nos dias atuais, isto é, um discurso masculino que reconhece as dívidas dos homens nas relações afetivas e a legitimidade de certas práticas femininas que não seriam tão toleradas nem frequentes há pouco tempo atrás. Na crônica “Da cantada como revolução permanente”, as referências culturais voltam a ser mais diversificadas. Aqui, elementos da literatura, do cinema, da música popular e da televisão estão todos reunidos para o cronista discorrer sobre a cantada como um exercício de sedução que deve ter certas particularidades. A primeira delas diz respeito à permanência, como indica o título, uma prática paciente, sem qualquer afoiteza no que se refere à expectativa de resultados imediatos: “Existem mulheres que a gente canta no jardim da infância para


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dar o primeiro beijo lá pelos treze, quatorze.” (Sá, p. 98). Para tornar mais claro seu modelo ideal de cantada, o cronista apresenta exemplos do que se deve e do que não se deve fazer. E aí entram em cena situações vinculadas ao universo da cultura midiática: Mas é necessário que a cante sempre, não aquela cantada localizada, neoliberal e objetiva, falo do flerte, do mimo, do regador que faz florescer, como numa canção brega, todos os adjetivos desse mundo. A cantada de resultado, aquela imediata, é uma chatice, insuportável, se eu fosse mulher reagiria com um tapa de novela mexicana, daqueles que fazem plaft! (...) E claro que para cada uma dizemos uma loa, fazemos uma graça, não repetimos o texto, o lirismo, o floreado (SÁ, p. 98).

As situações apresentadas oscilam de modo curioso. O cronista recorre a imagens simplórias, como o “regador que faz florescer”, mas ao mesmo tempo adverte para que se evite a repetição do texto do flerte. Chega a defender a canção brega e o excesso de adjetivos, mas recomenda a singularidade do lirismo. E ainda sugere que o tapa de novela mexicana é reação legítima para certas cantadas pouco inspiradas e criativas. Não, não se trata de pretender transformar a cantada em texto extremamente sofisticado, rico em linguagem literária, pois isso a desviaria de seu caráter mais comunicável e persuasivo. Isso explica a aproximação da canção brega e o fato de o termo “lirismo” vir seguido do termo “floreado”. O texto da cantada defendida está distante tanto do requinte absoluto, que deve abrir espaço para a inflação de adjetivos, quanto da vulgaridade imediatista, que merece um tapa como resposta. É nesse lugar intermediário que Xico Sá evoca a figura de Vera Fischer, que protagonizou o filme de 1973, dirigido por AnibalMassaini, A superfêmea. Tratase de pornochanchada que exemplifica a necessidade de dirigir as cantadas também às mulheres feias, “até porque as feias não existem” (SÁ, p. 98). Segundo o cronista, “a dita feia, quando bem cantada, vira a superfêmea”. O


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exemplo funciona como um argumento a mais em defesa do cuidado empregado na linguagem, pois a cantada bem feita teria até o poder de transformar uma mulher supostamente feia no objeto sexualmente mais desejado, representado por Vera Fischer. A condição para se obter esse prêmio, apontado como inestimável, contudo, é clara: a cantada precisa ser bem executada. Na citação cultural subsequente da crônica, confirma-se a ideia do cuidado na linguagem: “Tem que cantar sempre a mesma mulher e parecer que está apenas de passagem, que o estribilho é sempre novo, nada de larararás que mais parecem refrões do Sullivan e do Massadas, lembram dessa dupla de músicas chicletosas?” (SÁ, p. 99). A canção brega reaparece, agora não mais como modelo a ser seguido, mas com um exemplo de poucas alternâncias na linguagem que deve ser descartado em virtude da falta de criatividade. A referência à dupla de compositores é mais um resgate no tempo: os dois se conheceram em 1979 e permaneceram juntos até meados dos anos 1990. A crônica é concluída com outro retorno no tempo: a menção a Gabriela, telenovela estrelada por Sônia Braga, que foi ao ar em 1975. O cronista imagina a situação segundo a qual o leitor teria iniciado o processo de sedução sobre a atriz ainda naquele tempo; depois de muitos anos, todos pontuados pelas cantadas do leitor, ela teria finalmente se mostrado receptiva às insistentes investidas, resolvendo recompensá-lo. Eis o resultado: “Vai ser lindo do mesmo jeito, não acha? Na tela do nosso cocuruto vai passar o videoteipe de todos os desejos antigos e despejados no ralo pela morena cravo& canela” (SÁ, p. 99). Sônia Braga é alçada, do mesmo modo que Vera Fischer, a prêmio, para as cantadas persistentes e bem realizadas. É interessante notar que mais de trinta anos separam as produções culturais protagonizadas pelas atrizes da crônica de Xico Sá. É óbvio que o cronista poderia ter selecionado para seu texto outras atrizes mais jovens, que representassem mais claramente o apelo sexual exercido nos dias de hoje. Não é isso que acontece, porém. Ele dirige-se a um leitor que não ingressou tão recentemente na juventude, ou ainda instiga os leitores com quarenta anos ou menos para que todos remexam o baú da memória da cultura midiática, inclusive


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para levá-los ao reconhecimento de que aos objetos do baú podem ser atribuídos valores muito diferentes entre si: alguns desses objetos passam a ser cercados de um afeto que o tempo ajudou a construir. O ar nostálgico é retomado na crônica “Eita cabra ‘inzingente!’”, que aborda as intervenções da plateia durante a projeção de filmes em cinemas nordestinos. A primeira interação exposta é recente: trata-se da imagem do personagem representado por Leonardo Di Caprio despencando do navio para as águas geladas, no filme Titanic, dirigido por James Cameron, em 1997. Diante da cena, surge, de imediato, o grito de reaçãode um espectador de Caruaru: “ – Valha-me, Nossa Senhora, que o galeguinho pedrou de vez!” (SÁ, p. 146). O cronista evoca, com simpatia, a intervenção e sua harmonia com a resposta da plateia: Mesmo em um momento dramático, fazia-se da tragédia uma gargalhada nervosa e coletiva. [...] Falar com os artistas, aplaudir os mocinhos, inventar diálogos, interagir com o cinemascope... era praxe, do jogo, não havia cerimônia em vibrar com o Zorro, em imitar a Chita do Tarzã, em torcer pelo Batman ou pelos tantos épicos de Giuliano Gemma no faroeste-spaghetti(SÁ, p. 146).

A marca nostálgica faz-se bastante evidente através tanto da recuperação de filmes com heróis da infância e da juventude quanto da lembrança da prática de experimentar diálogos com aquelas projeções. Tudo compõe uma rede afetiva valorizada pelo autor. Assim como esses filmes, outro que deu origem a intervenções dessa espécie incorporadas à crônica é Belle de Jour, produção de 1967, dirigida por Luis Buñuel. Já na apresentação do filme percebe-se a deferência do cronista ao qualificar o diretor como “glorioso” e sua atriz principal Catherine Deneuve como “inimitável”. Tãosignificativas quanto esses comentários elogiosos ao filme – que depois merece algumas linhas confirmando o apreço do autor –, ou mais, são as circunstâncias da intervenção do espectador de 1980 reproduzida no texto.


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A linda e gostosa galega, Catherine, óbvio, toda entregue a um moço e o cara todo nojento, com aquele tédio tipicamente francês, triste herança do baixinho enfezado Jean-Paul Sartre. Um rapaz na plateia [...] não se aguenta – e aí não era apenas gaiatice, era sinceridade imediata – e desabafa, nas alturas: - Eita cabra “inzingente”! O cinema veio abaixo, claro, era o sentimento de nós todos, homens e mulheres da terra do sol e sem fastio algum na flor da mocidade (SÁ, p. 146).

O título da crônica deriva, portanto, da fala do espectador, revelando a expressividade da intervenção e o valor a ela atribuído pelo cronista. Curiosamente, a cena do filme que suscita o desabafo do rapaz é reconstituída por Xico Sá como uma forma de antecipar e justificar a intervenção. Catherine Deneuve, ou sua personagem, além de “linda e gostosa”, é apresentada como “galega” – assim como Di Caprio fora reconhecido pelo espectador de Titanic como “galeguinho” –, signo de sua condição de estrangeira, que pode representar tanto o caráter de desejo que ela desperta quanto sua diferença, sua distância em relação às possibilidades de identificação entre os brasileiros e a atriz. O ator e personagem com quem ela contracena tem esse componente de estranhamento enfatizado: ele é “nojento” e entediado e tem tais características vinculadas à condição de “francês”. Nesse sentido, o desabafo do espectador, além de ser repercutidopelos risos, é interpretado como reação inevitável e sintonizada com a coletividadedaquela plateia, “homens e mulheres da terra do sol”, para a qual aquele fastio era uma atitude estranha, de acordo com a manifestação do cronista. A situação focalizada propicia identificações com certas práticas comparatistas recentes que dirigem o olhar para a produção da América Latina e requerem novas e específicas interpretações dos trânsitos e dos mecanismos de apropriação revelados no diálogo entre as manifestações culturais contemporâneas de diferentes localidades: “Os critérios até então inquestionáveis de originalidade e anterioridade são lançados por terra e o valor da contribuição latino-americana passa a residir exatamente na maneira como ela se apropria das formas


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literárias européias e transforma-as, conferindo-lhes novo viço.” (COUTINHO, 2003, p. 21). Assim, ao assumir o comentário do espectador, justificá-lo, contextualizá-lo e alçá-lo à condição de título da crônica, Xico Sá endossa a intervenção como expressão autêntica, sem que isso configure rejeição ao filme. Esse movimento do cronista guarda, portanto, pontos de contato com questões relevantes para as relações entre o comparatismo, a crônica e a mídia, além de ainda contribuir para o enfoque isolado de cada um desses elementos. A título de conclusão, passo à tentativa de estabelecer conexões mais claras entre esses três campos, através de breves comentários de outras crônicas do autor e de suas correlações com os textos já abordados. O traço afetivo que emerge das crônicas “Do que podemos aprender com King Kong e John Wayne”, “Da cantada como revolução permanente” e “Eita cabra ‘inzingente’” desponta também em textos como “Do Jornal Nacional do amor” e “A arte de pedir em namoro”. Nas duas últimas crônicas, a televisão e o cinema aparecem sob a forma de correlatos para um padrão de relacionamento amoroso valorizado pelo cronista. Em “Do Jornal Nacional do amor”, Xico Sáidentifica a felicidade no cotidiano da relação estável a dois com a experiência do relato das notícias do dia tal qual o formato do telejornal. Em “A arte de pedir em namoro”, sobressai a ambientação para um relacionamento afetivo pouco comum na contemporaneidade, mais identificada com a fluidez e com a instabilidade. O ambiente eleito é o cinema: “Os dedos dos dois se encontrando no fundo do saco das últimas pipocas...” (SÁ, p. 90). Essas associações reforçam a ideia de uma relação entre crônica e cultura midiática que não se faz somente através de afastamentos e divergências, embora se deva recordar que os excessos da vulgaridade não são tolerados, como nas alusões desfavoráveis a King Kong, ao quadro televisivo que exibe as lutas na banheira com gel e às canções “chicletosas” de Sullivan e Massadas. Além disso, percebe-se que a televisão e o cinema são fontes selecionadas para proporcionar o toque prosaico tão importante para a crônica escrita por Xico Sá e por outros cronistas, sejam eles contemporâneos, sejam de gerações anteriores.


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A crônica “Um homem invisível na multidão” revela, a partir do relato da experiência de distribuir panfletos na rua e do desprezo proveniente dessa atividade, a consciência das diferenças entre o homem comum e anônimo e as personalidades e situaçõesda cultura da midia. São evidenciadas ali, assim como em “V de veneno, V de Vanzolini e V de vingança” e em “Eita cabra ‘inzingente’”, as realidades particulares de um e outro, ainda que o cronista afirme que nem mesmo Rodrigo Santoro e Leonardo Di Caprio obteriam êxito na função de entregar panfletos na rua. O anonimato e o ostracismo desse homem invisível contrastam, porém, com o mundo de grande projeção e fantasiaproporcionado pela vida midiática. E é desse contraste que surgem as imagens das intervenções no cinema e da constatação de que, nos dias atuais, é o homem que pode estar sujeito a ter de ir às ruas para descobrir o paradeiro da mulher amada. As crônicas são, assim, transformadas em releituras das experiências oferecidas pela mídia. Esse caráter de releitura é o que define a importância da crônica “‘Eu te amo’ não faz mal à saúde”. O cronista elabora um texto-apologia da frase reproduzida no título para pôr em xeque o presente receoso e hesitante em termos de relações amorosas, reconhecido por ele como tempos de “amores-vinhetas” (SÁ, p. 69). Não falta sequer uma moral para encerrar a crônica: “mais vale um ‘eu te amo’ que entre por um ouvido e saia pelo outro do que um silêncio mortal de um homem que nunca se empolga e deixa a gazela achando que ‘eu te amo’ é coisa de filme americano” (SÁ, p. 69). O autor encampa a frase que pode até ter sofrido o desgaste de ter sido pronunciada tantas vezes em diversas manifestações da música popular, da televisão e do cinema, mas sua defesa representa a proposta de estabelecer a convivência com o desgaste provocado pela mídia. É nessa coexistência, amparada pela recomendação do reaproveitamento da frase, que podemos vislumbrar as aproximações e as tensões entre o discurso literário e o discurso midiático, sem deixar de recorrer à perspectiva comparatista.


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Outros Países das Maravilhas para Alice: novas perspectivas para a Literatura Comparada apresentadas a partir do estudo de caso de “Alice no País das Maravilhas”

Manaíra Aires Athayde* Paulo Silva Pereira** Resumo: O intuito deste ensaio é mostrar como Alice no País das Maravilhas, com os seus quase 150 anos, antecipa características da cultura pós-moderna ou digital. Tentaremos encontrar respostas para o fato de a obra de Lewis Carroll ser a mais explorada nos novos meios tecnológicos, de modo a comparar a migração da narrativa da literatura para o cinema, e do cinema para produtos new media, nomeadamente para o iPad, o Second Life e os games. Trata-se, porquanto, de questões fundamentais das Materialidades da Literatura, uma recente área de atuação da Literatura Comparada assente na relação da literatura com as novas mídias e nas mudanças tecnológicas que alteraram os regimes de representação da escrita e da leitura, pelo que vamos fazer um guia das esferas de investigação a partir de Alice. Palavras-Chave: Alice no País das Maravilhas; Materialidades da Literatura; cultura digital; plurimedialidade.

Doutoranda, Universidade de Coimbra (UC), bolsista CAPES. ** Professor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. Universidade de Coimbra. *

Abstract: The purpose of this article is to show how Alice in Wonderland, with its nearly 150 years, anticipates characteristics of postmodern or digital culture. We will try to find answers to the fact that the book of Lewis Carroll be further explored in the newsmedia, so as to compare the migration of the narrative of literature to film, and film to new media products, particularly for the iPad, Second Life and games. These are fundamental questions of Materialities of Literature, a recent area of activity of Comparative Literature based on the relationship between literature and new media and on the technological changes that have altered regimes of representation of writing and reading, so we’ll make a guide of the spheres of research from Alice. Keywords: Alice in Wonderland; Materialities of Literature; digital culture; multiple media.


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Ao abrir Alice no País das Maravilhas (1865), e a sua continuação Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá (1871),1 deparamo-nos com uma história diversa das que, monotonamente, os contos infantis nos habituaram, com os seus príncipes e princesas, fadas e duendes que povoam uma narrativa linear arrematada por um epílogo feliz. Interessa-nos aqui mostrar por que em Alice – escrita na plenitude da era vitoriana pelo professor de matemática Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), sob o pseudônimo de Lewis Carroll – existe essa diferença narrativa, e que justifica o nosso debruçamento sobre a história, e como esse conto de quase 150 anos permite instaurar novas discussões no campo de investigação da Literatura Comparada, a partir de uma das suas mais recentes áreas, as Materialidades da Literatura. De origem anglo-saxônica (como o é Alice2) e com primícias nos anos 1980, esta esfera do Comparatismo propõe uma nova dinâmica entre as Letras, a Comunicação e as Artes3. Está assente, sobretudo, nas mudanças das tecnologias de comunicação ocorridas nas últimas três décadas, que alteraram tanto os regimes de representação dos media como os regimes de representação baseados nos códigos da escrita e da leitura. Essas modificações resultaram num novo capítulo da teoria crítica sobre as materialidades da comunicação, com reflexos tanto na investigação das formas literárias passadas como das formas literárias atuais. Dentre as reflexões suscitadas, estão as trazidas pela estética da recepção, em que o foco é deslocado da leitura para o leitor e centrado na vivência do leitor junto à obra, em detrimento da assimilação de conteúdo e a introjeção de interpretações autorizadas.4 Acontece que Alice, apesar de datar de meados do século XIX, é o livro que apontamos como aquele que está na linha fronteiriça entre o paradigma pré e o paradigma pós-digital,5 possibilitando-nos não só trabalhar com as propriedades das Materialidades da Literatura em sua narrativa, como com a circulação dessa narrativa por diferentes mídias. Trata-se de uma história que permite ser atualizada por distintas gerações e possibilita o diálogo com textos literários de diferentes gêneros e épocas, bem como entre a literatura e outras artes e ciências, numa

Nos originais, Alice’s Adventures in Wonderland e Through the Looking-Glass and What Alice Found There, em que este é uma espécie de segundo volume da mesma obra. A maior parte das adaptações mistura cenas dos dois livros. Como consideramos que ambos estão intrinsecamente ligados, ao referirmo-nos no título deste ensaio a Alice no País das Maravilhas fica subtendido que também se trata de Através do Espelho e o que Alice Encontrou por lá (este, inclusive, abreviaremos para Através do Espelho). 2 A importância de ressalvar essa relação é que, sendo Charles Dodgson matemático e tendo ele incentivado com a sua obra a conjugação das ciências exatas e das ciências humanas e da linguagem, defendemos que Alice, assim, antecipa parte importante do campo de atuação das Materialidades da Literatura, com toda a sua natureza interdisciplinar, conforme explicaremos detalhadamente adiante. 3 No mundo lusófono, a área encontra programa pioneiro na Universidade de Coimbra, com um núcleo de investigação criado em 2010. 4 Aqui, coloca-se em questão a validade doclose reading, e os seus «moldes tradicionais», diante das exigências das novas mídias. Para investigadores como N. Katherine Hayles e Susan Schreibman, o close readingnão consegue mais lidar com a complexidade da literatura do século XXI, permanecendo ainda apenas porque assumiu um lugar proeminente como a essência da identidade disciplinar, constituindo a maior porção do capital cultural de que os estudos literários se socorrem paraprovar o seu valor à sociedade, a saber a própria caracterização do método de leitura, com atenção precisa e 1


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detalhada à retórica, ao estilo e à escolha da linguagem, análise de palavra a palavra nas técnicas linguísticas, apreciação e articulação do valor estético de um texto e capacidade de totalização. 5 «Digital» aqui não se refere somente ao mundo virtual em rede online, mas, sob o conceito de Manuel Portela, a toda uma estrutura que, independentemente do suporte, está atrelada à organização multilinear ou hipertextual, à interatividade, à intertextualidade e ao dinamismo. 6 Morton Cohen, em biografia sobre Charles Dodgson, afirma que os livros de Alice são os mais largamente traduzidos e comentados depois da Bíblia e de Shakespeare.

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perspectiva que valoriza a experiência do leitor. Aliás, essa intermedialidade em que Alice se circunscreve denota o próprio papel do Comparatismo, que tem sido redefinido em razão dos objetos literários rearticulados, das línguas e culturas postas em questão, da emergência de escritas várias e suportes que ultrapassam a escrita verbal e o livro impresso como modelo. O diálogo entre textos, culturas, tempo e espaços diversos se torna o instrumento dinamizador da relação suportes/sintaxes, em suas novas linhas inscritas pela literatura e pelo cinema, pelo vídeo e pela música, pelos discursos e pelas performances, que operam na dinâmica do comparativismo hoje. Das propriedades dessas atuais dinâmicas resultam novas características da produção literária, da relação entre autor e obra e da relação entre leitor e obra. Assim, como em Alice encontramos indícios primordiais dos anseios das Materialidades da Literatura, é nosso desígnio neste ensaio elucidar na narrativa de Carroll esses indicativos que antecipam características da cultura pós-moderna ou digital, além de alargar o campo de abrangência das Materialidades colocando em foco a cultura da convergência. Neste âmbito, tratar-se-á de ampliar o debate sobre as narrativas crossmidiáticas e as narrativas transmidiáticas, tentando encontrar respostas para o fato de Alice no País das Maravilhas ser o conto mais adaptado no mundo e o mais explorado nos novos meios tecnológicos,6 e comparando a migração da narrativa da literatura para o cinema, e do cinema para produtos new media, nomeadamente para o iPad, o Second Life e os games. Porém, mais do que descrever o percurso de Alice em todas essas redes, a grande perscruta que aqui se coloca é por que em Alice, com a sua já secular existência, encontramos uma pré-disposição para todos esses networks das Materialidades; e por que é Alice a narrativa que, dos dois séculos passados, permanece em tenaz ascenso neste novo cenário do século XXI. Para responder a essas perguntas, que culminam, em suma, na razão de Alice no País das Maravilhas ser diferente das outras histórias infantis, vamos colocar em diálogo os conceitos de narrativas crossmidiáticas, narrativas transmidiáticas e transdução, sugerindo que das novas experiências de leitura surgem


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o que vamos chamar de leituras transmidiáticas. Colocase, portanto, em voga não só o debate acerca da literatura fantástica ou nonsense, mas questões imprescindíveis para se refletir sobre este novo século na literatura infantil, um terreno que se torna cada vez mais fértil nos núcleos de investigação das Materialidades da Literatura. Se formos procurar em Alice a relação entre sua narrativa e o mundo enunciativo que hoje nela podemos reconhecer, encontramos nichos comparativos que transitam da caracterização social e do indivíduo na pósmodernidade à preocupação com a composição gráfica e a materialidade do livro impresso e aos elementos indiciadores de novas dinâmicas da narrativa, então inscritas na era digital. Os mundos a que Alice chega, aliás, depois de passar pela toca do coelho, em Alice no País das Maravilhas, ou pelo espelho, em Através do Espelho (vide a importância de haver uma espécie de canal de comunicação, que em analogia encontramos hoje enquanto aparelhos que nos “teletransportam” para o mundo digital), são prenunciativos do que a sociedade viria a se tornar. Não se trata de uma visão de oráculo, mas de entender profundamente as diretrizes sociais e as suas dinâmicas e perceber qual o caminho possível que delas resulta. Por isso, aqui evocamos a pós-modernidade como aquela descrita por Zygmunt Bauman (1998) – não como uma ruptura com a modernidade, como defende François Lyotard, mas como um prolongamento intensificado dela, como tão bem soube reconhecer antecipadamente, numa lógica visionária, Charles Dodgson. As passagens entre os dois mundos evocam “a transição do indivíduo austero ao indivíduo religado, participante do fluxo de informações do mundo contemporâneo” (SILVA, 2000, p. 163), numa correlação entre o que hoje chamamos de ciberespaço e o mundo dos sonhos, ambos universos paralelos onde tudo parece ser possível. Aliás, essa noção de um “mundo de possibilidades” – ou como diria Alice, “de muiticidade” –, está atrelada, no enredo, à crise de identidade, que acompanhará todo o percurso da protagonista, que de início tenta definir quem é pelo que os outros não são.


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“Devo ter-me transformado mesmo em Mabel, e terei de viver naquela casa tão pequena, sem brinquedos por perto e, oh, meu Deus, com tantas lições para estudar! Não, já tomei uma decisão: se eu for Mabel, vou ficar por aqui mesmo! De nada vai servir que eles ponham a cabeça e digam aqui para baixo: ‘Volte, querida!’ Eu olharei para cima e direi somente: ‘Quem sou eu, então? Respondam-me primeiro, e então, se eu gostar de ser essa pessoa, voltarei; se não, ficarei aqui embaixo até que eu seja outra’” (CARROLL, 2000, p. 33).

Em Através do Espelho, no quinto capítulo, temos uma curiosa passagem: «“Gostaria… de conseguir ficar contente!” a Rainha disse. “Só nunca lembro a regra. Você deve ser muito feliz vivendo neste bosque e ficando contente quando lhe apraz!”. “Só que isto é tão solitário!”, disse Alice melancólica; e à ideia de sua solidão, duas grossas lágrimas lhe rolaram pela face” (CARROLL, 2009, p. 111). Podemos perceber que, ao longo da jornada, Alice não desenvolve nenhum relacionamento sólido. A menina encontra vários personagens, mas nenhum deles faz com que ela realmente se sinta confortável. É a solidão que Bauman (1998) caracteriza como resultado de “relacionamentos líquidos”, com a fragilização dos laços humanos num mundo onde as pessoas não querem mais se comprometer. 7

Hoje, no ciberespaço, há a possibilidade de se criar desde diferentes perfis identitários em redes sociais, numa projeção do indivíduo sobre a maneira como quer que o outro o veja, até vários avatares em ambientes virtuais, assumindo mudanças radicais de personalidade. O que é sintomático, aliás, numa cultura marcada pela crise de identidade, que, com toda a sua estranheza e solidão7 antecipadas por Caroll, acompanha sempre o enredo e vai justificar a imersão de Alice em novos mundos, num universo de virtualizações: mundos dentro de mundos, histórias dentro de histórias (cada capítulo é uma história dentro da história e, no próprio enredo, temos personagens sempre a contar uns aos outros histórias, como ocorre no encontro com a Lebre de Março ou com os gêmeos Tweedledum e Tweedledee). [muitos diálogos] representam para Alice choques de consciência nas aventuras, pois enquanto a menina insiste numa linguagem com função socializante, seus interlocutores trabalham com “a arbitrariedade do emissor dos signos”, numa atitude bem mais “egocêntrica”, demonstrando muitas vezes hostilidade e quase não escutando Alice: nessa brincadeira de seguir o coelho ou de conferir o que existe por trás do espelho, Alice perdeu sua identidade interna, estilhaçando as referências de data, corpo, nome próprio, local e a linguagem socializadora. A oscilação física, as novas regras semânticas de tempo e o estranhamento da linguagem confundem a perspectiva da protagonista, que nem sempre se reconhece como criança através do ponto de vista do outro (GOLIN apud SPALDING, 2012, p. 126).


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David Harvey (1996) concebe essa fragmentação do sujeito como um processo sem fim, de rupturas e fragmentações cíclicas no interior do indivíduo, enquanto para Stuart Hall (2005), a concepção do sujeito pósmoderno não é simplesmente a sua desagregação, mas o seu deslocamento. Ernest Laclau (1990), por sua vez, descreve uma estrutura deslocada como aquela em que o núcleo é substituído por uma pluralidade de centros de poder. A sociedade pós-moderna, assim, não tem um centro, um princípio articulador ou organizador desenvolvido de acordo com o desdobramento de uma única causa ou lei. Não é um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma. Ela está constantemente sendo descentrada ou deslocada por forças fora de si. Marco Silva (2000), com a sua Sala de Aula Interativa, delineia traços dessa dissolução do sujeito desde os primórdios da modernidade, seja em poemas de Baudelaire ou na novela Nova Heloísa, de Rosseau. Afirma que a diferença entre o sujeito moderno, colocando na quota a Alice, e o sujeito pós-moderno é que aquele tem consciência da dissolução que experimenta e, assim, se inquieta, enquanto este não se sente propriamente aturdido, mas, sobretudo, “quer estar livre para fazer de si o que quiser, para fazer por si mesmo, e nenhuma autoridade ou referência transcendente pode dar-lhe lei” (SILVA, 2000, p. 163). É, pois, plausível a distinção proposta por Silva, sobretudo porque o sujeito moderno é o sujeito de transição, mas há objeção em assentir que Alice pertença tão convictamente ao mote que caracteriza enquanto sujeito moderno. Uma das cenas que ilustra bem essa “liberdade pósmoderna do indivíduo” em Alice no País das Maravilhas está no capítulo IX, quando Alice reencontra a Duquesa e, ao ouvir várias histórias cheias de fins moralizantes (uma paródia às histórias infantis em voga na época), a menina discute com a soberana e reivindica o seu direito de pensar. A passagem também mostra a recusa a narrativas totalizantes, já que o que importa para esse sujeito fragmentado não são os objetivos, as metas, os fins, mas os processos, os nichos, as conjugações.


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Se por um lado Alice representa o sujeito fragmentado em sua tentativa de individuação, de busca pela originalidade e pela propriedade de pensamento, por outro quem personifica a dissolução do sujeito são os gêmeos Tweedledum e Tweedledee (personagens inspirados numa canção de ninar inglesa), tornando-se evidente em Através do Espelho a alusão ao processo de uniformização do pensamento, num sistema social homogeneizante, em que as pessoas são condicionadas a pensar todas da mesma forma. Os dois personagens, no entanto, também assumem o papel da estranheza, no processo que Bauman (1998) designa como “criação e anulação de estranhos”. Nesta perspectiva, na sociedade moderna, e sob a égide do estado moderno, a busca por acabar com o estranho, com o diferente foi munida de uma “destruição criativa”, que demolia construindo, que mutilava corrigindo (vide a história A Morsa e o Carpinteiro que os gêmeos contam a Alice) e que, assim, conseguia, inversamente ao planejado junto a todo esforço de constituição de ordem em curso, resultar numa nova maneira de o próprio sistema criar os seus estranhos. Quando comparamos o capítulo III de Alice no País das Maravilhas, no qual a menina encontra um intrigante grupo de animais, que vê às margens do rio de lágrimas (“um pato, um Dodô, um Papagaio e uma Aguieta, além de várias outras criaturas curiosas”), com o capítulo III de Através do Espelho, em que Alice encontra aquilo que seria uma espécie de Arca de Noé em forma de locomotiva (“com diversos seres como cavalos e insetos, além de um curioso mosquito com cabeça de cavalo”), percebemos que no segundo volume da obra a estranheza é prontamente assumida, sobretudo com os “curiosos” animais que não só são avocados como antropomórficos, como passam a ser assumidos em estranhas mutações. Em Alice no País das Maravilhas a estranheza ainda está centrada sobretudono atrito que Alice detecta entre o mundo do qual vem e o mundo em que se encontra, isto é, a estranheza é sintomizada através da descrição das expressões de Alice, que “vive estranhando tudo por ali” (CARROL, 2000, p. 28). Ainda na intrigante passagem em que a menina


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entra na locomotiva é importante ressalvar a menção explícita ao progresso vivido pela sociedade vitoriana, com suas máquinas a vapor. Não esqueçamos que a motorização, em plena emergência quando a narrativa foi escrita, impôs um valor mensurável à velocidade e modificou profundamente a relação do homem com a máquina e do homem com o tempo. Na própria história de Carroll temos essa sociedade “de mudança constante, rápida e permanente” (HALL, 2005, p. 14) anunciada não só nas situações suscitadas, mas na construção da própria narrativa, com um ritmo célere de imersão sobre imersão, alternância constante entre cenas, capítulos curtos e preponderância da ação sobre a descrição, “construindo uma obra veloz, rápida, alinhada com os valores do século seguinte à sua publicação” (SPALDING, 2012, p. 120). É que em Alice começamos a perceber as transformações não só do espaço e do tempo, mas da relação entre eles, pois uma das principais diferenças entre a modernidade e a pós-modernidade é que nesta o espaço se torna determinante sobre o tempo. Como, aliás, fica evidente em Alice, onde a passagem do tempo é dependente do espaço em que se está a explorar (entra aqui a ideia de relatividade do tempo, que mudou o pensamento do homem do século XX e que explica, por exemplo, por que quando estamos no mundo da web “não vemos o tempo passar”). Além disso, a curiosidade da menina está atrelada a um estado de espírito repleto de ansiedades, como o é o do homem pós-moderno, uma vez que a ansiedade é sustentada pelo mundo de celeridades, num processo de retroalimentação. Há ainda o que Giddens (1990) chama de “desalojamento do sistema social na modernidade tardia”, quer dizer, a extração das relações dos contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de escalas indefinidas de espaço-tempo. Nas descontinuidades, os modos de vida foram colocados em ação de uma maneira inédita, tanto em extensão, em que as transformações sociais serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo, quanto em intensidade, em que essas transformações alteraram algumas das características mais íntimas e pessoais da nossa existência cotidiana (como o foi o País das Maravilhas para Alice).


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Mais uma vez temos, assim, em Através do Espelho, a retomada, só que agora temática, de uma referência que começou a ser feita em Alice no País das Maravilhas, mas de uma maneira mais camuflada, sob a égide simbólica. A saber que o Coelho Branco, sempre a olhar para o relógio, sempre com pressa, pode ser lido como ícone da modernidade, como Carroll perspicazmente nos dá pistas na discussão no Chá Maluco, embora a referência à modernidade seja mesmo explícita somente em Através do Espelho, na referida passagem em que Alice, querendo chegar à terceira casa no jogo de xadrez em que ela é um dos peões, consegue pegar o trem mencionado pela Rainha. Os passageiros, em coro, dizem para Alice: “Não o faça esperar, criança! Ora, o tempo dele vale mil libras o minuto!” e a menina retruca: “Melhor não dizer nada. A fala vale mil libras a palavra!” (CARROL, 2009, p. 191). Por conseguinte, a própria busca de Alice, nessa segunda parte da obra, torna-se clara: em Alice no País das Maravilhas, a menina simplesmente explora os mundos que lhe insurgem, sem um propósito, por curiosidade apenas (como alguém que se abeira do “futuro”, com a desconfiança prudente e a curiosidade necessária); já em Através do Espelho, a menina tem um objetivo declarado, que é tornar-se Rainha. Ora, aqui temos uma alusão à maneira como as pessoas são excitadas à competição, a uma corrida cujo objetivo é estar no topo, com a promessa da mobilidade social que a modernidade trouxe, e que a pós-modernidade acentuou. Não obstante, tão logo a Rainha Vermelha informa que, quando chegar à oitava casa, Alice será uma rainha, a menina começa a correr e descobre que, no mundo do espelho, se corre corre para chegar a lugar algum. Como nas estratificações sociais, em que a promessa da corrida e a possibilidade de ascensão servem para movimentar o sistema, mas a verdade é que a maior parte das pessoas, embora não saiba, está a correr sem grandes possibilidades de mudar a sua posição no jogo, permanecendo sempre no lugar em que está. A possibilidade de ascensão, por sua vez, é a grande quimera que move a engrenagem do sistema social – o sonho, a esperança amalgamada à expectativa de um dia alcançar o que se deseja, muitas vezes em


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necessidades criadas pelo próprio meio. Ou, como diz Cida Golin, “quando [Alice] alcança suas metas, aquele mundo que ela tentou entender, mas deixou algumas perguntas sem respostas, não serve mais. A protagonista, então, acorda” (2002, p. 52), num bom exemplo do que acontece quando algum fragmento de desejo é concretizado nessa liquidez assentada da cultura pós-moderna. A mesma ideia está presente em Alice no País das Maravilhas, na Corrida do Dodô, uma corrida em círculos em que não há vencedores, e no Jogo de Croquet, jogado com objetos feitos de bichos de verdade e regras indefinidas ou, “pelo menos, se tem, ninguém as segue” (CARROLL, 2009, p. 100), nas palavras de Alice. Passagem esta, aliás, que pode ser associada ao afrouxamento das regras na sociedade pós-moderna como resultado da crise de representação, em que a destruição dos referenciais deu lugar à entropia, em que todos os discursos são inclusivos e sem poder totalizador (como a pós-modernidade tem lugar depois da Segunda Guerra, este é um traço que surge em antítese ao totalitarismo). O resultado é que não há mais padrões limitados para representar a realidade, e o pósmoderno, pelo seu caráter policultural, sua multiplicidade, sua hiperinformação, serve à constituição de uma rede inclusiva de consumidores, como veremos mais à frente. Tanto na Corrida do Dodô como no Jogo de Croquet, Alice descobrirá que não há um vencedor, pois o importante no País das Maravilhas não é vencer nem chegar a algum lugar, mas explorar o meio. Este também é o princípio da web, que não sustenta desígnios nem pontos de chegadas porque a contingência do meio é navegar. “A propósito, é interessante que apenas ao deixar-se levar pela água de seu choro, nadando, ou navegando, para usarmos um termo da era digital, foi que Alice encontrou a entrada para aquele País das Maravilhas, um verdadeiro labirinto, como aos poucos o leitor descobrirá” (SPALDING, 2012, p. 119). O labirinto, aliás, pode ser usado como uma metáfora do ciberespaço porque convida à exploração, diante do traçado complexo de entrecruzamentos e de caminhos, alguns sem saída e outros em bifurcações contínuas. “Tal como num labirinto, o visitante de


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uma obra hipermidiática é convidado a explorar a teia hipertextual que a constitui. […] O mais interessante é descobrir os mistérios que se escondem nos seus detalhes mais discretos e a investigação infinita de suas possibilidades, e não chegar a um fim” (SILVA, 2007, p. 151). Além disso, a ideia de explorar o meio está associada ao universo labiríntico porque, segundo Italo Calvino, o labirinto “evoca a imagem de um mundo em que é fácil perder-se, desorientar-se, e o exercício de reencontrar a orientação adquire um valor particular, quase de um adestramento para a sobrevivência” (CALVINO, 2003, p. 223). Em várias passagens de Alice no País das Maravilhas a ideia de um mundo labiríntico é reforçada, como no capítulo IV, que inicia com uma corrida da menina para uma direção qualquer, ou no capítulo VI, quando Alice se depara com o famoso Gato de Cheshire e, ao revelar que não sabe exatamente para onde ir, o Gato lembra que não faz muita diferença o caminho que irá escolher. Toda orientação pressupõe desorientação. Só quem teve a experiência de estar perdido pode libertar-se dessa perturbação. Mas esses jogos de orientação são, por sua vez, jogos de desorientação. É nisto que está o seu fascínio e o seu risco. O labirinto é feito para se perder e desorientar quem nele se introduza. Mas o labirinto também constitui um desafio para o visitante, para reconstruir o seu plano e dissolver o seu poder. Se o conseguir, destruirá o labirinto; não existe labirinto para quem o atravessou (ENZENSBERGER apud CALVINO, 2003, p. 223).

Além de uma narrativa labiríntica, no suscitado espaço de exploração, temos também em Alice “a ideia de uma enciclopédia aberta, adjetivo que certamente contradiz o substantivo enciclopédia, etimologicamente nascido da pretensão de exaurir o conhecimento do mundo encerrando-o num círculo” (CALVINO, 1990, p. 131). Essa forma primordial que, para Italo Calvino, nasce nos grandes romances do século XX, conseguimos antecipadamente encontrar nas histórias de Alice no País das Maravilhas e de Através do Espelho. Tanto é que os textos dos dois volumes da obra são constituídos por uma


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espécie de mosaico entre os diálogos das personagens e a fala do narrador, na dinâmica que podemos classificar de “multiplicidade”, que se intensifica na pós-modernidade a partir de um prolongamento do presente. O presente, porquanto, acumula diferentes mundos passados, e os seus elementos, numa esfera de simultaneidade, que então substitui a temporalidade, a causalidade ou a sequencialidade num novo espaço, onde em Alice a prosódia do tempo é minada através de irrupções constantes e de uma pulverização das regras semânticas. O novo espaço, por sua vez, não é mais definido pela linearidade de relações causais ou sequenciais, mas firmado por relações simultâneas que preterem a posição teleológica pela contingência de mundo. Eis, então, o tempo plurilinear sutilmente presente em Alice, que deixa de ser concebido como uma sucessão de períodos para se orientar como um presente que, fixo em si enquanto se move adiante, é atingido por várias linhas de eventos com sentidos e direções diferentes. “No momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (CALVINO, 1990, p. 127). E é por ser essa “enciclopédia aberta” que Alice nos revela, por exemplo, a importância do livro impresso na sociedade vitoriana, período largamente reconhecido pela expansão do ensino e o aumento de letrados na classe média inglesa. Alice no País das Maravilhas é iniciado, inclusive, com a irmã de Alice a ler um livro e, não tarda, percebemos que a própria Alice é também uma leitora atenta, que se orgulha em memorizar poemas, equações e canções. Aliás, uma leitora de livros infantis pedagogizantes, como mostra a passagem em que só bebe o líquido que encontrou numa garrafa, logo após cair na toca do coelho, quando lê e não vê escrito “veneno”, “pois lera muitas historinhas divertidas sobre crianças que tinham ficado queimadas e sido comidas por animais selvagens e outras coisas desagradáveis, tudo porque não se lembravam das regrinhas simples” (CARROLL, 2000, p. 24). Neste mesmo quarto capítulo, ao Alice se chatear


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por ficar “crescendo e diminuindo o tempo todo”, encontramos um outro relevante traço da obra de Carroll: a autoconsciência da escrita, que vai ser intensificada em Através do Espelho. Eu quase desejaria não ter entrado na toca do coelho... apesar disso... apesar disso... é bem curioso, sabe, este tipo de vida! Eu queria saber o que foi que aconteceu comigo. Quando eu lia contos de fadas, imaginava que esse tipo de coisa nunca acontecia, mas, agora, eis-me no meio de uma história dessas! Deve ter algum livro escrito sobre mim, deve ter! E, quando eu crescer, vou escrever um... Mas eu já cresci”, acrescentou num tom lastimoso (CARROLL, 2000, p. 51).

Pois que, em Através do Espelho, fica ainda mais visível a relevância dada ao registro impresso e à cultura letrada da Inglaterra vitoriana (o que depois tornar-se-á pródigo de toda a modernidade). No início da trama, por exemplo, logo no primeiro capítulo, Alice entra no mundo do espelho e, ainda com o tamanho do lugar de onde veio, depara-se com o Rei Vermelho e segura-o com a mão, o Rei se queixa à Rainha do “horror daquele momento” (CARROLL, 2009, p. 28) e ela sugere-o que faça uma anotação. Enquanto ele registra sua queixa num bloco de notas que carrega no bolso, Alice folheia um livro, que primeiro pensa estar escrito noutra língua e logo depois descobre que se trata de um “livro do espelho”. O que temos, diante dessa “brincadeira”, é uma espécie de primícias da poesia concreta, que ganhou pujança na segunda década do século XX. Em Alice no País das Maravilhas, no capítulo III, também encontramos uma passagem similar quando o Rato conta a Alice uma longa “tale” (um dos muitos trocadilhos do livro, uma vez que “tale”, em inglês, tanto pode significar “história, conto” como “cauda, rabo”) e a história, então, é escrita sob a forma de um poema com o formato de uma cauda.


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(Fig. 1) Versos do «livro do espelho». CARROLL, 1865, p. 18, adaptação do original. (Fig. 2) «Tale» desenhada por Carroll. Versão disponível em<http://www.gutenberg.org/ files/19002/19002-h/19002-h.htm>

Esses jogos de linguagem, em que a construção do poema se assemelha a algo relacionado a seu tema, são importantes em Alice porque revelam a preeminência dada à visualidade e à materialidade do livro, o uso consciente que Lewis Carroll faz do suporte impresso explorando veemente os seus recursos gráficos – o que um século mais tarde veio a se tornar de suma importância para o Concretismo e, depois, para a literatura infanto-juvenil e para a literatura digital. Quando, logo na primeira página de Alice no País das Maravilhas, Alice se questiona “para que serve um livro sem figuras nem diálogos?” (CARROLL, 2000, p. 19), não falava de ilustrações à serviço do texto, no conceito tradicional de adornar o texto, mas já nos levava a pensar na natureza relacional dos elementos de uma página, na unidade que é possível se obter com eles. Trata-se, portanto, do uso do espaço gráfico como agente estrutural; espaço, aliás, que se converte num objeto em e por si. Quer dizer, a exploração espacial de significantes leva à natureza produtiva do campo de significados que a lauda oferece, enquanto o espaço articula nas páginas funções relativas e dinâmicas de partículas elementares gráficas, em que há um protocolo: o espaço gráfico está à espera de ser ativado pelo leitor.


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Em várias passagens encontramos momentos em que as indicações gráficas são nevrálgicas para a narrativa. Nos primeiros três capítulos de Alice no País das Maravilhas, asteriscos estão dispostos em três linhas para indicar as transformações de tamanho por que passa Alice cada vez que come ou bebe algo. Também é recorrente o uso do itálico para distinguir palavras-chave nos diálogos, como quando a lagarta pergunta para Alice “Who are you?” (you simboliza a crise de identidade pela qual atravessa a protagonista), ou o uso de letras maiúsculas, como em “ORANGE MARMALADE”, no primeiro capítulo. Os recursos gráficos também se tornam importantes para assinalar aquilo que podemos considerar como os primórdios da noção de hipertextualidade, como no capítulo VI, em que consta “Se você não souber o que é um grifo, olhe a ilustração na página 111” (CARROLL, 2009, p. 109), ou no capítulo XI, em que Alice está assistindo a um julgamento e, na cena, Carroll escreve a seguinte observação endereçada ao leitor: “o juiz era o Rei; e, como usava a coroa por cima da peruca (olhe antes do sumário se quiser saber como fazia), não parecia muito à vontade” (CARROLL, 2009, p. 128, itálico nosso). Não obstante, em Através do Espelho, encontramos ainda mais acentuado o emprego dos recursos gráficos, a exemplo da redução da fonte e do uso do itálico, no terceiro capítulo, para sinalizar a fala sussurrada, o “fiozinho de voz” com que fala o inseto perto do ouvido de Alice. Esse aumento de consciência sobre a manipulação do material em que o texto é escrito e publicado, colocando o suporte a serviço da componente textual, parece justificar, ao se comparar os dois volumes da obra, “o ganho estético em sofisticação e a perda estética em exuberância” (2002, p. 744), nas palavras de Harold Bloom. Alice no País das Maravilhas é uma espécie de “claro movimento abrupto” que já não é mais possível em Através do Espelho. Quer dizer, ao compararmos os dois livros, observamos que se trata da mesma história, só que contada (sob a forma de justaposição) com uma consciência maior sobre os elementos da narrativa e sobre a integração do texto ao suporte, porém com um frescor menor de inovação, sendo ele somente possível com o primeiro impacto, a primeira criação.


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Nesse “ganho estético em sofisticação”, está a consolidação da ideia de jogo, presente na tessitura da narrativa (a ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases), e a sua consequente complexização. Se em Alice no País das Maravilhas a composição da história é elaborada em ritmo de jogo, para além de todas as referências que surgem, inclusive com as cartas de baralho, em Através do Espelho, o jogo é explícito na própria elaboração temática, uma vez que Alice, ao atravessar o espelho, vai parar num jogo de xadrez, em que ela se torna uma das peças. “Alice é uma peça do jogo do narrador e também assume uma posição de jogador. A menina multiplica-se como personagem de dois contos, o da sua experiência onírica e o do narrador. Alice sonha, mas também é imagem do sonho do outro” (GOLIN apud SPALDING, 2012, p. 145). Ou seja, se em Alice no País das Maravilhas, nós temos mundos dentro de mundos, histórias dentro de histórias, em Através do Espelho, o que há é um desdobramento: o jogo dentro do jogo, a ficção dentro da ficção, o sonho dentro do sonho. Acontece que o jogo é hoje uma das principais componentes da cultura pós-moderna, inclusive partilhando várias características com a literatura digital, como uma organização plurilinear e a capacidade de permitir que o leitor, até então passivo, se torne utilizador, participante da trama numa atmosfera imersiva. As formas mais complexas de jogo, para Johan Huizinga em seu Homo Ludens, possuem “os mais nobres dons de percepção estética” (2004, p. 10), a ressalvar que a linguagem poética teria nascido enquanto jogo e que, mesmo tendo um caráter sacro, na Antiguidade era simultaneamente “ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria, adivinhação, profecia e competição” (p.134). É essa antiga raiz, porquanto, que justifica que a cultura surja “sob a forma de jogo, e é através dele que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo” (p. 53). O jogo, por sua vez, traz a discussão sobre o simulacro. Jean Baudrillard (1991), em Simulacros e


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Simulações, afirma que a sociedade pós-moderna substituiu a realidade e os significados por símbolos e signos, tornando a experiência humana uma simulação da realidade. A simulação, então, seria a imitação de uma operação ou processo existente no mundo real e estaria ligada à produção dos simulacros, cópias que representam elementos que nunca existiram ou que não possuem mais o seu equivalente na realidade – como o País das Maravilhas, como o ciberespaço. Os simulacros, portanto, não são meramente mediações da realidade, nem mesmo mediações falseadoras da realidade; o que fazem, sob a perspectiva de Baudrillard, é ocultar que a realidade é irrelevante para a atual compreensão de nossas vidas. Ou, para utilizarmos a ideia de Umberto Eco, em Sobre os Espelhos, “o universo catóptrico é uma realidade capaz de dar a impressão da virtualidade e o universo semiósico é uma virtualidade capaz de dar a impressão da realidade” (1989, p. 44), entendendo por catóptrico o efeito de refletir e tornar aparentemente maiores os objetos sem, no entanto, modificá-los, e semiósico, ao contrário do mimético, o plano cujos referentes estão voltados para a performance, o que faz com que os seus significados sejam consequência de ações sociais e determinem o autoconhecimento do indivíduo e suas interpretações sobre a sociedade. O que acontece é que o mundo icônico de Alice no País das Maravilhas é definitivamente assumido enquanto universo simbólico em Através do Espelho, onde toma forma manifesta a virtualização e o simulacro através do jogo. Observa-se, por exemplo, que a própria toca do coelho, enquanto canal de passagem, é substituída por um espelho, que possui diversas apreensões culturais e alegóricas (vide a importância que ganha aqui o lago que materializa o reflexo de objetos, no capítulo cinco). Para Umberto Eco, “a magia dos espelhos consiste no fato de que a sua extensividade-intrusividade não só nos permite ver melhor o mundo mas também vermo-nos a nós próprios tal como nos vêem os outros; trata-se de uma experiência única” (ECO, 1989, p. 20). A imagem especular dupla que exibe características de unicidade explica, segundo Eco, por que “os espelhos têm inspirado tanta literatura”. Além disso, se o universo onde Alice perde e


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reconstrói a sua identidade é um mundo nonsense, não podemos deixar de descartar a ideia do espelho deformante, que pode ser visto como “uma prótese com funções alucinatórias”. Afinal, se tomarmos substâncias alucinogénias e não soubermos que estamos drogados, acreditaremos nos nossos órgãos do sentido porque nos habituamos a confiar neles, mas se o soubermos, na medida que ainda conseguirmos controlar as nossas reações, vamos nos esforçar para interpretar e traduzir os dados sensoriais e, assim, reconstruir percepções corretas da realidade (ou melhor, análogas às da maioria dos seres humanos). “O mesmo acontece com o espelho deformante. Se não soubermos nem que é espelho nem que é deformante, encontrar-nos-emos numa situação de normal engano perceptivo” (ECO, 1989, p. 31). O que parece é que Carroll se utiliza propositadamente do “engano perceptivo” para fazer com que nesse mundo nonsense se enxergue mais longe: quer a sua diegese prenunciadora, quer os seus personagens. Alice, por exemplo, encontra-se totalmente cega quanto ao seu futuro mais próximo, mas é extremamente atenta às “mensagens” que recebe num deliberado presente veloz. Todas essas questões, contudo, estão atreladas a discussões sobre a realidade, em que a passagem para o “simulacro” em Alice dá-se sempre pelo sono e, consequentemente, pelo mundo dos sonhos. No início de Alice no País das Maravilhas temos uma sutil e reveladora correlação, quando o “Caindo, caindo, caindo” (a repetição do verbo parece um mantra ou uma evocação da hipnose para que o indivíduo “durma”), durante a queda da menina na toca do coelho, é associado algumas alíneas depois ao “E aqui Alice começou a ficar com sono” (CARROLL, 2000, p. 21). O desfecho do livro não é menos revelador, com um fim que mais parece um sonho em cima de outro sonho: “[Alice] continuou ali sentada, com os olhos fechados, quase acreditando estar no País das Maravilhas, mas sabendo que bastaria abrir de novo os olhos e tudo voltaria à prosaica realidade” (CARROLL, 2000, p. 152). Em Através do Espelho a discussão se torna conspícua, como aclara o nome dos dois últimos capítulos, “Despertar”


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e “Quem sonhou”. Neste capítulo XII, inclusive, há a curiosa passagem em que os gêmeos Tweedledum e Tweedledee dizem a Alice que o Rei Vermelho, que ronca a ponto de todos ouvirem, é que está sonhando com Alice, e não a menina com o Rei Vermelho e o País das Maravilhas, como ela insiste. “Bem, não adianta você falar sobre acordá-lo”, disse Tweedledum, “quando não passa de uma das coisas do sonho dele. Você sabe muito bem que não é real.” “Eu sou real!”, disse Alice e começou a chorar. “Não vai ficar nem um pingo mais real chorando”, observou Tweedledee. “Não há motivo para choro.” (CARROL, 2009, p. 214).

Primeiro, é preciso dizer que as investigações sobre a mente e seu funcionamento (e aqui entram os sonhos), bem como os ensejos para criar um sistema teórico sobre o comportamento humano, estavam em voga na altura em que Charles Dodgson escreveu Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho (não é à toa que a psicanálise é fruto do final do século XIX). E também é preciso ressalvar a maestria do escritor em antecipar discussões dessa estirpe em sua obra (vide que A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, só foi lançado em 1900; além disso, como segundo Golin “os choques de consciência, nas aventuras de Alice, dão-se através do diálogo” (2002, p. 51), propomos aqui uma alusão à psicanálise), envolvendo facções associadas ao sonho, à fantasia, à alucinação, à ansiedade e ao que hoje chamamos de inconsciente. Lembremos, ainda, que Charles Dodgson era um matemático cartesiano e que a leitura cartesiana do século XIX estava muito próxima à ideia de que a realidade é uma vida sonhada, projetada pela mente (“penso, logo existo”). Interseccionando esses vetores, temos um escritor que consegue, ainda no século XIX, de maneira ímpar, atualizar a confluência das ciências exatas e das ciências humanas e da linguagem, o que veio a ser o pleito de atuação das Materialidades da Literatura mais de um século depois.


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Um seu professor na altura, Mr. Tate, afirmava coincidirem nele [Charles Dodgson] duas tendências opostas: um rigor enorme no esclarecimento dos problemas matemáticos, a par de uma exigência de soluções exaustas e claras e, por outro lado, uma total fantasia com as palavras, desarticulando a gramática, alterando os tempos dos verbos e desfazendo a semântica (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 23).

Um terceiro fator relevante é que Charles Dodgson foi criado no cerne da Igreja Cristã, numa família rigorosamente puritana, e deu continuidade aos estudos na medieval Christ Church College (depois transformada na Universidade de Oxford), o que potenciou a sua educação voltada para um cristianismo alvitre da escolástica medieva, onde ocorreram as primeiras ligações do trivium ao quadrivium, manifestadas a partir da relação entre as palavras e o ipsum,8 e onde se tornaram frequentes os debates sobre os chamados “universais de Aristóteles” e a problemática das ideias gerais, envolvendo o realismo e o nominalismo. É essa discussão metafísica, afinal, que Carroll retoma no excerto, em que os irmãos Tweedle defendem a posição realista, e o universo da existência material, e Alice adota a visão nominalista, com o universo da existência conceitual. Para os realistas, as ideias universais existiriam por si mesmas, pois entre o universo das coisas e o universo dos nomes haveria uma analogia tal que quanto mais universal fosse um termo gramatical, maior seria o seu grau de participação na perfeição original da ideia. Assim, o universal brancura seria mais perfeito do que qualquer coisa branca existente, por exemplo. Já o nominalismo sustentava que os termos universais não existiriam em si mesmos, seriam apenas palavras sem uma existência real. Para os nominalistas, o que existe são seres singulares e o universal não passa, portanto, de uma convenção (cf. COTRIM, 2004, pp. 122-125). Essa epistemologia acabou por construir a premissa cultural, denominada realismo simbólico, que está patente nas discussões atuais sobre virtualização e simulacro. Segundo essa perspectiva moderadora, cada objeto que constitui o mundo tem um sentido inerente e quanto mais universal é o conceito ou o nome, maior o seu grau

Ipsum, em latim, corresponde a todos os seres e coisas do mundo. A análise dos seres e coisas do mundo, por sua vez, cabia ao quadriviume suas quatro disciplinas – aritmética, geometria, astronomia e música – ensinadas nas universidades medievais. A educação era iniciada com o estudo da linguagem, o trivium, que compreendia gramática, lógica e retórica. Todo o percurso educativo, embora baseado no sistema de ensino romano, estava submetido à teologia (cf. COTRIM, 2004, p. 123). 8


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de apreensão nas coisas individuais. Ou quanto mais bem articulada a construção dos singulares, maiores as possibilidades de torná-los universais. A consequência disso é que numa sociedade cada vez mais materialista e de fulgurantes quebras cartesianas, paradoxalmente o corpo é considerado dispensável e a mente é que define o ser humano numa “instauração generalizada da vontade ou desejo de virtualidade por parte da espécie humana” (RÜDIGER, 2003, p. 70). O que está sempre em discussão, na verdade, é o conceito de realidade. Quando um jovem se exalta, teme e vibra diante de um game, por exemplo, seus sentimentos são absolutamente reais, mesmo que o jogo em si não passe de simulação ou mesmo simulacro. É como dirá uma das Rainhas para Alice no nono capítulo de Através do Espelho: “se o cachorro desaparecesse, a fúria restaria!” (SPALDING, 2012, p. 151).

A virtualização e o simulacro, problematizados em Alice através do sonho, também estão associados à questão da autoria e da posse, cerne de muitos debates atuais sobre o ciberespaço e as suas propriedades que facultam a reprodução e a apropriação. Em passagem do capítulo VIII, de Através do Espelho, Alice pensa ter sonhado com o Leão e o Unicórnio e, ao acordar e perceber o enorme prato de bolo aos seus pés, cogita que todos sejam parte de um mesmo sonho e diz: “Só espero que o sonho seja meu, e não do Rei Vermelho! Não gosto de pertencer ao sonho de outra pessoa” (2009, p. 268). No mesmo capítulo, o Cavaleiro assume a autoria de uma canção e, tão logo põe-se a cantar, Alice percebe “que não é invenção dele” (CARROL, 2009, p. 282) e, baixinho, corrige a letra. No entanto, o que o narrador diz que vai ficar “nítido” na lembrança da menina é o que ela sentiu naquele momento, diante dos meigos olhos azuis e o sorriso gentil do Cavaleiro, com a luz do poente cintilando através dele e o cavalo andando calmamente em volta (cf. CARROL, 2009, p. 257). Deixa de ser relevante, assim, a autoria da melodia, pois o que passa a interessar é o efeito causado pelo que Gumbrecht (2010) chama de “produção de presença”.


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Essa postura, aliás, é semelhante a do próprio Carroll, que ao englobar em seus dois livros “poemas, canções de ninar e personagens infantis, muitas vezes recriando-os e parodiando-os, preocupa-se não com uma suposta fidelidade ao original, e sim com a construção de um novo texto” (SPALDING, 2012, p. 154). Eis aqui o importante tratamento dado à intertextualidade, antecipando mais uma vez uma das características fulcrais da literatura na pós-modernidade. A intertextualidade se tornou imprescindível não só para a produção literária, como para os novos modos de leitura e de problematização da literatura em nossa cultura, repleta de hiperligações. Além da panóplia intertextual, encontramos por item prenunciador em Alicea multifuncionalidade de papéis na produção de uma obra, com Lewis Carroll a assumir não somente o ofício de autor, mas também de ilustrador e paginador. Ora, a primeira versão, intitulada Alice Debaixo da Terra (Alice’s Adventures Under Ground) e datada de dezembro de 1864 (em 1886, a MacMillan a editou pela primeira vez, tal qual o original), continha 37 ilustrações feitas por Carroll. Além disso, o próprio texto da versão manuscrita é distinto do texto que ficou consagrado, pois Alice Under Ground é bem menor que Alice no País das Maravilhas, publicado em julho de 1865, que conta com dois episódios a mais, o do Chá Maluco e o do Gato de Cheshire. Na versão original, é ainda possível observar que diversas palavras são sublinhadas, diferentemente dos recursos do itálico e das maiúsculas utilizados na versão impressa. Nesta, por sua vez, temos a originalidade da conjugação entre o texto de Carroll e as 42 ilustrações de John Tenniel, num projeto cuja relevância do tratamento gráfico está próxima daquela hoje acolhida pelo design, visto não apenas em sua função estética mas centrado na informação, com a criação de conceitos visuais para que cada livro possua uma identidade que venha a condizer com o seu conteúdo. Outro fato relevante é que foi o próprio Lewis Carroll a fazer aquela que seria a primeira adaptação de sua obra. Em 1890, já depois dos êxitos alcançados com Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, ele publica The Nursery “Alice”, uma versão de Alice no País das Maravilhas


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A fotografia (na altura, o daguerreótipo estava em fase embrionária) era outra grande paixão de Charles Dodgson, que começou a desenvolver em 1855, quando então tinha 23 anos. Foi nesse mesmo ano, aliás, que conheceu as irmãs Lorina Charlotte, Edith Mary e Alice Liddell, então filhas de Henry George Liddell, que havia acabado de assumir o cargo de deão no Christ Church College, onde Dodgson trabalhava como bibliotecário e onde viria a se tornar professor de matemática. No início de junho de 1955, Dodgson faz um ensaio fotográfico com as três irmãs e, a partir daí, desenvolve com elas, especialmente com Alice, uma longa amizade. Inclusive foi num passeio de barco pelo rio Tâmisa que ele, de improviso, contou para as irmãs a história que mais tarde resultaria no livro Alice no País das Maravilhas, dedicado a Alice Liddell. 9

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para crianças de zero a cinco anos, conforme explica no prefácio. São utilizadas vinte das ilustrações originais de Tenniel e uma nova capa é assinada por E. Gertrude Thomson (amiga de Carroll). Nesta versão, iniciada com o reconhecido “era uma vez”, além dos capítulos serem mais curtos, com menos descrições e diálogos reduzidos, há uma simulação da contação de histórias e da oralidade, com o narrador estabelecendo um diálogo mais direto com o leitor, para captar-lhe tenazmente a atenção. Assinala-se, ainda, o uso de recursos gráficos que simulam a modalização da voz, como o emprego do itálico, e a presença de ilustrações coloridas e ampliadas, que ajudam a atrair o olhar das crianças e em muito contribuem para a popularidade do livro. Aliás, outra particularidade de Carroll que se revelou crucial para o êxito de Alice no País das Maravilhas e de Através do Espelho foi o seu olhar fotográfico,9 que potenciou não só a acuidade visual do livro bem como uma construção da narrativa atenta à visualidade – são comuns o que Henrique Sampaio (2012) chama de “brincadeiras visuais”, com a descrição de personagens que crescem e diminuem de tamanho, cenários de ponta cabeça e corredores em espiral, por exemplo –, o que depois em muito veio a favorecer a adaptação cinematográfica. Para mais, boa parte da popularidade de Alice deve-se ao cinema, a única arte alvitre do século XX, que facultou a atualização da narrativa ao longo de várias gerações, tendo a sua primeira adaptação se confundido com a própria história do cinema. O filme Alice no País das Maravilhas, dirigido por Cecil M. Hepworth e Percy Stow, foi lançado em 1903, apenas oito anos depois de os Irmãos Lumière terem apresentado publicamente o cinematógrafo. Trata-se de um curta-metragem com pouco mais de oito minutos, naturalmente em preto e branco e sem som, em que cada cena é precedida de um excerto da obra literária, apresentando o que o espectador verá na cena seguinte. Aqui, as imagens filmadas funcionam como ilustrações, numa tentativa de adaptação “fiel” dos desenhos de John Tenniel, numa época em que o cinema ainda estava descobrindo sua linguagem e sua estética. Contudo, a


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obra já apresenta efeitos de edição, como na cena em que o bebê se transforma em porco, com recortes literais nos negativos, e efeitos especiais, como quando o filme de um gato é inserido em meio ao filme original, entre as árvores, evidenciando a importância da cena para a obra e a tentativa de reproduzir o livro da forma mais fidedigna possível.

(Fig. 3) Aos 5’18’’ do curta, aparece a cena em que Alice encontra o Gato de Cheshire, em primícias do que hoje pode se chamar de efeito especial. A película foi restaurada pelo BFI National Archive e pode ser assistida em <http://www. youtube.com/watch?v=zeIXfdogJbA>.

Para Marcelo Spalding, a relevância de olhar com acuidade para essa primeira versão fílmica de Alice é que, como o curta-metragem foi realizado pouco tempo depois da invenção do cinema e a versão de Alice para iPadfoi feita no mesmo ano de lançamento do aparelho, “se pensarmos no quanto a linguagem do cinema e suas potencialidades evoluíram ao longo de cem anos e projetarmos essa evolução para aparelhos digitais como os tablets, entenderemos a importância e o potencial do livro digital para as próximas décadas e as próximas gerações” (SPALDING, 2012, p. 171). Spalding está a se referir ao Alice for iPad, o primeiro livro digital a explorar as potencialidades do tablet, tendo


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sido lançado pela AppStore em abril de 2010, pouco mais de dois meses depois do lançamento do aparelho. O que quer dizer que o livro já estava a ser desenvolvido pela Apple para ser promovido junto com o iPad (o próprio nome Alice for iPad já é promocional), numa tentativa de tornar o produto uma das imagens centrais do potencial do novo aparelho que estava a ser inserido no mercado. Os criadores, o designer Chris Stephens e o programador Ben Roberts, conseguiram promover os recursos multimédia do iPad ao animarem desenhos baseados nos de John Tenniel e permitirem que o utilizador manipule as ilustrações movimentando o tablet ou movendo com as mãos determinados objetos que vão surgindo ao longo da história. O que ficou por resolver e que ainda continua a ser a grande parábola do livro digital é a antítese entre os vetores resultantes da exploração das propriedades do meio, cujo movimento e celeridade requerem ação constante do utilizador e evocam a dispersão, e o texto, que exige tempo, atenção, concentração. Em Alice for iPad há uma clara competição entre as animações e o texto, e este é que sai perdendo. Perde também o utilizador, que pode ter bons momentos de entretenimento com as imagens animadas e a possibilidade de manipulá-las, mas que não consegue, de fato, entrar no universo profundo, complexo e reflexivo que Lewis Carroll propõe. Como podemos ver, por exemplo, na cena das cartas de baralho pintando as rosas, que inicia o oitavo capítulo. Na versão condensada para iPad, manteve-se o começo do primeiro parágrafo, quando o narrador conta que Alice entrou em um jardim muito bonito, mas logo a seguir é suprimida a discussão das cartas de baralho sobre a cor das rosas e passa-se direto à narração do momento em que elas percebem a presença de Alice, “deslocando na frase o advérbio suddenly para justificar uma mudança tão rápida na narrativa” (SPALDING, 2012, p. 192). Versão original “Seven flung down his brush, and had just begun ‘Well, of all the unjust things — ‘ when his eye chanced to fall upon Alice, as she stood watching them, and he checked himself suddenly: the others looked round also, and all of them bowed low.”


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Versão condensada “Suddenly their eyes chanced to fall upon Alice as she stood watching them. (CARROLL e STEPHENS apud SPALDING, 2012, p. 192)

Outro grande entrave dos livros digitais até agora concebidos é justamente este: não conseguir que as propriedades dos meios singularizem a narrativa, isto é, as propostas de animações e manipulações de Alice for iPad podem ser feitas para qualquer outra história e em nada inscrevem as singularidades de Alice no País das Maravilhas, com todos os elementos que somente nesta história podemos encontrar. Aliás, a questão pode ser colocada como um problema de inscrição, pois o que torna determinada história única tem que estar inscrito no livro digital também. Agora, se a natureza do meio irá permitir avanços nesse sentido, apenas com as possibilidades trazidas com o desenvolvimento tecnológico é que poderemos saber, assim como tem sido com o cinema, quando observamos o comportamento do medium, por exemplo, do filme de 1903 à famigerada adaptação de Tim Burton em 2010.10 E por falar em Tim Burton… Também é importante ressalvar que a escolha da Apple em adotar Alice no País das Maravilhas para promover o iPad não foi, em primeira instância, pela narrativa, muito menos por todos os meandros geniais que ela apresenta. Aliás, a primeira versão da Walt Disney Pictures para Alice, em 1951, também não foi alvitre de uma escolha pela singularidade da história: na altura, já se havia lançado pelo menos dez filmes de animação de grande sucesso (sendo A Branca de Neve o primeiro deles, em 1937) e o êxito de Alice no País das Maravilhas deveu-se mais ao conjunto de inovações que a animação 2D proporcionou a toda uma geração do que pela história em si (a ver a adaptação completamente infantil, sem qualquer ambiguidade ou aprofundamento, que a Disney faz na altura). Lembremos que a nova versão da Walt Disney para Alice no País das Maravilhas, agora apostando na visão de Tim Burton, foi lançada a 25 de

Existem mais de quinze adaptações de Alice para o cinema, sem contar com as séries televisivas. 10


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fevereiro de 2010 em Londres e a 05 de março de 2010 nos Estados Unidos, e que o iPad teve o seu lançamento mundial a 12 de abril de 2010, o que nos faz ter aqui um dos mais recentes exemplos do que Henry Jenkins chamou de Cultura da Convergência. Se o paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias substituiriam as antigas, o emergente paradigma da convergência presume que novas e antigas mídias irão interagir de formas cada vez mais complexas. O paradigma da revolução digital alegava que os novos meios de comunicação digital mudariam tudo. Após o estouro da bolha pontocom, a tendência foi imaginar que as novas mídias não haviam mudado nada. Como muitas outras coisas no ambiente midiático atual, a verdade está no meio-termo. Cada vez mais, líderes da indústria midiática estão retornando à convergência como uma forma de encontrar sentido, num momento de confusas transformações (JENKINS, 2008, p. 31).

Se para Jenkins a convergência é, nesse sentido, um conceito antigo assumindo novos significados, também o é o País das Maravilhas, que nessa cultura da convergência transfigura-se em Países das Maravilhas (por isso o título deste ensaio, em alusão ao novo mundo instaurado por uma complexa rede de mídias). A convergência das mídias, contudo, não se refere apenas a mudanças tecnológicas ou a um fim que deva ser alcançado com as novas tecnologias de informática e de telecomunicações; trata-se de um processo que altera, sobretudo, a relação entre tecnologias, indústrias, mercados, gêneros e públicos, na demanda de um sistema que é tanto corporativo (num deslocamento de sinergias de cima para baixo, isto é, das empresas para o público) quanto um processo de consumidor (no sentido oposto, de baixo para cima). A convergência institucional (no caso da Alice em games, por exemplo) coexiste com a convergência alternativa, em versões produzidas pelos próprios consumidores (como a Alice no Second Life), e a isto tem se chamado de inteligência coletiva, que reitera a importância da comunicação interpessoal, especialmente dos formadores de opinião das comunidades. Com a primazia da produção e da troca de informação não


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somente ocorrendo das instituições para o público, mas entre os membros do público, torna-se cada vez mais difícil distinguir os produtores dos consumidores, ambos antes com papéis bastante definidos. Empresas midiáticas estão aprendendo a acelerar o fluxo de conteúdo midiático pelos canais de distribuição para aumentar as oportunidades de lucros, ampliar mercados e consolidar seus compromissos com o público. Consumidores estão aprendendo a utilizar as diferentes tecnologias para ter um controle mais completo sobre o fluxo da mídia e para interagir com outros consumidores (JENKINS, 2008, p. 44).

A convergência, assim, não deve ser compreendida apenas como um processo tecnológico que une múltiplas funções nos mesmos aparelhos (com a proliferação de canais, acessibilidade e portabilidade), mas um processo que representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos. O filme de Tim Burton, aliás, retrata bem essas mudanças profundas nas formas de consumo e na produção midiática, com a promoção de novos níveis de participação dos espectadores/utilizadores para tentar formar laços mais fortes com os conteúdos (com o excesso de oferta e a pluralidade de meios e canais, a sobrevida de um produto cultural é cada vez menor) e novas práticas narrativas adotadas para entreter essas audiências fragmentadas e dispersas. A propósito, nessa versão de 2010, com um roteiro assinado por Linda Woolverton, a história é deslocada no tempo e mostra Alice treze anos depois, já aos 19, retornando ao País das Maravilhas e encontrando-o em guerra. Lá ela se depara de novo com o Coelho Branco, o Dodô, o Dormidongo, os gêmeos Tweedledee e Tweedledum, as flores falantes e o Chapeleiro Maluco (que ganha grande destaque ao se tornar o personagem em que todo o ar enigmático da trama é centrado), além da Rainha de Copas e da Rainha Branca; o problema, porém, é que ela não se lembra de nada do que viveu nesse lugar mágico quando lá esteve aos sete anos. É a partir daí que se


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cria no enredo a “deixa” para uma grande discussão sobre a identidade de Alice, se ela seria a “verdadeira” Alice uma vez que não se recorda de absolutamente nada – e aqui parece ser o ponto forte do enredo, que aproveita a crise de identidade proposta por Lewis Carroll atualizando-a para a crise da passagem da adolescência para a vida adulta na cultura pós-moderna; a alusão surge logo no início do filme, quando Alice está numa festa da nobreza em Londres, onde vive, e ao ser pedida em casamento, foge seguindo o Coelho Branco. A obra de Carroll é utilizada apenas como referência, como universo simbólico e ficcional, um ponto de partida para a criação de narrativas, representações e efeitos orientados para novos leitores, que além de espectadores são, agora, na perspectiva de uma convergência midiática, utilizadores de diferentes media em concomitância. O afastamento do roteiro da história de Carroll demonstra que a adaptação não está mais restrita à transposição direta da versão original, mas requer uma espécie de recriação consoante a linguagem da mídia trabalhada. O filme, dessa forma, não é nem precisa ser uma extensão do livro e de suas ilustrações (como tentava ser a versão de Alice de 1903, como vimos) e nem mesmo, em tempos pós-modernos, precisa manter as estruturas narrativas nucleares da diegese. O jogo combinatório de possibilidades narrativas ultrapassa rapidamente o plano dos conteúdos para mandar ao tapete a relação de quem narra com a matéria narrada e com o leitor: ou seja, estramos na mais árdua problemática da narrativa contemporânea. Não é por acaso que […] o escrever já não consiste no contar mas no dizer que se conta, e o que se diz vem a identificar-se com o próprio ato de o dizer (CALVINO, 2003, p. 209).


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(Fig. 4) Na versão de Tim Burton, o Chapeleiro Maluco ganha grande destaque na trama. Podemos observar, por exemplo, que nas imagens de promoção do filme ele está sempre centrado na cena.

Não obstante, a mesma autonomização da narrativa também pode ser observada em Alice in New York (a versão seguinte de Alice for iPad), lançada em abril de 2011, um ano depois da primeira adaptação da história para iPad e do lançamento do filme de Tim Burton. Em Alice in New York, o segundo volume da obra de Carroll, Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá, é adaptado para se passar na cidade de Nova Iorque, com todos os seus monumentos míticos e o seu ar cosmopolita. As ilustrações originais de John Tenniel são novamente utilizadas como referência para as animações, num processo de composição que surge bem mais amadurecido. Aliás, logo que acessamos o trabalho percebemos que se trata de uma segunda geração de livros para iPad, fazendo uso de novos instrumentos e explorando mais afundo recursos que não haviam sido aplicados na primeira versão – como o uso de músicas rigorosamente escolhidas para acompanhar determinadas animações (vale ressalvar que a música não serve de ilustração sonora, mas tem o papel de avivar as sensações que a animação deseja transmitir).


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(Fig. 5) Capa de Alice for iPad. (Fig. 6) Capa de Alice in New York. Já nas capas percebemos a diferença entre as duas edições, a começar pelo traço, nitidamente mais próximo do de Tanniel no primeiro e de maior independência autoral no segundo, com linhas negras mais delineadas, textura não envelhecida e referências à pop art.

O autor Chris Stephens (o programador Ben Roberts, que havia desenvolvido com Stephens a primeira obra, já não participou desse segundo trabalho), além de possibilitar que o utilizadoruse as mãos para movimentar objetos e participar das animações, conforme já propunha na primeira versão, cria nesse segundo livro o ponto alto de interação entre utilizador–narrativa–máquina quando, na última cena, o utilizador tem que sacudir o iPad para que a Rainha se transforme em gata, como Alice o faz no capítulo XI. Diferente da lívida cena do relógio, em Alice for iPad, em que o utilizador podia balançá-lo conforme balançava o iPad, o novo mecanismo apresentado é importante porque traz algum indício de que é possível, com o desenvolvimento das ferramentas do meio, reduzir os défices ocasionados pela falta de inscrição do texto nos mecanismos de animação e manipulação, conforme enunciamos. A linguagem do meio, com todos os seus recursos tecnológicos, mais do que ser encaixada nas convenções da narrativa tradicional, tem que ser assumida enquanto a linguagem da própria história, pois uma das grandes


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diferenças entre o suporte impresso e o suporte digital é que este potencializa a linguagem medial. Não há aqui, portanto, a demanda de uma hierarquização entre a dimensão visual e a expressão verbal, mas a proposta de uma relação intersemiótica, uma integração amalgamada de resultado uníssono, de forma tal a contribuir não só sinestesicamente mas idiossincrasicamente11 com o que se tem chamado de experiência de leitura. Porquanto, o que parece haver nas adaptações de Alice para iPad é que Chris Stephens tem um pujante projeto autoral, mas condicionado pelo conflito entre a dimensão visual e a expressão verbal em função de o autor não saber redimensionar a história de Carroll em seu projeto. Tim Burton parece ter razão quando diz que, ao ver mais de 60 versões, entre filmes, seriados e quadrinhos, ao longo de sua investigação para fazer o filme, percebeu que a maioria não funcionou justamente por ser “muito apegada ao original, por ser muito “literária” (The Guardian, 06 de março de 2010).

Isto é, não só a partir de um ludismo centrado na irrupção de sensações, sob a guarida do entretenimento, mas, sobretudo de uma ludicidade responsável por transformações no processo de apreensão idiossincrásica e perceptiva do utilizador, enriquecendo-o. 11

(Figs. 7, 8 e 9) Página de Alice in New York, no momento em que o utilizador sacode o iPad para que a Rainha Vermelha se transforme na gata de Alice. (Figs. 10 e 11) Ilustrações de John Tanniel.


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No Oscar 2011 foi indicado a «Melhores Efeitos Visuais», «Melhor Direção de Arte» e «Melhor Figurino», tendo vencido nestas últimas duas categorias. 13 A questão que se coloca é se o uso do tridimensional realmente foi uma escolha estética de Tim Burton ou uma decisão da Walt Disney Pictures, uma vez que no ano anterior havia sido lançado, pela 20th Century Fox, Avatar, o primeiro filme da história a utilizar as novas tecnologias em 3D e o de maior bilheteria até então, arrecadando quase três bilhões de dólares em todo o mundo. O que nos leva a pensar na possibilidade do 3D ter sido adotado em Alice de Tim Burton como uma tentativa de não ficar de fora da “onda” do mercado é que as filmagens foram feitas com câmeras convencionais e transformadas em tridimensionais, com o auxílio dos cenários virtuais, apenas na pós-produção – o que parece demonstrar que inicialmente não estavam preparados para filmagens em 3D. Para mais, vale ainda ressalvar que a versão arrecadou mais de um bilhão de dólares, estando entre os quinze filmes de maior bilheteria da história. 12

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Aliás, Tim Burton realmente levou o “literária” a sério, uma vez que a sua versão não é nada literal nem tampouco denotativamente literária, de modo que o foco não está na narrativa mas na criação estética – eis o núcleo de originalidade do filme (sendo a debilidade para uns críticos e o ponto forte para outros) e da franqueza da criação de Tim Burton para com o seu marcado e reconhecido estilo. Na adaptação, temos uma exaustiva exploração das linguagens visual e sonora, numa dispendiosa produção de cenários, figurinos e efeitos especiais,12 a contar com a exibição em 3D, sendo o primeiro filme da Walt Disney a fazer uso da tecnologia tridimensional.13 Por isso, podemos dizer que, do ponto de vista da redimensão dada à obra original fronte ao que se anseia criar em um novo meio, o filme de Tim Burton é bem mais sucedido do que a versão para iPad de Chris Stephens. Pois que vemos o projeto autoral de Stephens em seus pontos de êxito, sem ser suplantado pelo entrave textual, quando ele cria um cenário para determinadas ilustrações de John Tenniel, como na primeira animação de Alice in New York, em que Alice, sentada em uma poltrona, segura um novelo de lã. Em Tenniel, a cena é restrita à menina e à poltrona, mas na obra de Stephens o cenário criado mostra livros, jornais, cartas de baralho e até um controle remoto jogado no chão, atualizando a temporalidade da cena, além de uma enorme janela que permite o leitor ver os flocos de neve caindo na cidade, demarcando a estação.

(Fig. 12)Ilustração de John Tenniel, no início de Através do Espelho. (Fig. 13) Versão de Chris Stephens, que constrói um simbólico cenário à volta da personagem, na cena que melhor representa a transição de espaços e de tempos, quer entre as narrativas, quer entre as produções.


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Outros momentos autorais de grande força é quando o autor assume em sua adaptação a Rainha Vermelha como sendo a Estátua da Liberdade e a cidade como que um tabuleiro de xadrez, ou mesmo quando faz alusão à conhecida fotografia Lunch atop a Skyscraper, tirada em 1932 por Charles Ebbets, que flagra funcionários almoçando sentados, sem equipamentos de segurança, numa barra de ferro suspensa em uma construção (caso o utilizador mova a estrutura em que as personagens estão sentadas, elas “voam” pelo ecrã). Nesses momentos, Stephens dá à narrativa, através da linguagem da mídia que adotou, as facetas do tempo em que vive, como Lewis Carroll o fez no processo de criação de Alice. É pena que esses momentos sejam pontuais e que prevaleça, desde a obra digital anterior, a forçosa inserção do texto original retocado, fazendo com que mais uma vez a atenção à narrativa falhe. Se em Alice for iPad os diálogos, as descrições e os poemas foram suprimidos e a própria narração reduzida a menos de um terço, alterando não apenas o texto, mas também o ritmo e o jogo de linguagem de Carroll, o que temos em Alice in New York é o texto original editado para encaixar, quase que à força, na adaptação proposta, inclusive na integração com as ilustrações. Trechos do original foram recortados e emendados, bem como novas frases foram enxertadas entre frases do texto original ou frases de determinado mote do capítulo foram inseridas noutra parte. O texto resultante, condensado e editado, “faz sentido, embora seja empobrecido em relação à riqueza linguística e lúdica do texto de Carroll” (SPALDING, 2012, p. 227). Texto este, aliás, que aqui está suplantado pelas imagens, estando à serviço delas, enquanto devia ter sido reescrito para estar em consonância com a nova história, com o novo tempo e com o novo cenário, na unidade que propomos a partir da assumição da linguagem medial. As dificuldades do enlace narrativo (ao contrário do que vemos nas soluções tão bem resolvidas apresentadas nas ilustrações) são visíveis logo no início da trama, com a ida de Alice para Nova Iorque. Em instância alguma o texto faz referência à nova condição da Rainha Vermelha, ao fato de ela não ser uma peça de xadrez mas uma estátua


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bastante simbólica da contemporaneidade. Além de que a cidade-xadrez que se diz ser Nova Iorque, numa perspicaz analogia às complexas estruturas das metrópoles, perde toda a sua potência referencial quando o autor, conservando integralmente o texto de Carroll, simplesmente troca o nome de um lugar no texto original pelo nome de um lugar famoso da cidade de Nova Iorque. É o que ocorre com o Bosque das Coisas sem Nomes, que na versão de Stephens é o Central Park. Ora, fazer simplesmente uma troca sintática sem desenvolver na narrativa a importância semântica dessa substituição não permite que a quebra da verossimilhança possa ser melhor trabalhada, afinal há muito o que se pensar sobre o detrimento do lugar onde as coisas não têm nome pelo Central Park. O que permaneceu no trabalho de Stephens foi a ideia da ilustração, só que agora é o texto que ilustra as animações, precisamente ao contrário do filme de 1903, em que as cenas é que são colocadas em prontidão do texto. Também percebemos que de Alice for iPad para Alice in New York propôs-se uma complexização da adaptação narrativa, embora a interação entre recursos técnicos e texto continue cingida. A originalidade de um universo estético próprio que Chris Stephens conseguiu a partir dos desenhos de Tenniel não foi alcançada na intervenção sobre o texto de Carroll. Nesse sentido, o criador de Alice para iPad parece ter aprendido pouco com a lição sobre intertextualidade que Carroll nos dá ainda no século XIX, ao se revelar mais preocupado em criar novas roupagens para contos, canções e poesias já existentes do que propriamente em se manter fiel a eles. Talvez a saída aqui, aquela a que a natureza do cinema não permite e que, assim, jamais poderíamos ver no filme de Tim Burton, fosse criar para o iPad uma obra em aberto, onde os utilizadores pudessem decidir caminhos, fazer a(s) sua(s) própria(s) história(s) dentro da história – aquilo que Françoise Holtz-Bonneau (1986) chama de “interatividade de seleção”, em que o utilizador não só seleciona os conteúdos, como intervenciona sobre eles. Quer dizer, em vez de ter optado por um projeto espargido sobre a linearidade, o trabalho com o hipertexto permitiria usufruir de uma estrutura multilinear e em


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rede que proporcionasse uma nova intertextualidade e um novo diálogo entre o autor e o utilizador, entre a máquina e o utilizador, quebrando a noção de totalidade orgânica. Tanto em Alice in New York como em Alice for iPad há um índice em que é possível saltar diretamente para determinada páginas, mas o leitor não pode fazer esses saltos dentro da própria narrativa e a própria divisão do menu em páginas, e não em capítulos, ou em personagens, não permite que o usuário faça saltos para ler determinado trecho em detrimento de outro. A autonomização da narrativa em Alice in New York, na verdade, é uma ressonância do filme de Tim Burton, mas poderia ter sido levada, enfim, muito mais longe com todas as possibilidades de dimanam da plataforma digital. Certo é que a análise da obra criada para iPad nos deixa ainda mais atentos para perceber o fenômeno de confluência midiática, tendo em vista que o filme de Tim Burton é o carro-chefe de toda a promoção de Alice no País das Maravilhas realizada em 2010, com vários produtos de valor agregado. O projeto Alice In WonderSLand Performed Live In SL, aliás, é um dos maiores exemplos desse efeito cascata. Criado em abril de 2010, dois meses depois do filme ter sido lançado, trata-se da adaptação de Alice no País das Maravilhas para o teatro, só que em ambiente virtual. O grupo Avatar Repertory Theater, sob a direção artística de Jubjub Forder, realizou seis apresentações ao vivo no Second Life, durante todo o mês de maio, seguindo a estética sinistra, obscura, enigmática que pudemos ver no filme de Tim Burton. “This is a little girl’s dark fears of growing up” (CNN, 25 de abril de 2010), explica Forder. Mas o apelo estético de Tim Burton e de Jubjub Forder, com as suas criações em 3D, encontra refugo em outra mídia: os videogames. Dentre um dos casos mais paradigmáticos, e de baliza extrema das tendências em curso na cultura pós-moderna, está o American McGee’s Alice, lançado em 2000 pela Eletronic Arts em parceria com a American McGee, para aparelho id Tech 3. No início do game, um narrador em terceira pessoa conta que Alice (que aparece com vestido azul e olhos claros, mas em vez de loira tem agora o cabelo em tom castanho, numa espécie de indício de transição entre a personagem consolidada


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loira e a que viria depois desta versão primeira do jogo), ao perder os pais num incêndio, passa a ter crises de catatonia (uma espécie de esquizofrenia) e tenta cometer suicídio cortando os pulsos. A menina órfã, então, é internada num hospício (construído sob o imaginário de como seriam os manicômios na era vitoriana), onde por uma década é torturada. Já adulta, o Coelho Branco vai buscá-la para que ela possa retornar ao País das Maravilhas (marcado por imagens de escuridão e morbidez) e livrá-lo das regras despóticas da Rainha de Copas. É a partir daqui que o jogador se torna a Alice, com os seus artefatos de luta, incluindo facas e bombas.

(Fig. 14) Imagem do Rutledge Asylum, onde Alice é internada depois de tentar suicídio, conforme a história narrada no início do jogo American McGee’s Alice. O hospício foi pensado sob o imaginário dos manicômios no século XIX.

Fato é que, apesar de chocante para a maior parte das pessoas acostumadas à versão de Carroll, as ilustrações de Tenniel ou mesmo as animações da Disney, o sucesso do jogo foi tamanho (com mais de um milhão de cópias vendidas em três meses, tornando-se um dos jogos mais vendidos da história) que, em 2011, chegou sua continuação: Alice Madness Returns, lançado para Windows, PlayStation 3, Xbox 360, iPhone, iPod e iPad. Dois anos antes, porém, em 2009, já tínhamos no Second Life o projeto Alice


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in Wonderland Ride, de autoria desconhecida, que em vez de game funciona como uma plataforma de exploração, onde encontramos a mesma atmosfera taciturna de American McGee’s Alice, com personagens de expressões doentias ou semblantes maliciosos. Lemos no conviteaopasseio: “Hop aboard one of the most elaborate rides in Second Life. The Alice in Wonderland ride is full of dark, whimsical surprises”.

(Fig. 15) Snapshot de Alice in Wonderland Ride, no Second Life.

O que há de similar, porquanto, nesses produtos que assumem uma identidade tétrica, que perpassa do sombrio, como em Tim Burton e Jubjub Forder, à estética do horror, latente em American McGee’s Alice, é que eles catalisam as angústias de um cenário distópico na pósmodernidade, um mundo de “Ambição, Subversão, Desembelezação e Distração” (CARROL, 2009, p. 113), para utilizar as palavras da Tartaruga Falsa, na passagem em que Carroll faz uma paródia ao sistema de ensino. Quer dizer, esses produtos assumem a exploração de um “mundo esquizofrênico sob os sintomas de um tempo líquido” (1998, p. 10), como diria alimentada e atualizada. A ver a leitura que podemos fazer de Alice Madness Returns, com a continuação do game American McGee’s Alice, em


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que a luta de Alice (agora bem mais velha, com grandes olheiras e com o cabelo definitivamente negro, como o é tudo ao seu redor) contra a sua demência é, na verdade, uma tentativa de salvar o seu mundo interior da destruição – e tanto o seu mundo interior quanto a destruição estão simbolizados e, mais, confinados no País das Maravilhas.14 Como disse, no sexto capítulo, o Gato de Cheshire a Alice: “somos todos loucos aqui, eu sou louco, você é louca. […] Ou não teria vindo parar aqui” (CARROLL, 2000, p. 84). Alice no País das Maravilhas faz explodir impetuosamente as traves mestras da lógica aristotélica, por se tratar da irrupção de um processo inconsciente de múltiplas virtualidades, indo ao encontro do inconsciente de sucessivas gerações dos seus leitores e, eventualmente, da sua “loucura” (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 31).

Repare que tanto em American McGee’s Alice quanto em Alice Madness Returns há uma junção da violência física da era vitoriana, operada pelo utilizador que se assume Alice, à violência psicológica manifestada sob a forma de medo que prevalece no mundo pós-moderno, uma vez que não se prescinde, em cada uma das versões, de trazer uma história que contextualize o jogo. 14

Contudo, há, evidentemente, outros games baseados em Alice no País das Maravilhas que procuram manter o aspecto soft encontrado no filme da Walt Disney de 1951 e mesmo no Alice for iPad. Dentre eles está o jogo Alice in Wonderland produzido pela Disney Interactive (e lançado juntamente com o filme de Tim Burton, também da Disney, em 2010), ofertado para PC, Wii, Nintendo DS e Zeebo. Como são habitualmente os games da Nintendo, o que temos é a Alice e os principais personagens do País das Maravilhas num jogo de exploração, com caminhos a serem abertos, objetos a serem descobertos e uma tabela de pontos e bônus. Já no Kinect Disneyland Adventures, de 2011, também desenvolvido pela Disney mas agora em parceria com a Microsoft, o utilizador comanda com o seu corpo, através do videogame console Xbox 360, um avatar e passeia (caminha, voa) pelo parque da Disney, interage com seus personagens e encontra mini-jogos, alguns baseados em Alice, onde o utilizador tem que se desviar de objetos enquanto cai pela toca do coelho ou dar direção à bola no jogo de croquet com a Rainha. Portanto, quando falamos nesse universo que compete a diversas plataformas, do livro ao cinema, do iPad ao Second Life, também estamos a falar da relação que existe entre a convergência dos meios de comunicação,


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a cultura participativa e a inteligência coletiva, numa profusão que perpassa pelo fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, pela cooperação entre variados mercados de mídia e pelo comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que buscam hoje sobretudo experiências de entretenimento. Alimentar essa convergência tecnológica significa uma mudança nos padrões de propriedade dos meios de comunicação. Enquanto o foco da velha Hollywood era o cinema, os novos conglomerados têm interesse em controlar toda uma indústria de entretenimento. A Warner Bros produz filmes, televisão, música popular, games, websites, brinquedos, parques de diversão, livros, jornais, revistas e quadrinhos (JENKINS, 2008, p. 42).

Ao observar, no caso de Alice no País das Maravilhas, essa circulação de conteúdos – por meio de diferentes sistemas midiáticos, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras transnacionais – vemos que as experiências de entretenimento convergem cada vez mais com as experiências de leitura, num processo de transdução da narrativa e, sobretudo, de seus personagens. Nesse caso, não se trata somente de uma tradução endosemiósica, na perspectiva de Susan Petrilli (2004), em que os níveis envolvidos encontram-se todos no mesmo código, ou de uma tradução intersemiótica ou transmutação, que Roman Jakobson (2001) aplica ao diálogo entre diversas artes, num tipo de tradução que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. O que a noção de transdução nos traz de novo é que ela, com a passagem de um nível de código para outro, subtrai a ideia de tradução e envolve o meio como principal agente de transformação não só do objeto transportado para esse meio, mas do transdutor que o transportou. Sob a proposição de Jesús G. Maestro, em seu Novas Perspectivas em Semiologia Literária, “transdução é a transmissão (ducere, “levar”) de algo através de (trans-) um determinado meio que atua sobre o objeto, provocando nele certas transformações” (MAESTRO, 2002, p. 65).


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(Fig. 13) Imagens de algumas «Alices» associadas a determinados media. É importanteobservar como, ao longo das décadas (ou mesmo de séculos), Alice vai ganhando traços cada vez mais adultos, como se o público acedente fosse mais velho do que o da geração anterior. Na verdade, o que temos é a constatação das mudanças, viabilizadas inclusive pelo desenvolvimento tecnológico e pela inserção de públicos consumidores, na mentalidade e no comportamento de crianças e jovens, cujo acesso a ferramentas do mundo adulto, antes rigorosamente confinadas nele, dá-se mais cedo. É curioso ainda observar que as transformações diegéticas vão potenciando, com o passar do tempo, o crescimento de Alice, muito mais infantil em Carroll e em Tenniel (apesar dos traços adultos que ele lhe dá), por exemplo, do que em qualquer outra adaptação realizada no século XXI.

Quer dizer, se observarmos a personagem Alice em todo esse percurso de migração entre mídias, vamos ver que ela, enquanto transdutora de uma narrativa (o objeto que transmite ou leva a algum meio) é transformada justamente por esse objeto ter sido transmitido, em consequência da interação com o meio pelo qual passa a se manifestar. Ou seja, o transdutor é transformado pelo médium e, ao mesmo tempo, essa transformação corresponde indubitavelmente a uma função de mediação, ou melhor, de transdução entre a mensagem, que sai das mãos do autor, e o público receptor, que está a assistir a essa transformação. Motivados pela ideia de transdução, então podemos dizer que, ao observar o caso de Alice, não se trata apenas de uma narrativa crossmidiática, no sentido adotado por Hannele Antikainen (2004), isto é, um cruzamento entre mídias em que um veículo direciona ou indica o utilizador para outro, para que se possa consumir determinado conteúdo ou


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interagir em referida plataforma. Em Alice, o diálogo, mais do que ocorrer entre as mídias, dá-se entre os conteúdos e as suas transformações operadas pelo meio, e por isso o que temos é uma narrativa transmidiática, segundo o que propõe Henry Jenkins (2008). Para ele, é possível desenvolver diversos aspectos de uma narrativa que não cabe numa só mídia e, assim, pode-se formar um circuito (em vez de matriz, como na crossmedia) que integra múltiplos textos, em que cada utilizador sustenta, mesmo sem saber, a atividade do outro. É como se tivéssemos um merchandising (que, ao contrário da propaganda, é uma publicidade implícita ao conteúdo, e não anunciada) continuamente latente em cada mídia, que aponta para outra não através do suporte midiático, mas em função da troca de conteúdos. Segundo Jenkins, cada acesso a uma franquia dos múltiplos suportes deve ser autônomo, para que não seja necessário assistir ao filme do Tim Burton para gostar do game da Disney, por exemplo. As particularidades de cada mídia sustentam uma singular experiência que motiva mais consumo, mas o media não deve ser redundante ao oferecer o que já foi ofertado em outros canais ou media; explorar novos níveis de revelação e experiência renova a franquia e sustenta a fidelidade do consumidor. Afinal, mídias diferentes atraem nichos de mercado diferentes. Assim, se unirmos as noções de narrativa transmidiática e transdução, veremos que, enquanto mecanismos de produção estética, os fenômenos artísticos frequentemente transitam nas fronteiras da linguagem e os processos de transmissão dinâmicos (dentre eles, a intertextualidade, a transferência intercultural, a percepção crítica, a paródia) entram em conformidade com as propriedades do medium. As fronteiras da linguagem e os processos dinâmicos de transmissão, então, acabam por catalisar a narrativa e os personagens em migração. Como num processo químico, a narrativa transmidiática transdutora opera sob o efeito de uma catalisação, em verdadeiras transformações diegéticas, alterando a composição das substâncias (em analogia à narrativa); ao contrário, a narrativa crossmidiática seria um processo físico, que não altera a natureza do material que sofre o


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fenômeno, somente muda o aspecto físico ou o estado das substâncias, que permanecem as mesmas. Desse processo de catalisação das narrativas transmidiáticas propomos o surgimento do que vamos chamar de “leituras transmidiáticas”, em que o foco está no utilizador e na soma de experiências que registra ao aceder a narrativas de um mesmo mote em diferentes media. Para quem assistiu a Alice no País das Maravilhas na versão de 1951, brincou com o livro digital de Chris Stephens e jogou American McGee’s Alice, a Alice não pode jamais ser somente a de Carroll, uma vez que o que está na apreensão cognitiva do utilizador é uma profusão de Alices e a sensação resultante que a ela ficou associada e que é resgatada sempre que o indivíduo se encontra diante do símbolo “Alice”. A própria construção do pensamento – não apenas em termos ideológicos mas em apreensões cognitivas – depende cada vez mais das mídias que caracterizam determinadas gerações. O feedback (no caso, dependente dessa sensação resultante das Alices que povoam os media) da leitura transmidiática também funciona em movimento de retroalimentação com o sistema de mídias, pois a resposta do utilizador comparticipa da reconstrução das narrativas atualizadas a cada época e conforme as propriedades dos meios. Nessa instância é importante entender a literatura como mídia, ou a “mídia “literatura”“, como propõe Gumbrecht (1998). Para o filósofo, ela teve a sua expressão máxima no Iluminismo, à medida que se conseguiu discernir na literatura o texto autoral dos processos e das formas literárias, e que de suas crises resultou a literatura do século XX. Afirma ainda que, atualmente, a concorrência com outros media põe em causa a sobrevivência dessa mídia “literatura”, que não conseguiria mais assegurar os dois processos que ele julga fundamentais na comunicação: a presença à distância e as relações de troca entre autor e leitor. No entanto, Gumbrecht está a considerar somente a literatura impressa, pelo que podemos afirmar que é justamente por um entendimento cada vez mais aplicado da literatura enquanto mídia que a literatura conseguirá sobreviver não somente junto mas nos novos meios digitais, a saber a própria literatura eletrônica, como


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a de Chris Stephens e o seu Alice para iPad. As leituras transmidiáticas, aliás, agem nesse nível, vigorando sobre uma panóplia de acesso às mídias e de possibilidades de leitura, e depois sobre a conjugação entre essas possibilidades, resultando numa imagem multifacetada, com vários enxertos de narrativas compostas sob a remissão a um núcleo simbólico. Por fim, depois de todo o trajeto desenvolvido neste ensaio, da correlação da narrativa de Alice com as Materialidades da Literatura à análise do comportamento da história em vários media, podemos chegar à conclusão de que há em Alice no País das Maravilhas, bem como em sua continuação Através do Espelho, peculiaridades que fazem com que a obra seja uma das mais exploradas em diferentes media e que consiga ser atualizada em conformidade com o avanço tecnológico e, consequentemente, das mídias, em seus distintos estágios de desenvolvimento. A explicação, ao fim e a cabo, exige-nos um retorno à própria narrativa, fechando ciclicamente este trabalho iniciado com um olhar apurado sobre a história de Alice. Numa leitura transmidiática de Alice no País das Maravilhas, então, poderíamos dizer que a obra traz consigo um “passado de imagens que nos governa”. Afinal, Não é o passado literal que nos governa, mas as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genéticas, na nossa sensibilidade. Cada época histórica contempla-se no quadro e na mitologia ativa do seu próprio passado ou de um passado tomado de empréstimo a outras culturas (STEINER, 1992, P. 13).

Segundo George Steiner, houve uma “Idade de Ouro”, que vai de 1820 a 1915, portanto, período da Inglaterra vitoriana e altura em que Alice foi escrito, cuja convergência de condições vindouras nunca voltou a ocorrer em outra época da história da cultura ocidental. Uma realidade considerada frutífera não exatamente por sustentar um cenário virtuoso, mas por apresentar uma conjugação de sintomas sociais que, em seus progressos e


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em suas mazelas, proporcionaram uma produção social, cultural, humana e política sem igual. Para Steiner, o “longo Verão”, como ele denomina esse interstício, corresponde à abertura de um passado mais civilizado, mais confiante, mais humano do que tudo o que depois dele conhecemos. “É contra a memória viva desse longo Verão, e em função do nosso conhecimento simbólico desse mundo, que hoje sentimos frio” (1992, p. 16). Quer dizer, por trás de todas as atitudes de autocondenação que pautam a cultura da pós-modernidade – com o resvalar do sentimento de desorientação, de recaída na violência e de perda na insensibilidade moral que dela dimana; a viva impressão de uma quebra profunda no campo dos valores da arte e no da decadência dos códigos pessoais e sociais; os receios de uma nova “idade das trevas” em que a própria civilização, tal como a conhecemos, possa desaparecer ou se restrinja a pequenas ilhas de preservação arcaica – há a presença, largamente inobservada por tão esquiva, de um passado muito particular. Quer dizer, “a nossa experiência do presente, os juízos, tantas vezes negativos, que fazemos acerca do nosso lugar na história, vivem continuamente contra o fundo daquilo a que eu gostaria de chamar “o mito do século XIX” ou “o jardim imaginário da cultura liberal” (STEINER, 1992, p. 15). Essa perspectiva justifica as expressões taciturnas, sombrias, sinistras com que Alice no País das Maravilhas passa a ser retratada ao longo do tempo. Justifica, inclusive, que possa existir uma exposição como Who is Alice?, apresentada no Pavilhão da Coreia na Bienal de Veneza 2013. Com a curadoria de Chu-Young Lee, é a única mostra patente na 55ª edição da bienal que gira em torno de um tema – e este tema é justamente a Alice, não tão somente a de Carroll mas todas as Alices que há nessa Alice pós-moderna, multimidiática, transduzida (se havia na narrativa de Carroll o sonho dentro do sonho, o jogo dentro do jogo, a ficção dentro da ficção, as histórias dentro da história… agora, possibilitado e potenciado por essa cultura de uma modernidade tardia, temos as Alices dentro da Alice, conforme propomos com a leitura transmidiática). Na exposição, a estranheza – traço pujante da pós-


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modernidade e fagocitado pela arte contemporânea – é trabalhada sob as perspectivas sociais, culturais e políticas e resulta numa visão uníssona, que revela os olhares dos quinze artistas e os fragmentos patentes nas obras a afluírem para um mundo adstringente e entrópico, marcado sobretudo por crises de identidade, de valores e de posicionamento cultural. A ver, por exemplo, as fotografias de Hein-Kuhn Oh, em que numa temos o enquadramento do rosto de uma menina oriental (a Alice neste século XXI também ou já é oriental) e na outra vemos uma menina oriental vestida à Ocidente, com um short curto e uma blusa de mangas curtas. Ou, ainda, as sombrias pinturas de Jung-Wook Kim, numa das quais aparece uma menina com os espaços oculares preenchidos por negro e uma espécie de pele a descascar do rosto, formando uma máscara sutil. Taciturna também é a casa de transparências, o Dreams of Building, que Myung-Keun Koh criou, onde sombras e luzes se interceptam na estrutura de acrílico em que é impressa a imagem de uma construção inglesa do século XIX. Há ainda a obra The Time, de YoungGeun Park, que faz referência ao relógio do Coelho, numa pintura formada por duas telas, uma com o fundo negro e a tinta em branco, outra com o fundo branco e a tinta em negro. Se neste trabalho temos os traços desorientados, quase que numa impressão afixada de um espectro, a fazer alusão a um tempo confuso, é em The Wing, de Xooang Choi, que a esse tempo se junta a liberdade, com as suas asas formadas por mãos de súplica. Uma das singularidades da exposição é que Alice e o seu universo são agora retratados por artistas plásticos e fotógrafos de um país15 que, além de bastante representativo da luta travada no século XX entre Ocidente e Oriente, agora atravessa uma forte crise cultural com a crescente ocidentalização.16 E aqui se revela a assertiva escolha curatorial em adotar o poder simbólico e transdutor de Alice para que, através dele, a peculiaridade de cada obra possa integrar uma concepção coletiva que indicie quem é essa Alice do século XXI. A exposição corrobora, portanto, a universalidade de Alice no País das Maravilhas, alcançada, primeiro, pela maestria intrínseca à narrativa, em que Carroll conseguiu tornar universal particulares experiências e contextos localizados (o que faz de uma obra uma obra-prima, afinal,

A principal referência que se tem de Alice no País das Maravilhas em países orientais é o Fushigi no Kuni no Alice, animê produzido pela Nippon Animation e que fez sucesso em 1983. No desenho, Alice não tem qualquer caracterização oriental: aparece loira e de olhos azuis, embora seja mais nova e mais “infantil” do que a personagem do filme da Disney de 1951. A sua roupa é que ganha novas cores, passando a ser vermelha e branca em referência à bandeira do Japão e ao comunismo. O único elemento da adaptação que realmente nos remete à cultura japonesa é a lúdica música eletrônica, ao estilo que se popularizou em todo o mundo com os games. 16 Em meio a uma «cultura soft power», a Coreia vem promovendo na Ásia a vaga hallyu, como tem sido chamada a política voltada para as culturas de massa, como prova o sucesso de Gangnam Style em todo o mundo. Contra a expansão desse movimento de ocidentalização (que inclui o ritmo musical de Psy, o K-Pop, a comercialização de cosméticos que prometem “ocidentalizar” os traços orientais e até mesmo a construção de um bairro em Seul aos moldes de Hollywood), desde 2006 a China colocou restrições aos programas televisivos importados da Coreia e Taiwan impôs quotas às suas rádios para controlar o número de vezes que músicas coreanas são transmitidas (cf. Revista Visão, 24 de janeiro de 2013). 15


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Defendemos essa ideia com base no enquadramento clínico que António Lobo Antunes e Daniel Sampaio apresentam em Alice no País das Maravilhas ou a Esquizofrenia Esconjurada, artigo de 1978 que revela Charles Dodgson como portador de uma psicose (por isso, em suas cartas enviadas ao cirurgião Paget, revela-se sempre preocupado em ter alguma doença cerebral) com a qual conseguia lidar ao escrever histórias (supostamente) infantis. É assim que nasce Lewis Carroll, que se manifestava sob a existência de uma criança do sexo oposto ao do seu núcleo adulto. Dodgson, na verdade, era Carroll, e Carroll, Alice. O que justifica porque junto ao matemático, com toda a sua rigidez, monotonia e pouca criatividade, coexistia o genial e inovador escritor. E o que demonstra, ainda, que a amizade de Dodgson com meninas entre os 7 e os 11 anos de idade, que fotografava seminuas ou em atitudes de abandono, em nada tinha a ver com pedofilia, mas com o reconhecimento de uma entidade autônoma criada para invetivar a sua doença. 17

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é a sua capacidade de conseguir alcançar tamanho nível de abstração que torna o singular universal). A saber, inclusive, de como nesse processo foi imprescindível o temperamento esquizóide de Charles Dodgson, que o permitiu manipular ferramentas do mundo adulto ainda que apresentasse a maturidade de uma criança, o que em muito contribui para que Alice seja uma narrativa bastante peculiar (no fundo, foi escrita por uma criança com acesso a todas as possibilidades operacionais de um mundo adulto).17 Num estudo incluído na obra O Momento e Outros Ensaios, de 1948, Virgínia Woolf sublinha: “As duas Alices não são livros para crianças; são os únicos livros em que nos tornamos crianças”. E mais adiante arremata: “Uma vez que a infância permaneceu inteira nele [Charles Dodgson], pôde fazer o que mais ninguém conseguiu – regressar a esse mundo; pôde recriá-lo de tal forma que também nós nos tornamos crianças de novo” (WOOLF apud ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 30). Ao contrário do que habitualmente sucede com outros escritores, que ao longo dos anos logram uma evolução progressiva da forma e dos conteúdos narrativos, as características das suas criações afirmam-se imutáveis desde o início: subversiva invenção formal, alterações da estrutura narrativa, neologismos, episódios sem nexo aparente, ao passo que os seus desenhos da altura se caracterizam por distorções corporais, violenta conflituosidade dos personagens e pela perplexidade ansiosa dos seus olhares, comum aos seus retratos da juventude (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 23).

Por conseguinte, podemos dizer então, para concluir, que a universalidade de Alice também é fruto do advento de uma pós-modernidade prenunciada pela obra; pós-modernidade que, por sua vez, potencializa a obra em um mundo globalizado, convergente e rumo à homogeneidade inclusivade mercados consumidores. Com Alice observamos que os livros que permanecem numa continuidadecultural são aquelas que trazem consigo marcas de leituras precedentes já enraizadas na cultura, como diria Italo Calvino (1993), mas que também permitem que essas marcas indiciem leituras atualizadas da sociedade presente ou daquela que se avista. Assim,


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se não existem “primeiras leituras” de obras-primas, mas apenas “releituras”, Alice possibilita que estejam sempre a ser feitas releituras de valores sociais, culturais e políticos, quer seja pela narrativa quer seja pelos próprios meios em que a sociedade se inscreve dia a dia.

(Fig. 14) Sem título, de Jung-Wook Kim; tinta da china sobre papel, 162 x 112 cm, 2012. (Fig. 15) The Time, de Young-Geun Park; tinta óleo sobre tela, 226 x 182 x 2 cm, 2004. (Fig. 16) Da-won KANG, age 19, August 13, 2007, de Hein-Kuhn Oh; C-print, 155 x 122 cm, 2007. (Fig. 17) Su-ra KANG, age 18, July 19, 2008, de Hein-Kuhn Oh; C-print, 155 x 122 cm, 2008.


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(Fig. 18) The Wing, de Xooang Choi; tinta óleo sobre resina, 56 x 172 x 46 cm, 2008.

(Fig. 19) Dreams of Building, de Myung-Keun Koh; filme plástico, 64 x 139 x 79 cm, 2002. Feita em acrílico com grau de transparência, a obra nos permite ver a casa por dentro, em que sombras e luzes se interceptam. O matiz sombrio, literalmente espectral, e a reprodução da arquitetura inglesa do século XIX permitem o diálogo com o Rutledge Asylum, de American McGee’s Alice.

Aliás, talvez até hoje falemos da obra de Carroll porque ela nos fala sobre um futuro que chegou. Um futuro de largo presente preenchido por múltiplos passados, em que na “presentificação do passado”, como diria Gumbrecht (2010), é reproduzida a sensação de que os mundos de outrora podem se tornar de novo tangíveis, especialmente a partir de técnicas obtidas com as novas mídias e aparatos tecnológicos (eis aqui mais uma vez o Steiner e a ideia de que vivemos à sombra, num inconsciente coletivo que constrói uma nova realidade ao passo que persegue tentativas de se chegar novamente ao


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longo Verão). Pois que, bem-vindos aos novos Países das Maravilhas, com os seus encantos e suas seduções, com as suas crises e suas nevralgias, em fragmentos ressonantes de várias culturas em pontos diversos do globo. E por onde, entre diferentes narrativas, meios e contextos, continuamos a questionar… Quem é Alice. Ou melhor, quem somos enquanto Alice. Enquanto Alices.

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Amor e morte em Dido, a Rainha de Cartago, de Christopher Marlowe, e Eneida, de Virgílio

Maria da Conceição Oliveira Guimarães*

Resumo: Este artigo investiga a recepção do poema de Virgílio, Eneida, pelo dramaturgo inglês Christopher Marlowe, em seu drama, Dido, a rainha de Cartago. A peça de Marlowe foi escrita no século XVI e foca, na essência, o Livro IV da Eneida. A transtextualidade dessas duas obras permite demonstrar que todos os prismas de amor-paixão desde os gregos e romanos emerge como Mania (loucura) e Hedonê (prazer), fato que leva para Thanatos (morte). Levando em consideração o poder destrutivo desta tríade perseguida por Dido, pode-se pensar que, tanto no épico de Virgílio como no drama de Marlowe, o amor, o prazer e a morte também acompanham Eneias desde Troia até sua busca pela costa da Hespéria. Palavras-Chave: amor, loucura, prazer, morte. Summary: This paper investigate the reception of Virgil’s poem, Aeneid, by the English dramatist Christopher Marlowe, in his drama, Dido, Queen of Carthage. Marlowe’s play, written in the 16th century, focuses, in essence, Aeneid’s book IV. It should be noted that all prisms of burning amatory among the Greco-Romans, the love emerges as Mania (Madness) and as Hedonê (Pleasure), fact that bringing them to Thanatos (Death). Taking into consideration the destructive underbelly of this constituent triad of steps followed by Dido, it allow to think that in both poems, as Virgil’s epic as Marlowe’s drama, the love, the pleasure and the death also run with Aeneas since Troy until his search by Hesperia’s coast. Keywords: love, mania, hedonê, thanatos. Faculdade Estácio, Natal – RN. Pós-doutoramento em Coimbra, com Bolsa CAPES. *


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Convergências e divergências intertextuais entre as obras Eneida, de Virgílio, e Dido a Rainha de Cartago, de Marlowe O cotejamento de obras que atravessam fronteiras nacionais e linguísticas permite revelar a diferença ou a semelhança de tom, estilo e assunto entre elas. Partese, então, do conceito de literatura comparada por Remak, para se compreender a presença ativa do estudo comparativo entre literaturas. Segundo Remak (1994, p. 3): A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história, as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as ciências e a religião, etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana.

Da confrontação das obras de Virgílio e de Christopher Marlowe, mediada pela presença dos pressupostos da comparatividade, ter-se-á a oportunidade de “localizar na obra comparada o que foi mantido, o que foi rejeitado, o porquê e o como”, da obra em comparação, como defende Remak (1994, p. 176). A Eneida de Virgílio é um texto épico-lírico escrito no século VII a. C. e Dido, a rainha de Cartago, de Marlowe é um drama contextualizado no século XVI d. C. Há que se notar que nem o caráter estético-formal nem a qualidade de gênero invalidam ou diminuem o seu valor temático, apenas marcam uma reflexão a respeito da beleza sensível e do fenômeno artístico dos textos de Virgílio e de Marlowe. Em geral, os estudos sobre a Eneida apresentam uma estrutura cindida em duas partes. Essas partes, como refere Marques Júnior (2006, p. 17), estão relacionadas à Odisseia e à Ilíada, ou seja, os primeiros seis livros, que tratam da errância do herói troiano ligam-se à Odisseia e os seis últimos, que prendem-se às ações do herói conquistador


Amor e morte em Dido, a Rainha de Cartago...

Marques Júnior apresenta uma estrutura triádica para a Eneida, a saber: Parte I, “Provações”, livros I-IV; Parte II, “Rituais”, livros V-VIII e Parte III, “Combates”, Livros IX-XII. 2 Refiro-me às obras de Sêneca, cujas peças eram objeto de grande interesse para autores ingleses do século XVI, pois introduzia cenas de violência e crueldade no lugar da verdadeira história narrada por seus testemunhos. Foi, então, a versão italianizada, na qual o mal era representado com toda sua intensidade, o que encantou os dramaturgos elizabetanos e encontrou interesse do público. Vê-se no drama de Marlowe que todas as personagens que amavam Dido cometerem suicídio em “solidariedade” à heroína numa pira construída pela própria Dido, evento que não ocorre na “Eneida”. 3 Essa “pausa” compreende o período de descanso entre a partida de Eneias de Troia e sua chegada à Hespéria para cumprir seu destino, a fundação de Roma. Segundo a lenda, ele teria de sofrer uma “pausa” no seu périplo, ou seja, gozar um período de descanso em virtude das muitas tribulações que sofrera durante o período de circunavegação e foi Cartago o lugar escolhido por sua mãe para esse merecido descanso. 4 Assim como Ulisses, durante seu périplo de retorno à casa, descansa em Ogígia com Calipso, Eneias descansa do trajeto entre Troia e Hespéria em Cartago, nos braços de Dido. 1

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de terras e gentes, assemelham-se à Ilíada. No entanto, para este artigo, elege-se a estrutura triádica da Eneida desenvolvida também por Marques Júnior, com particular interesse pela Parte I,1 “Provações”. Nessa parte estão identificados os Livros I ao IV. O Livro terceiro marca com denodada atenção os ritos de passagem, elegendo-os como temática principal e no Livro quarto refere-se ao furor e à paixão que tomam conta da rainha de Cartago. Com referência à Eneida, Marques Júnior (2006: 17) alude ao trágico destino da personagem ao se submeter ao deus do amor: “[…] amores de Dido e Eneias, com o herói vendose obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu destino. O desdobramento de amor e fuga de Eneias leva Dido à morte”. É especificamente no livro IV da Eneida que Marlowe vai buscar inspiração para compor a obra Dido, a rainha de Cartago. Não obstante Shakespeare ser considerado o precursor do teatro elisabetano, foi Marlowe, seu contemporâneo, o mais expressivo representante desse teatro do século XVI e, como tal, suas peças possuem um caráter passional, aproximativo da catarse da tragédia greco-latina,2 mas, ao mesmo tempo, dela se afastando. Se não segue os ditames estéticos da tragédia clássica teorizada por Aristóteles, por outro lado escolhe um dos temas mais relevantes da mitologia greco-romana cantada por Virgílio, a fundação de Roma. O dramaturgo inglês centra-se com profundidade na “pausa”3 que foi concedida pelos deuses a Eneias, depois de um périplo marinho cheio de sobressaltos, para retratar o amor e morte entre as duas personagens. É nesse hiato entre as errâncias e o descanso que o herói goza do amor de uma rainha numa evidente aproximação literária com a Odisseia, quando Ulisses descansa em Ogígia nos braços de Calipso e na Ilha de Circe.4 O drama que escreveu Marlowe goza dos mais destacados elementos caracterizadores do teatro elisabetano, tais quais os descritos por Berthold: […] o teatro elisabetano caracteriza-se pela mistura sistemática do sério e do cômico; pelo abandono das unidades aristotélicas clássicas; pela variedade na escolha


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dos temas, tirados da mitologia, da literatura medieval e renascentista e da história […] (BERTHOLD, 2000, p. 157).

Entretanto, Marlowe não se deixou influenciar pelos temas ligados à história política da Inglaterra de Elisabeth I, apesar de esse período ter sido próspero em todos os setores da sociedade, inclusive com destaque para a literatura e a poesia e com expressivo apoio ao teatro. A recepção do tema grego por Marlowe além de realçar elementos comuns ao teatro elisabetano, o texto do autor inglês ainda faz uso de outro recurso caracterizador dos dramas originários daquela época, a mistura do sério e do cômico. Ao se rever a passagem no ato IV, cena 5 do drama de Marlowe, em que a ama de Dido joga com as palavras e tenta seduzir Cupido, tem-se um elemento grave adicionado a uma pitada de humor o que contribui para um momento menos tenso na peça. O dramaturgo inglês interpola em sua peça o estilo sério advindo da tragédia clássica com um estilo menos nobre, satisfazendo o gosto popular. A influência do teatro elisabetano torna-se a explicação possível para que as cenas de amor em Marlowe sejam bem mais expressivas do que as que ocorrem na Eneida. Ademais, algumas ações que acontecem na peça marlowiana não ocorreram no poema de Virgílio e esse fato só pode ser explicado pela preponderância que o teatro elisabetano exerceu sobre os dramaturgos da época. Em “Dido, a rainha de Cartago”, as personagens ganham espaço grandioso, como Iarbas, um dos pretendentes de Dido. Essa personagem, rei da Gaetúlia, no poema de Virgílio, é concebida como figura de menor expressão. Outro fator importante a ser observado no drama marlowiano é o sutil e aberto tetrágono amoroso: Ana ama Iarbas que ama Dido que ama Eneias que não ama ninguém. Na sequência de amores não correspondidos surge a morte. No final da peça marlowiana, Dido comete suicídio e arrasta com ela para o reino dos mortos a irmã Ana e Iarbas, ações que não acontecem no poema de Virgílio. Fazendo convergir o seu texto para as bases em que se assentava o teatro elisabetano, Marlowe carrega nas


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tintas da paixão e na complexidade da relação deste casal que o mito da fundação de Roma descrito na Eneida já o tinha fadado ao desenlace. Logo, há que se ressaltar as diferenças textuais da obra de Virgílio e da obra de Marlowe, mesmo que entre os textos haja um vínculo comum: o mito greco-romano com indissociável tema trágico do par que se ama e se separa em razão do cumprimento do destino que os deuses lhe impuseram. Como se demonstra no poema de Virgílio, o amor entre Dido e Eneias está encoberto pelo véu do lirismo, é um amor lírico, poético, quase se pode afirmar que seria um amor que existe apenas pela conspiração de duas figuras divinas, Vênus mãe de Eneias, e Juno, deusa que está em eterna contenda com Vênus. Desde logo, em Marlowe, apesar de o amor entre os dois ser nas mesmas bases de conluios divinos, torna-se desmesurado e a paixão da rainha é exacerbada pela rejeição do herói, levando-a à loucura e à morte, posto que sua estética estrutural é de teatro e não de poesia. Outro aspecto divergente entre os textos, e que se sobressai logo à partida, é a maneira de como Marlowe constrói o caráter relacional entre o par Dido e Eneias. O herói de Marlowe, por foça de uma ação divina, enamorase da rainha e por causa desse sentimento, perde-se. Deslumbra-se com as possibilidades de que a Cartago de Dido lhe possa oferecer a glória que lhe foi destinada pelos deuses, ignorando por completo a Hespéria. Por vezes sucumbe diante do amor de Dido, tornando-se fraco, cedendo facilmente à sua vontade. O herói de Virgílio tem sempre em mente o objetivo traçado pelos deuses e não esquece que tem de chegar à costa da Hespéria e lá fundar uma nova Troia. Para ele a costa da Líbia é apenas um lugar de pausa para um merecido repouso depois do tumultuado périplo. Assim sendo, Virgílio apenas cita o evento arranjado por Vênus e Juno para que o casal se encontrasse a sós numa gruta e lá ocorresse um enlace. No texto de Marlowe não há juras de amor em nome dos deuses da hospitalidade nem jura de fidelidade conjugal pela espada. Em prolepse, os versos de Virgílio (Livro IV: 228) apenas antecipam o motivo da morte da rainha, quando anunciam que a sua


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vida está selada à vida do troiano para, em seguida, fazer uma referência à causa que arruinou Cartago: Lhe foi aquele dia a causa toda da morte que ela teve, das desgraças, pois nem conveniência nem a honra a podem defender, já que não pensa ser um amor furtivo: é casamento, com este nome cobre a sua falta.

Já no drama de Marlowe, o protagonista, intermediado por Vênus e Juno, jura amor à rainha sob os mais venerados símbolos de um herói: a hospitalidade e a espada. Promete nunca abandoná-la diante dos mais sagrados elementos míticos de origem: a terra, os céus e a água de cujas entranhas surgiu sua mãe, Vênus:5 Alguém tão sem valor quanto Eneias Com esta mão dou-te meu coração E aos deuses da hospitalidade juro Por céus e terra e pelos meus irmãos Pelo mar púrpura, Cápis e Pafos De onde minha radiante mãe surgiu Eu juro ainda por esta espada Que me salvou de várias gregas mãos Nunca estas muralhas abandonar Enquanto Dido sobre elas reinar E ninguém além dela amarei. (ato III, cena 4, versos 42-51)

Sabe-se que a um herói mítico, como é o caso de Eneias, jamais será consentida a hesitação diante de uma missão delegada por um deus, sobretudo não lhe é permitido conspurcar a imagem dos deuses da hospitalidade, sob pena de lhe ser subtraída a condição sagrada de herói. Sendo inabitual que um herói guerreiro quebre o excelso laço firmado com o divino, como acontece ao Eneias de Marlowe, tal fato só poderá ser explicado através da divergência de focos de interesses entre os dois autores, seja pela diferença de gênero textual, seja pela distância temporal, sejam pelos diferentes objetivos ao qual se propuseram.

Todas as citações de Dido, a rainha de Cartago de Christopher Marlowe, aqui referidas, são colhidas na tradução de Thais Maria Giammarco. 5


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Elucidando a asserção acima, vê-se que o objetivo eleito por Marlowe em Dido, a rainha de Cartago difere do fim que pretendia alcançar Virgílio com a Eneida. O propósito do poeta mantuano é cantar a glória de Roma e o projeto do dramaturgo inglês é evidenciar um drama amoroso com consequências funestas. Apesar de todas essas razões, não se pode afirmar que Marlowe rompe com Virgílio ao escrever seu drama, embora pontos de distanciamentos entre as duas obras estejam óbvios. Acresçam-se aos distintos objetivos escolhidos pelos dois autores o caráter estético-formal, os gêneros textuais e o espaço temporal, já referidos. Além da temática abordada por Marlowe indicar uma transtextualidade advinda do livro IV da Eneida, como já foi mencionada, há outras passagens em Dido, a rainha de Cartago que certificam a recepção do texto latino. De acordo com Genette, a transmissão ou a aceitação de um texto por outro ocorre de várias maneiras. No entanto, esse teórico ressalta que, de um modo geral, esse fenômeno se realiza sempre em “tout ce qui le mette en relation, manifeste ou secrète, avec d’autres textes” (Genette, 1982, p. 7). Nesse aspecto, há que se notar, logo de início, que a temática grecolatina já se configura numa incontestável intertextualidade defendida pelo teórico francês. Por outro lado, é inevitável que se observe outros pontos de influência literária que sofreu o texto de Marlowe. Para tornar mais claro esse ponto, demonstrar-se-á, brevemente, a divisão de tipos da transtextualidade apresentada por Genette em Palimpsestes. No desdobramento de sua teorização, o estudioso especifica o quarto tipo de transtextualidade que a denomina de hipertextualidade, “J’entends par là toute relation unissant un texte B (que j’appellerai hypertexte) à un texte antérieur A (que j’appellerai, bien sûr, hypotexte) sur lequel il se greffe d’une manière qui n’est pas du commentaire” (Genette, 1982, pp. 11-3). Sob o ponto de vista de Genette, Dido, a rainha de Cartago, é um hipertexto da Eneida, assim como a Eneida é um hipertexto da Odisseia e da Ilíada. Portanto, é seguro afirmar-se que as diferenças e convergências textuais encontradas na obra de Marlowe em relação à obra de Virgílio confluem para uma hipertextualidade entre as obras Eneida e Dido, a rainha de Cartago.


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Um dos exemplos mais explícitos de hipertextualidade, em que parece haver uma divergência textual, na obra de Marlowe, surge pela voz de Eneias, quando decide permanecer em Cartago e anuncia sua determinação aos nautas, seus companheiros: Triunfo, homens, não mais vagaremos Nova Troia aqui fundará Eneias Mais poderosa que a devastada Pelas mãos dos Atridas Suas diminutas muralhas Cartago Não mais ostente como sua glória Moldura ainda mais bela lhe darei. (ato V, cena I, versos 1-5)

Vê-se no drama de Marlowe o júbilo de Eneias, em relação à construção da cidade de Dido, jamais visto no texto de Virgílio. Na Eneida, é mencionado apenas o contentamento de Eneias em relação a esse empreendimento. Ainda assim, o poema de Virgílio não deixa de ser a fonte de onde emana a hipertextualidade encontrada na peça de Marlowe. Pode-se demonstrar a recepção do tema latino em Dido, a rainha de Cartago quando Mercúrio, o mensageiro de Júpiter, recrimina Eneias e chama a sua atenção ao encontrá-lo em êxtase a construir as muralhas de Cartago. Aqui estás tu a lançar alicerces de Cartago, uma altiva cidade que será bela também, que tu assim constróis como se fosses só um bom marido quando afinal és príncipe esquecido do reino seu e de altaneiros fados. O próprio rei dos deuses me enviou, ele que faz girar o céu e a terra, de seu ilustre Olimpo me mandou para através dos ventos te lembrar que não deves passar tempo ocioso neste país da Líbia que não pode a ti fazer raiar uma esperança. Se não te move a ti alto destino


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vê como Ascânio cresce e que esperança há para teu herdeiros, aquele Iúlo, a quem pertencerá Itália e Roma.6 (Virgílio, 2008, p. 232)

O que se pode notar é que Virgílio é bem mais enfático quando se trata da responsabilidade do herói. No caso de Marlowe, o mensageiro de Zeus apenas faz uma advertência a Eneias de que chega de jogos amorosos e brincadeiras de reconstrução de muros, pois o que interessa ao dramaturgo inglês é o embate amoroso, sem, contudo, deixar de sublinhar que o deus todo-poderoso tem planos mais nobres para os descendentes de Troia. Frise-se que o objetivo maior do poeta mantuano é a construção de Roma por Eneias e a reconciliação entre troianos e gregos, conforme Grimal (2005, p. 136), por isso Eneias precisa retomar as responsabilidades às quais foi incumbido realizar pelas hostes divinas. Amor, sentimento que destrói tanto quanto a morte

Segundo Grimal, Ascânio ou Iúlo, filho de Eneias, fundará Alba Longa, a metrópole de Roma. Outras lendas falam de Eneias como fundador de Roma. 6

Desde todo o sempre, o amor e a morte são pares indissociáveis nas tragédias e nos dramas que envolvem casais em diferentes épocas e autores. Os pares Medeia e Jasão, Hércules e Dejanira, Helena e Páris, Dido e Eneias são os exemplos que se destacam neste paper, pois a literatura, seja clássica, medieval ou moderna, está plena de casais que sucumbem diante de um amor-paixão não correspondido. Não importa que sejam amores lícitos ou ilícitos, a destruição do casal e de suas casas reais necessitam tão-somente de uma dose de Hedonê e outra de Mania misturadas à rejeição de uma das partes. Esse processo resulta numa porção química sedutoramente perfeita para atrair Thanatos. A Hedonê do grego arcaico Ἡδονή é a deusa latina Volúpia, filha de Eros e Psiquê. Por derivação, ‒ Hedonê transformou-se no hedonismo, em que o prazer é o supremo bem da vida e, na atualidade, essa virtude se pode expressar pelo culto ao prazer. Já a Mania, segundo


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Grimal, é a personificação da loucura. A deusa grega Mανία é quem conduz as personagens às catástrofes, aos assassínios e à Thanatos (θάνατος), que, por sua vez, é a personificação da morte. Percebe-se que essa tríade está em perfeito acordo no teatro de Marlowe, embora apareça no poema virgiliano, mas de forma diluída, porque o que interessa no poema virgiliano é a gesta e a glória do herói. Eneias representa um amor ilegítimo e destruidor para Dido, semelhante ao amor ilícito entre Páris e Helena, que serviu de móbil originador da disputa bélica que levou Troia à ruína. O fogo, particularmente na peça de Marlowe, transforma-se em outro elemento de aniquilamento, tornando-se símile do amor-paixão. A rainha de Cartago foi picada pelo amor e pela paixão ardente que a destruiu e, por consequência, teve seu império aniquilado. Basta lembrar que Dido, na peça inglesa, ao se sentir possuída pelo amor, enfraquece, e sua liderança torna-se débil. Pensa, vive e morre pelo amor de Eneias, esquecendo-se quase que completamente de seus deveres para com sua Cartago. No poema de Virgílio o fogo é igualmente um simbólico de evidente destruição. Nas duas obras a chama representa a força centrípeta da exterminação, da higienização de tudo que representa o mal. Dido é o mal para Eneias, pois, se o herói optar por ficar em Cartago, gozando da Hedonê do amor de Dido, colocará em perigo a construção de uma nova Troia; Eneias é o mal para Dido, porque, se a rainha preferir o amor de Eneias em detrimento ao de outros admiradores, inclusive de Iarbas, seu protetor e pretendente, esquece-se de sua função maior: manter a prosperidade, a expansão e a união do reino de Cartago. Esse fato encontra-se mais evidente no texto do dramaturgo inglês, quando Dido fica acometida pela Mania. Numa autopunição, a rainha se compara à mulher que os troianos jamais haveriam de perdoar: Helena. “Segunda Helena” chama-me o mundo Por de um estrangeiro me enamorar Ao menos fosses fiel como Páris Caia Cartago como outrora Troia E que me chamem de “segunda Helena” (ato V, cena 1, versos 144-8)


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Ressalte-se que essa similaridade amorosa destrutiva do amor entre os casais Páris-Helena e Eneias-Dido os aproxima da destruição de suas casas reais. Helena não morre por amor como acontece a Dido, mas tanto no poema de Homero, quanto no poema de Virgílio, como também no drama de Marlowe, por causa de um amor inconcebível, os reinos são destruídos. O aspecto avassalador do amor que arruína Cartago também aniquila a vida da rainha, pois ele é automutilante, é um amor causa mortis, é “o amor não correspondido que arrasta o ciúme, o ódio e a morte”, como afirma Ferreira (2004, p. 43). Tal amor transporta consigo força e destruição física e moral. Esse sentimento dominador e possessivo atrai para a morte o ser amante ao mesmo tempo conduz à ruina o ser amado. É assim que a fenícia se comporta na peça de Marlowe. Veja-se que, por causa de seu amor ensandecido, Dido quis transformar Eneias em um novo Siqueu, demolindo sua identidade heroica, e, por extensão, a moralidade de seus atos. Valente amor em meus braços terás A tua Itália, onde reinarás Siqueu seja teu nome, e não Eneias Rei de Cartago, e não filho de Anquises (ato III, cena 4, versos 57-60)

Entretanto, o fogo do amor-paixão de Dido não é capaz de derruir o destino de Eneias, pois há a intervenção divina que chama o herói à razão. Já a loucura amorosa da rainha provoca sua própria ruina física e moral. A ação devastadora do amor em Dido, tanto no poema de Virgílio quanto no drama de Marlowe, tem um sentido diferente do amor que envolve o par Medeia-Jasão. Presa pelo amor de Jasão, Medeia, figura de paixões violentas, de possessividade incontrolável e de personalidade tão forte quanto Dido, perde-se de ciúmes. Jasão, ao preteri-la em razão mais de interesse e ambição do que de amor pela filha do rei, concorre para o desvario de Medeia, que não vê outra saída a não ser a da vingança: comete infanticídio. A rainha de Cartago não tem filhos para se desforrar do mal causado pelo amante, todavia pede às divindades que


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consiga o que há de mais cruel para Eneias durante o seu trajeto em direção à costa da Hespéria,7 Os versos a seguir assim fazem referência à sua insânia: Atribuí que mesmo chegando a Itália Sejam atormentados sem descanso E possa de minhas cinzas surgir Um tal conquistador que vingará Tamanha perfídia a uma rainha Seus países com a espada revire Paz nunca haja entre esta terra e aquela (ato V, cena 1, versos 303-9)

Com a perceção de que Eneias prefere a glória, a si destinada pelos deuses, ao seu amor incondicional, Dido decide morrer e de uma forma velada insere a vontade dos deuses no seu desejo. No drama de Marlowe (ato V, cena 1), os versos 130-1 descrevem, em prolepse, a sua decisão: Quem são os deuses que morta me querem? De que maneira a Júpiter ofendi Que de meus braços Eneias arranca?

Dido é assaltada por uma loucura amorosa próxima do desvario que acomete Dejanira, esposa de Hércules, na tragédia, As Traquínias, de Sófocles. Dejanira, em virtude de seu ciúme, provoca a morte do ser amado. Sente-se culpada e, em razão disso, comete suicídio no leito nupcial com a espada de Hércules. Observa-se uma transtextualidade entre o drama construído por Marlowe e a tragédia de Sófocles na cena do suicídio de Dido. A rainha de Cartago escolhe entre os pertences de Eneias a espada, objeto que não deitará fora nem queimará, transforma-a, contudo, em símbolo do rompimento do amor e da vida. Assim como a esposa de Hércules, Dido faz uso de objeto igual ao que Dejanira utilizou para dar fim a vida. Hespéria, hoje toda a região da Itália. Na véspera da partida de Eneias da Troia dizimada, os numes tutelares apareceram e disseram-lhe que ele deveria ir para o local de origem de Dárdano, antes chamado Hespéria agora Itália. 7

Esta é a espada, que, naquela gruta Desembainhando, ser leal jurou Pior teu crime, queimarás primeiro (ato, cena 1, versos 295-7)


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Dido não está tomada de ciúme por Eneias, mas encontra-se tomada pelo desejo de posse. A fenícia é vencida pelas armas letais de um amor Mania que foram ampliadas pela rejeição de Eneias. Na peça de Marlowe, antes de consumar o ato, Dido é acometida pelo “furor da paixão”, como afirma Marques Júnior (2006, p. 35) a respeito da personagem do poema de Virgílio, de tal maneira que tem alucinações e entra em cena transtornada: Farei asas de cera como Ícaro E, acompanhando seus navios no mar Até bem perto do sol voarei Para que, então, derretam minhas asas E eu caia para sempre em seus braços Ou uma prece às ondas farei Possa, como a sobrinha da Tritão Ao encontro de seu navio nadar Oh, Ana, busca a harpa de Arion Para que eu possa encantar um golfinho Que em seu dorso, até Eneias me leve Olha, irmã, os navios do meu Eneias Vê como ao alto o arremessam as vagas E agora caem rumo às profundezas Ó, minha irmã, essas rochas remove Ou seus navios elas destruirão Ó, Júpiter, Netuno, e Proteu Salvem Eneias, amado por Dido! Agora vem à costa são e salvo Mas vê, Acates quer que volte ao mar Os marinheiros vibram de alegria Mas, à minha memória, ele recua Vede, retorna, sê bem-vindo, amado. (ato IV, cena 5, versos 243-60)

A disputa entre Juno e Vênus torna o amor de Dido e Eneias inconciliáveis, o que se transmuta em um paradoxo. Juno, a deusa que protege a licitude da união entre os casais pretende que Eneias e Dido fiquem juntos e Vênus, a deusa que incita toda a espécie de amor, quer ver seu filho feliz. No entanto, se por um lado Vênus não deseja que seu filho abdique da felicidade com Dido na bela Cartago, por outro não quer que ele renuncie ao


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destino glorioso que lhe foi prometido. Desconstruindo-se o que se apresenta como antagonismo na forma litigante dessas divindades, percebe-se que há uma intenção subreptícia nesse jogo divino entre Juno e Vênus, como bem percebe Marques Júnior (2006, p.39-40): Em cada uma, os interesses são diversos: para Juno, a união de Dido e Eneias […] é a garantia de que Cartago não será destruída pelos troianos. Para Vênus, que reconhece a astúcia de Juno, é a oportunidade de proteger seu filho em terra estranha, que celebra Juno, e fazê-lo repousar e se refazer da tempestade e do naufrágio de treze dos vinte navios que o acompanhavam desde a saída de Troia.

A questão é crucial para uma explicação sobre o acordo tácito firmado entre as divindades em relação ao destino do pio Eneias, uma vez que andaram em conflito desde o famoso julgamento de Páris no Monte Ida. Celebrada a paz entre as duas, tudo parece ir bem até que Eros é impelido a provocar Thanatos, assentido por um jogo lúdico em que a pulsão de vida provoca a pulsão de morte. Amores doentios, obsessivos e destruidores são encontrados em vários autores clássicos, mormente nas tragédias gregas. Não seria despropositado afirmar que Virgílio sofreu influências das tragédias de Eurípides e de Sófocles para compor seu poema Eneida. Já o dramaturgo inglês, em termos literários míticos, é devedor de Virgílio e dos gregos, de onde recolheu os traços dos descomedimentos heroico-divinos provocados pelo ciúme, para compor seu drama. Embora as duas obras, Eneida e Dido, a rainha de Cartago, não se particularizem pelas linhas de uma tragédia clássica nos moldes recomendados por Aristóteles, um aspeto relevante deve ser ressaltado na leitura que ora se empreende: o erro. O erro trágico é o móbil desencadeador da ruína do herói, como teoriza Aristóteles em Poética (1453a, 1453b). Não se afirma, contudo, que Dido se configura, no poema de Virgílio, como heroína trágica dentro dos padrões das tragédias gregas, porém, a partir do drama do autor inglês, escrito segundo os pressupostos do drama


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elisabetano, pode-se inferir um erro cometido pela rainha fenícia, como aponta Silva (2006, p. 57): O erro de Dido foi sobrelevar a paixão por Eneias ao seu cargo de soberana e condutora de um povo, pois ao se envolver intensamente com o estrangeiro, açula a ira do general Iarbas, que a desejava como esposa, e desperta o interesse que a veem em um momento de fragilidade, pondo em risco a paz de sua nação.

É verdade que, sob o ponto de vista defendido por Silva, Dido cometeu um erro, sobretudo no que respeita ao drama Dido, a rainha de Cartago, de Marlowe. No entanto, em sua defesa, há que se observar a trama urdida pelas duas deusas que os impeliram a inevitabilidade do amor. Dido foi levada a amar Eneias e, em razão desse amor, esqueceu-se dela própria e de suas obrigações para com Cartago. A partir dos elementos abordados neste paper, chega-se a um ponto conclusivo. Está-se perante a um tema de amores frustrados que acarretam destruição e morte. Tal experiência afetiva que viveram Eneias e Dido, em que se conjugam pesar e alegria, prazer e desprazer, felicidade e tristeza, não é única no mundo da literatura clássica ou moderna, porque tal faculdade também faz parte da condição humana. As personagens amam-se e rejeitam-se numa cadeia de não reciprocidade, que levam todos os seus elos à morte. Sob a criação poética de Marlowe, o amor é ampliado, a relação torna-se contraditória, assim como também são contraditórios os vínculos que unem os amantes: Ana ama Iarbas, que ama Dido, que ama Eneias, que não ama ninguém. Todos decidem morrer por amor, menos Eneias, porque seu amor por Dido é um simulacro conspirado por duas deusas com interesses próprios em razão de um litígio. Sendo assim, a Hedonê habita o coração do par Dido-Eneias, mas o troiano não corresponde ao desafio da Mania desencadeada pela fenícia, por isso Thanatos é convidado a participar apenas do banquete preparado por Dido para ela, atingindo diretamente quem a ama. Através da temática do amor, os dois poetas


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demonstram que o amor entre Dido e Eneias é um sentimento que inflama as índoles e dispõe em êxtase as almas. Observa-se também que Marlowe fez acréscimos significativos em sua peça em relação ao poema de Virgílio, no que trata do furor amoroso que se abateu sobre a figura feminina. Esses aspectos apresentados entre os textos de diferentes séculos, mas que expõem a mesma temática, demonstram que o estudo comparativo de literaturas recupera a importância da transtextualidade, permitindo, assim, que obras clássicas ressurjam na modernidade com novo perfil, todavia não negando os seus predecessores.

Referências ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. FERREIRA, José Ribeiro. Amor e morte na Cultura Clássica. Coimbra: Ariadne Editora, 2004. GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la literature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 2004. GIAMMARCO, Thais Maria. Dido, a Rainha de Cartago: Uma Proposta de Tradução para a Obra de Christopher Marlowe. Campinas-São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia e Letras da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas-São Paulo. GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia grega e romana. Trad. De Victor Jabouille. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. MARLOWE, Christopher. The complete plays. London: Everyman Paperbacks, 1999. MARLOWE, Christopher. Dido, a rainha de Cartago. Adaptação de Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. MARQUES JÚNIOR, Milton Viana, Helena Tavares de Silva, Leyla Thays Brito da Possebon, Fabrício (orgs) Eneida – Canto IV: a morte de Dido. João Pessoa: Ed. Universitária/PB, 2006. REMAK, Henry H. H. Literatura comparada: definição e função. Trad. Monique Balbuena. In: COUTINHO, Eduardo F. e Carvalhal, Tania Franco. (orgs.) Literatura Comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 175-90.


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SILVA, Leyla Thays Brito da. Dido: uma heroína trágica na Eneida de Virgílio. In: Eneida ‒ Canto IV: a morte de Dido. João Pessoa: Ed. Universitária/PB, 2006, p. 55-63. VIRGÍLIO. Bucólicas, Geórgicas, Eneida. Trad. de Agostinho da Silva. Lisboa, 2008. Temas e Debates.


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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos*

Resumo: Este artigo propõe-se a reler a proposta disciplinar da Literatura Comparada em sua longa trajetória nos estudos literários, procurando, sobretudo, acompanhar o caráter em “difração” da prática comparatista, sob as mais diversas conceituações do rótulo disciplinar, especialmente hoje em dia, quando tanto a teoria como a prática disciplinar ainda, e cada vez mais, demandam perspicácia articulatória aliada e resultante de um processo de produção de sentidos. Palavras-Chave: literatura comparada; pesquisa em literatura; comparatismo hoje; crítica literária. Abstract: This article aims to reread the disciplinary proposal of Comparative Literature in its long trajectory into the literary studies, searching mainly to follow the diffraction’s character of the comparative practice, underneath the several compilations of the disciplinary title, specially nowadays, when both the theory and the disciplinary practice still, and more and more, demand an articulated perspicacity allied to and resultant from a process of meaning production. Keywords: comparative literature; research in literature, comparatism today, literary criticism.

* Universidade Federal da Grande Dourados - MS.

Os efeitos da globalização são sentidos em todo lugar, até mesmo nas vilas do Nepal através das antenas parabólicas, mas o contrário não é verdadeiro, essas vilas não existem para o Primeiro Mundo, pois o detalhe cultural da vida cotidiana, condição e efeito da sedimentação do idioma cultural, não chega aos países donos dos satélites. O fato é que [...] existe uma imensa heterogeneidade de línguas


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Os efeitos da globalização são sentidos em todo lugar, até mesmo nas vilas do Nepal através das antenas parabólicas, mas o contrário não é verdadeiro, essas vilas não existem para o Primeiro Mundo, pois o detalhe cultural da vida cotidiana, condição e efeito da sedimentação do idioma cultural, não chega aos países donos dos satélites. O fato é que [...] existe uma imensa heterogeneidade de línguas subalternas e culturas periféricas que não se comunicam e não se conhecem, e a literatura comparada não pode se omitir de seu papel nesse cenário. Esse papel seria suplementar não somente em relação às ciências sociais com seus informantes locais, mas também à toda engenharia transnacional de benevolência social, desde a instituição dos Médicos Sem Fronteiras à cultura das ONGs, que não tem condições de acessar a densidade misteriosa dos idiomas e das linguagens dos povos que buscam ajudar. Rita SCHMIDT. “Alteridade planetária: a reinvenção da literatura comparada”. O corpo da literatura é imenso, mas inapreensível em sua totalidade. Como respira, como se desloca? Pode-se constatá-lo unicamente de modo metonímico, admitindo que o menor recanto do mundo reflete todas as escalas do jogo dos valores. A literatura é poliglota. Fala centenas, milhares de línguas. Wladimir KRYSINSKI. “Narrativas de valores: Os novos actantes da weltliteratur”

Palavras iniciais No quadro das ciências humanas, a “disciplina” Literatura Comparada, nas três perspectivas de abordagem – “histórica”, “teórica” e “crítica” –, que geram inúmeras formas ou vertentes de análises, não só reformulou suas metodologias enquanto démarche de um rótulo mutante, como também fez-se remontar às origens de uma prática de pesquisa ancorada em um conceito sempre deslizante, “work in progress”, resultante da quebra de paradigmas


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e simultâneo questionamento das relações sujeito versus objeto. Entre a caudalosa produção de conhecimento nesta área e a crescente se não efervescente discussão nas constantes e diferenciadas reformulações do conceito e sua prática (o comparatismo em âmbito planetário), torna-se ainda pertinente reposicionar o “lugar” de uma “disciplina”, que, a meu ver, tendo assistido ao vaticínio de sua própria morte, parece ainda mais revigorada, hoje em dia, como a Fênix –, a ave fabulosa da mitologia egípcia, que, tendo vivido muitos séculos, quando queimada, renascia das próprias cinzas.1

Estas “palavras iniciais” são o corpo do resumo de nossa intervenção, através do projeto “Percurso de uma disciplina: Literatura Comparada Ontem e Hoje”, que foi submetido ao Projeto coletivo intitulado “Plano de Trabalho do GT de Literatura Comparada da ANPOLL, julho 2012/julho 2014”, particularmente para o Encontro ENANPOLL 2013, realizado no período de 28 a 30 de Agosto de 2013, sob os auspícios da UFSC/ Florianópolis. 1

I. Ao redigir estas “palavras iniciais”, duas preocupações teóricas, e próprias do comparatista, soaram, desde o início, inquietantes, e, pior, parecem ter-se justificado até o final deste artigo, que, por isso mesmo, necessitam já da sua explicitação antes que avancemos na discussão e/ou desenvolvimento das ideias que se formularão em torno do propósito de refletir sobre a literatura comparada hoje. A primeira das preocupações já se antepunha na redação propriamente dita dessas “palavras inicias”, ou seja, procurar materializar, na desafiadora acepção de vocalizar algo ou alguma coisa, neste caso o “rótulo” e a capacidade plástica da literatura comparada enquanto método de trabalho que, se, por um lado, é depositária de uma tradicional prática de estudos no campo da literatura, por outro lado, trata-se, ao mesmo tempo, de uma disciplina e de um campo de estudos que têm, de maneira vocacional, assumido o mais complexo espectro de transformações, mutações e reformulações, desde as suas primeiras práticas e textos fundadores, com exclusivos efeitos deletérios nas últimas décadas, fruto do quadro mais geral e da insurgência de novos e reposicionados objetos de estudo, mormente resultantes da globalização cultural e das mídias em geral. Neste nível, não só o livro, as condições de leitura, a conceitualização e a função da literatura acederam a outros “lugares” inesperados e de inusitadas experiências de fruição, ou seja, as práticas culturais mudaram de lugar, mas, também, e talvez em consequência, a própria ideia de


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contemporaneidade e de sujeito aí implicado puseram em demanda uma outra mundivivência, diferenciadora, que conclama à reverificação dos antigos lugares de saberes ao mesmo tempo em que se indaga acerca de toda a contemporaneidade, de que é ilustrativo o livro de Giorgio Agamben (2009), O que é o contemporâneo?. II. A segunda preocupação que queremos assinalar, e que já está implicitamente envolvida na primeira, é resultante do fato de termos evocado a palavra “disciplina”, ainda mais uma vez em nosso exercício de metalinguagem, na tentativa de responder a eterna pergunta “O que É Literatura Comparada?”,1 logo após o amplo e histórico debate sobre a “crise da literatura comparada”2 e a radicalização desta crise, hoje tornada aporética, segundo outro recente livro de Gayatri Spivak, Death of a Discipline.3 Diante desta preocupação, confrontados com o vaticínio da morte e da dilacerante condição de refletir hoje sobre a natureza e função da literatura comparada, o que de alguma forma nos fora legado por forte tradição humanística, baseada numa grade esquemática das disciplinas e bem caracterizadas pela visão realista-naturalista cartesiana da realidade, à la século XIX, portanto, queremos, nos próximos subitens/parágrafos deste texto, pontuar alguns aspectos que parecem substantivos enquanto linhas de força (campo de pesquisa) e imprescindíveis quando voltamos, hoje, à rediscussão do lugar e função da literatura comparada nos processos de integração cultural. III. O aludido fórum de discussão do GT de Literatura Comparada, dentro do ENANPOLL 2013, refletia, a partir da convocatória de sua proposta, um ambiente bastante familiar ao grande número de comparatistas brasileiros que integramos este Grupo há pelo menos duas décadas.4 De um modo geral, as discussões e papers ali gerados e publicados, frequentemente de modo coletivo, têm se voltado para a potência e validação das diversas formas de abordagens e metodologias em literatura

Trata-se do famoso ensaio “O que É Literatura Comparada?”, de Steiner, proferido como Aula Inaugural na Universidade de Oxford, em 1994. 2 Cf. Wellek, René. “A crise da literatura comparada”, 1994. 3 “A literatura comparada está morta.” Eis a frase que inicia a alentada discussão da ensaísta brasileira Rita Schmidt, ao confrontar o livro de Gayatri Spivak (2003) com a ideia de que “A literatura comparada ainda está por vir.” Cf. SCHMIDT. “Alteridade planetária: a reinvenção da literatura comparada”, p. 113-129. 4 Nossa participação na linha “Limiares Críticos”, coordenada por Tania Carvalhal, deu-se a partir do “Encontro em Salvador”, conforme divulgou o Informativo/ANPOLL nº 5, out. 1997. 1


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comparada, dentro de um largo interesse pela natureza e funcionamento dos textos literários e uma repetida prática de inter- e transdisciplinaridade a envolver o fato e o texto literários – tudo isso decorrendo da natureza da questão ou questões levantadas pelo investigador de literatura. Selecionando uma dessas discussões, parece ser a que recobre o “rótulo” de literatura comparada a que, de uma forma ou de outra, mais tem servido à ampla produção de sentidos, talvez por ser ela – a literatura comparada – a que ainda nos reúne e congrega em grupos e associações e em sua prática no ensino de graduação e pós-graduação, quando não pela motivação do caráter plástico, polimorfo, tributário de um não-lugar epistemológico privilegiado, de amplíssimos horizontes e versátil atuação do comparatista, mas, sobretudo, talvez pelo exercício da polêmica, per se, da vitalidade do olhar intelectualizado e fortalecido por uma tradição humanística das letras ou belas-letras. IV. De fato, ainda hoje se sublinha, digamos “assinalase”, o vigor prospectivo da palavra disciplina, na medida em que sua circunscrição semântica resulta e ganha ressemantizações, aliás, como todo seu escopo teóricocrítico também ganhou ressignificações operadoras, como se numa necessária atualização do aparato crítico que, assim, se remodela em função das démarches implicadas seja na historicidade ou nas textualidades contemporâneas. Assim, a ideia que interessa repercutir provém da retomada de certo modo de pôr-em-relação (“relacionar” já detém lugar de cidadania como terminologia e lugar axiomático do comparatista) os objetos de conhecimento segundo perspectivas ou scripts de análise “assinaladas”, ou, também “assinadas”, pela prática comparatista. Com isto, queremos dizer, seguindo a reflexão de Giorgio Agamben, em Signatura rerum – Sobre el método (2009), que a referência mesma à palavra-signo “disciplina”, remissão e retomada de sua tradução espanhola, “asignatura”, vem ao encontro, na reflexão do filósofo, da ideia-signo-referência de “assinatura”, sinalizando, por assim dizer, o horizonte significativo do campo disciplinar e consequentemente


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da prática comparatista no quadro das ciências humanas, hoje em dia. Nesse processo, a assinatura5 passa a ser um elemento essencial; a assinatura, os vestígios, os traços, aquilo que resta, nessa perspectiva é o fio de Ariadne: a assinatura não é o sinal, mas é aquilo que faz com que o sinal possa ser inteligível. Está-se, assim, em atitude “retroativa”, quer dizer, o “anacronismo que pressupõe não mais uma estaticidade e sim um movimento (ou movimentos), que compõem os fios da delicada, imbricada e complexa trama. Um tempo, portanto, que não é mais aquele lógico, da cronologia, mas se apresenta analógico, kairológico.” A literatura e a crítica como agenciamentos. Um pensar que é também inventar. É nesse sentido que, “a estratégia do exílio como lugar do intelectual, ao obrigálo sempre a descentrar-se de sua própria casa, certamente, pode construir um profícuo “entrelugar” em que as coisas nunca sejam vistas de maneira isolada [...]”.6 Agambem explica que a relação expressada pela “signatura” não é uma relação casual, antes é algo mais complicado que se impõe à compreensão: “Suele entenderse la relación entre la signatura y lo signado como una relación de semejanza, [...]. La lengua, que custodia el archivo de las semejanzas inmateriales, es también el cofre de las signaturas” (AGAMBEN, 2009, p. 51). Daí o filófoso evocar a relação, o caráter analógico, entre as plantas e os efeitos terapêuticos que delas decorrem a partir de seus nomes (assinatura), já impressos em suas próprias formas, como resultante da relação entre a palavra e a coisa.7 Como o “satyrion” [Traducida al castellano como “satirión”, es la raíz de una planta orquidácea que posee cierta similitud con los testículos masculinos] e a “eufrasia”: enquanto a “signatura” da primeira mostra que pode restituir ao homem “sua virilidade perdida e a luxúria”, a segunda, que mostra uma mancha em forma de olho, desvela deste modo sua capacidade para curar as enfermidades da vista. (p. 52) A citação de Agamben acentua a complexidade da relação (nome/palavra versus coisa), ainda mais por revelar o trabalho adâmico (Adão) de batizar nomeando:

Referência ao segundo texto da coletânea Signatura Rerum de Giorgio Agamben (2009). 6 Projeto “Literaturas em trânsito: deveres das linguagens na contemporaneidade”, do GT de Literatura Comparada da ANPOLL, 2011-2012, coordenação Angela Maria Dias. 7 Alusão ao título do ensaio de Fernand Baldensperger, “Literatura comparada: a palavra e a coisa”. 5


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Reflexionemos sobre la particular esctructura que tambén en neste caso define a la signatura. La relación de signatura, en la eufrasia, no se establese, como podría parecer, entre la virtud terapéutica oculta y la mancha en forma de ojo sobre su corola, sino directamente entre la eufrasia y los ojos. “Por qué la eufrasia cura los ojos? Porque tiene en sí la anatomiam oculorum”; ella “tiene en sí la forma y la imagem de los ojos, por lo tanto, deviene toda ojos”. La signatura pone a la planta en relación con el ojo, la disloca en él, y sólo de este modo revela su virtud oculta (AGAMBEN, 2009, p. 52-3).8

As citações no texto de Agamben são de um dos livros do “tratado” de Paracelso. Que assim explica o objetivo do livro: “Si en este libro se trata de filosofar de signatura rerum, entonces sería ante todo útil y conveniente precisar de dónde derivan los signata, cuál es su signator y cuántos existen”. (apud Agamben, 2009, p. 48). Em rodapé, a nota do tradutor: “Signata: las marcas de las cosas, serían los signos. Signator: el signador, el que marca”. (Ibidem, p. 48) 8

V. Em recente publicação, o comparatista Edgar Nolasco (2011), apoiando-se em vigorosa bibliografia, elaborou exaustivo levantamento dos conceitos disciplinares da literatura comparada, sobretudo a dos autores reunidos no livro Literatura comparada: textos fundadores, organizada pelos comparatistas brasileiros Eduardo F. Coutinho e Tania Franco Carvalhal. E em “Conceitos indisciplinados”, subcapítulo de “O que é, afinal, Literatura Comparada?”, pudemos contabilizar, apenas nesta publicação, vinte e três possíveis articulações que, ou abordam o rótulo da disciplina ou reelaboram intrincadas metalinguagens acerca de sua prática e/ou metodologia, às vezes entrecruzando ambas as perspectivas, grosso modo. De uma forma ou de outra, a presença desses autores em um livro de “textos fundadores” não deixa de sugerir a construção de um paradigma próprio do campo da literatura comparada. É de grande produtividade ler os ensaios dos consagrados autores, nossos conhecidos: Hutcheson Macaulay Posnett, Joseph Texte, Louis Paul Betz, Benedetto Crocce, Fernand Baldensperger, Paul Van Tieghem, Marius-Fraçois Guyard, René Wellek, Robert Escarpit, Claudio Guillén, Henry H. H. Remak, René Etiemble, Vitor M. Zhirmunsky, Claude Pichois & André M. Rousseau, Simon Jeune, Jan Brandt Corstius, A. Owen Aldridge, Werner Friederich, Harry Levin, S. S. Prawer, Ulrich Weisstein e François Jost. E, ampliando a lista, o comparatista René Wellek aparece com dois textos


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fundadores, além da explicação-conceito dos próprios organizadores do livro, os quais também são comparatistas, e ambos têm formulado importantes contribuições em torno do assunto. Assim, como se depreende, seja no livro dos “textos fundadores”, seja no de Edgar Nolasco, que comenta o primeiro, as ideias-conceitos formuladas não apenas fracassam na laboriosa vontade e inteligência de descrever o espaço e lugar da atividade comparatista, malgrado o imenso esforço, mas, por assim resultarem, oferecem flancos para outras produções de sentidos que ainda procuraremos contemplar, porquanto são reflexões que brotam dos últimos esforços do comparatismo na atualidade. (Cf. NOLASCO, 2011, p. 21-5). A partir daí, a atividade crítica passaria a corroborar a da pesquisa, fazendo com que a articulação do campo literário com outras disciplinas, como a etnologia, a filosofia, o marxismo, a psicanálise, a teoria da escrita e do texto, contribuam para os avanços das práticas pós-estruturalistas como os estudos da tradução, os dos pós-coloniais e os dos Estudos Culturais –, aliás, como se registra em “Limiares, passagens e paradigmas: o curso da pesquisa”, um ensaio decisivo de Tania Carvalhal, publicado em 2002.9 Tendo em vista a importância da contextualização, lembro de Tania Franco Carvalhal, que, em texto de abertura do Seminário Internacional “Culturas, contextos, discursos: limiares críticos no comparatismo”, evoca o esforço comum de vários integrantes de um projeto de pesquisa, do qual fui membro e depois coordenadora, com a notável participação de Lisa Block de Behar, em cujo texto de justificativa da linha de investigação “limiares críticos”, então coordenada pela Professora e colega Tania Carvalhal, diz o seguinte: Se as definições epistemológicas questionam os limites disciplinares, teóricos, metodológicos; se as dúvidas taxonômicas impugnam a rigidez de inventários que não abarcam a variedade dos objetos a classificar ou cujas diferenças não justificam as oposições que ultrapassam as classificações ou as entrecruzam; se a atualidade literária, estética, teórica, crítica e

Neste sentido, como sublinha Carvalhal, a alteração de paradigmas reflete-se nas propostas e títulos de trabalhos que já modificaram, à época, tanto o perfil da universidade como algumas estruturas sociais, cuja orientação não era só de superfície, mas correspondia à variedade de orientações teórico-críticas com que um estudioso da literatura se deparava: Douwe Fokkema publica “A literatura comparada e o novo paradigma”, Eva Kushner publica “Em direção de uma tipologia dos estudos de literatura comparada” e Gerald Gillespie, “Rinoceronte, unicórnio ou quimera? Visão polissistêmica de uma possível tipologia da literatura comparada no próximo século”. Cf. CARVALHAL, 2002, p. 149. 9


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hermenêutica hesita diante de um conhecimento que, em movimento, se instala no intervalar, abarcando a uma só vez espaços distintos, julga-se que se deva dar mais atenção, além da requerida por centros e periferias, a zonas limiares onde os gestos de iniciação propiciam a formação de conceitos, onde os limites vão penetrando progressivamente espaços que não se determinam com nitidez. Do mesmo modo, as oscilações verificadas nas instituições literárias, acadêmicas e mediáticas, o questionamento de suas categorias, de outras instituições com as quais guarda limites tão afins quanto difusos, dão lugar a diversos entrecruzamentos e controvérsias que, como as discussões sobre o cânone, sobre gêneros, sobre a vigência da própria instituição literária, fazem dos marcos um espaço de luz e sombra, um umbral que habilita o acesso a uma interioridade sempre enigmática ou que avança em direção de uma exterioridade que não se subtrai às inscrições de uma escrita, que filtra tanto a realidade quanto a ficção, representando-a e configurando-a. Contrariamente, estas preocupações com o limite, a fronteira, a margem, o contorno, se encontram no centro das reflexões literárias que transformam a localização em tema e matéria de seus objetivos disciplinários onde a comparação, a articulação entre culturas, as linhas de contraste e coincidência se constituem na topografia destas investigações (CARVALHAL, 1999, p. 10-11).

VI. Entrementes, os aspectos que vimos alinhavando – se não na tentativa de esboçar uma possível e criativa formulação do exercício de comparar, enquanto operação ainda validada para os dias de hoje, porém mais consciente do caráter provisório, de autofagia contumaz de nossa capacidade de reinventar “saberes” e modos de saber –, é hora de evocar o prefixo “pós”, de “pós-modernidade”, que, em sua forte rentabilidade sustentou outros, tais como: pós-crítica, pós-teorias, pós-autônoma, que, se referindo ao lugar (ou condição?) da “literatura” hoje, terminou por reposicionar esse objeto, a literatura, sob uma perspectiva


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que deve ser considerada hoje em dia. Assim, deriva do atual contexto cultural a ideia compartilhada de que a literatura transpôs-se de um lugar previsível e de matriz de saberes na tradição ocidental para um “não-lugar” que, contemporaneamente, é compartilhado com outros discursos, tornando rarefeita a sua legitimação segundo uma ideia de cultura. Principalmente com a ideia de cultura letrada. Aliás, esta ausência de lugar fixo, “não se circunscreve apenas ao discurso literário, pois a questão abrange todo e qualquer tipo de discurso. Por isso, o debate em torno dos lugares disciplinares tem cheiro de fruta passada e já deveria estar produzindo outros frutos que enriqueceriam os estudos literários comparatistas e culturais.” (SOUZA, 2002, p. 85). Em outra passagem, afirma a ensaísta: “O objeto literário deixa de ser privilégio da crítica literária e se expande para outras áreas, numa demonstração de estar a literatura se libertando das amarras de um espaço que a confinaria para sempre no âmbito das belles-lettres” (p. 115). Também Josefina Ludmer propõe chamar escrituras ou literaturas “postautónomas” às literaturas cujas práticas provêm de territórios do cotidiano, que assim se fundariam em dois repetidos, evidentes “postulados sobre el mundo de hoy. El primero es que todo lo cultural [y literario] es económico y todo lo económico es cultural [y literario]. Y el segundo postulado de esas escrituras sería que la realidad [si se la piensa desde los medios, que la constituirían constantemente] es ficción y que la ficción es la realidad.” (LUDMER, 2013). Com efeito, diríamos que, vigente a atual reformulação de paradigmas em relação ao nosso objeto, hoje subsumido pela abrangência das disciplinas e pela inoperância e retrógada separação entre domínios de saberes específicos, resta o convite ao desafio perseverante de fazer do campo da pesquisa o lugar e ponto de partida e de intersecção das práticas de conhecimento, onde o saber resultará nas e das interrogações que o estudioso seja capaz de elaborar. Como enfatiza Tania Carvalhal, ao retomar o percurso da obra barthesiana, atravessada pela noção de seuil, de trânsito e principalmente pela ideia de transgressão e de ultrapassagem. Assumindo a perspectiva sugerida pela


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ensaísta, sublinha-se que o mais importante no conjunto da obra barthesiana é a insistência com que o crítico ensaia soluções para seu próprio métier: “o trabalho do crítico não é descobrir o significado secreto de uma obra – uma verdade do passado – mas constituir o inteligível de nosso tempo”, ou ainda, “o que sempre me fascinou na vida é o modo como as pessoas tornam seu mundo inteligível” (BARTHES, 1981, p. 15, apud CARVALHAL, 2002, p. 150). VII. Interfaces, transições: faces sígnicas do conhecimento. Ou, como nos ensinam as epistemologias do nosso tempo, todo conhecimento passa a residir na articulação dos suportes, no agenciamento das interfaces; se os mais diversos agenciamentos compósitos podem interfacear – tradução, transformação, passagem, o que é da ordem da interface – é porque todo conhecimento reside na articulação dos suportes, na arquitetura da rede. Com efeito, está-se no campo de uma operação cognitiva, que ilustramos com o comparatismo em suas multifaces, em que a capacidade de “relacionar” compartilha com a de “articulação”, talvez o ponto cego de um trompel’oeil raramente perspectivado, no qual o conhecimento resultaria da capacidade de articulação dos saberes e de igual competência para proporcionar o diálogo entre os métodos de abordagem segundo a natureza da questão levantada pelo investigador (Machado; Pageaux, 1988, p. 17). Assim, todas as formas e práticas possíveis do que chamamos literatura comparada e produção do conhecimento decorreriam de um indecidível que constitui a seleção e o olhar de cada investigador/observador, segundo a ardilosa arquitetura com que cada um entra e sai de Babel. Se retomarmos a clássica conceituação que começava por ensinar que “A literatura comparada é arte metódica” (BRUNEL, 1995, p. 139), hoje, essa analogia só pode ser produtiva em sentidos quando “a ‘arte’, como toda a ‘Arte’, é a do trompe-l’oeil...”: – A pintura é uma gaia-ciência, uma máquina de produzir anjos e quimeras, objectos que são e não são objectos; é


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uma máquina carnal cujo mistério reside na pele, à flor da pele, e cuja profundeza reside na superfície. A pintura baralha todas as categorias, pintura que pensa de um modo necessariamente possessivo e reflecte o próprio gesto de pensar e representar. Pintura e dinâmica de forças e secretas pressões que a consciência não alcança. Um castelo da alma que produz visões, cartas e epifanias, falsos espelhos e enigmas (COSTA, 2013, p. 461).10

Noção essa, do trompe-l’oiel, que vem da filosofia contemporânea, em ensaio intitulado “Zeuxis e Babel – Imagens de Filosofia”, cujo autor inicia dedicando-o a George Steiner, significativo paratexto dessas reflexões.11 Ao reunir Babel e trompe--l’oeil, duas imagens portentosas de “confusão”, o filósofo põe em cenário a potência da “articulação”, como própria do conhecimento, sem esquecer que Babel é o observatório que tenta unir os mundos subterrâneo e cavernoso, a terra e os céus. A palavra “Babel”, diz o filósofo, em hebraico, quer dizer Porta de Deus (Bab-Ilu/Bab--Porta e El-Deus), Porta do Céu, e “bâlal” aponta para “confundir”; “baralhar-embrulhar”: Em suma, a marca da contemporaneidade, se é que existe contemporaneidade(s), reside então nessa explicaçãocomplicação de cruzamentos e escritos. [...]. E isto porque a maravilha das maravilhas já não é que o Ser seja, mas sim que as metáforas, os transportes e as diferenças, persistam e se reflictam infinitamente, como num caleidoscópio ou no modelo reticular de Penélope, infatigavelmente urdindo e desurdindo a sua teia, até a exaustão. Contemporaneidade que nos assiste também na distribuição, circulação, tradução e na criação do que alguns chamaram provocatoriamente de artrologia – não astrologia, mas que sei eu disso – ou aquela ciência dos articuli, das articulações entre dispositivos de saber, de poder saber (COSTA, 2013, p. 461).

VIII. Como se vê, um sentido trágico está a envolver a

A citação foi extraída do ensaio “Zeuxis e Babel – Imagens de Filosofia”, cujas linhas/ entrelinhas desconstroem e ressignificam a aventura viva da contemporaneidade. Disponível em: <http:// ler.letras.up.pt/uploads/ ficheiros/1930.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2013. 11 Trata-se do famoso ensaio “O que É Literatura Comparada?”, de Steiner, referido anteriormente. 10


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situação da literatura e conhecimento no cenário atual. O desafio da contemporaneidade é continuar repetindo e repondo questões candentes como se a leitura literária ainda significasse não apenas abertura ao mundo, aos livros, mas à biblioteca infinita que constitui, hoje, o patrimônio cultural como um todo. Assim expandida, a condição da contemporaneidade torna-se gesto radical a envolver, inclusive, a noção de hipertexto, quando textos de caráter mutante se encontram com leitores que esboçam caminhos possíveis e acidentais. Assim como observou o crítico em “Identidades atravessadas”: Nesta situação, de certo modo incomensurável, reaparece de forma nova a figura do paradoxo. E esse é um lembrete para a teoria da literatura que precisa aprender o seu sentido alterado, não para salvaguardar, mais uma vez, um lugar singular na esfera cacofônica da cultura de contextualização veloz, mas para, de algum modo, colocar à prova e legitimar a sua própria importância e sobrevivência (OLINTO, 2001, p. 111 et seq.).

Com efeito, uma das características essenciais de nosso tempo, que estaria na construção do pensamento científico, diz respeito à inter-relação dos saberes, noção que está na base do pensamento e das práticas interdisciplinares. Por outro lado, outra característica de nosso tempo associa-se à anterior, ou seja, à universalização do saber, que se refere à disseminação e à apropriação do saber. A disponibilização dos livros em rede de Internet, como o projeto realizado pela Biblioteque de France, do qual Roger Chartier é um de seus mentores, objetiva a disponibilidade universal do patrimônio escrito que se torna, assim, universal, num certo sentido invalidando e tornando obsoleta a própria existência da Biblioteca Nacional. No entanto, todas as alterações, por mais fantásticas que sejam, têm seus riscos, pois, como afirmou o próprio Chartier, citado por Carvalhal (2005, p. 3): “A transferência do patrimônio escrito para a tela inaugura


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imensas possibilidades, mas será também uma violência contra os textos, separados da forma que contribuíram para construir as suas significações históricas”. Assim a lição de nosso tempo parece ser substancialmente esta: que a “universalização do saber”, facilitada pela tecnologia, não provoque a “separação entre os saberes”, mas, antes, [...] estimule a interação entre linguagens, o interdiscursivo, o interdisciplinar. Essas exigências ou desafios encaminham para a necessidade de formulações de projetos pedagógicos que sustentem a aplicação das novas tecnologias. Que o fascínio exercido sobre nós por esses recursos, que aparentemente introduzem facilidades em nossas rotinas, não nos impeça de ver seus riscos nem de atentar para seus limites. Que o adestramento necessário para que pilotemos esse novo instrumental não nos disperse do essencial cultivo da arte de voar, nem que as experiências com o mundo ‘virtual’ não nos distanciem do mundo real (CARVALHAL, 2005, p. 5).

Desse ângulo de observação, torna-se constante na ordem do dia a reposição de natureza especulativa, “interrogativa”, como no título O que é o contemporâneo?, de Agamben,12 dentro de um contexto que pugna pela alteração de paradigmas, pelo deslocamento do conceito e prática das noções de conhecimento, ciência, teoria e compreensão articuladas no período moderno; pela “redefinição” de campos disciplinares enquanto legado do cogito moderno, que selecionava e hierarquizava o saber segundo uma grade de disciplinas; pela evocação enfim do conhecimento como prática transdisciplinar, de trasn/ versões (AGAMBEN, 2009; MIGNOLO, 2003; SOUZA, 2007; Domingues, 2004).13 IX. Ter consciência da função germinativa e rizomática da “intertextualidade” tornou--se praticamente sinônimo

Neste livro, de recente especulação sobre o contemporâneo, Agamben pontua uma adjetivação para o termo, e o ressignifica na imagem “das vértebras quebradas do século” (p. 61), e que “o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. O nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante: não pode em nenhum caso nos alcançar. O seu dorso está fraturado, e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura” (p. 65). 13 Neste aspecto, convergem palavras de Rildo COSSON ao enfatizar “o futuro das Letras”: “Os estudos literários têm passado por profundas transformações nos últimos anos. Questões como abertura do cânone, quebra das oposições entre alto e baixo, popular e erudito, ampliação do corpus literário para além das coordenadas estéticas, apagamento de fronteiras da literatura em relação a disciplinas como a história, a sociologia e a antropologia, entre tantas outras, têm colocado em discussão as noções tradicionais de exegese, interpretação e avaliação do texto literário. Os novos aportes teóricos e metodológicos – a exemplo do pós-estruturalismo, desconstrução, crítica feminista, psicanálise, novo historicismo, teoria do discurso, pós-colonialismo, etc. – não apenas renovam os conhecimentos da área, como também desafiam a própria maneira pela qual ela é constituída” (COSSON, “2000 palavras: O futuro das Letras”, p. 11-28). 12


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da Literatura Comparada enquanto método de trabalho.14 Aliás, tanto os teóricos quanto os escritores-ensaístas, esses inclusive denunciando grande “ansiedade” no processo criativo e no ato criador, têm frequentemente oferecido o respaldo necessário aos trabalhos acadêmicos e às pesquisas realizadas sob o amplo rótulo de literatura comparada. A escritora Virginia Woolf, por exemplo, já chamou a atenção para este aspecto, acentuando vastíssima caixa de ressonância entre diferentes artes e a atividade de interconexão entre diversas esferas da expressão artística e cultural: Sem dúvida as artes são todas próximas. Que poeta coloca a pena no papel sem antes ouvir uma canção em sua mente? E o escritor de prosa, mesmo que ele faça crer que anda sobriamente, obedecendo à voz da razão, nos intriga com permanentes mudanças de ritmo acompanhando as emoções com que lida. [...] Eu li uma vez uma carta de Walter Sickert na qual ele dizia: “Eu sempre fui um pintor literário, ainda bem, como todo pintor decente” (WOOLF, 2009, p. 207, grifo nosso).

Dentre as mais pertinentes discussões acerca da teoria da intertextualidade como operacionalização teórica e de formidável produtividade na prática comparatista, o conceito formulado por Gerard Prince (1987, p. 46) ganha relevo ao enfatizar que: “‘L’intertextualité’ sigifie les relations entre um texte donné et d’ autres qu’il cite, re-écrit, absorbe, prolonge et en général transforme afin de devenir intelligible”. 14

Desta perspectiva, a constatação woolfiana, que poderia parecer uma simples “impressão” da famosa escritora e ensaísta britânica, reaparece em diferentes reformulações entre teóricos da literatura comparada e estudiosos de várias vertentes deste campo de estudo, como é o caso em particular dos chamados estudos interartes /interartísticos. É bem oportuno retomar o que diz o teórico-crítico francês, Daniel Henri Pageaux (2011), quando retorna à discussão, hoje em dia, sobre a “atividade” inter-relacional dentre diferentes e vários textos, inclusive prolongando-se através das diversificadas mídias contemporâneas. Ao sublinhar o teor significativo da palavra “relações” enquanto operação de leitura, sublinha-se uma reflexão fortemente marcada pelo sentido de “trânsito”, tão enfatizado pelo crítico comparatista, pois que, “A ‘passagem’ (trânsito?) é uma noção que define com bastante clareza a atividade comparatista, intermediário e conciliador à sua maneira”. Assim, com perspicácia


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teórico-crítica, Pageaux restabelece o vigor de uma prática comparatista herdeira de Paul Van Tieghen, noção máxime ainda hoje plena de originalidade: “Todo estudo de literatura comparada tem por fim descrever uma passagem” (VAN TIEGHEN, 1951, p. 68, apud PAGEAUX, 2011, p. 39); noção esta que se prolonga e deixa filamentos em longa “passagem” do instigante ensaio “O comparatismo: entre tradição e renovação”, no qual se discute, hoje, a tradição e renovação da prática comparatista, transcritas nas seguintes palavras de Pageaux: A palavra “passagem” encontra-se destacada em itálico e relembra, de forma bastante proveitosa, que o comparatista traz do mundo uma imagem aberta, ou porosa, para ser mais preciso: sempre há uma possibilidade de passagem (“poros”, em grego). Van Thieghen complementa sua imagem do objeto comparatista: “o fato de que qualquer coisa de literário é transportada (sublinho) para além de uma fronteira linguística”. Sem mais delongas, relembremos agora a célebre máxima de Michel de Montaigne: “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem.” [...]. Entendamos: é preciso apostar na força criativa da passagem, do transporte, da transferência. Da passagem como mudança de formas... e de ideias: metamorfose. O ideal do diálogo faz da literatura comparada uma espantosa máquina de produzir transitividade. Tornar transitivo aquilo que não o é, ao mesmo tempo em que se preserva a sua singularidade (PAGEAUX, 2011, p. 3940).

X. À guisa de conclusão, são decisivas as enfáticas palavras do comparatista Henri--Pageaux (2011) ao postular “por um novo humanismo”, o qual não se confundiria com a ideia de herança, de patrimônio, ou, ainda, com a mistura de saber e ética que servira para defender e ilustrar “com força e nobreza, uma certa ideia do homem”; nem se confundiria com a erudição ou o ideal enciclopédico ou de cultura geral que formataram nossa história das ideias: “O humanismo comparatista no qual estou pensando


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tem o dever de considerar o homem como tema de reflexão e análise.” – diz ele (PAGEAUX, 2011, p. 253). E especialmente na bela e provocativa passagem da síntese que propõe: É preciso se voltar para nosso mundo, tal como ele é [...]. Diante da proliferação das informações e da fragmentação das questões e dos saberes, o comparatismo pode assumir a função difícil, mas exaltante, de disciplina de síntese, não com o fim de alinhar belas conclusões gerais, mas para criar meios de se pensar um pouco acerca da totalidade na qual estamos imersos. (PAGEAUX, 2011, p. 255, grifo nosso).

E, assim, da lição do mestre, sendo verdade que não nascemos comparatistas, mas tornamo-nos comparatistas, e que é preciso poder, ou querer, continuar sendo comparatista depois de sê-lo, aprenderemos que: “O novo humanismo, o comparatismo renovado devem dar novamente a palavra aos criadores, além de tentar conciliar reflexão e criação, abordagem teórica e perspectiva poética, já que certas práticas universitárias as dissociaram” (PAGEAUX, 2011, p. 263). De resto, procuramos concluir com três belas, insinuantes e não menos criativas “produções de sentidos” que respondem pelo nosso desejo de pensar a literatura comparada hoje. Ainda, a comparatista Tania Carvalhal (2005, p. 177), que, ao refletir sobre a atualidade dos estudos comparatistas, observa: “entendemos, então, cada vez mais que não é possível pensar em campos de saber estanques, conclusos e fechados em si mesmos, pois o que se acentua é a natureza híbrida dos diversos domínios do conhecimento e da expressão artística, sua inter-relação”. E com perspicácia acrescenta: “A literatura comparada, como prática crítica, se inscreve no movimento de mudança das demais modalidades críticas, delas se distinguindo não pelos objetos que estuda, mas pelas perguntas que formula e pelos modos de aproximação de que se vale” (p. 178). Já Rita Bittencourt (2010), ao retomar a discussão sobre o comparatismo hoje, assim chama a atenção para o que


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recobriria contemporaneamente a prática de “comparar” enquanto método de trabalho: Comparar, então, significa fazer do próprio fim um objeto de leituras, dramatizando-o e tornando-o capaz de, no limiar do impossível e da morte, gerar textos, combinações, relações que considerem a própria ausência de linhas estáveis, de receitas e de respostas totalmente visíveis e coerentes, como lugares de produção de sentido (BITTENCOURT, 2010, p. 145).

Prolongam-se os versos finais, em adágio, metáfora e prática tradutora, com os quais Tania Carvalhal, em mais recente reformulação de uma prática e em sensível reflexão, lança longe o desafio do comparatismo de hoje: “Sob égide do cavaleiro errante, em suas múltiplas variações, a literatura comparada vive a aventura dos tempos e enfrenta, na formulação de perguntas, a sua permanente validação” (CARVALHAL, 2006, p. 17).

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Afrontando fronteiras da literatura comparada: da transnacionalidade à transculturalidade

Zilá Bernd*

Resumo: O trabalho se dispõe a problematizar a disciplina Literatura Comparada no momento atual em que vivemos, em que tudo se desloca, tudo muda de lugar, e em que as constantes Mobilidades étnicas e culturais nos obrigam a repensar o conceito estável de Literatura Comparada, à luz de conceitos de multi, inter e trans-disciplinaridade e multi, inter e trans-culturalidade. Palavras-chave: fronteiras da literatura comparada; transculturalidade; transnacionalidade, nomadismo intelectual. Abstract: This work wishes to problematize the subject of Comparative Literature at the moment within which we live, where everything dislocates itself, everything chances place and where constant ethnic and cultural mobilities force us to rethink the stable concept of Comparative Literature under the light of concepts as multi, inter and trans-culturality. Keywords: the frontiers of comparative literature; transculturality; transanationality, intelectual nomadism. * Professora do PPG-Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do Unilasalle/ Canoas e bolsista PQ/CNPq. 1 O transcultural penetra, desta forma, os escritos por todos os seus poros, pois ele abre não apenas para saberes estabelecidos, mas também para saberes em gestação, a uma ignorância positiva.

Le transculturel pénètre ainsi les écrits par tous leurs pores car il ouvre non seulement à des savoirs établis mais aussi à des savoirs en gestation, à une ignorance positive (IMBERT, 2012b, p. 16).1


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Introdução Dany Laferrière2 é um dos principais autores da Literatura Migrante, denominação aplicada aos escritores cujas temáticas e imaginários situam-se no entrelugar entre o país natal e o Quebec, país de adoção de inúmeros escritores vindos das mais diferentes geografias como o Haiti (caso de D. Laferrière), China, Irã, Brasil, Itália, França, entre outros. Autor de numerosos romances, muitos deles premiados inclusive na França, D. Laferrière é um dos autores francófonos mais lidos da atualidade, tendo algumas de suas obras adaptadas para o cinema como Vers le sud (2006). Em 2008, publicou um livro com o estranho título de Je suis um écrivain japonais.3 O romance inicia com o narrador, que vive em Montreal e é leitor assíduo de Mishima e Basho, afirmando a jornalistas japoneses que escreverá um livro seguindo o estilo dos mestres japoneses. Sob esse estilo jocoso e bem humorado, D. Laferrière discute mais uma vez a questão das etiquetas que os críticos e historiadores da literatura costumam colar aos escritores. Ele mesmo recusa-se a ser considerado escritor quebequense, haitiano ou mesmo migrante. Prefere dizer que é um escritor americano (no sentido amplo que designa as três Américas) que escreve em francês. Em outro romance, intitulado Je suis fatigué4 (2005) ele se declara cansado das nomenclaturas e dos constrangimentos a que são submetidos os escritores para que definam suas pertenças nacionais. Praticando o ir e vir cultural entre Haiti e Quebec, mas também viajando através da imaginação por diferentes culturas, como as orientais, o autor sente-se mais confortável auto-proclamando-se escritor americano ou universal: “Je suis trop ambitieux pour appartenir à un seul pays. Je suis universel”5 (2005, p.222) Estamos aqui diante do questionamento da impossibilidade, em um mundo globalizado, onde as mobilidades, os trânsitos, os fluxos migratórios e culturais são constantes, de se pensar as literaturas de forma estanque, como fazíamos até bem recentemente, e de estruturar os cursos de letras de nossas universidades, segmentando (e confinando) as literaturas ao espaço

Nascido no Haiti em 13 de abril de 1953, é escritor e jornalista radicado na província do Quebec (Canadá). 3 Sou um escritor japonês. Esse livro ainda não possui tradução para o português. 4 Estou cansado. Sem tradução par ao português. 5 Sou muito ambicioso para pertencer a um só país. Eu sou universal. 2


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nacional ou linguístico. Diante do ritmo vertiginoso com que proliferam as transferências culturais, sobretudo com o advento da internet e de novas formas de comunicação via redes sociais, urge que (1) enfrentemos as questões ligadas ao alargamento das fronteiras, que colocam em xeque o conceito de identidade nacional; (2) repensemos conceitos e práticas da Literatura Comparada. Nesse sentido, o comparatista hoje deve ficar atento a novas propostas que ampliam, esgarçam e afrontam as fronteiras do pensamento humano, como as de Kenneth White, que nos fala de nomadismo intelectual, em busca de um novo campo cultural onde “as energias circulariam mais livremente” (White, 1987, p. 9). Para o filósofo, o intelectual nômade […] n´est pas l´intellectuel universel, dont le dernier grand représentant était, bien sûr Hegel. Il n´est pas non plus l´intellectuel social (on peut penser à Sartre). Il est mondial. Ne visant ni la possession d´un “univers” ni une efficacité sociopolitique immédiate, il s´éjouit dans un monde qui a ses failles, ses béances, ses abruptitudes, ses surgissements subits (1987, p. 14).6

Não é o intelectual universal, cujo último grande representante foi, com certeza, Hegel. Também não é o intelectual social (podemos pensar em Sartre). Ele é global. Não visando nem a posse de um “universo” nem uma eficácia sócio-política imediata, ele se rejubila em um mundo que tem suas fendas, suas aberturas, suas situações abruptas e ressurgimentos súbitos. 6

Voltemos então à provocação de D. Laferrière que se quer, sem dúvida, um nômade intelectual, podendo eleger livremente sua ancestralidade intelectual, como o estilo dos escritores japoneses que ele admira. O autor não admite ficar preso a etiquetas que determinariam de antemão sua temática e regeriam o estilo de seus romances. Na mesma linha de raciocínio, o poeta e também crítico literário do Quebec, Pierre Ouellet, faz o elogio do “esprit migrateur” (espírito migrante) no qual ele amplifica a denominação de migrante (restrita aos escritores imigrantes chegados ao Quebec), considerando que todo e qualquer escritor é um migrante, mesmo os mais sedentários, já que as viagens da imaginação, a visitação a autores de variadas geografias e os movimentos intersubjetivos entre o eu e o outro caracterizam uma forma de migrância. Para o autor, a noção de migrância é preferível à de hibridação ou mestiçagem, pois migrare em latim designa, ao mesmo tempo, “mudança de lugar”, “transporte de um lugar a um outro” e também o ato de transgredir (cf. OUELLET, 2005, p. 18-19).


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A Literatura Comparada, hoje, deve, portanto, levar em conta a extraordinária movência da contemporaneidade e as passagens inter e transculturais que estão na gênese das literaturas em escala planetária, mas, sobretudo, das literaturas das Américas, cujo passado colonial e escravocrata foi marcado por intensas transferências multi, inter e transculturais, de onde extraíram características de heterogeneidade e inovação. Literaturas migrantes, transnacionais, braconagens ou littérature-monde (globalizada)? Literaturas Migrantes Face às dificuldades de atribuir critérios de territorialidade ou linguísticos, a autores como Nancy Huston, por exemplo, que nascida no Canadá, vive na França onde escreve em inglês e francês; ou aos autores desterritorializados devido a processos de exílio ou imigração, teorias contemporâneas começam a propor diferentes apelações para estas literaturas surgidas dos trânsitos territoriais e linguísticos e das mobilidades culturais. A apelação “literatura migrante” tornou-se a mais usual a partir da publicação de L´écologie du réel, de Pierre Nepveu, em 1988. Para o poeta e ensaísta de Montreal, o imaginário migrante é aquele que se apresenta dilacerado entre o “próximo e o longínquo, o familiar e o estrangeiro, o semelhante e do diferente” (1988, p. 199200). Esta apelação irá impor-se, sobretudo, no âmbito da cultura francófona do Canadá. Literaturas transnacionais No contexto anglófono do Canadá, Janet Paterson, da Universidade de Toronto, em texto publicado em 2008, pergunta-se se a melhor denominação seria “literaturas migrantes” ou “literaturas transnacionais”. Segundo Paterson, as literaturas ditas migrantes se constituiriam em discursos da perda identitária, tendo como light motif a lamentação pelo desenraizamento ocasionado pelo exílio. Já as narrativas transnacionais se caracterizariam menos


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por uma postura nostálgica em relação a perdas, e mais pela tentativa de vislumbrar, na nova vida no país de acolhida, ocasiões para trocas e enriquecimentos propícios à formatação de identidades híbridas. O que constatamos, no estágio atual dos estudos culturais, é que tais discussões esvaziam-se progressivamente de sentido na medida em que todo escritor é nômade no plano de seu imaginário. Face à rapidez vertiginosa com que ocorrem os deslocamentos culturais, para além da fragilidade da noção de fronteiras e de nacionalidades, o melhor seria falar do surgimento de estéticas transculturais, abertas a interações e, por consequência, à criação do novo. Situa-se nessa mesma linha de argumentação, M. Krzykawski, em publicação recente (2013), em que se posiciona em defesa de uma escritura desterritorializada. “Nesse mundo que se quer ‘glocal’, onde os estados-nação pertencem ao passado, a identidade torna-se uma palavra pesada e os centros cedem lugar às margens, o migrante é aquele cuja situação identitária incerta seria digna de inveja” (p. 335).7 Já em 2005, Simon Harel, em Passages obligés de l´écriture migrante, e Pierre Ouellet, em L´esprit migrateur, ao afirmarem que todos os escritores são migrantes, decretaram, ao menos tempo, o fim dessa denominação que, embora tenha tido a importância de valorizar a alteridade, acabou lançando sobre os autores “venus d´ailleurs” (vindos de fora) um olhar que tangenciava o exotismo. Braconagens

“Dans ce monde qui se veut ‘glocal’ dês que les états-nations appartiennent au passé, l´identité est um mot lourd et les centres cèdent la place aux amrges, Le migrant est celui dont la situation identitaire seriat digne d´envie”. 7

Se toda literatura atual é feita de braconagens, ou seja, de apropriações do que está além das fronteiras, e se a literatura hoje é forma privilegiada de afrontar toda sorte de fronteiras: identitárias, territoriais, linguísticas e culturais, o que se verifica, é a fragilidade das teorias e da própria Literatura Comparada em abarcar essas manifestações heterogêneas que se entrecruzam nas produções literárias atuais. É preferível, portanto, pensar o literário não em termos de pertença identitária a uma mesma origem ou filiação, seja ela familiar ou nacional,


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étnica, ou linguística, cultural ou religiosa, mas em termos de partilha de vestígios memoriais, de imaginários e de sensibilidades que não pertencem a uma comunidade em particular, mas que foram sendo adotados e/ou apropriados por artistas e escritores ao redor do mundo, constituindo um formidável palimpsesto (cf. BERND, 2011, p. 155). Littérature-monde (global) Seria interessante pensar em como reagiria um comparatista tradicional, vinculado às categorias de “uma nação, uma língua”, por exemplo, ao recente “manifesto” da Littérature-Monde que pretende, em última análise liberar a língua de seu pacto com a nação. Em suma, quarenta escritores premiados e editados por editoras de prestígio na França (como Nancy Huston, Edouard Glissant, Maryse Codé, Jacques Godbout, Tahar Bem Jelloun, Dany Laferrière, entre outros) se insurgem contra a centralidade francesa de chamá-los de “francófonos”, porque são originários dos países onde a língua francesa é língua oficial. Reivindicam que a literatura que produzem seja considerada “global” (mondial em francês), pois consideram uma espécie de preconceito só serem considerados como fazendo parte do cânone francês os escritores nascidos na França. Se a Francofonia, de fato, abrangesse todos os que falam e escrevem em francês, teriam que ser incluídos aí também os autores da chamada Literatura Francesa. Proclamando-se parte da Littératuremonde, os autores signatários do manifesto, liderados por M. Le Bris, declaram o fim da francofonia, “se definirmos por esse termo, um espaço sobre o qual a França, mãe das artes, depositária do universal (vejam quanta ironia!!), dispensaria suas luzes. Fim desta francofonia e nascimento de uma literatura-global em francês” (Le BRIS, 2007, p.45).8 Semelhante postura adota o S. Rushdie, em Pátrias imaginárias (1992), reivindicando o estatuto de escritor internacional por não aceitar as etiquetas de “escritor britânico de origem indiana”. Como escritor internacional, estaria livre para assumir como seus ancestrais escritores huguenotes, irlandeses, judeus etc., ou seja, o escritor

“Oui, si on entend par lá um espace sur lequel la France, mère des arts, dépositaire de l´universel, dispenserait sés lumières. Fin de cette Francophonie là, et naissance possible d´une littératuremonde em français.”. 8


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reivindica uma identidade ao mesmo tempo plural e parcial, já que os escritores diaspóricos têm a sensação de estarem a cavalo sobre duas ou mais culturas. Tal seria a missão da Literatura Comparada hoje: imaginar as literaturas como produtos de comunidades baseadas não mais no princípio de identidade (nacional, linguística, cultural etc), mas na “experiência da alteridade mais radical” (OUELLET, 2007, p. 26).9 Literatura comparada ou estéticas transculturais?

L´expérience même de l´altérité la plus radicale. 10 “La recomposition du monde dans la reconnaissance des exclusions commises par la domination des mythes des origines comme du mythe du progrès.” 11 “logique de type contractuel, basé sur des concessions réciproques”. 9

Patrick Imbert salienta a importância do caráter relacional compreendido no conceito de transculturação ou de transculturalidade que visa à “recomposição do mundo no reconhecimento das exclusões cometidas pela dominação dos mitos das origens como do mito do progresso” (2012b, p. 27)10. De onde a valorização que o autor faz da perspectiva transcultural que nos permite avaliar os processos relacionais que ocorrem na aproximação das culturas, nos quais é possível perceber o impacto da cultura A sobre a cultura B, mas também o seu contrário: o quanto a cultura B impacta por sua vez a cultura A, gerando processos culturais até então inéditos. Se optarmos por essa via de análise, nos colocamos em uma posição privilegiada que viabiliza releituras e recontextualizações, flagrando o lugar de encontro das culturas e o processo dialógico que esse encontro propicia, ou seja, a perspectiva transcultural nos autoriza a acompanhar nos textos literários os processos de negociação que se estabelecem quando duas linguagens, duas maneiras de ver o mundo e dois estilos se cruzam. Lembremos que o prefixo trans está também presente em vocábulos como transação, ou seja, negociação, “lógica de base contratual, baseado em concessões recíprocas” (cf. FERREOL; JUCQUOIS, 2003, p. 339).11 A perspectiva transcultural (trans: ir além, ultrapassar) favorece a implosão dos binarismos implícitos a um conceito tradicional de Literatura Comparada, promovendo o entrecruzamento fertilizador, a valoração da diversidade, o reconhecimento de alteridades e, sobretudo, ensejando dinâmicas relacionais. Nesse sentido, mais importante do que rotular as produções


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ficcionais migrantes ou transnacionais é acolhê-las como estéticas transculturais que emergem da travessia das diferentes culturas e da utilização criativa dos vestígios e rastros memoriais, cujas brechas são preenchidas pela força imaginativa dos escritores. Concluindo Nos idos de 1992, Wlad Godzich, à época professor do Departamento de Literatura Comparada da Université de Montréal, se questionava sobre a viabilidade do exercício da Literatura Comparada, tomando como corpus o Brasil e o Quebec. Ele se perguntava se, no âmbito da Literatura Comparada como disciplina estável, a perspectiva comparada interamericana poderia se desenvolver. Segundo o autor, a Literatura comparada é eurocêntrica, assumindo as “grandes” literaturas europeias (francesa, alemã, espanhola, portuguesa) como paradigmas e suas práticas estilísticas como o tertium comparationis. Na comparação com literaturas em emergência, como as literaturas das Américas, que têm sua origem nessas mesmas literaturas, mas mestiçadas com as culturas autóctones, os estudos comparados tradicionais, alicerçados nas “fontes e influências” que as literaturas dos grandes centros hegemônicos exerciam sobre as da periferia, tenderiam a considerar as literaturas periféricas como “inferiores” em relação às do centro. Leyla Perrone-Moysés (1992) aponta as teses de M. Bahthin, sobre o dialogismo, e posteriormente as de J. Kristeva, sobre a intertextualidade, as quais, no seu entendimento, tenderam a subverter a Literatura Comparada de base tradicional por substituírem o esquema tradicional de buscar diferenças e semelhanças entre as obras analisadas, pela ênfase bem mais profícua nos “produtos e processos” (1992, p. 183). A culminância para tal ruptura foram os pressupostos contidos no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que nos perdoava (a nós, americanos) do pecado original de haver copiado, privilegiando a busca das “diferenças, das transformações, das absorções e das integrações que tornam secundária a noção de influência” (1992, p. 183).12 Muito sábios os ensinamentos de Perrone-Moysés, na medida em que

No original em francês: “des différences, des transformations, des absorptions et des intégrations qui rendent secondaire la notion d´influence”. 12


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a análise dos “produtos e processos” desloca o eixo da centralidade, fazendo com que as literaturas das Américas se declarem centrais a si mesmas. O que importa são os “produtos”, necessariamente híbridos ou mestiços, e os “processos”, necessariamente transculturais, pois, do contato entre culturas autóctones, africanas e europeias, surge a inovação e a imprevisibilidade. Em uma etapa ainda mais recente com as releituras das teorias sobre a transculturação, a Literatura Comparada em suas formas teóricas e pedagógicas “tende a enfraquecer-se, abrindo-se a pesquisas ligadas aos estudos culturais” (IMBERT, 2012b, p. 10).13 O que assistimos presentemente, sublinha P. Imbert, escritor e pesquisador da Universidade de Ottawa, é um grande encontro de poéticas, de imaginários, resultando em um processo de mestiçagem de formas e de gêneros. Cita também, com base em releituras de textos de Édouard Glissant, a crioulização, a hibridação progressiva e a interpenetração de gêneros literários na contemporaneidade, de modo que um ensaio pode conter trechos ficcionais ou poéticos e um romance pode intercalar passagens ensaísticas ou jornalísticas, entre outras mesclas possíveis. P. Imbert, em Le transculturel et les littératures des Amériques, cujo objetivo foi justamente o de problematizar e repensar a Literatura Comparada no âmbito das relações literárias nas Américas, conclui que [...] la littérature comparée ne peut rendre compte pleinement des dynamiques des Amériques car elle ne permet guère de mettre en valeur les instants de coïncidence, les instants ou quelque chose peut se produire, car dans le Nouveau Monde on s´attend toujours à ce que quelque chose se produise (2012b, p. 14).14 No original em francês: “tend à s´étioler pour ouvrir à des reherches liées aux études culturelles”. 14 A literatura comparada não pode dar plenamente conta das dinâmicas das Américas, pois ela não permite a valorização dos instantes de coincidência, dos instantes onde algo pode se produzir, pois no Novo Mundo espera-se sempre que algo se produza. 13

Constatamos que o paradigma estável da Literatura Comparada, tal como surgiu no século XIX, não responde mais às contingências da pós-modernidade e da globalização. Saliente-se, contudo, que a maioria dos pesquisadores da pós- modernidade já propõe outras definições da disciplina com base, sem dúvida, na observação das práticas contemporâneas: A Literatura Comparada pode ser compreendida como um campo interdisciplinar cujos “praticantes” estudam


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literatura transversalmente às fronteiras nacionais, ao tempo, às línguas, aos gêneros, aos limites entre a Literatura e as demais artes, assim como qualquer outra disciplina (literatura e psicologia, filosofia, ciências, história, arquitetura, sociologia e política).15

Fica evidente que é na transversalidade que deve ser praticado o viés comparatista, devendo inserir-se em uma rede aberta que privilegia os questionamentos em detrimento de respostas definitivas; os rastros e os detritos memoriais, isto é, o que ficou à margem, em detrimento do que está no fluxo principal (mainstream). É preciso, hoje, valer-se de um oxímoro para falar de Literatura Comparada: trata-se de uma disciplina, ou melhor, de um vasto campo inter, multi e transdisciplinar pautado por paradigmas inquietos... Afrontando as fronteiras da Literatura Comparada, efetuam-se passagens do nacional ao transnacional, e da transnacionalidade à transculturalidade, que pode ser definida como [...] o entrelaçamento das identidades culturais que se definem e se transformam em ressonância umas com as outras, bem como a competência dos indivíduos em interagir simultaneamente em vários fluxos ou universos culturais ao mesmo tempo, os quais não podem mais ser entrevistos na sua separabilidade ou diferenciação intrínseca, mas são considerados como sendo comunicantes. (BENESSAIEH, 2012ª, p. 85).16

O valor agregado da transculturalidade em relação à multi e à interculturalidade, por exemplo, é que, enquanto essas últimas consistem em uma visão clássica da cultura como entidade fechada, “diferenciada e estável e sobretudo separável de qualquer outra”17, a transculturalidade focaliza as culturas como “trajetórias coletivas altamente permeáveis e em contínua mobilidade”18 (BENESSAIEH, 2012ª, p. 85) . Se a Literatura Comparada hoje vier a realizar essa ultrapassagem do enfoque tradicional estável das nacionalidades para o enfoque móvel e aberto à diversidade e à relação, representado pela transculturalidade, então penso que podemos continuar a nos considerarmos comparatistas. Caso não o faça, deixando de alargar as

Literatura comparada. Verbete da Wikipédia. Disponível em: <http:// pt.wikipedia.org/wiki/ Literatura_comparada>. Acesso em 24/05/2013 16 L´entrelacement des identités culturelles qui se définissent et se transforment em résonnance les unes avec les autres, ainsi que la compétence d´individus à interagir simultanément dans plusieurs flux ou univers culturels à la fois, lesquels ne peuvent plus être entrevus dans leur séparabilité ou différenciation intrinsèque, puisque consideres comme étant communicants. 17 Différenciée, stable et surtout séparable de toute autre. 18 Trajectoires collectives aux contours hautement perméables et em continuelle mobilité. 15


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novas fronteiras transculturais, deixará de ser competente para analisar os constantes processos de crioulização e as relações hipertextuais que são metaforizados pelos textos ficcionais e poéticos de nossa contemporaneidade.

Referências BENESSAIEH, Afef. Après Bouchard-Taylor: multiculturalisme, interculturalisme et transculturalisme au Québec. IN: FONTILLE, B.; IMBERT, P (Orgs.) Trans, multi, interculturalité; trans, multi, interdisciplinarité. Québec: Presses de l´Université Laval, 2012a. BERND, Zilá. Colocando em xeque o conceito de identidade nacional. IN: _____. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: editora da Universidade/UFRGS, 2011. 3. edição revista e aumentada. p. 145-157. FERREOL, G.; JUCQUOIS, G. (Orgs.) Dictionnaire d el´altérité et dês realtions interculturelles. Paris: Armand Colin, 2003. FONTILLE, B.; IMBERT, P (Orgs.) Trans, multi, interculturalité; trans, multi, interdisciplinarité. Québec: Presses de l´Université Laval, 2012a. GODZICH, Wlad. Brésil-Québec: à la recherche du tertium comparationis. IN: PETERSON, M.; BERND, Z. (éds.) Confluences littéraires: Brésil-Québec, les bases d´une comparaison. Candiac: Balzac, 1992. p. 41-56. (Collection L´Univers des Discours) HAREL, Simon. Les passages obligés de l´écriture migrante. Montreal: XYZ, 2005. IMBERT, Patrick, org. Le transculturel et les littératures des Amériques: Le Canadá et les Amériques. Ottawa: Université d´Ottawa, 2012b. IMBERT, P. org. Américanité, culture francophone canadiennes et société des savoirs: Le Canadá et les Amériques. Ottawa: Univ. d´Ottawa, 2006. KRZYKAWSKI, Michal. (Im)migrant vs. Nomade. Pour eu théorie de l´écriture déterritorialisée. IN: ERTLER, K.D.; IMBERT, P. (éds.) Cultural Challenges of Migration in Canada/Les défis de la migration au Canada. Frankfurt: Peter Lang, 2013. p. 333-342. (Collection Canadiana, 12). LAFERRIERE, Dany. Je suis um écrivain japonais. Montreal: Boreal, 2008. _________ Je suis fatigué. Montreal: Typo, 2005. LE BRIS, M.; ROUAUD, J. (Orgs.) Pour une littérature-monde. Paris: Gallimard, 2007.


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Parecerista ad hoc

Pareceristas ad hoc

Amador Ribeiro Neto (UFPB) Genilda Azeredo (UFPB) Luiz Antônio Mousinho Magalhães (UFPB) Maria Goretti Ribeiro (UEPB) Marilene Weinhardt (UFPR) Mário César Lugarinho (USP) Sandra Margarida Nitrini (USP)


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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: - Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); - Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;


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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; - Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; - Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; - Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave; - Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; - Parágrafos – usar adentramento 1 (um); - Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; - Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; - Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.

- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico.

- Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-


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nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. - Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. - Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos

[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta

[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.

• Citação de vários autores

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

• Citação de várias obras do mesmo autor

As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens


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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992) • Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)

Alguns exemplos de Referências • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33. • Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. • Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.


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• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. Observação Final: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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