Revista Círculo de Giz

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CÍRCULO DE GIZ REVISTA MULTIDISCIPLINAR DE ARTES E HUMANIDADES


CÍRCULO DE GIZ ©

REVISTA CÍRCULO DE GIZ REVISTA MULTIDISCIPLINAR DE ARTES E HUMANIDADES

Rio de Janeiro

NÚMERO 1, VOLUME 1, ANO 1 (junho de 2015)

Semestral

ISSN 2446-757X

1. Humanidades - Periódico. 2. Artes - Periódico. 3. Filosofia - Periódico. 4. Multidisciplinar - Periódico.

Capa e diagramação: Diogo C. Nunes. Fotografia da capa: Alfredo Bronzato. Revisão e revisão técnica: Louise Azevedo, Diogo C. Nunes, Marcelo Fonseca Alves e Alfredo Bronzato. Ilustrações: Anna Corina Gonçalves.

www.circulodegiz.com www.circulodegiz.org


Cabe construir perspectivas em que o mundo se ponha, alheado, com suas fissuras e fendas Ă mostra. T. W. Adorno.


Conselho editorial Alfredo Bronzato da Costa Cruz Anna Corina Gonçalves Carlos de Azambuja Rodrigues Diogo Cesar Nunes Fábio Mário Iorio Louise de Lemos Azevedo Marcelo Fonseca Alves Rosane Barata Machado Alves

Conselho consultivo Adriana Matos Clen Ariane Patrícia Ewald Bruno Martins Boto Leite Carlos Eduardo Dias Souza Denise Teles Freire Campos Heloisa Selma Fernandes Capel Leomir Cardoso Hilário Lina Raquel de Oliveira Marinho Sady Bianchin


Sumário

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Editorial

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Uma viagem sem destino: o conceito de liberdade em Easy Rider Eduardo Gusmão de Quadros

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“O porto é a porta”: um breve per-curso do encontro entre a antropologia e a teologia presentes na prosa de Clarice Lispector Alessandra Serra Viegas

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Calabar e o questionamento à imagem

indianista do Brasil Louise Lemos de Azevedo

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Rui Nunes: uma poética da desconstrução narrativa e da fragmentação do “eu” Maria João Cantinho

61

O Islã das trevas no gótico americano: motivos sufistas nas estórias de H. P. Lovecraft Ian Almond

81

Aryara contra os Filhos da Noite: fantasia e ciência em um conto de Robert E. Howard Alfredo Bronzato da Costa Cruz

101

Pesadelos dionisíacos: natureza, sexo e medo na literatura brasileira Júlio França e Daniel Augusto Pereira Silva


127

O Dao está no torno do oleiro André Bueno

137

Estética do entrelugar: sujeito, crítica e obra de arte entre Benjamin e Lacan Marcelo Fonseca Alves

157

Colagem: uma poética do choque Leonardo Cesar do Carmo

175

Tempo e eternidade: o efêmero, o utópico e o trágico Diogo Cesar Nunes


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Editorial TODA OBRA ESCRITA É COMO UM PRÓLOGO DE UMA OBRA MAIOR – anotou certa vez Agamben –, que a compreende e permite, mas que jaz jamais escrita. A obra ausente, nunca finalizada, sempre em rascunhos, é indatável, pois, e insiste, sem nunca mostrar-se em clara evidência, em cada sombra de linha dos seus manuscritos dados ao público. Cada obra escrita é, assim, um novo (re)começo que deseja, em segredo, romper (com) o tempo. A vasta biblioteca das obras nunca publicadas é o esconderijo que abriga, acolhe e alimenta o que é escrito. Se na apresentação da sua nunca publicada revista Angelus Novus, Benjamin havia escrito que “o destino de uma revista é deixar claro o espírito de seu tempo”, Agamben o teria complementado na breve Tiqqun dizendo que “o próprio do nosso tempo é a ausência de obra”. O espírito do nosso tempo não é outro senão o de um tempo sem espírito. Portanto, todo escrito se encontrará na categoria de resto; toda revista (comprometida com a sua contemporaneidade) deverá encarar sua condição de sem-lugar. Esse ana-cronismo, essa inversão do tempo desqualificado, revela, dialeticamente, sua visceral atualidade: “o tempo presente como um tempo que vem depois do último dia”. Todo prólogo anuncia, assim, uma primavera prometida. Aurora musis amica est. Acolhendo a indicação de Benjamin, a CÍRCULO DE GIZ buscará deixar clara a obscuridade do tempo presente, conforme a anotação de Fernando Pessoa: “a arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro, mas torna-lhe clara a obscuridade”.

Outono de 2015. Conselho editorial. Editorial

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Uma viagem sem destino:

o conceito de liberdade em Easy Rider

Eduardo Gusmão de Quadros RESUMO│ A simbologia da viagem geográfica como uma conquista de si permeia a literatura universal, ao menos, desde Homero. Na década de sessenta do século passado, o ambiente da contracultura estimulou a busca de alternativas aos padrões da sociedade capitalista hegemônica, o que pode ser visualizado através do filme Easy Rider (Sem Destino, em português), dirigido por Denis Lee Hopper em 1969, com roteiro de Peter Fonda. Ambos encarnarão como atores os jovens protagonistas deste Road Movie que retrabalha os valores da sociedade americana, em especial, o mito fundador de ser a “terra da liberdade”. Investigaremos como este conceito iluminista, e os confrontos que desperta, foi abordado na narrativa fílmica. PALAVRAS-CHAVE │ Contracultura; Juventude; Liberdade; Viagens. ABSTRACT │ The symbolism of journey as a geographical conquest of self permeates the universal literature, at least, since Homer. In the sixties, the counter-culture environment stimulated the search for alternatives to capitalist society hegemonic patterns, which was expressed through the movie Easy Rider, Directed by Denis Lee Hopper, in 1969, from a screenplay by Peter Fonda. Both played as actors young people protagonists in story of this Road Movie, that rethinking the values of American society. In particular, the founder myth of be a "country of freedom". We investigated in this paper how this enlightenment concept, and the clashes that awakens, was approached in filmic narrative. KEYWORDS │ Counter-culture; Youth; Freedom; Journey. Tudo o que é bom está na estrada Emerson.

A BUSCA DE UM CAMINHO É O ENCONTRO DE UMA ESSÊNCIA. A afirmação pode parecer paradoxal, mas neste aspecto a dubiedade da palavra alemã Wesen, explorada por Heidegger, é exemplar. Ele joga com ambos os sentidos para indicar que a linguagem está sempre em movimento, no caminho e, principalmente, na experiência que é feita no ato de passar, e passear, pela palavra (2003, 134-136). É a essência/caminho, afirma, que “nos permite alcançar o que nos alcança” (Ibid., p. 154).  Doutor em História pela Universidade de Brasília. Professor da Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e do departamento de História da Universidade Estadual de Goiás.

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O filme Easy Rider apresenta uma saga em busca da experiência norte-americana. A estória desenrola-se por espaços amplos e o movimento de câmera leva ao imaginar-se sem fronteira. Claro que ambiguidade fronteiriça é evidente e sabe-se como a fronteira fora determinante na formação dos Estados Unidos da América. Ali a história foi feita pelo movimento, pelo expansionismo, seja imperialista ou não. Por outro lado, o movimento inverso também fora fundamental, já que este país tem exercido forte atração sobre tantos povos do mundo. Encontram-se entradas e saídas no miolo da globalização. A experiência que expõe o viajar só pode ser feita livremente. É diferente de marchar, onde a origem, o destino e o ritmo são organizados por fatores externos. E ali está a terra da liberdade, aonde a aventura vai além do método. Lugar dos ensaios, das tentativas, das invenções. Tratase de um mito? Concordamos, mas qual o problema disso? Afinal, são os mitos que movem as culturas e os sujeitos, são eles que fazem bater o coração de uma sociedade. Mitos funcionam como motores. Um mito fundante está presente na obra, o do personagem conquistador. Seja aquele que veio atravessando o oceano de navio, como os Pilgrim’ fathers, seja o que anda à cavalo, como no far west. O conquistador e o aventureiro formam o mesmo tipo. Contudo, se focarmos na atitude básica do estrangeiro, de enfrentamento do estranho, teremos uma visão parcial do processo. O rosto só reflete-se no espelho do reconhecimento. Na verdade, não há imagem do eu se não houver algum espelho1. Então, o eu é formado de outros na sua exuberante diferença. Destarte, a conquista poderá ser simplesmente a de si. Em Easy Rider, a meta última da jornada é participar de uma festa de carnaval em Nova Orleans. Trata-se de um objetivo viável, porém relativamente intangível. Busca-se não um objeto, mas uma experiência semelhante ao ato de jogar, quando nada se leva a não ser uma memória prenhe de sentidos. A função significante do jogo, ensinava Huizinga (2000), é a mesma do caminhar. Daí o encontro orgiástico do fim, quando o encontro levou à perda, à fusão de um “todos” que ao mesmo tempo não é “nenhum”. A aventura pelo desconhecido deste road movie constitui-se de 1 Essa é a tese do famoso texto de Jacques Lacan “O estagio do espelho como formador da função do eu”, onde partindo da crítica do cogito cartesiano, espécie de eu autocentrado e imobilizado, o autor considera o percurso da identificação como aquilo que articula a totalização individualizante (1989, p.90)

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revelações progressivas da semântica identitária. Os personagens e as paisagens decorrentes trazem lições que levam à transcendentalidade histórica. Daí o tema insistente da liberdade, início e fim da saga. Tal liberdade, com certo toque iluminista, obviamente só é possível na transcendência, no passo além, no ultrapassar dos limites, pois historicamente ela somente é conquistada enquanto libertação. Processo histórico sem destino. Nas ações desenvolvidas pelos personagens centrais, a lógica da acumulação torna-se suspensa. Por isso, o símbolo da festa é plenamente apropriado para o término da narrativa. Deseja-se com intensidade a experiência carnavalesca para que, de um modo bastante eliadiano (Eliade, 1990), sejam rompidos os limites do tempo e do espaço. Profanando valores, os protagonistas retornam ritualmente ao momento sagrado da criação. A América a ser criada, numa futuridade aberta, trás de volta um mito de origem: ser a terra das promessas, e permanecer como promessa. Com isso, o filme proclama que no início preexiste um destino. Mas o mito de origem estava morrendo para aquela geração. Sim, mitos não são eternos, podem morrer. O antropólogo Claude Levi-Strauss, por sinal, afirmou que eles morrem por falta de espaço (1993, p.269). O ronco das duas motocicletas percorrendo o território norte-americano sugere que a utopia originária ainda poderia comover. Com sua simbologia juvenil, enraizada na contracultura dos anos sessenta, anuncia-se um mundo distinto, mesmo que ele seja mais renovador que inovador. Esse mundo a ser (re)conquistado começa com a crítica do tempo linear, com a ruptura do ritmo acumulativo e progressivo da sociedade capitalista hodierna2. O relógio ao chão O primeiro combate, no início do filme, se dá com o tempo. Tudo está preparado para a partida: algum dinheiro, pouca bagagem, os meios de transporte cuidadosamente aparelhados. Logo, uma primeira referência à presença do mito norte-americano através das cores da bandeira estampadas no capacete, na jaqueta e no tanque da motocicleta de Wyatt. A câmara os enquadra, destaca esse aspecto nacional. Os personagens são motivados não exatamente por um negócio ou uma 2 Interessante que Walter Benjamin ressalte o papel destruidor desse tempo vazio, linear, em suas famosas “Teses sobre a História”. Descrevemos a representação temporal deste profícuo pensador alemão no artigo “Tempo messiânico e tempo histórico” (Quadros, 2012).

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tarefa que lhes é atribuída, mas pelo próprio American dream. A inquietude desse sonho é o principal “combustível” por debaixo dos capacetes3. Certo pragmatismo rasteiro havia corrompido esse sonho. O patriarca pátrio Benjamim Franklin não declarou solenemente que “tempo é dinheiro”? Logo, a vida passou a ser marcada por aquilo que Max Weber denominara de filosofia da avareza, que propaga o “dever que tem o indivíduo de se interessar pelo aumento de suas posses como um fim em si mesmo” (2004, p.45). Aí está uma condensação sarcástica da vida social capitalista. Não haveria transcendência possível em uma sociedade assim. O sistema de trocas, tão necessário à vida comunitária, tinha sido viciado pelo critério utilitário. A dádiva, portanto, havia perdido seu valor, deixando de cumprir o papel fundamental que tinha nas relações humanas das sociedades mais simples (Mauss, 1974). Troca interesseira não é dádiva, muito menos quando o básico da vida é substituído por pedaços de papel com letras, um conjunto de números e alguns desenhos. Mais irônico ainda se nesse mesmo papel se afirma “a confiança em Deus”. Mas qual deus?4 Para a jornada atingir sua meta, portanto, é necessário suspender tal temporalidade. Na narrativa fílmica, no momento de partir, Wyatt olha as horas, olha para o horizonte (a paisagem a sua frente), olha novamente para o relógio, desata do pulso e lança-o com violência na areia. Faz-se, então, um corte para o close no relógio abandonado. Deixar o tempo é abrir um lugar. As duas dimensões existenciais estão conjugadas. Micro-espaços, com princípios não utilitaristas, surgirão no decorrer da narrativa fílmica (um fazendeiro, uma comunidade hippie, indígenas, entre outros, os ajudarão a prosseguir na viagem). Outro tipo de troca, agora baseada na gratuidade, e a vivência de um novo tempo, estão correlacionais nesta obra. Quem percebeu claramente essa implicância da economia com o tempo foi o pensador argelino Jacques Derrida. Ele aborda a temporalidade comentando, justamente, a análise que Marcel Mauss da economia da dádiva (1991). O presente torna-se impossível, diz, porque ao trazer um dever para o outro deixa de ser um presente. O futuro e o Note-se que em uma cena logo a seguir, o dinheiro que eles levam para a viagem é escondido dentro do tanque de combustível. O que move a nação não é a causa da viagem empreitada pelos dois amigos. 4 Lembramos que a imagem de Benjamin Franklin está estampada na nota de 100 dólares, com a frase “In God we trust” escrita destacada ao alto da figura no verso. 3

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passado, então, se apresentam nessa ação de dar que, no fundo, é trocar. Nem linear, nem circular, o tempo estaria mais para um espaço aberto, para “o que vem”, de maneira imprevisível (1991, p.156). Então, o imediato deixa-se romper por uma expectativa que, ao encampar o coletivo, transforma-se em esperança. A viagem dos dois riders indica algo semelhante. Jogando o relógio ao chão, demonstra-se a abertura ao imprevisto descabida em qualquer sistema. Tempo e espaço abertos são representações daquilo que é incontrolável. A contracultura, portanto, se manifesta não com um gesto puramente romântico (combater canhões com flores, por exemplo), mas atingindo as bases do capitalismo de dentro do núcleo geopolítico do sistema capitalista. Esse gesto de ruptura lança o percorrer da estória, pois ao inverter a noção clássica de tempo, ou seja, a aristotélica, não faz do deslocamento no espaço algo que cria o tempo. Nessa perspectiva, é o tempo que abre a possibilidade da mudança. O motor enquanto arma A conquista será feita para que se atinja um território habitável. A América está sempre por fazer-se, em construção, mito que pode ser readequado a qualquer lugar (Bercovitch, 1988, P.150). Cabe aos sujeitos transformar os espaços indeterminados em lugares, onde o próprio possa encarnar-se. Não é essa a origem etimológica da palavra territorium, uma terra que é possuída por alguém? Mas a posse, nesse caso, não é cartorial, não depende dos ritos oficiais, não é legal, mesmo que seja totalmente legítima5. Tal edificação territorial é um trabalho primordial da identidade. Assim, envolve o desejo de existir, de tomar posse de si, de se realizarse. Naquele momento contracultural dos anos sessenta, articulava-se, em diversos espaços, um projeto contraposto às produções topológicas hegemônicas. O Estado é o representante máximo dessa instância e, como lembra Deleuze e Guatari, ele caminha acompanhado do dinheiro no exercício da dominação (Deleuze e Guatari, 1996, p. 205). A viagem desconstrói esse modo de apropriação pois ela é eivada de deslocamentos alternativos. Nos parâmetros urbanísticos, é deixar as 5 Patrícia Seed (1992) fez um interessante estudo comparativo de como os rituais conferiam legitimidade à posse das terras do Novo Mundo. A cosmovisão dos conquistadores ingleses está ligada ao trabalho.

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grandes avenidas para embrenhar-se pelos becos e vielas. O ato de caminhar permite o desdobrar de novas possibilidades. Numa jornada, afinal, deixa-se um lugar para que muitos sejam encontrados. Essas novas possibilidades encontradas irão acontecer por meio de duas motocicletas. Não é indiferente tal modo de deslocar-se. Ele embute um campo de representações que enlaça o eixo da narrativa. Antes desta película, a imagem do motociclista era dominada pela violência e pelas gangues, a exemplo do que foi exposto no filme The Wild One (O selvagem da motocicleta, no Brasil), estrelado por Marlon Brando em 19536. Já no filme Easy Rider, o design predominante é o do movimento hippie, utilizando-se a moto como instrumento da paz. As motocicletas na década de sessenta acarretavam esse imaginário de alternatividade. Muitos jovens do pós-guerra formavam moto-clubes buscando expressar uma forma particular de protesto, de sociabilidade e de liberdade. Lembramos, ainda, que um importante porta-voz dessa geração, o cantor e compositor Bob Dylan, colocou na contracapa de seu disco Highway 61 uma polêmica fotografia dele próprio pilotando uma moto. Essa mudança no imaginário relativo à motocicleta foi bem sintetizada por Lily Philips (2005): Ao surgir em uma era na qual estava sendo difundida a suspeita com a política e a sociedade em geral, quando demonstrar rebeldia e inconformidade era algo valorizado, a figura do motociclista parece ser uma escolha ímpar para se representar os Estados Unidos de algum modo. [...] Durante os anos de 1947 a 1969 começou esta transformação do motociclista de vilão em herói. Tal transformação foi significante porque espelhou diretamente a mudança de atitude com a delinquência juvenil, remetendo igualmente ao deslocamento sísmico característico par a cultura de rebeldia dos jovens.

Assome-se, no caso do filme analisado, que as motocicletas estão bastante customizadas, ou seja, expressam com sua pintura e assessórios especiais um processo de personalização do que seria, a princípio, um produto da cultura de massa. As resistências sócio-políticas são transmitidas pelo design, pela poder da estética. Essa imagem da criminalidade era tão forte que a campanha de lançamento da Honda nos Estados Unidos da América, em meados da década de cinquenta, possuía como slogan: “Se você conhece uma pessoa de bem, ela está sobre uma Honda”. O filme The Wild foi inspirado em uma briga de gangues realmente ocorrida em uma pequena da cidade da Califórnia e devia funcionar como um alerta, como estampa o texto do inicio da película.

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As motos deixam de ser um mero meio de transporte para demonstrar os novos ideais. A associação entre a liberdade e esse tipo de veículo é, ainda hoje, explorada pela publicidade. O contato com a natureza, a facilidade de movimentos, a forma de pilotar fornecem sensações diferentes em relação aos outros veículos. Por outro lado, elas funcionam como um símbolo de quem as dirige, o que é explicitado na forma como os motociclistas foram representados em Easy Rider. A caracterização dos personagens é carregada de referências que se sobrepõem a tal ideário. Destaque-se o colete de cowboy e chapéu utilizado pelo personagem Billy, sugerindo um paralelo com a expansão para o oeste, a conquista territorial que transformou as acanhadas treze colônias britânicas na sede de um novo império. Só que o sentido da viagem traçada na película é o oposto, deixando-se a costa oeste para ir em direção ao estado da Louisiana. Como o nome Louis indica, historicamente aquela região pertenceu inicialmente à França, remetendo de maneira geográfica aos conhecidos ideais revolucionários - Liberdade, Igualdade e Fraternidade – inspiradores da nação norte-americana. Não há propriamente combates revolucionários no filme, mas os ideais utópicos são readaptados à conjuntura dos anos sessenta, ao impulso comunitário da juventude daquele período. Adentra-se no tempo das tribos, onde a fraternidade se dá através de mitos e símbolos (Mafesolli, 1998, p.15). Esta na narrativa vai se revelando pela estrada, nos encontros prosaicos com os demais personagens. A utopia de uma nova sociedade fundamenta essa comunhão, mas ela vem equilibrada por, somente, duas rodas. O ronco alto dos motores das duas grandes motos contrapõe-se, portanto, à mecanização da sociedade e à solidariedade mecânica de matiz durkheimniana7. Os motores em movimento pretendem fabricar valores humanos, demasiadamente humanos, sem feitichização da mercadoria, sem a reprodução instantânea dos comportamentos reificados típicos da cultura de consumo. Tal ruptura com o ritmo maquínico da vida moderna também é evidenciado pelas constantes paradas para “curtir” os lugares. As motos aceleram para, de modo contraditório, romper com o avanço da Como se sabe, o sociólogo francês (Durkheim, 1998) distinguiu duas formas básicas de coesão social, a mecânica e a orgânica. A primeira seria um atributo das sociedades antigas, sem tanta diferenciação social, e a segunda seria típica das sociedades contemporâneas, onde haveria mais individualidade e liberdade. Na ótica do filme, tomando cenas de certo primitivismo, a falta de liberdade do mundo moderno é reiteradamente denunciada.

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velocidade na vida social denunciada por Virilio (1996). Os motores em movimento potencializam tecnologicamente a arte de recriar os caminhos do american way of life. O tempo da utopia Essa micro-utopia revolucionária, se podemos chamar assim, é colocada explicitamente em uma cena ao redor de uma fogueira, numa conversa banal acerca de extraterrestres. Os valores e crenças expostas neste pequeno diálogo, claro, estão difundidos por diversas partes do filme, porém essa imagem de um outro planeta, de uma outra sociedade, resume didaticamente a mensagem a ser transmitida. O personagem chamado George – referência indireta ao herói da independência norte-americana, primeiro presidente da República e que possui sua imagem impressa na nota de um dólar? – afirma que os habitantes venusianos são bem mais evoluídos que nós. Conforme seu relato, eles não têm guerras, não têm sistema financeiro, nem dirigentes, porque cada um é senhor de si mesmo. Devido à tecnologia podem alimentar-se, vestir-se, ter um teto e transportar-se em igualdade de condições e sem esforço... (0: 55’).

Como se vê, além da aproximação da ilha da utopia de More (2001), o planeta escolhido pelos roteiristas remete mitologicamente ao lugar da beleza e do amor8. Se falava tanto nas missões para Marte, na época em que os norte-americanos pisaram o solo lunar, mas o planeta escolhido é o oposto daquela divindade guerreira e sangrenta. Significativo. Os três personagens da cena ficam encantados com aquela outra sociedade. Os elementos sociais descritos excluem a guerra e o dinheiro, prezando pela autodeterminação, pela satisfação das necessidades básicas e gerando-se um local onde igualdade e liberdade se abraçam. Todavia, tais valores não estão projetados somente para outros planetas. Podemos dizer que, em certo sentido, formaram os sonhos dos que vieram criar o Novo Mundo9. O caminho para uma sociedade diferente, imaginada inicialmente pelos Pilgrins’ Fathers, fora historicamente desvirtuado. A proposta do filme é reascender o encanto É o que a deusa Vênus representa na mitologia romana, sendo responsável pela sedução (Brandão, 1993, 303). A crítica implícita é que seus encantos estavam despercebidos em nossa sociedade, enquanto a divindade guerreira, Marte, era continuamente “cultuada”. 9 Ressalte-se que na Utopia de Thomas More, há referências claras à América (2001, p.21) e ao Novo Mundo (2001, p.91). 8

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venusiano, ao encarnar por seus personagens a energia de tais virtudes. A mensagem foi retomada em outra cena semelhante, onde os três viajantes estão, novamente, em torno de uma fogueira. O diálogo que se segue indica com clareza que algo deu errado na história, existindo tanto desvios quanto desvirtuações dos ideais humanísticos: George – Este já foi um bom país. Não consigo perceber o que lhe aconteceu. (...) Billy – As pessoas se fecharam com medo... George - Eles não têm medo de vocês, tem medo é do que significam...; e o que significam para eles é a liberdade. Billy – A liberdade é que é o problema? George - Claro. Mas falar dela e pô-la em prática são duas coisas diferentes. É difícil ser realmente livres quando somos moedas de troca. Não lhes digam que eles não são livres, porque desatam a matar e estropiar para provar que o são. Falam, falam, falam até a exaustão sobre a liberdade individual, porém ficam assustados quando veem alguém livre... Tornam-se perigosos (1:07’).

A liberdade, tão cara à cultura norte-americana, é lançada na arena. Mesmo sem qualquer referencia a Marx, uma crítica das ideologias burguesas é exposta através de uma linguagem simples. Afinal, o idealismo está colocado em contradição com as condições reais de existência dos sujeitos sociais. As pessoas estariam vivendo na fantasia de serem livres, achando que o dinheiro é a chave da liberdade, mas não percebiam que elas próprias viraram “moeda de troca”, uma peça em uma engrenagem maior. Não estão somente estão conectadas, elas estão acorrentadas. Karl Marx escreveu um belo texto, em sua juventude, no qual expõe esta função da crítica de romper com as correntes: A crítica não arranca das cadeias as flores imaginárias para que o homem suporte as cadeias sem fantasias ou consolos, senão para que se despoje delas e possa colher as flores vivas. [...] (Ela) desilude o homem para que pense, para que aja e molde sua realidade como um homem sem ilusões e que adentrou na razão; para que gire em torno de si mesmo e, portanto, de seu sol real (Marx, 1979, p.94).

Em torno da fogueira e em torno do sol. A denúncia é para funcionar como uma luz que irrompe no meio das trevas do conformismo cultural, da concorrência desenfreada, da carreira a todo custo, do trabalho sem descanso, do acúmulo de bens sem sentido, enfim, dos mecanismos de alienação analisados impiedosamente pela Uma viagem sem destino

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teoria marxista. Por outro lado, surge no texto uma correlação clara com o mito platônico da caverna. Os personagens consideram aquela forma de vida “normal” uma verdadeira escravização. Contudo, o diálogo afirma que muitos consideravam aquele lugar de “trevas” algo aprazível. Por isso os riders são estranhos para os outros, quase estrangeiros10. Não importa que estejam reencarnando as crenças e valores que fundaram o próprio país. Se há um mito fundante, este trecho declara que ele deveria permanecer dentro do status de mito. Os personagens durante a narrativa fílmica não denunciam diretamente nada disso. Eles não acusam ninguém, não fazem campanhas, nem panfletagem. A mensagem é transmitida pela simples presença, pela utopia que levam consigo, que os motivou a partir naquela jornada. Isso incomoda tanto que desperta medos profundos. Os três personagens do diálogo serão punidos por causa disso. A tragédia do final se assemelha ao daquela pessoa que deixou o sombrio e opressor ambiente da caverna platônica. Mas antes, há o carnaval. New Orleans é o lugar da alteridade inclusiva, da convivência plural. Isso por ser francesa, por ser negra, por romper as regras civilizadas pela “desorganização” festiva. É preciso retomar com Mikhail Bakhtin o potencial crítico da carnavalização? Esse tempo e espaço festivos rompem as hierarquias, suspendem as regras civilizadas, trazem “uma libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente” (Bakhtin, 1987, p.8). Além disso, criam uma experiência de êxtase, um sair de si, que semelhante ao transe religioso, recompõe os sujeitos. Então, os personagens ali imiscuem-se desta energia libertadora fundamental. Isso é representado cinematograficamente pelos efeitos visuais inseridos e pela forma de edição das cenas, que de modo indireto remetem ao final de outra odisseia, a “espacial”, filmada por Stanley Kubrick dois anos antes (Kubrick, 1968). O segundo elemento é dado pelo pitoresco cenário escolhido para cenas de sexo: um cemitério. Então, a vida e a morte estão unidas, Eros e Thanatos, como um retorno ao fim.

Freud (1996) explorou muito bem esse sentido perigosamente ambíguo do estranho, pois a partir da palavra alemã unheimlich descreveu o sentimento de medo relacionando-o com aquilo que era extremamente familiar (heimlich) mas não deveria ser revelado. 10

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Não existem categorias exatas para esse encontro transfigurado em êxtase. A maravilhosa graça11 da experiência real, ensinava Emerson, não pode ser obtida por meio da análise. Devemos reconhecer nosso limite: “Tudo o que é bom está na estrada” (Emerson, 1997, p.135). Considerações finais O mito da caverna, ou o de Cristo, é o pano de fundo dessa estória. No final da película, ocorre a morte injusta de quem demonstra a possibilidade de viver diferente, assinado por uma sociedade que não realiza os valores que crê. O filme não se propõe a desmitologizar a nação americana, mas coloca em confronto seus mitos. Billy, assassinado através de uma brincadeira inconsequente, acaba morrendo com a bandeira norte-americana ao peito, como se fosse um herói de guerra. A guerra apontada neste filme12 se localiza entre o que é dito e a existência. A linguagem norte-americana não seria a casa do ser (Heidegger, 2003, p.127). Mas naquele espaço, ou em qualquer um, quem se propõe à aventura da busca corajosa, pode encontrar “as palavras-guia no caminho que atravessa a vizinhança da poesia e pensamento”. Assim grávidas de arte, continua o pensador, elas “contêm uma indicação para perto da qual gostaríamos agora de nos dirigir...” (Id., p.157). Ao invés de estátuas, novas estradas da liberdade.

Referências bibliográficas Bahktin, Mikail. A cultura popular no Renascimento. São Paulo: Ed. UNESP, 1993. Bercovitch, Salvan. A retórica como autoridade: puritanismo, Bíblia e o mito da América. In: Sachs, Viola et ali. Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1988, p.141-159. 11 Uma referência ao famoso hino gospel Amazing Grace, tão significativo na cultura norte-americana. 12 Quando foi receber o prêmio no Festival de Cinema em Cannes, o ator, roteirista e produtor Peter Fonda foi vestido com um uniforme de cavalaria. Explicou que representava a “segunda guerra civil”, o que remete às batalhas simbólicas e reais tratadas na obra (Biskind, 1998, p.73).

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Eduardo Gusmão de Quadros

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“O porto é a porta”:

um breve per-curso do encontro entre a antropologia e a teologia presentes na prosa de Clarice Lispector

Alessandra Serra Viegas RESUMO │ O artigo a seguir apresenta uma análise sucinta das obras Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres e A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, sob um elemento peculiar às duas leituras: o encontro entre a questão antropológica – que demarca o conhecimento, o cuidado e a aceitação de si e do outro – e o pensamento teológico – que se manifesta no conhecimento de Deus (do Deus, como Clarice costuma nomear), a partir da ‘humanidade do mais humano’ presente em ambas as obras. De fato, o texto bíblico do profeta Isaías ilustra o que se quer (d)escrever nas linhas abaixo, isto é, conseguir ver a Deus está intrínseca e corolariamente imbricado a ver-se a si mesmo: “ai de mim, que estou perdido! Pois sou homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram ao Rei, o Senhor os Exércitos” (Is. 6,5). Eis o ‘encontro feliz’ de Clarice. PALAVRAS-CHAVE │ Teologia; Literatura; Antropologia; Clarice Lispector. ABSTRACT │ This article shows us a short analysis about Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres and A paixão segundo G.H., from Clarice Lispector, by an issue that is present on them: the meeting between the anthropological question – to know, to care and to accept himself and other one – and the theological thought – that is showed on the God’s knowledge, by the ‘humanity of de human being’ presents on Clarice’s works. Actually, biblical text of the Isaiah shows us what we want to describe below, that is, to see God is linked to see himself: “Woe is me, for I am ruined! Because I am a man of unclean lips, And I live among a people of unclean lips; For my eyes have seen the King, the Lord of hosts” (Is. 6,5). That is ‘the happy meeting’ of Clarice. KEYWORDS │ Theology; Literature; Anthropology; Clarice Lispector.

ESTE TEXTO NÃO É O PRIMEIRO NEM O ÚLTIMO A FAZER REFERÊNCIA à possibilidade de aproximações entre literatura e teologia via antropologia1. O artigo Literatura e Teologia: perspectivas teórico-metodológicas no pensamento 

Doutoranda em Teologia pela PUC-Rio e em História Comparada pela UFRJ. Professora de Língua Grega e de Exegese e Teologia no Centro Universitário Metodista Bennett. Pesquisadora do NEA – Núcleo de Estudos da Antiguidade da UERJ. 1 Antonio Manzatto apontou essa possibilidade em suas pesquisas com a obra de Jorge Amado, no livro Teologia e Literatura (1994) e faz um pequeno histórico dessa ‘odisseia’ no artigo Teologia e Literatura: aproximações pela antropologia que pode ser visualizado em http://www.alalite.org/files/rio2007/docs/Manzatto.pdf “O porto é a porta”

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católico contemporâneo, do professor José Carlos Barcellos, demonstra o estado da questão acerca de teorias e metodologias possíveis para se construir e trabalhar esta aproximação. Barcellos aponta a tese de Antonio Mazatto sobre a antropologia de Jorge Amado à luz da Teologia da Libertação, em cuja perspectiva (a de Manzatto) a teologia pode e deve recorrer à literatura como mediação para a leitura da realidade, complementando ou substituindo a mediação das ciências humanas e sociais (Manzatto, 1994, p.5). Nas palavras de Manzatto mais à frente em seu livro: “Se a sociologia pode dar uma ideia de certas estruturas, é a literatura quem nos põe em contato com uma face da realidade humana vivida e sentida” (Ibid., p.37). Nesse ínterim, Tzvetan Todorov pode contribuir com sua fala acerca da literatura: “O objetivo da literatura é representar a existência humana [...]. A narrativa está necessariamente inserida num diálogo do qual os homens não são apenas o objeto, mas também os protagonistas” (Todorov, 2010, p.86). Quando mencionamos “aproximações e intersecções” entre Literatura, Teologia e Antropologia, queremos dizer que, na hermenêutica feita a partir das referidas obras de Clarice tais fatos se tornam possíveis. Pode-se perceber em ambas as obras o encontro do mais humano do homem – consigo mesmo e com o outro – inextricavelmente ligado ao encontro com o transcendente, com a divindade, como resposta ou consequência direta ao primeiro dos encontros. O porto é a porta: o caminho é a mistagogia As epígrafes de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, já sinalizam ao leitor atento que o texto que tem em mãos tratará de novas buscas e de novos achados, respectivamente. Neste mister, a primeira epígrafe é aquela que mais claramente fala ao leitor, através do texto de Apocalipse 4,1: “Depois disto olhei, e eis que vi uma porta aberta no céu, e a primeira voz que ouvi era como a trombeta que falava comigo, dizendo: sobe aqui, e mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas”. Faz-se necessário dizer que a inspiração para iniciar o título deste texto e do subtítulo aqui apresentado – o porto é a porta – devem-se ao artigo da pesquisadora Maria Clara Lucchetti Bingemer, Iniciação e paixão: a tensão dialética entre Eros e Agape em dois romances de Clarice Lispector. Ao tratar do percurso se Lóri e Ulisses em Uma aprendizagem ou O livro dos 24

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prazeres, Bingemer afirma que ambos “chegam ao porto aonde os levou seu desejo infinito. Mas esse porto na verdade é uma porta”. A mesma porta apresentada na epígrafe apocalíptica. Clarice nos apresenta, em Uma aprendizagem..., a protagonista Lóri, uma mulher, que tem como uma espécie de mistagogo2, Ulisses, um homem que tem o dom da palavra, professor universitário que é. A referência à Odisseia de Homero e de “seu” Ulisses (=Odisseu) é nítida pela habilidade com que este também se utiliza da palavra para se desvencilhar das mais variadas situações pelas quais passa. No entanto, a grande questão da Odisseia é o canto de nostos (de regresso) que em todo o tempo ocupa seu lugar, pois Ulisses quer retornar à Ítaca, seu reino, seu porto. Ao mesmo tempo, Homero tenta mostrar a seu ouvinte-leitor que tão importante quanto chegar ao porto são as experiências vividas ao longo do caminho, e a porta que se abre para uma nova odisseia. Nesse sentido, o porto é a porta. Do mesmo modo, Lóri, conduzida pelo Ulisses de Clarice, viverá novas experiências até chegar ao porto que se abre diante dela. E à porta. Em A paixão segundo G.H, a personagem principal para Clarice foi ‘pouco a pouco dando uma alegria difícil’, apresentada de antemão a ‘possíveis leitores’, na medida em que caminhar ao porto para que a porta se abra não é tão fácil assim. A procura e a busca já se mostram desde o início, a fim de desfazer-se do velho e encontrar o novo. “Não se põe vinho novo em odres velhos, pois os odres não o suportam por sua novidade e se rompem”, diz Jesus através da pena sinótica dos três evangelistas3: “– – – – – – – estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi” (Lispector, 2009, p.9). É preciso encontrar o porto. A porta. E a odisseia insólita da procura e da busca Um mistagogo era um sacerdote grego, que servia o propósito da iniciação nos mistérios da religião, ensinando as cerimônias e os ritos, sendo mais conhecidos os mistérios de Elêusis, em Atenas. Fora da esfera grega, o mistagogo pode ser qualquer pessoa que inicia outros em crenças místicas, um educador ou pessoa que tem conhecimento dos ‘mistérios sagrados’. Em religiões antigas, um mistagogo seria o responsável por liderar um iniciado nos ensinamentos e rituais secretos do culto. O verbo grego mystagogéo designa aquele que conduz ou guia (ágo) à cerimônia religiosa secreta (mystérion). Assim, o iniciado seguidamente estaria vendado, e o mistagogo deveria literalmente ‘guiá-lo’ até o local sagrado. Conservando esse sentido, Ulisses ‘guia’ Lóri ao conhecimento do mistério que estava presente nela mesma, e ao encontrar-se, encontra a graça e o divino. 3 Mateus 9,17; Marcos 2,22; Lucas 5,37-38. 2

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se faz pela instrumentalidade da massa branca e interior de uma barata, saboreada e engolida, em uma espécie de simbiose mistagógica que se dá no con-tato, ao tocar o íntimo da própria G.H. A porta se abre. Mircea Eliade, ao apresentar “sua” fenomenologia da iniciação, diznos que esta – a iniciação – comporta geralmente uma tripla revelação: a do sagrado, a da morte e a da sexualidade. A criança é ignorante nas três experiências, no entanto o iniciado as conhece, assume e integra em sua nova personalidade. A iniciação é equivalente ao amadurecimento espiritual e o iniciado, que conheceu os mistérios, é, agora, aquele que sabe (Eliade, 2008, p.153-154). Assim acontece com Lóri e com G.H. Seu retiro feito no interior de si mesmas, fazem-nas, como os neófitos das comunidades longínquas nas selvas, “montar no dorso do tigre”, o Senhor da iniciação4, a fim de realizar esta viagem, conduzidas que são aos infernos de seus medos para chegarem, outras e novas criaturas, ao céu de sua própria aceitação. G.H. termina o primeiro e inicia o segundo capítulo dizendo quase em tom professoral: “É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno” (Lispector, 2009, p.21-22). Necessário foi a elas nascer de novo (Cf. João 3,7), passando pelo parto de dores e pela porta do mais humano do humano. Clarice e o encontro com o si-mesmo – e com o Deus – através do outro Ao tratar de identidade e alteridade, afirma o antropólogo Marc Augé que “os seres individuais não têm uma existência a não ser pela relação que os une”. Deste modo, cada indivíduo não é assim – um indivíduo – senão pelo entrecruzamento necessário, mas viável, de um conjunto de relações (Augé, 1999, p.27). Augé nos interpela com a pergunta central que a própria antropologia se faz: ‘quem é o outro?’ É mister sabê-lo a fim de que eu defina e entenda quem sou eu mesmo. Nesse sentido, baseado nas proposições de Levinas (1991) e Ricoeur (1991), Adolphe Gesché corrobora o pensamento de Augé apresentando a alteridade como fator constitutivo da identidade de forma paradoxal, a partir do momento em que o outro me convoca e me faz sair da clausura de mim mesmo: A crença de que em alguns lugares um tigre vem e transporta no dorso os neófitos é apresentada por Mircea Eliade entre tantas outras formas de iniciação (Eliade, M., p.154). Não obstante, é interessante notar que Benedito Nunes, dá a seu livro o título de O dorso do tigre (1969), que trata, no segundo capítulo, da experiência mística de G.H., examinando o mundo imaginário de Clarice Lispector.

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Ninguém se constrói nem se compreende só diante de si próprio, na solidão. Precisamos ser arrancados, chamados, interpelados [...]. Não somente para saber que somos (existência), mas o que somos (identidade). E para poder, com base nisso, construir verdadeira autonomia, que sempre é de diálogo (Gesché, 2005, p.49).

Trazendo à tona ao leitor as elucubrações de Lóri e de G.H., em um embate consigo mesmas e respectivamente, com Ulisses e com a barata, Clarice Lispector entendeu e aplicou perfeitamente em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres e em A paixão segundo G.H. as assertivas de Augé e de Gesché. Vejamos como isso se dá em seus dois romances marcadamente intimistas. Em Uma aprendizagem..., Clarice aponta que “A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano” (Lispector, 1982, p.31). Tal afirmação tão carregada de sentido poderia ser tomada como um simples trocadilho ou um pleonasmo se não fosse o seguimento de A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia que introduzem o leitor ao mundo do texto que está por vir: a primavera é o re-florescer da fauna e o re-novar da fauna. A morte é superada. No entanto, aconteceu. Assim como se dá com a natureza, tornamo-nos humanos mais humanos quando morre algo em nós e renascemos. Os evangelistas tratam este fato como um pressuposto ao seguimento de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo [...]. Porque, qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas qualquer que, por amor de mim, perder a sua vida, esse a salvará” (Mateus 16, 24-25; Marcos 8, 34-35; Lucas 9, 23-24). Em A paixão segundo G.H., a procura pelo que não se sabe o que é tem seu início na dificuldade e no medo do perder-se: “É difícil perderse[...]. Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando” (Lispector, 2009, p.10-11). Com isso, G,H. se assusta porque se perde em sua ‘formação humana’, sente-se cortada em pedaços e distribuída pelas fomes e percebe que “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão”. Retoma: “Todo momento de achar é um perder-se a si próprio” e para isso “precisaria agora remorrer” (Lispector, 2009, p.12-14). Quando encontra a barata e a mata, G.H. se pergunta “o que matara eu? Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouquecera de prazer?” (Lispector, 2009, p.53). De fato e em verdade, ela mata a G.H. que fora antes. Em um processo “O porto é a porta”

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natural, mais tarde ela morreria novamente e se perderia ao amalgamarse à barata. E isto para ser humanizada. Estar viva como nunca. O tornamo-nos humanos se dá em vista da experiência e da troca com o outro, do mesmo modo em que Ulisses verdadeiramente se humaniza ao tocar tão simples e reverentemente Lóri após tantos outros toques quando fizeram amor: “Por um instante, como se tivessem combinado, ele beijou sua mão, humanizando-se” (Lispector, 2009, p.162-163). Igualmente, Lóri se humaniza e se aproxima de tal forma do ‘seu’ outro – Ulisses –, que recebe a alegria de viver o prazer de se perder para se achar, sem medo algum mais: Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer de Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que estava antes encarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto de alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o que me acontece quando eu estou me dando é que recebo, recebo (Lispector, 1982, p.160-161).

Lóri fora iniciada na arte de se entender, aceitar-se e cuidar de si. Por isso pode fazê-lo também pelo outro. Ela dá sentido à sua existência como a antropologia defende que os homens devem dar-lhe: em coletividade. Este sentido é a relação na ocorrência essencial das relações simbolizadas e efetivas entre humanos pertencentes a uma coletividade particular (Augé, 1999, p.43), como Ulisses e Lóri. Importa dizer que antes dos corpos de ambos se misturarem, como G.H. se mistura e se amalgama à massa úmida, viva e branca da barata, unem-se os sentimentos. Lóri se percebe amando Ulisses. E neste momento, quase não narrável de tão insólito na referência à Sagrada Escritura, torna-se assaz interessante a re-leitura às avessas que Clarice faz do ato do pecado original – ao transformá-lo em libertação dos medos de Lóri e em entrada num ‘estado de graça’, manifesta no ato em que morde a maçã que estivera sobre a mesa em seu apartamento: Depois de examiná-la, de revirá-la, de ver como nunca vira a sua redondez e sua cor escarlate – então devagar, deu-lhe uma mordida. § E, oh Deus, como se fosse a maçã proibida do paraíso, mas que ela agora já conhecesse o bem, e não só o mal como antes. Ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso. § Só deu uma mordida e depositou a maçã na mesa. Porque

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alguma coisa desconhecida estava suavemente acontecendo. Era o começo – de um estado de graça (Lispector, 1982, p.146)5.

Vivendo o homem em sociedade, o eixo da relação ou da alteridade coloca em ação as categorias mais abstratas e mais relativas do si-mesmo e do outro, que podem ser individuais ou coletivas. No nível mais intimista, a ação nestas categorias percebe-se nos romances de Clarice. A hipótese de Augé é a de que a atividade ritual (entendamse ritos de passagem ou de iniciação), sob suas diversas formas, tem por objetivo essencial a conjugação e o domínio dessa dupla polaridade – individual/coletiva, si-mesmo /outro (Augé, 1999, p.44). Depois dos des-encontros vividos pelas duas protagonistas, houve o encontro ritual iniciático de Lóri com o Ulisses que a seduzia com a palavra falada e escrita e de G.H. com a barata, cuja cara, boca, olhos e cílios pestanejantes a clamavam por sua proximidade e a faziam “chegar ao nada, e o nada era vivo e úmido” (Lispector, 2009, p.60-61)6. Dar-se-á, como corolário, o encontro com o sagrado, com o divino. Ainda que em níveis nada assintóticos7 e em diagramas peculiares a cada experiência, representados por movimentos preposicionais distintos: Lóri diante de, em sentido horizontal em relação a Ulisses, G.H. abaixo, em sentido vertical indo à barata, kenotizando-se completamente. Vejamos como se dá cada um dos encontros com o transcendente. Em Uma aprendizagem..., o encontro com o sagrado é recheado de pares antitéticos bastante significativos – homem sobrenatural / Deus natural, dom da palavra/pensar sem palavras, paz/medo – que resultam na insolitude de uma síntese que abala “as teologias” de muita gente à primeira vista: a embriaguez da santidade, a santidade do corpo. Não será esta a perfeita síntese que une o antropológico e o teológico dentro de cada um de nós? É ao dizer: “Eis-me aqui” que eu sou. Assim é com o Jesus joanino. Assim é com o que teme a Deus e se relaciona com ele, tendo a coragem de lhe dizer quem é. Saber-se a si mesma era sobrenatural. Mas o Deus era natural. Lóri quis transmitir isso para Ulisses mas não tinha o dom da

5 Não nos esqueçamos que logo após Lori passará por um momento de silêncio e terá um “batismo” no mar. A referência ao rito iniciático é direta. 6 A mesma estrutura de término de um capítulo e início do seguinte com a mesma oração ocorre aqui: “Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido”, a fim de apontar a importância deste momento preparatório ao rito de iniciação. 7 As retas assíntotas ou assintóticas são as retas paralelas que podem se aproximar e se afastar, porém em nenhum momento se encontram, e assim até ao infinito.

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palavra e não podia explicar o que sentia ou o que pensava, além de que pensava quase sem palavras. Então ela, em voz baixa para não despertá-lo de todo, disse pela primeira vez na sua vida: – É porque te amo. Grande paz tomou-a por enfim ter dito. Sem medo de acordá-lo e sem medo da resposta, perguntou: – Escute, você ainda vai me querer? – Mais do que nunca, respondeu ele com voz calma e controlada. A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu iria atingir era a santidade do corpo (Lispector, 1982, p.164-165).

Em G.H., o per-curso é bem mais profundo: ela mergulha no abismo de si, na incompreensão da compreensão de uma mulher sem paixão que vai conhecer o pathos: a paixão do Gênero Humano que desce ao mais baixo para elevar-se no paradoxo deste movimento. Como Jesus, representado no bom samaritano, ojerizado e odiado pelos ouvintes da parábola, assim é o elemento repugnante da barata que, no interior de G.H., vai trazê-la própria a uma nova vida, esvaziada de si mesma, perdida e achada. Ela tocara o impuro como Jesus tocara os leprosos, as prostitutas, os mortos, a mulher com uma irritante e dolorida menstruação contínua de doze anos. Não obstante, tornara-se pura como cada um desses a quem o Senhor tocou. Deseroizada. Ela se perdeu. Foi achada pelo Deus e agora, mais próxima do humano que há em si mesma, aproxima-se dele: Oh Deus, eu me sentia batizada pelo mundo. Eu botara a boca na matéria de uma barata e enfim realizara o ato ínfimo. § Não o ato máximo. Como antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato ínfimo que sempre me havia faltado. Eu sempre fora incapaz do ato ínfimo. E com o ato ínfimo, eu me havia deseroizado. Eu, que havia vivido do meio do caminho, dera enfim o primeiro passo de seu começo. § O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.– – – – – – (Lispector, 2009, p.178-179).

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Para não concluir: novo porto e nova porta O “rito iniciático” à prosa de Clarice Lispector permitiram-nos chamá-la por seu primeiro nome: Clarice. Tão à vontade se pode ficar com ela, como se permitiram Lóri e G.H. contar a nós seus medos e anseios, buscas e procuras, tristezas e alegrias, des-encontros e encontros. Entendeu-se antropologicamente que devo aceitar-me a mim e ao outro que diante de mim está – ele é o meu próximo e é de quem dependo para ser eu mesma. Quem ama a Deus, deve amar também a si e a seu irmão. A Bíblia tinha razão... Descobriu-se teologicamente que a relação com o Deus que Clarice apresenta, em sua peculiaridade, depende da relação do humano com o humano que estabelecem. Isto é fato. Nesta relação, outra ganha vida: unir teologia e literatura torna-se uma possibilidade feliz de análise das obras de Clarice via suas questões antropológicas mais íntimas, baseadas nos fatos singulares do cotidiano vividos pelas protagonistas e na face tão intimista de suas mentes femininas. Ao mesmo tempo, Lóri e G.H. tornam-se mulheres possíveis a nós, no sentido real e próprio de suas experiências, a não ser por um detalhe incômodo: a barata. Assim como seu interior na boca de G.H. é repulsante a nós, o apóstolo Paulo afirma carinhosamente que Cristo nos amou [ao ponto de ir por nós até a morte e morte de cruz (Cf. Filipenses 2,8)], sendo nós ainda pecadores (Romanos 5,8), baratas esmagadas que éramos e por vezes ainda somos. A um novo porto se chegou através deste estudo: Ítaca. Uma nova porta se abriu. Dito isto, à altura das peripécias narradas nas três obras, parte do poema de Konstantinos Kaváfis (18631933), Ítaca, pode encerrar o texto melhor que qualquer palavra: Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e agora sabes o que significam Ítacas.

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Calabar

e o questionamento à imagem indianista do Brasil

Louise de Lemos Azevedo RESUMO │ O artigo se debruça sobre a obra dramatúrgica Calabar, de Agrário de Menezes, escrita em 1858, a primeira no Brasil a apresentar como protagonista uma personagem negra, para discutir as proposições simbólicas da peça no que diz respeito aos conflitos raciais envolvidos na formação da identidade brasileira pós-independência. A obra é uma ficção histórica que recria a personagem Calabar e as motivações que o levaram a trair o exército português durante o período das invasões holandesas ao nordeste brasileiro. O artigo investiga o processo de ficcionalização da personagem relacionando-o com as possíveis proposições e provocações políticas da obra por meio da motivação que direciona a ação dramática do texto: a traição. PALAVRAS-CHAVE │ Dramaturgia; identidade brasileira; teatro histórico. ABSTRACT │ The article is about the play Calabar, written by Agrário de Menezes, on 1858, which is the first one in Brazil that has a black protagonist; and discuss the play's symbolic propositions related to racial conflicts as part of Brazilian identity development after the country's independence. This play is a historical fiction that recreates the character Calabar and the motives that made him betray the Portuguese army during the Dutch’s invasions on Brazilian northeast. This article discourse about the fictionalization of the character and its politics propositions by means of the motivation that orientate the dramatic action of the play: his betrayal. KEYWORDS │ Dramaturgic; Brazilian identity; historical dramaturgy.

AGRÁRIO DE SOUZA MENEZES É UM AUTOR POUCO CONHECIDO mesmo entre pesquisadores de Literatura ou de Teatro Brasileiro. Apesar da carreira dramatúrgica consideravelmente extensa, se levada em conta a brevidade de sua vida, com ao menos três dramas e algumas comédias publicadas, o autor é usualmente lembrado apenas pelos pesquisadores do período romântico, especialmente quando se trata de inventariar os dramas históricos brasileiros, pois sua peça Calabar foi a grande responsável por manter seu nome na historiografia teatral Brasileira. O tema da peça, conforme explicita seu título, dispensando maiores explicações, é “histórico e nacional”, segundo o autor, em acordo com a proposta de um concurso promovido pelo Conservatório 

Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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Dramático do Rio de Janeiro para o qual fora direcionada ao ser escrita em 1858. Incentivado pela proposta nacionalista em período pósindependência, Agrário de Menezes reconstrói a história de um famoso traidor da pátria durante o período colonial, reconsiderando suas razões para se voltar contra Portugal durante o período das invasões holandesas ao nordeste, ao lhe dar, no campo da ficção, a oportunidade que a história não lhe havia dado: a de justificar-se. A peça de Agrário de Menezes já se mostra, portanto, apenas por essa razão, um tanto mais complexa do que um drama histórico de caráter nacionalista com o objetivo de endossar a independência do Brasil por meio da produção cultural, uma vez que a ficcionalização de tal personagem propõe um rompimento com uma memória histórica, perpetuada durante o período imperial brasileiro, de que haveria uma pacífica relação entre brasileiros e portugueses na construção do país independente. Porém, as proposições inovadoras da obra se avançam para outros campos além da memória histórica em que se apoia ao propor o processo de ficcionalização de um fato histórico e de uma personagem com base em uma personalidade real. Por um lado sua importância se localiza na proposta estética e literária da obra.1 Há o uso de inovações trazidas pela escola romântica na composição de personagens de uma complexidade não permitida pela influência classicista que ainda conduzia o cânone teatral brasileiro, ao lado de características típicas da tragédia, na utilização de regras clássicas nas quais o autor se preocupou em enquadrar sua obra, pelo medo de se entregar ao ímpeto de ruptura e construir uma obra radical, dada à “devaneios ultra-românticos” (Prado, 1996) pouco aceitos deste lado do oceano onde a batalha entre clássicos e românticos não havia sido tão evidente quanto na Europa. Pouco adiantaram, entretanto, as preocupações de comedimento do autor, uma vez que sua obra, que acaba por misturar um relativo vigor cênico, em cenas grandiosas e Quando me refiro à proposta literária do texto, compreendo que a concepção do texto teatral como um elemento dependente, completado apenas por meio da encenação, só ocorre no teatro moderno. No período ao qual esse artigo se refere, especialmente no Brasil, ainda que o texto tenha como principal intensão ser encenado, e que sua concepção seja fundamentada em seu direcionamento à cena, conferindo-lhe as particularidades do texto dramático, há, ainda, a percepção da dramaturgia como uma vertente literária e destinada, também, à publicação. Nesse sentido, devido ao caráter da obra em análise, considera-se seu sentido literário como dramaturgia, e, portanto, como uma obra publicada, mas que revela a intenção de chegar ao palco por meio da ação.

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apoteóticas e personagens conturbadas e violentas, com uma retórica rebuscada em versos decassílabos, fora, afinal, rejeitada pelo conservatório dramático. A motivação para tal não parece, todavia, ter partido apenas da recusa aos desvios do padrão clássico, senão devido a um terceiro campo por onde a obra se envereda e no qual ela se revela mais transgressora: a crítica à sociedade e s desestabilização da imagem que ela cria e espera preservar sobre si. Um dado que dificilmente poderia ter sido ignorado pelo autor durante suas pesquisas para compor o papel de seu protagonista é de que Calabar era negro. A obra é, então, uma das pioneiras no Brasil a ter uma personagem negra e a primeira a tê-lo como protagonista. É escusado apontar a importância simbólica de uma obra que pela primeira vez colocou como principal foco de interesse uma personagem que, apesar de representar quase um terço da população brasileira estava apartada das representações culturais da elite, tais quais o teatro e a literatura, em um reflexo da marginalização a que era imposto como forma de legitimação da opressão e desumanização que sofriam. No entanto, o fato de uma obra conter uma personagem negra, especialmente no século XIX, não significa necessariamente que ela servisse ao combate à opressão. A pesquisadora Miriam Garcia Mendes (1982), na obra A personagem negra no Teatro Brasileiro, fez um levantamento da ocorrência de personagens negras, entre escravos ou libertos, no teatro durante o século XIX, e aponta um considerável número de obras em que elas aparecem. No entanto, segundo a pesquisadora, a maior parte dessas obras trabalha sobre a construção de estereótipos em que a caracterização de tais personagens indubitavelmente aparece identificada com a visão do senhor, mas de formas diferentes. Eles aparecem como verdadeiros vilões de comportamento lascivo, astuto, traidor, egoísta e ingrato da piedade do patrão, cujo exemplo mais celebre é a peça O demônio familiar de José de Alencar,2 ou, mais 2 A peça O demônio familiar mostra o cotidiano de uma família chefiada pelo filho mais velho e cujo destino é manipulado por um jovem escravo domiciliar, que intenciona casar seus patrões com pretendentes ricos com o objetivo de realizar seu sonho particular: ser cocheiro de uma carruagem elegante. A peça se desenvolve por meio de inúmeras peripécias que se desenvolvem a partir das argúcias do escravo, que será ao final, alforriado por seu dono como forma de “punição”, porque, uma vez liberto, “a moral e a lei pedirão uma conta severa de tuas ações” (Alencar, s.d., p. 85). Assim, o autor defende um discurso de que devido à sua posição o escravo não teria responsabilidades por seus atos e por isso seria incapaz de desenvolver um senso de moral ou de justiça.

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comumente como personagens boas, mas de comportamento passivo, em criados fiéis de senhores justos dos quais, eventualmente, conseguem obter a alforria como prova de gratidão.3 Esta é frequentemente a caracterização de personagens de autores comprometido com o pensamento abolicionista, e cujas obras, em uma tentativa de desmistificar a visão negativa que se tinha sobre negros e negras, se esforçava por mostrá-los como pessoas virtuosas, mas corrompidas pela instituição escravocrata. Esta tentativa era bastante importante em uma sociedade que estimulava a manutenção da escravidão disseminando discursos como os de que a população negra era naturalmente pendente ao vício e que o cativeiro era benéfico por afastá-lo de sua condição bárbara. No entanto, por outro lado, elas contribuíam para a reafirmação de estereótipos e preconceitos que afirmavam negros como naturalmente aptos para o trabalho, de espírito servil e incapazes de conquistarem a liberdade de outra maneira que não fosse por concessão. Nesse sentido, tais obras, ainda que pudessem chegar a contribuir para a campanha abolicionista como intencionavam, com algumas exceções, reforçavam a opressão simbólica, arma de manutenção da opressão social e política que essa população sofria, e ainda sofre, ao reafirmar representações preconceituosas, estereotipadas e simplórias. A maior parte dessas obras que optam por abordar o problema da escravidão ou do negro liberto na sociedade tratam-na por meio de conflitos privados e familiares em que muitas vezes o estigma da descendência escrava é o mote para o desenvolvimento da trama (Azevedo, 2011). Deste modo, as obras, ainda que se proponham a discutir aspectos relacionados à sociedade, o fazem por uma perspectiva individual e privada, por meio de personagens em conflitos de interesse de ordem pessoal que se chocam, ou seja, a crítica se estabelece por meio de uma estrutura dramática clássica, onde o elemento privado se sobrepõe sobre o público (Costa, 1988). Diferentemente desses casos, a obra de Agrário de Menezes, conforme se apontou, tem como pano de fundo um fato histórico relevante do passado colonial brasileiro – as 3 Entre as peças que apresentam personagens negras durante o período podemos citar os dramas: A Mãe, de José de Alencar (1860), O escravo fiel, de Carlos Antônio Cordeiro (1859), História de uma moça rica, Francisco Pinheiro Guimarães (1861), Cancros Sociais, de Maria Ribeiro (1865), Gonzaga ou a revolução de Minas, de Castro Alves (1867), O soldado Brasileiro, de Candido Barata Ribeiro e Ubaldino Pompeu do Amaral (1869), Sangue Limpo, de Paulo Eiró (1861).

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invasões holandesas ao nordeste concentradas na traição de Calabar ao exército português – de modo que a própria escolha do tema já força a abordagem do problema por um viés mais abrangente. Ainda que a obra, na tradição do drama histórico, aborde o fato por meio do enredamento do destino individual da personagem com acontecimentos factuais historicamente comprovados, a condição histórica do texto o conduz, necessariamente, para o plano épico. Isso acontece porque mesmo que se trate do drama privado de Calabar, elaborado em uma relação amorosa ficcional que use a batalha entre dois exércitos inimigos mais como pano de fundo para o desenvolvimento de sua história do que como foco de interesse, as razões para suas ações, bem como seus resultados relacionam-se com os interesses coletivos de uma comunidade em que ele está inserido. No caso da peça, com todas as complicações, questionamentos e contradições que significam o pertencimento a essa comunidade, a pátria brasileira. O destino da comunidade permeando e desenvolvendo-se ao lado do destino individual da personagem, leva as proposições da peça para uma instância coletiva, pública, comunitária e por excelência épica. Não há influências de elementos do gênero épicos para que se considere Calabar uma “peça épica”. É o tema histórico que a impulsiona ao lugar do épico, ainda que pela forma dramática. Na peça são relacionadas personagens verídicas e fatos historicamente comprovados, com outros de gênese puramente ficcional. Assim, Calabar é apresentado como um devotado soldado do exército português, apesar de brasileiro e mulato, patriota, e fervoroso na luta contra o holandês. Após uma batalha conhece Argentina, uma jovem indígena órfã cujo pai, velho guerreiro da tribo, desaparecido, é dado como morto. Calabar, até então um homem de caráter exemplar, adota a indígena como filha. Entretanto, o amor paterno acaba por se tornar amor romântico e ao se declarar, Calabar recebe a negativa em resposta. Argentina ama o oficial português Faro, com quem foge. É apenas após a recusa amorosa que Calabar decide passar para o exército inimigo. A opção pela traição, que ocorre por meio de uma profunda hesitação beirando o devaneio – “que tremenda revolução que se opera na minh’alma!” (Menezes, p. 26) – ocorre não apenas pelo desejo de vingança pessoal contra o soldado português responsável por sua desventura amorosa. Ela se apoia na percepção de que o português, assim como o holandês, tem em seu projeto de colonização apenas a intenção de explorar a terra brasileira, são, portanto: Calabar e o questionamento à imagem indianista...

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Aventureiros ambos, alentados Só pela sede de ouro e de riquezas, Ambos querem mandar pela conquista! Holanda e Portugal são nessa guerra Abutres esfaimados que se agarram Por sugarem o sangue do gigante!... (Menezes, 2006, p. 101-102).

A conclusão a que chega a personagem é motivada por uma questão particular e subjetiva – a recusa do amor romântico – porém ela acontece porque o triângulo amoroso que se desenha na relação Calabar – Argentina – Faro tem um significado bastante profundo na construção da identidade nacional. Faro é um oficial português e branco e Argentina uma indígena. Juntos eles formam um símbolo caro ao romantismo brasileiro, representando o encontro da cultura civilizada e cristã com o nativismo brasileiro. Esse encontro representou para o romantismo indianista o nascimento da cultura brasileira, em que, quase sempre, essa relação era permeada por uma relação senhoril que realocava as relações medievais do romantismo europeu, para um encontro idílico na selva tropical entre um senhor (ou senhora) branca, representando o domínio europeu em uma aventura conquistadora por meio de um projeto de civilização cristã, e uma (ou um) indígena altamente idealizado, representando um espírito original, intocado e por isso nobre e fiel ao conquistador (Bosi, 1978). O resultado desta equação é a imagem de uma dominação aceita, escondida sob um pacto de honra (Bosi, 1978), pois seria nesse encontro que a exuberância nativa brasileira superaria o seu aspecto selvagem para poder desenvolver-se plenamente em um projeto de civilização, progresso natural da humanidade. Nesse sentido, no sonho indianista, o indígena representa um povo forte, nobre e guerreiro que recusou o cativeiro, mas se manteve fiel aos conquistadores por escolha. O indianismo brasileiro se esforçou por uma reconstrução do passado nativo, como forma de oferecer uma memória e uma identidade à jovem nação. No entanto, na elaboração desse paraíso exótico, ignorou a presença do negro ainda que ela tenha representado a base de constituição do homem brasileiro. A imagem desse ‘castelo nos trópicos’ (Bosi, 1978), 4 de onde o negro foi apartado, não era apenas A expressão ‘castelo nos trópicos’ criada por Bosi é uma imagem bastante pertinente do projeto romântico brasileiro, e refere-se à criação de relações próprias da idade média europeia no período colonial brasileiro, na relação entre Portugueses colonizadores e indígenas. A experiência estética do romantismo no Brasil se baseia na

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um reflexo da própria dominação existente, que associava ao negro o trabalho servil considerado vexatório; ela perpetuava a dominação ao imputar-lhe o silenciamento, negando sua participação na elaboração simbólica do nascimento do Brasil. Essa ausência ainda se associa ao fato de que, na criação do português como o nobre aventureiro Europeu, determinado em um plano civilizacional, seria difícil a inserção equilibrada de um povo trazido à força para o território e que era ainda escravizado, humilhado e torturado nas senzalas. O projeto indianista, especialmente por sua inserção no espaço idílico e primitivo das matas, e por sua ligação com o projeto de Independência, exigia a liberdade dos indivíduos que a presença do escravo ou seu descendente negaria. Daí o silenciamento em relação ao negro nessa primeira fase do romantismo brasileiro. Quando Agrário de Menezes introduz essa personagem neste quadro, e não poderia ser de outro modo, ela aparece como uma tensão, como uma forma de desequilíbrio de sua imagem pacífica porque, sendo mulato, ele carrega consigo a marca do cativeiro, de forma que na construção da representação identitária brasileira, o marco da violência necessariamente se estabelece sobre ele, uma vez que seu povo foi escravizado e trazido à força para uma terra estranha. Desse modo, a recusa amorosa de Argentina significa uma escolha pelo português branco em detrimento dele, brasileiro e mulato, reafirmando o silenciamento e a sua participação na imagem identitária do Brasil e por isso essa escolha significa para Calabar a revelação do português como inimigo, rival e explorador, pois amor e pátria são as duas faces de uma mesma moeda: esse vil e covarde aventureiro, Que além da pátria as afeições me rouba?! Traidor!... Infame!.. Longe dos perigos, Longe da guerra, em ócio criminoso, Deixando a espada – qu’inda mal lhe deram – Enferrujar-se dentro da bainha; Vem perturbar os sonhos inocentes De uma virgem tão bela, e seduzi-la!... (Menezes, 2006, p. 33).

A “traição” de Calabar, portanto, não seria por desprezo aos valores patrióticos. Pelo contrário, é apenas pelo fato de ter sido até influência europeia em que o passado medieval foi revisitado em seus valores de nobreza e cavalaria, e utiliza essa relação de vassalagem entre conquistador e população nativa em que é embutida a experiência de troca entre a relação plena com a natureza tropical e o comportamento do homem civilizado. Calabar e o questionamento à imagem indianista...

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então um defensor da luta patriótica que a personagem trai o seu exército, uma vez que o desprezo conjunto da mulher e da pátria, duplos de uma mesma representação, o leva a não ver mais sentido em sua luta, buscando a partir de então, em uma guerra entre dois inimigos comuns, servir àquele que possa, ao menos, favorecer-lhe pessoalmente por cobiça e por vingança: A glória e a pátria – fúteis subterfúgios! – São palavras vazias de sentido, Que morrem como o som que as acompanham. São, muita vez, um dístico solene Sobre as cinzas da alma e o pó das crenças!.. A glória é como um sonho que se extingue Ao despertar de um longo pesadelo! A pátria, aqui e ali, é o mundo inteiro, Quando a negra ambição domina os homens! (Menezes, 2006, p. 79).

Nesse ponto Calabar deixa de ser um vilão, um traidor cuja ação é motivada unicamente por interesse pessoal. É a marginalidade de sua condição que impede-o de exercer plenamente sua subjetividade e o delega em uma falsa relação identitária no interior da comunidade em que vive, porque ainda que se considere brasileiro, sua condição de descendente de escravos impõe sobre ele um estigma social que a personagem tenta apagar, mas que vem à tona quando percebe que na sociedade colonial ele tem funções específicas e restritas, e que o olhar voltado para ele será sempre o da condenação. Assim, ao relembrar seu passado, a personagem revela que sua única herança é a fome, a solidão, e o estigma: Nascido apenas, Fui atirado ao seio da indigência Para provar-lhe o fel gota por gota!... Meus prazeres da infância foram sonhos... Vi-os quando, alta noite, reclinado Nos troncos da floresta, a minha mente Fantasiava um berço sobre a relva De minha pobre mãe acompanhado... Eu me sorria às vezes ao seu pranto, Que em bagas sobre as faces me caía; Ela dava-me um ósculo piedoso, E, talvez já prevendo meu futuro, Gemia e soluçava!... A juventude Não me apontou mais leda!... Ao começá-la, Veio logo da morte a foice horrenda Sobre essa infeliz mãe!... Entrei de luto Aonde os outros entram adornados

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De galas!... No jardim da mocidade Sentei-me triste à sombra de ciprestes, Vendo os outros colher jasmins e rosas!... Criei-me desta sorte... Entre amarguras! Mirando o rosto esquálido da fome, Vendo o dedo cruel que me apontava A cor que eu tinha, como recordando A cor do meu destino...Que sentença!... Não há lugar no mundo para o mulato Além do que lhe aponta o cativeiro?... (Menezes, 2006, p. 158).

Na peça Calabar é um soldado de ofício, de maneira que a guerra, para ele, é vista como a única possibilidade real de se integrar à comunidade nacional de maneira digna, com reconhecimento e obter glória e riqueza: Era grande a injustiça...revoltei-me! Quis também ser partícipe dos gozos No opíparo banquete da existência... Cabeça e braço foram instrumentos, Que em toda a luta sempre me serviram; Cabeça e braço deram-me a vitória!... (Ibid.).

Quando, porém, Argentina nega-lhe o amor por um oficial branco português, traz à tona todo o processo de opressão social que lhe foi imposto. Calabar não é um escravo, mas mesmo livre do cativeiro sofre o preconceito de uma sociedade que entende que, pela cor de sua pele, ele pode ser apto para guerra mas não para o amor: O duro Calabar, talvez sentindo Muito mais do que vos, nunca dos lábios Deixou cair de amor uma palavra! E é que não amasse?! Desgraçado... [...] É que amava em segredo! Imenso, ardente, Como este sol que queima os nossos bosques; Oculto, como a serpe que se enrosca No cavo tronco da floresta opaca; O amor que aqui senti, que sinto ainda, Stá recalcado pela mão de ferro De uma vontade de homem! (Menezes, 2006, p. 26).

Assim, a recusa da aventura amorosa transforma-se imediatamente na percepção de que não há espaço para ele nessa pátria portuguesa ainda que ele possa conquistar algum status em decorrência da execução de uma atividade em que se permite a ampla relação entre as três raças devido a necessidade objetiva de braços: a guerra. Nesse sentido, a sua liberdade individual só poderia se completar com a Calabar e o questionamento à imagem indianista...

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liberdade coletiva de toda a nação, da mesma forma que sua identidade de brasileiro está entrelaçada com a sua capacidade de amar Argentina, porque “amar Argentina é vislumbrar a possibilidade de construir com ela, na concretude do amor, a palpabilidade de pátria e nação” (Cafezeiro e Gadelha, 1996, p. 160), sobretudo porque ela é a representação simbólica da terra e da natureza brasileira no imaginário produzido pelo pensamento romântico, mas também porque é a possibilidade de amor o que torna humana a natureza guerreira e selvagem de Calabar, oferecendo-lhe uma percepção de si próprio que antes não poderia ter, desvinculada da guerra e de suas justificativas exteriores. Antes Calabar amava a pátria por meio da guerra e seus horrores, após o amor por Argentina a pátria passa a ser lugar de pertencimento. O português, antes um patrício, passa a ser um invasor e opressor, posto que toma a terra de seus habitantes nativos, escraviza outros povos e oprime a ambos proclamando-se senhor natural da terra, de suas riquezas e de seus homens: A pátria! A pátria!...é sempre vil escrava! Vítima da cobiça e da rapina, Nós pugnamos por ela, e os lusitanos Suplantam-lhe a cerviz, como senhores. Os meus somente são ao brasileiros; Sois vós, vós os indígenas da terra, Senhores natos de um país imenso, Reduzidos a servos de estrangeiros!... (Menezes, 2006, p. 101).

Desse modo, Calabar troca de lado para se vingar do português, tanto de Faro, seu rival imediato e Argentina que o desprezou, quanto da sociedade que o humilha. Assim, se, em acordo com a tradição do drama romântico, Agrário de Menezes cria um casal de enamorados e os ciúmes desmedidos de um homem como motivo para desencadear o enredo histórico da peça, e não há como negar que o motivo primordial da traição de Calabar seja os ciúmes e a vontade de vingança, não se pode dizer, conforme observa Miriam Garcia Mendes (1982), que na criação ficcional a personagem seja desprovida de motivação política. Este aspecto político advém do cruzamento entre o amor e o sentimento de nacionalidade que se opera em Calabar, criando a ideia de que o direito ao amor e à nacionalidade caminham juntos (Cafezeiro e Gadelha, 1996) quando se apaixona pela indígena, em uma representação mulher/pátria. Essa representação será no entanto a

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mesma para o português, aparecendo no discurso de Faro,5 de modo que no conflito da peça pode-se observar duas camadas trabalhadas sobre Argentina como personagem e como símbolo nacional: de um lado o conflito amoroso que configura disputa dos rivais e de outro o conflito da nacionalidade relacionado à questão racial. Essa dualidade aparece de forma apoteótica no quarto ato, em uma cena de ápice de tensão do espetáculo, quando o destino dos protagonistas é selado ao mesmo tempo que o dos rumos guerra. Calabar e Faro travam um duelo por Argentina, enquanto simultaneamente portugueses e holandeses se enfrentam em uma batalha cujos sons são ouvidos pelo espectador durante o duelo. Faro é morto por Calabar e os holandeses derrotados. O protagonista será, então, preso, acusado de traição ao exército luso e condenado à morte. Cafezeiro e Gadelha (1996) percebem as relações entre o destino pessoal da personagem e os rumos da história entrelaçados pelo dramaturgo nesta cena chave para compreensão de suas proposições acerca do Brasil como nação independente:

No quarto ato da peça, a expressão do cruzamento entre amor e pátria se materializa: enquanto na cena Calabar e Faro lutam (pelo amor), ouve-se os sons da luta entre lusitanos e holandeses (pela usurpação da terra). Perde a vida Faro, o português. Perde o amor Calabar, o mulato. Fora da cena, o brado da vitória lusa. Na cena, um homem sozinho caminha para a condenação à morte. Nos bastidores da História oficial, a vitória lusa dá-se nas armas. O povo, no entanto, continua a esperar a vitória pela liberdade (Ibid., p.167).

No cruzamento entre o destino pessoal e a História não há final feliz possível, Calabar morto e desiludido e a pátria livre dos flamengos mas sob jugo português. Será, portanto, a busca pela liberdade o que orienta a última fala da personagem antes de caminhar para morte na forca: Argentina! Argentina!...Adeus, ó mundo!... (com entusiasmo) Pátria! Pátria! Conquista a liberdade!... (C., p.186).

No entanto, a última fala do personagem não se direciona unicamente para o sentido histórico do texto, se for considerado todo o contexto de crítica social abordado pelo texto. Agrário de Menezes escrevera a peça em 1858 quando a escravidão era prática instituída, 5 Na luta entre Calabar e Faro, este justifica-se em: “Não compreendes tu que não se perde/A fortuna te ver-te e de encontrar-te?/Não sabe que por ela, sim, por ela,/Por mim também, por tudo quanto existe,/Por tudo quando diz – amor e pátria –/Eu não posso deixar-te sem vingar-me?...” (Menezes, 2006, p. 148).

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defendida e normatizada, de modo que o questionamento às relações raciais no Brasil sugeridas pela obra eram uma denúncia aguda ao violento processo histórico do país decorrente da colonização e que se perpetuava após a independência por meio da prática servil e suas consequências reais e simbólicas. Nesse sentido, a conquista da liberdade bradada no palco era dirigida a seu próprio tempo, não mais ao país, como Estado nacional, mas à nação, à totalidade de seus homens, pois apenas um Brasil de homes livres poderia ser considerado uma pátria livre (Cafezeiro e Gadelha, 1996). O fato de se tratar de uma peça de teatro histórico é então fundamental para o texto. A estrutura direcionada para a encenação coloca o diálogo e a as ações do personagem no presente, mesmo quando se trata de uma situação histórica, necessariamente localizada no passado. O teatro cria uma relação de atualização do passado no presente por meio da emissão das personagens que não contam o ocorrido, mas o vivenciam aos olhos do espectador. Assim, o público presente é inserido nesse jogo em que tem como objeto de comparação o presente em que vive em confronto com aquele passado que vê encenado, de maneira que o processo de transformação da história é presentificado por meio desse jogo. Por essa razão, os questionamentos dirigidos ao passado colonial entram em diálogo com o momento de leitura/encenação da peça, dilatando seus significados para além do contexto histórico original. Ao colocar como protagonista um mulato livre questionando sua identidade nacional, Agrário de Menezes, ele próprio mulato, rompe o silenciamento imposto a parte da sociedade, trazendo à tona um problema real sobre o qual se evitava discutir abertamente. Durante a segunda metade do século XIX alguns autores partidários do fim da escravidão utilizaram-se do teatro como forma de demonstrar os males desta instituição e pregar a Abolição. E é importante lembrar que durante este século o teatro era o único meio de comunicação em massa, o que justifica seu uso em causas políticas (Azevedo, 2000). Entretanto, a maior parte dos homens e mulheres livres abolicionistas pertenciam a uma elite letrada pertencente ou dependente das elites econômicas, ou seja, latifundiários escravocratas. Assim, foram poucos os que se arriscaram em uma política abolicionista mais radical e contundente, defendendo-a de forma imediata e irrestrita. O comedimento ao se tratar do assunto se refletiu na proposição dos símbolos literários de ideal de

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nação que foram problematizados por Menezes ao colocar em conflitos as relações de identidade de brancos, negros e indígenas. Ao estudar a presença do negro e do indígena no teatro do século XIX, Elisabeth Azevedo (2011) nota que, diferentemente do indígena, que sempre aparece provido de suas referências culturais, o negro é um solitário cuja luta é quase sempre individual na busca pela liberdade. A pesquisadora relaciona o fato à relação histórica das elites brancas com negros e indígenas, bastante diversa no que diz respeito à convivência e ao vínculo de dependência e dominação. A relação com o povo indígena podia ser considerada “pacífica”, já que, nesse momento da história, ele se encontrava relativamente apartado da sociedade urbana, já “não era mais visto como uma ameaça, um desestabilizador social. Era uma questão já há muito equacionada. Poderia ser tratada com distanciamento e um alto grau de idealização” (Azevedo, 2011, p. 11). O negro e a escravidão eram, doravante, um problema eminente, porque com a luta pela Abolição que acompanhava o esgotamento do trabalho servil com a inserção do país no modelo capitalista, temia-se a possibilidade de rebeliões, e o projeto abolicionista de inspiração liberal preocupava-se com uma transição segura para as elites, de modo que, conforme explica Azevedo, no mesmo texto, “explica-se que quisessem criar uma imagem, uma referência coletiva, de personagens que poderiam facilmente, por sua boa índole inata, integrar-se a uma sociedade nova, liberada da mancha escravista, sem procurar o revanchismo ou a vingança” (Ibid., p.11). Nesse sentido, o indígena, distanciado das sociedades urbanas, se mostrava um símbolo perfeito da união pacífica e de dominação branca, podendo ser retratado em sua força coletiva e identificado com suas raízes culturais (desde que respeitando a suposta superioridade civilizatória), porque essa união não se constituía uma ameaça. O povo negro, entretanto, provido de referências culturais que os unisse como uma coletividade, poderia se constituir em uma ameaça real ao funcionamento da sociedade. Desse modo a maior parte das obras que optaram por tratar da luta pela emancipação, trouxeram personagens em lutas solitárias, evitando trazer à tona uma união de escravos em prol da libertação, o que se configurava em um temor dos proprietários.6 6 E quando a parcimônia sobre esses indivíduos que juntos poderiam se tornar perigosos não partia do próprio autor, os órgãos de censura teatral se encarregavam de fazê-lo: Azevedo (2011) cita a peça O escravocrata, de Arthur Azevedo, a primeira a

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Calabar não é exceção a esse modelo. De fato a personagem não tem referências de sua origem. Sua mãe morreu-lhe na infância e é só que ele continua seu caminho. Ao questionar a soberania do português em seu país, procura a vingança individual e não busca aproximar-se de outros homens brasileiros contra o invasor. Para Miriam Mendes (1982), a ação de vingança pessoal em que está resumido apenas o seu destino é o seu erro trágico, porque “ao passar-se para os holandeses, pois, Calabar teria consciência do significado de sua escolha; porém ao fazê-la não importa o caráter que ela pudesse ter, cometia um erro de julgamento (harmatia): passar-se para os holandeses não modificaria a sua situação, nem a da pátria, mas selaria seu destino” (Mendes, 1982, p. 74). O erro de Calabar, portanto, não estaria na avaliação que fez da realidade, mas no fato de que sua vingança pessoal contra um inimigo muito maior que ele empurrou-o até a morte e a construção de uma memória extremamente negativa sobre o seu nome, que prosseguiu mais ainda sendo marcado pela “ignomínia”. Ao trocar um inimigo pelo outro Calabar não mudava a sociedade e praticava um ato condenável, independentemente de sua motivação ser ou não relevante: a traição aos que confiavam nele. A solidão de Calabar contrasta com os dois personagens indígenas da peça, Argentina e Jaguarari, seu pai, que havia sido julgado morto, mas que reaparece ao longo da peça. Para ambos a identidade indígena e o pertencimento à tribo são fundamentais e corroboram com a ideia de que são um povo forte que não aceitaram o cativeiro mas construíram um pacto de lealdade servil com os portugueses a quem julgam “patrícios”: Fala agora por mim a sã memória, Que de meu pai conservo. Em minhas veias Gira o sangue do indígena valente Que pelo seu país perdeu a vida!.. Sou brasileira, deverei ser livre! Prefiro, sempre, a morte ao cativeiro!... (Menezes, 2006, p. 74).

No entanto, ainda que mantenha, no enredo, uma luta solitária que evitava abordar o problema da escravidão como uma luta concreta e coletiva partindo não de uma generosidade do homem branco mas de uma luta dos que sofriam a opressão, a peça toca em uma questão apresentar a paixão de uma mulher branca por um escravo e desenhar uma revolta escrava em uma fazenda. A peça foi censurada em 1884, ou seja, mesmo em momento próximo à Abolição, quando a população em geral já era favorável à libertação, a ideia de uma união e revolta escrava se mostrava perigosa e politicamente inadequada.

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fundamental: a opressão simbólica criada por discursos, pelos meios culturais e pelas práticas diárias, a partir do momento que ela questiona e desestabiliza o principal símbolo identitário que a literatura pósindependência havia criado. Ao fazê-lo por meio de um texto de caráter histórico, o autor tem a possibilidade de retornar em um período chave para levantar essa discussão, pois se trata não só de um episódio no período colonial, quando as relações de dominação tiveram início, mas era um período de guerra na colônia, que realmente mobilizou diferentes etnias na construção de um exército de defesa da colônia portuguesa. O período das invasões holandesas foi bastante reconstruído como um período de união entre as três raças, na legitimação de uma construção identitária que mascarava a relações de dominação. É possível perceber, por exemplo, na fala de Ferdinand Denis,7 uma leitura do período como o de um passado glorioso, onde a constituição da mestiçagem brasileira e da contribuição das qualidades de cada raça foi responsável pela vitória brasileira sobre Holanda, afirmando que seria justamente na mistura de raças que estaria a maior qualidade do povo brasileiro: Parece-me que na época em que uma luta heroica desenvolveu todos os caracteres, época em que a Holanda foi vencida pelo Brasil, a natureza ofereceu ao mundo um espetáculo novo, que pode fazer compreender seus desígnios. Fernandes Vieira, cheio de heroísmo cavalheiresco, deu o exemplo de coragem que os europeus associam à reflexão. O negro Henrique Dias demonstrou uma bravura ardente que despreza a prudência. Calabar, nascido de um branco e uma africana, dotado de uma inconcebível imaginação, de uma admirável perseverança, seria maior que todos se não tivesse sido traidor; enfim, Camarão, o célebre chefe índio, embora tivesse salvado os colonos e pudesse igualar-se aos demais, preferiu, todavia, isolar-se; mostrou o tipo de raça americana, por sua terrível coragem, por sua calma perseverante.” (Denis, 1826, pp 515-528 apud Amora, 1967, p. 62).

A fala de Denis sinaliza com clareza a ideia de que as três raças, cada uma contendo valores diferentes de acordo com sua constituição Ferdinand Denis foi um intelectual francês residente no Brasil entre 1816 e 1819, portanto próximo à Independência. Tornou-se especialista na cultura brasileira. Ele, bem como outros estrangeiros e alguns brasileiros, foi pioneiro em afirmar a literatura brasileira como produção independente de Portugal, desde o século XVI. Atribuiu sobretudo à constituição do romantismo brasileiro a qualidade de movimento de independência intelectual da metrópole, sinalizando muito do pensamento nativista, indianista e da miscigenação como os marcos da constituição da identidade brasileira.

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cultural, contribuíram favoravelmente à constituição do povo brasileiro, e que o período em questão, foi um período heroico por ser capaz de revelar esses valores. Segundo Bernardo Ricupero (2004) o pensamento de Varnhagen também apontou para o período como o de união das raças em prol da defesa do território, permitindo aos índios e negros a liberdade por uma causa heroica e a relação com a cultura cristã, libertando-os de seus comportamentos bárbaros. É possível perceber, portanto, que os historiadores e estudiosos do período pré e pós Independência, fechando os olhos à significativa colaboração de brasileiros com o invasor holandês, se utilizaram do período como afirmação da constituição de um mito de democracia racial no Brasil, como se contra um inimigo estrangeiro e alheio à cultura brasileira tivesse havido uma pacífica cooperação entre as diferentes etnias que formavam os habitantes do Brasil naquele período de colonização. Essa visão, entretanto, mascara uma situação muito mais complexa que rondou o período em questão. Primeiramente a questão escrava jamais esteve resolvida ou superada nesse momento. A luta entre os países tinha por objetivo a garantia do monopólio na exploração do açúcar cultivado e produzido exclusivamente pelo trabalho escravo. Assim, muitos dos negros envolvidos no conflito eram ainda escravos pertencentes a senhores de engenho, e muitos dos que participaram da luta o fizeram como forma de obter liberdade individual e galgar algum prestígio que aquela sociedade os negava. O período inclusive foi de massiva fuga de escravos para quilombos incluindo Palmares, que prosperava, negando que haveria uma boa relação entre negros e brancos. Quanto à relação com os indígenas, foi marcada desde o princípio pelo extermínio e negação de sua cultura. Assim, o uso de figuras como a de Calabar, Henrique Dias e Felipe Camarão foi uma forma de, através de casos isolados, se construir uma memória de ampla colaboração e fraternidade entre as raças que mascarava as opressões existentes nessa relação. Menezes, ao ficcionalizar o período, embora tenha se furtado de tratar, por exemplo, dos quilombos e dos escravos em luta contra a escravidão, descontrói o mito de ampla relação, ao revelar, por meio da subjetividade de uma personagem marginalizada, as relações de dominação existentes em uma sociedade de papéis definidos, onde os que carregam a herança do cativeiro são delegados ao desprezo e ao silenciamento: Homens, que me enxotastes atrevidos Da lauta mesa, em que vos assentáveis; Mulheres que zombastes do mulato,

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Porque ousou mostrar-vos a sua alma Em êxtase de amor; sede malditos!... Estou cansado já de tanta lida... Morrer, sim, é melhor. Que val o mundo?... Quem não provou nenhum de seus prazeres Não pode ter saudade de seus males... (Menezes, 2006, p. 160).

A obra, portanto, tem uma importância muito maior do que ter sido a primeira peça brasileira a trazer como protagonista uma personagem negra. Ela é, antes de tudo, uma peça que questiona os mitos de democracia racial e de colaboração entre três raças na construção do Brasil, revelando as relações de dominação existente nesse encontro e as profundas marcas que ela impõe. Ela retirou do obscurantismo uma personalidade histórica também marginalizada, posto que foi taxada como traidora pelo estado colonial de forma exemplar sem direito à defesa, para expor mecanismos de marginalização da sociedade e chamar pela liberdade, não de um único homem, mas de todos os homens, para que a sociedade se transforme e posa livrar cada homem do peso de suas opressões.

Referências Bibliográficas Amora, Antônio Soares. O romantismo. Vol.II de A literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967. Azevedo, Elisabeth R. Um palco sob as arcadas: o teatro dos estudantes de direito do Largo do São Francisco, em São Paulo, no século XIX. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2000. Azevedo, Elisabeth R. O Drama. In: Faria. João Roberto. (Org.) História do Teatro Brasileiro. Volume 1: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2012. Azevedo, Elisabeth R. Presença ausente/ausência presente – índios e negros no drama brasileiro do século XIX. Simpósio Nacional de História da ANPUH, n. XXVI, 2011, São Paulo. Dísponivel em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300667190_ARQUI VO_TEXTO.pdf. Acessado em: 25 de junho de 2014. Bosi, Alfredo. Imagens do romantismo no Brasil. In: Guinsburg, J. (Org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978. Calabar e o questionamento à imagem indianista...

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Botton, Fernanda Verdasca e Botton, Flávio Felicio. Calabar, de Agrário de Menezes, os diversos grilhões da escravidão In: Todas as Musas. Ano 4, Nº 2, Jan. Jun, pp 43 - 52, 2013. Disponível em: http://www.todasasmusas.org/08Fernanda_Verdasca.pdf. Acesso em 10 de outubro de 2013. Cafezeiro e Gadelha. Romantismo: o drama da tirania. In: História do teatro brasileiro: um percurso de Anchieta a nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: EDUERJ: FUNARTE, 1996. Candido, Antonio. O Nacionalismo Literário. In: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975a. Candido, Antonio. O romantismo como posição do espírito e da sensibilidade. In: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975b. Candido, Antonio. As formas de Expressão. In: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975c. Candido, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000. Costa, Iná Camargo. Sinta o Drama. In: Sinta o Drama. Petrópoles, RJ: Editora Vozes, 1998, p. 51-74. Khéde, Sônia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. Lima, Luiz Costa. Natureza e História nos trópicos. In: O Controle do imaginário. São Paulo: Forense Universitária,1989. Mendes, Miriam Garcia. A personagem negra no teatro brasileiro, entre 1838 e 1888. São Paulo: Ática, 1982. Menezes, Agário de Souza. Calabar. Salvador: Thypographia e livraria Pedroza, 1858. Menezes, Agário de Souza. Calabar. In: Azevedo, Elisabeth R. Antologia do Teatro Romântico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Prado, Décio de Almeida. O advento do Romantismo. In: Faria. João Roberto. (org.). História do Teatro Brasileiro. Volume 1: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2012. Prado, D. de A. O Drama Romântico Brasileiro. São Paulo: Pespectiva, 1996. Ricupero, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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Rui Nunes:

uma poética da desconstrução narrativa e da fragmentação do “eu”

Maria João Cantinho RESUMO │ A obra do escritor português Rui Nunes tem vindo a afirmar-se pela sua singularidade, no campo da literatura portuguesa contemporânea. Avessa a cânones e ao facilitismo que tanto pontua hoje o romance, o autor não faz concessões de espécie nenhuma, primando a sua obra por um carácter de radicalidade, quer no que respeita ao trabalho de linguagem, quer quanto aos temas abordados: solidão, morte, doença, etc. A desconstrução do texto como ele é tido tradicionalmente marca a sua escrita, transformando-a num texto fragmentário e alegórico, descontínuo e que recusa o paradigma do narrativo na literatura. PALAVRAS-CHAVE │ Alegoria; Rui Nunes; Literatura contemporânea. ABSTRACT │ The work of Rui Nunes is becoming one of the most important in the Portuguese literature of the actuality. His singular style is far from away of what is at the current literature, refusing the canon of the narrative text and giving more importance to a kind of radical and allegoric text which is pointed by themes as the loneliness, death and sickness. So, his work emphasizes the fragment and the discontinuity of the text, against the canon of the traditionalist narratively of the literature. KEYWORDS │ Allegory; Rui Nunes; Contemporary literature. Sonoridade bela, benfazeja, que torna o lugar habitável. Porquê? Porque não os instrumentos horríveis de ouvir? Henri Michaux

POR QUE ESTA NECESSIDADE DE “LUGARES HABITÁVEIS” NA linguagem e na literatura? A familiaridade aquieta-nos, apazigua o entendimento e a imaginação. Cria uma relação de harmonia, bem próxima da sonoridade da música que se orienta pelo sentido da melodia. Mas essa construção, a de uma bela continuidade, sem fissuras e inquietação, será o que a literatura nos traz de mais autêntico? A questão que se coloca aqui, disputando a legitimidade da bela harmonia,  Doutora em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa, investigadora do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, professora do IADE (Creative University of Lisbon).

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é a da possibilidade de ouvir os “instrumentos horríveis” ou, ainda, a experiência da dissonância, da fragmentação e do modo como ela se transporta para o trabalho da escrita e da própria arquitetura da narrativa e do texto. Ou, para sermos mais precisos neste caso da escrita de Rui Nunes, a quem consagro este texto, é precisamente o tema da desconstrução da narrativa e da ruptura com o paradigma/modelo da sua continuidade, regida pelas leis da sucessão ou de uma suposta organicidade. Obreiro incansável e discreto, Rui Nunes construiu, ao longo de 46 anos, uma obra notável, tendo-se estreado em 1968, com o livro As Margens, e regressando apenas em 1974, publicando Sauromaquia. A sua obra Osculatriz foi reconhecida pela crítica, com a qual recebeu o Prémio Pen de Narrativa de 1992 e, mais tarde foi com O Grito, que foi contemplado com o Prémio da A.P.E., em 1998. Dele disse o crítico Manuel Frias Martins, no discurso do Prémio, que era "uma das estrelas mais brilhantes da constelação literária portuguesa - ocultada, tantas vezes pelas nuvens do fácil e do óbvio". Coloco em paralelo o seu reconhecimento como o da obra de outra notável escritora, Maria Gabriela Llansol. Rui Nunes, tal como Maria Gabriela Llansol, foi reconhecido tardiamente, pois, em ambos os casos e do meu ponto de vista, a sua obra não é fácil e exige um trabalho e uma continuidade interpretativa por parte do leitor, cuja complexidade e, até, uma certa estranheza, se situa nos antípodas dos cânones estabelecidos. Creio que, do ponto de vista da comparação entre os dois autores, a escrita de Rui Nunes, confinando com uma estética da abjecção, contribui em muito para a criação de um universo de leitores muito restrito. São obviamente dois casos literários diferentes, mas que partilham entre si a radicalidade da escrita e a desconstrução da narrativa, tal como ela é trabalhada na sua forma mais convencional. Iria até mais longe se disser que a escrita de ambos faz balbuciar a própria língua, nesse anseio de radicalidade. Se, por um lado, a escrita de Llansol contém uma raiz mística, e ao mesmo tempo, e uma luminosidade intensa e irradiante, no caso de Rui Nunes há um niilismo e um desespero kierkegaardiano que a atravessa de lés-a-lés, deixando-nos a braços com a solidão e o desamparo das suas personagens. São recorrentes nos seus livros os temas da morte, da decadência, da dor, como a matriz alegórica da sua obra.

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Na entrega do prémio de narrativa da A.P.E., Rui Nunes afirmou, com uma clareza impressionante: "Os livros que me fascinam e os que sei escrever - são textos irremediáveis. Isto é, vivem a doença da nostalgia do olhar de Deus. Sabem-no inexistente. E acreditam que as palavras prolongam ainda mais a falta que pretendem apagar. Penso ser este o caso de Grito." E, a acompanhar o absurdo da existência humana face à ausência de Deus, da fragmentação do humano e do seu sentido, surge também a experiência do estilhaçamento da linguagem, da perda dessa “bela continuidade”, que poderia estar contida na narrativa, tomada na sua dupla dimensão, como unidade e continuidade, em simultâneo, ou seja, como uma bela totalidade orgânica. A suspeita de Rui Nunes é visceral, tanto quanto a recusa dos ideais – que se revelam como ilusões – como igualmente das boas intenções. É um universo cruel, onde a humanidade aparece como um espelho distorcido e dá a ver os traços repulsivos das personagens. Mas esses, diga-se em abono do autor, são verdadeiros e a verdade (porque é disso que se fala nesta narrativa) não é bela, ainda que, por vezes, relampeje o sublime na humanidade das suas personagens. Revejo aqui os traços do “último homem” de Nietszche. É sobretudo a dor a condição irremediável das suas personagens. Uma dor irreparável que nasce da solidão do homem, abandonado por Deus. E é esse sofrimento que se faz matriz da obra, é ela que ressume, que se quer fazer ouvir, como um grito, numa escrita que contém em si todo um programa, que se configura numa anti-poética, nesse sentido do que ela (a poética) traz de mais convencional, de bela harmonia e sem fissuras. Se os romances de Rui Nunes partem desta premissa e de uma ausência de felicidade que atravessa, como um raio fulminante, a vida das suas personagens, também o seu romance A Boca na Cinza é um texto que se constrói neste mundo estilhaçado, onde os seres se revelam na sua condição de pobreza existencial, nus, reduzidos à sua dimensão degradada. O mundo apresenta-se aí arruinado, sendo que as ruínas, para relembrar Walter Benjamin, na sua obra A Origem do Drama Barroco Alemão, ao falar-nos das obras do drama barroco alemão, deixam mais à vista a sua estrutura decadente, na forma como tudo aí se revela: a miséria humana transforma o homem numa criatura animal, despojada da sua humanidade.

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Relatando a história de dois irmãos anões que vivem juntos na mesma casa, Rui Nunes conduz-nos à intimidade de dois seres dilacerados pela sua solidão, pela doença e por uma melancolia acerada como aço e que contamina toda a esfera, desde a primeira frase: “ a dor é abrir os olhos para as paredes vazias do quarto”. Por momentos, evoco o gesto de Bartleby, escolhendo a morte, voltado para a parede vazia do seu quarto e recusando o infinito, a abertura. Mas não é de uma cegueira ou de uma recusa de ver que aqui se trata, mas sobretudo de um reconhecimento da crueldade da vida, do reconhecimento, também, de que tudo se encontra votado à morte. E essa é certamente a condição alegórica por excelência, se tomarmos o conceito no sentido benjaminiano, tal como este autor o defende em vários textos da sua obra.27 Se o universo que aqui se representa é de uma crueza invulgar, onde a escrita se coloca imediatamente na antítese do lirismo, é por ela que se acede ao lugar íntimo da doença e do grotesco. É pela morte, pela dissipação das ilusões que o alegórico acede à verdadeira condição da vida. Rui Nunes recusa, igualmente, os clichés literários, uma atitude que contribui, na sua escrita, para um efeito de estranheza, de desajustamento e, ainda, de fragmentação ou de desmembramento da organicidade do texto. Ela coloca-se a todos os níveis, no seu romance. Tanto na construção das suas personagens (que neste caso nada têm de atraentes/empáticas, mas, ao invés, todas contêm elementos repulsivos e grotescos), como na forma como o autor experimenta e leva a cabo o seu trabalho de linguagem, dando corpo a uma estruturação singular e inédita da narrativa. Por isso, podemos afirmar que essa inquietação, e a estranheza que é sentida perante o que não é domesticável nos efeitos da linguagem ou no que resiste à catalogação, define o “novo”, configurando-se assim o seu texto como um espaço literário de ruptura e de diferenciação. Diria, para parafrasear Blanchot (1983), que existe na obra de Rui Nunes, naquilo que a demarca, esse ressassement éternel ou eterna agitação que a constitui na sua peculiaridade. Ela da ordem do “acontecimento”, instaurando um território radical que se revela no modo como se estilhaça o discurso narrativo, quebrando a unidade sem a quebrar verdadeiramente – a coerência e a unidade passam a ter outros contornos e figurações, conhecendo outras fontes. Fundindo o 27

Em particular na sua obra A Origem do Drama Barroco Alemão.

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monólogo com a narração, introduzindo a polifonia, operando a cesura, ao nível da linguagem, entramos, com Rui Nunes, numa deambulação pelo espaço literário descentrado. Tal significa dizer que a figura do sujeito narrador ou ainda a do “Eu” narrador se transforma numa categoria esvaziada de sentido. A leitura e interpretação do texto faz-se a partir desse descentramento e do cruzamento das múltiplas vozes, dos “eus” que a habitam. Porque a melancolia, como o sabemos, não conhece o repouso nem o silêncio cheio da poesia, mas nasce justamente do excesso de imagens que se reenviam umas às outras, infinitamente. É também o lugar da acedia, essa categoria que confere às personagens o seu carácter letárgico e incomunicável. Para Rui Nunes, é a escrita, e nunca a história, num sentido de narrativa e de discurso linear, que verdadeiramente interessa. A escrita como experiência, de mergulho em si mesma, correndo o risco de apneia. Por isso, como consequência, não pode falar-se de uma unidade orgânica ou ainda – arrisco dizê-lo -, de coerência narrativa, no sentido convencional do termo, mas de uma outra forma de configuração, que advém do próprio texto e é daí que nasce o seu sentido. E, é preciso frisá-lo, não há aqui nada de aleatório, mas releva de uma decisão consciente do próprio autor. Recorde-se ainda Blanchot, ao afirmar que “a essência da literatura é escapar a toda a determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilize ou a realize: nunca já lá está” (Blanchot, 1955, p. 28). Deste ponto de vista, o autor não se encontra preocupado com a literatura em abstrato, sob esse ponto de vista despojado, teórico ou reflexivo, se ela não se encontrar, como suposto fundamental e ético, indissociavelmente ligado aos seres e à sua condição essencial. Decorrente da sua opção, a obra de Rui Nunes não é capaz de fixar-se num ponto determinado ou na unidade narrativa, mas exerce-se pela via da errância, desenhando-se caprichosamente como um pensamento nómada, que faz do entrosamento dos pensamentos, das ações dos seres, e da sua solidão, o espaço da expressão da linguagem. Essa errância prende-se, igualmente, ao percurso errático das suas personagens, que vivem entregues a uma deambulação cega no espaço do pensamento e da fala: “falo contra as palavras que se esvaem, paro no meio de uma frase e olho em volta, como se quisesse encontrar a palavra que me falta, como se as palavras fossem objetos”. (Nunes, 2003, p. 25). Rui Nunes: uma poética da desconstrução...

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Dir-se-ia que existe, assim, um desvio da continuidade do pensamento e da fala, um desvio também do acessório, para alcançar a respiração mais autêntica do pensamento, perscrutando-o enquanto sintoma de um mal-estar essencial e que se revela nessa fragmentação, a ameaçar uma mudez inquietante: “são frases esquecidas, são letras que não se juntam, às vezes, os olhos dos outros param na minha boca, inquirem o meu silêncio e esperam que eu fale, e o silêncio aumenta, até todo o meu corpo ser a falta de uma palavra” (Ibid.). A mudez espelha o estilhaçamento da vivência e do corpo, a impossibilidade do amor, como olhar de reconhecimento do outro: “nunca houve um tempo em que um olhar me desejasse, sempre os olhos se afastaram de mim” (Ibidem). A estridência do grito que não se chega a ouvir é o da ameaça que paira, espectral e surda, sobre as personagens, revelando uma dilaceração interna e que contamina todo o universo. Este desmembramento ou desarticulação do orgânico conhece o seu correlato no désoeuvrement de que nos fala Blanchot (1955, p. 48) e é, precisamente, este desmembramento que impregna toda a estrutura narrativa do romance de Rui Nunes. Abel e Sara, as duas personagens principais deste romance, não se têm senão um ao outro. São irmãos, mas o ódio que votam à sua própria condição física instala entre eles uma tensão crescente e insuportável. O ódio, o confinamento ao isolamento e a impossibilidade de uma vida normal, a perda da esperança, confere-lhes um estatuto trágico e niilista, prisioneiros da decadência e do sofrimento. Uma outra figura maior da literatura que se perfila na linha do horizonte é, sem dúvida, Artaud, devido à violência pulsional do texto, no caminho de um recuo até ao grito visceral e ao da própria fala desarticulada, no desmembramento do discurso de que temos vindo aqui a falar. A escrita aparece aqui, como epoché, abrindo um espaço de reflexão, como interrogação radical, que supõe uma palavra plural e que é assumida pelo fragmentário. A desconstrução da narratividade, no autor, estabelece-se, com efeito, na instauração desse efeito de suspensão da língua e do pensamento, onde se opera uma interpelação das forças pulsionais e indomesticáveis da própria linguagem. Assim, face à erupção dessas forças e também diante do excesso e dessas desmesura que extravasa os limites do suportável, só uma linguagem interrompida ou descontínua, fragmentária, poderia abordar o que já não é objeto do dizível ou do narrável, isto é, do que não “cabe” nele. 56

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Na verdade, podemos e devemos questionar-nos se essa desconstrução é, de facto, levada a cabo. Poder-se-ia reconhecer o romance se essa desarticulação fosse absolutamente radical? A que estranho ser acederíamos? A possibilidade de interpelação do desconhecido e dos elementos irracionais do pensamento e da vida constitui-se no entrosamento de dois planos da linguagem que obedecem, sem dúvida, a uma dupla exigência. Por um lado, de continuidade e, por outro, de descontinuidade, que permanecem inconciliáveis e que constituem o elemento paradoxal, na linguagem e na narrativa. Resulta, assim, dessa antinomia, a própria tensão da escrita, claramente alegórica e que foge à continuidade e à sequência racional. Esse movimento tensional ressuma na própria textualidade que inflecte e se dobra sobre si mesma, no sentido de um meta-discurso, autoquestionando-se. Aquilo que é posto em causa, sobretudo, é o fechamento e/ou acabamento da estrutura narrativa. O que exige o estilhaçamento da narrativa e que a faz implodir é o transporte de um espaço a outro - o espaço do pensamento ao da fala, por exemplo - ou de um tempo a outro, implicando cortes na temporalidade, cesuras, bem como a interpenetração de momentos distintos (como a memória da mãe de Sara, esse presente que se perfila permanentemente no horizonte, por exemplo, não existe aqui o clássico movimento de suspensão do presente para dar lugar ao passado, mas sim uma inesperada e inédita interpenetração nas duas dimensões temporais: passado e presente). Arriscaria mesmo dizê-lo que todo o presente apenas ganha sentido nessa constante rememoração. É, com efeito, a reivindicação de uma abertura, ao nível narrativo, que supõe a exigência de desconstruir os limites clássicos que são impostos à unidade da narrativa. E é no quadro dessa abertura que se torna possível, para o autor, trabalhar a dissonância e a polifonia das vozes, dilacerando e cortando a continuidade do texto. Nesse espaço literário em que se move o autor, de jogo subtil com o leitor e com a sua interpretação, o objetivo é o de anular a voz do narrador, a voz única, para dar lugar ao modo como as vozes ecoam e se querem fazer ouvir, como reclamam a sua fala. O recurso ao corte, com as formas estilísticas dominantes, a supressão e a subversão das regras clássicas da escrita, etc., são outros tantos modos de intervir na

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matéria da linguagem e de nela inscrever múltiplos sentidos e experiências diversas, de uma forma fragmentária. Na verdade, o autor não consegue anular-se no texto a não ser pela perda da voz, pelo estilhaçamento do fio narrativo, pela experiência da solidão, nesse percurso que é o da literatura, a caminho da universalidade. E o percurso de Rui Nunes, faz-se pelo exercício do despojamento e pela perda de si mesmo – enquanto narrador - no texto, do seu desaparecimento no espaço da ficção. Essa reivindicação plena é a da rasura da escrita, que colhe as potencialidades inéditas da linguagem. Dizendo de outro modo, a desconstrução da narrativa exige a passagem de um eu e de um discurso centrado no “eu” a uma perda da subjetividade. A “morte do eu” e a urgência de um espaço autónomo, onde tudo se entrelaça, é uma condição primordial do romance de Rui Nunes. Assim, a narratividade cede o lugar à polifonia e à vertigem das vozes, dos diálogos e das falas, dos monólogos, que se cruzam a todo o momento, constituindo esses fragmentos o próprio fio do romance. Essa é a vida, a temporalidade e a espacialidade própria do seu romance. A verdade da dor e da solidão das suas personagens reclama a ausência do centro para se dizer, recusa, por isso, a continuidade da narrativa. Conhece-se, assim, o veredicto, que é uma condenação à morte do autor e da narrativa. Como morto parece ser tudo em que toca a escrita do autor, mortos os corpos, morto o amor, morta a esperança, sendo a escrita o gesto de adiamento do irremediável e, simultaneamente, a celebração alegórica: – quando olho as pessoas vejo-as sempre mortas, (pausa) – entram no teu olhar e ficam vagarosas a morrer? – não. É já mortas que as vejo – mesmo as que amaste? – nunca amei ninguém – não acredito – só poderia amar quem eu não visse morto. E isso ainda não aconteceu. (Nunes, 2003, p. 30).

A visceralidade da escrita de Rui Nunes, essa violência pulsional que acompanha a dor e a solidão das suas personagens e do seu universo, pressupõe esse afundamento das regras convencionais da verossimilhança do texto. Há um escavar da linguagem, um recurso à violência das palavras, uma recusa da empatia da leitura e da facilidade a que nos habituámos, que provoca uma estranheza no leitor. Jogam-se nestes efeitos os diversos modos de assinatura do autor, cuja escrita é 58

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inconfundível. O escritor trata as palavras como seres vivos, moventes e elas tivessem uma força e uma potência próprias. Cabe-lhe explorar essa força e a carga semântica que resulta do jogo: as ressonâncias próprias, parentesco e relações de osmose entre elas, essa organicidade que lhes confere a força pulsional. Poderíamos, assim, falar de campos de forças, campos gravitacionais ou núcleos em torno dos quais se constroem os vários nós da textualidade. No caso de Rui Nunes encontramos, no limite, esse gesto narrativo a contrapelo das regras clássicas, fintando as convenções, extrapolando os limites da linguagem e deixando-a mesmo à mercê do risco do desregramento, para logo recuperar, através da contínua suspensão, o fulgor de uma nova forma, híbrida e evanescente. Existe, na sua escrita, essa inquietação que nos toma de assalto e nos assombra, num movimento de abertura da linguagem e também, um movimento de resistência face ao literário, enveredando pela zona de perigo que é a criação de um idioma próprio. Para concluir, gostaria de frisar um outro aspecto, que é também o inverso do que é hoje tão inerente à escrita e ao meio literário. Rui Nunes optou pela escrita, num gesto de apagamento e de tranquilidade, recusa o mediatismo e não é dado a afirmações bombásticas. Há nele uma atitude discreta e serena, que lhe salvaguarda o espaço de criação de uma originalidade profunda e que se basta a si mesma. Sem alarde nem ruído, sem subserviência, de uma liberdade e de uma independência a que já não estamos habituados. Publica regularmente, com uma qualidade surpreendente, mas não pactua com o espetáculo nem faz concessões de espécie nenhuma, num gesto de precisão e rigor ético.

Referências bibliográficas Blanchot, Maurice. Après Coup, precedé de ressassement éternel. Paris: ed. Minuit, 1983. Blanchot, Maurice, L’Espace littéraire. Paris: ed. Folio essais, Galimard, 1955. Nunes, Rui. A Boca na Cinza. Lisboa: editora Relógio d’Água, 2003

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O Islã das Trevas no Gótico Americano:

motivos sufistas nas estórias de H. P. Lovecraft* Ian Almond**

RESUMO │ O presente ensaio faz uma descrição analítica da ressonância de temas islâmicos na ficção de Howard Phillips Lovecraft. Para tanto, primeiro examina o lugar sociopolítico do Islã como um topos nas estórias de Lovecraft. Em seguida, analisa a possibilidade de que Cthulhu e os outros deuses obscuros da mitologia lovecraftiana, com secretos planos de invadir e subverter a realidade humana, serem uma espécie de ressurgimento de um familiar medo cristão do Turco terrível às portas de Viena; desta vez, entretanto, situado na Nova Inglaterra ao invés de Tours ou de Lepanto. Finalmente, faz-se uma leitura de Através dos Portões da Chave de Prata, que é uma das estórias mais orientais de Lovecraft, reinterpretando suas referências desde a perspectiva do sufismo. PALAVRAS-CHAVE │ H. P. Lovecraft; Mitos de Cthulhu; Representações do Islã; Orientalismo; Misticismo e literatura; Sufismo. ABSTRACT │ This essay is an analytical description of the resonance of islamic themes on Howard Philips Lovecraft's fiction. For that, it first examines Islam's sociopolitical place as a topos in Lovecraft's stories. Then, it analyses the possibility that Cthulhu and the other obscure gods of Lovecraft's mythology, with secret plans of invading and subverting human reality, can be a kind of resurgence of a familiar christian fear of the terrible Turkish at the gates of Viena; this time, though, located in New England instead of Tours or Lepanto. Finally, it is done a reading of The Silver Key, which is one of Lovecraft's most oriental stories, reinterpreting his references from the perspective of sufism. KEYWORDS │ H.P. Lovecraft; Cthulhu myths; Islam representations; Orientalism; Mysticism and literature; Sufism.

[...] Judeus e árabes medievais estavam representados em profusão, e o sr. Merritt empalideceu quando, ao tomar nas mãos um belo volume claramente identificado com Qanoon-eIslam, descobriu tratar-se na verdade do proscrito Necronomicon do árabe louco Abdul Alhazred, a respeito do qual havia escutado coisas monstruosas ditas aos sussurros anos atrás, quando se revelou a prática de rituais inomináveis no estranho vilarejo pesqueiro de Kingsport, na província de Massachusetts. Bay Lovecraft (2013, p. 33). Originalmente publicado em inglês em: Zeitschrift fur Anglistik und Amerikanistik, Tubinga / Alemanha, v. 52, n. 3, 2004, pp. 231-242. Traduzido para o português por Alfredo Bronzato da Costa Cruz, nos meses de outubro e novembro de 2014, com a devida autorização do autor. Na presente versão, optou-se por fazer as referências a volumes em português sempre que estes estivessem disponíveis. A cronologia dos escritos de Lovecraft foi acompanhada a partir de Joshi, 1987. ** Doutor em Literatura pela Universidade de Edimburgo. Professor de Literatura Mundial na Escola de Serviço Exterior da Universidade de Georgetown em Doha, Catar. *

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O TRECHO CITADO À GUISA DE EPÍGRAFE É O DE UM CURIOSO momento na narrativa d’O caso de Charles Dexter Ward (1927): o sr. Merritt, folheando os volumes de uma biblioteca esotérica um pouco assustadora, com volumes de demonologia, ritos mágicos e fórmulas cabalísticas, de repente encontra um belo volume oriental, que deixa confuso o seu senso de sagrado e profano. Pensando ter encontrado um bom volume de uma religião monoteísta na biblioteca de seu amigo, acabou dando, em seu lugar, com uma espécie de seu inverso arcano: o proscrito Necronomicon. Sob uma capa muçulmana, Howard Phillips Lovecraft (1890-1927), um cavalheiro da Nova Inglaterra, encontrou não o Oriente aceitável de Avicena e Averróis, o alto Islã da geometria e do aprendizado, mas algo muito mais sombrio, uma zona crepuscular inclinada de maneira perigosamente próxima à loucura e à monstruosidade. De fato, o árabe louco de Lovecraft, cuja obra (como ele sempre insistiu em destacar) explicaria algumas das verdades mais obscuras do universo, referentes aos monstruosos e secretos Grandes Antigos [Elder Things] e à sua história primordial, possui um papel central em seus escritos. De Nas montanhas da loucura (1931) a Sonhos na Casa da Bruxa (1932), contos de âmbito bastante diverso entre si, normalmente é feita ao menos alguma referência de passagem ao grande elucidador muçulmano do universo de Lovecraft. Em algumas estórias, como no próprio O caso de Charles Dexter Ward, o livro do árabe é realmente tratado como um guia e um auxílio, uma ajuda oriental para conter e controlar forças cuja proveniência é claramente não ocidental. Não obstante a vida real de Lovecraft, atravessada por tensões notoriamente preconceituosas a respeito dos “asiáticos de olhos lustrosos e faces de rato” (cit. Bloom, 1990, p. 63), o inerente racismo do autor não o impediu de colocar um árabe como uma das fontes epistemológicas fundamentais de sua mitologia literária. Que uma fonte tão abundante de conhecimento arcano possa ser oriental não deveria ser nenhuma surpresa – na verdade, os orientalistas são abundantes nas narrativas de Lovecraft, protagonistas cujo nível de consciência do lado mais sombrio da realidade cósmica mal ocultada por trás da ilusão terrestre do comum dos mortais quase sempre coincide com algum tipo de experiência direta com o Oriente. O esquivo Joseph Curwen de O caso de Charles Dexter Ward, por exemplo, havia “feito pelo menos duas viagens ao Oriente” (2013, p. 32) antes de voltar à sua Nova Inglaterra natal; os livros da biblioteca de Harley Warren – personagem de A declaração de 62

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Randolph Carter (1919) – eram em sua maioria escritos em árabe (Lovecraft, 1994, p. 354); enquanto que Através dos Portões da Chave de Prata (1932) inicia-se com a descrição do excessivamente oriental escritório de Marigny – com seus tapetes de Bucara, turbantes e relógios com inscrições hieroglíficas. O Necromonicon em árabe é mesmo o texto fundador que está no coração do universo fictício de Lovecraft. Em mais de sessenta contos e novelas, escritos em sua maior parte durante as décadas de 1920 e 1930, ele faz referência, explícita ou implícita, a este volume imaginário ao desenvolver suas ideias fantásticas a respeito de uma antiga raça alienígena que, encontrando-se escondida e adormecida sob a ilusão da vida contemporânea, manifestaria seus efeitos sobre a humanidade dos dias correntes através de inexplicáveis momentos de loucura, ocorrências bizarras e visitações monstruosas. Há algo curiosamente apofático neste horror que encontramos em Lovecraft, referente a um Outro que nunca se manifesta, mas que, como o Deus da via negativa, é muitas vezes aludido ou induzido através de seus efeitos secundários, periféricos. O horror nas estórias de Lovecraft emerge como um horror do possível, do quase-manifesto, como um fascínio grotesco com o potencialmente iminente: [...] mas eu nunca mais poderei dormir tranquilo enquanto estiver pensando nos horrores que espreitam incessantemente atrás da vida no tempo e no espaço, e daquelas profanas blasfêmias de estrelas anciãs que sonham debaixo do oceano, sabidas e protegidas por um culto letárgico, pronto e ansioso para liberá-las sobre o mundo assim que outro terremoto possa soerguer sua monstruosa cidade de pedra novamente ao sol e ao ar (Lovecraft, 2013-2, p. 66).

Naturalmente, as pressuposições e implicações sociológicas desta crença em uma presença obscura, inominável, sempre à espreita, já foram consideradas por inúmeros comentadores. Dentre estes, Clive Bloom talvez tenha sido o que demonstrou de forma mais convincente a ligação entre a mitologia fictícia tecida na obra de Lovecraft e suas posições políticas conservadores, até mesmo reacionárias, revelando um escritor cujos “traumas pessoais são [...] os traumas sociais do grupo a partir do qual eles emergiram” (Bloom, 1990, p. 68). O que este breve ensaio tenta fazer, por sua vez, é articular algumas destas ideias sobre as ansiedades ideológico-textuais de Lovecraft em torno de um contexto islâmico. Tal gesto interpretativo não é demasiado ousado na medida O Ilsã das trevas no gótico americano

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em que em uma série de pontos da obra de Lovecraft, para além do árabe louco e de seu Necromonicon, parece estar esboçada uma clara origem (pseudo) muçulmana para os seguidores de deuses escondidos tão ou mais antigos que Cthulhu: [...] Do culto, ele disse que achava que o centro estivesse próximo ao incognoscível deserto da Arábia, onde Irem, a Cidade de Pilares, sonha oculta e intocada. Ele não estava alinhado com o culto às bruxas europeu, e era virtualmente desconhecido entre seus membros (Lovecraft, 2013-2, p. 58).

A ideia de uma raça alienígena, à espreita nas margens da civilização, esperando para subir desde o Oriente e tomar a nossa realidade para si não é de forma alguma estranha. De muitas maneiras, os contos de Lovecraft reencenam em um Novo Mundo o antigo e entranhado medo europeu dos terríveis turcos aparecendo repentinamente diante dos portões de Viena, esperando ansiosos para invadir e escravizar toda a Cristandade – só que, desta vez, é a paisagem da Nova Inglaterra, ao invés da de Tours ou de Lepanto, o pano de fundo iminente conflito. O gesto de Lovecrat de localizar diretamente no Oriente as fontes do conhecimento arcano e de uma sabedoria tão distinta quanto torpe também não é original, sequer recente. A ligação do Oriente árabe com as artes da feitiçaria e da demonologia remonta pelo menos a Porfírio, e certamente às primeiras respostas do cristianismo medieval ao Islã, que viu no Oriente muçulmano um lugar de mágica profana e conhecimento blasfemo.1 Mas o estereótipo oferecido por Lovecraft a respeito do árabe louco autor do Necromomicon também existiu com uma valoração inversa, positiva, embora mais esotérica; basta-nos pensar no orientalismo imaginário que permeia os círculos rosacruzes. Por fim, mencione-se também o elo conceitual existente na produção lovecraftiana entre Islã e insanidade, forjado na reiteração constante de Abdul Alhazred, suposto autor do Necronomicon, como sendo um árabe louco. 1 Ver Lamoreaux, 2000, pp. 10-11. Tão tarde quanto no século XVIII, o termo averroísta continuava a ser sempre empregado com uma conotação de imoral, não cristão; p. ex. por Leibniz (1646-1716), que no prefácio de seus Novos ensaios sobre o entendimento humano (1695-1705) fez menção a “esses averroístas e alguns maus quietistas que imaginam uma absorção e a junção da alma ao oceano da divindade”.

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Ambiguidades A capa falsa de livro islâmico do sr. Merritt leva para baixo a partir da biblioteca vasculhada, resumindo o dilema da caracterização do Islã nas histórias de Lovecraft e da proximidade que este autor postula entre esta religião e a realidade obscura dos mitos de Cthulhu: religião convencional do lado de fora, negras e secretas verdades no interior. Em muitos aspectos, as duas possíveis genealogias disponíveis para o árabe louco de Lovecraft – de um lado, a compreensão positiva do movimento Rosacruz a respeito do Oriente como um lugar de aprendizagem e de iluminação, e, de outro, contrária e justaposta a ela, a demonização promovida pelo Medievo europeu do Oriente como um produto de artes satânicas e profanas heresias – refletem bem as ambiguidades da caracterização e uso que este autor faz do Oriente islâmico. Através de um estudo detalhado de alguns dos motivos místicos sufistas em Através dos Portões da Chave de Prata, procura-se aqui articular essa problemática em termos mais claros. Exatamente qual o lugar do Islã como topos – dos minaretes, do idioma árabe, dos sultõesdemônios – na obra de Lovecraft? É apenas outra variação de uma estética oriental mais genérica, ao lado dos “ídolos hindus” (Lovecraft, 1994, p. 311) e dos templos budistas, só mais outra cor exótica na paleta com que esse autor usa para pintar suas imagens grotescas? Ou há algo específico a ser levado em conta a respeito de Abdul Alhazred e sua temida entidade, o ‘Umr at-tawil (o Mais Antigo), algo que sugere – pelo menos em um de seus contos – uma compreensão exclusivamente islâmica dos mitos de Cthulhu e das viagens multidimensionais que os protagonistas aí parecem empreender? Não há dúvida de que a obra de Lovecraft recorre a um acervo padrão de imagens orientalistas, particularmente na bizarra fantasia d’A busca onírica por Kadath (1926), cuja paisagem parece apresentar nada mais do que templos em ruínas, cidades cheias de minaretes, comerciantes orientais e luas crescentes. Quando Randolph Carter, o protagonista dessa estória, atende comerciantes em turbantes que “atravessavam o rio levando de Parg apenas ouro e rotundos escravos negros” (Lovecraft, 2012, p. 25), é difícil pensar nas suas feições como sendo diversas das dos árabes normalmente associados a este tipo de situação nos estereótipos ocidentais. Quando o narrador fala dos “Pilares Basálticos do Ocidente”, para além dos quais “os oceanos do mundo deságuam no abismo do nada e atravessam o espaço vazio rumo a O Ilsã das trevas no gótico americano

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outros mundos e outras estrelas [...], onde o sultão-demônio Azathoth rói faminto em meio ao caos” (Lovecraft, 2012, p. 27), é igualmente difícil não notar uma visão racista à Spengler vindo à tona uma vez mais, desta vez em uma cartografia fantástica onde o Ocidente ordenou-se na forma de um território familiar para Carter e não há solução de continuidade rumo ao Oriente, como em um globo, mas uma fronteira final onde nada mais há do que “terríveis vácuos para além do universo conhecido” e “rumores e assovios e [...] danças demoníacas de Outros Deuses, cegos, mudos, tenebrosos e irracionais” (Lovecraft, 2012, p. 27).2 Como muitos escritores do gênero orientalista antes e depois dele (Byron, Poe3, Borges, Barth), o arquivo de onde Lovecraft retira suas imagens do Oriente parece fundado em um conhecimento de infância das Mil e Uma Noites – uma influência muitas vezes nominalmente referida e cujo efeito persistiu por todo o período da composição de sua obra. Qualquer tentativa de ler os sultõesdemônios e feiticeiros árabes de Lovecraft como um cruzamento dos opulentos enredos orientais que povoaram seu imaginário infantil com algum tipo de continuidade ou ressurreição moderna de estereótipos medievais a respeito do Islã, entretanto, rapidamente se torna problemática não apenas pela própria rejeição do autor do cristianismo como religião e como enquadramento cultural, mas também por uma apreciação entusiasta do que ele claramente considerava uma fé monoteísta mais romântica. Lembrando-se de suas experiências de criança na catequese, ele escreveu que “[...] O absurdo do mito que fui chamado a aceitar e o caráter cinzento de toda esta fé em comparação com a magnificência oriental do maometismo, fez-me definitivamente agnóstico...” (cit. De Camp, 1976, p. 22). E em outra carta, um pouco à maneira de Byron, que afirmou (quase) ter se convertido ao Islã quando de uma estada em Istambul (cf. Sharafuddin, 1994, p. 224), Lovecraft declarou que Ao mesmo tempo de minha juventude em que eu formei uma coleção de cerâmica e objetos de arte oriental, anunciei a mim

2 Ver Joshi, 1990, para um tratamento filosófico de Lovecraft que considera, entre outras perspectivas, O Declínio do Ocidente (1918) de Oswald Spengler como um possível contexto de leitura dos mitos de Cthulhu. Ver também Rottensteiner, 1992, pp. 117120, que faz uma avaliação ligeiramente negativa dessa abordagem de T. S. Joshi, lançando uma consistente dúvida a respeito de quanto Lovecraft realmente haveria tido contato de primeira mão com o trabalho dos pensadores mais influentes em seu tempo. 3 Sobre a representação o Islã nas estórias de Jorge Luis Borges, ver Almond, 2004.

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mesmo com um muçulmano devoto, assumindo o pseudônimo de Abdul Alhazred – que você vai reconhecer como o autor do mítico Necronomicon, que eu arrasto para vários de meus contos... (Carta a Edwin Baird, de 3 de fevereiro de 1924. Grifos no original).

Muçulmano devoto, magnificência oriental: apesar do tom de autoparódia e exagero provocativo, há algo de desconcertante e paradoxal na apropriação lovecraftiana do Oriente islâmico. Por um lado, há uma procedência e forma cristã, se não um conteúdo especificamente cristão, em motivos como o dos sultões-demônios e o dos feiticeiros árabes; uma origem cristã que é sublinhada pelo persistente uso que Lovecraft faz do termo doentio [unwholesome] para descrever qualquer local religioso a ele conectado – por exemplo: “(...) A disposição dos tempos mortos nas montanhas insinuava que não tinham servido à glória de deuses salubres [wholesome] ou apropriados, e nas simetrias das colunas quebradas parecia espreitar um portento obscuro e secreto” (Lovecraft, 2012, p. 29). Nos empréstimos secularizados que Lovecraft faz do imaginário cristão, reaparecem as antigas associações do Outro Muçulmano com a loucura, o terror, a monstruosidade e o apocalipse; lembre-se, para citar um único caso, que Lutero viu os turcos como não passíveis de serem convertidos ao cristianismo, e encarou seu avanço rumo ao Ocidente como um sinal do fim dos tempos (cf. Southern, 1962, ps. 27 e 105). Nisto parece haver um traço de continuidade na ficção lovecraftiana, pois aí se faz um uso bastante convencional de motivos islâmicos recorrentes na literatura ocidental. Por outro lado, rotular este autor ao modo de Said, despedindo-o como apenas mais um autor de caricaturas orientalistas, seria negligenciar três pontos significativos, ainda que sutis. Em primeiro lugar, a negação que Lovecraft faz de sua própria religião e matriz cultural cristãs, de seu absurdo e caráter cinzento, somada à sua atribuição de um privilégio estético do Islã sobre o cristianismo, obriga-nos a considerar o uso que ele faz de seus árabes loucos e forças invasoras sob uma luz diferente. Em segundo lugar, o papel central do Oriente e de Abdul Alhazhred certamente torna problemática qualquer marginalização do Islã nos textos de Lovecraft. Ao contrário, em uma paródia um pouco perversa da dependência da cristandade medieval em relação a Avicena e Averróis para seu conhecimento de Aristóteles, praticamente todos os protagonistas invariavelmente anglo-saxões de Lovecraft têm de transitar pela ciência árabe – embora não a lógica ou a álgebra, mas a necromancia – a fim de compreender a sua própria O Ilsã das trevas no gótico americano

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situação. Em outras palavras, há em sua ficção a reiteração de uma dependência epistemológica do Ocidente em relação ao Oriente. Em certo sentido, isso também leva ao terceiro ponto que torna problemática qualquer redução direta dos estereótipos manejados por Lovecraft ao estereotipado acervo do orientalista saidiano, ponto referente ao estatuto fundamentalmente ambíguo dos Antigos [Old Ones] nas estórias deste autor. Tratam-se de forças monstruosas, que certamente são fontes de horror e terror em abundância, mas que também desfrutam de um estatuto superior – em termos de conhecimento, inteligência, idade e poder – em relação a uma “humanidade pífia e devastada pela guerra” (Lovecraft, 2012, p. 26). De muitas maneiras, essa ambiguidade leva-nos diretamente ao cerne de um dos aspectos mais enigmáticos da ficção de Lovecraft: sua simultânea elevação e menosprezo da identidade anglo-americana. Em sua obra, os momentos de indulgente nostalgia da paisagem anglo-saxã – quando Randolph Carter é o soberano do reino além-dimensional de OothNargai, somos informados de que ele “não encontrava nenhum significado nisso e sempre voltava aos velhos e familiares temas ingleses que o haviam moldado durante a infância”, de que ainda “[...] Daria todo o reino em troca do repicar de sinos pelas montanhas da Cornualha, e todos os mil minaretes de Celephais em troca dos telhados pontudos do vilarejo perto de onde morava” (Lovecraft, 2012, p. 66) – estão entremeados com esperanças pseudomessiânicas de uma conflagração capaz de por fim à realidade até agora conhecida – “até que as estrelas se alinhassem novamente, e os sacerdotes secretos trouxessem o grande Cthulhu de Sua tumba para reassumir Seu lugar e restituí-lo a Seus súditos e retomar Seu domínio da terra [...] e toda a terra se incendiaria com um holocausto de êxtase e liberdade” (Lovecraft, 2013-2, pp. 57-58). O que Lovecraft de fato faz é misturar os tropos que lhe eram disponíveis: para descrever o retorno dos Antigos como a restauração de um estado primordialmente ariano de coisas – onde a humanidade seria “livre e feroz e além do bem e do mal, com leis e códigos morais jogados de lado e todos os homens gritando, matando e festejando em júbilo” (Lovecraft, 2013-2, p. 58)4 – recorre a um vocabulário muito 4 As implicações étnicas desta consciência de uma identidade ancestral são interessantes de se observar nos textos de Lovecraft. Note-se, em particular, a forma estranhamente mística como ele retrata a paisagem do Vermont nativo em Um sussurro na escuridão: “(...)

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luterano a respeito do Turco à porta. Os Antigos emergem assim como uma ameaça à espreita, vil, indizível (e indizível no sentido mais psicanalítico do termo)5, mas também como o retorno a um estado anterior de glória pré-humana, um bizarro, quase cosmicamente rousseauniano anseio de reverter às mais remotas origens raciais. Esta compreensão dos textos de Lovecraft como uma tentativa de voltar a algo maior e diferente de si mesmo, será útil para observar uma de suas peças mais orientais, Através dos Portões da Chave de Prata, na tentativa de entender o que constitui a apropriação específica do Islã nos textos lovecraftianos a partir de seu uso de um vocabulário islâmico – especificamente, de um vocabulário sufista. Através dos Portões da Chave de Prata: uma interpretação sufista Carter, disse ele, tinha lhe dito que essa chave tinha sido herdada de seus antepassados, e que iria ajudá-lo a desbloquear as portas para sua infância perdida, e para as estranhas dimensões e fantásticos reinos que tinha visitado até então apenas em vagos, breves e elusivos sonhos. (Lovecraft, 1994, p. 506).

Embora o único termo realmente árabe em Através dos Portões da Chave de Prata seja o nome de uma entidade demoníaca referenciada por Abdul-Alhazhared, ‘Umr at-tawil (o mais antigo; em árabe, literalmente, a mais longa vida), a história do ausente Randolph Carter – e da ansiosa reunião de seus colegas que tentam se decidir a respeito de declará-lo ou não como morto – está cheia de motivos sufistas; não apenas termos como portão (maqam), segredo (sirr), véu (hijab), guia (hud) e perda de identidade (fana’), mas também ideias como a incognoscibilidade de Eu sabia estar entrando numa Nova Inglaterra toda antiquada e mais primitiva que as áreas costais mecanizadas e urbanizadas ao sul [...]; uma Nova Inglaterra ancestral e impoluta, sem estrangeiros e sem fumaça de fábricas, sem anúncios e sem as rodovias pavimentadas que há nas regiões que a modernidade tocou. Ali haveria sobreviventes ímpares daquela vida nativa cujas profundas raízes são um fruto autêntico da paisagem – a contínua vida nativa que mantém vivas antigas memórias e fertiliza o solo das crenças obscuras, maravilhosas e pouco mencionadas” (Lovecraft, 2013-2, p. 332). 5 No final da década de 1960, Lévy escreveu sobre a carga psicossexual reprimida que parecia ter sido empenhada na urdidura dos horrores de Lovecraf: “[...] O monstro lovecraftiano é menos assustador do que repugnante. Seus atributos parecem singularmente vívidos. Ele é caracterizado de maneira específica por sua viscosidade (ele é pegajoso, viscoso e ocasionalmente segrega líquidos esverdeados), sua inconsistência (ele é macio, flácido, gelatinoso), o cheio intenso que ele libera [...] e sua multiplicidade enxameante” (1988, p. 60). O Ilsã das trevas no gótico americano

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Deus (tanzih), o mundo como sendo uma ilusão (hayal) e o significado central dos sonhos (ru’ya). Certamente a viagem de Carter através do espaço-tempo e de suas múltiplas dimensões não é uma busca religiosa no sentido convencional, e, no entanto, um dos aspectos mais surpreendentes deste escrito de Lovecraft é a forma como ele deliberadamente faz referência ao Oriente islâmico, em particular a uma série de termos-chave da mística islâmica, a fim de narrar esta estória de um sujeito que tenta voltar no tempo para recuperar algo da “juventude perdida que ele nunca deixou de chorar” (Lovecraft, 1994, p. 513). De muitas maneiras, as antigas associações edênicas do Oriente – da terra primordial sempre referida através de metáforas associadas ao nascimento, às origens e à renovação – podem explicar porque o mais oriental dos contos de Lovecraft é também a história de um homem que deseja voltar ao limiar de sua infância. Este conto composto por Lovecraft em 1932 em colaboração com Edgar Hoffmann Price está encharcado de tonalidades orientais do início ao fim. Ele é pontuado, por exemplo, pelos excessos decorativos do escritório de Marigny, com seus tapetes turcos e relógios com inscrições hieroglíficas; pela figura do próprio Marigny, “um distinto creole estudante dos mistérios e das antiguidades orientais” (Lovecraft, 1994, p. 509); e pela sombra de seu protagonista ausente, Randolph Carter, um claro amálgama do explorador vitoriano Richard Burton com o egiptólogo Howard Carter, que alcançou a fama duradoura quando descobriu, em 1922, a tumba intacta do faraó-menino Tutancâmon. Também é uma das poucas estórias de Lovecraft que apresenta um personagem realmente oriental: o Swami Chandraputra (realmente Carter disfarçado), cuja “cerrada barba negra, turbante oriental e grandes luvas brancas davam-lhe um ar de excentricidade exótica” (Lovecraft, 1994, p. 510). No entanto, o que mais impressiona é a via que conecta este enredo de viagens multidimensionais, às vezes indiretamente, às vezes de forma bastante explícita, com a linguagem e o arcabouço conceitual do misticismo sufista. Nas versões mais correntes do sufismo, supõe-se que a alma (nefs) do crente deve embarcar em uma jornada – uma jornada que não é realmente uma partida, mas antes um retorno (ruja’), um retorno à fonte divina de onde ele provém. Porque esta fonte é a absoluta transcendência (tanzih) do Criador, para além de todos os nomes e atributos, a alma tem de gradativamente deixar para trás o mundo da 70

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multiplicidade, e retornar a Deus superando uma série de estações ou níveis (maqam), derramando lentamente a sua identidade antes que possa levantar o véu (hijab) e unir-se (ittisal) com o divino Um (al Wahd). Uma vez que a alma individual se deu conta de sua divindade latente, colocando-se no sentido do retorno à sua fonte, adquire o conhecimento alegre e final de que (parafraseando Ibn ‘Arabi) tudo está no Um e o Um está em tudo. O que vemos em Através dos Portões da Chave de Prata é, de fato, uma apropriação deste vocabulário e arcabouço conceitual através de um prisma que o torna misterioso e obscuro. Em Lovecraft, o encontro e a união com uma divindade desconhecida e inefável não há de ser o culminar de uma alegre viagem da alma, mas sim uma experiência repleta de riscos e perigos. Uma das passagens mais longas do Necromonicon citada nos textos de Lovecraft está justamente em Através dos Portões da Chave de Prata, e nela Abdul Alhazhred adverte seus leitores dos perigos que esperam por qualquer um que tente saber muito sobre as verdadeiras origens das espécies: “E enquanto há aqueles”, o árabe louco escreveu, “que se atreveram a procurar os vislumbres além do véu, e aceitá-LO como guia, eles teriam sido mais prudentes se tivessem evitado o comércio com ELE; porque está escrito no Livro de Thoth que é terrível o preço de um único vislumbre. Também não é possível que sempre possam voltar [de lá], pois nas vastidões que transcendem nosso mundo há formas de escuridão que retém e cegam. [...] Todas essas obscuridades são [entretanto] menores do que Aquele que guarda o Portão: é ELE que vai guiar a erupção de um além-de-todos-os-mundos desde o Abismo dos inomináveis devoradores. Pois ELE é ‘UMR AT-TAWIL, o Mais Antigo, o que está escrito como sendo O DA LONGA VIDA” (Lovecraft, 1994, p. 517. Destaque em versalete no original).

Há uma série de ressonâncias sufistas nesta passagem, das quais a primeira e a principal é a ideia de que a realidade está coberta por um véu (hijab), que pode ser ultrapassado. No sufismo, falam-se muitas vezes em véus que, em uma tentativa de diluir, tornar rarefeita ou mesmo esconder a indescritível magnitude de Deus, cobrem a divindade para dá-la ao conhecimento dos mortais. Como um pensador sufi do século XII, Ibn ‘Arabi, expressou: O Profeta disse: “Deus tem setenta véus de luz e trevas; se Ele os removesse, a glória de Seu rosto queimaria todas as coisas que podem ser percebidas pela visão de Suas criaturas” (...) enquanto

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esses véus existem, eles previnem que vejamos a Ele nesta proximidade demasiado intensa (Futuhat al-Makkiyah, 2: 159,11. Cit. Chittick, 1989, p. 364).

É bastante interessante como Lovecraft transporta para o seu próprio trabalho esta noção religiosa de uma verdade esmagadora, uma verdade tão extraordinária, tão intensa, que requer um véu para preservar a sanidade mental – se não a própria natureza física – do observador. Romper o véu, colocá-lo de lado – como Carter faz em Através dos Portões da Chave de Prata – é de fato arriscar-se à loucura e à aniquilação. Esta é provavelmente uma das mais bem conhecidas características da obra lovecraftiana: quanto mais os protagonistas de suas estórias aprendem sobre os Antigos, quanto mais eles veem/ouvem/leem a respeito de sua monstruosa verdade, tanto mais próximos eles ficam de perder o controle de suas mentes. Muitos são os enredos clássicos de Lovecraft que terminam desta forma: personagens que acabam rindo ou chorando convulsiva e histericamente por ter olhado por um segundo a mais ou por seguir lendo determinada passagem para além de onde deveriam ter parado. Não deveria nos surpreender a constatação de que este tipo de loucura (majnun) também tem um lugar no sufismo, sendo usualmente empregada para descrever o que acontece quando uma alma tenta adquirir mais conhecimento de Deus do que ela é espiritualmente amadurecida para receber. E ainda que as consequências desta loucura raramente sejam tão sinistras no sufismo como são na obra de Lovecraft, é bem familiar aos sufistas a suspeita de que a racionalidade é, de fato, algo que nos impede de verdadeiramente ver Deus. Isso levou alguns deles a considerar que a intoxicação, a loucura e o caos são condições que lhes permitem ter um vislumbre do Divino que escapa a toda compreensão racional, enquanto místicos como Ibn ‘Arabi muitas vezes jogaram com a ambivalência do significado da raiz do vocábulo árabe para razão (‘aql), que também pode significar neste idioma algo como cadeia ou correntes. De muitas maneiras, esta reiteração obscura da inefabilidade faz parte de uma estratégia geral pra tornar a ficção lovecraftiana ainda mais estranha, tornando a ideia convencional do divino como algo que transcende quaisquer qualificações ou pensamentos em um mistério malévolo, “um horror que transcende toda a concepção humana” (Lovecraft, 2013, p. 99). A ideia de que se pode precisar de um Guia a fim de encontrar esta verdade inefável também parece ser um eco de uma concepção islâmica. Um dos títulos mais comuns de Alá (al-asmā’ 72

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al-husnà) no misticismo muçulmano é justamente Aquele que guia (alHud), e em muitos escritos sufistas a ideia de orientação (hiddaya) é associada de forma intrínseca à noção suplementar de uma aproximação do divino; cria-se que Deus guiaria o buscador da verdade à medida que ele progredisse nos estágios de sua autoanulação, eventualmente o levando mais longe ou detendo-o, conforme Lhe aprouvesse. Ibn ‘Arabi, por exemplo, escreveu que “[...] O que Alá faz é dar para alguns de Seus servos luminosa orientação suficiente para que eles possam caminhar através da escuridão das causas secundárias [...]. Os véus das causas secundárias [por outro lado] podem ser baixados e nunca levantados se Ele não desejar isso!” (Futuhat al-Makkiyah, 3: 249. Cit. Chittick, 1989, p. 179). O Guia imaginado por Lovecraft, uma entidade alienígena que conduz o protagonista de Através dos Portões da Chave de Prata por múltiplas dimensões em direção a um “abismo cósmico desconhecido e sem forma para além do Definitivo Portal” (Lovecraft, 1994, p. 526), mostra uma preocupação semelhante a respeito do bem estar do humano que está escoltando em viagem. Em vários pontos do relato, ‘Umr at-tawil adverte Carter de que, se assim desejar, ele pode sempre voltar atrás: “[...] Eu estou pronto para mostrar-lhe o Mistério Definitivo, mas seu olhar pode explodir um espírito débil. Antes de vislumbrar a plenitude do último e primeiro dos segredos, você pode exercer uma livre escolha, e, se quiser, retornar através dos dois Portões que o Véu antes estendia sobre seus olhos” (Lovecraft, 1994, p. 529). Em ambos os casos, o conhecimento não traz consigo só a responsabilidade, mas ele também está associado ao terror – pelo menos para aqueles que não estão preparados para lidar com isso. E é a natureza desse ele ou isso que se encontra através dos portões – daquilo que o Guia imaginado por Lovecraft chama de o último e o primeiro dos segredos, e que os sufistas chamam de sirr al-sirr, segredo dos segredos – que expõe as associações mais claras entre essa mitologia literária e a tradição do sufismo. O que o ‘Umr at-tawil leva a Carter é, de fato, uma espécie de altruísmo, ou melhor, a consciência de que ele é pequena parte de um ser infinitamente extenso, uma engrenagem de um mecanismo de bilhões de outros eus, humanos e inumanos, que se prolonga por todo o universo infinito. E a consciência disso não é exatamente feliz: Ele sabia que tinha havido um Randolph Carter de Boston, mas não podia ter certeza se ele [...] tinha sido um ou outro. Seu eu

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tinha sido aniquilado. Nem a morte, nem a destruição, nem a angústia podem superar o desespero que flui a partir de uma tal perda de identidade. A fusão com o nada conduz a um esquecimento pacífico; mas estar ainda ciente da existência e saber que não se é algo que possa ser distinguido dos outros seres, que já não se tem um eu, é o cume inominável da agonia e do terror (Lovecraft, 1994, p. 527).

Seu eu tinha sido aniquilado: este conto de Lovecraft, pode-se dizer, refere-se a um horror muito mais gritante do que as versões usuais do indizível que encontramos em sua literatura – não coisas sem nome que se arrastam em criptas ou fungos vindos de Yuggoth, mas, sim, o horror maior de se deparar com o caráter ilusório da identidade. A busca de Carter do Mistério Definitivo, seu desejo de erguer o véu final leva-o à descoberta angustiante de que sua personalidade não é nada mais do que uma ilusão, um sonho, inteiramente um truque. Esta passagem do enredo de Através dos Portões da Chave de Prata apresenta-se como um momento de notável intensidade mística – Carter descobrindo que é parte do universo e que o universo é parte dele. Mas há também interessantes implicações políticas nesta montagem da estória, considerando-se que um dos temas mais candentes do trabalho de Lovecraft é sua ênfase no medo da dissolução da identidade enquanto homem de Boston, da Nova Inglaterra, da cepa anglo-saxã. Para um escritor tão convencido da existência e consistência de uma bem estruturada hierarquia de tipos raciais, a ideia de não ser algo que possa ser distinguido dos outros seres traça os claros contornos de um medo indizível. De certa forma, contudo, é justamente a visão de mundo político-racial de Lovecraft que torna tão interessante o fato de o Mistério Definitivo de Carter replicar quase exatamente as noções sufistas de hayal (ilusão) e fana’ (aniquilação do eu). No sufismo, a alma carrega dentro de si um segredo: o de suas origens celestiais, de sua divindade. Este segredo é camuflado por Deus sob o pretexto da individualidade: Ele “impede que o verdadeiro segredo do ser possa ser conhecido, isto é, que Ele é o Ser essencial das coisas. Ele esconde-o pela alteridade, pela noção de que há um outro, um tu” (Ibn ‘Arabi, 1980, p. 133). Com efeito, para alguns autores desta tradição, justamente Deus é o segredo do Eu, um segredo que muitas almas ignorantes passam a vida inteira sem descobrir. O efeito das experiências que fazem Carter cruzar o limiar que o separa de ‘Umr attawil e, a partir dele, de todas as outras coisas, pode ser 74

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aproximadamente colocado em paralelo com a descrição sufista da (re) união final da alma com Deus: “[...] Através da sua união (ittisal) com Deus, o homem é aniquilado (fana’s) nele mesmo. Então Deus se manifesta de forma que Ele é a sua audição e a sua visão [...] Deus não é nada desses órgãos até serem queimados pelo Seu ser, até que só Ele esteja ali, não eles” (Futuhat al-Makkiyah, 3: 298. Cit. Chittick, 1989, p. 328). Assim como a alma individual perde o controle de sua audição e visão quando Deus os toma para si, do mesmo modo o crente torna-se um dos milhões de órgãos da onipotência de Deus. Igualmente, Carter toma consciência horrorizado de que sua identidade desliza para longe dele quando percebe que é apenas uma das bilhões de facetas de Carter, que não possuem um modelo original, um ponto qualquer de fixação. De modo algo irônico, mesma metáfora da queima – a ideia de que divindade revelada consome em fogo a individualidade da alma para que esta possa participar integralmente, sem qualquer impedimento, em sua (re) absorção n’Aquela fonte que a originou – também ocorre em Através dos Portões da Chave de Prata; quando Carter finalmente se encontra com o inominável e infinitamente múltiplo Ser originário. Este se dirige a ele “em prodigiosas ondas que ferem e queimam e trovejam” (Lovecraft, 1994, p. 528). Presente em ambos os casos, essa noção de ocultas, desconhecidas origens-essências sobrenaturais que estariam repousando enterradas dentro das experiências mais familiares, sugere um entendimento análogo da ilusão no sufismo e no universo lovecraftiano. Toshihiko Izutsu, um estudioso que se deteve sobre a comparação dos conceitos-chave do sufismo e do taoísmo, falando a respeito destes dois movimentos religiosos em um diálogo transhistórico, começou sua análise sobre o pensador árabe Ibn ‘Arabi com a citação de uma passagem capital do Fusus al-Hikem, onde se afirma que [...] O mundo é uma ilusão; não tem existência real. E é isso o que significa a imaginação (hayal), porque se crê apenas que ele [ou seja, o mundo] é uma realidade autônoma completamente diferente e independente da divina Realidade, quando, na verdade, não é nada disso [...] Saiba que tu mesmo és imaginação. E tudo o que tu percebes e diz para si mesmo isso não é comigo, também é imaginação. Assim, toda a existência é imaginação dentro de imaginação (Izutsu, 1967, p.1. Grifos do autor).

O mundo é uma ilusão: os ignorantes consideram coisas que podem ser independentes e enraizadas em si mesmas, enquanto que seu Deus seria absolutamente transcendente e separado da realidade em torno O Ilsã das trevas no gótico americano

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deles; aqueles que realmente têm o conhecimento (gnosis), no entanto, compreenderiam a verdade da questão – que tudo o que existe, incluindo seus próprios egos, com efeito, é Deus, é uma extensão do divino. Da mesma forma, Carter sofre uma expansão de sua mente para além dos nossos conceitos cotidianos de sonho e realidade quando o Guia o leva a cruzar o limiar: “[...] Embora os homens percebam-no [o mundo] como realidade, e os pensamentos que marcam a dimensão Original como irrealidade, é na verdade o posto. Isso que nós chamamos de substância e realidade é sombra e ilusão, e o que chamamos de sombra e ilusão é substância e realidade” (Lovecraft, 1994, p. 531). Como tantos protagonistas de Lovecraft, Carter foi capaz de compreender essa verdade platônica por causa de sua curiosidade inata – uma curiosidade nascida do ceticismo em relação ao mundo do cotidiano: “[...] Toda a sua busca não foi baseada em uma fé na irrealidade do local e do parcial?” (Lovecraft, 1994, p. 532). É nesta recusa de aceitar o cotidiano como um em si, tomando-o antes como algo que sinaliza uma realidade maior, que os dois vocabulários, sufista e lovecraftiano, compartilham um terreno hermenêutico comum. Críticos como David Vilaseca já examinaram as implicações metafísicas desse desejo (para usar as palavras de Vilaseca) de “uma verdade oculta, transcendente, para além da linguagem e da compreensão” (1991, p. 487). O que nos interessa aqui, no entanto, é como o emprego destes motivos e terminologias místicas nas estórias de Lovecraft apontam não para a perspectiva de uma união divo-humana com um Deus de Amor e Misericórdia (como fazem no âmbito de suas tradições originais), mas a um conjunto mais ambíguo, eventualmente mesmo monstruoso, de coisas. Em Através dos Portões da Chave de Prata, os Antigos parecem relativamente benignos, mas em estórias como O caso de Charles Dexter Ward o mundo parece, na melhor das hipóteses, ser uma ilusão mentirosa que lança um verniz de alguma inocência sobre algo muito mais malévolo: “a fazenda era apenas o invólucro externo de uma ameaça colossal e repulsiva, de um escopo e de uma grandeza demasiado profundos e intangíveis para mais do que uma compreensão difusa e nebulosa” (Lovecraft, 2013, p. 43). Em ambos os casos, a ilusão fundadora da realidade do mundo é mantida através de uma ignorância: no sufismo, é a ignorância do fato de que todos nós somos, de alguma forma, Deus, e que tudo o que vemos está diretamente ligado a Ele; para Lovecraft, a natureza dessa 76

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ilusão cósmica é mais sombria, mas estruturalmente diz respeito à mesma ordem de coisas: um desconhecimento a respeito de nossas verdadeiras origens. Em estórias como Um sussurro na escuridão, as “vastas massas de leigos desinformados” não tem ideia das origens cósmicas da pré-história humana, daqueles fundos “poços da vida primitiva” (Lovecraft, 2013-2, ps. 311 e 331) de onde ela havia surgido. De fato, em alguns lugares Lovecraft chega a sugerir que a humanidade teria sido um erro desajeitado ou uma brincadeira para entidades muito anteriores e muito mais poderosas do que o ser humano – em Nas montanhas da loucura, por exemplo, onde se pode ler “sobre os Grandes Anciões que vieram das estrelas e criaram a vida na Terra como resultado de uma zombaria ou equívoco” (Lovecraft, 2011, p. 38).6 A ilusão da familiaridade, da banalidade da vida cotidiana estaria estendida como um véu sobre a indizível verdade do universo de Lovecraft; para a minoria de buscadores da verdade que conseguem romper esta cobertura, uma realidade muito mais escura prontamente vem à superfície. Uma questão em aberto Quando o Sr. Merritt pegou um livro que, pelo menos de acordo com sua capa, parecia ser sagrado, um texto religioso islâmico, ele descobriu o arcano Necromicon: mesmo o Islã, ao que parece, está então codificado por Lovecraft no interior das dicotomias de dentro/fora e superfície/realidade que permeiam o seu universo fictício; mesmo Alá, deve ser lembrado, é rejeitado pelo agnóstico autor, ao lado de Cristo e Javé, como um dos “pequenos, pálidos e vazios deuses da terra, com seus mesquinhos, humanos interesses e conexões; seus ódios, raivas, amores e vaidades; sua ânsia de louvor e sacrifício, e sua demanda por uma fé contrária à razão e à Natureza” (Lovecraft, 1994, p. 530). Qualquer estudo exaustivo do lugar do papel do Islã e do Oriente islâmico na obra de Lovecraft teria de se estender bem para além do escopo deste ensaio – lá ainda se encontra, por exemplo, o significado central dos sonhos, tanto para o Islã quanto para Lovecraft. No Corão, os profetas muitas vezes recebem mensagem de Deus em forma de 6 Curiosamente, no sufismo também há uma tradição que acredita que a finalidade primeira da humanidade é funcionar como uma comédia divina – não em sentido zombeteiro, mas como uma forma de consolo e conforto para um Criador infinitamente solitário; um axioma sufista afirma que Deus era como um tesouro escondido que ansiava por ser descoberto, e por isso criou o ser humano, justamente para que ele O conhecesse. (Corbin, 1969, ps. 94 e 112-114).

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sonhos (ru’ya), e a interpretação dos sonhos no sufismo era uma ciência tão importante quanto a exegese das Sagradas Escrituras. Quando lemos em Lovecraft que “do Primeiro Portão, onde ‘Umr at-tawil dita sonhos para os Antigos” (Lovecraft, 1994, p. 531), ou mesmo qualquer um dos momentos, encontrados em praticamente todas as estórias deste autor, onde obscuras forças cósmicas fazem sentir sua presença malévola nos sonhos dos protagonistas, é difícil não ter em mente a ressonância desse motivo islâmico que aí encontra sua expressão. A proibição da representação no Islã, e como esta tem sua contrapartida na muito infrequente representação dos Antigos e suas criações nos textos de Lovecraft – “pois os shoggoths e os horrores que perpetravam não deveriam ser vistos por olhos humanos, nem retratados por quaisquer outros seres vivos” (Lovecraft, 2011, p. 103) – devem ser igualmente examinados; e isso para não mencionar a questão muito mais propriamente textual da relação deste autor com a literatura orientalista que o precedeu. Dada a admiração que Lovecraft nutria em relação a Beckford, Moore e Poe, cabe perguntar por que a representação do Islã em suas obras não teve maior efeito sobre o tratamento que o próprio Lovecraft fez deste fenômeno religioso, e da fé de um modo geral, em seus escritos. A influência duradoura de uma precoce leitura das Mil e uma noites certamente pode ser vista em sua A busca onírica por Kadath e seus sultões-demônios. No entanto, nada há da veia humorística associada ao Oriente em textos como A milésimasegunda noite de Xerazade de Edgar Allan Poe, do romance oriental do Lalla-Rookh de Thomas Moore, para não mencionar a moralidade essencial do Islã encontrada no Vathek de William Beckford. De fato, nenhuma destas representações anteriores do Oriente parece ter tido qualquer efeito visível sobre a construção do Oriente imaginário de Lovecraft.

Referências bibliográficas Almond, Ian. Borges the Post-Orientalist: images of Islam from the Edge of the West. Modern Fiction Studies. Baltimore, The John Hopkins UP, v. 50, n. 2, verão de 2004. 78

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Aryara contra os Filhos da Noite:

fantasia e ciência em um conto de Robert E. Howard

Alfredo Bronzato da Costa Cruz

RESUMO │ O objetivo do presente trabalho é apontar como na narrativa de Os Filhos da Noite, de Robert E. Howard, publicado originalmente em 1931 pela revista Weird Tales, marcada pela regressão e/ou alucinação, imbricam-se temas da literatura fantástica e da discussão antropológica do começo do século XX. PALAVRAS-CHAVE │Ciência e literatura; Fantasia e terror; Alucinação e verossimilhança; Racismo científico. ABSTRACT │ This work aims to point how in the narrative of The Children of the Night, by Robert E. Howard, originally published in 1931 by the Weird Tales magazine, themes of fantastic literature and the anthropological discussion of the beginning of XX century blend. KEYWORDS │Science and Literature; Fantasy and Terror, Hallucination and Verisimilitude; Scientific Racism. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando J. L. Borges (2001 [1941], p. 504).

1. NA EDIÇÃO DE MAIO DE 1931, A REVISTA WEIRD TALES PUBLICOU o conto Os filhos da noite de Robert E. Howard (1906-1936).1 A Weird Tales surgiu em 1924, proclamando a si mesma como uma revista única. Sua proposta era dar ao mercado narrativas curtas, a maior parte das quais compostas por autores jovens, que publicações literárias já consagradas recusavam-se a aceitar. A Weird Tales foi a primeira revista comercial a publicar os contos de Howard Phillips Lovecraft (18901937), apesar de em seu início haver uma evidente predileção por estórias tradicionais de fantasmas. Depois de seu primeiro ano de existência, um novo editor alterou seu subtítulo para o de uma revista do 

Mestre em História pela UNIRIO (2013) e doutorando em História pela UERJ; bacharel e licenciado em História pela PUC-Rio (2009). 1 Para a pesquisa a respeito da obra de Howard, felizmente se pode contar com o utilíssimo levantamento bibliográfico realizado por Paul Herman (2008). Dos muitos volumes de estudos até agora produzidos a respeito deste autor, consultei para a preparação do presente texto duas coletâneas organizadas por Don Herron (2000 e 2004) e a editada por Darrell Schweitzer (2010). Aryara contra os filhos da noite

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incomum e do bizarro. Rapidamente esse programa começou a ser atendido, e um número do fim de 1924 publicou uma aventura passada na préhistória escrita por Howard, um desconhecido e algo excêntrico escritor texano que contava então com dezoito anos de idade (Burke, 2008, p. XVII). A estreita associação de Howard com a Weird Tales manteve-se nos doze anos seguintes. Durante este período, a revista publicou quarenta e oito contos e vinte e um poemas de sua lavra; seus escritos estavam entre os mais populares do periódico, juntamente com os de Lovecraft e Seabury Quinn (1889-1969). A fama de Howard repousa largamente nos seus contos protagonizados por Conan, Kull, Salomão Kane, Bran Mak Morn e Turlogh O’Brien, estórias que fundaram um novo subgênero literário conhecido como espada e magia (sword and sorcery), reunindo características da fantasia heroica e da literatura de horror. Mesmo seus contos de horror de corte mais tradicional contêm elementos pronunciadamente romanescos. Ainda que correspondente e profundo admirador da estética da pequenez e do desespero ensejados pelo horror cósmico de Lovecraft e pela exaltação imaginativa de Clark Ashton Smith (1893-1961), Howard vazou suas narrativas com preocupações profundamente humanas, com batalhas, equívocos, ambições, paixões e interesses que eram exacerbados e estilizados em sua pena, mas não de todo desconhecidos da experiência da maior parte das pessoas comuns (Burke, 2008, pp. XVII-XVIII; Corrêa, 2013, pp. 13-15). Mais ou menos um ano depois de dar início a uma abundante troca de correspondência com Lovecraft, foi que Howard compôs Os filhos da noite, trabalho pelo qual recebeu a quantia de $60 (Burke, 2008, p. XXI).2 No início desta estória ele faz referência a três contos daqueles que chama de “os três mestres das histórias de terror”: A queda da casa de Usher (1839), de Edgar Allan Poe (1809-1849), A novela da chancela negra (1895), de Arthur Machen (1863-1947), e O chamado de Cthulhu (1928), de Lovecraft (Howard, 2013, p. 283). O relato de Howard, entretanto, não é um simples pastiche de nenhuma dessas estórias, mas uma reelaboração imaginativa de certo ângulo do material cultural que lhe era disponível e que também se espelhava, refletia e deformava os contos citados de Machen e Lovecraft.

A maior parte da volumosa correspondência trocada entre estes dois autores encontrase agora publicada, em uma edição acompanhada de um comentário muito minucioso (Lovecraft & Howard, 2009).

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2. O conto, narrado em primeira pessoa, começa descrevendo a reunião de seis colegas no estúdio de um deles, local decorado de forma extravagante, que reunia livros diversos e peças recolhidas no mundo inteiro. No princípio, há um acalorado debate antropológico a respeito dos caracteres fisiológicos e da ancestralidade da raça alpina. Na década de 1930, antropologia era majoritariamente um campo do saber referente à constituição física dos diversos povos e às suas possíveis proveniências; o que debatem dois dos personagens reunidos é a relação entre hereditariedade e determinações ambientais na conformação dos caracteres fisiológicos de uma dada população humana (Castro Faria, 2006, ps. 17-18 e 32-35). O narrador, John O’Donnel, pontua que todos os reunidos vinham da mesma cepa, “quer dizer bretões ou americanos descendentes de britânicos”, representando “várias linhagens de sangue inglês e celta, mas no final essas linhagens eram basicamente a mesma”. Um deles, entretanto, intrigava-o, parecendo “estranhamente diverso”: Ketrick, de olhos “de um tom âmbar, quase amarelo, e um pouco oblíquos”, que, quando vistos de determinados ângulos, “pareciam rasgados como os de um chinês”. Tratava-se de traço “incomum em um homem de ascendência anglo-saxônica pura”, como os anais familiares atestavam ser o caso. De acordo com o narrador, o nome Ketrick seria a forma moderna de Cedric, linhagem que estava registrada no Livro dos nobres e que, apesar de ter escapado para o País de Gales antes da invasão das Inglaterra pelos dinamarqueses, manteve sempre o costume de casar seus herdeiros homens com mulheres de famílias inglesas da área da fronteira, de tal modo que “assim preservaram a linhagem pura dos poderosos Cedric de Sussex – quase saxões puros”. Tudo isso tornava apenas mais intrigante o caso daqueles olhos oblíquos. Excluída a possibilidade de eles se deverem a alguma misteriosa influência pré-natal, cria-se tratar de “um atavismo, representando uma regressão da espécie às características de algum antepassado obscuro e remoto de sangue mongólico – um tipo estranho de regressão, uma vez que ninguém [mais] de sua família exibia tais traços”. Afora este “defeito em seus olhos, se é que pode ser chamado de defeito”, havia ainda uma “ligeira e ocasional sibilação na fala”, “uma leve frieza e certa indiferença e dureza que talvez sirvam para mascarar uma natureza extremamente sensível” (Howard, 2013, pp. 280-281). Das questões antropológicas, a conversa dos colegas reunidos volta-se para o conteúdo das prateleiras do estúdio no qual se encontram, “repletas de prazerosos pesadelos de todos os tipos”, onde Aryara contra os filhos da noite

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“a literatura fantástica parece competir com obras sobre feitiçaria, vodu e magia negra” (Howard, 2013, p. 282). A contiguidade dos debates é reiterada pelo comentário desta seleta de volumes; o tema da pureza das linhagens, das modificações corporais ensejadas nas coletividades humanas pelo tempo e pelo espaço, da mestiçagem e dos atavismos costura-se de forma pouco sutil àquele dos estranhos costumes religiosos dos povos não europeus, de seu suposto caráter de populações testemunhas de tempos primitivos, que já teriam sido há muito superados pelas nações melhores dotadas, postas pelo destino e por seus próprios méritos na vanguarda da história (Castro, 2005, pp. 27-33). Surge a questão de se saber se alguns destes antigos cultos, agora encontrados nas terras da barbárie, mas antes dispersos por todas as terras, ainda sobreviveria mesmo no coração do mundo civilizado, em seus ângulos e sinuosidades pouco exploradas. O Prof. Kirowan declara que não consegue fazer sua “mente acreditar que ainda existam remanescentes desses cultos escondidos em cantos obscuros do mundo atual”, mas Clemants lhe obsta com uma experiência de sua juventude, do tempo em que dividia um alojamento universitário com um sujeito que, embora “viesse de uma antiga linhagem escocesa de Galloway, tinha um tipo nitidamente não ariano”. Esse companheiro de Clemants falava dormindo, e ele começou “a ouvir e a agregar seus resmungos desconexos”; foi nesses murmúrios que ouviu sobre um culto antigo, [...] sobre o rei que governa o Império das Trevas, que é um renascimento de um império mais antigo e mais terrível, datando da Idade da Pedra; e sobre a enorme e inominável caverna onde está o Homem das Trevas, a imagem de Bran Mak Morn, escavada à perfeição por uma mão de mestre quando o grande rei ainda era vivo, e até a qual todos os adoradores e adoradoras de Bran fazem uma peregrinação uma vez na vida. Sim, esse culto ainda está vivo entre os descendentes do povo de Bran; uma corrente silenciosa e desconhecida que flui no grande oceano da vida, esperando que a imagem de pedra do grande Bran respire e se mova em um súbito retorno à vida, e saia da grande caverna para reconstruir seu império perdido (Howard, 2013, pp. 285-286).

Clemants esclarece que as pessoas deste império eram os pictos; não os selvagens pictos de Galloway, “predominantemente celtas, uma mistura de galeses, cymrics, aborígenes e possivelmente elementos teutônicos”, mas “pessoas de baixa estatura, pele morena, comedoras de alho, de sangue mediterrânico, que trouxeram a cultura neolítica para a Grã-Bretanha”. Se esta raça antiga tomou seu nome dos adventícios, ou 84

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vice-versa, não estava claro; o caso é que eles teriam sido os primeiros colonizadores das Ilhas Britânicas e sua presença às margens da História deu “origem às histórias de espíritos que vivem na terra e duendes”. Conrad, o dono do estúdio, discorda desta última afirmação, certo de que o folclore atribui uma aparência desfigurada e não humana a esses personagens, e de que “não havia nada nos pictos que provocasse tanto horror e repulsa aos arianos”. Para Conrad, isso se explica pelo fato de que “os mediterrânicos foram precedidos por um tipo mongólico, muito baixo na escala do desenvolvimento, motivando essas lendas...” (Howard, 2013, p. 286-287). A esta hipótese, o Prof. Kirowan responde que crê improvável que uma tal população humana tenha chegado à Grã-Bretanha antes dos pictos. As lendas sobre gnomos e duendes travessos, afinal, podiam ser encontradas por todo o continente europeu, e isso lhe parecia evidenciar “que tanto os mediterrânicos quanto os arianos trouxeram essas lendas com eles”, lendas que eram elaborações do contato real, ocorrido sabe-se em qual remotíssimo tempo, em qual distante paragem asiática, destes povos com grupos de “mongólicos antigos [que] deviam ter um aspecto extremamente não humano”. Em resposta a esta objeção, Conrad mostra aos colegas reunidos uma marreta de pedra recentemente descoberta por um mineiro nas colinas do País de Gales e que lhe parece um objeto ainda inexplicado, pois em nada similar a outros objetos do período neolítico encontrados na mesma região: “[...] Vejam como é pequena, comparada à maioria dos instrumentos daquela época, quase como um brinquedo de criança. Ainda assim, é surpreendentemente pesada, e sem dúvida poderia desferir um golpe mortal”. Para O’Donnel, o objeto parecia “estranhamente diferente”, de uma pequenez “um tanto inquietante”, sugerindo “coisas tão sinistras como uma adaga de sacrifícios asteca” (Howard, 2013, p. 288). Para tornar a peça inteligível, Conrad talhou-lhe um suporte em madeira de carvalho, copiando nele “o acabamento dos tempos primitivos, fixando a cabeça à fenda do cabo com couro cru”. Um dos presentes, Taverel, toma a peça em suas mãos e, na tentativa de golpear um antagonista imaginário, quase estilhaça um caríssimo vaso chinês. Não é o caso de que fosse inapto, mas era que a estabilidade da marreta era “toda fora de eixo”, e seria necessário que se reajustasse inteiramente a “mecânica de firmeza e equilíbrio para conseguir manejálo” de forma conveniente. Ketrick pega o objeto de seu colega e o manipula de forma desajeitada, tentando dar com o segredo de seu manuseio. Aryara contra os filhos da noite

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Depois de algum tempo, irritado, brande a marreta e desfere um forte golpe na direção de um escudo pendurado em uma parede próxima a ele. O’Donnel, que estava próximo, vê a peça pré-histórica “ondular em sua mão como uma serpente viva, e seu braço se torcer e deslocar de rumo”; ouve gritos de alarmada advertência; após o impacto da relíquia contra a sua cabeça, mergulha na escuridão de um desmaio (Howard, 2013, pp. 288-289). 3. Pouco mais tarde, O’Donnel começa lentamente a despertar. Domina-o uma sensação de “entorpecimento, cegueira e total desconhecimento” a respeito de onde estava e de quem era; “depois uma vaga compreensão de estar vivo e ser alguém, e de alguma coisa dura pressionando as costelas”. Quando a bruma se abriu e voltou a si por completo, surpreendeu-se deitado de costas, com metade do corpo sobre um arbusto e a cabeça pulsando fortemente. Com o couro cabeludo muito ferido, tinha o cabelo coberto de sangue e endurecido. Vestia apenas uma tanga de camurça e sandálias do mesmo material, e o que pressionava suas costas de maneira tão desconfortável era uma machadinha, sobre a qual havia caído. Era simultaneamente o mesmo e uma outra pessoa. Encontrava-se em uma grande e densa floresta, à beira de uma clareira sombreada, escura mesmo durante o dia. Ouvia um burburinho abominável, que o atormentou e fez recobrar total consciência. “O barulho era algo como uma linguagem, mas não as linguagens às quais os homens estão acostumados. Soava mais como um sibilar incessante de muitas serpentes enormes”. Com estes sons, chegaram também os cheiros e os relances de uma carnificina: na clareia defronte, jazia o que restara de cinco de seus companheiros, terrivelmente mutilados. Ao seu redor, aglomeravam-se estranhas figuras, [...] humanos ou algo parecido, embora eu não os considerasse como tal. Eles eram baixos e atarracados, com cabeças grandes demais para os corpos tão pequenos. Seus cabelos eram enrolados, parecendo serpentes, e fibrosos; seus rostos largos e quadrados, com nariz achatado, olhos horrivelmente rasgados, um talho fino como boca e orelhas pontudas. Usavam peles de animais, [...] mas as vestiam cruas. Carregavam arcos e flechas pequenos, com ponta de pedra, e facas e porretes também de pedra. Conversavam em uma língua tão assustadora como eles mesmos, uma fala sibilada, de répteis, que me causava medo e aversão (Howard, 2013, pp. 289-290).

Enquanto estava deitado, observando-os, ferido, O’Donnel lembrou-se do que havia acontecido. Ele, que então se chamava Aryara, 86

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era um dos seis jovens membros de um grupo de caça do Povo da Espada que havia perambulado demasiado para o interior da antiga floresta que seus correligionários normalmente evitavam. Cansados pelas manobras da caçada, pararam para descansar. Enquanto ele fazia o primeiro turno de guarda, acabou caindo no sono; cochilando, acabou golpeado. Aqueles que haviam se esgueirado entre as árvores e dilacerado seus colegas não haviam parado para dar cabo de sua vida; talvez o tivessem esquecido por algum tempo, mas decerto logo se lembrariam de que estava caído ali às margens da clareira. Havia uma oportunidade de escapar às carreiras e preservar sua vida, mas Aryara não podia fazer ou desejar isso. Afinal, como voltar para os seus com semelhante “história de infâmia e desgraça”? Como ouviria as palavras de desprezo que sua tribo lhe lançaria, como suportaria “as moças apontando seus dedos desdenhosos para o jovem que dormira e entregara seus companheiros às facas dos seres peçonhentos?” (Howard, 2013, p. 291). As lágrimas arderam em seus olhos e o ódio tomou conta do seu peito e da sua mente. “Nunca triunfaria sobre inimigos respeitáveis, nem morreria gloriosamente sob as flechas dos pictos ou as machadinhas do Povo do Lobo ou do Povo do Rio”, mas antes “encontraria a morte nas mãos de uma turba repugnante, que os pictos haviam forçado a morar na floresta, entocados como ratos, muito tempo atrás”. Com aquela paixão que só o mais absoluto desespero enseja, decidiu que faria com que sua queda, ainda que eventualmente ignorada e maldita por seu próprio povo, fosse lembrada por aqueles seres inferiores por muito tempo, se é que eles dispunham de memória. Movendo-se cautelosamente, tateou até alcançar o cabo de sua machadinha; invocou o deus de sua raça e levantou, “saltando como um tigre” sobre suas presas, de pronto arrebentando “um crânio chato, como um homem esmaga a cabeça de uma cobra”. Não deu atenção aos golpes que recebeu dos inimigos que o cercaram. Via uma névoa vermelha flutuar diante de seus olhos e sentia seu corpo e membros moverem-se em perfeita sincronia com sua mente guerreira. “Rosnando, ferindo e golpeando, [...] era um tigre entre répteis” (Howard, 2013, p. 292). Diante da fuga daqueles pequenos adversários, Aryara seguiu-os: ainda não estava saciado. Encontrou e percorreu a trilha para onde o mais alto deles pretendeu escapar antes de encontrar a mais sangrenta das mortes. Carregando nas mãos a cabeça decepada desta sua vítima, acompanhou o caminho serpenteante, enquanto pensava naqueles que Aryara contra os filhos da noite

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havia matado. Sua tribo tinha aquele povo pequeno em tão pouca conta que nunca soube o nome pelo qual eles se chamavam; nenhum membro do Povo da Espada jamais aprendera as sibilações de seu idioma antigo, designando-os apenas de Filhos da Noite. “[...] E eles eram de fato criaturas da noite, pois se esgueiravam pelas profundezas das florestas escuras e em moradias subterrâneas, só se aventurando nas colinas quando aqueles que os haviam subjugado dormiam. Era de noite que eles praticavam seus atos malignos – o voo rápido de uma flecha de ponta de pedra sobre uma rês ou talvez um humano notívago, ou o sequestro de uma criança que vagasse pela aldeia”. Contudo, seu nome devia-se a mais do que isso, pois “[...] eles eram, verdadeiramente, seres da noite e da escuridão, antigas sombras repletas do horror de eras passadas. Essas eram criaturas muito velhas que representavam uma época extinta. Já haviam infestado e dominado estas terras, e tinham sido levados à fuga e à obscuridade pelos sombrios, ferozes e pequenos pictos”. E se os pictos diferiam do Povo da Espada e dos grupos que lhe eram aparentados por sua aparência geral – estatura menor, peles e olhos mais escuros, ao passo que Aryara e seus correligionários eram altos e fortes, de cabelos loiros e olhos claros – os Filhos da Noite não lhes pareciam humanos com seus corpos encolhidos e deformados, pele amarela e rostos horrendos (Ibid., p. 294). Praguejando pela certa morte em uma batalha sem glória contra os membros de um povo que lhe parecia tão inferior, Aryara prometeu a si mesmo em recompensa um massacre sangrento, que fosse memorável aos Filhos da Noite que dele porventura conseguissem escapar. Chegou a um dos vilarejos deles, com construções em forma de cúpula, feitas de terra, com entradas baixas que afundavam no chão, e lembrou-se das velhas histórias a respeito dos túneis antigos aos quais aquelas moradas se conectavam por passagens subterrâneas, de forma que a aldeia inteira parecia-se com um imenso formigueiro ou casa de cupins. Irrompeu com toda a velocidade do meio da floresta, e foi recebido com um clamor selvagem que “veio da turba quando eles viram o vingador, alto, manchado de sangue e com olhos de fogo saltar da mata, gritando ferozmente, lançando a cabeça cortada entre eles e pulando bem no meio do grupo como um tigre ferido”. Não havia na mente de Aryara “nenhum brilho intenso de glória, [...] como haveria se o combate fosse contra oponentes mais meritórios”, mas “o velho e frenético furor guerreiro de sua raça” fluía célere em suas veias, “e o 88

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cheiro de sangue e destruição estava em suas narinas”. Acumulando crânios esmagados, cabeças partidas, ossos quebrados, sangue e cérebros espalhados e membros mutilados, Aryara foi recebendo mais e mais golpes, cambaleando, sua vida se esvaindo por numerosos cortes e perfurações. A escuridão e o esquecimento da morte alcançaram-no enquanto ainda estava de pé, resistindo e matando (Howard, 2013, p. 296). 4. Morto Aryara, O’Donnel voltou a si. Encontrava-se novamente entre seus colegas, no estúdio de Conrad, com a cabeça dolorida e um filete de sangue já quase seco em seu rosto. Ao encarar Ketrick, parado bem à sua frente, “ainda segurando a marreta, seu rosto autoinstruído a mostrar uma perturbação cortês que seus olhos não exibiam”, foi tomado por “uma loucura sangrenta”; com um grunhido de ódio, atirou-se com toda a força contra o antigo colega. Pego de surpresa, Ketrick não pôde se defender das mãos que se fechavam contra a sua garganta; foi só a intervenção dos demais presentes que impediu o iminente assassinato. “Seus tolos!”, esbravejou, O’Donnel [...] Soltem-me! Deixem-me cumprir o meu dever como membro da tribo! Seus cegos tolos! Eu não ligo a mínima para o golpe insignificante com que ele me atingiu. Ele e os seus já desferiram golpes muito mais fortes do que aquele contra mim, em eras passadas. Seus tolos, ele carrega a marca da besta, daqueles répteis, dos seres peçonhentos que nós exterminamos séculos atrás. Eu preciso esmagá-lo, exterminá-lo, livrar a Terra dessa contaminação maldita! (Howard, 2013, p. 299).

Ketrick sai rápido da sala; os colegas reunidos se horrorizam com o quanto o golpe perturbou a mente de O’Donnel. Este está seguro, contudo, que de alguma forma o golpe daquela peça pré-histórica mandou sua consciência de volta a um outro tempo, quando ela habitava em outro corpo. “Eu sou John O’Donnel e fui Aryara, que sonhou com glórias e batalhas, caçadas e festins e que morreu sobre uma pilha ensanguentada de suas vitimas, em uma época perdida”. Agora se recordava das antigas paisagens inglesas com os olhos de um e de outro, conectando o presente àquele passado remoto no qual as tribos arianas haviam chegado às Ilhas Britânica depois de percorrer incontáveis quilômetros de florestas e planícies desde sua saída das terras do distante Leste, em “uma das centenas de migrações desconhecidas e esquecidas que espalharam tribos de cabelos loiros e olhos azuis por todo o mundo”. Do idioma de Aryara já não havia nenhuma lembrança em O’Donnel, mas ele sabia que o idioma daquele Aryara contra os filhos da noite

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“era para os antigos celtas o que o celta antigo é para os galeses modernos”. O deus que invocou naquela ida batalha contra os Filhos da Noite era “muito, muito antigo” e “trabalhava com os metais – na época, o bronze”; dele surgiram muitos outros, como “Weland e Vulcano, na Idade do Ferro”. Aryara-O’Donnel sabia que “tinha o mesmo sangue e a mesma aparência dos homens que devastaram Roma”, assim como o dos “helênicos e dos persas, que um dia foram um povo só e de mesma linhagem, divididos em dois caminhos diferentes na longa viagem e que séculos depois se reencontraram e inundaram de sangue a Grécia e a Ásia Menor” (Howard, 2013, p. 300-302).3 Ketrick, por outra parte, era uma regressão da espécie. Um atavismo referente “não a espécie de algum chinês ou mongol puro de tempos recentes”, mas dos aborígenes deformados que foram expulsos pelos arianos para as colinas isoladas do território galês, um dos quais, de alguma forma, conseguiu macular “o limpo sangue saxão da linhagem celta”, esgueirando-se por algum castelo dos Cedric em uma noite de descuido ou ressurgindo “das sombras para agarrar alguma mulher dessa linhagem que passeava pelas colinas”. Mais ainda: para Aryara-O’Donnel, pareceu claro que havia ainda outros “remanescentes da época dos répteis repugnantes” e jura exterminar Ketrick e a todos os seus parentes que pudesse encontrar. [...] Dizem que o golpe que recebi afetou a minha cabeça, mas eu sei que apenas serviu para me abrir os olhos. Meu inimigo desde a antiguidade costuma andar sozinho por regiões desertas, atraído, mesmo que não saiba disso, por impulsos ancestrais. E em uma dessas caminhadas solitárias eu o encontrarei e, quando encontrar, quebrarei seu pescoço impuro com as minhas mãos, assim como eu, Aryara, quebrei os pescoços de impuras criaturas da noite, em tempos

A origem comum de helenos e persas é agora assumida como um fato mais ou menos inconteste em boas pesquisas científicas sobre o assunto, com base na consideração de certos elementos culturais registrados pelos cronistas e historiadores da Antiguidade Clássica, eventualmente mesmo de forma não intencional: “[...] Os Plateenses, que combateram os persas ao lado dos Atenienses, ignoravam sem dúvida o parentesco que unia a simbólica da sua soberania à dos seus adversários. Porque, sabendo que o vermelho é a cor da guerra, e o branco a cor do clero, o rei Aquemênida, exprimindo as duas funções superiores, usava uma túnica púrpura decorada com barras brancas, e o seu toucado exprimia a mesma simbologia (segundo o historiador Curtius Rufas); o arconte de Plateias, por seu turno, herdeiro da antiga realeza helênica local, traz sempre uma veste branca, exceto um dia por ano, em que reveste um manto vermelho, para honrar os soldados caídos em Maratona (diz Plutarco): a etiologia historicizante não deve iludir-se quanto ao arcaísmo do simbolismo que assim se exprime” (Sergent, 2012, p. 473).

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muito, muito distantes. § Então talvez eles me prendam e rompam o meu pescoço na ponta de uma corda, se assim o desejarem. Se os meus amigos estão cegos, eu não estou. E aos olhos do antigo deus ariano – ainda que não aos olhos cegos dos homens –, eu terei sido leal à minha tribo (Howard, 2013, p. 305).

5. Os filhos da noite é uma estória onde marcam presença todos os traços narrativos que ficaram associados no imaginário popular aos escritos de Howard em função do grande sucesso do bárbaro Conan. As cenas de violência, o furor guerreiro, o código de honra tribal, o ímpeto para a morte em combate, o desejo de gravar com aço e sangue uma série de proezas na memória coletiva são, neste sentido, típicas da literatura de fantasia que este autor compôs. Alguns dos analistas de sua obra viram nesta recorrente descrição de correrias violentas a expressão de uma subjetividade deprimida por não encontrar os meios convenientes de aliviar seus ímpetos agressivos, constrangidos pelas normas sociais que lhe pareciam tão férreas quanto espinhosas, que sentia de forma especial-mente aguda aquele mal-estar que, para Freud, é o estado característico do homem civilizado (Leiber, 2000; Guillaud, 2004; Peixoto, 2008).4 Também o tema específico do povo pequeno, de uma raça autóctone, pré-humana, ainda a viver – e a ameaçar – a humanidade de suas margens mais isoladas, lhe é característico. No mesmo ano da publicação de Os filhos da noite, Howard escreveu O povo da escuridão, também uma estória de recordação de vidas passadas narrada em primeira pessoa. O protagonista descreve uma de suas encarnações anteriores, quando era um herói bárbaro da tribo dos cimérios, de longos cabelos negros, que jurava por uma divindade obscura chamada Crom e habitava em um mundo de povos e civilizações cujo rastro não aparece em nenhum dos anais históricos conhecidos de nossa época. Nesta vida anterior, o protagonista-narrador teve de lidar com situações que guardam estranhos espelhamentos com sua encarnação atual; também precisou enfrentar um rival em combate, resgatar uma mulher amada e confrontar estranhas criaturas que habitavam o interior de uma caverna e que foram os primeiros habitantes das terras mais tarde ocupadas pelos celtas, pelos romanos e pelos saxões. Um povo moreno e atarracado, de traços mongoloides, que seria a base factual de todo o folclore sobre fadas, trolls, elfos, anões e bruxas (Howard, 2008, pp. 201-216). Sobre as possibilidades e os limites do uso de tal espécie de abordagem no estudo da história da arte, considerados a partir do caso da pintura, ver Gombrich, 1999.

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Em Vermes da terra, publicado no ano seguinte, Howard contou a estória de Bran Mak Morn, rei dos pictos, que jurou vingança contra o governador romano Tito Sulla depois de assistir à crucificação de um de seus companheiros de combate, culminação do longo massacre de seu povo promovido pelos invasores latinos. Para concretizar este intento violento, Morn entra em contato com os aqueles que chamam pela alcunha de vermes da terra, uma vertente primitiva do gênero humano que os primeiros pictos haviam conseguido banir para o interior das montanhas. Eles haviam sido pessoas que, por seu isolamento contínuo e pelos milênios de vida no subterrâneo, haviam modificado não apenas sua cultura, mas se tornado monstruosos e semirreptilianos, seguindo um caminho particular na evolução, desenvolvendo características biológicas que não se podiam encontrar no restante da humanidade. Morn consegue a ajuda do povo pequeno depois de roubar-lhes um importante item religioso, negociando devolvê-lo assim que Sulla lhe fosse entregue para uma batalha até a morte. Acontece, entretanto, que a mente do invasor romano é despedaçada no momento de seu contato com os vermes da terra, e o rei dos pictos mata-o não por vingança, mas por misericórdia; percebe, talvez um pouco tarde demais, que algumas alianças não devem nunca ser feitas, nem mesmo contra Roma (Howard, 2005). Em O povo pequeno, conto escrito talvez no mesmo período, mas publicado mais de três décadas depois da morte de Howard, a trama tem como protagonista um jovem aristocrata recémchegado àquela “estranha região ocidental da Inglaterra”, na qual os mentres e cromeleques gravemente erguidos sobre as charnecas traziam “vagas memórias raciais” à superfície de sua “imaginação celta” (Howard, 2014, pp. 58-59). Depois de uma imprudência pouco importante, horríveis criaturas humanoides tentam raptar sua irmã e arrastá-la para suas habitações subterrâneas, e o homem envolve-se em uma correria para tentar livrá-la de um destino pior do que a morte. Em O povo pequeno fica ainda mais evidente a filiação, já explicitada por Howard nos primeiros parágrafos de Os filhos da noite, com a mitologia particular de Arthur Machen, escritor galês que no fim do século XIX e início do XX escreveu uma série de contos que tinham como tema a ameaça constante destas sobrevivências pré-humanas que continuavam a habitar o interior do território mais ocidental da GrãBretanha. De acordo com Lovecraft, trata-se de fato, de “uma concepção fantástica que é a preferida” de Machen: “a ideia de que sob 92

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os cômoros e rochas das agrestes montanhas de Gales habita aquela raça pigmeia, primitiva e subterrânea cujos vestígios deram origem às nossas lendas populares de fadas, elfos e anões, e a cuja ação se atribuem ainda hoje certos desaparecimentos inexplicáveis e ocasionais substituições de crianças normais por estranhos abortos” (Lovecraft, 1987, p. 90). Este tema foi tratado de diferentes formas por Machen em A pirâmide brilhante (1894), A novela da chancela negra (1895), A mão vermelha (1895) e O povo branco (1899), e também encontrou expressão na obra do próprio Lovecraft; conforme demonstrou de Robert Price, há uma dependência direta de O horror em Dunwich (1928) e Um sussurro na escuridão (1930) em relação às ideias e aos textos citados de Machen (Price, 1993, pp. XI-XIII; Id, 1995, pp. IX-X). Para Lovecraft, contudo, esse não era um tema propriamente fantástico, caso se compreenda fantástico como sinônimo de irreal; era antes uma elaboração daquilo que era, então, tido como material cientificamente comprovado. Tratando das origens da literatura de horror, esse autor assinalou que muito daquilo que havia de mais apavorante no fabulário ocidental devia-se [...] indubitavelmente à presença oculta, mas frequentemente suspeitada de um repelente culto de adoradores noturnos cujos estranhos costumes – oriundos de tempos pré-arianos e préagrícolas, quando uma raça de atarracados mongoloides arianos pervagou a Europa com suas récuas e rebanhos – tinham raízes nos mais asquerosos ritos de fertilidade de eras imemoriais. Essa religião secreta, furtivamente passada de geração a geração de camponeses durante milhares de anos apesar do aparente reinado das fés druídica, greco-romana ou cristã nas regiões respectivas, foi marcada por selvagens Sabás de feiticeiros em matas solitárias ou montes remotos nas noites de Walpurgis ou no Hallowe’em, as quadras tradicionais de acasalamento das cabras, ovelhas e gado; e veio a ser fonte de uma abundante safra de lendas de feitiçaria, além de dar causa a inúmeros processos por bruxaria, sendo o episódio de Salem o principal exemplar americano (Lovecraft, 1987, p. 8. Grifo no original).

Tal trecho foi extraído de O horror sobrenatural na literatura, ensaio que foi solicitado a Lovecraft por seu amigo W. Paul Cook em 1924 e concluído após um longo programa de pesquisa e redação em 1927. Publicado neste mesmo ano, ele logo caiu no esquecimento geral; foi, entretanto, esporadicamente retomado, revisto e complementado por seu autor. Programou-se que o ensaio revisto seria publicado na revista The Fantasu Fan em princípio da década de 1930, mas este periódico Aryara contra os filhos da noite

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parou de circular antes que Lovecraft desse ao seu escrito uma forma que lhe parecesse inteiramente aceitável. Uma versão muito ampliada foi publicada em 1939 em The Outsiders and Others, volume póstumo de memórias de Lovecraft. Os editores August Derleth e Donald Wandrei organizaram o texto final. Este mesmo escrito foi publicado como um livro avulso em 1945, e assim ganhou um amplo conhecimento público (Bleiler, 1987, fls. 1-2). Durante este mesmo longo período de gestação de O horror sobrenatural na literatura (1924-1945), crescia em popularidade a obra da egiptóloga inglesa Margaret Murray (1863-1963), que assumiu, com os recortes oportunos, que as descrições dos sabás fornecidas pelas feiticeiras processadas pela inquisição e as histórias folclóricas a respeito de fadas e outros seres sobrenaturais que habitariam nas margens do mundo humano eram provas da existência de um culto secreto baseado em rituais de fertilidade e de uma cultura pré-histórica a subsistir sob as sucessivas camadas de domínio religioso celta, greco-latino e cristão na Europa Ocidental. Tais teses foram apresentadas em 1921 em O culto das bruxas na Europa Ocidental, e retomadas e corroboradas com outros dados em 1933 em O deus das feiticeiras. Exemplo do prestígio dessa abordagem foi o fato de a Encyclopedia Britannica ter confiado a redação do verbete “Withcraft” à Murray logo depois da publicação de O culto das bruxas na Europa ocidental, e de este pequeno, mas significativo texto ter sido reeditado sem mudanças nas sucessivas edições desta prestigiosa coleção de referência durante quase meio século (Ginzburg, 1989, p. 186 e nota correspondente, n. 31, p. 277; Id, 2012, p. 20 e nota correspondente, n. 30, p. 315). A hipótese de Murray encontra-se hoje quase completamente desacreditada, mas nas décadas de 1920 e 1930 era objeto de séria consideração como explicação científica para certos fatos antropológicos. O fato de sua descrição dos povos autóctones do paleolítico europeu e de suas sobrevivências em fases posteriores da história coincidir em larga medida com as descrições literárias feitas por Machen, Lovecraft e Howard a respeito deste mesmo tema (p. ex. Murray, 2002, pp. 39-43) remete-nos a um contínuo cultural, a certo substrato de senso comum científico no qual se incrustavam tanto estas produções explicitamente ficcionais quanto a literatura antropológica de Murray. Mas que isso não leve a supor relações simples: parece-me bastante provável que Howard não chegou diretamente ao argumento de Murray, mas deu com ele por intermédio de uma série de explícitas referências feitas por Lovecraft (p. ex. 2007, p. 84; 2013, p. 46), e viu-o com a lente de um aficionado leitor de Machen. 94

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6. Um problema mais delicado é colocado, por outra parte, pelo uso da teoria e da mitologia ariana em Os filhos da noite. O fato da confirmação irrefutável destas estar colocado no plano da fantasia ou da alucinação causada por uma pancada na cabeça sugere uma recepção irônica, talvez crítica. A discussão da primeira parte do conto a respeito do mesmo tema, contudo, leva a pensar em uma relação mais sutil, calcada na problemática, estruturante na literatura fantástica, da oposição e complementaridade entre saber e falso-saber (Willemin, 2005, p. 37). A teoria ariana surgiu do desejo iluminista de desligar o passado europeu da tradição judaico-cristã e da florescência que, neste âmbito, sobreposto ao da escravidão africana e ao avanço da expansão colonial europeia na África e na Ásia, encontraram as antropologias poligenistas. Ela iniciou-se no campo da filologia e do estudo comparado das religiões e, tomada como um pressuposto, foi supostamente corroborada pelos estudos fisiológicos, históricos e arqueológicos do longo século XIX. De acordo com Léon Poliakov, a ideia de que havia uma raça ariana, matriz das civilizações do norte europeu, e de que ela seria originária dos altos planaltos da Ásia interior, foi aceita de forma quase dogmática pela maior parte da intelectualidade europeia e, por volta de 1860, “esta crença já fazia parte do equipamento intelectual de todos os europeus cultos” (1974, p. 242). Às expensas da prudência dos cientistas mais autorizados, a propaganda política estabeleceu o mundo de fala alemã como o lócus privilegiado de uma arianidade que supostamente fazia dos norte-europeus superiores a todos os outros povos do mundo – sem deixar, contudo, de fazer remontar à mesma linhagem dos germanos pré-históricos virtualmente todos os conquistadores da história: gregos e troianos, helenos e persas, celtas e romanos, entre outros.5 Passado o primeiro quarto do século XX, essa escola de pensamento encontrou sua máxima, mais caricata e mais violenta expressão no hitlerismo (Ibid., p. 256). A teoria ariana dependia de um maniqueísmo racial, de uma estrutura dualista de pensamento, e de uma confusão entre população – unidade de ordem biológica –, aptidão inata, cultura e valor moral. O 5 Um eco particularmente claro disto pode ser localizado, por exemplo, n’A genealogia da moral de Nietzsche: “Não há como se enganar: no fundo de todas essas raças nobres é impossível não reconhecer a fera loira que ronda, em busca de presa e de vitória; esse fundo oculto tem necessidade de aflorar de quando em quando; é necessário que o animal saia novamente, que retorne à amplidão selvagem – nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos: todos são idênticos a esse respeito” (2009, p. 44).

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grande outro dos arianos foram os semitas, e, mais especificamente, os judeus, considerados como parte de uma única população, como uma raça judaica. Podem-se citar numerosos autores que, de diferentes formas, corroboraram esta tese. Irei mencionar dois deles, a título de exemplo. O primeiro, Julius Lippert (1895-1956), opunha os arianos capazes de se estabelecer em comunidades agrícolas e os semitas fadados ao eterno nomadismo dos pastores, qualificando estes de “ramo completamente seco” da raça branca. Sua principal obra, História cultural da humanidade em sua composição orgânica, teve uma ampla recepção nos círculos intelectuais europeus, e em 1931 foi traduzida pelo antropólogo George Murdock (1887-1985) e publicada nos EUA, sob o título de A Evolução da Cultura (Poliakov, 1974, p. 263 e nota correspondente, n. 72). Esse esquema racista dominou virtualmente inconteste o mundo científico até o fim do século XIX, mas ainda não tinha produzido seus frutos mais sangrentos. Para Poliakov, “foi na própria época em que começou a ceder o lugar a outras concepções que se tornou um artigo de fé para o grande público” (Ibid., p. 266). Outro exemplo, talvez de autor ainda mais influente: Houston Stewart Chamberlain (1855-1927), filho de um almirante inglês, educado na França, apaixonado pela Alemanha desde a adolescência e prolífico escritor. Em 1899 ele deu a público as mais de mil e quinhentas páginas de Os fundamentos do século XIX, que se propunha a ser um balanço de todos os conhecimentos de seu tempo. Tratava-se de obra de belo estilo, fundada na crítica da crescente especialização dos ramos do conhecimento, e que fazia uma aberta defesa do racismo pró-ariano; não por acaso, veio a ser uma das fontes diretas dos escritos de Alfred Rosenberg (1893-1946), ideólogo do Terceiro Reich.6 Nesta obra, entre outras peripécias, Chamberlain propõe uma peculiar reinvenção do tema do complô jesuítico, extraindo de sua teoria da raça um novo argumento: a Companhia de Jesus seria a invenção de um homem que, antes de ser religioso, era um basco, um anariano; através de sua pessoa e obra, era sua raça primitiva que procurava “vingar-se de seus vencedores”. Para este autor de fim do Oitocentos, [...] A Europa conta com centenas de milhares de homens que, como nós, falam línguas indo-europeias, que se vestem como nós, que participam da nossa vida, que são excelentes pessoas, mas que diferem tanto de nós, germanos, como se habitassem outro

6 O título da principal obra de Rosenberg, O mito do século XX, ecoa esta influência, e os vínculos entre os enlevos wagnerianos, a mística ariana, a recepção da obra de Chamberlatin e a ascensão de Hitler são bem conhecidos (Cecil, 1972, pp. 11-13; Poliakov, 1974, p. 316)

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planeta. Não se trata de um abismo como o que, em certos aspectos, nos separa dos judeus, mas acima do qual mais de uma ponte estreita conduz de uma extremidade à outra: trata-se de uma muralha, convenientemente intransponível, que separa um país do outro (cit. Poliakov, 1974, p. 314).

Some-se a eles, neste breve inventário, um autor de natureza diversa, que, não sendo um dos ideólogos do arianismo, colaborou para dar-lhe, contudo, uma de suas orientações fundamentais: Ernest von Salomon (1902-1972). Não se tratava de um literato profissional, como Lippert ou Chamberlain, nem de um antissemita convicto;7 mas antes de um membro de uma das Freikorps que, finda a Primeira Grande Guerra (1914-1918), seguiu ilegalmente para o território polonês, lituano e letão para lutar contra os bolcheviques.8 As potências ocidentais que erigiram um arcabouço legal para restringir a ação dos militares alemães permitiram que essas milícias continuassem armadas e operacionais, porque esperavam que elas detivessem o avanço soviético rumo ao centro da Europa. Mas algo mais do que o medo real ou artificialmente instaurado da ameaça comunista levou estes homens a continuar lutando; tratava-se de uma profunda identificação histórica da ação dessas unidades de guerrilheiros com a Ritt gen Osten, a marcha contra o Oriente, empreendimento dos séculos XIII e XIV no qual os Cavaleiros Teutônicos estenderam o domínio de populações germânicas 7 Em 1922, von Salomon, ainda menor de idade, envolveu-se no assassinato de Walther Rathenau, ministro de relações exteriores da República de Weimar, o judeu a alcançar o mais alto cargo público em um governo alemão até então, mas parece não ter sido movido neste empreendimento por uma orientação especificamente antissemita. De fato, certos autores indicam que ele se absteve do oportunismo político por ocasião da ascensão de Adolf Hitler ao poder, mantendo relações paradoxais com o novo centro do poder, que considerava aquém de seus altos ideais guerreiros. Veio a se filiar ao partido nazista apenas em novembro de 1938 e nunca foi especialmente militante nesta condição. Quando se considera que, a este período, era casado com Ille Gotthelft, de origem judaica, tal reserva ganha outro contorno. Von Salomon e esposa parecem nunca ter sido incomodados em função dessa união pelas autoridades nazistas. Depois de 1945, contudo, von Salomon descreveu o momento em que ele e Gotthelft foram detidos por militares norte-americanos, que, ao efetuarem sua prisão, insultaram-no e espancaram-no por seu envolvimento na morte de Rathenau e estupraram sua esposa. 8 Tais grupos viriam a ser modelo para as Waffen-SS da geração seguinte, e mais ainda: de acordo com Tom Reiss (2007, p. 238), “[...] De muitas maneiras, a violência niilista das Freikorps foi tão necessária ao triunfo dos nazistas quanto as bombas atiradas pelos revolucionários russos de 1870 o foram para a ascensão de Lenin. As Freikorps foram o último ingrediente que faltava para a criação do movimento nazista [na década de 1920] – sem elas o movimento jamais teria passado de um punhado de conspiradores, de políticos e de seus eventuais assassinos de aluguel”.

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por toda a região báltica, marchando até as terras do Grão-Ducado de Moscou. Quando as Freikorps partiram em sua própria investida rumo ao interior russo, insistiram em se referir aos pontos intermediários não como Estônia, Letônia e Lituânia, mas antes por seus nomes alemães: Kurland, Livonia e Litauen. Seus membros escreveram e fizeram publicar extensos diários, memórias e poemas sobre sua luta contra o Exército Vermelho, orientados pela convicção de que travavam uma luta justa na reconquista de território que lhes era de direito, de alguma forma retomando o combate dos Teutônicos contra poloneses, moscovitas e tártaros. Desses textos, que iriam se tornar a leitura predileta dos recrutas da SS, tanto na Alemanha quanto fora dela, o mais ilustre foi o Cavaleiros no Oriente, de Ernst von Salomon. “Eu precisava pensar no passado”, escreveu esse autor, crendo ser uma espécie de “Cavaleiro da Ordem redivivo”, animado pela “sensação de que todo tempo que se passara entre as duas épocas [os séculos XIIIXIV e o XX] deixara de existir”. Ele relata como, quando de sua chegada na frente de batalha como voluntário para lutar contra os bolcheviques, foi tomado pela sensação de já ter feito isto em uma outra vida. O próprio odor do solo russo comoveu-o, “parecendo transformar o medo e a esperança em único sentimento”, e ele sentiu-se “transportado pela perigosa estranheza daquela terra, com a qual [...] sentia ter uma relação singular”. Quando seu carro de combate passou pela ruína de um dos antigos castelos teutônicos erguidos séculos antes às margens do Mar Báltico, uma questão lhe aflorou à superfície do pensamento: Estariam aqueles castelos surpresos com a pequena bandeira com a cruz negra que se agitava em nosso blindado ao passar diante deles? Reconheceriam a insígnia em nossos capacetes, que outrora viram nas túnicas brancas de seus habitantes? (Liulevicius, 2000, pp. 234-236; cit. Reiss, 2007, pp. 207-208).

À luz do conto de Howard, as palavras de von Salomon e de Chamberlain, ainda que situadas em um outro contexto espacial, poderiam muito bem ter sido escritas por Aryara-O’Donnel, ou por qualquer um que se dispusesse a endossar a sério o seu recém-adquirido ímpeto de ser leal à sua tribo ariana pelo combate aos descendentes e eventuais remanescentes do povo pequeno. Tal fato evidencia de pronto o quanto é tênue, fina como um linho de cabelo, a fronteira entre literatura fantástica e as ideias científicas, convidando a recolocar de maneira mais complexa as relações ambíguas entre estes dois usos da

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linguagem e formas de atribuir sentido à experiência humana no mundo.9

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natureza, sexo e medo na literatura brasileira

Júlio França Daniel Augusto Pereira Silva RESUMO │ O ensaio tem como objetivo investigar as relações entre natureza, sexo e medo na literatura. Inicialmente, propõe-se uma reflexão crítica sobre o tema, a partir dos trabalhos do Marquês de Sade, de Sigmund Freud, de Georges Bataille e de Camille Paglia. Procurou-se mostrar como o sexo pode ser tomado como a manifestação primordial das forças naturais no homem, sendo exatamente o ponto de contato da humanidade com seu lado mais dionisíaco, primitivo e, diversas vezes, perverso. Na modernidade, essa potência cruel do sexo foi frequentemente entendida como uma ameaça à razão e à organização social. Para ilustrar como a imbricação entre natureza humana, sexualidade e horror vem se tornando um topos da ficção ocidental, tomaram-se quatro narrativas ficcionais brasileiras: Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo, “Noivados trágicos” (1898), de Medeiros e Albuquerque, “Dentro da noite” (1910), de João do Rio, e “O espelho” (1938) de Gastão Cruls. PALAVRAS-CHAVE │ Literatura gótica; Horror; Sadismo; Perversões Sexuais; Femme fatale. ABSTRACT │This paper aims at examining the relationships between nature, sex, and fear in literature. Firstly, based on Marquis de Sade’s, Sigmund Freud’s, Georges Bataille’s and also Camille Paglia’s writings, our purpose is to clarify that sex can be seen as a primal manifestation of human nature, surely being the element to bridge the gap between human beings and their Dionysian, primeval and often perverted side. In the modern age, this fiercely sexual power was frequently considered to a menace to rationality and social organization. Then, to show how the imbrication between human nature, sexuality, and horror has been the topos of Western fiction, we will analyze four Brazilian fictional narratives: Álvares de Azevedo’s Noite na taverna (1855), Medeiros e Albuquerque’s 'Noivados trágicos' (1898), João do Rio’s 'Dentro da noite' (1910), and Gastão Cruls’s 'O espelho' (1938). KEYWORDS │ Gothic literature; Horror; Sadism; Sexual Perversions; Femme fatale.  Doutor em Literatura Comparada (UFF), Professor Adjunto de Teoria da Literatura e do Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ. Tem pós-doutorado na Brown University (2014-1015) e coordena o Grupo de Pesquisa “Estudos do Gótico” (CNPq).  Graduando em Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista de Iniciação Científica (FAPERJ) sob orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ Brown University) e integrante do Grupo de Pesquisa “Estudos do Gótico”.

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Para aqueles que não as leem, as narrativas de horror são um tipo de pornografia, que provoca calafrios ao invés de ereções. E o leitor que parece ter prazer com tais sensações – bem, esse não passaria de um masoquista emocional, o escravo de uma droga maligna, um animal psicótico e decadente. David Aylward (1985).

No calor dos trópicos TEMAS SEXUAIS ESTIVERAM CONSTANTEMENTE PRESENTES NAS obras ficcionais da modernidade. Diversos autores – dentre eles Le Fanu, Byron, Flaubert, Oscar Wilde e, obviamente, Sade – retrataram em seus livros comportamentos sexuais desviantes dos padrões morais da época em que viveram. Casos de traição conjugal, homossexualidade, travestismo, incesto, necrofilia e sadomasoquismo foram explorados sistematicamente por escritores góticos, românticos, realistas e decadentistas. No Brasil, também é perceptível a proliferação de discursos sobre o sexo e a sexualidade em nossa literatura, pelo menos desde Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, publicado postumamente em 1855, que apresenta contos repletos de descrições de comportamentos sexuais desviantes para a época. A exploração do sexo como tema central de obras ficcionais tornou-se ainda mais recorrente a partir do naturalismo. Obras como A Carne (1888), de Júlio Ribeiro, O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo e O Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha, são apenas algumas, dentre muitas, que colocaram em destaque personagens lascivos, dominados pela volúpia e por desejos imperiosos. Em paralelo às obras ditas de “alta literatura”, a ficção popular também foi pródiga em explorar conteúdos sexuais. Como aponta Alessandra El Far em Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924), intensificou-se no século XIX a publicação de romances voltados ao grande público, inclusive os de cunho francamente pornográfico. A confluência entre o barateamento dos custos de produção editorial e a progressiva expansão do mercado de leitores deu ensejo ao aparecimento de títulos como Amar, gozar, morrer, Um favo de gozo e Os capoeiras, história secreta de todas as orgias, excessos de libertinagem etc., todos com números de vendas bastante expressivos. Igualmente popular e polêmica foi a revista O Rio Nu, criada em 1898 e 102

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voltada para o público masculino, que se especializou na edição de ilustrações pornográficas, caricaturas humorísticas e textos eróticos, como “O menino do Gouveia” (1914), geralmente considerado o primeiro conto homoerótico publicado no Brasil. Grande parte das obras populares desse período caracterizavamse não apenas pelo conteúdo sexual, mas também pela exploração de tramas que envolviam violência e crime – sobretudo os chamados “romances de sensação”: O termo “sensação” era usado de modo recorrente naquele século. Na vida real, toda situação inesperada, assustadora, impetuosa, capaz de causar arrepios e surpresa recebia tal conotação. Na literatura, essa expressão servia para avisar o leitor do que estava por vir: dramas emocionantes, conflituosos, repletos de mortes violentas, crimes horripilantes e acontecimentos imprevisíveis. Em outras palavras, fatos surpreendentes que extrapolavam a ordem rotineira do cotidiano (El Far, 2004, p. 14).

Tais características não eram, contudo, exclusividade da literatura dita popular, e se faziam presentes também na literatura canônica do fim do século XIX e início do XX, como nas obras de João do Rio, Coelho Neto, Gastão Cruls e Humberto de Campos, além das já mencionadas narrativas naturalistas. Nelas, a sexualidade é frequentemente associada a comportamentos agressivos, a patologias da mente, a desvios de caráter e, principalmente, a instintos bestiais. Principal elo entre o homem e sua natureza animal, a sexualidade é tomada em sua dimensão sublime, isto é, como um misto de forças magníficas e aterrorizantes, fazendo com que a natureza humana manifestada através do desejo sexual inspire tanto atração quanto repulsa. Para demonstrar esse caráter dionisíaco do sexo, selecionamos as seguintes narrativas: Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo, Noivados trágicos (1898), de Medeiros e Albuquerque, Dentro da noite (1910), de João do Rio e O espelho (1938), de Gastão Cruls. Entre a razão apolínea e a natureza dionisíaca Sexualidade e erotismo são temas frequentes em textos literários, filosóficos e religiosos, seja O Banquete, de Platão, o hebraico Cântico dos Cânticos ou o indiano Kama Sutra. No mundo moderno, uma das obras mais emblemáticas é a de Sade (1740–1814). Os escritos do Marquês, desenvolvidos sob os auspícios de um século marcado tanto pelos ideais Pesadelos dionisíacos

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racionais do Iluminismo quanto pelos excessos da Revolução Francesa, consolidam a questão da violência em relação ao sexo e são um marco incontornável nos estudos das relações entre sexualidade, literatura e crueldade. É possível mesmo tomar alguns de seus livros como suporte teórico para um esclarecimento de tais questões. La philosophie dans le boudoir ou Les Instituteurs immoraux (1795) [A filosofia na alcova ou Os preceptores imorais] é um conjunto de sete diálogos “destinados à educação das jovens senhoritas” – como explica o subtítulo da obra. Neles encontram-se as lições de uma libertina, Madame de Saint-Ange, que tenta educar uma jovem de 15 anos, Eugénie, “em todos os princípios da libertinagem mais desenfreada” (Sade, 1999, p. 19). Para isso, é ajudada por seu irmão, o Cavalheiro de Mirvel, por um amigo sodomita deste, chamado Dolmancé, e pelo jardineiro Augustin. Durante as orgias, que incluem incesto e coprofilia, são intercaladas extensas reflexões sobre a liberdade, o governo, a religião, a família, os costumes e a natureza. Os posicionamentos de Sade sobre esses assuntos põem à prova os valores éticos da época, intenção já explicitada no prefácio da obra, dedicada aos libertinos, quando o Marquês afirma que o livro irá tratar das “paixões, com que estúpidos e frios moralistas tentam vos horrorizar” (Ibid., p. 11). Para ele, as paixões “são apenas os meios que a natureza emprega para fazer o homem atingir as metas que traçou para ele.” (Ibid.). É exatamente sobre essa natureza que o autor francês concentra seus pensamentos mais profícuos sobre as relações que estabelecemos entre sexo e medo. Sade expõe a ideia de que é a natureza que aconselha o homem a ceder a todos os seus desejos, não existindo, portanto, nada que possa ser considerado condenável ou criminoso – na natureza, tanto criação quanto destruição são igualmente necessárias. Assim, quaisquer críticas feitas a quem segue seus instintos não seriam válidas, e adviriam apenas de um moralismo social tão inócuo quanto hipócrita. Sade (Ibid., p. 80) defende que a natureza nos lançou em um “estado primitivo de guerras e de destruição perpétuo [...] o único em que lhe é vantajoso estarmos.”. Justificar-se-ia assim o gozo sem limites, excluindo-se qualquer sentimento de consideração por outra pessoa que não nós mesmos. Longe de ser um desvio ou uma perversão, a crueldade é uma característica impregnada no homem pelas forças naturais, sendo imprescindível para a vivência sexual plena. Nada 104

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haveria de horrível, portanto, na libertinagem, pura manifestação da natureza no ser humano. Essa posição egoísta em relação ao sexo é tratada mais especificamente no quinto diálogo do livro, quando Madame de SaintAnge diz a Eugénie que o ser humano deseja ter todos os outros trabalhando para o seu próprio prazer. O compartilhamento do prazer com os que estão à sua volta estabeleceria uma relação de igualdade que atentaria contra essa vontade despótica. Daí ser imperioso dominar e praticar o mal, pois, “nunca foi próprio da natureza inspirar aos homens outros movimentos, outros sentimentos, senão aqueles que lhe servem para alguma coisa; nada é tão egoísta quanto a natureza; sejamo-lo nós também se quisermos cumprir suas leis.” (Ibid., p. 114). Associado ao ímpeto despótico, o sexo adquiriria contornos agressivos, de crueldade real. Isso tampouco seria um problema, como deixa claro a pergunta retórica de Dolmancé a Eugénie: “ainda admitis alguma coisa sagrada entre os homens? Imaginais algum motivo para não nos preferirmos sempre a eles?” (Ibid., p. 115). Por fim, completa sua filosofia exortando a moça a fazer apenas o que lhe é prazeroso, mesmo que não seja aceito pelas leis: “Que a fantasia de alguns crimes inflamem vossa alma, Eugénie, e estejais bem certa de cometê-los em paz, entre mim e vossa amiga.” (Ibid., p. 116). A filosofia na alcova mostra, portanto, que a natureza conduz o homem espontaneamente a atos cruéis, necessários para o funcionamento das forças naturais, e que, por isso, não podem ser condenados. Pelo contrário: para a plena realização dos desejos sexuais são necessárias a crueldade, a violência e a tirania por parte do ser humano. A brutalidade, a força discricionária e a impetuosidade, assim, não são desumanas, mas justificadas exatamente por serem fundamentais para a plena manifestação da natureza no homem – ainda que seja através do assassínio ou da aniquilação corporal. Todos esses elementos de perversidade associados ao sexo, presentes na obra de Sade, chocaram a sociedade – tanto a de sua época quanto as posteriores –, renderam-lhe anos de prisão e o fizeram ser censurado. Sua obra inspirou horror sobretudo nos moralistas, aqueles que possuíam uma visão idealizada, rousseauniana, da natureza, reafirma ele em seu prefácio. Assim, a crueldade sexual defendida pelo francês é

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uma das formas de chocar o leitor, causar repulsa, e, ao mesmo tempo, produzir o efeito do medo artístico.1 Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, também Freud, ao investigar o sadismo e o masoquismo, manifesta a visão de que a sexualidade masculina estaria inclinada à agressão e à subjugação. Existiria algo inato nas chamadas perversões sexuais – um desejo de dominação presente em todos os indivíduos, que poderia ter sua origem em desejos primitivos: A experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade. Quando as circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais podem substituir durante um bom tempo o alvo sexual normal por uma dessas perversões, ou arranjar-lhe um lugar ao lado dele (Freud, 1996, p. 152).

A partir dessas ideias, o psicanalista estabelece uma ligação entre a crueldade e a pulsão sexual, apontando uma característica peculiar a essa associação: mesmo o sádico – aquele que experimenta prazer com a dor que provoca no outro durante o sexo – seria capaz também de extrair prazer de eventuais dores que possa sofrer. Para Freud, a infância é a base de todo o desenvolvimento psicológico subsequente. É nesse período que irrompem os “germes de todas as perversões” (Ibid., p. 162), preservados na sexualidade de perversos e neuróticos. No comportamento sexual, reprimido ou não, repousariam as raízes do comportamento humano: “todos os processos afetivos mais intensos, inclusive as excitações assustadoras, propagamse para a sexualidade” (Ibid., p. 192). O medo e o horror podem, pois, ter efeito sexualmente excitante. Mesmo a dor, se experimentada em condições controladas, seria capaz de provocar sensações erógenas: O efeito sexualmente excitante de muitos afetos que em si são desprazerosos, tais como a angústia, o medo ou o horror, conserva-se num grande número de seres humanos por toda a

Chamamos de "medo artístico” ao efeito de recepção produzido por certas obras ficcionais, ao se experimentar sensações de perigo sem que se esteja efetivamente sujeito aos riscos. Quando a fonte do medo não representa um risco real a quem o experimenta, entra-se no campo das emoções estéticas e de prazeres peculiares como a catarse, a sublimidade, o art-horror etc. Ver França, Julio. As relações entre “monstruosidade” e “medo artístico”: anotações para uma ontologia dos monstros na narrativa ficcional brasileira. In: Rodriguez, Benito Martinez, org. Anais do XII Congresso Internacional da ABRALIC. Curitiba: ABRALIC, 2011.

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vida, e sem dúvida explica por que tantas pessoas correm atrás da oportunidade de vivenciar tais sensações, desde que haja apenas certas circunstâncias secundárias (a pertença a um mundo imaginário, à leitura ou ao teatro) para atenuar a gravidade da sensação desprazerosa. § Presumindo-se que também as sensações de dor intensa provoquem o mesmo efeito erógeno, sobretudo quando a dor é abrandada ou mantida a distância por alguma condição concomitante, estaria nessa vinculação uma das principais raízes da pulsão sadomasoquista [...] (Ibid.).

Para Freud, portanto, a tensão é frequentemente acompanhada pelo prazer, de tal maneira que é possível sentir excitação sexual a partir do medo. Além disso, o psicanalista reafirma que a natureza humana é fonte dos desejos e instintos violentos que fundam a íntima relação entre crueldade e prazer. Georges Bataille foi outro estudioso da sexualidade humana e de suas relações com a morte, a violência e o medo. Em O erotismo, de 1957, buscou debater a sexualidade e entender como se originaram e de que forma se dão os interditos e as transgressões sociais. Para ele, o ser humano teria fundado com o trabalho um mundo racional e objetivo, mas a violência, enquanto expressão dos excessos da natureza, persistiria como uma ameaça constante à estabilidade conseguida. Entre os modos pelos quais a coletividade tentaria se proteger e se afastar das forças naturais estariam os interditos, que serviriam como bloqueadores das reações instintivas, evitando assim que o ser humano seja dominado por sua natureza caótica e por seus desejos. Sobre os específicos interditos da sexualidade, o ensaísta francês entende que o comportamento sexual da humanidade é, a despeito do tempo e do espaço, comandando por regras específicas, que visam conter nossa agressividade inerente. As práticas eróticas pertenceriam, portanto, a um domínio da existência humana intimamente relacionado à violência e à violação do ser. Enquanto manifestação da força da natureza no homem, o impulso sexual visaria à dissolução das formas organizadas pela vida social e pelo mundo da razão. Esse embate contínuo faz com que o homem se apavore constantemente com as suas pulsões sexuais. Tais aspectos agressivos e terrificantes do coito teriam uma ligação estreita com a morte, já que esta, enquanto destruição do ser, é o corolário da violência – e, por extensão, do poder da natureza sobre

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nós. Fascinação, desejo e horror estão, portanto, associados em nossos pensamentos tanto sobre a sexualidade quanto sobre a morte:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que opõe o ser à natureza encarada como um excesso de energia viva e como uma orgia da destruição, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A sexualidade e a morte são apenas os momentos intensos de uma festa que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres, uma e outra tendo o sentido do desperdício ilimitado que a natureza executa contra o desejo de durar que é próprio de cada ser (Bataille, 1987, p. 58).

Os cadáveres e demais representações da morte, como fantasmas e espectros, por exemplo, ao mesmo tempo que horrorizam, exerceriam um poder de atração no homem. A mesma relação de atração e repulsa se encontraria na sexualidade, domínio privilegiado de nossa animalidade, em que o prazer erótico coexiste com ímpetos de violência e percepções do grotesco – afinal, lembra Bataille (Ibid., p. 54), “os condutos sexuais evacuam dejeções”. Esses aspectos escatológicos da sexualidade estão ligados às forças de destruição, dissolução e decomposição da própria natureza e, portanto, também seriam capazes de gerar desejo. Todos esses impulsos elencados por Bataille não teriam sido totalmente neutralizados pelas proibições da civilização: “o interdito fundado pelo medo não nos propõe somente observá-lo. [...] Derrubar uma barreira é, em si, algo de atraente.” (Ibid., p. 44). A transgressão seria, portanto, a consequência inevitável do interdito, e apareceria com a liberação da violência existente na natureza, sobre a qual o homem não consegue impor barreiras. Assim, os atos sexuais, bem como os cruéis e agressivos, alternariam entre serem repulsivos e atraentes, conforme tomados como objetos de interdição ou de transgressão. Camille Paglia (1992) é outra autora que analisa as relações entre sexo, natureza, morte e literatura. Em Personas sexuais, a pesquisadora, ao buscar compreender e explicar de quais maneiras a sexualidade foi concebida por diferentes artistas em épocas diversas, entende o sexo e a natureza como as duas grandes forças pagãs que persistem na arte, e que nunca foram completamente anuladas pelo cristianismo. Segundo Paglia, a estrutura social foi forjada pelo homem para que ele pudesse se defender da potência da natureza, amenizando assim a subordinação humana às forças naturais. A civilização seria, portanto, uma criação do homem para combater o domínio imposto, externamente, pela natureza, e internamente, pelo sexo – o ponto de contato mais direto 108

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com nossa animalidade inerente. Sem ela, seríamos lançados de volta ao estado de medo e desespero dos tempos primordiais. O coito seria, portanto, exatamente a ligação máxima entre os seres humanos e a natureza, a partir do qual os instintos primitivos e dionisíacos prevalecem em detrimento da razão apolínea. No ato sexual, não se dariam escolhas aos homens: suas ilusões de livre-arbítrio seriam rapidamente destruídas pelo fascismo da natureza. O erotismo é assim colocado como “um reino tocaiado por fantasmas – é o lugar dos confins, ao mesmo tempo amaldiçoado e encantado.” (Paglia, 1992, p. 15). O homem nutriria um verdadeiro temor em relação à mulher, símbolo maior dessa natureza arrebatadora e violenta. Paglia defende que o corpo feminino – cultuado constantemente em ritos pagãos – seria, em virtude da invisibilidade do útero, um mistério aos desejos de objetividade da civilização apolínea. Esse mundo organizado, por sua vez, estaria em incompatibilidade com a ambiguidade e com a limitação do conhecimento, entendidas desde cedo pelas mulheres. A femme fatale – a mulher que não busca controlar seus desejos voluptuosos – apareceria sempre proporcionalmente à opressão empreendida pelo Ocidente contra a natureza, como um “retorno do reprimido” (Ibid., p. 24). Ela, tal como representante da natureza – esse “ninho de vespas infectado de agressão e matança” (Ibid., p. 38) – pode adquirir contornos assustadores. Para proteção contra esses elementos do sexo e da natureza, buscou-se sistematizar e organizar a vida, e a arte – sobretudo a clássica – é uma das formas dessa ordenação. Com efeito, “a arte é a forma que luta para despertar do pesadelo da natureza” (Ibid., p. 47). Ela ficaria encarregada de transformar em prazer toda dor e crueldade às quais o mundo natural expõe o homem. Além disso, o caráter ficcional intensificaria o prazer, ao mesmo tempo em que não expõe o leitor ou o espectador à violência real. A arte carregaria todas as tensões existentes entre o homem e a natureza. Como exemplo disso, Camille Paglia demonstra que “há erotismo latente em toda a tradição do ‘romance de terror’, que começou no gótico de fins do século XVIII e terminou no moderno cinema de horror.” (Ibid., p. 252). Os livros e filmes desse gênero liberariam “o mal e a barbárie da natureza” (Ibid.), aquilo que estava reprimido pelas regras e convenções da sociedade. Sobre tais opressões, a autora lembra ainda que as limitações, as proibições e os interditos Pesadelos dionisíacos

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costumam, normalmente, aumentar o prazer que se experimenta em sua apreciação. Citando o já mencionado Três ensaios sobre sexualidade, de Freud, Paglia aponta para a excitação presente em situações assustadoras, e conclui que haveria uma relação entre medo e prazer orgásmico. A despeito das especificidades de suas reflexões, Sade, Freud, Bataille e Paglia veem uma clara relação entre o medo e a sexualidade, e constituem um bom recorte na tradição teórica sobre o tema. Essa associação também é percebida por Stephen King, o mais bem sucedido escritor contemporâneo de horror. Para ele, a ficção de horror se baseia em um trabalho de “encontrar pontos vulneráveis e aí aplicar a força” (KING, 2012, p. 108), dentre os quais se destacariam a sexualidade e o medo humano da morte. A sociedade atual, dominada por excessivas preocupações relacionadas ao físico, à beleza e à virilidade, teria tornado o sexo uma temática sensível a ser explorada naturalmente nesse gênero. Outro importante escritor contemporâneo de horror, o inglês Clive Barker, também observa, em suas obras e em suas reflexões críticas, a íntima relação entre sexo e medo. O autor aponta como característica da atividade sexual a perda do controle corporal e emocional, que aproximaria o ser humano, ainda que por alguns instantes, da morte:

A familiaridade nos faz perder o foco em o quão subversivo é o sexo. Ele chega em nossas vidas e demole nossa percepção normal de nós mesmos. Ele nos faz perceber que podemos perder o controle de nossos corpos (...). A sensação de perda que se sucede ao orgasmo, ou, melhor dizendo, a sensação de evasão ou expulsão, parece intimamente ligada às preocupações do horror, que são, muito frequentemente, relacionadas à transformação do corpo; à proximidade da morte mas com a possibilidade de talvez evitá-la. § O sexo é uma pequena loucura – e com que frequência o horror é sobre a loucura? O sexo é uma pequena morte – com que frequência o horror é sobre a morte? O sexo é sobre o corpo – com que frequência o horror é sobre o corpo? (Clive Barker in Winter, 1985, p. 216. Tradução nossa).

Nos modelos de pensamento abordados, é possível perceber o entendimento de que a natureza – e, por conseguinte, sua manifestação mais intensa no homem, o desejo sexual – é uma fonte de violência e de horror. Os pensadores destacam também a maneira pela qual esse substrato dionisíaco, que persiste na vida e nas artes, é capaz de aterrorizar o homem, dando ensejo à criação de uma série de mecanismos sociais de defesa: os tabus, os interditos, as proibições. Os 110

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imperiosos e constantes desejos de transgressão aparecem, porém, como a prova da força dionisíaca e assustadora da natureza. As relações entre sexo, medo e natureza fazem-se presentes na narrativa ficcional brasileira especialmente entre meados do século XIX e as primeiras décadas do XX. Durante esse período, inúmeras foram as obras que tematizaram o desejo sexual associado a imagens simultaneamente exuberantes e aterradoras da natureza. Essa ambiguidade também se refletiu na construção de personagens frequentemente descritas em estado de crise, divididas entre sentimentos de atração e de repulsa em relação aos objetos de desejo sexual. Para ilustrar alguns dos modos pelos quais horror, sexo e natureza são relacionados em nossa literatura analisaremos, de maneira breve, quatro obras: Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo, “Noivados trágicos” (1898), de Medeiros e Albuquerque, “Dentro da noite” (1910), de João do Rio e “O espelho” (1938), de Gastão Cruls. Prazeres da noite Noite na taverna, livro de contos escrito por Álvares de Azevedo (1831-1852) e publicado postumamente em 1855, foi uma das primeiras obras de nossa literatura a apresentar enredos em que as transgressões sexuais exerciam um papel fundamental. Em quase todos os contos o sexo se faz presente, seja nas constantes referências a orgias empreendidas pelas personagens, seja ligado a situações associadas ao macabro ou ao fantástico. A obra teve uma recepção crítica modesta à época, não por conta dos temas polêmicos que abordava – adultério, necrofilia, antropofagia, incesto e fratricídio –, mas pela ausência de “cor local” em seus espaços narrativos. Malgrado o pouco interesse que despertou na crítica tradicional, até pelo menos os anos 30 do século XX, o livro de Azevedo foi – e ainda é – uma das obras mais reeditadas do nosso romantismo. Em Noite na taverna, o sexo é em geral acompanhado ou sucedido por episódios de violência, como estupros e assassinatos. Algumas leituras da obra têm ressaltado como a sexualidade é encarada, frequentemente, sob um viés moralista: A despeito de todas as orgias e depravações (ou talvez exatamente por causa delas), Noite na taverna não deixa de revelar um moralismo subjacente. Esse fundo moral transparece também na linguagem do texto, que continuamente repete expressões como “mulher perdida”, “mulher vendida”, “amante venal”, “infâmia”,

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“profanação”, “devassidão”, “macilento”, que deixam entrever a postura convencional e austera, que vê a liberdade sexual como algo impuro e merecedor de reprovação (Volobuef, 2005, p. 142).

A reprovação à liberdade do sexo, tido como impuro, redunda diversas vezes em situações que culminam em morte. Em “Solfieri” e “Johann”, os dois contos com aspectos sexuais mais explícitos do livro, o destino de algumas das personagens ligadas à situação erótica é, inevitavelmente, a morte. Além disso, ocorre nessas narrativas uma exploração sistemática de espaços característicos da estética gótica, como cemitérios, ruas vazias, templos obscuros e tavernas sombrias, que ajudam a criar e a realçar o aspecto decadente e impuro dos atos praticados. Em “Solfieri”, a personagem que dá nome ao conto narra que, certa feita, em Roma, após participar de uma orgia, andava pelas ruas embriagado até chegar a um templo escuro, onde se deparou com o corpo de uma jovem em um caixão entreaberto. O narrador acredita que a morta é a mesma bela mulher que encontrara, anos antes, e cujos passos havia seguido então até um cemitério. Acometido por um desejo intenso, ele decide fazer sexo com o que supunha ser o cadáver da moça: Tomei-a no colo. Peguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe à noiva. Era uma forma puríssima. Meus sonhos nunca me tinham evocado uma estátua tão perfeita. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso – cevei em perdição aquela vigília. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão do meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. [...] Não era já a morte – era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo algo de horrível. [...] Pude a custo soltarme daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou... (Azevedo, 2000, p. 69. Grifos nossos).

Ainda que o desenrolar da trama revele que a mulher não estava morta, mas era vítima de catalepsia, o caráter necrófilo da cena não se desfaz. Na continuação da história, após a efetiva morte da jovem, Solfieri chama um escultor para tirar um molde de cera do corpo e esculpir uma estátua da mulher, como se ela estivesse apenas dormindo. Cava, ele próprio, embaixo de sua cama, um túmulo onde enterra o corpo. Nas muitas leituras possíveis do conto, avulta a tensão entre sexo 112

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e morte. Nesse sentido, convém observar a relação estabelecida entre mulher e estátua (“uma forma puríssima”, “estátua tão perfeita” e “palidez de âmbar que lustra os mármores antigos”), um esforço para sublimar os instintos sexuais, dionisíacos, em uma forma organizada e racional, apolínea. O tema retorna em “Johann”, conto em que há um caso de incesto – ainda que não consciente – seguido de fratricídio. Ao descobrir que fizera sexo com a própria irmã, Johann narra que ela “tinha a face fria como o mármore. Os seios nus e virgens estavam parados e gélidos como os de uma estátua...” (Ibid., p. 605). As imagens evocadas ligadas à sensualidade do corpo da moça e ao ato sexual são, novamente, de estátua, de imobilidade e de gelidez. Em Noite na taverna, portanto, observa-se que, para escapar das forças naturais e turbulentas do sexo, tenta-se organizar racionalmente os instintos e dar formas idealizadas e estáveis a eles. Nas imagens do objeto sexual como uma estátua ou como um cadáver, encontra-se, sobretudo, o ímpeto de dominar inteiramente o corpo do outro e submetê-lo, sem resistências, aos próprios desejos. Nesse sentido, estamos novamente diante da filosofia do perverso Marquês. Mesmo a censura moral que parece enfeixar as narrativas do livro nos remete a Sade, quer julguemos cínica ou não sua defesa da moralidade de suas obras:

Devo, enfim, responder à censura que me fizeram, quando surgiu Aline e Valcour. Meus pincéis, disseram, são fortes demais: empresto ao vício de traços demasiado odiosos. Querem saber a razão? Não quero que se ame o vício; não tenho, como Crébillon e Dorat, o perigoso projeto de fazer com que as mulheres gostem dos personagens que as enganam; quero, ao contrário, que os detestem. É o único meio que pode impedi-las de se tornarem vítimas e, para ter êxito nisso, mostrei aqueles meus heróis que seguem a carreira do vício de um modo tão assustador, que certamente não inspirarão nem pena, nem amor. Com isso, ouso dizer, torno-me mais moral do que aqueles que se permitiram embelezá-los [...] Nunca, repito, nunca pintarei o crime senão com as cores do inferno; quero que o vejam a nu, que o temam, que o detestem, e não conheço outro modo de fazê-lo senão mostrando-o com todo horror que o caracteriza. (Sade, 2002, p. 55-56).

Tempestades de luxúria Outro bom exemplo da ligação entre sexo e medo é o conto “Noivados trágicos”, de Medeiros e Albuquerque (1867-1934), publicado em 1898 pela editora Garnier na coletânea Mãe Tapuia. Nele a Pesadelos dionisíacos

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natureza desempenha papel fundamental ao influenciar o comportamento das personagens, criando uma atmosfera de horror e de volúpia, além de demonstrar a submissão do homem aos seus instintos. Tributário do naturalismo, o texto associa constantemente o desejo sexual à degeneração moral e psicológica, apontando a hereditariedade e a raça como fatores determinantes desses desvios. A narração se inicia com a ida de Leonor e Augusto, recémcasados, a um hospício, para visitarem a mãe e a irmã da mulher – a primeira é descrita como melancólica e hipocondríaca; a segunda está internada em virtude de seus impulsos sexuais intensos e incontroláveis, podendo ser classificada como uma ninfomaníaca. A descrição física e comportamental da irmã de Leonor é bastante eloquente: [...] a irmã, alta, clara, de cabelos muito negros, mas de uma magreza de esqueleto, onde só os grandes olhos pretos, ora languidos, ora de um brilho estranho, exprimiam as alternativas do abatimento e excitação da loucura erótica, que a consumia. [...] Sentia-se nela o frêmito incessante de um desejo de volúpias não sabidas. Cansada, extenuada, quase moribunda – mas nunca saciada! Não tinha gestos obscenos, frases lascivas. Era da sua pose lânguida, dos seus meneios macabros de esqueleto lúbrico, e sobretudo de seu formoso olhar, que se desprendia aquele apetite insaciável de luxúria... Parecia viver num delíquio de amor... (Albuquerque, s.d., p. 9. Grifos nossos).

A personagem, que sequer é nomeada pelo narrador, é apresentada através de um conjunto de adjetivos que a colocam como alguém fora do mundo dos vivos (“magreza de esqueleto”, “quase moribunda”, “meneios macabros de esqueleto lúbrico”). Ao viver apenas para o sexo, parecendo abandonar as outras atividades de uma pessoa viva, ela é mental e fisicamente degradada pelo desejo sexual (“magreza”, “cansada”, “extenuada”, “abatimento”, “excitação da loucura erótica”, “delíquio de amor”). Além disso, ainda que não tenha um comportamento diretamente obsceno, ela assusta por seus olhares e por seus movimentos lúbricos, impregnada por uma atmosfera misteriosa. Trata-se, portanto, de uma femme fatale ainda mais perigosa por ser incapaz de dominar seus instintos naturais. Essa dimensão assustadora da irmã é ainda mais explorada no encontro com Augusto. Ao ver o cunhado, descrito como viril e belo, a personagem entrou em estado de êxtase e “devorou-o com os olhos” (Ibid., p. 10). O comportamento da doente é descrito como perturbador 114

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e repulsivo – “o moço sentia-se perturbado com a fixidez d’aquele olhar: parecia uma ventosa, um tentáculo de polvo colado à sua epiderme, a gozá-lo, a sugá-lo...” (Ibid.) – mas não impede que seja simultaneamente erótico – afinal, na volta para casa, o jovem põe-se a comparar a irmã louca com Leonor e a ver nesta, pelas semelhanças físicas, a outra. Tanto que o casal, assim que chega em casa, é impelido ao sexo. No início do coito, porém, Augusto repentinamente cai morto por cima de Leonor: Precisou tirar de sobre si, com dificuldade, aquele cadáver pesado. Ele caiu na cama de costas, numa pose obscena. Os olhos estavam arregalados, a boca semiaberta, com a ponta da língua meio saída num ricto de luxúria. – Morto! Morto! (Ibid., p. 14)

Traumatizada, Leonor passa a evitar e temer qualquer contato físico e sexual com outro homem. Ela se torna “taciturna e sombria” (Ibid., p. 15), assombrada pela cena da morte do marido:

Lembrava-se da dificuldade que tivera para retirá-lo de sobre o seu corpo, furtando-se ao enlace dele; recordava-se da boca entreaberta, vendo-se entre os dentes a ponta da língua, numa expressão grosseira de profunda sensualidade — sensualidade ao mesmo tempo trágica e ridícula, posta assim sobre a face de um cadáver; pensava no aspecto do corpo, caído sobre a cama, descomposto, na atitude indecorosa de um ébrio em fim de orgia... (Ibid., p. 15-16).

Com o tempo, Leonor passa a ser obsedada pela visão. “Não podia ver um homem qualquer, moço ou velho, sem que imediatamente o não imaginasse nas mesmas atitudes do morto.” (Ibid., p. 16). Dá-se, pois, uma clara ambiguidade entre as atrações da morte e do sexo, pois a imagem do marido morto é, afinal, concomitantemente mórbida e erótica. Ao olhar para outros homens, Leonor imaginava-os “no paroxismo de gozo, que o marido revelava no esgar lúbrico em que a morte o abatera” (Ibid.). O ápice desse distúrbio se dá quando, certa feita, ela rezava e ao erguer “os olhos para o crucifixo, viu o Cristo, o Cristo, macerado e sangrento, com a face triste e lívida, desprender-se da cruz e tomar em sua imaginação o mesmo ricto lascivo, a mesma atitude libertina e cínica!...” (Ibid., p. 17). A imbricação entre sexo e morte na mente da personagem intensifica-se quando Leonor, depois de muito tempo vivendo isolada de todos e com medo de se tornar louca como a mãe ou ninfomaníaca como a irmã, começa a vislumbrar no “amor físico e brutal” (Ibid., p. Pesadelos dionisíacos

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18) uma cura para aquele estado. No entanto, ela passa a ouvir uma voz dentro si, avisando-lhe do que ocorreria caso cedesse aos desejos: “Desta vez morrerás tu!” (Ibid.). A partir daí, o “Homem, que era então para ela o provocador irritante das suas visões eróticas passou a ser o perigo iminente, o assassino sempre possível.” (Ibid., p. 19). A personagem, reprimida, está certa de que não sobreviveria a qualquer relação sexual – “o simples gozo lascivo e brutal, que todos os animais se dão sem escrúpulo, era para ela o fruto proibido, a porta segura para a Morte irremissível” (Ibid., p. 21). Com medo de ser internada como louca, decide ir para uma propriedade no interior, onde acredita que estaria a salvo dos horrores do hospício, da ação dos homens e dos próprios desejos. Tal expectativa é frustrada, pois, nessa parte da narração, a natureza assume extrema importância. O narrador primeiro pontua, com recursos estilísticos característicos da narrativa de horror, a influência da natureza sobre a mente dos desvairados: Em certas ocasiões – épocas de grandes calores ou prenúncio de tempestades – um contagio de furor espalhava-se pelo Hospício. Os loucos das casas fortes, os que sofriam de demências impulsivas e ferozes, atiravam-se contra as grades, sacudindo-as em uma epilepsia terrível, babando, uivando... E os seus gritos pavorosos eram como um sopro de tempestade naqueles cérebros tresvariados. Parecia que as ideias delirantes de todos eles se agitavam ao seu perpassar, como se agitam ao impulso dos vendavais os torvelinhos frenéticos de folhas secas. E então aquela colmeia de insânia, por um contagio misterioso, vibrava de alto a baixo. § [...] Os que vivem perseguidos por inimigos invisíveis, esgrimiam contra o ar os punhos convulsos, escondiam-se aterrorizados pelos cantos, tapando os ouvidos, pedindo misericórdia em dolorosos gritos de terror... [...] E sobre o imenso burburinho, o confuso enxamear agitado de tanta loucura vã, passavam, de momento a momento, cortando o espaço, os ululos trágicos dos furiosos, amarrados como animais terríveis, enjaulados como feras... Nas noites de ventania, o mar, na praia que avizinha o Hospício, misturava os seus bramidos aos gritos roucos dos doidos, como os de uma matilha de cães que uivasse para o céu desolado, num presságio sinistro de não sabidas desgraças. Um calafrio de horror vinha daquela casa fechada e triste... (Ibid., p. 23-24).

O desfecho do conto se dará justamente em um dia de tempestade, quando a “vaga da loucura crescente parecia então agitar-se mais forte” (Ibid., p. 25) em Leonor. A influência externa da natureza funde-se à interna, pois a ameaça da hereditariedade, da loucura de 116

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origem genética, imiscui-se na imagem do forte temporal, na dúvida angustiada da protagonista: “viriam pelo espaço, atravessando não sabidos caminhos, as vibrações mais doentias da insânia materna, dos delírios da irmã?” (Ibid., p. 25-26). Enquanto Leonor passeava pelo terreiro da fazenda, nuvens grossas acumulavam-se, relâmpagos cada vez mais frequentes surgiam no céu e ventos fortes passavam por ela, de tal modo que sentia-se a existência de “um crepitar de inferno dentro daquela cabeça divina” (Ibid., p. 26-27). Com passos de sonâmbula, ela se dirige até uma floresta próxima à casa, onde encontra um ex-escravo velho e robusto.

Leonor teve uma resolução louca. Sem uma palavra, decidida e brusca, avançou para o negro, fê-lo parar e com movimentos frenéticos abriu, desabotoando, desatando, rasgando, as roupas de que estava vestida. Num instante ficou aos olhos espantados do negro quase inteiramente nua. Viam-se-lhe os seios firmes, redondos, o ventre liso, as pernas de estátua. § Com o mesmo, com maior frenesi atirou-se a despir o preto. Era já agora um furor alucinado: puxava, rasgava as calças dele. A fivela de uma correia que as prendia à cintura feriu-lhe as mãos: ela não sentiu... (Ibid., p. 28-29).

A descrição do ex-escravo, baseada nas doutrinas racistas tão recorrentes ao naturalismo brasileiro da época, reforça a ligação entre sexo e bestialidade: O negro, um momento espantado, sentiu diante daquele corpo nu, despertarem-lhe inconsciente, involuntariamente energias lúbricas de sátiro: todo o calor sensual da sua raça... § Num momento, o corpo divino de Leonor tinha sobre si aquele mono asqueroso — mais asqueroso ainda pelo furor de lubricidade bestial que o animava... (Ibid., p. 29).

Ao final do ato sexual, o homem fica aterrorizado ao descobrir que Leonor está morta. Também ele fora vítima da loucura arrebatadora do sexo: Um pavor começava a invadi-lo. Tomou-lhe a cabeça: tinha uma expressão tal que ninguém diria se era gozo, se era dor; mas os olhos muito abertos estavam parados, fixos... Ele sustentava-a com a mão esquerda por baixo da cabeça. Com a outra, duas vezes quis ver se o coração batia, mas não teve coragem: aquele gorila repugnante que, tomado de loucura, um momento antes se cevara em corpo tão divino, tinha agora, passada a febre da luxúria, um respeito religioso, um instintivo recuo de medo à simples ideia de tocar na carne branca e pura daquela indefesa mulher! (Ibid., p. 30-31).

A floresta passa, então, a ser abalada por trovões e ventos que agitam as roupas de Leonor. Um “sussurro misterioso” vem dos galhos, Pesadelos dionisíacos

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folhas pousam no corpo da “prostituta impudica”, no “cadáver obsceno”. O cenário espectral que encerra o conto usa as tintas do horror sobrenatural para intensificar a associação direta entre sexo, morte e natureza da narrativa. O sadismo como vício Publicado em livro homônimo no ano de 1910 pelo escritor e jornalista conhecido como João do Rio (1881-1921), “Dentro da noite” desenrola-se em torno da perversão sexual de seu protagonista, Rodolfo: espetar mulheres com agulhas. Esse desejo torna-se progressivamente uma obsessão, conduzindo-o a um estado de desvario e degradação. A estrutura do conto é uma narrativa em moldura. O primeiro narrador finge dormir em um trem, enquanto ouve Rodolfo, o protagonista e narrador da narrativa emoldurada, contar sua desgraça a um amigo, Justino, no mesmo vagão. O leitor é convidado a assumir um papel de voyeur, em posição análoga à do primeiro narrador que espia a conversa alheia. Rodolfo, antes estimado como “o mais elegante artista dessa terra” (RIO, 2002, p. 17), alguém plenamente adaptado aos códigos culturais da sociedade, descreve-se como “um homem que se sente doido” (Ibid., p. 18), incapaz de resistir a seu vício: Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado. [...] Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise.

O protagonista oscila em chamar seu mal de “loucura”, “tara” ou “vício”. Suas crises são por ele comparadas às que acompanham a abstinência da morfina ou do ópio. E a irrupção desse transtorno é provocada pelos braços de sua noiva, Clotilde, que aparecera, em um baile, “decotada, com os braços nus.” (Ibid., p. 19). Os braços são o principal fetiche da personagem. Eles despertam nele uma ânsia incontrolável e paradoxal, em que o desejo erótico funde-se com o ímpeto da violência física:

Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-

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los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! (Ibid.).

Rodolfo consegue controlar, a princípio, sua “nevrose”, mas o desejo perverso vai se intensificando e tomando o protagonista como uma obsessão:

O desejo, porém ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetálos, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cozê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir. (Ibid.).

O protagonista, por fim, revela seu desejo à noiva, que, submissa, aquiesce. A conotação sexual do ato é explicita:

Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “Mau!” (Ibid., p. 20-21).

No prazer experimentado por Rodolfo, a dor e o sofrimento de Clotilde exercem papel fundamental. Ele compraz-se intensamente em saber o quanto doeram as alfinetadas em Clotilde e com a submissão da moça. Então depois, Justino, sabes? Foi todo o dia. Não lhe via a carne, mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “Fez...” Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!... (Ibid., p. 22).

Quando sua perversão é finalmente descoberta e condenada pela família da noiva, Rodolfo sai em busca de prostitutas pela cidade. Ele, porém, não encontra, nem nos lugares mais obscuros, a aceitação do seu prazer. Mesmo aquelas com perfis masoquistas, que se submetiam a instintos sádicos de seus amantes, o desprezavam: “Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de Pesadelos dionisíacos

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nojo assustado do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso.” (Ibid., p. 23-24). Resta-lhe vivenciar seu desejo a partir de vítimas fortuitas, escolhidas ao acaso na vastidão da cidade e com a proteção do anonimato. Ao fim do conto, o primeiro narrador vê o protagonista se despedir de seu interlocutor e mudar de vagão, em perseguição a uma jovem. Rodolfo tornara-se um predador noturno, vagando pela noite da cidade em busca de vítimas ocasionais. O conto de João do Rio, se por um lado constrói uma personagem deplorável, uma monstruosidade moral nos moldes do gótico tardio finissecular e do decadentismo, por outro parece tratar a perversão do protagonista como uma das múltiplas formas idiossincráticas do desejo humano. Justino, após ouvir o relato de Rodolfo, dirá: – Caso muito interessante, Rodolfo. Não ha dúvida que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marques de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-Rippercivilizado, contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes. (Ibid., p. 21).

O conselho de Justino – “Não te assustes.” – pouco efeito tem sobre o transtornado protagonista. É ao leitor que ele se dirige. O tom blasé da passagem chama atenção para o quanto há de normalidade na anormalidade de Rodolfo. Sua “degeneração” faz dele pouco mais do que outro espécime fugitivo da galeria do Divino Marquês, vagando pelas ruas da cidade do Rio. Reflexos pagãos Gastão Cruls (1888-1959), médico e escritor carioca, hoje praticamente desconhecido do grande público e pouco contemplado pela crítica, foi o autor de alguns contos que tematizaram a tensão entre sexo e horror. Dentre eles, poderíamos destacar “Noite brancas” (1920), a história de um jovem visitado à noite por uma misteriosa mulher, que acaba se revelando portadora de uma doença contagiosa. Além desse, temos “Ao embalo da rede” (1923), em que o protagonista descobre que se excita sexualmente na presença de cadáveres. É, contudo, em “O espelho”, publicado no livro História puxa história (1938), 120

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que Cruls obtém o melhor resultado, ao criar uma narrativa que funde genuinamente horror e sexo. O narrador-protagonista de “O espelho” inicia o relato lembrando do aviso que dera à esposa, Isa: “Não compre esse espelho. Isso não é móvel para casa de gente séria” (Cruls, 1951, p. 239). O objeto que dá nome ao conto fora adquirido em um leilão, no qual venderam-se diversos outros pertences de uma famosa cortesã, uma das mulheres “mais mundanas do seu tempo” (Ibid., p. 340), conhecida por seus “amores migratórios” (Ibid., p. 341): Dançarina de café-concerto, concubina de políticos e argentários, por ela ardera, trinta anos antes, a fina flor da nossa mocidade. Morena, de grandes olhos pretos e rasgados, dizia-se turca (o mais certo é que fosse argeliana), e como turca exibia-se no palco, quase nua, o corpo admirável flamejando sob véus transpa- rentes, a desengonçar-se numa dança de ventre. (Ibid., p. 340).

A ideia de que o espelho promoveria a desestruturação do ambiente doméstico organizado e apolíneo, a partir de suas origens profanas e dionisíacas, é constante durante todo o conto. O objeto destoa dos outros móveis e cômodos da casa e causa a repulsa inicial do narrador por seus detalhes em bronze: figuras de sátiros e de ninfas, que “impavam de luxúria, desbragavam-se em posturas lascivas” (Ibid.). Essas imagens pagãs ressaltam, ainda mais, o aspecto sexual do espelho e seu impacto na casa: E, no meio de tudo isso, o tal espelho, o fatídico espelho por que Isa se encantara e que lá também ficava no quarto de dormir, bem defronte à cama. Apenas ali, naquele ambiente cálido e voluptuoso, – o ninho de uma verdadeira cortesã – cercado de coxins macios, telas ousadas e uma ou outra estatueta de nu esplendoroso, a sua presença não chocava. Bem outro, porém, havia de ser o aspecto daquela peça, aparatosa e impudica, quando figurasse lá em casa, a contrastar com a linha de serenidade e apurado bom-gosto de um interior familiar. (Ibid., p. 341. Grifos nossos).

Desde a sua chegada, o espelho, por suas dimensões, “acabou por tomar o lugar de quase todos os outros móveis” (Ibid., p. 339) do quarto de dormir do casal. Além disso, o jogo de reflexos, permitido por seu formato de tríptico, contribuiu para a completa alteração da atmosfera, que se tornou, ao mesmo tempo, de luxúria e de degradação. Há, portanto, uma marcação forte de repulsa ao sexo por meio dessa associação entre sexualidade e definhamento: Pesadelos dionisíacos

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O efeito era deveras surpreendente. Criava-se uma atmosfera de sonho e fantasmagoria. Víamo-nos com os rostos muito pálidos, quase com um livor de morte, e onde os traços mais marcantes, contrastando com manchas de sombra, se recortavam em linhas nítidas. Apenas, naquelas máscaras hirtas, naquelas faces descaveiradas, dentro das órbitas fundas, os olhos chamejavam fulgor estranho. § Pinta de insanidade? Esto de luxúria? E outra vez os nossos lábios se procuraram, ardendo de febre, mordiscados de desejos. (Ibid., p. 342. Grifos nossos).

No decorrer do conto, o narrador faz ver que o espelho passa a não apenas criar ilusões e fantasmagorias no ambiente, mas também altera o comportamento dos personagens:

Hoje estou convencido de que aquele móvel ressumava sensualidade, vaporava concupiscência, – um hálito quente de excitação erótica, que nos urtigava o corpo de tentações diabólicas e enchia o cérebro de visões incandescentes. Dir-se-ia que daquelas folhas de vidro estanhado se projetavam sobre a nossa cama todas as cenas de abominação e luxúria, todos os vícios e torpitudes que nelas se haviam fixado durante o tempo em que tinham estado a serviço da cortesã. Não só Isa mas a mim também, contagiara o mesmo ardor da carne eternamente insatisfeita, dos lábios que não se dessedentam, dos sentidos que não se atreguam. O sangue que nos raivava nas veias pedia volúpias novas, requintes nunca dantes experimentados [...] (Ibid., p. 343).

Como um autêntico artefato mágico, o espelho traz, após ter propiciado benefícios, uma série de efeitos colaterais. O narrador, inicialmente feliz ao aproveitar essas mudanças na vida sexual do casal, começa a temer que não conseguirá mais satisfazer sua esposa. Ele credita o comportamento insaciável da mulher às imagens que, supostamente, o espelho projetaria para ela. Passa, então, a ser tomado por um ciúme doentio em relação a essas imagens:

Mas cedo também me dei conta que àquele despertar dos sentidos surgira nela uma verdadeira bacante, abrasada de desejos, ávida de prazeres, e perfeitamente iniciada em todos os segredos da volúpia. E era isso o que eu não explicava, a não ser por influência do espelho, o maldito espelho, que viera conspurcar o nosso quarto. [...] § [...] nem sempre ela encontrava em mim o macho ardente, o amante impetuoso das primeiras saturnais. Daí pequenas rusgas, dias de ressentimento mútuo, até as grandes discussões que, girando em torno do amaldiçoado espelho e durante as quais não raro ouvi as mais graves ameaças, foram o ponto de partida das minhas primeiras dúvidas, dos meus

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primeiros temores acerca do seu procedimento. (Ibid., p. 343-44. Grifos nossos).

A situação agrava-se quando o narrador-protagonista começa a notar outros homens refletidos em seu lugar no espelho, imitando-lhe os gestos fielmente, mas com tipos físicos totalmente distintos: Uma noite, porém, a noite da minha desgraça, caiu-me a venda dos olhos. O espelho foi pilhado em flagrante e não pôde mais negacear comigo. Vi, então, todo o ludíbrio de que vinha sendo vítima. Como Isa me enganara durante aquele tempo todo! As carícias que ela me dava, as ternuras com que me envolvia, eram dispensadas a outros, os muitos outros que tinham passado pelos braços da cortesã. Não era eu que lhe cevava a febre dos sentidos, o apetite da carne, os rescaldos da luxúria, mas a súcia dos machos dissolutos que rebolcavam na minha cama como se estivessem num quarto de bordel. (Ibid., p. 346).

Essa percepção espectral ganha veracidade, pelo menos aos olhos do narrador, quando Isa faz comentários sobre uma tatuagem que ele próprio não possuía no corpo. E a confirmação – queira o leitor crer no poder mágico do espelho ou na loucura do narrador – se dá no epílogo da história, quando o espelho do centro do tríptico se quebra, retendo na superfície um homem, descrito quase como monstro:

As duas faces laterais, que nada haviam sofrido, reproduziam-me a imagem com nitidez. Era bem o meu rosto que ali estava, de tez macilenta, traços longos e puxados. E bem o meu corpo escanifrado, de costelas à mostra e pelo ralo. No centro, porém, desafiava-me a figura do outro. Digo do outro, porque nada tinha de mim, a não ser os gestos. Um animalaço bem acabou- çado, de gorja taurina e peito ancho. E lanzudo como um fauno. A fenda do espelho cortava-lhe o rosto transversalmente e esse gilvaz arrepanhava-lhe a boca num riso sardônico com que parecia zombar de mim. § E tinha do que zombar. Que figura miserável fazia eu diante daquele rival viripotente! (Ibid., p. 347).

Diante desse duplo, desse “outro” bestial que o espelho reflete – ou que sua insegurança projeta – o narrador descontrola-se:

Com frenesi, pus-me a espatifar o espelho. A princípio, metendolhe os pés e jogando sobre ele tudo o que me estava mais à mão. Depois, até Isa fui arrancar da cama, com forças que nunca supusera ter (talvez as do outro), para arremessa-la violentamente de encontro ao macho nauseabundo. § E aquele sangue, que salpicava tudo, de onde viria? Acaso o infame, ao ser assim estraçalhado, se esvaía por todas as veias? Quem sabe lá? Mas vinha também de mim, já de pés e mãos encarniçados. E ainda de

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Isa, sobre cujo corpo eu caíra, mundo de um estilhaço pontiagudo, e no qual ia abrindo, com volúpia, profundos e mortais rasgões. (Ibid., p. 347-48. Grifos nossos).

No conto de Cruls vemos como o mundo racional e organizado do protagonista é desestruturado pelo irromper dos impulsos desestabilizadores do sexo. O ambiente doméstico é repentinamente invadido e destruído por figuras pagãs, como bacantes, mênades, sátiros e faunos, que, encarnados em Isa e no narrador, vivem, insaciáveis, apenas para os próprios prazeres. O espelho e a imagem monstruosa que ele reflete podem ser tomadas como uma metáfora nada sutil da vontade apolínea sendo subjugada pelo desejo dionisíaco. * Os contos aqui apresentados ilustram como a potência do sexo, manifestação primária da natureza no homem, foi representada, em nossa literatura, como um estorvo aos valores morais (Noite na Taverna), à razão (“Noivados trágicos”), à organização da sociedade (“Dentro da Noite”) e à família (“O espelho”). Contra a ameaça do sexo – capaz de levar o homem aos estados primordiais de caos e de barbárie, nos quais a violência e o medo imperam – a morte e a destruição aparecem corriqueiramente como soluções, dando forma a uma tradição, já longa e ainda não superada, do vínculo entre sexo, horror e morte na ficção.

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El Far, Alessandra. Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870 - 1924). São Paulo: Cia. das Letras, 2004. Freud, Sigmund. Um Caso de Histeria. Três Ensaios sobre Sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. King, Stephen. Dança macabra: o terror no cinema e na literatura dissecado pelo mestre do gênero. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. Paglia, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Rio, João do. Dentro da noite. São Paulo: Antiqua, 2002. Sade, Marquês de. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 1999. Sade, Marquês de. Notas sobre o romance. In: Os crimes do amor e A arte de escrever ao gosto do público. Porto Alegre: L&PM, 2002. pp. 27-56. Volobuef, Karin. Álvares de Azevedo e a ambiguidade da orgia. Organon (UFRGS), v. 38/39, pp. 113-131, 2005. Winter, Douglas W. Faces of fear: Encounters with the creators of modern horror. New York; Berkeley Books, 1985.

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O Dao está no torno do oleiro André Bueno*

RESUMO │ No âmbito da arte chinesa, a cerâmica cumpre uma função única: ele conecta uma concepção erudita de estética, própria dos escolares, com o trabalho anônimo do ceramista, que a transforma e a populariza, por meio do refinamento no trabalho com a argila. Nesse breve texto, buscaremos apresentar como as concepções de arte próprias da civilização chinesa difundem-se e atingem uma ampla vulgarização, através das mãos dos artesãos anônimos, que descobriram as fórmulas da porcelana e da cerâmica fina, manifestando os aspectos mais sensíveis da mentalidade artística chinesa. PALAVRAS-CHAVE │ Arte Chinesa; Estética Chinesa; Cerâmica. ABSTRACT │ In the context of Chinese art, the pottery complies an especial function: it connects an erudite conception of aesthetics, from the scholars, with the anonymous work of the potter, which transforms and popularized through the refinement in working with clay. In this brief text, will try to present as the conceptions of art of Chinese civilization diffuse and reach a wide extension, through the hands of anonymous craftsmen, who discovered the formulas of porcelain and fine ceramics, manifesting the most sensitive aspects of Chinese artistic mentality. KEYWORDS │Chinese Art; Chinese Aesthetics; Pottery.

O PENSAR CHINÊS, EM SUA REMOTA ANTIGUIDADE, DESENVOLVEU um sentido próprio de investigação estética, amplamente distinto e singular daquele que conhecemos na cultura ocidental. A visão do mundo material é esmiuçada por uma ciência cujas regras nos são praticamente estranhas – e, no entanto, esta mesma ciência possui uma certa eficácia que têm sido largamente empregada pelos chineses através dos séculos. A esse modo de “ver o mundo”, acopla-se uma noção estética que busca, a todo tempo, despertar a empatia, enfatizando uma “subjetividade aparente”; a beleza de uma peça já está contida em sua matéria-prima, e cabe ao artista trazê-la à vida. Este artista, no entanto, não é mais que um “transformador” de estados, um ator no processo de mutação. Como, então, podemos buscar compreender a arte chinesa? De que forma ela se estrutura? Quais são suas regras? Quem é o artista? Qual a sua função neste pensar tradicional? Neste breve texto, * Mestre em História, UFF, 2002; Doutor em Filosofia, UGF, 2005; Pós-Doutor em História, UNIRIO, 2012. Professor Adjunto da UERJ.

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buscaremos analisar alguns destes aspectos enfatizando um dos elementos emblemáticos da cultura chinesa: jun, o torno do oleiro. A beleza e a subjetividade aparente Desde os primórdios, o pensamento chinês é dominado pela ideia de que há um princípio universal (理Li) que a tudo subjaz e ordena. Este princípio se manifesta pela oposição complementar de yin e yang, os dois estados supremos, que engendram a todo tempo a criação e a desintegração da matéria (氣Qi). À matéria, se opõe o vazio (空 Kong) – e é o vazio que manifesta o espírito (ou ordenação) funcional de um objeto. Disse o pensador 老子Laozi; “queima-se barro para fazer um pote, mas a utilidade de um pote é o vazio” (道德經Daodejing, 11). Ou seja, é deste vazio que surge a utilidade de um pote. O que ele seria se seu espaço estivesse preenchido? Há vazio dentro e fora do pote; logo, pois, é a matéria que atua no vazio, e não o contrário; é o vazio que determina as formas, as silhuetas, pois sem o contraste (a oposição complementar entre ambos) a forma não aparece, não se delineia. Disso poderíamos extrair a falsa ideia de que os chineses acreditavam poder “dominar” a matéria, dando-lhe a aparência que achavam mais conveniente. Seria um engano. Por entender que há uma forma mais “adequada” de ordenar a matéria, os chineses desenvolveram o conceito de que o princípio daquilo que será já está contido, na verdade, na substância bruta. Não se pode, por exemplo, lapidar uma pedra sem seguir seus veios; não se pode fazer um pote de barro ou um vaso de bronze se não conhecermos o ritmo dos materiais, sua consistência, sua forma de agir. Quando Qi se materializa na forma de um metal, como ele responde ao fogo e a água? Quando Qi surge como barro, por que não podemos esculpi-lo como a madeira? Para toda e qualquer substância, pois, há um método; e para cada peça, há um caminho a ser trilhado. Nenhuma peça é igual a outra. Por mais parecidas que sejam, não podemos conformá-las com perfeição. Eis porque os chineses veem aí, em tudo, o princípio antagônico de yin e yang. Existem padrões para se trabalhar a matéria e, no entanto, nunca o resultado será igual; existem regras imutáveis, mas estas regras se adequam ao que é mutável; assim sendo, o artista é aquele que emprega toda a sua capacidade em melhor manifestar o que está contido na matéria-prima, e descobrir o princípio, o espírito da peça que está escondido. É o que determina, pois, esta estrutura do pensamento 128

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chinês, marcada pela noção do lapidário - alguém que investiga os veios da pedra, testa suas resistências, e tira partido delas para compreender e acessar-lhe a beleza imanente (Vandermeersch, 1980, t.II). Assim, para o artista chinês, capacitar-se e ter talento significa estudar e desenvolver a acuidade sobre os três estágios sutis da transformação da matéria sobre as quais ele atua: Rong, o aspecto sutil do sopro da vida - invisível por si, mas que vai, pouco a pouco, condensar-se, para formar as névoas, as brumas, as formas visíveis infinitas...é a virtualidade do impulso que se atualiza; Ling: o aspecto dinâmico do espírito vital, que permite a materialização do sopro: a energia que atualiza o virtual e Xing: a forma corporal visível (Joppert, 1998, p.11).

Obtendo a percepção destes três fatores, e dominando a técnica manual, o artista estará pronto, pois, a vislumbrar o 道Dao (Caminho) de manifestação da obra. O Dao é um dos conceitos mais complexos do pensar chinês. Tudo está inserido nele; ele é a via pelo qual interagimos com o ritmo do universo, atuando de maneira harmônica de acordo com as tensões geradas pelo antagonismo 阴yin-阳yang. Descobrir o Dao de uma peça é, pois, acessar o caminho que leva ao próprio Dao íntimo do artista. Quanto mais ele se aproxima da perfeição de suas capacidades, maiores são suas possibilidades de transcender. E, no entanto, se o Dao está em tudo, transcender não é algo que está num plano metafísico ou espiritual superior. Transcender é realizar-se aqui mesmo, agora, no plano natural, interagindo de forma harmônica com o cosmo. Nisto, o espírito chinês distingue-se fundamentalmente do espírito grego: Platão e Aristóteles querem levar à conquista intelectual do perfeito e, conseqüentemente, do universal; ao contrário, o chinês substitui o universal pelo necessário. A prudência é a regra da vida. O homem atinge um estado de prudência ao comparar as suas exigências com as dos outros, tendo em vista corrigir a natureza por forma a criar uma vida mais fácil para si e para todos. O pensamento grego visa ao equilíbrio, portanto à estaticidade; o pensamento chinês visa à eficiência e está todo assente no perturbado mundo humano e no seu contrastante e contraditório desenvolvimento. Ao universal do mundo racionalista contrapõe-se o particular. Segundo a concepção chinesa, a ordem é inerente ao mundo e permeia-o; a prudência e a cultura podem agir de modo que esta ordem permaneça e se conserve, sem sofrer alterações. O pensamento como ato puro,

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como valor supremo, segundo o mundo ocidental, é negado pela sensibilidade chinesa (Pischel, 1963, p.10).

O Dao, portanto, é o caminho pelo qual se manifesta o princípio. Mas que caminho é esse que não se apresenta, e que ao mesmo tempo está presente em tudo? Como afirma Laozi, “O Dao nunca se agita, e por ele tudo se cumpre” (Daodejing, 37). De que forma, pois, podemos compreender esta realidade paradoxal que simultaneamente vivemos e não percebemos? Eis aí onde entra a habilidade do artista, a sua grande 德De (Virtude). A Virtude (De) do artista é o seu talento, ou seja, sua capacidade de expressar; ou como dizia um adágio chinês, “sábio é aquele que torna o óbvio visível para todos”. Já não havia dito o velho mestre Confúcio, sobre o espírito subjacente às coisas e seres: “Nada mais evidente que aquilo que não pode ser visto com os olhos e que não pode ser tocado com as mãos”? (中庸Zhong Yong, 1) Pois ao desenvolver suas habilidades em compreender as leis da mutação da matéria é que o artista percebe como atuar sobre elas, como manipulá-las, como acompanhar seu ritmo de existência. “O Dao lhes dá vida, a Virtude os manifesta; a matéria lhe dá forma, a técnica a completa” (Daodejing, 51). Ele descobre que a perfeita harmonia reside na articulação entre o natural (a matéria-prima) e o artificial (a técnica de trabalho), posto que uma sirva à outra de maneira interdependente: Os que confiam no arco, na linha, no compasso e no esquadro para obter formas corretas, vão contra a constituição natural das coisas. Os que usam cordéis para ligar e cola para juntar as peças, interferem no caráter natural das coisas (庄子Zhuangzi, 6).

Pois O oleiro diz "sei trabalhar bem com o barro. Se o quero redondo, uso compasso; se quero retangular uso o esquadro". O carpinteiro diz - "sei trabalhar bem a madeira. Se a quero em curva, uso o arco; se em linha reta, uso a régua". Mas como é que podemos pensar que a natureza do barro e da madeira desejam a aplicação do compasso e do esquadro, do arco e da régua?” (Ibidem, 7); "Portanto tem sido dito, não deixe o artificial destruir o natural; não deixe a vontade destruir o destino; não deixe a virtude ser sacrificada pela fama. Observe cuidadosamente esses preceitos, sem uma falha, e desse modo se revelará o Caminho (Ibid., 11).

Consequentemente, qualquer um que se proponha ser artista não deve ser escravo da técnica, mas também não deve ser um leigo. Cabe 130

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agir com sabedoria, e desenvolver a virtude da arte. Sabendo isso, ele pode ir além da própria arte (Jullien, 1998). Assim, como podemos observar até aqui, o artista chinês, a princípio, é também (ou busca ser) um sábio. Ele pretende atuar neste espaço vazio existente na oposição complementar das forças cósmicas, materializando o Li subjacente aos corpos brutos:

O que caracteriza o pensamento chinês é a capacidade para exprimir o nó das contradições, o momento das tendências antagônicas, a reunião que permite àqueles que tentam unir-se, encontrar-se e encontrar a vida. Existe sempre um meio aparentemente vazio e sempre ativo (Larré, 1978, p.59).

Seu objetivo não é apenas revelar uma beleza estética, mas A beleza que dá sentido a existência da obra e que se comunica com o íntimo dos seres humanos. “Todos os seres humanos apreciam os mesmos sabores, gostam de ouvir bons sons e reconhecem aquilo que é belo [...] pois hão princípios inerentes a estas coisas” (孟子Mêncio, 6:7); porque Os olhos e os ouvidos não têm por função pensar, e estão sujeitos a serem turvados e embotados pelas coisas que os afetam. Mas pensar é função da mente. Pensando obtemos uma visão justa das coisas, impossível de conseguir, se descuidamos de pensar. Os sentidos e a inteligência são as dádivas do céu (Ibidem, 6:15).

Ou, como afirmou G. Pischel (1963, p. 122),

Da observação da realidade, [o artista chinês] colhe, portanto, uma imagem que suscita no seu espírito uma íntima e poética vibração; mas esta concretiza-se, para além de um realismo fiel, numa fantasia poética que encontra a sua consistência mais na harmonia universal das coisas que na continuidade do real.

Neste sentido, mais do que personificar-se, o artista chinês busca “anular-se”, num processo de integração de sua obra com a natureza;

Assim, pois, a perfeição da arte se realiza, certamente, quando a operação intelectual, a dizer, a arte no artista, pela qual ele trabalha, deriva integralmente da forma da obra que há de ser feita. Forma que procede então sem cálculo por parte do artista. E isto é o que significa o “vôo do dragão” chinês, e o desaparecimento mesmo do artista. Pois se há uma perfeição última ao qual tendem todas as coisas [...] falar então de uma “arte criativa” humana implica que a liberdade e a espontaneidade relativa de quem está de plena posse de sua arte (o artista) [...] e a “vida” desta mesma arte (que é igualmente um reflexo da vitalidade de seu autor) são verdadeiras imitações da natureza em sua maneira de operar e em seus efeitos. (Coomaraswamy, 1983, p.9).

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Buscar o Dao (Caminho), manifestar o Li (Princípio), adquirir Virtude (De) e realizar-se: etapas que todo o pensador chinês trilhará na busca do conhecimento. Adaptadas à arte, transformam-se num meio pelo qual compreendemos como se dá a manifestação da matéria e nossa capacidade de atuar sobre ela. Por isso o artista busca desaparecer em meio a sua obra, como parte integrante de um quadro, tal como o sábio imerge em seus pensamentos. A Arte é uma das vias para “saber” a natureza. E se há um artista que capta com quase perfeição essa sucessão de procedimentos intelectuais e filosóficos, este é o oleiro, cujo anonimato transplanta para a cerâmica a ideia perfeita de um equilíbrio (subjacente a própria obra) que se manifesta pela oposição da técnica com a matéria, pelo moldar da argila, pelo domínio de várias ações da natureza - o cozer, o umedecer, o talhar - conjugando-se na constituição de obras belíssimas como o celadon e a porcelana que antecederam em séculos o domínio técnico pleno do Ocidente no ceramismo. 均 Jun, o Torno do Oleiro Ao longo da História Chinesa, vários artistas legaram seus nomes para a posteridade - ainda que este não fosse seu objetivo direto destacando-se por suas produções na pintura, caligrafia, poesia, etc. No entanto, a cerâmica dispõe de uma apreciação toda especial pelos chineses, visto que, para estes, ela consegue captar a essência da beleza e se manifesta pela mão de artistas essencialmente anônimos e ignorantes de um saber letrado e intelectualizado: Se pintura, caligrafia e poesia eram, na China clássica, apanágio da classe dos letrados (Wenren), por exigirem aprendizado intelectual muito apurado, é certo que uma sensibilidade artística muito aguda caracterizava todas as camadas sociais de uma civilização alimentada por milênios de tradição. Por envolver trabalho manual - de que, por norma, fugia ao letrado – a manufatura da cerâmica cabia ao povo. Os trabalhos, em regra geral, não eram assinados. [...] Mas o artista da cerâmica e da porcelana era anônimo e inculto. Entretanto, a cerâmica e a porcelana, obras de artesão, consubstanciam a mesma elevação de espírito que transmitem a pintura, a caligrafia e a poesia. Tal arte é merecedora de uma análise também no plano filosófico. Há, na China, uma prática da cerâmica e da porcelana, sem a elaborada teoria á maneira da pintura, caligrafia e poesia, mas que é reflexo de uma cultura coletiva inconscientemente absorvida; um modo de agir das massas que é espelho fiel do modo de pensar e criar dos letrados. A argamassa de seis milênios de Civilização continua

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permitiu, assim, que as barreiras entre a sensibilidade das diversas camadas sociais não fosse intransponível: um fino espírito permeia integralmente a Humanidade chinesa. O testemunho mais evidente, talvez, desse Agir Total encontra-se no universo da cerâmica e da porcelana, criado a nível dessas massas sem respaldo intelectual, mas de alma cultivada, e de modo espontâneo, inconsciente, dentro de uma sólida tradição de alicerce monolítico e estrutura homogênea (Joppert, 1998, p.9-11).

Uma síntese da ideia que permeia o trabalho do oleiro reside no ideograma 均 Jun, que significa Equilíbrio. Este ideograma é composto pela associação da palavra 士Shi, “Terra” e 匀Yun, “Aplainar, nivelar, desbastar”. O Equilíbrio surge, portanto, quando se aplaina o barro, quando se molda a terra, de maneira a dar-lhe forma. É a articulação perfeita entre o natural (matéria) e o artificial (técnica). O Equilíbrio reside, pois, no torno do oleiro. Nele se encontra a harmonia natural da arte e do artista; nele se manifesta a obra e se chega ao Dao. "Quando a natureza prevalece sobre a cultura, obténs um selvagem; quando a cultura prevalece sobre a natureza, obténs um pedante. Quando natureza e cultura estão em equilíbrio, obténs um sábio” (論語Lunyu, 6). Não seria estranho afirmar, por conseguinte, que nesta oficina cerâmica – onde nasce a ideia de representação ideogramática de “equilíbrio” – é que se acumula uma vasta gama de experiências com a matéria, suas formas, cores, texturas, etc. A atividade ceramista é uma das mais antigas, juntas com o jade. Encontram-se potes datado, com segurança do século 22 a.C., e as descobertas arqueológicas têm as aproximado cada vez mais do alvorecer das grandes civilizações antigas - com a diferença substancial de que a China continua viva e a desenvolver-se, ao contrário do Egito, Mesopotâmia, Grécia ou Roma, dais quais só nos restaram heranças. O Ceramista, portanto, é um pretendente à transcendência, apesar de sua discrição. Confúcio disse: “Não tenha medo da obscuridade, tenha receio da incompetência” (Lunyu, 14). Na mesma época, o Mestre admitia elogiar um de seus discípulos da seguinte maneira: “és um precioso vaso ritual”1 (Ibidem, 5). Neste aluno, pois, se encontrava a virtude, a harmonia, e o espaço vazio que o tornava útil para alguma função. A ideia preciosa de que o artesão do barro é um construtor de saber manifestou-se, consequentemente, numa série de realizações 1

Aqui, a palavra “vaso” refere-se aos recipientes de bronze ou cerâmica fina.

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fantásticas no campo da cerâmica que a criatividade chinesa implementou ao longo dos milênios. Sempre dentro do princípio da harmonia cósmica, materiais diversos foram sendo testados, até se obterem as ligas e pastas que constituíram o celadon e a porcelana. Técnicas de cozimento e redução avançadíssimas foram desenvolvidas nos chamados “fornos do dragão” - sucessão de câmaras com variações de temperatura, intensidade e espaço. O entendimento chinês sobre suas próprias descobertas (ou melhor dizendo, inferências sobre a natureza) levou-os a estabelecer classificações para nós inimagináveis - e porém, eficazes - para identificar os tipos de cerâmica. Ou como explicar, por exemplo, que a cerâmica 瓷Ci, porcelanada, tem este nome devido a sua sonoridade? Mesmo a aplicação da pasta de sílica não era feita apenas de forma técnica, mas pressupunha também uma atuação da natureza sobre a constituição da peça. “O refinamento da decoração e a arte do vidrado enchem os conhecedores de admiração. Por vezes, o vidrado castanho não cobre a vasilha totalmente; deixa ver, em camadas irregulares, aparentemente sem ordem nem intenção, o próprio material na base do objeto” (Speiser, 1969, p.62). O ápice deste refinamento encontra-se durante o período 宋 Song (960-1279), quando um artista e escritor renomado, 蘇東坡 Su Dongpo, admite ser esta umas das exigências para identificar uma peça que se “realizou” (Ibidem). Aliás, Foi com os Song que a cerâmica chinesa alcançou uma beleza, uma elegância e um esplendor que nunca serão igualados. É certo que nenhum fim contemplativo orientou esta atividade artística, a não ser a busca refinada da beleza pura, do objeto criador do choque estético perfeito. Durante séculos, os ceramistas chineses trocaram as suas experiências, técnicas, segredos e tradições; o trabalho dos fornos, a escolha das argilas e pastas colorantes, os processos de fabrico e resfriamento foram conhecidos, aperfeiçoados e atingiram um auge jamais igualado pelos seus sucessores. As impurezas do vidrado foram utilizadas para obter cores raras, manchas interessantes, fundos esbranquiçados e difusos de singular beleza. Os artistas Song cuidaram tanto da forma como da cor, com o que obtiveram um equilíbrio e uma elegância extraordinários. A contemplação destas cerâmicas num museu é coisa maravilhosa; os brancos cremosos, ebúrneos, os azuis-celestes e turquesas, os verdes-claros furta-cores, os cinzentos opalinos, os grés negros com reflexos dourados e cinzentos chamados “penas de perdiz”, os beges, os amarelos e os vermelhos suaves formam incomparáveis jogos de luz. Outra das características da estética chinesa desta época são as suas belas e

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suaves cores; a discrição, a moderação e o equilíbrio foram as suas qualidades principais (Riviere, 1979, p.89-91).

Por isso, pode-se afirmar sem sombra de dúvida que

Juntamente com a caligrafia e a pintura, a cerâmica constituiu a manifestação artística mais relevante do povo chinês, que teve a honra e o privilégio de saber descobrir e explorar ao máximo todas as possibilidades e segredos da argila e da sua cozedura, de tal modo que as suas produções raramente foram igualadas e, evidentemente, nunca superadas. Das mãos dos artistas e artesãos chineses saiu uma variedade extraordinária de peças que cumpriram muitas funções, desde objetos de uso doméstico e quotidiano, passando por objetos rituais e funerários até obras de puro deleite estético. (Baguena, 1998, p.12).

Manifestadores anônimos de uma estética universalista, os oleiros chineses eram, pois, caminhantes do Dao que perceberam, com graça e jocosidade, a arte de adaptar-se aos tempos e transmitir as técnicas que melhor servissem à manifestação do Princípio (Li). Não por acaso, seduziram também os europeus, que mesmo ignorantes da cultura chinesa, souberam apreciar com fervor a produção cerâmica chinesa, tentando em vão imitá-la. Conhecedores das vias que levariam a uma “beleza suprema” - a suma busca dos filósofos estéticos - esta massa anônima de agentes transformadores da matéria soube captar e vivificar no barro, com sensibilidade inaudita, o desejo do ser humano de uma harmonia possível e perfeita, o próprio Dao – que agora sabemos, habita também no humilde torno do ceramista.

Referências bibliográficas Baguena, E. Arte del Extremo Oriente. Madrid: Historia 16, 1998. Chan, W.T. Sourcebook in Chinese Philosophy. Princeton: PUP, 1963. Cheng, A. Historia del pensamiento chino. Madrid: Bellaterra, 2003. Cheng, F. Vide et plein. Paris: Le Seuil, 2001. Coomaraswamy, A. Sobre la doctrina tradicional del Arte. Madrid: Olaneta, 1983. O Tao está no torno do oleiro

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André Bueno

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Notas: Confúcio, Laozi, Zhuangzi e Mêncio são do período dos

séculos 6-3 a.C. De Confúcio, utilizamos o Lunyu (Conversas) e o Zhong Yong (O Justo Meio). De Laozi, o Daodejing (Tratado do Caminho e da Virtude). As citações foram retiradas de: http://chines-classico.blogspot.com.br/

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Sujeito, crítica e obra de arte, entre Benjamin e Lacan

Marcelo Fonseca Alves* RESUMO │ O presente artigo busca ensaiar uma aproximação dos pensamentos de Walter Benjamin e Jacques Lacan, a partir das noções de sujeito, crítica e obra de arte, como dispostos na tese de doutorado de Benjamin. Em suma, a proposta é acenar com a possibilidade de que o percurso benjaminiano sobre a noção de crítica no romantismo alemão seja lido a partir do referencial teórico da psicanálise lacaniana, uma vez que o evanescente sujeito que se vislumbra na fresta entre os níveis da reflexão parece-nos compatível com o sujeito do inconsciente, apreendido “só-depois”, justamente a partir dos traços restantes da reflexão, qual seja, nos românticos, segundo a leitura de Benjamin, a obra de arte. PALAVRAS-CHAVE │ Obra de arte; Sujeito; Crítica; Walter Benjamin; Jacque Lacan.

ABSTRACT│ This article seeks to assay an approximation between Walter Benjamin's and Jacque Lacan's thoughts from the notions of subject, critique and work of art, as arranged in Benjamin's doctoral thesis. In summary, the proposal is to suggest the possibility that Benjamin's reflection on the notion of critique in the German Romanticism can be read from the theoretical framework of Lacanian psychoanalysis, since the evanescent subject glimpsed in the gap between the reflection levels seems to us compatible with the subject of the unconscious, apprehended "just-after", precisely from the remaining traces of the reflection, namely, for the Romantics, according to Benjamin, the work of art. KEYWORDS│ Work of art; Subject; Critique; Walter Benjamin; Jacque Lacan UM TRAÇO MARCANTE NO DESENVOLVIMENTO DA OBRA DE WALTER Benjamin é a sua aparente “guinada”, em torno de 1925, de uma perspectiva essencialmente mística e metafísica para uma perspectiva materialista dialética, que se torna mais explícita a partir de 1928. Tratase de um traço tão marcante, que seus primeiros comentaristas viam uma cisão no interior da obra, optando por trabalhar os escritos posteriores a 1928 – tais como “O autor como produtor” e * Mestre em Letras (UFRJ); doutorando em Artes Visuais (EBA-UFRJ); graduado em Educação Artística (UERJ). Professor da FACHA – Faculdades Integradas Hélio Alonso.

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“Experiência e pobreza”, ensaios nos quais se verifica uma concepção marxista mais ortodoxa – de maneira francamente apartada da produção anterior. Outra perspectiva delineia-se mais recentemente, dispondo-se a uma leitura que, mais próxima da recepção de Theodor Adorno e de Gershom Scholem, se recusa a ver uma cisão na obra, de modo que julga reconhecer nela certa unidade. Unidade problemática, sem dúvida, posto que assentada na relativa contradição em que consiste a coexistência entre as tendências metafísica, mística e materialista. Nas palavras de Michael Löwy (2005, p. 17), a filosofia de Walter Benjamin: [...] apoia[-se] em três fontes muito diferentes: o Romantismo alemão, o messianismo judaico, o marxismo. Não se trata de uma combinação ou “síntese” eclética dessas três perspectivas (aparentemente) incompatíveis, mas da invenção, a partir destas, de uma nova concepção, profundamente original. Não podemos explicar seu itinerário por uma ou outra “influência”: as distintas correntes de pensamento, os diversos autores que cita, os escritos de seus amigos são materiais com que ele constrói um edifício próprio, elementos com os quais vai realizar uma operação de fusão alquímica, para fabricar com eles o ouro dos filósofos.

Nessa perspectiva, os elementos fundamentais da estética benjaminiana devem ser rastreados não somente em seus escritos tardios, como os acima mencionados, mas também em seus escritos de juventude. É a perspectiva a partir da qual percorreremos aqui a sua tese de doutorado, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, apresentada à Universidade de Berna em 1919. Márcio Seligmann-Silva (1999, p. 910) afirma que: Foi apenas com a inclusão [entre os anos 70 e 80] da tese de doutorado de Benjamin no horizonte das atuais pesquisas que se começou a compreender tanto sua teoria do conhecimento, como [...] seu conceito de crítica e sua prática. Apenas com o estudo das afinidades entre o pensamento desse autor e o Idealismo Mágico de Novalis e a obra de Friedrich Schlegel, pode-se obter uma compreensão mais aprofundada dos conceitos benjaminianos fundamentais, tais como os de “semelhança”, “verdade”, “origem” [...], “leitura”, sem contar com a [...] noção de “tempodo-agora” e com a filosofia da linguagem de Benjamin.

Trata-se, pois, de um escrito proteico. Uma das intenções de Walter Benjamin nessa tese é responder à crítica que se fazia ao romantismo como mistificador e obscurantista, idealista e sentimentalista. Para tanto, Benjamin procura recortar e resgatar o que lhe parece ser a decisiva contribuição da primeira geração romântica, a 138

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saber: a concepção de uma crítica de arte imanente à obra de arte. O que sustenta teoricamente a concepção romântica de crítica de arte é a reflexão, eleita como procedimento-chave tanto para a produção e a crítica de arte quanto para o conhecimento em geral. Reflexão para os românticos é a ação do pensamento. Para eles, o pensamento avança, “eleva-se”, em níveis de reflexão enquanto medium do pensamento. “Elevase” em uma direção específica: o absoluto. Como, porém, a reflexão é infinita, o absoluto converte-se em figura da reflexão supostamente acabada. A reflexão consiste no seguinte: O pensamento na autoconsciência refletindo a si mesmo é o fato fundamental do qual partem as considerações gnosiológicas de Friedrich Schlegel e, em grande parte, também as de Novalis. As relações consigo mesmo do pensamento, presente na reflexão, é vista como a mais próxima do pensamento em geral, a partir da qual todas as outras serão desenvolvidas. (Benjamin, 1999, p. 29).

Para Friedrich Schlegel o alvo por excelência do pensamento somos “nós mesmos”, e o pensamento é essencialmente, nas palavras de Schlegel reproduzidas por Benjamin: “a capacidade de ser o Eu do Eu”. E ainda, a essas palavras, Benjamin (Ibid., p. 30) acrescenta: “Desse modo, pensar e reflexão são postos no mesmo plano”. Segundo Benjamin, Schlegel parte, entretanto, de uma reflexão segunda. Esta reflexão é segunda porque reflete uma anterior, que deu a consciência de si por uma operação de retorno sobre o pensado. Na esteira dessa reflexão, uma categoria cara para o pensamento moderno, o sujeito, é posto em questão a partir de sua mais usual concepção: o “penso, logo sou” (ou, se se quiser, “existo”), que tem sua lógica invertida na medida em que o postulado cartesiano se desdobra na reflexão, pois ela (a reflexão), nesse desdobrar-se, obriga o sujeito a retirar sua essência do pensamento para recolocá-la em um ponto externo ao “penso”, modificando sobremodo o estatuto de sua existência (ou de sua essência, como preferimos) segundo o cogito. Assim, não é exatamente no conteúdo do pensar que reside a chance de o sujeito estar autoconsciente, mas no pensamento refletido em si, como faz Descartes. Porém, para tanto, essa reflexão não pode ser ela mesma refletida, sob pena de dissolução do sujeito do cogito, o que efetivamente se dá no desdobramento levado a cabo pelos românticos. Fichte já chegara antes deles a este ponto, onde requisitara a intuição que conhece, nos interstícios da operação, o sujeito absoluto, que ele designa como “Eu-originário”. (Ibid., p. 32-33). Estética do entrelugar

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É aí que se distingue, segundo Benjamin, o pensamento de Schlegel e Novalis do de Fichte, pois enquanto para aqueles a reflexão não estanca e continua em liberdade tendendo ao infinito, para Fichte o Eu-originário é intuído, como sentido, entre o primeiro e o segundo nível da reflexão. Isso estanca o seu (da reflexão) fluxo e de certo modo faz as pazes do sujeito em Fichte com o sujeito no cogito. Ao contrário disso, Benjamin chama atenção para a tendência ao infinito na reflexão romântica e a implicação dessa infinitude na concepção do Eu, citando Schlegel: “Não podemos intuir a nós mesmos, neste ponto o Eu sempre nos escapa. Podemos, no entanto, certamente pensar a nós mesmos, então, infinitos [...].” (Ibid., p. 41). O sujeito, na reflexão dos românticos, desliza e continua a deslizar a cada novo nível da reflexão. Assim, em Schlegel o Eu-originário não chega, como em Fichte, a constituir o ponto de chegada em um processo de autodeterminação (com pretensão ontológica) do Eu. Schlegel converte o Eu-originário em alvo da reflexão supostamente acabada (Ibid., p. 39). Supostamente, pois, como vimos, nos românticos a reflexão é infinita, de tal maneira que o Eu só pode figurar ao mesmo tempo como promessa e móvel da reflexão em seu movimento de expansão, ou melhor, de desdobramento infinito. Benjamin sublinha uma peculiaridade característica da reflexão do primeiro romantismo: “A infinitude da reflexão é, para Schlegel e Novalis, antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da conexão” (Ibid., p. 36). A noção de conexão indica a existência de cisões, lacunas, entre os diferentes graus de reflexão na cadeia reflexiva. Desse modo, cada passagem de um a outro grau da reflexão (do Eu do Eu para o Eu do Eu do Eu, e assim ao infinito) se dá por “saltos”. Benjamin cita Schlegel: “[...] uma ‘passagem deve ser sempre um salto’” (Ibid., p. 37). Pode-se assim dizer que o Eu cintila justamente naquele ponto de indiferenciação que é o centro de gravidade de toda reflexão, identificado por Benjamin como ponto de conexão na reflexão dos românticos – ponto que é, portanto, vislumbrado como uma falha, uma fissura. Ademais, justamente por causa dessa referência ao Eu, a reflexão dos românticos tem que ser infinita, porque é só na infinitude que ela realiza a sua significação, qual seja, a re-velação do sujeito como “entrelugar”1 na cadeia da reflexão. A noção de “entrelugar” faz remissão ao conceito de “cadeia do significante”, de Jacques Lacan, conceito ao qual retornaremos.

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Benjamin forja um conceito sintético para a reflexão e seu papel central na teoria do conhecimento da geração primeiro romântica: o conceito de medium-de-reflexão2, que em alemão, Reflexionsmedium, apresenta uma ambiguidade. Ela significa tanto medium-de-reflexão quanto medium-da-reflexão. Quanto a essa ambiguidade de sentido Benjamin, em sua nota 61, diz tratar-se do seguinte:

O sentido duplo da designação não acarreta nenhuma obscuridade. Pois, por um lado, a reflexão mesma é um medium – graças a seu constante conectar; por outro lado, o medium em questão é tal que a reflexão move-se nele – pois essa, como o absoluto, movimenta-se em si mesma. (Benjamin, 1999, p. 45).

Assim, a reflexão é medium para o pensamento, para o Eu com seu brilho fugaz nas conexões entre os níveis da reflexão, e é medium do seu próprio movimento, na medida em que ela se confunde, para os românticos, com o absoluto: “A reflexão constitui o absoluto e ela o constitui como um medium” (Ibid., p. 46). Esse conceito procura dar conta simultaneamente das teorias do conhecimento e da linguagem no primeiro romantismo alemão. Ele indica, no seu vínculo com o absoluto, uma totalidade no tempo e no espaço, de tal maneira que cada elemento singular figura como um momento do e no medium-de-reflexão, em conexão universal com todos os outros momentos, conferindo a cada momento da reflexão um caráter de mônada3 em relação ao medium-dereflexão4. A implicação mais imediata do medium-de-reflexão, por seu Quanto ao alcance do conceito de medium-de-reflexão em Benjamin, cf. SeligmannSilva, Márcio. Double bind: Walter Benjamin, a tradução como modelo de criação absoluta e como crítica. In: Seligmann-Silva, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Annablume, 2007, p. 17-49. 3 Neste contexto, o termo mônada apresenta diferença sutil em relação ao seu uso por Leibniz. Se, por um lado, o termo mantém o sentido de que o elemento constitutivo do todo está presente na unidade, por outro lado a unidade, sobretudo na concepção da obra de arte, é incompleta, inacabada no que concerne à enunciação da Ideia de arte, que constitui o horizonte do medium-de-reflexão da arte, como veremos mais adiante. 4 O conceito de medium-de-reflexão é um dos conceitos que Benjamin mantém ao longo de sua obra posterior. Sua teoria da tradução (Benjamin, Walter. A tarefa do tradutor. In: _____. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011, p. 101-119.), por exemplo, é especialmente marcada por esse conceito e permite evidenciar como Benjamin o utiliza. Ele concebe a língua/linguagem em geral como um medium. Essa língua/linguagem que constitui o medium consiste na língua original anterior à Babel, de tal maneira que as línguas contemporâneas são “partes” da língua original e são, nesse sentido, complementares umas às outras em relação à língua primeira. Cada língua contém o germe da língua original, mas é incompleta, inacabada, 2

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caráter absoluto, na esfera do conhecimento é a do, por assim dizer, “conhecer como autoconhecer”. Para os românticos, o “pensar-se a si mesmo como fenômeno [...] é apropriado para tudo, pois tudo é simesmo” (Benjamin, 1999, p. 38). “Todo conhecimento é autoconhecimento de uma essência pensante que não precisa ser um Eu.” (Ibid., p. 61). E ainda: “A célula germinal de todo conhecimento é [...] um processo de reflexão numa essência pensante, através do qual ela se conhece a si mesma. Todo ser-conhecido de uma essência pensante pressupõe seu autoconhecimento.” (p. 62). Assim, segundo a concepção romântica, a “[...] relação entre sujeito e objeto do conhecimento [...] não desempenha nenhum papel em relação ao autoconhecimento” (p. 63). Sujeito e objeto não constituem mais que “centros de reflexão” (p. 64). Benjamin arremata sua exposição acerca do medium-de-reflexão e suas implicações mais imediatas para a concepção de arte dos primeiros românticos com o seguinte: “Apenas com a reflexão nasce o pensamento, sobre o qual se reflete. Daí poder-se dizer que toda reflexão simples nasce absolutamente de um ponto indiferenciado” (Ibid, p. 48). A partir dessa proposição, ele segue discutindo dois momentos no pensamento de Schlegel. No primeiro, esse “ponto indiferenciado” é determinado “como o Eu”. Este primeiro momento do pensamento de Schlegel permanece em pleno acordo com Fichte. Já no segundo momento dos “escritos schlegelianos [...] este conceito5 desempenha um papel menor”. A partir dessa segunda perspectiva, Benjamin acrescenta que: No sentido primeiro romântico, o ponto central da reflexão é a arte e não o Eu. [...] A intuição romântica da arte repousa no fato de que não se compreende no pensar do pensar nenhuma consciência-do-Eu. A reflexão livre-do-Eu é uma reflexão no absoluto da arte. (Benjamin, 1999, p. 48).

em relação a ela. Daí que a tradução, para Benjamin, na medida mesma em que uma língua/linguagem é um momento no medium-de-reflexão da língua, a tradução não pode implicar a transposição do sentido pura e simplesmente por analogias sintáticas, uma vez que tais analogias implicariam a concepção das línguas como equivalentes, desconsiderando completamente a sua identidade própria enquanto momento no medium-de-reflexão da língua. E tal identidade reside exatamente nas formas das línguas/linguagens (há, portanto, um privilégio do significante ao qual retornaremos) e seu ideal de tradução é uma tradução termo a termo, que mantenha a estranheza sintática da língua traduzida na língua tradutora. Sobre as teorias da linguagem e da tradução em Benjamin, cf. Seligmann-Silva, 2007. 5 Isto é, o conceito do ponto indiferenciado da reflexão, o absoluto, determinado como o Eu.

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Isso reitera a distinção, já mencionada, entre a concepção primeiro romântica e as concepções de Fichte e de Descartes. O que se pode agora acrescentar é que, tanto para Descartes como para Fichte, o Eu é conteúdo. Para o primeiro, conteúdo do pensamento; para o segundo, conteúdo da reflexão6. Isso porque, em quaisquer dos casos, para a consciência, o Eu só pode ser apreendido como conteúdo (no pensamento ou na reflexão, tanto faz) de uma representação. Em Descartes, a consciência é do conteúdo do pensamento: Eu penso, logo Eu sou. Em Fichte, como conteúdo da reflexão. Ainda que Fichte, desdobrando a reflexão presente no cogito, traga para o primeiro plano da consciência a reflexão ela-mesma, ele reinsere a unidade do sujeito como conteúdo da reflexão. Por sua vez, diferentemente de Fichte, Schlegel quer realizar o potencial infinito da reflexão. Isso implica que o Eu não pode recrudescer em nenhuma figura substancial; ele evanesce, como se despontasse para imediatamente se dissolver no desdobramento da reflexão. Por isso, para Schlegel, a reflexão se constitui como o medium por excelência e seu conteúdo é forma7. Justamente porque o Eu deixa de ser o conteúdo, a forma da reflexão ela-mesma passa a constituir o seu conteúdo. Portanto, aquilo que para Fichte é o conteúdo do ponto central da reflexão, o Eu, em Schlegel, assume um caráter formal. Esse caráter formal assumido pelo conteúdo da reflexão a partir de seu terceiro nível permite a Benjamin afirmar que a reflexão no medium absoluto, que é o medium-de-reflexão, é uma reflexão “livredo-Eu”, uma vez que o pensamento desdobrado não comporta nenhuma “consciência-do-Eu” (isto é, nenhuma consciência-de-si). O Eu como conteúdo da representação aparece, na leitura que Benjamin faz de Schlegel, como uma espécie de miragem. Assim, em lugar do Eu, Benjamin coloca no ponto indiferenciado da reflexão, na fresta entre dois níveis da reflexão desdobrada, a arte, visto que para Schlegel o conteúdo da reflexão assim concebida é forma. 6 Schlegel diz que a reflexão em Fichte é o primeiro nível (o qual, por nossa conta, designamos como segundo nível, posto que entendemos o cogito como primeiro nível) da reflexão e a designa como “o sentido”. (Benjamin, 1999, p. 37). 7 É importante assinalar que o termo “forma” para designar o conteúdo da reflexão não confere um sentido formalista ao pensamento de Schlegel, mas procura evidenciar, como o faz Benjamin (1999, p. 52), o profundo parentesco entre o Schlegel poeta e o Schlegel filósofo, daí a proposição de Benjamin do medium-de-reflexão como o absoluto da arte, pois, segundo Benjamin, em Schlegel, a arte é o medium-de-reflexão por excelência.

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Contudo, entendemos nós, a proposição de que não há Eu na reflexão e em seu lugar figura a arte é fruto, na leitura benjaminiana, de dois aspectos. O primeiro aspecto remete ao que determina o horizonte do medium-de-reflexão quando aplicado ao campo da produção artística, a saber: a Ideia de arte. A Ideia de arte passa a cumprir a função cumprida pelo Eu-originário (isto é, o absoluto) em Fichte, ou seja, o absoluto da arte é a Ideia de arte, tendo como figura local na unidade reflexiva a obra de arte. O segundo aspecto refere-se ao fato mesmo de o Eu, na concepção de reflexão dos românticos, perder seu contorno ontológico – tanto no sentido do cogito quanto no sentido da posição do sujeito em Fichte. Nessa proposição de que se trata de uma reflexão “livre-do-Eu”, Benjamin, seguindo Schlegel, está de fato recusando-se ao estatuto do sujeito como sujeito da consciência (mesmo que essa consciência seja eminentemente intuitiva, como em Fichte), não tendo, entretanto, outra coisa para colocar no seu lugar a não ser a obra de arte. Assim, entendemos que essa ideia de uma reflexão “livre-do-Eu” seja fruto da “impressão” causada justamente pelo caráter evanescente do sujeito da reflexão e sua incompatibilidade com o sujeito da consciência enquanto conteúdo da representação. Nossa proposta é, neste ponto, que esse percurso benjaminiano seja lido a partir de outro referencial teórico, o da psicanálise lacaniana8, uma vez que o evanescente sujeito que se vislumbra na fresta entre um e outro nível da reflexão parece-nos compatível com o sujeito do inconsciente, apreendido “só-depois” justamente a partir dos traços restantes da reflexão, qual seja, nos românticos, segundo a leitura de Benjamin, a obra de arte. Para dar consequência a essa proposta, cabe estabelecer, primeiramente, os termos em que Lacan trabalha a questão do sujeito. Na sua discussão sobre o sujeito é central o conceito de significante, 8 É lugar comum a aproximação de Benjamin com a obra de Freud. Sérgio Paulo Rouanet dedica um livro inteiro aos itinerários freudianos de Benjamin (Rouanet, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008.). O que propomos, porém, com nossa aproximação de Jacques Lacan no ponto em que o fazemos extrapola as perspectivas propriamente freudianas de Walter Benjamin, sobretudo se levarmos em conta o momento de sua obra que temos em vista. Assim, o que estamos propondo é uma leitura diferenciada desse momento da obra de Benjamin com implicações que não se restringem a essa obra, insinuando mesmo o que entendemos como ajustes teóricos passíveis de elaboração e visam à concepção mesma de obra de arte para além do campo em que Benjamin trabalha na sua tese de doutorado. Ainda quanto à incorporação de elementos da obra freudiana por Benjamin, cf. Seligmann-Silva, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 66-68.

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que ele define como aquilo que “representa um sujeito para outro significante” (Lacan, 1985, p. 150). Essa definição é notoriamente distinta daquela que frequentemente se lê na linguística e na semiótica, do significante como suporte material do signo. Apesar de tal definição do significante ser restrita9 nos termos mesmo da própria linguística e da semiótica, em um escrito publicado em 1957, A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, Lacan (1998, p. 496-533) discute a concepção do signo, colocando em relevo o papel do significante, a partir do modo como figura na transcrição dos cursos de Saussure (1995), com base na experiência psicanalítica conforme lida na obra de Freud e esteado pela obra de Roman Jakobson. Nesse escrito Lacan primeiro procura situar os problemas da constituição do signo, retomando o que ele denomina de “algoritmo saussuriano”, e da emergência do sentido (Lacan, 1998, p. 500-506). Quanto ao algoritmo saussuriano, Lacan sublinha que ele é constituído por três elementos, o significante, sob o qual figura o significado, ambos separados por um traço, uma barra. Lacan chama imediatamente a atenção para a barra de separação entre o significante e o significado, apresentando a tese de que o significado encontra-se barrado. Para tanto, ele vai a uma imagem dada no Curso de linguística geral para a configuração estrutural do significante e do significado em sua relação, a saber: a imagem de uma iluminura medieval onde as ondulações das águas de um rio ocorrem em paralelo e alheias uma à outra (Ibid., p. 506). Lacan pretende que essa ilustração indique o deslizamento constante entre as camadas do significante e do significado, o que exige ler o traço de separação entre significante e significado naquilo que ele representa: ele barra o significado. É desse deslizamento que tenta dar conta a suposta arbitrariedade constitutiva do signo em sua verticalidade, estabelecendo um “basta” – que na imagem saussuriana é representada por traços verticais que interceptam simultaneamente as duas linhas onduladas (Saussure, 1995, p. 131) – (Figura 1). Esta ação por assim dizer estacionária do signo é, por excelência, a ação vertical da cultura sobre o 9 Restrita porque tende a mascarar o caráter eminentemente formal do significante. Por outro lado, essa definição do significante o restringe ao conjunto formado pelo signo tomado como unidade binária significante/significado, na qual o significado é definido como imagem mental. Ora, o significante também é uma imagem desse tipo, como ficará patente na leitura lacaniana, com implicações importantes no que diz respeito à ação desejante do sujeito.

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discurso, movimento que tem em vista conferir estatuto de realidade ao que antes se delineia como um fato de linguagem, desse modo subscrevendo o sentido da realidade ao engessamento que tem lugar no signo. Não é por outro motivo senão o da relação entre o signo e a realidade que Lacan (1985, p. 150) o define como aquilo que representa “algo para alguém”.

Fig. 1: Representação da ação vertical de estabilização das camadas do significante e do significado. (Fonte: Saussure, 1995, p. 131).

A partir desse raciocínio, Lacan põe sob suspeita tal arbitrariedade em seu valor decisivo sobre a emergência do sentido, de início a partir de uma representação gráfica (Lacan, 1998, p. 502-503) (exatamente o que Lacan chama de algoritmo) que faz uma paródia da representação do signo no Curso de linguística geral. Neste livro, o algoritmo consiste na palavra “árvore” (o significante) vinculada ao desenho de uma árvore (o significado), separadas por um traço horizontal (Figura 2); em lugar disso, Lacan escreve lado a lado as palavras “homens” e “mulheres”, ambas postas sobre um mesmo traço, sob o qual figuram duas portas idênticas (Figura 3). Típico do método de Lacan, essa representação introduz uma equivocação no modelo saussuriano, e talvez mais de uma. De imediato, o novo algoritmo acentua o problema da determinação do significante enquanto traço de oposição, que em sua camada indica diferença, e o impasse, na cadeia inferior, que ele instaura, indicando aí tanto o problema da identidade do sujeito enquanto desejante, implicado na leitura, quanto o da ordenação cultural da necessidade, ironicamente reduzida ao problema fisiológico e seu destino na sociedade: o esgoto. Chamamos atenção para a instabilidade da relação entre significante e significado, indicada

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no algoritmo lacaniano; essa instabilidade pretende dar prova do caráter precário e provisório do sentido.

Fig. 2: Algoritmo que representa o signo em Saussure (1995, p. 81).

Fig. 3: O algoritmo lacaniano para o signo. (Lacan, 1998, p. 502).

O sentido é aquilo que pode figurar como aquém do signo, como aquilo mesmo que instaura a significação a partir do significante. Quanto à relação entre o significante e o sentido, Lacan diz o seguinte: [...] o significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão. É o que se vê, no nível da frase, quando ela é interrompida antes do termo significativo: Eu nunca..., A verdade é que..., Talvez, também... Nem por isso ela deixa de fazer sentido, e um sentido ainda mais opressivo na medida em que se basta em se fazer esperar. (Lacan, 1998, p. 505).

A presença do significante figura, portanto, como “promessa” de sentido – a despeito da ausência do (diríamos mesmo que, sobretudo, diante da “fuga do”) significado. Importante assinalar que o que permite que se institua o significante como tal em sua cadeia é a diferença que ele porta em relação a outro significante. O que caracteriza, então, o significante é antes a diferença que ele porta e que ele institui no âmbito do sentido, ou melhor, que ele “promete” instituir nesse âmbito10. Quanto a isso, à guisa de exemplo, pode-se mencionar a busca do novo pela arte de vanguarda. A novidade procurou se instituir primeiro no âmbito do significante,

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Ainda em referência ao algoritmo lacaniano, dissemos que o sujeito está implicado ali enquanto sujeito desejante, justamente porque o “termo significativo”, mesmo quando presente, não impede o deslizamento do sentido, deslizamento que converte o “termo significativo” em uma passagem para a camada do significado. Isto quer dizer que o que Lacan está indicando por “termo significativo” no trecho acima designa o termo que faria a passagem, na leitura, para a camada do significado e que no algoritmo fora indicado pelos significativos termos “homens” e “mulheres”. Ora, o que Lacan está indicando no seu algoritmo é o impasse dessa passagem no que diz respeito à diferença sexual e, na esteira dessa diferença, na designação do objeto do desejo. Assim, se é como diferença que o significante se constitui em relação a outro significante, isto quer dizer que o significante só é passível de ser designado como tal na medida em que se encontra situado em uma cadeia com outros significantes. Daí Lacan (1998, p. 506) afirmar “que é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse mesmo momento”. A expressão “cadeia do significante” é conceito em Lacan: o encadeamento do significante é caudatário da ação do sujeito, donde a lei de encadeamento do significante em Lacan não deve ser entendida como o código na língua, mas a lei do desejo que orienta o sujeito em sua fala – é o que define o campo dito simbólico em Lacan como campo do Outro. Assim, pode-se ver com clareza que a fala do sujeito assenta, ou melhor, se estrutura a partir da falta de significado, a mesma falta sobre a qual se estrutura o desejo. O termo “alíngua” em Lacan refere-se justamente à fala do sujeito do desejo, do sujeito do inconsciente, cuja ação na cadeia do significante já fora indicada desde Freud, na Traumdeutung (Freud, 1976), consistindo principalmente em operações de deslocamentos, de substituições e de condensações, operações em que consistem justamente os regimes de trabalho da metáfora e da metonímia. justamente como promessa de novidade no âmbito do sentido: se o significante é novo, se o modo de amarração e encadeamento do significante é novo, então o sentido que brotar daí será, também, novo. Isso é especialmente evidente no momento mais radical dessa busca, que foi o Dadaísmo. Da distância que já podemos manter em relação à arte de vanguarda e, sobretudo, da perspectiva que ora adotamos, o que se pode dizer, como insinuação crítica em relação à produção da vanguarda, é que, salvo exceções, a operação não passou de bricolagens no nível do código e a novidade que se instituiu não foi, em diversos casos, muito além de um plano, digamos, sintático.

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Nossa proposta é, portanto, “traduzir” o medium-de-reflexão pelo conceito de “cadeia do significante”. Desse modo, o ponto indiferenciado entre os níveis da reflexão, que designa o ponto de conexão no mediumde-reflexão, ponto em que Schlegel exige um salto (e o exige do sujeito, diga-se), passa a figurar em nossa leitura como entrelugar, entrelugar significante. É justamente neste ponto, neste entrelugar, que se situa, na leitura benjaminiana, a obra de arte. A obra de arte figura, então, como uma unidade reflexiva, reflexão que estamos vinculando ao significante, conforme Lacan. Isto quer dizer que se, por um lado, estamos lendo a reflexão como operação na cadeia do significante, por outro lado estamos conferindo ao trabalho do significante em Lacan o estatuto da reflexão, o estamos tomando como uma unidade reflexiva, bem como situando a obra de arte como uma emergência que, enquanto significante, marca o que designamos pelo termo de entrelugar. É o que, na perspectiva que adotamos, pode ser entendido como autoria: a formação de uma unidade reflexiva que marca o lugar do sujeito, uma vez que na definição lacaniana do significante como aquilo que representa o sujeito para outro significante, o termo de representação não possa ser lido no sentido de uma representação de correspondência de pontos, mas como substituição. Assim, o significante como representante do sujeito é um substitutivo do sujeito, um avatar do sujeito no campo do Outro, o que se traduz na cadeia do significante pelo movimento mesmo do sujeito, se levamos em conta o de “palavra em palavra” que caracteriza a enunciação e, com ela, os constantes deslocamentos do sujeito e do objeto implicados na operação. Isso porque, em última análise, o sujeito do inconsciente, justamente porque é inconsciente, não é representável como tal e o objeto, que não apresenta, para o sujeito, nenhuma constituição originária, também não é representável em última instância. Ambos, sujeito e objeto, são apreendidos no movimento da cadeia do significante, movimento cuja marca é o modo de encadeamento do significante, aquilo mesmo que aponta para a lei do desejo como o sentido por excelência, a saber: o sintoma. A conexão que estamos propondo – ou seja, a concepção da obra de arte como unidade reflexiva a partir do medium-de-reflexão da arte e, nessa medida, como demarcação do lugar do sujeito do inconsciente, que lemos segundo o conceito de cadeia do significante em Lacan com as implicações que acabamos de discutir – torna-se, talvez, mais persuasiva quando nos aproximamos da concepção mais Estética do entrelugar

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pormenorizada da arte para os primeiros românticos, segundo a leitura benjaminiana. No ponto em que chegamos, estabelecemos a definição de obra de arte como momento no medium-de-reflexão da arte, daí nossa designação da obra de arte como unidade reflexiva. Cabe agora percorrer no detalhe o que isso implica na linguagem da arte e a emergência do sentido. Antes, porém, de nos determos nesses detalhes, é importante levar em consideração um aspecto que já aparece no título da tese de Walter Benjamin. Trata-se do conceito de crítica de arte. Núcleo da tese propriamente dita de Benjamin, a crítica de arte é decorrente da concepção mesma de arte do primeiro romantismo. Benjamin (1999, p. 58-59) introduz a questão da crítica do seguinte modo: Através da obra filosófica de Kant o conceito de crítica havia recebido um significado quase mágico para a geração mais jovem; de qualquer modo, inegavelmente se associou a ele justamente não o sentido de uma atitude espiritual simplesmente judicativa e não produtiva, mas, para os românticos e para a filosofia especulativa, o termo “crítico” significava “objetivamente produtivo”, “criador a partir da clareza de consciência”. Ser crítico significava elevar o pensamento tão acima de todas as conexões a tal ponto que, por assim dizer magicamente, da compreensão da falsidade das conexões, surgiria o conhecimento da verdade. Nesta significação positiva o procedimento crítico adquire uma afinidade muito próxima com o procedimento reflexivo [...].

Para Benjamin, se o conceito de crítica dos românticos é devedor da filosofia de Kant, ele se distingue do sentido judicativo – ainda que concebido por Kant (1995) como juízo reflexivo – que a atividade crítica ostentava na Crítica do juízo. Não é, pois, propriamente como juízo estético que o conceito de crítica se articula nos românticos, mas como reflexão produtiva. Mas o quê exatamente distingue o procedimento reflexivo dos românticos do juízo reflexivo de Kant? A resposta nos reenvia para a própria concepção da obra de arte como unidade reflexiva e à teoria do conhecimento primeiro romântica, o “conhecer como autoconhecer”: “Na medida em que a crítica é o conhecimento da obra de arte, ela é o autoconhecimento desta; na medida em que ela julga, isto ocorre no autojulgamento da obra.”. (Benjamin, 1999, p. 74). Então a própria utilização do termo “julgamento” é algo contraditória, pois o “julgar” neste caso equivale a “autojulgar”, isto é, reconhecer os princípios (originais) na base da criação da obra singular e, a partir desses princípios, exercer o “juízo”. Ora, tal procedimento é menos o de julgar que o de conhecer no 150

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sentido primeiro romântico. Assim, para os românticos a atividade crítica visa antes de tudo ao conhecimento da arte através da localização da obra singular no medium-de-reflexão da arte. Isso equivale ao reconhecimento, na obra singular, do modo como se particulariza o medium-de-reflexão da arte. Nesta tarefa, a dificuldade com que a crítica se defronta é devida à autolimitação11, na obra singular, do potencial infinito da reflexão, estabelecendo um momento no mediumde-reflexão. Assim, diz Benjamin (1999, p. 77): [...] esta [a crítica] nada mais deve fazer do que descobrir os planos ocultos da obra mesma, executar suas intenções veladas. No sentido da obra mesma, isto é, em sua reflexão, deve ir além dela mesma, torná-la absoluta. [...] para os românticos, a crítica é muito menos o julgamento de uma obra do que o método de seu acabamento. Neste sentido, eles fomentaram a crítica poética, superaram a indiferença entre a crítica e a poesia e afirmaram: “A poesia só pode ser criticada pela poesia”.

A ideia de acabamento, mencionada na passagem acima, faz remissão à teoria do conhecimento de Schlegel e Novalis e indica um elemento constitutivo da obra de arte: só o que é inacabado pode ser conhecido no medium-de-reflexão (dada a sua infinitude). Do mesmo modo, a obra de arte só é passível de ser conhecida, compreendida, em última análise criticada, porque ela é inacabada. Esse inacabamento da obra de arte é estrutural devido ao fato mesmo de ela ser um momento singular do medium-de-reflexão da arte. Nesse sentido, a obra é inacabada não porque se apresente como um esboço ou porque não apresente, no âmbito da sua forma, o acabamento devido. Seu inacabamento refere-se ao fato de, como mônada, conter por assim dizer, em seu movimento formativo, tanto metonímica quanto metaforicamente, o absoluto da arte, qual seja, a Ideia de arte12. Ibid., p. 40. A autolimitação é um ato de liberdade do sujeito da reflexão, autolimitação da reflexão no medium-de-reflexão. Isso, na esfera específica do romantismo, tem a ver com a teoria do gênio. Em nossa leitura, porém, tal teoria é descartada e em lugar do gênio colocamos o sujeito do inconsciente. A introdução do inconsciente implica, em nossa leitura, a relativização dessa “liberdade”, uma vez que a ação do sujeito é condicionada pela lógica do sintoma. 12 Ao final de sua tese, Benjamin inclui um apêndice (Ibid., p. 114-123) no qual ele confronta a concepção de Goethe com a concepção primeiro romântica. Para o primeiro, a obra de arte tem um caráter de “torso”, ela é um fragmento do todo, um fragmento do absoluto. Por seu turno, segundo a leitura benjaminiana, os primeiro românticos entendiam a obra como mônada. O primeiro caso, o torso, é uma 11

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É justamente disso que, segundo Benjamin, a crítica deve dar conta e, nesse sentido, ela complementa a obra ao trazer para o primeiro plano o elemento subjacente que permite designá-la como tal (isto é, uma obra de arte). E, para os românticos, o que constitui a essência da obra de arte é sua criticidade, sua autocriticidade, dado o seu caráter eminentemente reflexivo. É essa reflexão crítica que a crítica deve decifrar sob as formas da obra de arte singular. Ora, se essa operação é considerada segundo o paradigma do “conhecer como autoconhecer”, isso significa que a crítica não faz mais do que desdobrar a reflexão da arte, reflexão que consiste na dimensão crítica da obra. Isso equivale a dizer que a crítica é a reflexão da criticidade da obra enquanto princípio reflexivo desta, na medida mesma em que ela se situa como momento do medium-de-reflexão da arte. O que a crítica de certo modo expõe é, portanto, o medium-de-reflexão, e o faz ao realizar a infinitude potencial da reflexão da obra – tarefa fadada a ser superada, tendo em vista a infinitude mesma do medium-de-reflexão, no qual a crítica se inclui. Walter Benjamin afirma o seguinte sobre a concepção de obra de arte primeiro romântica: A teoria da obra de arte é a teoria de sua forma. A natureza limitadora da forma os românticos identificaram com a limitação de toda reflexão finita [isto é, o que demarca um momento no medium-de-reflexão], e através desta única consideração, determinam o conceito da obra de arte no interior do mundo intuitivo deles. [...] A forma é [...] a expressão objetiva da reflexão própria à obra, que forma a sua essência. Ela é a possibilidade da reflexão na obra [...]; através de sua forma a obra de arte é um centro vivo de reflexão. (Benjamin, 1999, p. 80-81).

A posição central conferida à forma na obra de arte, aquilo mesmo que lhe confere uma dimensão propriamente reflexiva, indica a prevalência do significante na concepção de obra de arte primeiro romântica. Quanto à forma, Benjamin (1999, p. 84) afirma que ela “não é meio para a exposição de um conteúdo”, o que indica a prevalência do significante nessa concepção. Por outro lado, se, como vimos, o significante só é determinável como tal a partir de sua localização em uma cadeia, a forma na obra de arte apresenta esse encadeamento, o concepção metonímica, no sentido elementar da “parte pelo todo”; no segundo caso, o de uma metáfora, que diz o todo por analogia. Na concepção de alegoria de Benjamin, que ele desenvolve em outro lugar (Benjamin, 1985), tem-se o entrecruzamento das duas figuras de linguagem.

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que propomos ser entendido em dois níveis. O primeiro nível é aquele em que a obra oferece por assim dizer “internamente” o encadeamento das suas formas, cadeia esta que define a forma geral da obra. Nesse sentido, a noção de encadeamento indica a dimensão morfossintática da obra de arte. Isso permitirá a determinação do modo próprio como a obra se apresenta enquanto reflexão autolimitada. Deste nível, diremos tratar-se do nível sintagmático, no qual o significante encontra-se vinculado, no enunciado, com o significado. É o nível do conteúdo manifesto (para usar uma expressão freudiana) da obra de arte, justamente aquilo que a crítica precisa superar para encontrar o teor de verdade13 da obra, verdade que é a expressão do medium-de-reflexão pela obra singular. É na superação, pela reflexão desdobrada, disto que designamos como primeiro nível de encadeamento significante na obra de arte, que a crítica deve expor o segundo nível de encadeamento significante, que aponta para a verdade da obra de arte. Esse segundo nível de encadeamento exige, em primeiro lugar, a ampliação da noção de significante, de modo que por este termo seja abarcada a totalidade da forma da obra de arte singular, a obra mesma determinada como significante, o que Benjamin designa, nos seus termos, como a “forma de exposição” da obra (Ibid., p. 92). Nesse nível, para além do conteúdo manifesto da obra, pode ser apreendida a obra na sua singularidade significante, singularidade que é expressão de sua autolimitação no medium-de-reflexão da arte. É o momento de dizer: o medium-dereflexão da arte (a Ideia de arte, o absoluto da arte) consiste na totalidade das obras de arte. Desse modo, o absoluto da arte, presente na obra de arte tomada como mônada, configura-se como a história (das formas de exposição) que de alguma maneira se reflete na obra singular. Portanto, é a partir da diacronia que se pode identificar a singularidade significante da obra (isto é, sua distinção em relação ao continuum das formas, que traduzimos como a dimensão diacrônica da Em outro lugar de sua obra (Benjamin, Walter. As afinidades eletivas de Goethe. In: Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.), Benjamin afirma que a obra de arte contém um duplo teor: “teor factual” e “teor de verdade”. O “teor factual” consiste nos “dados da realidade”. Já o “teor de verdade” consiste naquilo mesmo que dura para além das circunstâncias, do contexto, que viu nascer a obra de arte. Benjamin chama atenção para o fato de que teor factual e teor de verdade encontram-se incrustados na obra. O alvo da crítica consiste justamente no teor de verdade da obra. O teor de verdade, nos termos da tese, consiste no medium-de-reflexão. 13

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cadeia significante), aquilo mesmo em que consiste a sua criticidade, o que, por sua vez, é a chave para a sua criticabilidade, isto é, sua constituição paradigmática. Assim, se por um lado a crítica deve considerar fundamentalmente as formas, por outro lado tal consideração só se dá para que se possa superá-las, de modo a expor o medium-de-reflexão da arte, o absoluto da arte: A reflexão prática, ou seja, determinada, a autolimitação, constituem a individualidade e a forma da obra de arte. Pois, para que a crítica [...] possa ser superação [no sentido hegeliano] de toda limitação, a obra deve repousar nesta limitação. A crítica preenche sua tarefa na medida em que, quanto mais cerrada for a reflexão, quanto mais rígida a forma da obra, tanto mais múltipla e intensivamente conduzida para fora de si, dissolvendo a reflexão originária superior e assim por diante. (Ibid., p. 81).

É a serviço da superação das formas como tais que tem lugar a incorporação, pela crítica, de uma atitude característica da criação romântica: a ironia (Ibid., p. 89-92). Walter Benjamin faz a distinção entre dois tipos de ironia nos românticos (p. 90). Primeiramente uma que ele caracteriza como uma espécie de personificação da arte na pessoa do artista, que assim se coloca acima de toda lei, consistindo nisto a dimensão propriamente subjetivista do romantismo14. Quanto ao segundo tipo de ironia, ele consiste em um procedimento que tem a ver, já na própria criação artística, com certo distanciamento de caráter eminentemente crítico. Benjamin caracteriza-o, na prática artística, como certo grau de dissolução da ilusão (prefigurando o que mais tarde definirá o paradigma do teatro brechtiano) e, com ela, justamente o inverso do primeiro tipo de ironia, qual seja, certa neutralização da intromissão personalista do artista – neste sentido a ironia delineia-se como auto-ironia. Ao segundo tipo Benjamin denomina “ironia da forma” e diz que: A ironização da forma [...] ataca a ela mesma [a forma] sem destruí-la, e é esta irritação que deve visar a perturbação da ilusão [...]. Esta relação indica um parentesco patente com a crítica, a qual dissolve a forma de modo grave e irrevogável para transformar a obra individual em obra de arte absoluta (Ibid., p. 91).

Parece ter sido justamente essa dimensão subjetivista do romantismo, duramente criticada por Benjamin, o que a arte contemporânea manteve dessa escola: a afirmativa, para além de irônica, cínica, de “o que faço é arte, porque eu sou artista”. 14

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Assim, a ironia é corrosão da forma em dois níveis: primeiro, no da obra de arte, como autocorrosão interna; e no da crítica, como corrosão da forma individual no medium das formas que é o medium-dereflexão da arte. Nesse sentido, a ironia funciona como uma espécie de proteção justamente contra o componente emotivo da obra de arte – elemento constitutivo de uma crítica subjetivista e judicativa –, emotividade que faz confundir a autoria com o ego do artista. Ao contrário, a autoria é fruto do próprio movimento, inconsciente, do sujeito. Ademais, se, por seu turno, a crítica é desdobramento da reflexão da obra, ela mesma se configura como reflexão, como movimento reflexivo que permite emergência do sujeito. Nesse sentido, a crítica enquanto requisição da obra de arte não pode cumprir seu papel senão por uma tomada de posição no medium-de-reflexão, isto é, tomada de lugar na emissão: falar, em última análise, abrindo-se assim à crítica por marcar uma posição no medium-de-reflexão, ou, nos termos de nossa aproximação com Lacan, inscrever-se, via significante, no campo do Outro. Ora, tal inscrição é ao que visa uma análise, uma psicanálise, donde se pode dizer que a obra de arte assume um lugar análogo ao lugar do analista15, na medida mesma em que, diante dela, diante dela enquanto forma, o sujeito é requisitado, e requisitado de uma perspectiva eminentemente crítica. Isso implica, de nossa perspectiva, uma particularidade na interpretação da obra de arte. Se a obra de arte é uma unidade reflexiva (sendo este atributo o pressuposto na base da crítica imanente) e justamente esse caráter reflexivo da obra de arte implica a tomada de posição do crítico (isto é, aquele que em princípio pretende analisar, interpretar a obra), essa tomada de posição é reflexão da reflexão da obra; então, a obra, que no início figura como objeto de análise, convertese em analista (o lugar do analista), enquanto que, por seu turno, o crítico, que de início figura como analista, converte-se em analisando. Em outras palavras, se algo da especificidade da obra se deixa ver na crítica – e efetivamente se deixa –, a significação da crítica extrapola a especificidade da obra criticada, uma vez que o sujeito fala na crítica.

15 MDMagno apresenta essa tese da obra de arte como lugar do analista. Cf. MDMagno. Psicanálise e polética. Op. cit.; Id. Est’ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1992. Cf. também, Lima, Márcia Mello de; Jorge, Marco Antonio Coutinho (Org.). Saber fazer com o real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2009.

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Colagem:

uma poética do choque* Leonardo Cesar do Carmo** RESUMO │ O objetivo deste artigo é discutir as colagens do cineasta Luiz Rosemberg Flho (1943 - ) como narrativas de cinema. O princípio destas colagens é o mesmo da montagem das atrações, um conceito criado pelo cineasta russo Sergei Eisenstein (1898-1948), em que a condensação de imagens em um único frame permite uma visão dialética da sociedade. Com base no conceito de imagem dialética de Walter Benjamin (1892-1940), argumenta-se que as colagens são uma prática materialista de escrita da história em que o método da montagem das atrações possibilita que se obtenha uma tripla fusão de performances, fotografias e sons. PALAVRAS-CHAVE │Montagem das atrações; Imagem dialética; Luiz Rosemberg Filho. ABSTRACT │ The purpose of this paper is to discuss the collages by filmmaker Luiz Rosemberg Filho (1943 - ) as film narratives. The principle of these collages the same assembly of the attractions, a concept created by Russian filmmaker Sergei Eisenstein (1898-1948), in which the condensation of images in one frame enables a dialectical view of society. Based on the concept of 'dialectical image', from Walter Benjamin (18921940) we will argue that the collages are a practical materialist writing of history in which the method of assembly of the attractions you get a triple fusion of performances, pictures and sounds. KEYWORDS │ Assembly of the attractions. Dialectical image. Luiz Rosemberg Filho.

AS COLAGENS DO CINEASTA LUIZ ROSEMBERG FILHO SÃO COMO terapia, uma busca subjetiva da história e da beleza. Ele trabalha com o lixo do sistema para conseguir transformá-lo em poesia visual, como se esculpisse um belo corpo de mulher, em uma pedra muito dura. Há nelas uma tentativa de refletir o Construtivismo Russo, as colagens se inspiram nas vanguardas russas dos anos 1920, é em certo sentido uma atualização daquelas propostas revolucionárias. *

Texto originalmente publicado em: Karpa: journal of theatricalities and visual culture, Los Angeles / EUA, Universidade Estadual da California, n. 5, verão de 2012. Republicado com autorização do autor. As imagens por ele utilizadas o foram como cortesia de Luiz Rosemberg Filho. ** Mestre em Educação Escolar Brasileira (PPGE/UFG). Professor da Rede Estadual de Ensino de São Paulo. Colagem: uma poética do choque

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Atualização porque a técnica empregada aplica-se diretamente sobre as tendências evolutivas nas atuais condições produtivas. Não é a recuperação saudosista de um passado revolucionário mas, o questionamento do papel e da função social da arte na sociedade contemporânea. Na contramão do sistema de produção industrial da arte cinematográfica, Luiz Rosemberg Filho utiliza de papel, tesoura, cola e densidade na imaginação. Essa densidade cria o que podemos chamar de uma poética do choque que vai se compondo como um processo de múltiplos antagonismos. Estes antagonismos nascem do fetiche da mercadoria. As imagens tornaram-se o centro da vida moderna e o seu epicentro é o progresso cuja força parece irresistível e incapaz de ser negada ou superada. As colagens de Luiz Rosemberg Filho, ou melhor, suas narrativas fílmicas condensadas nas colagens constituem um diálogo contra essas forças imagéticas, valendo-se dessas mesmas imagens em um processo que talvez possa ser definido como antropofágico. A deglutição crítica das imagens e sua recontextualização como crítica da sua origem: a espetacularização do capital. As imagens do capital são as imagens de um mundo caduco. As colagens de Luiz Rosemberg Filho são citações de imagens. O seu objetivo é construir nessas colagens, imagens dialéticas, uma releitura da imagem pela imagem, porque “só as imagens dialéticas são imagens autenticamente históricas, isto é, não arcaicas” (Benjamin, 2006, p. 505). O arcaico é a imagem da barbárie. A questão política essencial de nossa época é a superação da barbárie. No campo estético, Luiz Rosemberg Filho atua com sua técnica de colagem para construir no interior delas, imagens dialéticas, condensações imagéticas que processam crítica contra o mundo do trabalho, das ilusões, dos pesadelos que se materializam como sonhos, dos sonhos que engendram monstros, de monstros que legitimam uma razão desumanizadora. Uma poética do choque capaz de criticar as monstruosidades da razão é o tema central das colagens de Luiz Rosemberg Filho. Mas, não se propõe aqui uma leitura das imagens, decifrá-las para o leigo ou para o analfabeto em imagens. A proposta é deixar que a visualidade narrativa dessas imagens possam despertar em que as vê, as examina, as toca, as olha, quem passeia os dedos por elas, possa tatear a face petrificada da história, a morte em sua máscara mais bela, sensual, erótica, convidativa: o consumo. A colagem em Luiz 158

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Rosemberg Filho se investe do banal para mostrar que por detrás dele existe um mundo corrosivo, cruel, tirânico. Este é o caso dessa primeira imagem que poderíamos chamar de Carta a Jane em homenagem ao cineaste Jean-Luc Godard e um dos interlocutores preferidos do cineasta carioca. Esta colagem ou fotograma é um convite a uma complexa narrativa fílmica. O fundo da colagem em preto e branco é um rosto desfigurado pelo napalm utilizado pelos Estados Unidos na Guerra do

Vietnã. À face macerada é superposta em primeiro plano por Arnold Schoenberg, no rosto de um palhaço visto pela câmera de Jean-Marie Straub. No alto da cabeça, a rosa judaica cremada nos campos de concentração nazistas. Em cada olho uma câmera e a mesma câmera no nariz. Para vermos, para cheirarmos aquilo que se chama história só mesmo com recursos cinematográficos. O palhaço é a pureza perdida do cinema, a carne transformada em cinzas pela racionalidade técnica. O rosto em carne viva lembra ironicamente em um primeiro olhar, a paisagem lunar. A colagem tem uma rugosidade que contagia quem a toca. Acima da fisionomia mortificada, a Terra, azul, bela, oceânica, vestida de nuvens. No centro da colagem, o Colagem: uma poética do choque

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corpo feminino, sem a cabeça, metade dos braços cobrindo a genitália com uma imagem da Antiguidade Clássica. Ao lado, Vladimir Lênin, ele está no canto do lado direito e o fundo é o mesmo: um homem ou mulher cuja pele se desmancha pela ação química da bomba. Essa colagem ou fotograma reúne idéias políticas, científicas, estéticas sob o olhar do terror do sofrimento, é uma montagem do horror e da barbárie. A única beleza possível nela é a sua recusa. Como se pode observar, parece dizer Luiz Rosemberg Filho, a educação ministrada em Auschwitz fez escola, a academia da destruição coletiva parece a cada ganhar novos e emeritus seguidores. Nessa imagem é possível ouvir o som da pele queimando, crepitando como um galho seco e ainda antes o ruído dos motores dos aviões bombardeando aldeias e civis indefesos. A performance norteamericana no cinema ou na realidade é impecável. “Nos domínios de que tratamos aqui, o conhecimento existe apenas em lampejos. O texto é o trovão que segue ressoando por muito tempo” (Benjamin, 2006, p. 499). O chamado cinema experimental – definido sucintamente como uma narrativa que não segue a linearidade começo, meio e fim – procurando superar a dramaturgia burguesa e a maneira como ela representa no palco a história, o amor, a política, a guerra, os conflitos sociais. Qualquer peça fílmica de Jean-Marie Straub, de Jean-Luc Godard, de Serguei Eisenstein pode confirmar isso. Talvez o ponto em comum entre estes e outros cineastas seja o da compreensão de que a história é catástrofe. E que é impossível representar ou escrever a catástrofe tal como ela se deu ou se dá. A maneira de se contar uma história é um problema para os realizadores que operam com a arte cinematográfica numa perspectiva da exposição de um pensamento dialético, e que a escrita – fílmica, literária, colagem – da história não é uma questão de representação, mas, de apresentação. Resumidamente, a apresentação recusa os arquivos oficiais, distanciase da objetividade positivista e adota o problema de lidar com a memória. Como escrever a história, como colocar a câmera, como construir a mise-e-scène q u e não obscureça os olhos do espectador? Talvez se possa dizer que a montagem das atrações é uma técnica de rememoração, um despertar dos sonhos e que nesse sentido “a superação dos conceitos de ‘progresso’ e de ‘época de decadência’ são apenas dois lados de uma mesma coisa” (Benjamin, 2006, p. 503). 160

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Se colocarmos lado a lado A Lista de Schindler, Steven Spielberg, EUA, 1993, e Shoah, de Claude Lanzmann, França, 1985, poder-se-á ter uma nítida idéia dos traços siameses entre progresso e decadência e do problema da escrita da história partindo-se da representação ou da apresentação. A técnica na colagem de Luiz Rosemberg Filho está mais próxima da apresentação, os elementos d í s p a r e s que ele usa na mesma colagem tem um foco pedagógico no sentido forte do termo. Progresso e decadência referem-se à mesma máscara mortuária da história. A colagem é uma escrita histórica que adota a montagem das atrações – justaposição de imagens numa dialética de extremos – cuja direção talvez possa conduzir para um “ educar em nós o médium criador de imagens para um olhar estereoscópico e dimensional para a profundidade das sombras históricas” (Benjamin, 2006, p. 500). Nesta e na próxima colagem reaparece a figura de Vladimir Lênin. Luiz Rosemberg Filho realiza outra memorável montagem das atrações colocando em um mesmo plano os revolucionários político e estético. Há uma frase elucidativa nessa colagem: AMOR E DOR. Lenin, do lado direito observa uma moderna linha de montagem de produção da indústria espacial. Uma frase do lado esquerdo - Terra vista do céu – compõe esse fotograma que encerra múltiplas narrativas. A lógica capitalista e ética protestante ensinam o amor ao trabalho e ao conhecimento. Mas esse conhecimento não se torna riqueza para o homem e sim a fonte de sua exploração. Quanto mais desenvolvidas as técnicas de produtivas, maior, sutil e velado é o sofrimento humano. O olhar de Lênin e o esboço de um sorriso nos lábios é uma imagem utópica. O homem como proprietário dos meios de produção. Mas, ao mesmo tempo, essa utopia se desfaz, porque a visão que nos é apresentada é a da Lua de Méliès vendo a Terra. É a Lua com o canhão no olho que observa a história terrestre. Essa colagem configura a falsa idéia das conquistas científica está alcance de toda a sociedade. “O conceito autêntico da história universal é um conceito messiânico. A história universal, como compreendida hoje, é um assunto de obscurantistas” (Benjamin, 2006, p. 528).

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A colagem é uma escrita materialista da história e desmaterializa o futuro e passado em um presente infernal. A colagem em Luiz Rosemberg Filho é um filme-colagem, um cinema experimental, imagem

fixa que movimenta a cabeça, a consciência. Não há como comparar uma imagem de Godard com mil imagens da publicidade. Godard faz pintura com o olhar, e não se refugia no glamour do uso da miséria, ou no mercado de compra e venda de quinquilharias. Este fotograma apresenta Lenin com a Lua de Georges Méliès na testa, a calvície dele é em parte tomada pela face lunar a boca entreaberta e surpresa pela invasão do homem. No fundo, a burguesia, a flanerie, com o porta-voz do socialismo à frente da sociedade burguesa. A fusão Lenin com o cinema mágico de Mèliès em Luiz Rosemberg Filho é outra prova do seu cinema das atrações e de experimentação de justaposições estéticas e políticas buscando alcançar ou ampliar o entendimento do homem da ciência e da arte. A lua sai da cabeça de Lenin. A lua é o novo mundo que permanece distante dos figurantes do fotograma: a burguesia ilustre com suas distintas damas de chapéus e a banda de música que celebra a ordem, a segurança, a harmonia social. É uma colagem festiva exceto pelo tom grave de Lenin que prefigura outra performance social, a possibilidades de novas imagens coletivas e sonoridades distantes, latentes, lunares mas que já ocupam o primeiro plano da cena. Como na colagem anterior, a 162

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visualidade desta colagem parece fazer uma crítica contra o procedimento da história da cultura na qual “ela, a história da cultura aumenta o fardo dos tesouros, que se acumulam nas costas da humanidade. Mas, não lhes dá a força de livrar-se deles, para poder apanhá-los com as mãos” (Habermas, 1980, p. 172). A colagem entra na consciência ou no campo de visão de seu eventual apreciador como a bomba lançada pelo obus de Méliès penetra no olho da Lua: os vôos estéticos e políticos abrem novas paisagens para a humanidade, abrindo novas perspectivas e no campo das possibilidades históricas. A colagem é uma crítica do presente congelado em formas arcaicas mas que sob a aparência da modernidade escondem a repetição do novo sempre-igual. Esse filme-colagem coloca o problema o de sua acessibilidade e compreensão pelo público. As colagens – antropofagia dos produtos da indústria cultural – denunciam que a luminosidade das imagens do consumo como cegueira das contradições sociais.

O desafio de Luiz Rosemberg Filho – ou de qualquer dissidente – é: como partindo da artificialidade das ideias visuais do mundo que vivemos, a imagem pode se religar à criação e ao conhecimento? Esta parece ser uma das questões centrais da arte moderna, a de cumprir uma função transformadora ou colaborar com ela no âmbito da sociedade entorpecida pelo capital. O problema pode ser colocado também assim: as colagens levam ao cochilo estético, endossam a passividade comum à produção industrial das imagens ou possibilitam uma constelação do Colagem: uma poética do choque

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despertar do sonho do capitalismo? A questão permanece em aberto e criadores como Luiz Rosemberg Filho parecem não recuar diante da proclamada morte da arte, elaborando novas questões da práxis estética na utilização crítica das forças produtivas como elas se configuram na sociedade nesse momento.

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Finalizando a série de filmes-colagens Vladimir Lênin, Luiz Rosemberg Filho reúne Marx e Freud, dois ícones da modernidade em outra narrativa fílmica construída a partir da montagem das atrações. omo nas outras colagens esta é uma interpretação possível e não a única ou exclusiva. Nela temos uma panorâmica com diversas imagens em primeiro plano. No alto à esquerda, um rolo de filme projecionando a tela inteira para o espectador. Observa-se uma lente e no interior tela a figura da Palma de Ouro de Cannes premiando o que parece f or mas de um corpo feminino. Esse lente e no alto se funde ao gorro de Lenin cujos olhos são rolos de filme. O olhar cinematográfico de Lenin sobre a história, Lenin com os olhos de Eisenstein ou Dziga- Vertov, o líder comunista como a promessa de uma nova arte e sociedade. Um pouco abaixo dele do lado esquerdo, um cine-orelha vertoviano unindo o consciente – a revolução – e o inconsciente – o sonho da revolução -, Marx-Freud, um filmecolagem construído na montagem das atrações. Lênin, o homem com uma câmera escrevendo uma história nova e Freud, o homem do inconsciente ótico, olhar cético quanto as possibilidades da felicidade humana. Se se colocar essas colagens em sequência teremos um filme colagem no qual a política e a arte são as personagens que narradores da ação fílmica. Méliès, Freud e Lênin em um mesmo plano cinematográfico e histórico: o sonho do homem em dominar o espaço, o sonho como a paisagem sombria e ancorado no porão do inconsciente e o sonho de transformar as forças produtivas em favor do homem. O filme-colagem de Luiz Rosemberg Filho parece sintetizar um raciocínio dele no Prefácio do livro que ele organizou sobre o Godard (Godard, Jean-Luc). O cineasta descobriu com Seguei Eisenstein a disciplina da dialética. Com Orson Welles, a provocação dos sonhos. Em Rossellini, a ética da história. Com Luis Buñuel, a pureza do amor com humor. Em Pasolini encontrou a revolução. E em Godard, a poesia, o cinema, a luz, a antropofagia, o inferno. Esses elementos são os componentes da montagem das atrações de Luiz Rosemberg Filho. O conceito de imagem dialética nas colagens de Luiz Rosemberg Filho dialoga com essa cinematografia que talvez tenha como característica central o cinema como experimentação de novas formas de ver e apresentar a sociedade, a arte, a política, a poesia, a história.

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O filme-colagem de Luiz Rosemberg Filho se inspira em Bertolt Brecht. Nesse sentido as colagens podem ser apreciadas como quadros ou cenas de um teatro dialético, um teatro que rompe com o romantismo burguês e busca formas épicas de representação, cujo efeito radical é o de provocar a sensação de estranhamento ou distanciamento quanto às figuras que se encontram na composição de uma colagem. Nesta colagem, intitulada pelo cineasta de Brazil ou Cinema Brasil feita para esta matéria, a montagem das atrações remete ao cinema brasileiro. A montage das atrações remete ao cinemaBrasil de luto. Não mais o cinema novo ou de experimentação mas o Brasil do cinema-morto. Realizador de mais de quarenta filmes entre curtas, médias e longa- metragens, a performance de Luiz Rosemberg Filho no quadro do cinema brasileiro escapa – embora dialogue – dos movimentos conhecidos como Cinema Novo e Cinema Marginal, sem entrar na problematização desses rótulos. Talvez a sua filmografia possa ser definida como um cinema-teste ou de experimentação porque há nele a ambição da narratividade ao mesmo tempo montagem das atrações. Essa questão, que mobiliza teóricos e estudiosos do cinema, se materializa em Luiz Rosemberg Filho nos longas-metragens A$suntina das Amérikas (1976), Crônica de um Industrial (1978) e O Santo e a Vedete (1982). Todos estes filmes, censurados no período da Ditadura Militar tiveram pouca ou quase 166

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nenhuma exibição. Em desacordo com a preferência do público por filmes com inicio, meio e fim, a obra de Luiz Rosemberg Filho conta menos ainda com uma fortuna crítica. A sua performance como diretor e produtor crítico de um cinema industrial que faz concessões aos espectadores e ambiciona prêmios tem impedido, até o momento, de situá-lo na historiografia do cinema brasileiro. Mesmo considerado um dos mais importantes realizadores do País, o seu cinema permanece invisível sob a alegação que seus filmes não são atrativos em termos de bilheteria. Assim, essa colagem, Cinema Brasil é uma crítica à morte da inteligência no cinema brasileiro e uma homenagem aos seus cineastas mais inventivos como Fernando Coni Campos, Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl, Rogério Sganzerla e Glauber Rocha, para citar alguns. O cinema-experimental brasileiro, no entanto, conta com a vitalidade de cineastas independentes como José Sette, Sérgio Santeiro, Andrea Tonacci, Edgar Navarro e Joel Yamagi, numa pequena amostra que ainda há diretores e realizadores que continuam buscando e explorando o cinema como um território desconhecido capaz de revelar outras formas de comunicação estética além das formas consagradas pelo mercado. Nesse contexto, o cinema de Luiz Rosemberg Filho e notadamente seus curtas-metragens – cerca de vinte – entre 20002012, são prova concreta que é possível encontrar formas econômicas compatíveis com estéticas dissidentes e de invenção. Claro, uma performance desvinculada do mercado cobra desses diretores um preço caro e o autoritarismo acaba punindo a dissidência com a falta de espaços na mídia televisiva e escrita ou no circuito exibidor. Um campo de concentração de mediocridade ou pelotões de fuzilamento que zelam pelo bom gosto e a ordem estética mantém sob a mira aqueles que ousam ser criativos na utilização do cinema – e outras linguagens artísticas – como uma forma de pensar o homem e de mudar a sociedade. A crítica ao mercado exibidor é o tema desta colagem que apresenta um filme intitulado Beijo, Cócegas e Tédio. O cinema dominado pelos mortos ou pela ausência do pensamento está explícita à esquerda desse fotograma, quase invisível ao olho desatento: Zumbi Friends Há uma ambigüidade nessa frase porque Zumbi pode se referir tanto ao herói da resistência na luta contra escravocratas no Brasil colonial, quanto a uma confraria perversa Colagem: uma poética do choque

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que mantém o cinema nos limites da banalidade e da omissão política. Grãos de café ocupam o fundo do fotograma e dela emerge uma mão de morto-vivo trazendo no indicador uma estrela de brilho duvidoso. É uma estrela que brilha para a comercialização, na mão cujo centro traz uma frase aterradora: Viva Pinochet. O dedo indicador estrelado oscila entre uma garrafa de CocaCola zero e outra mão da qual desabrocha a flor da morte. Esta colagem talvez seja nesta série a mais óbvia de uma arte política que articula com maestria a crítica social em uma irredutível criatividade estética. Um filme-colagem de terror que ocupa o cotidiano de milhões de pessoas circundadas pelo consumo do café e da coca-cola, pela estrela de falso esplendor que prometia uma nova sociedade, pelo horror incorporado ao dia-adia, pelo refrigerante cúmplice de regimes ditatoriais. Talvez esse filme-colagem pudesse ser intitulado também Coca-Cola com Terror. O filme-colagem de Luiz Rosemberg Filho dialoga também com obras como La Jetée, de Cris Marker, França, 1962. Esta obraprima de Cris Marker permanece extremamente atual em sua forma e conteúdo das possibilidades expressivas da arte cinematográfica. Como no filme desse cineasta, as colagens de Luiz Rosemberg Filho, nos conduz em um sonho ou um pesadelo no interior desse fantasma que se chama história e do qual é preciso despertar. 168

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Em seu curta metragem mais recente, 2012, Colagem ou o Cinema do Corpo e do Pensamento Luiz Rosemberg Filho parece retomar em sentido poético a película de Cris Marker. Durante vinte minutos o espectador tem diante de si uma série de colagens condensadas em imagens dialéticas fazendo a crítica das imagens arcaicas da modernidade, materializando na película uma escritura visual de alta tensão histórica. A sociedade do fetiche da mercadoria é desnudada e sua performance, imagens e sonoridades de cinema industrial são desconstruídas pelo filme-colagem, pela montagem das atrações que submetem o espectador a outra exposição mental de imagens. Esse filme parece ser um ponto alto na experimentação do cineasta.

O Super-Homem George Bush investe contra África em uma metáfora da civilização branca e européia invadindo com os seus super-poderes dados pela ciência o berço ancestral da origem do homem. O corpo do ex-presidente George Bush é dotado propositalmente de uma musculatura à la Hulk. A potência da força e do ódio contra o saber primário. Na colagem, George Bush em primeiro plano deixa o continente africano para trás e ganha o espaço em busca de novos territórios para dominar. Os punhos fechados, a Colagem: uma poética do choque

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boca hirta, a magnitude corporal de seu voo parecem torná-lo invencível, senhor da razão e civilizador de outros povos. O corpo e o pensamento do Super-Homem Bush constituem crítica expressa ao mito de águia norte-americana. A águia que patrulha o mundo e que em nome da democracia – como no outro filme-colagem – atira napalm em camponeses indefesos. O herói nessa colagem é a imagem da destruição asséptica. No imaginário do cinema norte-americano homens de branco ou de preto defendem a Terra dos alienígenas sejam eles extra-galácticos ou habitantes de outros pontos do planeta. Essa colagem é o exemplo de como o sucesso de bilheteria confirma a também o triunfo da estupidez frente ao culto de imagens de modo passivo e acrítico. A colonização cinematográfica norte- americana – sem desconsiderar o cinema independente dos Estados Unidos – é um poderoso campo magnético de domínio e para o qual ainda não se encontrou a kriptonita capaz de neutralizar ou destruir seu poder em uma sociedade espetacularizada.

Nesta colagem, de Virgulino Ferreira Jovina da Conceição, Souto, Moreno, em 170

temos dois cangaceiros centenários do bando da Silva, vulgo Lampião, (1898-1938). Maria a Durvinha faleceu em 2008 e José Antonio 2010. Na colagem, o casal é apresentado CÍRCULO DE GIZ


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romanticamente sob o luar do sertão, não o do Catulo da Paixão Cearense, mas, o da Lua de Mélies No colo de Moreno,a câmera olha desconfiada para uma flor artificial. O casal sobreviveu anonimamente durante anos em Belo Horizonte, sem revelar sua vida no cangaço, divide o plano com esta película que inaugura de certo modo, um cinema de invenção. A montagem das atrações une no tempo cinematográfico épocas e distantes e distintas. A câmera funciona como o olho que rememora e revela os tênues limites entre a ficção e a realidade. A história é uma construção onde o provável e o improvável é uma opção do modo como se materializa a escrita fílmica da história. Neste filme-colagem é a lua que assiste ao filme dos sobreviventes de Angico, em Sergipe. A câmera – o instrumento de registro – aparece como personagem no mesmo plano onde o artificial, o natural e o histórico se conjugam.

A lua de Georges Méliès é uma imagem recorrente no filmecolagem de Luiz Rosemberg Filho. A importância desse extraordinário inventor é visível de muitas formas em inúmeros cineastas. Um deles é Godard que discute em seus filmes o que é filmar, o que é em um filme documentário e ficção. Talvez a raiz dos Colagem: uma poética do choque

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filmes do cineasta francês e de Luiz Rosemberg Filho sejam a mesma: a mágica de Méliès e a montagem de atrações de Eisenstein. Há uma discussão célebre em A Chinesa, França, 1967, de Jean LucGodard em uma sequência antológica para os cinéfilos, quando um dos estudantes do filme explana se Auguste Lumière e Louis Lumière, criaram o realismo e George Méliès, o cinema de ficção. Essa é uma discussão longa e nos limites deste texto o que importa é salientar que uma das personagens afirma que os filmes de Méliés eram como cine-jornais com distanciamento brechtiano. O que Godard propõe nessa discussão é o inserir da montagem das atrações sem abrir mão da narração claro, fora dos padrões do cinema industrial. O mesmo se podem dizer desse filmecolagem de Luiz Rosemberg onde em um mesmo plano temos quatro imagens distintas: o fundo da tela negra aberta a todas as possibilidades do fotograma. A lua de Mèliès olha e é olhada por um espectador ou cineasta do inicio do século com um rolo de filme na altura de sua mão. Esse rolo projeciona a lua no céu do cinema e ao mesmo tempo irrompe nas bordas do fotograma, u m a mulher com a nádega coberta de areia com o carimbo poststamp. O plano não deixa de lembrar Godard para quem a belo clássico foi substituída pela beleza mundana. Luiz Rosemberg Filho coloca a mulher sob um fundo celeste que pode ser o mar ou a terra e o azul e o negro da colagem arremessam o espectador para um espaço múltiplo que é o da montagem das atrações. O sentido estético e político que há nesse procedimento é que o natural e o que é forjado podem ter a mesma origem do ponto de vista da produção de mercadorias. Nesse processo a mulher tornou-se um objeto artificializado. A beleza da lua cinematográfica encontra-se com o belo feminino que é no fotograma uma imagem eroticamente idealizada. Para Luiz Rosemberg Filho, ambas são trucagens. Mas, talvez, a paisagem lunar seja mais verdadeira como criação poética e a mulher, uma beleza naturalizada, é só uma fantasmagoria. De novo a lua de Méliès procede como um comentarista: a lua de massa gelatinosa do filme parece ser mais humana que o corpo domesticado pelo mercado. A última colagem é a de uma moldura exibindo um rolo de celulóide onde o espectador assiste a um filme chamado Educação. Do título cai uma gota de sangue sobre uma imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus. A imagem é surrealista. Em primeiro 172

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plano, um palhaço derrama uma gota de sangue sobre um corpo feminino de uma pintura renascentista. Ao lado, Jesus celebra e abençoa alimentos no rito da transubstanciação do corpo e do sangue divino em matéria fílmica. Jesus torna-se uma personagem de cinema. O palhaço encara o espectador e o olhar perdido da mulher nua cobrindo a genitália deixam um recado claro: o filme-colagem de Luiz Rosemberg Filho é uma poética do choque, um cinema do corpo e do pensamento. Pensar a sociedade com a ousadia cinematográfica de Méliés pode ser só uma quimera cinematográfica, mas o cinema existe para ensinar o homem a voar.

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Trabalho, 2011, é um curta-metragem de Luiz Rosemberg Filho, narrado por José Carlos Asberg, e sintetiza nas imagens em movimento combinadas com justaposição de colagens a argumentação central desse texto: o filme-colagem como aplicação da teoria da montagem das atrações. O curta é uma crítica imagética do capital e evoca Tempos Modernos de Charles Chaplin, 1936, como fio condutor de sua narrativa. Escapar da engrenagem capitalista que também gera um tipo de cinema é um dos problemas abordados neste curta. Na tela, colagens de Nosferatu, guardião de sonoridades metalúrgicas e siderúrgicas deste reino dos mortos, o mundo do trabalho. O vampiro-trabalho. O trabalhador vive do esquecimento de si mesmo. Esquecimento alimentado pela falência dos sindicatos e dos partidos políticos que se submetem ao fascismo da ordem e do progresso. O construtivismo russo, o teatro brechtiano são utilizados por Luis Rosemberg Filho para mostrar a performance de corpos vampirizados pelo trabalho alienado nas linhas de montagem da moderna sociedade industrial. No filme não há diálogos mas citações de pensadores como Wilhelm Reich, Paul Lafargue, Honoré de Balzac, Florestan Fernandes e Artur Schopenhauer, em uma crítica feroz que une a família à Hollywood. Trabalho é uma escrita fílmica da história, um exercício de visualidade radical, no qual as imagens assumem a função de fazer a crítica das próprias imagens. A poética do choque nos filmes-colagens de Luiz Rosemberg são um manifesto em favor da vida diametralmente opostas ás forças da morte que se opõe ao gozo, ao prazer e à felicidade e tem como um aliado poderoso as imagens arcaicas, imagens que celebram a sedação e a surdez dos sentidos humanos.

Referências Bibliográficas Benjamin, Walter. Passagens. Belo Horizonte e São Paulo: Ed. UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Filho, Luiz Rosemberg. Prefácio. I n : Godard Jean Luc. Rio de Janeiro: Tourus, 1986. Habermas, Jurgen. Sociologia. São Paulo: Ática, 1980. 174

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Tempo e eternidade:

o efêmero, o utópico e o trágico

Diogo Cesar Nunes* RESUMO │ Eterno é aquilo que, reinventado a cada nova situação, persiste. No plano da existência ou da insistência, a eternidade revela a tragicidade da temporalidade humana. Por outro lado, revela também que é por conta de seu caráter efêmero que a vida humana, no tempo, adquire sentido: porque efêmera, a vida é potência, inclinando-se sempre ao porvir. Cada obra da criação humana é, assim, temporal e eterna, porque grávida de tempos múltiplos, insistentes e persistentes, a atualizar os futuros sonhados no passado. PALAVRAS-CHAVE │Tempo; Efêmero; Utopia; Eternidade; Temporalidade. ABSTRACT │ Eternal is what, reinvented in each new situation, persists. On the level of the existence or the insistence, the eternity reveals the tragedy of human temporality. On the other hand, it reveals also that it is because of its ephemeral character that human life, in the time, acquires a meaning: by being ephemeral, life is potential, leaning always to what is to come. Each work of human creation is, thus, temporal and eternal, because it is pregnant of multiple times, which are insistent and persistent, updating the futures dreamed up in the past. KEY WORDS│ Time; Ephemeral; Utopia; Eternity; Temporality Ó Tideide, ardoroso de ânimo, por que perguntas minha origem? Símile à das folhas, a geração dos homens: o vento faz cair as folhas sobre a terra. Verdecendo, a selva enfolha outras mais, vinda a primavera. Assim, a linhagem dos homens: nascem e perecem. Homero.

ASSIM COMO AS FOLHAS, OS HOMENS NASCEM, VERDECEM E PERECEM. O que caracteriza a “geração” (raça, estripe) dos homens é a “geração”, ou seja, o tempo: enquanto passagem, brevidade, impermanência1. Os versos citados em epígrafe, 145-50 do canto VI de Ilíada, aparecem na Elegia de Semônides de Amorgos como “o que de mais belo [ou mais Historiador; mestre e doutorando em Psicologia Social (UERJ). Professor do UNIABEU Centro Universitário; pesquisador bolsista do Programa de Bolsas Institucionais PROBIN-UNIABEU. 1 “Note-se [...] a sutileza com que Glauco altera ao sentido dado no contexto ao substantivo genéen (145) que, usado como significação de ‘estripe’, ‘raça’, no relato sobre os antepassados, ganha, em sua fala, a outra acepção possível, ‘geração’, para introduzir o tópico da brevidade da vida” (Vireira, 2001, p. 124). *

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notável] disse o homem de Quios”.

O mais belo que disse o homem de Quios – “os homens passam como as folhas caem” – poucos mortais, de fato, o compreenderam, abrigando no peito vãs esperas. Enquanto a flor da juventude dura, o homem projeta, cego, o irrealizável: são, desconhece a negra enfermidade nem suspeita da morte ou da velhice. São ingênuos, de espírito ligeiro não sabem o que dura a juventude, breve chama na vida dos mortais. Mas tu, que é sabedor destas verdades, morde o fruto que a vida te oferece, desfruta o quanto podes da existência.2

A condição temporal do humano se revela senão instituindo certo “sentimento de precariedade”, como chamou Roque Spencer Maciel de Barros (1993, p. 215), que,

aliás, perpassa, na Ilíada, as muitas passagens em que Aquiles é posto diante da escolha decisiva de seu destino: de um lado, a vida longa e sem glória – com o herói reconhecendo que a vida vale mais que todas as riquezas – e, de outro, a vida heroica, mas breve.

À semelhança de Semônides, também as Elegias de Mimnermo retomam o “sentimento de precariedade” daqueles versos ilídicos. Nos dois primeiros versos da segunda Elegia, como traduzidos por Roque S. M. de Barros (1976, p. 183; 1981, p. 224): “Por breve e fugitivo instante, apenas, / somos folhas da rósea primavera”. A juventude, que abriga a vida, é “efêmera como um clarão de sol”, diz no verso 10. A vida humana é efêmera. Ephemeros (Epi, “sobre”; Hemerai, “dia”), com efeito, significaria aos gregos não necessariamente a “precariedade”, como se emprega no contemporâneo, mas, antes, a ideia de que “o homem depende dos seus dias” (Lloyd, 1975, p. 139). Neste sentido, o precário da condição humana revela mais que um sintoma de decadência e/ou pequenez fronte à natureza, mas também o oposto: sua potência, sua primavera, seu “clarão”. O homem é efêmero porque depende dos seus dias, ora, porque inacabado, incompleto; porque sua morada (êthos) é o tempo. "O êthos do homem é o seu daímôn", escreveu Heráclito. Sobre 2

Tradução (ou “recriação poética”) realizada por Roque S. M. de Barros (1976, p. 183).

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este fragmento, disse Miguel Spinelli (2009, p. 19) que “o termo êthos insinua justamente o modo humano de habitar a si mesmo, e, o daímôn, de destinar a si mesmo”. Destino, assim, que não é propriamente um telos, mas, antes, expressão de um arbítrio interno, do animus, da potência (Spinelli, Op. Cit.). Ou seja, efêmero, o homem encontra casa no emaberto dos seus dias, no inacabado da sua vida, no indeterminado do seu destino. O homem é efêmero porque potência; porque, no homem, lugar e tempo não designam duas orientações de naturezas distintas: seu lugar é o tempo. Como cantou J. L. Borges em Son Los Ríos: Somos el tiempo. Somos la famosa parábola de Heráclito el Oscuro. Somos el agua, no el diamante duro, la que se pierde, no la que reposa.

Somos el río y somos aquel griego que se mira en el río. Su reflejo cambia en el agua del cambiante espejo, en el cristal que cambia como el fuego. (Borges, 1989, p. 463).

* Uma vez que potência, a vida humana lampeja, como breve chama, como um clarão de sol, como folha rósea na primavera. O dilema de Aquiles – vida longa mas sem glórias ou vida breve mas heroica – expressa a própria tragicidade do tempo para o homem, posto que seja tanto a condição quanto o limite da vida. “Sair da vida e entrar para a história”, lembramos a Carta de Getúlio Vargas, significa mais que uma equiparação entre história e morte, mas o que poderia mesmo ser o contrário: sair da “vida”, em seu sentido biológico, e entrar em outra lógica temporal, em que o efêmero se retira (ao menos parcialmente): o tempo da memória, do mito, da Alétheia. O gesto que atravessa a vida em direção à história é o de escapar ao esquecimento e encontrar a glória. Glória, nos lembra Agamben (2011), em grego é doxa, termo que pode ser também traduzido como opinião e/ou opinião pública. Assim, a glória do herói é ser lembrado, ser mantido vivo, nas memórias e nas narrativas de outrem; ora, é habitar, assim, um tempo não mais efêmero – ou seja, que não mais depende dos seus dias. Eterno, o herói sai da “vida” para permanecer num tempo fora do próprio tempo, ou, ao menos, um tempo não mais efêmero. Como epígrafe de História, Memória e Esquecimento, Paul Ricoeur (2007) cita frase de Vladimir Jankélèvich que diz: “Aquele que já foi já não pode Tempo e eternidade

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mais não ter sido: doravante, esse fato misterioso, profundamente obscuro de ter sido é o seu viático para a eternidade”. Em parte como melancolia, em parte como tentativa de expressar o caráter essencialmente contraditório da sociedade moderna, Benjamin vislumbrou, através de Baudelaire, o “nosso heroísmo” no “espetáculo da vida mundana e das milhares de existências desregradas que habitam os subterrâneos de uma cidade grande” (Benjamin, 1994a, p. 77-78). As prostitutas, os criminosos e, sobretudo, os suicidas, seriam as representações do heroico num tempo inglório. “Império do efêmero”, tomando emprestado título de Lipovetsky (2007), a modernidade representa, assim, a decadência, não propriamente da moral, ou dos “grandes atos” de bravura que constituiriam a biografia do herói, mas da memória. Sob o signo de Benjamin, Ecléa Bosi nos fala de “tempos vivos” e “tempos mortos”, em que os últimos, vazios e alienados, com a “secularização moderna” fazem confundir memória e ideologia (Bosi, 2003, p. 22): “As coisas aparecem com menos nitidez dada a rapidez e a descontinuidade das relações vividas; efeito da alienação, a grande embotadora da cognição, da simples observação do mundo, do conhecimento do outro. [...] Desse tempo vazio a atenção foge como ave assustada” (Ibid., p. 24). Sem a possibilidade da eternidade garantida pela glória, ou seja, pela memória, o efêmero recai num niilismo opressivo, julgando “vã” qualquer espera. * Disse Ernst Bloch que “o que caracteriza o amplo espaço da vida ainda aberta e ainda incerta é a possibilidade de velejar em sonhos” (Bloch, 2005, p. 194). O sonho diurno, aquele que se tem quando acordado e projeta o futuro, na filosofia da Esperança de Bloch é o que anima o homem a querer mais, e, assim, ir adiante, dando sentido à existência. Signo da potência que distingue a existência humana no-mundo, o sonho revela o daímôn, que, em Bloch, é utopia. U-topos, não-lugar como não-aqui e nãoagora, como lugar indeterminado para o qual aponta a potência, o aindanão-realizado, ainda-não-desvelado: destino que não é tanto ponto-dechegada, mas, antes, e sobretudo, aquele arbítrio interno, o animus. Uma vez que potência, a vida humana inclina-se para o porvir. Como potência, ela é ainda-não. Com efeito, a potência instaura a temporalidade na mesma medida em que é instaurada por ela. O tempo tem sentido (direção) na expectativa do porvir; a vida, como potência, 178

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tem sentido (razão-de-ser) como possibilidade de realização do que, como latência, ainda-não-é. O sonho, assim, é a abertura (do sentido) do tempo que revela a vida como potência: instituindo, no agora, o depois, e, neste gesto, preenchendo o presente de possibilidades, ora, de sentidos. Saturada de “agoras” (Benjamin, 1994b, p. 229), a realidade presente “ainda não foi elaborada e contém em sua margem coisas que se avizinham, que estão irrompendo” (Bloch, 2005, p. 195). O que permite o sonho é justamente aquele “sentimento de precariedade”. Algo falta, algo é ausente: o hiato que faz da potência potência, ou seja, que a separa do ato, o seu destino, é a abertura que produz o desejo utópico. O sonho se instaura nas lacunas, preenchendo o instante de sentido e transformando o não-ser em ainda-não-ser. Promessa da realização plena da potência que lhe temporaliza e dá sentido, “a utopia é o lugar do ser da liberdade” (Lima, 2008, p. 15). * A vida humana transcende a sua condição zoológica (ou, num termo mais apropriado ao uso comum, biológica), o reino do orgânico e das necessidades. Como potência, a vida humana é qualificada (Aristóteles, 1985). Bíos e não zoé. Bíos porque ser de (ou da) linguagem, do Logos. Como ser do Logos, o homem transcende a pura animalidade e tem seu destino em aberto. É a capacidade de decidir sobre o próprio destino que interliga, no homem, vida, política e linguagem. Na cidade, na Polis, os indivíduos decidem seu destino em comum confrontando suas opiniões, através da linguagem, ou seja, daquilo que os distingue das demais formas de vida, o Logos. Humaniza-se, portanto, através-do-logos, dia-logando. A transcendência do reino das necessidades, da animalidade, permitida pela linguagem faz do homem um ser essencialmente político. A política, assim, é tanto “a ciência” que prescreve a finalidade de todas as demais ciências quanto a condição da humanização. O, diga-se, “fato” de a vida humana ser em-aberto significa que seu destino realizase no diálogo, na política – dialeticamente, a política como condição da humanização revela justamente esta abertura. A humanização do homem (pela linguagem, pelo diálogo, pela política) somente faz sentido, portanto, na medida em que se supere zoé, a animalidade, que marcaria seu “instinto de autopreservação”; a rigor, que se supere a necessidade da autopreservação. Nas Minima Moralia, escreveu Adorno: Tempo e eternidade

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A questão sobre o alvo da sociedade emancipada recebe respostas como a realização das possibilidades humanas ou a riqueza da vida. Se a questão é tão ilegítima quanto inevitável igualmente é inevitável o caráter repulsivo, triunfal da resposta, que traz a lembrança do ideal de personalidade da social-democracia do final do século XIX, de barbudos amantes da natureza desejosos de gozar a vida. A única delicadeza se encontraria no mais grosseiro: que ninguém mais precise passar fome (Adorno, 2008, p. 152-153).

Que a liberdade se realize, ou seja, que se realize a sociedade emancipada, que o humano seja humano, não significa outra coisa, na sua mais profunda crueza, que: que ninguém mais passe fome; que não haja mais homo sacer, indivíduos reduzidos à zoé, à “vida nua”. Assim, disse Jameson, a Utopia é o “afastamento daquele impulso de autopreservação, uma vez que ele teria se tornado desnecessário”. Em tempos de minima moralia, de moral mínima, a afirmação da liberdade não pode se dar senão na negação da não-liberdade. * A utopia como destino ainda-não-realizado da vida humana, seja como topos porvir da existência individual (sonho diurno), seja como realização da humanização do homem na liberdade através da política, ou seja, da práxis (utopia concreta), move-se no interior de um conflito persistente entre existência e insistência. De certa perspectiva empírica/objetiva, a utopia não existe: a potência e a liberdade não se realizam (e/ou realizaram). Mas “o contrário da existência não é a inexistência, mas a insistência”, escreveu Žižek (2003, p. 37), compartilhando uma disposição utópica: “o que não existe continua a insistir, lutando para passar a existir”. Pelo seu próprio conceito, o utópico não se realiza: u-topos, semlugar, não-lugar, lugar ainda-não-realizado. Que a vida humana seja efêmera, inacabada, potência, em devir, colhe-se daí o animus da Esperança. Que, justamente por isso, ela insista, inscreve-se a utopia na “essência do trágico”. A “essência do trágico”, se é que podemos encontrar um denominador comum entre as suas múltiplas formas de expressão, tanto na vida quanto na literatura, no mundo antigo quanto no moderno, parece-nos importante para realizar o seu designo, para converter em realidade o seu projeto, obstada no seu caminho por poderosas forças exteriores, sejam as de um cego destino, sejam as resultantes de decisões alheias que coíbem nossa ação. Se não houvesse os terríveis obstáculos não haveria tragédia, como tragédia não existiria sem a vigorosa afirmação da liberdade. (Barros, 1981, p. 225).

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Lutando para existir, a liberdade faz sombra à não-liberdade. “É que a utopia é, de alguma forma, negativa, e é tanto mais autêntica quanto menos pudermos imaginá-la” (Jameson, 2006, p. 274). Primeiro como Esperança, depois como tragédia, a utopia persiste como negação do instante presente, perguntando sobre o que, nele, insiste como falta, ausência, e, assim, latência. É este o teor da sua contemporaneidade; contemporâneo que, como disse Agamben (2013, p. 62-63), “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros”. No poema Não Procures, de Maria João Cantinho: Não procures senão a sombra a ausência O início do círculo, o que nos salva A nós, que não somos senão animais, embriagados de luz na orla do sonho. (Cantinho, 2011).

O utópico, esperançoso e trágico, antes (ou mesmo: em vez) de uma imagem da realização da liberdade, é a negação da não-liberdade, a afirmação da vida como potência e, portanto, necessariamente, o confronto à realidade que a impede. A “função” (sic.) da Utopia, disse Jameson, [...] está não em nos fazer imaginar um futuro melhor, mas na maneira pela qual ela demonstra nossa completa incapacidade de imaginar tal futuro, ou seja, nossa prisão em um presente nãoutópico sem historicidade nem futuro, revelando a clausura ideológica do sistema no qual nos encontramos confinados e presos. (Jameson, 2006, p. 274).

Assim, a negação da utopia não é a constatação da não realização do u-tópico, da liberdade, seu aspecto trágico, mas o presente como “prisão”, constituído pelo confinamento da potência através do não reconhecimento de si mesma enquanto tal. Pois “a consciência utópica quer enxergar bem longe”, disse Bloch (2005, p. 23), “mas, no fundo, apenas para atravessar a escuridão [...] do instante que acabou de ser vivido, em que todo devir [Seiende] está à deriva e oculto de si mesmo”. Neste sentido, é sobre a clausura do presente, a alienação temporal do instante, o confinamento do agora que confunde sombra com vazio de luz, que investe ímpeto utópico: resgatando, inventando, projetando uma “saudade do amanhã” em que a temporalização do presente o preencha de agoras – aninhando futuros e memórias, num tempo que “ferve” todas as auroras: O que devemos é ferver o corpo enorme de todas as mortes no caldeirão maior ainda de todas as auroras. Sim, diariamente as horas

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deveriam soprar no olho de todas as fogueiras os vendavais contidos nas grandes invenções do homem. (Félix, 1981, p. 99)3.

Todas as horas, os vendavais das grandes invenções do homem retornam anunciado o novo, as auroras porvir. Todas as horas, no caldeirão de todas as auroras, o passado supera a morte, renovando o eterno, preenchendo-o do “ar primaveril” que anuncia o amanhã. * Como objeto histórico, uma obra como a Ilíada é temporal e eterna. Eternidade esta, pois, também precária, e não totalmente livre da efemeridade. Os seus dias, dos quais depende decerto, não são mais (somente) seus: depende fundamentalmente dos dias de outrem. Eternidade, portanto, “não no sentido de uma série de características universais e abstratas que podem ser aplicadas em toda parte”, como disse Žižek (2011, p. 19), “mas no sentido de que deve ser reinventada a cada nova situação histórica”. A eternidade, assim, é alteridade em sentido propriamente dialético: permanecer vivo no outro, reinventado pelo outro. A obra é temporal, em sentido histórico. Seu tempo, contudo, não somente não a esgota, como, a permanecer viva, a insistir em sentidos ainda-não-revelados, desdobra-se em outros tempos, que a mantém como sinal extemporâneo capaz de revelar/provocar sempre algo novo. Com efeito, seu tempo não é meramente deduzível de dado contexto sócio-histórico. Como escreveu Olgária Matos (2010, p. 167), “um anacronismo latente faz com que as literaturas compartilhem espaços e tempos heterogêneos e simultâneos”. Porque há latências de futuro em cada obra do passado, memórias de futuros não realizados, saudades reminiscentes de tempos imemoriais, sonhos de outrem cuja “herança” não é precedida de qualquer testamento, ela há de insistir em contemporâneos ainda ocultos em cada presente. “Apenas porque há um futuro oculto no passado”, escreveu Maurício Lissovsky (2008, p. 26), “todo arquivo [dizemos, toda obra] estará sempre vivo[a]”. Uma história poética, como história do futuro, é feita de encontro e de acasos. [...] é por meio do futuro guardado neles que os vestígios do passado visam o presente e nos dizem alguma coisa. [...] Todo “achado” historiográfico é um olhar correspondido que atravessa as eras, o reencontro de um futuro que o passado sonhara – e que somente o nosso próprio sonho de futuro permite vislumbrar.

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Penúltima estrofe do poema Sim, no livro Em Nome da Vida, de Moacyr Félix (1981).

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