Continente #099 - Street art

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Rafael Gomes

aos leitores

Quando o envelhecer faz bem aos olhos

E

steve em cartaz nos cinemas um filme cujo argumento, baseado em conto de F. Scott Fitzgerald, era o da possibilidade de um homem nascer velho e rejuvenescer, morrendo aos poucos de tão... jovem. Na sociedade contemporânea, em que a juventude é um valor supremo, esta parece uma possibilidade tentadora, embora mortificante, como no filme, se experimentada em solidão. Envelhecer pode ser uma experiência gloriosa, quando nos possibilita o prazer do caminho trilhado, marcando-nos de experiência. Se no corpo essa é uma trajetória sofrida de rugas e flacidez, nas cidades é um processo belo e rico, porque podemos perceber nelas as camadas de tempo vivido sem dor. E, quanto mais vivemos, mais nos comprazemos em detectar a passagem de Cronos sobre as pedras. Assim nos parece ter ocorrido ao sociólogo Francisco de Oliveira que, migrado do Recife, escreveu sobre a cidade um ensaio memorialístico, com uma tangível saudade de sua paisagem. Sob a influência desse texto, foi realizado para esta edição um breve ensaio fotográfico, que se pretende uma homenagem à musa nos seus 472 anos. A mesma Recife das paisagens lembradas pelo sociólogo é espaço para outros olhares e intérpretes. Também nesta edição observamos dois modos de amar e ocupar a cidade. A street art, expressão inglesa que chamamos de arte urbana, tem sido um modo combativo dos artistas mostrarem seus trabalhos fora dos museus, galerias, instituições. Aqui procuramos interpretar o fenômeno – que tem os jovens (eles de novo) como maiores protagonistas – do ponto de vista local e mundial. Outro acontecimento urbano que nos chama a atenção e que se relaciona à produção artística – mantendo aproximação com aspectos de contravenção relativos à street art – é o papel de formadores de opinião que vêm adquirindo os vendedores ambulantes de CDs piratas na RMR. Em reportagem, ouvimos alguns desses novos agentes, e sobre como eles influenciam o gosto musical de parte da massa de indivíduos que trafega diariamente pelas ruas centrais e periféricas, numa relação para a qual muitos ainda não atentaram ou à qual não deram importância. O leitor tem em mãos a última edição no atual formato da Revista Continente. Em abril, na edição de nº 100, lançaremos novo projeto editorial e gráfico, no qual já estamos trabalhando e sobre o qual esperamos respostas do público.

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O bem-amado no cinema

Grafitti invade as ruas

A novíssima música mineira

CONVERSA 4 >> Hannah Arendt e Octavio Paz em diálogo BALAIO 10 >> Escritores e suas experiências macabras ARTES 12 >> Street art nas ruas da cidade 20 >> O pós-graffiti no mundo 25 >> Artistas retrabalham técninas tradicionais

LITERATURA 30 >> Dois autores da atual prosa lusitana 34 >> Seleção de comédias de Artur Azevedo 36 >> Agenda Livros MÚSICA 38 >> Bandinha de lata na Rede 40 >> O que há de novo na cena musical mineira 44 >> Desejos da Orquestra Sinfônica do Recife 48 >> Os DJs piratas das rádios ambulantes 54 >> Agenda música

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www.continenteonline.com.br

Bastidores do cinema Além da matéria sobre os bastidores da gravação do filme O bemamado, publicada nesta amado Continente, nosso site Continente traz uma matéria similar que conta como foram as gravações do filme Lula, Brasil, em Capoeirasfilho do Brasil PE. Um ensaio de fotos mostra a movimentação gerada pelas filmagens dos dois longas

Os DJ's das ruas

e mais... HOMENAGEM 56 >> Declaração de amor ao Recife

Reprodução

ESPECIAL 68 >> O mito da monogamia em xeque

Confira um depoimento de Robert Bresson sobre o cinema e leia seus aforismos

AGENDA.COM 82 >> Casas bizarras e geniais CINEMA 84 >> Os bastidores d'O bem-amado 92 >> DVDs destacam obra de Robert Bresson

Monogamia no mundo contemporâneo

Assista ao curta Uma viagem pitoresca: de Debret às escolas do século 21

Ouça as composições da nova geração da música mineira

Leia um trecho do livro: Para que serve a verdade? MAR 2009 • Continente 

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conversa

Eduardo Jardim

Hannah Arendt associou o aparecimento dos regimes totalitários à falência da autoridade política. Octavio Paz notou que a falência dos projetos revolucionários no século 20 representava o fim da modernidade ocidental

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Precioso diálogo que nunca existiu 27/2/2009 15:18:14


O professor de filosofia Eduardo Jardim imaginou (e transformou em livro) um encontro entre dois grandes pensadores do século

André Teixeira

passado: a alemã Hannah Arendt e o mexicano Octavio Paz ENTREVISTA A Eduardo Cesar Maia

O

livro A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz nasceu quando Eduardo Jardim, conhecedor da obra da filósofa alemã e do ensaísta mexicano, descobriu que ambos, por coincidência, deram aula na mesma época e lugar – o segundo semestre de 1965, na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. Jardim se dedicou à obra e à personalidade dos dois autores e percebeu as afinidades entre eles: ambos retrataram com traços parecidos o cenário do mundo contemporâneo, mostrando o século 20 marcado por uma crise e, ao mesmo tempo, vislumbrando caminhos ainda não explorados na filosofia. Segundo Eduardo, “Minha intenção era fazer um ensaio que os aproximasse. Então me dei conta de que poderia redigi-lo na forma de uma conversa entre os dois. Os temas da amizade, do debate, do diálogo e da comunicação estão no centro de suas preocupações”, explicou. Eduardo Jardim é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia da PUC-RJ. Publicou os livros: A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica (Graal, 1978), Limites do moderno (Relume Dumará, 1999), Mário de Andrade: a morte do poeta (Civilização Brasileira, 2005), além deste A duas vozes, que foi o tema da entrevista a seguir:

Arendt e Paz têm em comum a vivência em uma época de intensa crise intelectual e política no Ocidente. É essa circunstância que os aproxima como pensadores ou a semelhança é de outra ordem?

Hannah Arendt e Octavio Paz viveram na mesma época – ela nasceu em 1906, ele, em 1914. Assim, testemunharam as grandes transformações e os desastres do século 20. Na realidade, ele até mais do que ela, já que Octavio Paz presenciou os acontecimentos do final do século – a derrubada do muro de Berlim e o fim do comunismo, quando Hannah Arendt já tinha morrido. Mas o que realmente os aproxima é que, vindos de contextos muito diferentes e com formações também muito diferentes, os dois viram o seu tempo, ao mesmo tempo, como o fim de um ciclo histórico e anunciando uma nova época, cujo contorno ainda não sabiam desenhar. Hannah Arendt associou o aparecimento dos regimes totalitários à falência da autoridade política – uma das bases em que se sustentava nossa civilização. Octavio Paz notou que a falência dos projetos revolucionários no século 20 representava o fim da modernidade ocidental. Na exploração dos novos horizontes, Octavio Paz tomou por guia o amor e a poesia e Hannah Arendt, o pensamento e a política. Qual a diferença, para Arendt, entre totalitarismo e tirania? Hannah Arendt quis chamar a atenção para o fato de que o surgimento dos regimes totalitários constituiu uma novidade radical na história política, ao passo que tiranias e ditaduras já eram conhecidas desde a Antiguidade. Os regimes tirânicos são organizados a partir da figura isolada do ditador que controla com mão de ferro o conjunto da sociedade. Já os regimes totalitários dependem muito mais do bom funcionamento do aparato estatal MAR 2009 • Continente x

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André Teixieira

O que distingue nossa época dos períodos anteriores é que, atualmente, a demanda por ruptura nas artes tornou-se um ritual e o impacto do novo perdeu força

e menos da figura do ditador. Em um regime totalitário ideal a figura do chefe poderia até ser dispensada. Tudo deveria depender do bom funcionamento do regime. O que significa a “Crise do Futuro”, tão referenciada em seu livro? O argumento principal de A duas vozes é de que Hannah Arendt e Octavio Paz viam no século 20 o momento do esgotamento do projeto moderno. Este havia sido construído em torno da hipervalorização da noção de futuro. A visão da história que herdamos dos séculos passados era a de que o processo histórico tem um sentido e que deverá se realizar em um momento futuro. Hannah Arendt e Octavio Paz, ao contrário, pretendem valorizar o tempo presente, visam à intensificação da vida presente, em experiências como o amor, o pensamento, a ação e a poesia. Octavio Paz combateu a concepção historicista que compreende o desenvolvimento histórico teleologicamente, ou seja, criticou a crença de que a História teria um caminho e uma finalidade. Você acha que esse tipo de entendimento historicista prejudicou a compreensão dos nossos intelectuais do que vem acontecendo na América Latina? Com certeza. Os movimentos intelectuais mais significativos na América Latina, desde final do século 19, preocuparam-se em definir as vias pelas quais nossas sociedades deveriam atingir um patamar moderno e assumiram uma visão do que é ser moderno tomando por referência exclusivamente o progresso material. A riqueza material deveria ser

acumulada até a sociedade poder atingir um padrão considerado moderno. Essa ótica modernista, obviamente muito normativa, empobreceu enormente a compreensão das situações singulares vividas pelos diferentes países latino-americanos, que, aliás, são muito diferentes uns dos outros. Como se vê, essa concepção modernista repousa sobre o historicismo a que você se refere, que pensa a história organizada teleologicamente. O télos, nesse caso, é ser moderno. O que significa, para Arendt, a “Crise da Autoridade Política”? Trata-se de uma crise da legitimação do poder? Para Hannah Arendt, a civilização ocidental ergueu-se sobre um tripé: a tradição de pensamento iniciada pelos antigos gregos, a noção de autoridade política formulada na mesma época e a religião. Em A condição humana e nos ensaios de Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt argumentou que a história da Era Moderna é marcada pela ruína dessa base. A secularização foi o primeiro momento de ruptura deflagrado pela Reforma. Em seguida, as ciências modernas provocaram a crise do modo de pensar tradicional. Por último, a autoridade política desmoronou no século 20. Esse é o evento central do cenário político desse século. Foi no vazio aberto pela crise da autoridade política que surgiram os movimentos totalitários – o nazismo e o comunismo. Em Octavio Paz, poetas e revolucionários são paradigmas de visões diferentes sobre a temporalidade e história. Como ele explica essas categorias?

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Imagens: Divulgação

Fotos: Divulgação

Hannah Arendt e Octavio Paz têm em comum a vivência em uma época de intensa crise intelectual e política no Ocidente

Para Octavio Paz, assim como para Hannah Arendt, a revolução é um evento político típico da Era Moderna. Como tal, ela se apresenta como ruptura no curso da História, que é vista sempre através de uma ótica progressista. Essa, por sua vez, depende uma visão do tempo como uma sucessão de “agoras” que deve se desdobrar na direção do futuro. A experiência poética expressa uma outra vivência do tempo. No poema há como uma suspensão do tempo do relógio, do tempo cronológico e mergulha-se em uma dimensão mais originária do tempo. Não se trata, no caso, de sair do tempo, mas de penetrar nele. A certa altura, em seu livro, Paz afirma que “o traço polêmico dos movimentos artísticos tornou-se um ritual e a crítica, um procedimento retórico”. É o fim das vanguardas como formas de renovação artística? Octavio Paz mostrou que houve uma tradição moderna nas artes chamada por ele, de forma provo-

cativa, de “tradição da ruptura”. As principais correntes artísticas desde o Romantismo preocuparam-se em romper com tudo que as antecedera e buscaram, a todo custo, a inovação. A arte moderna expressou esse tom crítico, próprio da cultura moderna em geral. As vanguardas, tão importantes no cenário artístico do início do século 20, foram manifestações claras desse espírito moderno. O que distingue nossa época dos períodos anteriores é que, atualmente, a demanda por ruptura tornou-se um ritual e o impacto do novo perdeu força. Octavio Paz entendeu que esses fatos constituíam um sinal de que se vivia um momento da História que não era mais moderno, que tinha ultrapassado o espírito da modernidade. Ele notou que se experimentava na atualidade um enfraquecimento da noção moderna de ruptura. Como poesia e amor podem ser “momentos de ruptura”? O discurso poético põe em suspenso o uso habitual da linguagem. Normalmente, utilizamos as pala-

vras como meio para comunicar determinados conteúdos. Fazemos referência, então, ao sentido unívoco das expressões, pois o que importa nessa altura é a precisão da comunicação. Diferentemente, o uso poético da linguagem é uma exploração de novos sentidos. O poeta recorre a metáforas inusitadas para dar conta da riqueza de aspectos da realidade e isso sempre nos impressiona. A linguagem poética é mais rica também, pois leva em conta a dimensão física e não apenas conceitual da linguagem. Para o poeta, as palavras têm som, ritmo, falam, cantam, aparecem. Já o amor provoca uma suspensão do nosso contato usual com o mundo. Quando os amantes se encontram é como se a realidade de todo dia deixasse de existir. A gente chega a dizer que ama eternamente, algo que nunca dizemos das coisas com que lidamos habitualmente. Com certeza, o tempo parece deixar de existir quando estamos apaixonados. Ou será que nesse momento podemos experimentar o tempo na sua dimensão mais autêntica? MAR 2009 • Continente x

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Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Ferreira Superintendente de Edição

Adriana Dória Matos

Colaboradores desta edição: ANA BIZZOTTO Jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL Jornalista e crítico de música. DANIELLE ROMANI

Superintendente de Criação

Luiz Arrais

Redação Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira Thiago Lins (assistente) Maria Helena Pôrto (revisão) Eraldo Silva (webmaster) Bernardo Valença, Diogo Guedes, Flora Pimentel e Gabriela Lobo (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio) Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza Arte Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação) Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Zenival (ilustrações) Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves Supervisão de Impressão Eliseu Souza

Março 2009 – Ano 9 Foto: Fred Jordão

Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes

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Jornalista. DIEGO RAPHAEL Professor e doutor em literatura. FÁBIO LUCAS Jornalista e mestre em filosofia. FERNANDO MONTEIRO Escritor. JÚLIO CAVANI Jornalista. LUIZ CARLOS MONTEIRO Poeta e crítico literário. MARCELO COSTA Jornalista e crítico de cinema. OLÍVIA MINDÊLO Jornalista. ROBERTA BIVAR C. CAMPOS Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE. ZULEIDE DUARTE Doutora em letras e professora da UFPB.

Colunistas: FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e escritor. JOSÉ CLÁUDIO Pintor. MARCELLA SAMPAIO Jornalista, mestra em teoria da literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.

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Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3183-2780 – 81 3183-2783 Redação: redacao@revistacontinente.com.br

DOM DA PAZ Parabéns pela beleza da matéria sobre a brilhante trajetória do nosso querido e saudoso Dom da Paz (Dom Helder Camara).

CARNAVAL Sem dúvida, Pernambuco tem o carnaval mais rico do Brasil. Só precisamos saber provar isso. A matéria da edição de fevereiro mostrou bem a necessidade de mais profissionalismo.

ESPAÇO PARA REFLETIR Sou leitora da Revista e gostaria de parabenizá-los pelo modo como abordam os temas, não só narrando, mas trazendo, para dentro dos textos, reflexões. É nesse contexto que elogio a matéria sobre a reinauguração do Museu do Homem do Nordeste (janeiro), escrita por Diana Moura. É excepcional do ponto de vista do conteúdo. A repórter, além de tratar da reabertura do museu, reflete sobre como a cultura popular, extremamente representativa para o Nordeste, é uma manifestação cultural pertinente tanto à classe média quanto às camadas populares. O texto também é fenomenal do ponto de vista estético, pelo modo como articula e retoma idéias. O artigo de Marcella Sampaio publicado na edição de fevereiro é perfeito. Como bem escreveu a jornalista, a imprensa precisa selecionar melhor as temáticas a serem abordadas, aquilo que realmente contribui para formar a opinião das pessoas.

José Moraes, Olinda – PE

Natália de Souza, Cabo – PE

Maria José Teixeira de Matos, Recife – PE

DOM DA PAZ II Como fã incondicional do nosso querido D. Helder Camara, não tive como resistir ao ver a edição da Continente de fevereiro. Confesso que só havia visto a Revista algumas vezes, não a conhecia a fundo. Não me arrependi. A matéria de capa tratando do nosso antigo acerbispo estava ótima. Espero que esta data comemorativa seja sempre lembrada e que a Igreja e o Vaticano inspirem-se no trabalho deste homem. Antônia Cristina Barreto, Recife – PE

O crítico Harold Bloom

Eu acho que o que a maioria das pessoas chama de objetividade é na verdade muito rasteiro, muito fácil de se atingir, muito estúpido. Enquanto a subjetividade, a autêntica subjetividade, é muito profunda e difícil. É uma relação forte com tudo o que foi pensado, dito e expresso com beleza. É claro que temos, no Ocidente, três mil anos de tradição literária, espiritual e filosófica. Não é possível, de modo algum, conhecer tudo isso. Mas eu insisto que prefiro uma subjetividade profunda, tanto quanto for possível, a uma mera objetividade rasa. Harold Bloom,

em entrevista a Paulo Polzonoff

Revista nº 65 Abril/06 Conversa: com Harold Bloom MAR 2009 • Continente 

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Imagens: Reprodução

Gente esquisita... Alguns escritores têm no currículo experiências, digamos, um tanto “mórbidas”. Edgar Allan Poe, ao que tudo indica, teve parte da sua educação e formação desenvolvida em um cemitério. Aprendeu ma­ temática somando e subtraindo as datas gravadas nos túmulos. Já Charles Dickens era obcecado por defuntos, passava dias a fio no ne­ crotério de Paris examinando os cadáveres de andarilhos afogados e de outros infelizes abandonados. As irmãs Brontë, moças respeitá­ veis e educadas, não manifestavam esta atração fatal pela morte, mas conviveram com um cenário, con­ venhamos, um tanto macabro para três garotas de boa família: a casa onde moravam era cercada por um cemitério. (Danielle Romani)

Arendt e a reconciliação

Impostura crítica

O tema da reconciliação adquire pa­ ra Hannah Arendt diz respeito ao que ocorre com todo empreendi­ mento compreensivo – torna pos­ sível o sentir­se em casa no mundo. Hannah Arendt inspirou­se muitas vezes na passagem da escritora Isak Dinesen, que dizia: todas as mágo­ as são suportáveis quando se pode contar uma história. Essa idéia tem também um fundo biográfico. Foi para lidar com o trauma da desco­ berta dos campos de extermínio que ela escreveu Origens do totalitarismo.

No livro Crítica Cultural: Teoria e Prática, Marcelo Coelho identifica os três traços básicos de quem criti­ ca qualquer novidade artística, e que podem ser aplicados a vários críti­ cos da arte contemporânea: 1) julgar uma obra nova a partir de critérios estabelecidos, anteriores à obra; 2) avaliar que vivemos um período de decadência, de doença cultural; 3) postular o crítico como um repre­ sentante do homem comum “en­ ganado” pelo artista. O crítico é, ao mesmo tempo, fiscal, médico e pro­ motor da Justiça. A obra de arte é a farsa, a doença, a fraude. (Marco Polo)

(Eduardo Jardim)

Os males da fama O dramaturgo espanhol Quevedo ca­ minhava pelas ruas de Roma quando teve uma dor de barriga súbita. Colo­ cou­se atrás de uma carruagem para fazer o que ninguém podia fazer por ele. Nesse momento, passou um ita­ liano curioso, que disse: – Ma... che vedo?! (Mas... o que ve­ jo?!). E o grande literato respondeu: – Até pelo fundo me conhecem! (Eduardo Cesar Maia)

DESAFORISMOS

Ele estava certo E por falar no além e coisas afins, não é que o nosso bom e velho Gui­ marães Rosa tinha lá seus “dons me­ diúnicos”? O autor de Grande sertão – veredas certamente teve uma premonição a respeito da própria morte. Ele acreditava que faleceria depois de assumir uma cadeira na Academia Brasileira das Letras. Foi eleito para a ABL em 1963, mas, com medo de morrer, só veio to­ mar posse quatro anos depois, em 1967. O que aconteceu? Ele estava certo: apenas 72 horas após se tor­ nar oficialmente “imortal”, o velho Rosa morreu. (DR)

Pérolas musicais

“A dúvida é um dos nomes da inteligência.” Jorge Luis Borges

Duas preciosidades colhidas pelo crítico Jorge Coli em provas de vestibular de música: “Beethoven escreveu música, mesmo surdo. Ele ficou surdo porque fez música muito auta. Ele caminhava sozinho pela floresta e não escutava nin­ guém, nem a Pastoral, uma mossa que poderia ser a sua Amada Imortau e inspirou ele criar uma sinfo­ nia muito romântica. Ele faliu em 1827 e mais tarde morreu por causa disso”. “Chopin fez poucas baladas, pois sofria de tuberculose. Assim não dava para ele cair na gandaia à noite, dançar, beber e curtir as minas, mais parece que ele não era chegado”. (MP)

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Desafio do Buda

Os processos não são maiores que o indivíduo. Isso pode ser apreen­ dido nas palavras do experiente Henri Cartier­Bresson. No breve O imaginário segundo a natureza, ele afirma a subjetividade do olhar, afirmando que desde sua criação a fotografia só mudou nos aspectos técnicos: “É uma operação diversa e ambígua em que o único deno­ minador comum entre os que a praticam é a ferramenta utilizada”. E o melhor em sua argumentação vem a seguir: “O que sai do apare­ lho registrador não escapa às exi­ gências econômicas de um mundo de desordem e desperdício, com tensões cada vez mais intensas e consequências ecológicas insanas”.

Dois mil e quinhentos anos de civilização não foram suficientes para que a humanidade chegasse perto do caminho ensinado por Buda, para se ver livre de ansie­ dades e paixões. De acordo com o sábio oriental, basta ao indiví­ duo que adote oito medidazinhas de nada, para que a vida sobre a Terra se torne mais harmônica: ideias justas, objetivos elevados, palavras bondosas, retidão de procedimento, meios de vida inofensivos, perseverança no bem­fazer, atividade intelectual e profunda meditação. (ADM)

(Adriana Dória Matos)

Dano mental Após sofrer um atropelamento, em 1999, o bestseller Stephen King teve múl­ tiplas fraturas e seu estado de saúde era considerado grave. No entanto, recuperou­se, e segundo os médicos, não teve sequelas “físi­ cas”. Mas, muito provavelmente, o autor de Carrie sofreu algum dano mental: King comprou ao moto­ rista imprudente – que brincava com um cachorrinho a bordo, no momento do atropelamento – a van do acidente e a destruiu com marretadas. (Thiago Lins)

“Posso dizer que o Dicionário do Folclore Brasileiro representa, incontestavelmente, o mural das minhas habilidades no tempo e no espaço. Ali estão as minhas curiosidades, o segredo, a alegria da minha preferência.” Luís da Câmara Cascudo

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A técnica e o indivíduo

O que é literatura para você? “Estava fazendo nove anos quando papai me deu de presente a coleção de Monteiro Lobato, a começar por Reinações de Narizinho. Lembro que abri o livro e me fechei no quarto. Esse foi o ponto sem retorno, o evento definitivo. Quando fechei a porta, dei as costas para o mundo, outro universo se abriu. Minha vida começou a partir deste momento. Borges tem razão: somos todos leitores. Se minha vida começou com a descoberta do universo literário, não existe para mim um significado fora desse universo. Que não se encare isso como excentricidade ou alienação, mas como a necessidade de ser coerente com um projeto de vida. Fazer literatura (porque um conto não é um texto, mas uma obra de arte) implica profunda concentração. Escrever é enxergar cores além do espectro, como se o resto do mundo – todo o mundo – fosse daltônico.” Márcia Denser é escritora, pósgraduada em literatura e semiótica, e pesquisadora de literatura brasileira contemporânea. MAR 2009 • Continente x 11

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Artistas urbanos do Recife afirmam que começaram a intervir em muros da cidade impactados pelo filme norte-americano Beat Street, de 1984. Sem saber, os garotos compartilhavam um fenômeno que se alastrava pelo mundo Julio Cavani

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neidade do crescimento da cultura de rua no mundo. Artistas pioneiros de São Paulo, Belo Horizonte, Campinas, Brasília e de cidades de outros países, como a Alemanha, afirmam que descobriram a arte do grafite a partir do contato com o filme, também em 1984, há 25 anos. Depois do surgimento nos EUA, portanto, tudo indica que o resto do mundo inaugurou seus sprays paralelamente, sem hierarquias cronológicas. No Recife, a pichação já se manifestava, assim como em outros estados do Brasil, principalmen-

te por meio de protestos contra o Regime Militar escritos nos muros ou por ações de punks. O contexto cultural dessas práticas, entretanto, é completamente diferente do universo estético da grafitagem, vinculada ao movimento hip hop. Mesmo na década de 1980, outras formas de pintura clandestina perduraram no Recife, assim como mutirões artísticos cooperativos (Brigada Portinari, por exemplo), mas eles não necessariamente interferiram nos rumos da street art em si. Olho, Guerreiro, Wlad e Russo estiveram entre os primeiros gra-

Divulgação

udo começou com um filme. De acordo com os grafiteiros mais antigos em atividade no Recife, Beat Street foi o impulso inicial para a pintura de rua tomar conta dos muros na cidade. Projetado em 1984 nos antigos cinemas do centro, o longa-metragem norte-americano serviu como o primeiro contato dos recifenses com a cultura de rua dos Estados Unidos, especialmente de Nova York. Entender que as origens da grafitagem do Recife estejam ligadas a Beat Street é comprovar a simulta-

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fiteiros do Recife. Na época, o termo “pichação” ainda era o único a ser utilizado, justamente porque o Brasil ainda fazia associações com os protestos políticos. Depois de 25 anos, esses mesmos artistas são considerados como mestres, pioneiros, pelas novas gerações do grafite. Ainda hoje, as assinaturas de alguém como Olho podem correr o risco de ser interpretadas como pichações, pois eram formadas por letras (sem figuras) pintadas com apenas uma cor. A verdade, no entanto, é que esse tipo de diferenciação não precisa existir, pois ela não ocorre, por exemplo, na língua inglesa, onde o único termo usado é graffiti (expressão de origem italiana, plural de graffito, que indica desenhos e inscrições). “Sou grafiteiro desde criança, mas na época não sabia. Quando ajudava meu tio a fazer letreiros, na verdade, eu estava aprendendo a grafitar”, explica o veterano, que come-

çou a se assumir e expandir seu trabalho depois do filme. Nos últimos anos, inclusive, diversos grafiteiros direcionaram seus estilos para grafismos inspirados na pichação. As assinaturas propriamente voltaram com tudo, agora mais coloridas e tridimensionais, mas ainda assim estruturalmente semelhantes ao que se costuma entender por “pichação”. Além disso, a maioria assume que começou como pichador e nenhum deles condena radicalmente o ato de pichar. Esse tipo de separação se manifesta em algumas cenas de Beat Street, mas a questão se concentra mais no tema do vandalismo do que em aspectos pictóricos. Patrocinado por grandes estúdios juntos com marcas de moda esportiva de rua (associadas ao rótulo street wear), o filme era uma espécie de Karatê Kid do hip hop, com um personagem central adolescente que mostrava seu talento para se destacar entre os mais fortes. Mais do que um modismo comercial, ele provocou identificação entre jovens de periferia de todo o mundo, que, a partir do con-

tato com a jovem cultura negra norte-americana metropolitana, perceberam em suas mãos o poder da transformação social associada à arte (dança, música e pintura). Antes mesmo de 1984, o rap já estava presente no ambiente urbano do Recife por causa do sucesso da música Planet rock, do DJ Afrika Bambaataa, assim como o break se manifestava a partir de certa inserção na TV (motivada principalmente por imagens específicas e pontuais de Flashdance, com dançarinos imitando robôs). Beat Street trouxe a consciência coletiva, fundamental. Na década de 1980, inscrições como “Recifede” e “ET was here” eram clichês entre pichadores menos criativos, que imitavam uns aos outros, sem tanta preocupação autoral, mais movidos pelo vandalismo ou simplesmente pelo gosto da liberdade. Na primeira metade da década de 1990, com a popularização dos bailes funk nos bairros de periferia, as galeras também passaram a adotar a pichação como meMAR 2009 • Continente x

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Fred Jordão

RETRANCA ARTES

Edifício do antigo Cine Veneza, nº 333 da rua do Hospício, centro do Recife, serviu de galeria aberta às intervenções artísticas urbanas

canismo de demarcação de território. Essa prática é mantida até hoje pelos jovens funkeiros e alguns deles chegam a se aproximar do grafite e do hip hop após tomarem mais consciência social. A grafitagem começou a ser respeitada no Recife com o trabalho do grupo Subgraf, fundado em 1995. Seus integrantes preenchiam as paredes dos prédios abandonados do Bairro do Recife com figuras coloridas e passaram a ser convidados para trabalharem em eventos de perfil cultural, como o Mercado Pop e o Acorda Povo. Uma de suas paredes mais famosas foi a Iemanjá do bar Pina de Copacabana. Aos poucos, paralelamente a uma ação clandestina, novos trabalhos eram cada vez mais encomendados, alguns já com perfil comercial. Graças ao coletivo, oficinas também surgiram e a arte assim era transmitida para novas gerações.

Em determinado momento, o trabalho do Subgraf passou a obter respaldo institucional e suas oficinas e murais já chegavam a receber apoio financeiro do governo do Estado e da prefeitura. O ápice desta legitimação governamental foi o convite que os artistas receberam para pintar o viaduto entre as avenidas Norte e Agamenom Magalhães, um dos pontos de maior circulação de veículos do Recife. No local, fizeram grafites que homenageavam a obra do xilogravurista pernambucano Gilvan Samico. “Foi estranho grafitar com escolta policial”, relembra Moacir Lago (Moa), um dos fundadores do grupo. Moa foi fundador do Subgraf junto com Guga Baygon, quando juntos aprenderam as primeiras técnicas em uma oficina promovida pelo artista plástico Paulo Meira. Depois, associaram-se a Rodrigues Cara-Seca e Osman “Tarzan” Fra-

zão, que pessoalmente contribui bastante para uma articulação política e empresarial do movimento. “O grafite me fez descobrir o espaço urbano como um suporte artístico”, reconhece Moa, que depois passou a incorporar as ruas em outros tipos de trabalhos nas mais diversas linguagens. A experiência, portanto, abriu seus horizontes de criação para além de limites culturais específicos. Na opinião dele, “O Recife hoje tem grafiteiros muito bons, mas a grande maioria ainda está ligada demais à estética do movimento hip hop. Isso provoca gap, um certo atraso em relação ao que ocorre no resto do mundo. O Subgraf sempre foi mais artisticamente autônomo e experimental neste aspecto”. Desde então, o auxílio dos governos passou a ser crescente e as encomendas comerciais também não pararam de aumentar (até na decoração de quartos de crianças).

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Mesmo assim, os grafiteiros nunca deixam de lado a consciência sobre a essência ativista de sua arte e a maioria considera que esses serviços não passam de uma atividade paralela, apesar de reconhecerem a importância da divulgação para diminuir preconceitos.

Rafael Gomes

premiação foram criadas, direcionadas especificamente para a grafitagem. A exposição de abertura do evento também elevava o grafite a uma posição de protagonista ao propor um diálogo entre as obras de Samico e Derlon, um dos destaques da nova geração de grafiteiros, que adota a identidade visual da xilogravura em suas pinturas. Galo se tornou o grande nome do grafite pernambucano nos anos pós-2000. Além de se destacar pelo próprio talento artístico, com pinturas marcadas pela denúncia social, ele foi um dos fundadores do coletivo Êxito de Rua, que passou a desenvolver projetos sociais baseados nos três pilares do movimento hip hop (grafite, break e rap). Pouco depois, o artista esteve envolvido na articulação da Rede Sociais de Resistência Solidária, que, entre outras

Fred Jordão

Rafael Gomes

Depois do viaduto, outro grande exemplo de legitimação institucional da grafitagem foi o 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, com curadoria de Paulo Bruscky, em 2002, na Fábrica Tacaruna. Entre os artistas convidados, em meio a grandes nomes da arte contemporânea, estava o grafiteiro Galo, integrante do coletivo Êxito de Rua, e o próprio Subgraf, que optou por convidar dezenas de pichadores para preencherem toda a área reservada para sua exposição.

Em 2007 e 2008, já consolidado entre oficinas culturais educativas e artísticas, o grafite recebeu mais impulsos de peso graças ao Lado B: Arrudeia, programa de exposições do Museu Murillo La Greca (Prefeitura do Recife), e às atividades da Galeria Galpão, no Festival de Inverno de Garanhuns (Governo do Estado), que também foi trazida ao Recife no SPA das Artes. Juntos, os dois projetos financiaram a compra de mais de 2 mil latas de sprays de tinta, distribuídos entre os artistas, que também ganhavam cachês e ajudas de custo. A Infraero ainda contratou um grupo de grafiteiros (incluindo o ascendente pichador Shevchenko) para ilustrar um grande muro ao lado do Aeroporto Internacional Gilberto Freyre. Ainda em 2008, no 47º Salão de Artes Plásticas, novas categorias de

A partir dos anos 1990, o grafite passa a se popularizar, com artistas como Osgemeos (E) chamados a realizar trabalhos pela cidade MAR 2009 • Continente x

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ARTES

Pichação

Rabiscar ou escrever com marcadores ou sprays fachadas de edifícios, monumentos, casas e outras superfícies da cidade. Geralmente associada a atos de protesto coletivo. Tem alfabeto(s) próprio(s) de gueto e virou sinônimo de vandalismo.

Estêncil

Técnica com molde vazado utilizado para desenhar ou pintar letras, imagens e símbolos reproduzíveis – com spray ou outro tipo de tinta. No grafite, tornou-se um método bastante popular, por ser de fácil e rápido uso, sobretudo em locais proibidos. Na França, é conhecido como pochoir.

Tag

Letreiro com a assinatura do grafiteiro ou do coletivo (crew) contornada e preenchida com cores fortes. Remonta ao old school do grafite ligado ao hip hop nova-iorquino, com estilos que vão do bubble style, de letras arredondadas, ao wildstyle, de letras entrelaçadas.

Performance

Apresentação de uma ou mais pessoas em qualquer local público, no qual o corpo é o maior meio de expressão. Manifestação agrega elementos do teatro e das artes visuais.

Subvertising

Em inglês, a junção das palavras subvert (subverter) com advertising (publicidade). Ou seja, alterar propagandas com o propósito de ironizar a marca e o produto. Também chamado de adbusting. Um dos mais famosos saíram recentemente na internet: stickers imitando a interface do Adobe Photoshop foram colados em cima de uma propaganda com as imagens de Britney Spears, Christina Aguilera e Leona Lewls.

Street art poster

Cartazes (em geral, do tipo lambe-lambe) feitos à mão ou impressos, e depois colados por toda a cidade. É uma apropriação direta da linguagem gráfica da propaganda. Suporte associado ao pós-grafite, cujo expoente é o norte-americano Shepard Fairey (Obey).

Pós-grafite

Evolução do grafite moderno, caracterizado por estilos próprios e maneiras inovadoras, geralmente não associadas ao gênero do hip hop (old school). Pode ser figurativo (mais comum) ou abstrato, feito com spray, rolinho e até outras técnicas. Os grafites atuais de tamanho gigante se tornaram uma tendência.

Happening

Evento ou ação artística feita para alterar a rotina dos transeuntes, geralmente com atos de estranhamento. No Brasil, tornou-se mais comum a partir da década de 1970. Pode ser realizado com pintura, vídeo, instalação, performance; enfim, quaisquer intervenções poéticas.

Bombing

Pintar com spray muros, trens e outras superfícies da cidade. Expressão relacionada ao ato de “bombardear” (a tinta do spray, a mensagem). Grafitar, em outras palavras, utilizando o aerossol.

Stickers

Tipo de intervenção urbana com adesivos produzidos por artistas ou grupos, e espalhados em meio à poluição visual urbana, geralmente com mensagens que se fundem aos signos da cidade. No Brasil, é mais visto em São Paulo.

ações, promoveram mutirões de grafite em diversas comunidades de Pernambuco, não só em áreas urbanas, mas também em localidades rurais e litorâneas. Um dos principais parceiros de Galo tem sido Anêmico, vocalista da banda de rap Inqulinus, que também já foi um dos maiores pichadores do Recife (suas assinaturas podem ser vistas em alguns dos pontos mais altos e inacessíveis de prédios e contêineres da cidade). O Êxito de Rua chegou a se tornar tema de um filme de cinema em um curta-metragem dirigido pela cineasta Cecília Araújo. Por outro lado, seus protestos e ações ativistas por vezes os levavam à prisão, como ocorreu durante as filmagens do documentário, quando a polícia federal os prendeu no Edifício Juscelino Kubitschek, onde eles escreveram “O povo quer casa” no alto da fachada. Como a história da grafitagem é escrita nos muros, ações de artistas de outros estados e países também marcaram a paisagem urbana recifense. Em 2008, o francês Orcke passou uma temporada no Recife e não passou despercebido. Além de visivelmente ter influenciado a obra de diversos grafiteiros locais, ele levou sua assinatura para locais antes inexplorados, como a Ponte do Pina (em uma ação clandestina ao lado de recifenses como Galo e Evil). K-Boco, de Goiás, foi outro forasteiro que movimentou a cena recifense. Seu estilo abstrato, geométrico e experimental se destacou entre pinturas ainda muito influenciadas pela estética do hip hop. Assim como Orcke, sua residência artística era voluntária e independente, movida por um espírito nômade que depois o levou a São Paulo, onde ele se articulou e desenvolveu a carreira a ponto de levá-lo a expor em galerias de arte de Nova York.

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tacadas) e Guga (ex-integrante do Subgraf, produz montros e seres de expressiva volumetria). O Centro é a região da cidade que concentra a maior quantidade de grafite por quilômetro de muro. A Boa Vista tem um número maior, mas no Recife Antigo as pinturas estão mais concentradas (um clássico é o mural de Galo dentro do Pina de Copacabana). Nos demais bairros, a distribuição é irregular, mas cada vez mais crescente. Rafael Gomes

Nos últimos cinco anos, estiveram entre os mais grafiteiros mais atuantes do Recife: Derlon (seu estilo inspirado nas xilogravuras da literatura de cordel o proporcionou convites nacionais e internacionais), Arbos (criaturas bestiais com uma estética entre o tribal e a xilo), Evil (assinaturas coloridas tridimensionais), Elaine (inicialmente com temáticas femininas), Cajú (assinaturas bidimensionais com uso de cores fortemente des-

Fred Jordão

A dupla Osgemeos (“os gêmeos”), que são os nomes mais famosos da grafitagem no Brasil, também passou por Pernambuco em duas ocasiões. Primeiro, eles foram à Nazaré da Mata, onde pintaram muros de casas populares em um projeto desenvolvido ao lado do cantor Siba. Depois, eles trouxeram ao estado o projeto Whole Train, que percorreu diversas capitais com o intuito de levar o grafite para metrôs e trens. Nas duas ocasiões, aproveitaram para deixar suas figuras amareladas habitarem clandestinamente alguns muros do Recife. O Whole Train também trouxe ao Recife os grafiteiros alemães Loomit (Munique), Content Provider (Dusseldorf) e Peter Michalski (Dortmund), que foram pioneiros em seu país, além dos paulistas Coio, Ise e Nunca. Curiosamente, a maioria deles também começou a grafitar em 1984 por causa do filme Beat Street.

O bairro do Recife Antigo e a Boa Vista são locais preferenciais para se encontrar a diversidade de arte urbana contemporânea MAR 2009 • Continente x

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Divulgação

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Alexander Órion grafitou túnel em São Paulo apenas retirando a poluição de suas paredes

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nquanto a multidão apressa o passo de um lado a outro da avenida, uma pessoa ergue a cabeça na parada de ônibus para ver o muro à sua frente. Nele, destaca-se uma pintura em spray, provavelmente deixada por um artista quando a cidade dormia. Um pouco de cor na paisagem cinza, alguns segundos de pausa para quem passa. O olhar coletivo foi tocado por novos elementos, desde que os artistas urbanos cavaram seus espaços a céu aberto. Mas pichar, grafitar, pintar muro, colar adesivo em poste, espalhar cartazes pela cidade ou alterar propaganda continuam sendo – salvo

por uma prévia autorização legal – intervenções ilegais. No Brasil, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. No entanto, é possível afirmar: muita coisa mudou desde que os metrôs nova-iorquinos foram tomados pelo movimento hip hop na década de 1970, o início de tudo. Não foi só o olhar da sociedade que mudou, os governos e o mercado estão cada vez mais interessados em ceder território expositivo à arte de rua, embora muito preconceito persista. Como lembra a antropóloga Rita de Cássia Alves Oliveira, coordenadora de pesquisa sobre intervenções urbanas juvenis

no Programa de Pós-Graduação em Design do Centro Universitário Senac São Paulo, ações como o grafite, a pichação e o sticker (colar adesivos) são ilegais, mas a população tende cada vez mais a ver somente a pichação como algo ligado ao vandalismo e à agressividade. Se já é possível reconhecer qualquer uma dessas manifestações como expressão poética, estética ou política, é porque a própria street art se posta de maneira diferente hoje em dia. Foi ela que realmente se transformou nas últimas décadas. Abrandada a febre hip hop, que contagiou o mundo nos anos 1980 e 1990, as linguagens se alargaram e os limites se romperam. A maneira como os artistas têm explorado os espaços urbanos de uns tempos para cá é diversa e supera as manifestações de gueto juvenil com spray na mão para afrontar o sistema. Até o termo grafite, usado como sinônimo de street art, tamanha projeção que encontra hoje em todo planeta, tornou-se um conceito amplo. Na abertura do seu livro O mundo do grafite: arte urbana dos cinco continentes, o artista alemão Nicholas Ganz sintetiza: “O que dominava antigamente eram as letras. Hoje temos uma cultura que se expandiu: novas formas são exploradas, e personagens, símbolos e abstrações começam a se proliferar. Durante os últimos anos, os grafiteiros têm utilizado um campo mais amplo de expressão. O estilo de cada artista é desenvolvido sem nenhuma restrição”. As letras a que ele se refere são as chamadas tags, assinaturas comumente deixadas pelos nova-iorquinos da old school em trens, ônibus, estações e muros, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. Arredondadas (bubble style) ou entrelaçadas (wildstyle), as tipografias se popularizaram no mundo inteiro e às vezes vinham acompanhadas de personagens, MAR 2009 • Continente x

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ARTES tista paulistano Danilo Oliveira, idealizador e curador da exposição Conquista do espaço – Novas formas de arte de rua, realizada em 2007 nas unidades do Sesc Pinheiros e Pompéia, em São Paulo. Participaram da mostra grafiteiros como o italiano Blu, que recorre a técnicas de desenho para pintar suas criaturas gigantescas nos muros. Até nanquim ele usa. Entre os participantes também estava o paulistano Alexandre Órion, que em 2006 chegou a “desencavar” uma série de imagens de caveira em um dos túneis paulistanos esfregando nas paredes apenas um pano molhado. Mostrou como se faz arte com a fuligem negra ignorada pela prefeitura local. O cubano-americano Jorge Rodriguez-Gerada, outro nome da coletiva, suja as mãos de carvão quando transforma anônimos em “celebridades” desenhadas em megaescala nas paredes da cidade. Intervenção realizada por Banksy foi acrescida de balão por anônimos e protegida com tela acrílica

Maria Eduarda Andrade

figuras que ao lado dos nomes (ou apelidos) dos grafiteiros reforçavam o que o filósofo francês Jean Baudrillard assinalou como uma forma de dizer “Eu existo, eu sou tal, eu habito esta ou aquela rua, eu vivo aqui e agora”. O inglês Cedar Lewisohn, autor do livro Street art – The graffiti revolution, pontua que arte de rua e grafite são assuntos “relacionados, no entanto separados” na atualidade. A letra, tão cara à rebeldia da juventude, transfigurou-se na força de imagens que fazem da pintura nos muros um fenômeno global menos padronizado e muito mais rico na técnica e na temática. No chamado movimento pós-grafite, não é mais necessário entrar em roda de break dance para falar ao mundo. “A imagem é a da quantidade. Pintura em muro é uma das formas entre tantas. Há todos os tipos e coisas possíveis. A arte de rua é algo mais heterogêneo do que marginal hoje”, observa o ar-

Todos eles já enfrentaram a polícia e foram cortejados por galeristas e curadores. São os novos muralistas, com espíritos de grafiteiro e mãos de artista gráfico. A maioria deles teve escola no hip hop e começou a atuar na arte urbana adolescente com vontade de mudar o mundo. A artista italiana Microbo, 38, tinha verve panfletária quando estreou nas ruas, carregando pôsteres, estênceis e adesivos debaixo do braço. Agora, usa pincel para desenhar criaturas delicadas, de inspiração microscópica. “A única mídia com a qual me sinto menos confortável é, paradoxalmente, o spray. Sou um boneco desengonçado com ele. Depois de um longo tempo de prática, o que posso dizer é que me sinto muito confiante com os pincéis e gosto de experimentar coisas diferentes”, diz ela, cujo apelido se refere à sua estatura baixa e ao sentimento de ser um micróbio na imensidão do universo. Como ela, outras artistas têm conquistado espaço na arte urbana. A presença da mulher aumentou num universo antes dominado pelas criaturas dos genes “Y”. A norte-americana Jillian Cobert, 40, aplica estênceis no Brooklin, em Nova York. “Cerca de 95% das pessoas que eu encontro são garotos. Todos são muito legais e parecem aceitar que as meninas estão muito mais envolvidas com a street art hoje em dia”, diz. Ela afirma que tem evitado as ruas, por não ter o “menor interesse em passar o resto da vida na Riker’s Island (prisão local)”. Também curadora de exposições de street art, Jillian acredita que as galerias dão segurança ao artista e outra dimensão à sua obra, menos efêmera, embora ache que seus “trabalhos sejam a pergunta que definitivamente só a rua vai responder”. “Em NY, as ruas estão muito difíceis agora; embora isto não tenha

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Tate Photography

Vista da mostra Street art – The graffiti revolution, exibida na fachada da Tate Modern em maio de 2008, reunindo artistas de todo o mundo

intimidado muitos de nós. Há arte em todo canto. Mas o prefeito (Michael) Bloomberg tem patrulhas antigrafite, o comércio recebe multas substanciais se não tirar os desenhos de suas fachadas no prazo legal. Com as medidas coercitivas, a cidade exala um fedor repressivo”, critica Jillian, que trabalha em restaurantes e boates para sobreviver. Viver dos pôsteres feitos à mão com spray, dos estênceis, dos desenhos em nanquim, das colagens e das esculturas 3D (forma de modelagem digital que virou tendência) é um sonho para ela, que ainda se sente verde no mercado, apesar de veterana nas ruas. O grafite atual tem nomes próprios, de identidades bem mais reconhecíveis que as assinaturas do old style. JR e Honet, da França. Sixeart, de Barcelona. Spy, de Madri. Stormie, de Perth (Austrália). Nunca, Osgemeos, Titi Freak e Zezão, de São Paulo. A lista é

grande. E os esforços por uma assinatura valorizada, maiores ainda. Curioso é que o maior fenômeno da street art atual, o inglês Banksy, tem uma identidade misteriosa, de rosto não revelado. Mesmo assim, é o anônimo mais famoso e valorizado na internet, nos leilões de arte e nas ruas, onde larga seus corrosivos estênceis. Nos seus desenhos, policiais gays se beijam de farda e a guarda da rainha mija na rua, numa Londres que desde os atentados no metrô, em julho de 2005, é uma cidade sitiada por câmeras escondidas (as CCTVs). São obras sarcásticas, de poética combativa, cuja força política é rápida e paradoxalmente assimilada pelo mercado: um muro pintado por ele foi leiloado por U$ 408 mil pelo proprietário da casa grafitada. Banksy é uma espécie de celebridade-guerrilheira, que um dia precisou ficar seis horas debaixo de um trem para se esconder da polícia, porque pintava devagar e

acabou sobrando quando seu grupo fugiu. Dizem que foi por isso que resolveu se dedicar ao estêncil, técnica de pintura feita a partir de molde vazado que agiliza a ação na rua. “Com estênceis, foi capaz de transformar seu humor e sua irreverência numa tremenda força visual”, observa Ganz, o autor de O mundo do grafite: arte urbana dos cinco continentes. O inglês é nome também por trás do The Cans Festival (Festival das Latas), exposição urbana de grande repercussão, realizada num túnel londrino com o trabalho de dezenas artistas, em maio de 2008, mesmo período em que a Tate Modern exibia em sua fachada a coletiva Street art – The graffiti revolution. Banksy acredita que “qualquer pessoa com lata de tinta na mão deveria ter tanto direito quanto arquitetos e publicitários de determinar a aparência de nossa cidade”. A frase teria sido dita na época da abertura da mostra. MAR 2009 • Continente x

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Divulgação

A italiana Microbo usa técnica de desenho para criar suas figuras orgânicas em muros

Mesmo integrado ao time da Lazarides Gallery, famosa galeria de arte urbana contemporânea, Banksy ainda mantém uma postura do “faça você mesmo”, comparável apenas a nomes como o do norte-americano Shepard Fairey, o Obey Giant, outra estrela do grafite internacional, que ficou ainda mais conhecido recentemente por ter ajudado a propagar nos Estados Unidos um retrato que virou ícone da campanha do presidente Barack Obama. O pôster se espalhou da internet às ruas como po-

derosa ferramenta de marketing. Chegou, inclusive, às mãos do atual chefe de Estado norte-americano, que agradeceu o apoio do artista em nota oficial. Fairey encarna um espírito Andy Wahrol de ser, valendo-se de estratégias dos mass media para fazer arte. É tanto que o subtítulo do seu site é “Propaganda de entrega mundial”, ancorado na marca Obey Giant Art. Inc, que nasceu de adesivos e cartazes impressos com a palavra de ordem obey (obedeça). Formado em design e radicado

em Los Angeles, Fairey não faz a linha de protesto via grafite, mas via adesivos, camisas e, sobretudo, cartazes, alguns feitos por meio da técnica litográfica de impressão – esteticamente influenciada pela arte gráfica russa. Seus pôsteres estão à venda em sua webpage (http://obeygiant.com/), a preços que variam entre U$ 20 e U$ 50. Baratos, se comparados aos valores atingidos por suas obras em galerias, onde a assinatura Shepard Fairey chegou a ser comercializada a U$ 85 mil. Tanto quanto Banksy, ele é um exemplo (um pouco mais marqueteiro talvez) de como os artistas de rua se tornaram um fenômeno do mercado e da internet, seus principais “agregados” na atualidade. “Street art e grafite têm longa história; e nessa história sempre houve um grande cruzamento com o comércio, de alto e baixo fim lucrativo. Isso tem efeitos positivos e negativos, mas, na minha opinião, esse cruzamento ajudou a street art a ter muito mais público do que formas exclusivas de arte”, analisa o londrino Cedar Lewisohn, curador da referida exposição Street art, da Tate Modern, hoje, a maior instituição de arte contemporânea do Reino Unido. Dos seis grafiteiros convidados para expor na Tate, dois eram brasileiros de São Paulo: Nunca e Osgemeos. A dupla de irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo figura entre os fenômenos do grafite mundial, com assinatura extremamente cultuada mundo afora, não pela verve sarcástica, mas pela delicadeza quase infantil de suas figuras amarelas, às quais os olhos da rua costumam se render. “Amo o trabalho de muitos brasileiros e espero fazer mais projetos com eles. O trabalho dos artistas do Brasil associado à street art e ao grafite é forte e único. Há muitas razões para isso e diferentes características distintivas”, defende o curador inglês.

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Pedro Motta/Divulgação

ARTE Crepúsculo 6 – o pequeno fascista, de Estela Sokol

Entre sotaques e técnicas Exposição destaca trabalhos de nova geração de artistas brasileiros que exercitam releituras de técnicas tradicionais Fernanda Lopes e Mariana Oliveira

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arcelo Silveira recorda bem seu início de carreira como artista plástico, em princípios dos anos 1980. Pernambucano, nascido em Gravatá, lembra que, naquele momento, era comum os artistas de diferentes regiões do país migrarem para o Rio de Janeiro ou para São Paulo, centros artísticos nacionais, a fim de trabalhar e conseguir reconhecimento. Hoje, ao que parece, essa não é a única opção dos artistas espalhados pelo Brasil. Silveira, mesmo vivendo no Recife, participou, por exemplo, do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP, e da 4a Bienal de Valencia, ambas em 2007. “Hoje o cenário mudou muito. Artistas e críticos se deslocam com mais facilidade. Quem

chega ao Brasil para conhecer o que está sendo feito em arte, já sabe bem que terá que deslocarse bastante”, afirma o artista, que integra a coletiva Nova Arte Nova, que já passou pelo Rio de Janeiro e permanece em cartaz até 5 de abril no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo. “Há 40 anos, o regional e o global eram como uma oposição. Hoje, são elementos em diálogo. É interessante ver como a experiência global vai se modificar em contato com diferentes situações de regionalidade em todo mundo”, explica o curador da exposição Paulo Venâncio, lembrando que nos últimos 15 anos o Brasil assiste ao fortalecimento cultural de capitais como Porto Alegre,

Recife, Belo Horizonte e Fortaleza. Conterrâneos de Marcelo Silveira, Carlos Mélo e Paulo Meira, que também participam de mostra, ganharam prêmios nacionais, participaram de grandes exibições, e até hoje permanecem morando no Recife. Graças à essa descentralização, o curador pôde selecionar 81 trabalhos de 63 jovens artistas de 15 Estados do Brasil, seis além dos que participaram da primeira montagem, no Rio de Janeiro. “Todos nós estamos lá. Não consigo ver questões regionalistas nessa exposição. As exposições de arte são manifestações contemporâneas da política”, afirma Melo, natural do município pernambucano de Riacho das Almas. Ocupando todo o espaço expositivo do CCBB de São Paulo, MAR 2009 • Continente x

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ARTES

Arquitetura de interior – momento I, de Marcelo Silveira

a mostra reúne, além dos diferentes sotaques, diferentes técnicas, como vídeo, objetos, instalações e intervenções, e chama a atenção pela presença de suportes considerados tradicionais. Andar pelas salas do centro é contatar como pintura, escultura e desenho buscam se reinventar dentro da produção contemporânea. “É interessante, por exemplo, ver como a pintura já absorveu a imagem vinda das novas mídias, como a fotografia e o vídeo. Esse é um fenômeno novo. Minha impressão é de que essa é uma geração que teve a primeira experiência com essas imagens tecnológicas para depois chegar à pintura ou ao desenho”, aponta Paulo Venâncio Filho. “Utilizo colagens, apropriações e outras técnicas menos convencionais. O trabalho se vale de um leque de possibilidades materiais e de novos conhecimentos que se abriu com esse estreitamento das fronteiras entre as linguagens e com tudo que já foi feito na história da arte”, aponta Bruno Miguel, que apresenta uma pintura composta por colagens. “Essas são experiências que remetem a diferentes árvores genealógicas, que se apropriam de diferentes referências históricas. De qualquer maneira, estamos todos lidando com uma tradição da arte contemporânea, que já tem 40 anos”, concorda Bruno Dunley, que une pintura e fotografia. Já Estela Sokol, que começou a trabalhar com gravura, viu em pouco tempo os volumes que ela articulava no papel ganharem o espaço, dialogarem com a arquitetura e hoje começarem também a lidar

Montagem do Editorial do gesto simples, de Carlos Mélo

com a cor e a luz da cor. Em Crepúsculo 6, de sua autoria, relevos negros de parede parecem emanar uma luz laranja. “É uma cor-luz que varia de intensidade de acordo com a quantidade de luz que a peça recebe”, explica a artista, que agora desenvolve projetos para levar esses trabalhos para o espaço público, com placas enterradas no chão ou dispostas como grandes labirintos em lugares abertos. O desenho também é explorado e repensado por alguns artistas. É o caso de Sisyphus, de Cadu Costa. Apresentado em 2008, na Inglaterra, onde o artista

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Imagens: Divulgação

CATÁLOGO

Galeria lança portfólio-objeto

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ma marmita. Este é o invólucro do portfólioobjeto da Galeria Mariana Moura. Assim como alguns artistas que compõem seu quadro, a Galeria optou por retirar um objeto do cotidiano e ressignificá-lo no campo artístico. É dentro de uma marmita de alumínio que encontramos uma coleção de 60 cartões, quatro para cada um dos 15 artistas representados comercialmente pela Mariana Moura. Dessa forma, é possível perceber a variedade de discursos e suportes utilizados pelos artistas da casa. Como um baralho, as lâminas propõem combinações e leituras diferentes. Os cartões trazem uma breve biografia dos artistas e análises de suas poéticas, feitas pela jornalista Ana Maria Maia. São peças integrantes desse jogo: Alexandre Nóbrega, Alice Vinagre, Amanda Melo, Artur Leche, Bruno Vieira, Carlos Mélo, Eudes Mota, Gil Vicente, Jeanine Toledo, José Patrício, Kilian Glasner, Laura Vinci, Marcelo Silveira, Mauro Piva e Nazareno.

Envelopes, de Paulo Meira

Entre os pernambucanos, a diversidade de técnicas utilizadas também pode ser percebida. Marcelo Silveira, que iniciou seus trabalhos em desenho e pintura, expandiu seu território e passou a utilizar a madeira e o vidro como matéria-prima. Na mostra, o artista apresenta o trabalho Arquitetura de interior, composto por 12 peças em madeira e vidro, produzido nos últimos três anos e apresentado pela primeira vez no ano passado. Carlos Mélo, que há pouco retornou ao desenho, tendo passado pela performance e instalação, exibe o Editorial do gesto simples, uma revista sem textos e de tiragem limitada que foi produzida

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para a exposição Futuro do presente, realizada em 2007 no Itaú Cultural (SP). “É um trabalho fruto do encontro fraterno entre mim e alguns amigos e colaboradores. Todos concordaram em passar uma tarde no sítio sendo fotografados. Os participantes usavam preto e branco e foram fotografados em diferentes situações, compartilhando um desejo de reencontrar o sentimento comunitário ou só experimentando arte mesmo”, conta o artista, que dirigiu dois fotógrafos na produção de imagens a partir dessa vivência. Já o experiente Paulo Meira, nascido em Arcoverde e radicado no Recife, apresenta o projeto Querido amigo, com uma produção marcada pela utilização de diferentes suportes, como pintura, instalação, fotografia, vídeo e performance, para aproximar objetos usualmente separados e assim dar a eles novos sentidos e significados. No projeto, 18 pinturas sobre tela são reproduções realistas, porém ampliadas, de envelopes dos Correios. Ao formar essa colcha de retalhos de técnicas e sotaques, o curador da Nova Arte Nova não pretende estabelecer o rótulo de geração, como foi feito há alguns anos com a Geração 80, ou definir o que seria e quais as características da arte produzida nos últimos anos no Brasil. A ideia é simplesmente lançar um olhar sobre obras e poéticas que estão em pleno processo de construção.

SERVIÇO Galeria Mariana Moura www.marianamoura.com.br

Flora Pimentel

participa de um programa de residência no Institute of Digital Art and Technology (i-DAT), o trabalho reúne 11 brinquedos que ficaram conhecidos no Brasil como Traço mágico e revela questões abordadas pelo artista desde os primeiros trabalhos. Uma delas é a possibilidade de desenhar a partir de plataformas gráficas que não são usadas como ferramentas tradicionais para o desenho. A obra também lida com ideias como a tentativa e o erro, já que o artista faz todos os desenhos, um a um, e um erro implica em recomeçar. “Esse é um dos dramas implícitos na obra. Esse objeto é ressignificado. Deixa de ser um objeto comum para virar um fetiche, uma imagem que não pode mais ser mexida”, explica.

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traduzir-se

Ferreira Gullar

Um artista de raras qualidades

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ma visita à exposição de Lasar Segall no Instituto Moreira Salles, no Rio, não deixa dúvida quanto à dimensão desse artista lituano, que se transferiu para o Brasil aos 22 anos de idade e se integrou definitivamente na história de nossa arte, enriquecendo-a. Mas não apenas isso. Lasar Segall está entre os precursores da revolução modernista de 1922, que imprimiu um novo rumo à arte e à cultura brasileira. Foi sua a primeira exposição de pintura moderna que aqui ocorreu, em 1913, portanto seis anos antes da mostra individual de Anita Malfatti. Certamente é essa exposição que assinala o início da renovação da pintura brasileira, pelo fato de que Anita era paulista de nascimento, brasileira por conseguinte, e com sua mostra inaugura a fase modernista em que ela terá função de precursora e fundadora. Depois daquela mostra primeira, Segall, que morava na Alemanha, retorna ao Brasil, em 1923, e agora para aqui se fixar definitivamente. Ao contrário de Anita, uma jovem artista que aprendera no exterior uma nova maneira de sentir e conceber a pintura, Segall já era um artista dono de sua linguagem, com um modo próprio de pintar e vislumbrar o novo caminho que a pintura deveria seguir. Mas esse encontro com o Brasil tropical e seus jovens artistas, que queriam reinventar-se como brasileiros, influiu sobre Segall e, por certo tempo, deu à sua pintura um novo timbre e um novo vigor. Segall, nascido em Vilna, em 1891, transferiu-se para a Alemanha, onde participou do movimento expressionista. Como se sabe, ao contrário do Cubismo, que originariamente buscava uma linguagem geome-

trizante e construtiva, o expressionismo alemão voltava-se para a subjetividade, buscando expressar o que havia de mais profundo e genuíno na vida interior do ser humano. Daí, as formas dramáticas das figuras e as cores intensas de suas telas, impregnadas de passionalidade. Segall foi um expressionista diferente que, se às vezes usou cores fortes e composições dramáticas, logo buscou harmonizar o passional com o racional e realizar uma pintura que tanto tinha de expressionista quanto de cubista: do Expressionismo, preservou as figuras patéticas e sofridas, enquanto do Cubismo adotou a contenção cromática. A tela Interior de pobres II (1921-1922) é bem representativa dessa alquimia de tendências estéticas. Ela antecede a fase por assim dizer “modernista” de Segall, quando ele se volta para temas brasileiros e substitui a dramaticidade da fase européia pela visão quase naïf, de colorido saboroso, popular, sem drama, do universo brasileiro. Nesse período, Segall se deixa influenciar pelo nosso modernismo, particularmente pela visão de Di Cavalcanti, que se voltou para os tipos populares brasileiros – negros e mulatos – e para nossa paisagem tropical. Mas isso não se mantém por muito tempo, já que, pouco depois, ele retorna às cores frias da fase anterior, embora explorando temas nacionais. Segall foi um artista de raras qualidades, podendo ser considerado, em plano internacional, um dos bons pintores de sua época. A observação atenta de sua pintura e de seus desenhos a gravuras revela, a par de um talento indiscutivelmente marcante, um rigor na construção da obra, na economia da composição e a exploração das possibilidades cromáticas, das relações de sombra e luz e da expressão gráfica. Veri-

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Reprodução

Esse encontro com o Brasil tropical e seus jovens artistas, que queriam reinventar-se como brasileiros, influiu sobre Segall e, por certo tempo, deu à sua pintura um novo timbre e um novo vigor

Mãe morta, Lasar Segall, óleo sobre tela, 1940

fica-se também que sua linguagem, à medida que se integra na cultura brasileira, perde em contundência e na geometrização das figuras, para dar lugar a formas arredondadas e sensuais. A par dessas mudanças, deve-se assinalar uma simplificação da composição e do desenho das figuras que perdem em dramaticidade explícita para valorizar as relações contrastantes entre as formas figurativas. Um exemplo dessa conquista, de rara beleza, é o célebre quadro Jovem de cabelos compridos, de 1942, pertencente ao acervo do Museu Lasar Segall, de São Paulo. A exposição no Instituto Moreira Salles intitulase Segall realista, mas essa qualificação deve ser entendida mais no sentido de “escola” realista do que como uma definição de seu procedimento pictórico, ou seja, como uma definição da natureza das obras

expostas. A pintura de Segall só é realista por versar temas e problemas que dizem respeito à condição das pessoas e não como tentativa de copiar a realidade do que observa. Nesse sentido, pelo contrário, o que se percebe é o propósito do artista de escapar da cópia fiel da realidade e, em vez disso, traduzi-la em linguagem pictórica, em – para usar a expressão de Cézanne – “mudar o mundo em pintura”. E não apenas isso aproxima Segall do mestre de Aîx-en-Provence: Segall aprendeu com ele a construir suas telas com manchas de tinta, matéria e pinceladas sensíveis, e assim inventar um universo figurativo de muita beleza e mistério, uma experiência poética que só em seus quadros podemos desfrutar. A exposição encerrou no dia 8 de fevereiro. MAR 2009 • Continente x

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LITERATURA

Dois escritores de um só Portugal Cemitério de pianos e A eternidade e o desejo, obras de autores contemporâneos portugueses, atestam a qualidade e a diversidade da atual literatura lusitana Luiz Carlos Monteiro

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utores portugueses contemporâneos têm sido publicados com relativa frequência pelos editores brasileiros. Em versão originalmente lusitana ou local, trabalhos de prosa e poesia são expostos e vendidos em livrarias com maior ou menor profusão. Já se pode ler com alguma facilidade romancistas consagrados do porte de José Saramago, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes ou poetas expressivos como Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de SáCarneiro, Herberto Hélder. Fazendo parte de gerações mais recentes, dois autores ainda pouco conhecidos no Brasil tiveram seus livros de ficção lançados agora por aqui, favorecendo, embora que modestamente, o intercâmbio frágil entre as duas literaturas, mesmo com o esforço que vem sendo empreendido por gente de lá e de cá. Inês Pedrosa, escritora com mais de 10 livros de ficção e ensaio publicados e jornalista em plena

atuação, chega com o romance A eternidade e o desejo, resultante de uma viagem ao Brasil, onde refez o percurso realizado anteriormente pelo padre Antônio Vieira. Sob a influência confessa de Vieira, todos os capítulos são intercalados por citações em negrito do famoso padre. José Luís Peixoto, que assumiu integralmente a função de escritor, em detrimento do magistério, já foi traduzido para mais de uma dezena de idiomas e contemplado pelo prêmio José Saramago de 2001 com o romance do Alentejo rural Nenhum olhar, publicado no Brasil em 2005. Cemitério de pianos é o seu segundo livro por editora local e traz como elemento deflagrador um fato verdadeiro, a morte do atleta português Francisco Lázaro em 1912, numa maratona mundial em Estocolmo. Do ponto de vista estético, não há praticamente nenhuma identificação literária entre ambos nos dois trabalhos, sendo seus interesses ficcionais ostensivamente díspares

e as diferenças de concepção e realização mais flagrantes ainda. No livro de Inês Pedrosa, o leitor pode, enviesadamente, optar pela leitura das numerosas citações em negrito de Vieira, pela narrativa da própria Inês, ou pela junção de ambos, Inês e Vieira. A romancista assumiu o risco da paródia e da paráfrase, ao tangenciar o estilo e diluir o seu próprio no de Vieira, envolvendose nele até a medula. A cegueira da personagem central Clara, provocada por um episódio trágico em que tentou salvar o amante António na Bahia, de tiros que terminaram por atingi-la no nervo óptico, traz a lume a sua forte paixão e o seu amor pelo professor universitário morto na ocasião. Clara mergulha no estudo e na dissecação das cartas e sermões do padre, empreende uma nova viagem à Bahia com um amigo, Sebastião, interlocutor mais constante, que a ama sem esperanças, e vive novas peripécias amorosas com o cineasta Emanuel. Tudo isso talvez

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como compensação para a cegueira que a assola, embora passe a desenvolver novas formas de estar no mundo. Recorre, por exemplo, ao recurso de decifrar vozes, ruídos e silêncios ao redor para reconhecer melhor os acontecimentos exteriores. O que se torna uma espécie de idiossincrasia repetida ao extremo no livro, como se somente a existência de vozes atenuasse a falta de visão em meio à impermeabilidade de trevas e silêncio. Apela ainda para o mergulho solitário, profundo e rico no seu mundo particular. E daí surgem as reflexões mais consequentes e irreverentes que as oscilações e vertentes de seu pensamento estético, político e feminista sugerem. Observa-se uma compulsão para o orgulho, na recusa da “pena” e do oferecimento de “ajuda” dos outros, com a manutenção de uma independência que, obviamente, não poderá funcionar em todos os momentos. A vaidade, herdada de Vieira, como a personagem esclarece, situa-se no futuro e se reafirma como a mola propulsora do clérigo para enfrentar ofensas, censuras, achaques e perseguições, apesar de sua ligação com a monarquia colonizadora lusa. Uma vaidade impiedosa e infalível, ele mesmo o sabia, que o transportaria ao coração do futuro unicamente pela força de suas palavras em sermões e outros escritos, que lograram ultrapassar quatro séculos. Dos brasileiros citados, destaca-se o registro da poesia seminal e charmosamente angustiada de

Imagens: Divulgação

A jornalista e escritora portuguesa Inês Pedrosa é autora de A eternidade e o desejo

Ana Cristina César num poema de seu livro mais conhecido, A teus pés (aliás, há uma coincidência flagrante do título desse livro com outro de Inês Pedrosa, no gênero ficção, o premiado Nas tuas mãos). Um momento alto do livro se revela como um toque feminista da autora, quando fala da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, composta por mulheres negras baianas desde 1820, para,

à época, angariar fundos a fim de alforriar aqueles escravos que não dispunham de dinheiro. O discurso é antifreyriano na visada do caldeamento racial brasileiro, chamando a atenção para a tremenda carga de sofrimento e desumanidade imposta aos negros, renegando estupros e abusos sexuais como meios de miscigenação e amorenamento: “Quando se fala da doçura particular da MAR 2009 • Continente x

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LITERATURA

colonização portuguesa, da miscigenação e da invenção do mulato e não sei que mais, esquece-se da realidade da escravatura: jornadas de trabalho de 18 horas, ao sol, na agricultura, mutilações – os fugitivos e as fugitivas eram punidos através do corte dos tendões –, os grilhões, as queimaduras com ferro em brasa no rosto, os açoites de chibata. (...) Desprezamos o sofrimento de milhares de pessoas que viveram neste inferno, subjugadas pelos gloriosos civilizadores do Brasil, desprezamo-los tanto que até a instituição do abuso sexual das escravas pelos senhores bran-

cos passa, ainda hoje, por benemérita criação de uma raça nova”. Ao fim, Vieira é deixado um pouco de lado, e o roteiro histórico, intelectual e turístico de Clara rende-se à sensualidade e ao ludismo de seu novo parceiro baiano. Isto se aplica a “Desejo”, segundo bloco do livro, que finaliza com uma declaração erótica ao personagem Emanuel, lasciva e despudorada, restaurando a vida dos sentidos em Clara, que intenta substituir a visão pela voz, pelos sons, pelo tateio e pelos torneios sexuais que não necessitam dos olhos para se consumarem. Se assim acontece

José Luís Peixoto, em Cemitério de pianos, assume um tom intimista e confessional

com o desejo, a eternidade proposta por Inês Pedrosa se perde com frequência na ideia subtropical de uma Bahia sempre festiva, turistizada ao máximo pela intersecção de um passado-presente de “talha dourada” e ritos não mais clandestinos como o candomblé folclorizado e midiático. A prosa romanesca de José Luís Peixoto em Cemitério de pianos acompanha de perto o que emerge das feridas abertas pela vida e a morte em um núcleo familiar modesto e tradicional português, contudo rico de acontecimentos inusitados. Todos giram em torno da funcionalidade precária de uma carpintaria, que vai sendo herdada pelas gerações sucessivas dos que se chamam Francisco Lázaro. E giram também sob o crivo da autoridade paterna, sustentada na ancestralidade de países que, como Portugal, estão arraigados a um rosário infindável de tradições às vezes inabaláveis, determinantes do comportamento individual de pessoas e grupos. Mesmo os casamentos falidos podem continuar a ser sustentados na aceitação de um cotidiano que se perfaz preferencialmente nos atributos e circunstâncias de cama e mesa, de conforto familiar e dietas abundantes em verduras, peixes e vinhos. Algumas mulheres aparecem em plano secundário como sombras, sem nome, volatilizadas no tempo e no espaço. Sem esconder sua tendência intimista e confessional, José Luís avança para um despojamento da linguagem ao mesmo tempo veloz e contido. Trabalha no sentido de coordenar o disperso e de estabelecer elos entre o fragmentário e o que já estava prestes a ser descartado como inútil. Não há como

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evitar, no entanto, certo paradoxo provocado por um excesso realístico na descrição de coisas e objetos que se interpõem nos espaços e ambientações escolhidas. De outra parte, o mundo de fora inexiste nas explicitações da política e da economia, da história e da mínima demarcação cronológica. Apenas o registro da maratona na Suécia sugere o contexto histórico imediato e anterior, sob o ponto de vista do esporte. Meses e dias da semana são nomeados, mas não datados, soltos no túnel obscuro do tempo. Nesta trama genética, o conjunto de pessoas que dela participam guardam o passado nos acontecimentos ora conflitantes ora temporariamente felizes de suas vidas: os instantes de enlevo amoroso e de trégua no ambiente familiar contrapõem-se a acidentes corriqueiros e violentos com o peso da culpa que trazem. A impetuosidade e a inclinação maratonista de corredor do segundo Francisco Lázaro imprimem um ritmo cadenciado a seus pensamentos, vez por outra desordenados, através dos seus passos em aceleração que se dirigem ao nada, à morte por insolação. Lázaro recorda fatos e momentos marcantes de sua saga familiar e amorosa. Antes da maratona sueca, aplica uma estranha mistura de graxa e óleo no corpo. Os outros corredores acham esquisita a sua pele artificialmente acastanhada, aquela mistura fatídica que o fará receber mais intensamente o sol em seu corpo, esquentando-o a uma temperatura insuportável. Na medida em que os quilômetros se sucedem, ele vai sentindo mais próxima a presença da morte. Há um cruzamento entre a sua morte e o nascimento do seu primeiro filho, o terceiro Francis-

co Lázaro, que funciona também como narrador-personagem. Isto remonta ao início do livro, onde se vê o patriarca em um hospital, o primeiro Francisco Lázaro, à espera da morte, separado dos outros doentes por esta circunstância, acontecimento entrecruzado pelo nascimento de seu neto Hermes, filho de Marta, uma hora antes. É de uma tragicidade cômica e de uma crueldade a toda prova o momento de tensão extrema em que os parentes são convocados a irem para casa e a aguardarem o telefonema noticiando a morte do patriarca: “Foram para a casa da Maria e cada um ficou abandonado num canto dentro do sofrimento. Longe, protegida, a Ana tinha dois anos e estava na casa dos avós ao lado do pai. Desprotegidos, a minha mulher, a Maria, e o Francisco esperavam que o telefone tocasse. Esperavam que telefonassem do hospital com a notícia de que eu tinha morrido. Foi assim que a enfermeira disse: – Em princípio, telefonamos ainda hoje. Telefonamos logo que o seu marido falecer”. José Luís Peixoto paga um alto tributo à instituição familiar pela visão estreita de seus afetos e desencontros comezinhos. O escritor não promove, por exemplo, uma visão de conjunto centrada na condição do país enquanto aglomerado humano e sociocultural de numerosos interesses, conflitos ou identificações necessárias. O seu enfoque produz um microuniverso familiar partilhado apenas por aqueles que são próximos pelos laços de sangue, insensivelmente fechado aos de fora. Ao lado de relações rudes, polêmicas e problemáticas, salva-se somente a afeição comum pelas crianças, uma qualidade de todos os componentes do núcleo, que afasta

temporariamente as discórdias de memória recente. Na oficina, há uma parte de seu galpão transformada em antigo depósito de pianos, onde existem peças e mecanismos para todos os tipos de consertos. É um reino escuro e subterrâneo que serve como palco para o desenredo de cenas e situações como o encontro de corpos ávidos por sexo, a leitura de romances açucarados por Maria, a descoberta lenta e privilegiada de uma memória familiar pelo terceiro Francisco Lázaro. A narrativa de José Luís produz, a partir desse cemitério peculiar, um espólio metafórico que desamarra as notas dispersas e saltitantes dos instrumentos em utilização ou conserto. O que tem como resultado uma espécie de criação artística responsável pela vinculação, no texto ficcional, do silêncio espectral e áspero de pausas e entrelinhas à ressonância fonética de uma artesania que valida, através da escrita, a harmonia e os sentimentos conflituosos de uma comunidade humana efêmera, vilipendiada e em decomposição, mas em busca permanente de seu equilíbrio.

SERVIÇO A eternidade e o desejo Inês Pedrosa Editora Objetiva/Alfaguara 179 páginas 32,90 reais

Cemitério de pianos José Luís Peixoto Editora Record 303 páginas 40,00 reais

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LITERATURA

Olavo Bilac faz a "autópsia" do dramaturgo Artur Azevedo, numa paródia da Lição de anatomia, de Rembrandt

Talento e domínio de comediógrafo Livro que reúne três peças do escritor novecentista Artur Azevedo convida leitor a saborear seu estilo leve, no qual exerce a crítica social pelo riso Diego Raphael

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egligenciado, esquecido, subestimado. Esses e outros adjetivos podem ser aplicados ao maranhense, radicado no Rio de Janeiro, Artur Azevedo (1855-1908). Irmão de Aluísio Azevedo, o célebre autor de O cortiço e de outros romances de sabor “realista-naturalista”, a obra de Artur Azevedo não teve – e não sabemos se terá – sorte igual à do irmão. Parece-nos injustiça. Por muitas razões, que o leitor desafortunadamente não encontrará neste artigo, cujo objetivo, mais despretensioso e fortuito, é apenas comen-

tar a recente publicação pela Global – em parceria com a Academia Brasileira de Letras – de três peças teatrais de Artur Azevedo: A capital federal, O mambembe e O genro de muitas sogras. Selecionado e prefaciado pela crítica teatral Barbara Heliodora, o livro é, digamos sem rodeios, delicioso de se ler. Embora sem grandes virtudes literárias e sem a pretensão de serem obras-primas do teatro nacional, as peças de Artur Azevedo envolvem de tal modo o leitor que o faz devorá-las, lê-las de uma só tacada – como,

aliás, deveriam ser lidas todas as peças de teatro. Escritor profícuo, Artur Azevedo transitou por vários “gêneros” literários. Foi da crônica ao conto, da poesia ao teatro. Exerceu todos com a leveza de quem os domina. Mas, convenhamos, foi mesmo um mestre na comédia, mais especificamente na comédia de costumes. Através dela, soube como poucos retratar a sociedade do seu tempo. O famoso ditado horaciano ridendo dicere verum – ou, em bom português, “rindo dizer a verdade” – bem poderia ser aplicado a Artur Azevedo.

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Tudo isso e muito mais é dito no prefácio de Barbara Heliodora – muito competente, mas, na mesma proporção, curto e superficial. Barbara não parece empolgada com Artur Azevedo. O seu prefácio é burocrático. Passa as informações necessárias ao leitor, é verdade, mas nada além. Toca em pontos importantes, como a autêntica brasilidade do teatro azevediano, mas quanta diferença entre esse prefácio e os textos sobre o seu amado Shakespeare! É claro que não estamos querendo dizer que Artur Azevedo alcançou a maestria de Shakespeare, mas tem, sem dúvida, importância para a história do teatro brasileiro e, sem querer entrar nesse mérito, suas comédias são extremamente sagazes, dignas do grande dramaturgo que foi.

média sofre com o rótulo de “gênero menor”, o que definitivamente não é. Poderíamos citar uma série de teóricos que se opõem à hipótese do filósofo grego, mas não é esse o momento e a hora adequados. Bastem, para tanto, as palavras mais ou menos comuns de Barbara Heliodora: “Não se pode e nem se deve julgar que, para ser bom, o teatro tenha de ser ‘sério’; a comédia é uma forma preciosa, que exige talento e domínio tanto na composição quanto na execução”. Artur Azevedo, seguindo os passos de Martins Pena, no Brasil, e, sobretudo, de Molière, na França, teve a capacidade de dignificar a comédia na dramaturgia brasileira. Soube adaptar como poucos a comédia francesa de costumes aos palcos nacionais. O teatro de revista ganhou, em sua pena, o toque brasileiro que Dramaturgo, sim, não apenas lhe faltava. Artur Azevedo é uma porque escreveu peças “sérias”, mas espécie de catalisador, um desses porque o título de comediógrafo é sujeitos que soube reunir e desenpouco para Artur Azevedo, como, volver o que havia de bom no teatro registre-se, para qualquer autor de brasileiro e excluir o que lhe parecia comédias. Desde Aristóteles a coImagens: Reprodução falho e superficial. A comédia azeD. Emília Amália de vediana, predomiAzevedo, ladeada por seus filhos Aluísio nantemente satírica, (esquerda) e Artur tem um objetivo muito bem-definido: denunciar as mazelas sociais doseutempo. Isso acaba por torná-la um pouco datada. A linguagem segue o mesmo rumo. É a linguagem literária típica do século 19 – como, aliás, não poderia ser diferente. Contudo, Artur Azevedo domina o que faz. Em A capital federal, por exemplo, o desfile das mais de 30 personagens – isso mesmo, 30 e mais de 100 páginas de texto!

– só se torna possível pela habilidade não apenas literária do autor, mas, sobretudo, pela segurança em caracterizá-las, tornando-as vivas e não meros fantoches, como vemos com muita frequência na cena teatral da época – e ainda hoje em dia. Não se poderia negar, também, que há em Artur Azevedo algum resquício da commedia dell’arte. Que o diga Pantaleão, personagem de O mambembe, peça na qual Azevedo retrata com muita propriedade aquela qualidade de atores nômades bem-conhecida por nós. Mas, registre-se, o Pantaleão azevediano é muito mais brasileiro que italiano ou francês. Não resta dúvida, ainda, que a grande quantidade de versos na imensidão da prosa, ambos muito bem construídos, dá um toque muito especial ao texto, especialmente quando ficamos sabendo que eram acompanhados musicalmente. Quando acabamos de ler o livro, ficamos querendo ler um pouco mais. Afinal, Artur Azevedo foi autor de mais de 50 peças, e a antologia reúne apenas três – e olhe que tem quase 400 páginas! Quando vemos o que se está representando nos palcos hoje, ficamos com saudade de Artur Azevedo, esse escritor negligenciado, esquecido e subestimado, não só pelo leitor comum, mas pela classe teatral. Apesar desse cenário desfavorável, as peças reunidas em Artur Azevedo – Melhor teatro revelam-se uma proposta dramatúrgica possível – e divertida – para o século 21.

SERVIÇO Melhor teatro Artur Azevedo Global Editora 367 páginas 46,00 reais

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livros

MÚSICA

Memórias de um conspirador no 3º Reich

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Imagens: Reprodução

nquanto grande parte da população alemã delirava com a demagogia nacionalista de Hitler – e é sempre bom recordar que o Führer assumiu o poder por vias democráticas –, um grupo de oficiais de diversas patentes, motivados por um senso de honra e dever ético, faziam planos para deter a barbárie nazista, num complô (corajoso, porém fracassado) que foi batizado de Operação Valquíria. O relato é de Philipp Freiherr Von Boeselager,

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último sobrevivente desOperação Valquíria se grupo de conspiradoPhilipp F. von Boeselager Editora Record res, falecido em maio de 192 páginas 2008. O autor nos con34,00 reais vence, linha após linha, de que nem todos os alemães sabiam desde o começo – mesmo alguns militares – das políticas de extermínio contra judeus, ciganos, poloneses e homossexuais. Só com o desenrolar da guerra é que Philipp passa a constatar que a brutalidade e a selvageria que ele apontava no mundo não germânico, principalmente no soviético, estavam presentes dentro das fronteiras de seu país. Esse tom confessional de alguém que considerava fazer parte de um mundo altamente civilizado e se descobre em meio à pura bestialidade é o ponto forte do livro. No cinema, a saga desses conspiradores é narrada no filme homônimo (foto), protagonizado por Tom Cruise. (Eduardo Cesar Maia)

> O humanismo e a > Um debate atual linguagem de Vieira sobre a "verdade"

> Imagens e temas > Pensamentos de do demônio amarelo um deslocado

No ano passado, comemorou-se o 400º aniversário de nascimento do Padre Antônio Vieira, membro da Companhia de Jesus que, além de religioso e político importante, foi um dos intelectuais mais brilhantes e influentes de seu tempo. Numa edição muito bem-cuidada e já respeitando o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, a editora Loyola cumpre o importante papel de apresentar aos leitores os famosos sermões de Vieira, conhecidos pelo preciosismo da linguagem, habilidade retórica e pertinência política de cunho humanitário. Destaque-se o conhecido Sermão da sexagésima, em que o religioso medita sobre a arte da pregação e a compara ao trabalho de quem semeia um campo. (ECM)

Reunindo poemas publicados em revistas e no blog O demônio amarelo, Dirceu Villa lança Icterofagia, seu terceiro livro, com o qual comemora 10 anos dedicados ao trabalho de poeta, tradutor e ensaísta. Remetendo ao radical semântico, o título pode ser entendido como “a devoração do amarelo”. A dramatização da linguagem dá o tom, focalizando desde peculiaridades literárias até paisagens, pessoas, sentimentos e aspectos da vida pública. O autor também usa a metalinguística e a crítica, quando relata suas visões das constantes transformações do mundo. O livro propõe que os poemas sejam lidos de forma integrada, para realce da correspondência entre temas e imagens. (Mariza Pontes)

Sermões (Vol. I) Padre Antonio Vieira Editora Loyola 296 páginas 42,00 reais

O problema acerca da natureza e valor do termo “verdade” é uma das questões mais renitentes e polêmicas da história da filosofia. Escolas relativistas, céticas e dogmáticas a tem abordado de diferentes maneiras, mas as dificuldades e críticas entre essas posições só parecem aumentar. Nesta obra, fruto de um debate acadêmico, dois representantes de correntes filosóficas antagônicas, Richard Rorty e Pascal Engel, debatem frontalmente e sem tergiversações acerca de se é necessário ou não a utilização, ainda hoje, de conceitos como “realidade” e “verdade”. Apesar de todas as divergências, a perspectivas dos dois se encontram na negação do relativismo extremo e no repúdio ao dogmatismo dos valores absolutos. (ECM) Para que serve a verdade? Richard Rorty e Pascal Engel Editora Unesp 88 páginas 23,00 reais

Icterofagia Dirceu Villa Editora Hedra 202 páginas 30,00 reais

Perfeccionismo e tenacidade são marcas de Samuel Rawet, um escritorengenheiro de origem judaica, autor de contos e novelas em que mostrava sua inadequação à vida e à sociedade brasileira. Na maturidade, publicou pequenos livros de ensaios em que se apresentava muito mais solto, voltando insistentemente aos temas ficcionais para tentar responder, filosoficamente, aos enigmas essenciais da existência, fazendo contraponto entre a ficção e o ensaio, pois acreditava que tudo precisava ser dito de novo, com outra linguagem. São esses ensaios, organizados cronologicamente, que compõem o livro, incluindo impressões de viagem, lembranças do passado, fantasmas e delírios, mais sete textos inéditos. (MP) Samuel Rawet: Ensaios reunidos Rosana Bines (org.) Civilização Brasileira 294 páginas 40,00 reais

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MÚSICA

Livro de editoração vale por curso intensivo

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ublicado pela primeira vez há mais de 20 anos, A construção do livro, de Emanuel Araújo, ganha uma segunda edição revista e atualizada não só com o novo acordo ortográfico como também com as novas tecnologias de produção editorial. Nascido em 1942, o sergipano Emanuel Araújo dedicou-se exclusivamente à área de editoração, no Rio de Janeiro, tanto em termos teóricos quanto práticos, até sua morte, em 2000. Sua obra é uma referência indispensável em qualquer curso da área e uma verdadeira bíblia sobre o assunto. Ele aborda o desenvolvimento do conceito de editor desde o grego Antímaco de Colofão, que organizou uma edição de Homero por volta do ano 450 a.C, até o publisher

contemporâneo. Dentro A construção da área estritamente técnido livro Emanuel Araújo ca, esmiúça em detalhes o Editora Unesp processo de normalização 340 páginas 96,00 reais dos originais de um livro e estabelece os parâmetros para a execução de uma edição crítica. No processo industrial, exemplifica como pode ser feita a escolha do projeto gráfico, do papel e da tipologia, bem como das diversas técnicas de impressão. Enfim, desde a escolha dos originais até o produto final que vai para as livrarias, todo o processo é esmiuçado com clareza didática, valendo a leitura de A construção do livro por um curso intensivo. Uma ótima iniciativa da Unesp reeditar essa obra preciosa. (Marco Polo)

> Um outro Platão na Sétima carta

> Por dentro dos estudos históricos

> Outros critérios e outros ensaios

> Uma ferramenta urbana em livro

Depois de mais de 2.000 anos, a permanência das discussões em torno da autenticidade ou não da chamada Carta VII, atribuída a Platão, mostra a relevância e alcance que esse texto possui como provável obra de um dos principais pensadores de todos os tempos. A Carta desperta o interesse de historiadores por tratar de forma intimista e confessional um período da história da Grécia Antiga e da Sicília marcado pela agitação política na cidade de Siracusa, governada por Dionísio II. O tirano tinha entre seus conselheiros justamente Platão, o qual tentou de diversas formas influenciar no caráter e nas ações políticas do seu “chefe”, com fins de reformar o Estado e transformá-lo num instrumento para se alcançar o bem comum. (ECM)

Nesta reunião de ensaios, é analisada a capacidade do historiador de compreender os sujeitos que fazem a História. Também são colocadas em xeque suas práticas, a partir de um debate historiográfico, metodológico e teórico dos seus trabalhos. Resultado de um encontro acadêmico, o livro reúne artigos sobre importantes autores da área no Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre, Emilia Viotti e Sérgio Buarque de Holanda. A obra aborda, ainda, a relação entre gênero e cultura, focada principalmente na questão feminista e como ela estruturou novas relações, permitindo a iniciados e leigos no assunto uma nova visão dos dados historiográficos estudados. (Danielle Romani)

O livro Outros critérios, do crítico de arte Leo Steinberg, reúne 13 artigos, publicados entre 1955 e 1972, que tratam da arte moderna e contemporânea. No prefácio desta edição, o autor propõe a revisão de alguns conceitos propostos anteriormente. Em Outros critérios (1972), cujo nome batiza o livro, Steinberg critica a análise da arte moderna de Clement Greenberg, defende a pop art e lança um olhar sobre a obra de Robert Rauschenberg. Já em A arte contemporânea e a situação de seu público (1968), o autor questiona a relação do público com a arte, antecipando debates atuais. Ele é otimista ao afirmar que: "Nenhuma arte permanece desconfortável por muito tempo". (Mariana Oliveira)

A ascensão de cidades à condição de metrópole tem provocado uma pequena confusão no âmbito das responsabilidades municipais, como se o crescimento urbano mudasse atribuições históricas das prefeituras. Vistos num contexto estritamente metropolitano, os municípios estão deixando de ter considerados os seus interesses específicos. É o que mostra o arquiteto e especialista em desenvolvimento urbano Jólio Cruz em Os municípios se sublimam na metrópole – ensaio sobre reforma metropolitana, alertando para as responsabilidades que o crescimento das regiões metropolitanas acarreta às prefeituras e câmaras municipais. O livro tem prefácio do ex-prefeito do Recife, Pelópidas Silveira. (Thiago Lins)

Carta VII Platão Editora Loyola 115 páginas 14,00 reais

O historiador e seu tempo Antônio Celso Ferreira (org.) Editora UNESP 240 páginas 39,00 reais

Outros critérios Leo Steinberg Cosacnaify 455 páginas 79,00 reais

Os municípios se sublimam na metrópole Jólio Cruz Cubzac 127 páginas 25,00 reais

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TRADIÇÕES

Um beatbox sertanejo Os Cabinha, banda de lata do Cariri cearense, chega à quarta geração com seu primeiro registro fonográfico Thiago Lins

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pequeno René Nascimento recebe a reportagem no amplo espaço da Fundação Casa Grande com a segurança de quem também serve de guia. “Aqui a gente faz tudo”, explica, sobre o “Pontão de Cultura” (que abrange rádio, editora, biblioteca, gibiteca e teatro) e suas atribuições: além de recepcionista, René se arrisca nas câmeras e na rádio da Casa Grande, canta e toca bateria... de lata. Isso por enquanto: ele só tem 11 anos. É René quem fala pelos Cabinha, banda de lata de Nova Olinda (sertão cearense, a 550 km de Fortaleza), que chega agora ao seu primeiro registro fonográfico, que leva o nome da bandinha. Além de René, o grupo é composto por Artur Diniz (voz e baixo), Rodrigo Alves (voz e guitarra), Iêdo Lopes (voz e percussão) e José Wil-

son (voz e guitarra), todos com idade entre 9 e 11 anos e estudando, conforme exigência do ponto de cultura, onde são lotados. A seu modo, o grupo ainda exerce luteria: confecciona instrumentos de material reciclado, como lata e papelão. Os instrumentos, na verdade, são objetos cênicos: os meninos tocam com a boca, numa espécie de beatbox (técnica de rap que consiste em imitar o som de instrumentos com a voz) sertanejo. A primeira formação do grupo foi em 1993 (à medida que os Cabinha foram crescendo e virando “cabras”, foram substituídos por meio de seleção na Casa Grande). À época da fundação, bandas de lata já eram tradição naquela região do Cariri, tanto que o movimento seria devidamente registrado no documentário Música do Brasil (2000), de Hermano Vianna.

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Fotos: Divulgação

O produtor Alemberg Quindins, depois de ver tantas bandinhas tocando nos quintais de suas respectivas casas, decidiu montar um festival de bandas de lata, o Festilata, sediado na calçada da Casa Grande. “De lá pra cá os meninos foram crescendo e se tornado músicos profissionais”, lembra Alemberg, afirmando, nas entrelinhas, o sucesso do projeto social: a fundação, para os meninos daquela cidadezinha de 13 mil habitantes, é um começo, um meio e um fim. Junto com a fundação, Os Cabinha também crescem. Foi o único grupo infantil classificado no programa de apoio Rumos Itaú Cultural, feito que vai render CD e DVD, a serem lançados neste 2009. Enquanto o CD não é prensado, a música pode ser conferida nos espaços reservados aos meninos no Myspace e no Tramavirtual. São

basicamente 10 faixas de rock oral. Um ou outro riff imaginário chega a grudar no ouvido, e o quinteto é afiado. É curioso vê-los fazendo coisas de gente grande, como gente grande. O trabalho dos meninos contém pequenos achados que são inerentes à construção da música, como uma nota prolongada precedendo um refrão, um solo de desfecho etc. De fato, eles não estão tocando, mas é como se estivessem. Recentemente, o grupo levou seu rock inocente para Fortaleza, Salvador e São Paulo, onde gravou um programa de TV e abriu um show dos incensados brasilienses Móveis Coloniais de Acaju.

Da arqueologia à formação de jovens Aberta em 1992, a Fundação Casa Grande começou como um museu de arqueologia e mitologia – e hoje opera como um conglomerado de comunicação, artes, turismo, educação e memória. Praticamente gerida por crianças, a fundação desenvolve projetos de formação pessoal, o que dá um tom de brincadeira às atividades. Recentemente premiado pela Unicef como melhor projeto na área de educação, o ponto de cultura tem um quadro aproximado de 200 crianças, divididas entre monitores, gestores – isso mesmo –, e alunos de gestão cultural. Uma escola de “crianças para crianças”, como gosta de frisar seu fundador, Alemberg Quindins. Referência na região, a Casa Grande está sempre cheia e fica aberta 24 horas por dia, o que torna a ONG, também, um espaço de convivência social, que recebeu mais de 28 mil visitantes em 2006 (não há dados sobre 2007 e 2008), entre pesquisadores, artistas e público em geral. Este ano, o laboratório de convivência social leva seus alunos para a Mostra Itinerante Fundação Casa Grande, evento que abrange fotografia, música e vídeo, e passa por Cabo Verde, Alemanha, Portugal e Itália, numa parceria dos ministérios da Cultura e do Turismo brasileiros com órgãos internacionais. (TL)

Ouça o CD da bandinha de lata www.continenteonline.com.br

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O novo som que vem das Gerais

Ilustrações: Nélio Chiappetta

MÚSICA

Diversidade e qualidade da nova produção musical mineira atraem artistas de outros estados e ganham destaque no Brasil e no exterior Ana Bizzotto 40 x Continente • MAR2009

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cial. “Antes de qualquer coisa, éramos um grupo de amigos, que se interessava por literatura, cinema, teatro e música, e se reuniu para compor e tocar junto”, conta. A diversidade de ritmos fora do circuito Rio-São Paulo atesta o vigor do que as novas gerações vêm produzindo. “A distância do eixo comercial contribui para que os artistas busquem trabalhos bempensados, de qualidade”, avalia o compositor e produtor mineiro Flá-

Um dos destaques dessa nova geração é a cantora e compositora Aline Calixto. Carioca de nascimento, ela vive em Minas desde os sete anos e é uma das mais promissoras revelações do samba, gênero pouco ligado às tradições do Estado que, no entanto, foi berço de compositores como Ari Barroso e Ataulfo Alves. Em seu CD de estreia, além de composições próprias, Aline interpreta canções inéditas feitas especialmente para

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que Minas Gerais e Pernambuco têm em comum, além da vocação libertária? Musicalmente falando, as afinidades entre os dois Estados remontam respectivamente ao congado e ao maracatu, que se tornaram referência para diversos gêneros musicais. Além dessas tradições irmãs, há outro ponto convergente: os mineiros estão conquistando cada vez mais espaço no cenário cultural brasileiro, a exemplo do que ocorreu nas últimas duas décadas com grupos pernambucanos como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. A nova geração de artistas nascidos ou criados em Minas não constitui um movimento com as proporções do manguebeat, mas vem ganhando notoriedade em festivais e projetos independentes ou apoiados por iniciativas públicas e privadas. Para a historiadora Regina Helena Alves da Silva, professora dos programas de pós-graduação em História e Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sempre houve efervescência musical em Minas, mas a visibilidade era menor. “Não havia gravadoras nem locais para se apresentar, e os equipamentos eram muito caros. Quem queria viver de música, produzir seu trabalho, tinha que sair de Minas e ir para o Rio. Nem todos conseguiram.” Nos anos 1970, o Clube da Esquina foi uma honrosa exceção. O movimento que projetou Milton Nascimento, Fernando Brant, Lô Borges, Beto Guedes, entre outros, foi, segundo Regina Helena, o primeiro movimento que representou a parte boa da globalização da cultura. “Em um momento onde havia uma reafirmação local exacerbada, eles entenderam que a música é algo universal.” Para Fernando Brant, letrista de grandes sucessos do Clube, a grande força do movimento talvez tenha sido justamente o fato de que eles não buscavam retorno comer-

Érica Machado foi premiada como revelação pela Associação Paulista dos Críticos de Arte

vio Henrique. Na década de 1990, bandas como Skank, Pato Fu e Jota Quest, formadas em Belo Horizonte, puderam continuar vivendo em sua cidade natal, mas só alcançaram projeção nacional depois de descobertos por grandes gravadoras. Para Regina Helena, a grande mudança para os músicos veio com a internet, que democratizou o acesso à produção e à divulgação em Minas e em todo o Brasil. “Com as novas tecnologias disponíveis, as possibilidades são inúmeras. Os grupos vão interagindo e dialogando com outros do país e do mundo, e ao mesmo tempo continuam morando em Minas.”

ela por sambistas como Monarco, Moacyr Luz e Nelson Sargento. O jovem cavaquinista Warley Henrique também ganha a companhia de nomes de peso em seu álbum de estreia, Delicado. O disco, uma mistura de choro, frevo, jazz e samba-canção, conta com as participações especiais e as bênçãos de Dona Ivone Lara e Wilson das Neves. O pop mineiro também ganhou algumas caras novas, como o cantor, compositor e instrumentista Pedro Morais, que lançará seu segundo CD em 2009, e a cantora Érica Machado, com dois CDs no currículo e premiada como artista revelação MAR 2009 • Continente x

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pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Entre os roqueiros, a banda Porcas Borboletas é um dos destaques do atual cenário da música independente brasileira, com uma proposta estética inventiva e irreverente. Outra revelação é a banda Monno, presença constante em festivais de diversos Estados. No hip hop, desponta o rapper Renegado, que lançou em 2008 seu primeiro CD, Do Oiapoque a Nova York. Os projetos musicais em andamento, em Minas, são um incentivo para os novos artistas. Um dos pioneiros é o Conexão Vivo. Nas sete edições já realizadas, o projeto já recebeu mais de 2.700 inscrições e produziu mais de 900 espetáculos, assistidos por aproximadamente 300 mil pessoas. O projeto Stereoteca, que revelou Aline Calixto e Renegado, realizou 24 shows em sua terceira edição, sendo 19 deles com lançamento de CDs. Há ainda o Música Independente, que tem as suas apresentações gravadas e transmitidas por rádio e TV. “Só em 2008, cerca de 750 artistas se inscreveram no Música Independente e no Vozes do Morro, que incentiva a produção musical das vilas, favelas e aglomerados”, contabiliza o crítico e produtor musical Kiko Ferreira. “Para cada lado que você olha, vê um mineiro se destacando, com propostas bem diferentes umas das outras. Da música comercial à música alternativa, há uma pluralidade muito grande na produção.” Kiko buscou reproduzir esta diversidade como curador da Mostra Contemporânea de Arte Mineira, realizada em novembro do ano passado, em São Paulo. A mostra reuniu mais de 300 artistas mineiros das áreas de música, teatro e manifestações de rua, com o objetivo de promover o diálogo entre gerações. O evento contribuiu para divulgar músicos que vivem em Minas, in-

Fotos: Divulgação

MÚSICA Kiko Klaus, que mora em Belo Horizonte há sete anos, inspira-se na música melodiosa mineira

Um pernambucano entre montanhas clusive alguns “estrangeiros”, como o pernambucano Kiko Klaus e o poeta e compositor piauiense Makely Ka, para quem a interação entre diferentes estilos e gêneros em Minas acontece com uma naturalidade que não é vista em outros lugares. “Não há muito gueto. O pessoal do samba convive com o pessoal da música regional, que vai ao show de música instrumental, que toca com o pessoal do rock’n’roll e que ouve música eletrônica. Isso eu acho que tem feito a diferença aqui”, opina. A cena musical independente também se fortaleceu muito na última década. A internet é a principal ferramenta de trabalho de bandas que começaram a surgir a partir do ano 2000, como The dead lover’s twisted heart, Carolina Diz e Digitaria. “Uma cena musical é

feita de atores e de espaços. Com o desenvolvimento da internet e a criação, em meados da década de 1990, das casas de shows Matriz e A Obra, voltadas para a música independente, criaram-se esses espaços e os atores puderam entrar em cena”, afirma o jornalista Thiago Pereira, do programa Alto Falante, produzido pela Rede Minas e transmitido nacionalmente pela TV Cultura. Os contatos entre as bandas independentes mineiras e a divulgação do seu trabalho também cresceram muito com o surgimento de festivais como o inusitado Primeiro Campeonato Mineiro de Surfe, que já vai para a sua nona edição. “É muito curioso o fato de Belo Horizonte, que não tem mar, ter se tornado uma das maiores referências

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ascido e criado no Recife, o músico Kiko Klaus morou nos Estados Unidos e na Espanha e escolheu a cidade de Belo Horizonte para viver, há sete anos. “De alguma forma, a música montanhosa e melodiosa de Minas me interessa muito. O primeiro músico de quem realmente fui fã, de quem quis tocar uma música no violão foi Milton Nascimento”, conta. A mudança para Minas Gerais foi motivada pela produção de uma trilha sonora para o espetáculo Sem lugar, do grupo de dança Primeiro Ato. O tema era Carlos Drummond de Andrade, poeta mineiro que se tornou uma de suas grandes referências, inclusive na composição do seu primeiro CD solo, O vivido e o inventado, lançado em 2008. Mas as referências mineiras não são as únicas no trabalho de Klaus, que incorpora diferentes gêneros como MPB, maracatu, samba, flamenco e ciranda, associados a elementos da cultura mundial contemporânea. Além de cantor e compositor, ele é engenheiro de som e produtor

musical, o que contribuiu para que acompanhasse e atuasse em todas as etapas de produção do disco. Kiko Klaus também foi sócio do estúdio Fábrica, no Recife, onde registrou algumas faixas do CD solo. Em 2005, produziu o CD Mesmalua, em parceria com o músico colombiano Carlos Jaramillo. De acordo com o músico, uma das grandes influências para o “vivido” das composições foi a infância em Pernambuco e a experiência profissional no Recife. “Quis colocar no disco várias vivências que tive. Queria muito fazer essa ponte com as minhas origens e com os elementos musicais pernambucanos que fui agregando quando trabalhei com artistas como Naná Vasconcelos, a quem dedico esse trabalho”, explica. Kiko também trabalhou com Lenine, Cordel do Fogo Encantado, Nação Zumbi, Arto Lindsay e Mundo Livre S.A.. “Eu não podia desejar pós-graduação melhor. Foi uma oportunidade única de participar do processo criativo de artistas

Os roqueiros da banda Porcas Borboletas têm proposta estética irreverente

nacionais, e talvez mundiais, de surf music”, observa Thiago. Outros festivais como o Festival Garimpo, o 53HC e o Jambolada, realizado em Uberlândia, espelharam-se numa bem-sucedida experiência pernambucana. “O Abril pro Rock foi o primeiro grande festival de música

independente do país e serviu de modelo para a criação de todos os outros”, observa Thiago. Nas esquinas de Minas há muito mais do que novos sons. Os vários “clubes” vivem hoje um momento inédito em termos de mobilização. “Nós últimos cinco anos, criou-se a

diferentes e bacanas. Tudo isso foi me enriquecendo muito como músico e produtor e me trazendo mais segurança”. O CD solo contou com parcerias de alguns conterrâneos, como o baterista Pupilo, do Nação Zumbi, e o violoncelista Fabiano Menezes, do Quarteto Romançal. No período em que viveu na Espanha, Kiko Klaus trabalhou com o grupo Ojos de Brujo, premiado pelo Grammy Latino, e agregou elementos do flamenco à sua maneira de tocar, de frasear. “Todos os modos melódicos que uso têm essa influência e fazem uma ponte com o movimento armorial, que promovia a fusão da cultura erudita com a popular.” Segundo Kiko, aí entra o “inventado” do nome do CD. “Essa colagem que fiz é a minha forma de entender a música pernambucana, a música brasileira, minha forma de sentir a conexão que ela faz com a música espanhola, moura, e como tudo isso se transforma numa experiência que é só minha, que só eu vivi”.

consciência de que é necessário unir forças, que é possível movimentarse coletivamente. Isso tem a ver com a iniciativa do Ministério da Cultura durante a gestão de Gilberto Gil, mas também com o momento atual de quebra de paradigmas, crise do mercado fonográfico e desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação”, avalia Makely Ka. Um exemplo dessa articulação da classe foi a criação, em 2007, do Fórum de Música de Minas Gerais, que teve como objetivo promover o mapeamento da cadeia produtiva da música no Estado. Entre os projetos previstos está a internacionalização da música made in Minas.

SERVIÇO Confira a linha de tempo da música mineira e escute algumas músicas dessa nova geração www.continenteonline.com.br

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MÚSICA

Novas ideias para uma antiga orquestra Músicos da Sinfônica do Recife elaboram amplo projeto de reestruturação, que abrange da direção artística à criação de grupos de câmara Carlos Eduardo Amaral

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ssistir a um concerto de uma orquestra sinfônica, por mais habitual que seja, sempre se torna uma experiência admirável de se presenciar – pela imponência e pela coesão do maior conjunto musical padronizado surgido ao longo dos séculos, em todas as civilizações e sem similar em dimensão e natureza nas outras artes. No entanto, o funcionamento de uma sinfônica depende de tantos fatores e subfatores quanto das seções e naipes que ela possui. Problemas crônicos de administração e comunicação não somente influem na vida institucional do conjunto como também podem afetar o desempenho artístico dele e repercutir junto ao público, mesmo que este saiba pouco dos bastidores de uma orquestra. Assim, ninguém melhor para tomar a iniciativa de resolver esses casos do que o maestro ou os demais músicos. Na Orquestra Sinfônica do Recife (OSR) aconteceu a segunda alternativa. Uma comissão eleita pelos instrumentistas da OSR – formada pelas violinistas Érika Crespo e Viviane Pimentel e pelo clarinetista Gueber Santos – elaborou um questionário de avaliação, acerca de itens diversos e o aplicou aos próprios músicos. As respostas geraram um projeto, apresentado à atual Secretaria de Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife, a quem a OSR é subordinada.

O primeiro dos seis tópicos do projeto se refere à escolha do diretor artístico, função exercida pelo regente titular. Os músicos reivindicam que os próximos candidatos ao cargo sejam entrevistados oficialmente pela Secretaria, para estes firmarem suas propostas perante a orquestra e o público e para se evitar o efeito de indicações estritamente políticas. Como tal processo costuma demorar, o relatório sugere que a OSR atue com maestros convidados até dezembro, a fim de que o titular escolhido comece a trabalhar em 2010. Anexos ao projeto, uma lista de 10 currículos revela os candidatos/convidados mais citados pelos músicos: os pernambucanos Sérgio Barza, José Renato Accioly, André Muniz, Homero de Magalhães Filho, Nilson Galvão Jr., Lanfranco Marcelletti Jr. e Alcingstone Cunha, e ainda Carlos Moreno (Sinfônica de Santo André-SP), Guilherme Mannis (Sinfônica de Sergipe) e Marcos Arakaki (Sinfônica da Paraíba). O cronograma de avaliação dos candidatos compõe o segundo ponto do plano da OSR. O terceiro e quarto pontos, os mais críticos, abordam a equiparação salarial e a realização de concurso público – ambas as questões têm se refletido na qualidade do conjunto. A defasagem salarial em re-

lação aos grandes centros nacionais possui dois efeitos práticos bastante prejudiciais aos músicos. Um deles: a procura por bicos no “submercado da música clássica soft” para complementação do soldo mensal. Essa incursão no circuito musical de eventos sociais está atrelada ao segundo efeito: garantir a conservação dos instrumentos, depois de satisfeitas as despesas pessoais. Isso porque a maior parte dos instrumentos pertence aos próprios músicos, mas estes não recebem reembolso ou adicional de manutenção, nem benefícios extras, tais quais financiamento a baixos juros, isenção de taxas de importação ou seguro. O salário médio da OSR – 822 reais, que podem chegar a quase o dobro com gratificações – é o segundo pior das principais sinfônicas brasileiras. Sergipe paga 2.160 reais; a Bahia, 2.750; Brasília, 3.800; e Porto Alegre, 4 mil (a Osesp... 12 mil). Vale acrescentar que uma orquestra deve dispor de todos os instrumentos que utiliza, porém os poucos que s ã o d o p at r i mônio da OSR, em particular os de percussão, já deveriam ter sido substituídos. Um a j u s t a remuneração evitaria a contínua evasão de instrumentistas do Estado e serviria de incentivo para um futuro concurso público – necessário, dado que a seção de cordas de uma orquestra sinfônica, para esta soar sem desequilíbrios, equivale a 50 a 60%

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do total de instrumentos e o déficit dessa seção na OSR é de cerca de 30 músicos. A comunicação institucional ocupa o quinto tópico do projeto. Há muito tempo, a OSR carece de material publicitário e de um site que contenha minibiografias dos músicos, história da orquestra e, sobretudo, traga o calendário anual de concertos, por sinal há muito tempo sem a devida divulgação. A contratação de uma assessoria de imprensa e de uma agência de publicidade resolveria a pendência – exceto a do calendário, que depende da diretoria artística. A formação de grupos de câmara representativos da OSR encerra o projeto. Assim como a Petrobras Sinfônica ocupa mais espaço no programa da Mostra Internacional de Música em Olinda, via conjuntos menores (e, em sentido oposto, grupos de câmara se juntem para formar a Orquestra Virtuosi), os músicos da Sinfônica do Recife pleiteiam a adoção do mesmo princípio, pensando na promoção da orquestra de forma extra e descentralizada.

vindo, pois os dois últimos CDs da OSR, de repertório erudito, foram gravados sob a direção artística do maestro Carlos Veiga, em 2000. De lá para cá, surgiram o brilhante Sivuca sinfônico e um popularesco álbum de sucessos démodés da MPB aberto pelo Hino da Internacional Comunista. Faz falta um disco da Sinfônica que toque Ravel, Bruckner, Haydn ou novamente Mignone, por exemplo. Junto com as propostas, uma carta introdutória tangencia outros assuntos, cuja solução também depende de atos políticos ou ajustes de conduta, como a preservação do patrimônio, a reciclagem dos músicos e a proibição de se marcar concertos quase de véspera (a exemplo de apresentações de natureza privada, fruto de acertos institucionais). Apesar de o projeto abarcar itens cruciais, Gueber Santos, presidente da comissão dos músicos da OSR, ressalta que ele tem somente “o ob-

jetivo de suprir necessidades neste momento de transição. Nele estão contidas sugestões a serem implantadas em curto prazo”. As propostas chegaram mês passado às mãos do secretário de cultura, Renato L. Encontra-se, também, nas mãos dele, o destino do atual regente titular, Osman Giuseppe Gioia, o qual declarou publicamente seu desejo de permanecer na OSR, apesar da vontade contrária dos músicos. A assessoria de comunicação da Secretaria de Cultura informou que todas as decisões referentes à orquestra serão avaliadas, em março, com o fim das atividades carnavalescas. Independentemente das decisões, a quase octogenária Sinfônica do Recife, fundada em 1930 pelos maestros Ernani Braga e Vicente Fittipaldi, mostra a autocrítica e consciência essenciais para tentar se soerguer e visualiza um lugar futuro entre as melhores sinfônicas do país, ressaltando que não toca para uma elite, mas para todos os pernambucanos.

Uma ação vinculada à da criação dos grupos representativos é a produção de um CD. Seria muito bem-

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MÚSICA

Vendedores piratas e suas rádios ambulantes

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ode até não ser possível afirmar qual será a próxima canção a virar um grande sucesso e cair nas graças da população recifense, mas é relativamente fácil dizer como ela será escutada e distribuída. Não adianta simplesmente ligar o rádio do carro, procurar nos programas musicais de TV ou muito menos perguntar nas lojas de discos. É melhor esperar dentro de sua própria casa, onde, inesperadamente – e inconvenientemente –, passará um carrinho de três rodas, com um pouco mais de um metro de comprimento, cerca de 80 centímetros de largura e grandes caixas de som. Sim, será um vendedor de CDs piratas, anunciando a música que não vai parar de tocar nos próximos dias, semanas ou meses, para seu prazer ou desprazer. Esse sucesso, no entanto, trilhará um caminho completamente diferente do que faria há alguns anos. Nada de ser “achado” por um produtor ou caçatalentos de uma gravadora, nada de negociar jabá com as rádios, nada de um esquema publicitário massivo. Os carrinhos de CDs são provavelmente o principal aspecto dessa nova estrutura periférica de produção e distribuição formada na Região Metropolitana do Recife. O roteiro não varia muito. Primeiro, um compositor tem a ideia da letra a partir de alguma frase que ele provavelmente ouviu no bairro onde

mora, como “Quem tira onda é eu” (de Rodrigo Santana) e “Namoro tem prazo de validade” (de Rodrigo Mell e Elvis Pires). Então, a composição é levada para uma banda de brega, swingueira, forró eletrônico ou pagode e, depois de gravada no estúdio – processo que resulta em mil cópias de um CD e que hoje não sai por muito mais que três mil reais –, é incluída em alguma coletânea de um dos DJs conhecidos da cidade, como Remixsom, DJ Val, DJ Preá ou DJ Mão Branca. A partir desse ponto é que começa o principal aspecto da divulgação: o contato com as rádios comunitárias e com as carrocinhas de CDs piratas. Se a música realmente “pegar”, os CDs entregues começam a ser vendidos, a agenda de shows é preenchida e a banda pode até chegar às Fotos: Flora Pimentel

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Carrocinhas de CDs massificam e divulgam a produção musical de comunidades urbanas e periféricas, tornando-se propagadoras dos hits do momento Diogo Guedes

rádios comerciais e aos programas de TV que tocam seu estilo musical. Com o sucesso nessa “pequena” escala, um grupo mais conhecido pode pedir para regravar a canção, rendendo mais algum tempo de sucesso nas rádios, na TV, nas casas de show e, é claro, nos carrinhos. Atualmente são mais de mil carrinhos circulando no Recife, especula o radialista e produtor Alexandre “Beleza de Creuza”, profundo conhecedor do sistema de produção e distribuição desses ritmos populares. “Eles se dividem por área”, explica, “e sempre existem vendedores fixos nos grandes centros comerciais”. O preço médio de cada disco é 2,50 reais e os vendedores que compram os CDs a pirateiros – aqueles que fazem as cópias em massa e, às vezes, podem até ser donos de 30 carrinhos – lucram 1,50 reais por venda. A quantidade de produtos comercializados por dia varia de acordo com a localização e o acervo dos carroceiros. Em certos locais, chegase a vender 30 CDs, o que resulta em uma renda de 45,00 reais por dia e

até 1.350,00 reais por mês, caso o trabalho seja diário. É uma boa quantia, considerando que um carrinho pode custar entre 500,00 e 1.000,00 reais, já devidamente equipado. Eles podem ser facilmente encontrados no centro da cidade – principalmente na parte externa do Mercado de São José, na Rua Sete de Setembro e na Avenida Dantas Barreto –, nos mercados em geral, na praia de Boa Viagem ou caminhando pelas ruas centrais e do subúrbio. Trabalham em média nove horas por dia, saindo às 8h de casa e chegando às 17h, depois de deixar o carrinho em um depósito, pois mantê-lo consigo pode ser perigoso por conta das ações policiais. “Antigamente, quando o cara lançava um disco, comprava um sacolão de fichas e botava a família na fila do orelhão para ligar pra rádio e pedir para tocar a música. Hoje em dia é diferente: o cara fala com os carroceiros e dá prioridade a eles”, conta Alexandre, ressaltando o papel deles no sistema de distribuição, considerando-os “a mão amiga” das bandas, compositores e DJs. Não é muito diferente da opinião dos outros que trabalham no ramo. “As bandas daqui só crescem por conta da pirataria. Elas não têm condições de pagar jabá em rádio”, opina o compositor Hugo Santana, autor dos controversos sucessos Lapada na rachada e Cano de ferro. José Roberto, guitarrista da banda Mistura do Calypso, intérprete do sucesso

Meu novo namorado, admite que “com os carrinhos, a facilidade de chegar ao público é maior do que nas lojas de discos”. Uma das qualidades que parece necessária a um bom carroceiro é a calma. O vendedor, seja parado em um ponto, seja circulando, enfrenta normalmente um ritmo lento e minucioso de atendimento. Ulisses da Costa Silva, de 24 anos, o único dos vendedores a aceitar dizer seu nome completo, por exemplo, comenta sobre o último cliente, o porteiro de um prédio no Rosarinho, que atendeu por cerca de 20 minutos. “Eu mexi no carrinho todo. Ele olhou uns 50 DVDs e CDs e só levou um”, reclama conformado, anotando em um caderno o produto que vendeu – um dos vendedores mais organizados encontrados pela reportagem. Nas ruas, é preciso andar devagar, caso contrário ninguém ouviria a música ou conseguiria parar o vendedor, se preciso. Para quem fica em um ponto fixo, o ritmo também é lento. Os consumidores se aproximam timidamente, dão uma boa olhada e até perguntam sobre os CDs que não encontram, mas não são muitos de uma vez só, exceto em barracas muito grandes e de acervo diversificado. Um bom exemplo disso é a possibilidade de encontrar nas redondezas do Mercado de São José, no centro do Recife, um carrinho de CDs piratas sem o seu vendedor por perto, como o de Felipe,

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MÚSICA 25 anos, que estava sentado em um meio-fio olhando distraidamente para o outro lado quando foi abordado pela reportagem. Mesmo tocando música em alto e bom som, no centro da cidade as carrocinhas estão disfarçadas. Porque elas se misturam com o barulho das lojas chamando os consumidores para as promoções imperdíveis, e com o comércio ambulante que se amontoa pelas ruas, barracas de comidas e pequenos produtos como brinquedos, cadernos e acessórios. Felipe trabalha com um preço menor praticado, 1,50 reais por CD e 2,00 reais por DVD. Segundo o vendedor, o que tem feito mais sucesso no momento são as coletâneas de Maysa e os discos do cantor gospel Regis Danese, trilha sonora desta entrevista. “As pessoas vão pedindo para eu tocar, aí eu boto”, comenta, explicando o critério de seleção da sua pequena “rádio”. Quando perguntado sobre seu gosto musical, ele demora a responder e diz, não muito convincentemente: “Gosto de MPB, sabe?”. Algum cantor favorito? “Ah, ouço coletânea mesmo, com uma música de cada...”. Diferente de Ulisses, com sua bermuda estampada, blusa vermelha, dois brincos e aparelho dentário preto e vermelho, que não esconde

sua preferência por bandas de swingueira. “Quando eu vou voltando para casa, eu sempre boto pra escutar”, conta. É um dos poucos que não deixa o carrinho em um depósito e diz vender 40 CDs por dia. Naquela manhã, por volta das 11h, dizia terem sido uns 20. Para anotar o que repor e o que está fazendo sucesso, Ulisses tem um caderno. Também renova o acervo indo frequentemente ao centro da cidade para saber quais são as novidades e comprá-las, pois é um dos poucos carroceiros que copia os discos que vende. Normalmente, passeia pelos bairros da Jaqueira, do Derby e de Água Fria, onde mora, tocando sucessos de música gospel, forró eletrônico e brega, modificando a fórmula aos domingos: só brega e música cubana, que é o que os pais de família querem ouvir (e comprar) quando estão descansando em casa. As estruturas das carrocinhas são feitas sob encomenda – a de Ulisses, por exemplo, saiu por cerca de 150,00 reais. Com o resto dos apetrechos, incluindo o aparelho e as potentes caixas de som, o valor pode chegar até mil reais, preço total do carrinho de Robozinho, 21 anos, que só aceita dizer seu apelido. Entre os entrevistados, ele se mostrou o

mais fechado: só na quarta pergunta feita ele parou de apenas mexer a cabeça e respondeu que trabalha na atividade há quatro anos. O motivo para a desconfiança foi a operação que a Polícia Militar havia feito algumas horas antes, apreendendo seis carrocinhas e notificando os seus proprietários. Felipe já foi pego várias vezes pela polícia e chegou a ter que depor por reincidência. Edilza, 35 anos, um raro caso de vendedora, já teve as mercadorias recolhidas duas vezes no local em que estaciona, nas proximidades do Pátio de São Pedro. Eles afirmam que a repressão à pirataria tem aumentado nos últimos tempos. O compositor Hugo Santana enxerga no problema questões mais amplas e de difícil solução, relacionadas principalmente ao preço de venda dos discos originais. “Não adianta a polícia ficar caindo em cima dos depósitos de carrinhos e dos vendedores de CD pirata. Eu acho melhor ela correr atrás das pessoas que vendem drogas na favela, dos caras que estão matando e roubando”, opina. O problema é que, mesmo com a utilização do carroceiro como um divulgador do trabalho informal de novas bandas – algo que difere da pirataria, porque, mesmo não reco-

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lhendo imposto, não constitui cópia ilegal de obras em circulação na indústria fonográfica –, a venda de piratas é o carro-chefe do negócio. Ainda que tenham autorização para comercializar (e ajudar a divulgar) os sucessos momentâneos das bandas locais, continuam tendo no acervo discos de nomes de peso como Roberto Carlos e Ivete Sangalo. “A pirataria é um mal necessário. Queira ou não queira, é. Por que ela existe? Porque as gravadoras estavam com o absurdo de vender CD a 25, 30,00 reais”, argumenta Hugo Santana, que também relaciona todo o sucesso de suas canções à existência desse circuito de vendas, chegando a dizer que “quem quer chegar ao sucesso hoje em dia precisa da pirataria”. Opinião semelhante à de Alexandre Beleza: “Eu não condeno porque existe mercado. Tem quem compre. Quando o cara da carrocinha vende o CD de uma pessoa como Gilberto Gil, significa que o próprio público dele está achando o preço do original caro”. Na Rua Sete de Setembro, um dos principais pontos de venda de CDs e DVDs piratas do Recife, já no fim de uma tarde de fevereiro, os ven-

dedores ainda estão montando suas barracas. Por conta de fiscalização ocorrida mais cedo, passaram o dia fechados e só naquele momento reabriram para tentar algum negócio. Excepcionalmente, o ritmo lento costumeiro é substituído por mais agilidade da clientela, ávida por consumir, sobretudo DVDs, depois de um dia de repressão. Dentre as bancas, destaca-se a Tarado MP3, que até tem um encarte específico para seus produtos. Por 5,00 reais, os consumidores podem levar discografias completas e enormes coletâneas para ouvir no computador ou em um aparelho de som que execute o formato. Sua especialidade são estilos incomuns nas outras carrocinhas. Quando alguém pergunta, por exemplo, por uma banda de brega, obtém como resposta: “Não tem música de periferia aqui não, só tem música de qualidade”. O acervo de “qualidade” de Tarado MP3 vai de nomes consagrados como Bob Dylan e Paul McCartney até bandas pernambucanas como Mombojó e Eddie. Alguns discos contam com discografias completas e inclusive raridades, como no de Los Hermanos. No encarte de cada CD, além de uma logo de pirata, lêse a mensagem: “Aquecimento global, cuidado de todos”.

Vendedores como esse indicam que os carrinhos de CDs piratas, além de tocarem os hits do momento, produzindo um maior efeito massificador, são capazes de se diferenciar, especializando-se em nichos musicais específicos. Talvez por isso, cada vez mais o público acostuma-se a comprar CDs nos carrinhos, dispensando a relação com um mercado formal que pratica preços muito superiores aos oferecidos pelo mercado informal. Nas ruas da cidade, fica estabelecida uma clara distinção entre a lei e o consumo. Também, esses personagens controversos, os vendedores de carrinhos de CDs piratas, tornam-se figuras importantes na circulação e distribuição da produção musical de movimentos como o brega, a swingueira, o forró eletrônico e o pagode. Porque são eles que fazem chegar à audiência essas produções, o que dá a alguns o título de DJs do asfalto. Por conta do status em construção, há carroceiros que deixam o medo e a vergonha de lado. Quando pensamos em mantê-los no anonimato, sugerindo que ofereçam informação em troca de sigilo, há gente como Ulisses que, ao invés de dizer apenas o nome próprio ou um apelido, responde sem hesitar: “Pode botar aí, é Ulisses. Ulisses da Costa Silva”.

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MÚSICA

Gigolô americano em coletânea

Reprodução

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DJ e produtor americano Diplo ganhou notoriedade por tratar o funk carioca com a sutileza de elefante. Seu jeitão Sargentelli de encarar/negociar a nossa música suburbana transformou a cantora M.I.A. em sensação ao samplear Injeção de Deise Tigrona, no hit Bucky done gun. Em 2006, ele fez um set espalhafatoso no Abril Pro Rock, misturando Madonna, Hot Chip, New Order e, claro, tchutchucas dos mais diversos quilates. Com o funk já devidamente digerido em seu sistema, Diplo partiu a caminho de outras jugulares. Foi o caso da elogiada mixtape que lançou no ano passado com a cantora Santogold, que acabou entrando em tudo o que é lista dos melhores de 2008. Isso sem falar no recente (e inusitado) remix bate-cabelo de Circus,

que provocou ainda mais o lado robocop sexy que tanto gostamos em Britney Spears. A coletânea Decent work for decent pay – Volume 1 passa em revista a prematura e profícua carreira de Diplo, que injetou sujeira e batidas quebradas em gente como Daft Punk, Spank Rock e até os brasileiros do Cansei de Ser Sexy e Bonde do Decent work Rolê, este último da mesfor decent pay ma estirpe de gigolô de – Volume 1 Diplo funkeiros de Diplo. ApeBig Dada sar de divertida, Decent 70,00 reais (CD) work carrega um problema ontológico: qual a razão de ser de uma coletânea (o mais tradicional dos formatos), quando estamos falando de um artista que tem nos blogs de MP3 o principal formato de divulgação de sua música? É incrível como até os mais modernos precisam da segurança ideológica dos suportes tradicionais e rogam por ela. (Schneider Carpeggiani)

> Uma coleção feita para ninar bebês

> A Jovem Guarda reinterpretada

> Ramalho macula palavras definitivas

>Panelada refinada e bem-dosada

Imagine colocar seu bebê para dormir com Satisfaction, do Rolling Stones, ou Another brick in the wall , do Pink Floyd. Suas versões originais dificilmente poderiam prestar-se a tal uso, mas a Coleção para bebês realiza o sonho dos pais roqueiros (loucos para iniciar seus rebentos no mundo do rock) lançando cinco CDs com versões pensadas para os pequeninos. Beatles, Elvis Presley, Madonna, Pink Floyd e Rolling Stones tiveram algumas das suas mais célebres canções regravadas em versões instrumentais, perfeitas para embalar o sono infantil. O projeto, parceiro do Instituto Nacional do Câncer (INCA), reverte parte do valor de cada CD para a instituição e traz na capa ilustrações feitas por crianças atendidas no ambulatório. (MO)

Um disco dedicado à Jovem Guarda. É esse o novo trabalho de Zé Renato, exintegrante do Boca Livre . A relação com a Jovem Guarda vem da juventude. O intérprete conta que a primeira música que aprendeu a tocar, quando ganhou seu primeiro violão, em 1968, foi Namoradinha de um amigo meu, de Roberto e Erasmo Carlos. Zé Renato, que já reinterpretou, com sucesso, Zé Kéti, Sílvio Caldas e Chico Buarque, vai em busca desse repertório de juventude para compor É tempo de amar. As músicas ganham uma nova roupagem e são interpretadas com arranjos mais sofisticados e harmoniosos. Clássicos como Não há dinheiro que pague, Lobo mau, Eu não sabia que você existia, Nossa canção ganham versões à Zé Renato. (MO)

Interpretar Bob Dylan pode ser fácil: o trovador americano sempre se estendeu pouco nas linhas de voz. Seu forte é a palavra, que às vezes soa mais falada do que cantada. É o contrário do que Zé Ramalho faz neste Zé Ramalho canta Bob Dylan - tá tudo mudando. O paraibano canta bem. O problema em Tá tudo mudando é justamente a palavra. Bob Dylan pode não ser o intérprete definitivo de suas próprias canções. No entanto, o que Dylan escreve sempre foi definitivo. Obra que Zé Ramalho acaba de macular com traduções/versões desnecessárias. O paraibano até que se esforça, inserindo sanfona e viola no disco para dar um sentido brasileiro. Mas não precisava, porque Mr. Dylan sempre fez todo o sentido do mundo. (Thiago Lins)

O título do CD dá uma idéia da diversidade pela qual o trio instrumental passeia (com propriedade) em seu segundo trabalho. Panelada traz 12 faixas, longas e sinuosas em sua maioria. Não convém colocar “um destaque para a música tal”, porque este não é um disco de refrões, solos ou riffs grudentos: o ouvinte médio pode se assustar com as muitas nuances do álbum, que deve ser dissecado em seus detalhes. E o estilo do Treminhão (o nome foi tirado dos caminhões canavieiros de três compartimentos) pede isso: as músicas soam como pequenas peças, onde um solo distorcido precede um baião, por exemplo. A sucessão de ritmos chega a ser intrigante – mas tudo se encaixa no segundo trabalho do grupo, uma panelada refinada e bem-dosada. (TL)

Coleção para bebês Madonna, Pink Floyd, Rolling Stones, Beatles, Elvis Presley Coqueiro Verde Record 10,00 a 15,00 cada

É tempo de amar Zé Renato Universal Music 24,90 reais

Zé Ramalho canta Bob Dylan – Tá tudo mudando Zé Ramalho EMI 26,00 reais

Panelada Treminhão Independente 10,00 reais

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Muito além de Strokes e Los Hermanos...

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Divulgação

hermano Rodrigo Amarante conheceu o brasileiro Fabrizio Moretti, baterista da banda Strokes, em 2006, durante um festival em Lisboa. Sem grandes pretensões, começaram a compor juntos e agregaram ao grupo a vocalista Binki Shapiro, formando a Little Joy. O que era para ser um projeto paralelo terminou ganhando vulto, gerando um disco, lançado no ano

passado nos EUA e agora no Brasil. O sucesso, daquilo que seria um projeto secundário, lotou salas brasileiras no mês passado. O CD tem 11 faixas, cantadas em inglês, com vocal de Rodrigo Amarante, com exceção de duas interpretadas por Bikki Shapiro. Os fãs das bandas "originais" conseguirão relacionar algumas canções aos trabalhos anteriores. Keep Little Joy me in mind flerta com a Little Joy sonoridade do Strokes, Som Livre 19,90 reais enquanto Evaporar, única música em português, poderia compor facilmente o set list do último disco do Los Hermanos, Quatro. Em Little Joy, o grupo conseguiu reunir influências do rock, do folk e do pop, em composições com belas melodias. Talvez, para alguns, o ritmo das músicas da banda merecesse uma boa acelerada, mas a alegria contida das faixas Brand news start ou How to hang a Warhol tornam o disco perfeito para esses dias pós-folia. (Mariana Oliveira)

> Porradaria-cabeça surpreendente

> Zé Dantas por Cláudio Almeira

> Referências claras e antagonismos

> Um disco para ser tocado nas noites

O primeiro disco do Sepultura sem um Cavalera surpreende. Derrick Green (voz) já vem segurando as pontas no lugar de Max Cavalera há 11 anos, mas este também escrevia e tocava guitarra, e é aí que o americano deixa brechas. No entanto, Green conseguiu imprimir mais personalidade nesse trabalho, forçando o gogó do punk ao trash. Já Jean Dollabella parece ter feito pouco caso da “difícil missão” de substituir Igor Cavalera: o novo baterista já entrou mostrando a que veio, com estilo próprio, firme. A-Lex, o CD, é inteiramente baseado no livro Laranja mecânica, de Anthony Burgess. Se no livro os espancamentos são recorrentes, o Sepultura, do alto de seus 25 anos, continua fazendo algo parecido com seus instrumentos. (TL)

O novo CD do violonista Cláudio Almeida foi feito em homenagem a um dos grandes parceiros de Luiz Gonzaga, Zé Dantas. O disco é quase todo instrumental e mostra arranjos limpos e suaves. O CD traz uma breve biografia de Zé Dantas, escrita por José Teles. Além das músicas mais conhecidas, como Vem morena, Riacho do navio e Cintura fina, há também uma inédita, tirada de uma gravação independente. Intitulada Fulô ingrata, a música ficou intocada por 60 anos, até ser gravada agora na voz de Dominguinhos. O CD termina com a voz doce de Beth Coelho, cantando a música Xô pavão, feita por Dantas quando acalentava seus filhos. Essa última já fora gravada por Gonzagão, mas não ficou muito conhecida. (Bernardo Valença)

Masterizado pelo experiente Carlos Trilha, o segundo CD do cantor, compositor e violonista pernambucano Armando Lobo é recheado de referências claras – e antagônicas, como o título do CD dá a entender. Vulgar & sublime abre bem com o palíndromo S.O.S. reversos, em que Lobo ironiza movimentos artísticos. O experimentalismo continua ao longo do CD, na versão de As I sat sadly by her side, de Nick Cave, acrescida de flauta e percussão; já O quereres, de Caetano, ganhou um arranjo moderno. Apesar da estética musical meio erudita, meio popular, o hermetismo permeia as letras do CD. O que era de se esperar: Vulgar & sublime é um álbum difícil de ser concebido, a começar pelo nome. Mas escutar pode ser fácil. (TL)

Ao que parece, quando a banda Franz Ferdinand foi pensar no seu terceiro CD, Tonight: Franz Ferdinand, ela não imaginou os seus ouvintes-alvo sentados ou deitados na sala de sua casa. Na sua primeira música, Ulysses, o disco já deixa claro: não adianta só escutar, é preciso dançá-lo. Mesmo o vocal parece conspirar com essa intenção, trazendo referências a pistas de dança, e abusando de yeahs e lalalas nas letras simples. Somandose isso à aparentemente ilimitada capacidade da banda de criar riffs empolgantes (usando, às vezes, vários deles na mesma canção) e ao ousado uso de sintetizadores, temos uma obra cativante logo à primeira audição. Um CD feito para ser tocado nas noites de 2009. (Diogo Guedes)

A-Lex Sepultura Atração 25,00 reais

Noite brasileira – A música de Zé Dantas Cláudio Almeida Independente 23,00 reais

Vulgar & Sublime Armando Lobo DeliraMúsica 28,00 reais

Tonight: Franz Ferdinand Franz Ferdinand Sony/BMG 22,90 reais

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HOMENAGEM

recife 472 anos

Sociólogo Francisco de Oliveira reconta o Recife no ensaio memorialístico Noivas da revolução, do qual foram escolhidos trechos especialmente fotografados para esta edição

Roberta Guimarães

Roteiro sentimental

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A

s curvas, cheiros, sons e humores políticos do Recife foram motivo de inspiração para muitas gerações de poetas. Augusto dos Anjos, João Cabral, Carlos Pena Filho, Manuel Bandeira – só para citar alguns dos mais conhecidos que “transitaram” por aqui nos últimos séculos – cortejaram e imortalizaram esta cidade aquática, revolucionária em alguns momentos, reacionária em tantos outros, rica e pobre, dúbia, como só ela sabe ser. O que não se esperava é que a mística recifense despertasse a verve lírica de um homem cuja vida e obra foram dedicadas, quase sempre, a números, estatísticas, teses. Mas o inusitado aconteceu. Ou estava ali e ninguém ainda enxergara. No ensaio Noiva da revolução (Boitempo Editorial), o sociólogo pernambucano Francisco de Oliveira reconta a história da cidade secular, tendo como base fatos e dados, mantendo o tom analítico e crítico quase sempre. Mas não é esta a abordagem que surpreende. A tônica da cartografia sentimental por ele empreendida não é a exatidão, e, sim, uma doçura impensada

no “velho revolucionário”, que discorre sobre o Recife e seu passado como um amante apaixonado. O tom passional do texto é uma constante em quem foi, em muitos dos episódios narrados, testemunha ocular. Escrito em primeira pessoa, repleto de citações a artistas, personagens e mitos recifenses, é envolvente e capaz de comover, fazendo com que se queira voltar às antigas e belas ruas de uma cidade de ontem. “Quero fazer com que você ame e sonhe esta cidade, que ao ler o lamento cantado em suas ruas, tenha saudade do passado que você não viveu”, afirma Chico de Oliveira, em uma das muitas páginas que nos fazem visualizar a noiva esperando o amor que se perdeu. Escolhemos trechos do ensaio memorialista do sociólogo e pedimos a três fotógrafos, Breno Laprovitera, Fred Jordão e Roberta Guimarães – em cujos acervos são encontradas variadas “declarações de amor” à cidade –, que fotografassem os lugares mencionados por Francisco de Oliveira. O resultado pode ser conferido nas páginas seguintes. (Danielle Romani)

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Breno Laprovitera

Fotos: Roberta Guimarães

Dizemos: ‘Eu sou

do Recife’, chamando-a pelo masculino, logo ela, tão feminina com seus dois rios que ‘formam o mar’, assim canta seu hino que também a

chama de Veneza americana/ Linda terra original/Toda ela

A cidade virou um ‘paliteiro’, um ’cão

se engalana/Quando chega o carnaval, longas pernas,

sem plumas de paliteiro’, lembrando uma tábua de pirulitos da minha infância. Os mais afortunados

no vértice das quais mora

começaram a furar poços artesianos em suas casas

a cidade, com seu cheiro

e condomínios. Doenças de pele e desarranjos

de maresia, de mangue,

intestinais viraram uma praga, somando-se à dengue

de liquens e musgos, cheiro

já endêmica e à filariose, eterno fleau dos recifenses.

de mulher, fêmea. 58 x Continente • MAR2009

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Santo Antônio é, no Recife, irmão de São José, este um pobre santo tão desprestigiado que nem o nome da ilha pôde apadrinhar. Mas são as suas ruas estreitas, escuras, às vezes fedorentas, que mantêm ainda o ar do Recife, que, como dizia o bordão medieval, ‘faz os homens livres’. Mas, naqueles tempos, fazia-os sobretudo escravos. Breno Laprovitera

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Roberta Guimarães

RETRANCA

Roberta Guimarães

A cidade, de fato, tem algo de Amsterdã: existem estudos que mostram a semelhança dos traçados

urbanos do Recife e de Nova York com a cidade matrizholandesa. Havia até, há muitos anos, fundeado no cais da Aurora, ao lado da ponte da Boa Vista, um bordel flutuante que lembrava os barcos-moradias do Ams, mas a cidade não chegou à exposição ostensiva do mercado de sexo do famoso bairro vermelho de Amsterdã. 60 x Continente • MAR2009

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Mas por que não existe uma rua Laurinha Paixão, a mais formosa e fogosa mulherdama do Recife antigo, espectral terror das

matriarcas? Ficaria bem no bairro onde

reinou, mas o pudor de uma sociedade sem pudor impede a justa homenagem. Bêbados,

rufiões e jovenzinhos metidos a engraçados, já nos delírios do álcool, te ofendiam, parodiando teu hino: ’És venérea

Fred Jordão

americana’.

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Quando acontecia de estar-se a pé no Parque Amorim, então o terror podia chegar ao paroxismo, mas a tentação de espiar por cima dos altos muros das grandes casas que por lá havia era maior que o medo. Resta ainda uma bela e isolada em sua majestosa imponência que talvez tenha sido a presumível residência do lendário Papa-figo; mas já não está cercada pelos altos muros e perdeu sua terrível e magnífica sedução.

Fotos: Breno Laprovitera

Mesmo ali, nesse reino de amor, imperava a hierarquia, a divisão de classes. As mais dotadas, cuja

freguesia eram os poderosos da terra, nos altos das avenidas Marquês de Olinda e Rio Branco, uma continuando a ponte Maurício de Nassau, eterna glória batava do Recife português, negro e indígena, logo mulato e mameluco: outra na ida e volta da Buarque Macedo, de onde o poeta Augusto dos Anjos avistava a Casa Agra e seus caixões de futuros defuntos, entre os quais ele mesmo. 62 x Continente • MAR2009

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Por contraste, logo que os milicos puseram a mão na SUDENE, uma de suas primeiras providências foi alugar uma casa luxuosa para residência do superintendente e logo depois construíram o imenso prédio em frente à Cidade Universitária, que hoje mais parece o cemitério dos sonhos da transformação. Furtado havia previsto: quando uma instituição começa a pensar no prédio próprio é que começou a morrer.

Fred Jordão

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esperado: redundante, irrelevante e supérflua para

Divulgação

Isolada da revolução popular, seu noivo sempre o capital global, ela se mantém e se reproduz no casquinho de caranguejo, no pitu com Pitú, no caldinho da Jane, no guarda-sol e na cadeira de praia oferecidos por ’empresários’ informais.

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Breno Laprovitera

Intelectual irrequieto

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pernambucano Francisco de Oliveira é um dos mais importantes sociólogos brasileiros. Ex-comunista, foi um dos parceiros de Celso Furtado na construção da Sudene, e presenciou de perto o golpe militar de 1964, ano em que deixou o Brasil num autoexílio. No final da década de 1960 retornou ao país, e a partir de 1970 engajou-se no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), um polo aglutinador da intelectualidade de oposição ao regime militar. Professor-titular aposentado de sociologia da PUC-SP, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Atualmente, apoia o PSOL. É autor de O ornitorrinco (Boitempo, 2003, Prêmio Jabuti 2004 de Ciências Humanas), Crítica da razão dualista, A economia da dependência imperfeita, A falsificação da ira e O elo perdido.

Além do ensaio inédito sobre o Recife, o volume, publicado pela Boitempo, traz uma nova edição de Elegia para uma re(li)gião, uma das principais obras do autor. Escrito em 1977, o texto é um estudo sobre as relações do Estado com a sociedade brasileira e nordestina, abarcando a experiência da Sudene – criada em 1959, extinta em 2001 por FHC e relançada pelo presidente Lula, em 2003.

SERVIÇO Noiva da revolução – Elegia para uma re(li)gião Francisco de Oliveira Boitempo Editorial 278 páginas 44,00 reais

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José Cláudio

matéria corrida

Primeiras lembranças

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rotski crê lembrar-se de quando se nutria no seio materno (Minha vida). Eu creio lembrar-me de quando andei pela primeira vez, soltei-me de alguém que me segurava e dei os primeiros passos. Sem nenhuma ajuda, atravessei a sala. Lembro-me de ter sentido grande alegria. “Mas é de crer que referi a mim o que eu tinha visto fazerem as crianças de peito”, diz Trotski. Pode ser. Mas ainda hoje sinto a felicidade do momento de ter descoberto essa possibilidade e que me ocorreu na hora em que a pus em prática, ganhando, com a autonomia física, a consciência da individualidade. Salvador Dalí fala de época mais remota, de lembranças intrauterinas. De modo que me lembrar de quando andei não será grande novidade, embora cada vez mais me admire da vividez da lembrança nestes meus 77 verões e continue a gozar da felicidade de andar até com certo desembaraço, quem sabe os ossos e músculos fortalecidos pelo exercício diário de beque-central-rebatedor no internato do Colégio Marista. (Eu torcia pelo Tramways, da companhia de bonde e energia, cuja divisa, que saía nos anúncios de jornal ao lado de um boneco em forma de raio, era "Seu Kilowatt, seu criado elétrico", onde trabalhava meu tio Raphael, tendo começado como condutor, o que cobrava a passagem pendurando-se pelos estribos, e que conservou pelo resto da vida o andar de quem anda aos tombos como a se equilibrar no estribo do bonde. Não me lembrava mais das cores da camisa do time, verde e preta, segundo Ludmila Portela e suas artes

internáuticas. Um amigo do meu cunhado Roberto disse que, menino, ia com o pai assistir aos jogos no campo do Tramways na Jaqueira e levava um caixão para ficar em cima e poder ver o jogo no meio dos adultos amontoados à beira do gramado sem muros nem bilheteria nem arquibancadas, cara a cara com os jogadores.) Vejo aqui o quadrinho de frei Tarcísio, Noite de São João em Ipojuca, 1946, óleo sobre tela, 34x44cm, uma pequena obra-prima, presente do amigo Renato Gouvêa. Tenho a pretensão de lembrar o antigo interior da igreja do Convento de Ipojuca antes do incêndio de 1935, quando eu tinha dois anos e meio: não que me lembre de como era esse interior, mas gravei a sensação de tê-lo perdido de uma hora para outra, sem explicação, de as paredes terem ficado nuas. Quem primeiro viu o incêndio foi Ilo de Seu Barreto, que o pai chamava de Capitão, e capitão ficou sendo, do Exército, Ilo Francisco Marques de Barros Barreto, com cinco anos na época. Também me lembro de um pedaço maior da talha queimada, que já não se encontra no batistério, como não vi os resplendores dos santos nem a imagem de Santa Luzia com os dois olhinhos num prato nem o cachorro da imagem de São Roque. Pena não tenha visto o cachorro de São Roque. Fui certinho ao lugar, à direita de quem entra, no atual quarto do Coração de Jesus, coisa nova, que ali ficava o altar de Santo Cristo; mas o que me incomodava mesmo era a falta do cachorro de São Roque.

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Reprodução

Salvador Dalí fala de época mais remota, de lembranças intrauterinas. De modo que me lembrar de quando andei não será grande novidade, embora cada vez mais me admire da vividez da lembrança

Noite de São João em Ipojuca, Frei Tarcísio, óleo sobre tela, 34 x 44 cm, 1946

São Roque é representado tendo ao lado um cachorro com um pãozinho na boca. Faz parte da representação, ou iconografia, um corte na coxa do santo logo acima do joelho. A explicação que eu encontrava era a de que aquele pãozinho, mais parecido com uma “bolacha do Ó”, como era conhecida em Ipojuca uma bolacha de formato oval que vinha do distrito de N. S. do Ó, era a “bolacha do joelho” do santo, como chamávamos a rótula, que o cachorro lhe havia arrancado – aliás, não existia outra palavra em nosso vocabulário para designar esse osso, pois “rótula” era como minha mãe denominava as brechas das janelas, venezianas, persianas ou coisa parecida: olhar pela rótula. A representação de São Roque com o cachorro vem do seguinte: francês de Montpellier, nascido nos fins do século 12, pais abastados perdidos com cerca de 20 anos, distribuiu os bens com os pobres e partiu para Roma “envergando o hábito grosseiro de peregrino”. Parando nos hospitais para cuidar de empesteados,

contraiu a doença e, faminto, caiu numa floresta perto de Placença, Piacenza deve ser, pois o livro é português; aliás Montpellier vem escrito Mompilher. Um cachorro levava-lhe todos os dias um pão arrebatado da mesa de seu dono que, intrigado com o fato, o seguiu e encontrou o enfermo de quem se tornou amigo, modificando para melhor a vida por influência do santo. Há até em alguns países o dito “é Roque e seu cão” para indicar amigos inseparáveis, diz o sacerdote belga Omer Englebert, nascido em 1893; como, entre nós aqui do interior de Pernambuco, o costume de repelir o ataque de um cão com o grito “São Roque! São Roque!” São Roque continua lá, mostrando o ferimento da coxa, os pingos de sangue escorrendo, e é como se o seu cachorro fosse menos inseparável dele do que de mim, de quem só poderá roubar o alemão Alzheimer. Padroeiro dos calceteiros e cirurgiões, São Roque é invocado, entre outras coisas, acredite se quiser, está aqui no livro, para dores nos joelhos. MAR 2009 • Continente x

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Flora Pimentel

Feitos um para o outro Abordagens biológicas, sociológicas e a própria história cultural demonstram que não há modelos universais de vivência das sexualidades e colocam em xeque o mito da monogamia Fábio Lucas

Agradecimento: Fátima Rendas/Traje de noiva

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cearense Marlene Sabóia, que inspirou o filme Eu, tu, eles, com Regina Casé, ficou a certa altura intrigada com as maledicências do povo, e resolveu se consultar com um pároco que visitava a cidade. “Seu padre, o senhor acha errado eu viver com meus três maridos?”, perguntou Marlene, angustiada. O padre respondeu que o julgamento não cabia a ele, mas se não havia maldade na relação, ela seria perdoada. Será que Marlene seria perdoada se vivesse noutra realidade social? Será, por outro lado, que teria tido seus três maridos? E em qualquer hipótese, por que a poligamia implicaria na necessidade do perdão? Por que as pessoas “acham errada” a existência de ligações poligâmicas? E como a monogamia convencional – para a “vida inteira” – parece estar dando lugar a uma “monogamia seriada”, corroendo por dentro o próprio conceito de relação monogâmica na tradição ocidental? Para começar, antes de motivar escândalos, pudores e culpas, o sexo vem antes da sexualidade, como a

vida é anterior ao Homo sapiens. Na visão de Charles Darwin, cujo bicentenário de nascimento é celebrado este ano, o sexo é o meio por que operam os fins evolutivos na trajetória de adaptação da vida animal na Terra. Nesse sentido, a poligamia, de maneira geral, possibilita às espécies um leque amplo de variedade genética, o que em “evolucionês” significa mais chance de sobrevivência para as novas gerações. O estudo da natureza estabeleceu a diferença entre a “monogamia social” e a “monogamia sexual”, em que os parceiros macho e fêmea se comportam de modo a criar laços vantajosos para a criação da prole (monogamia social) sem abrir mão de encontros “fora da relação” (poligamia sexual). Esses encontros podem trazer, segundo os biólogos, ganhos diferentes para os indivíduos do par – se para o genitor o lucro é a variedade simples da quantidade, para a mãe, vale a qualidade embutida na variedade de fecundações. Isso está longe de representar a vigência do machismo no reino animal. Pesquisas recentes feitas a MAR 2009 • Continente x

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partir de técnicas de identificação do DNA mostram que, na verdade, o papel crucial no jogo sexual evolutivo cabe à “infidelidade” feminina, e não à promiscuidade comum aos machos. As novidades das pesquisas e as curiosidades sobre o sexo natural foram o mote do livro O mito da monogamia – Fidelidade e infidelidade entre pessoas e animais, escrito por um casal de cientistas americanos, David Barash e Judith Lipton, publicado em 2007 no Brasil. A partir das evidências coletadas em diversas espécies de que o acasalamento múltiplo é comum na natureza, os autores não se eximem de abordar “o desconforto que a maioria de nós sente quando considera a não-monogamia também entre seres humanos”. Segundo eles, o comportamento dos bichos pode ajudar a entender porque a monogamia é difícil, mesmo para seres racionais, mesmo os mais apaixonados – e por que casos como o de Marlene Sabóia, no seio de uma cultura avessa à poligamia, não são aceitos sem reação. O biólogo cultural Felipe Fernandes, pesquisador do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, alerta que é preciso ter cuidado para não se cometer o equívoco reducionista de analogias apressadas: “Refletir sobre os comportamentos humanos como fruto da evolução biológica é irracional. Além disso, buscar indicadores biológicos para explicar a realidade (humana) remonta ao início dos estudos sobre povos e civilizações (final do século 19), em que o chamado ‘darwinismo social’ imperou sobre os primórdios da antropologia e da arqueologia, muito embora os pressupostos evolucionistas que guiassem tais áreas de conhecimento encontrassem fundamentos em Lamarck, não em Darwin. Era comum, na época, nomear civilizações como mais ou

Imagens: Divulgação

ESPECIAL Protagonista de Eu, tu, eles foi inspirada em mulher poliândrica

O estudo da natureza estabeleceu a diferença entre a “monogamia social” e a “monogamia sexual”, em que os parceiros se comportam de modo a criar laços vantajosos para a criação da prole sem abrir mão de encontros “fora da relação” menos primitivas, tendo como base a civilização européia, entendida como ‘mais evoluída’. O estudo dos povos na história demonstra que não há modelos universais de vivência das sexualidades”. A antropologia postula semelhante precaução. “A formação do desejo não é instintiva, ela depende da socialização, da convivência, dos valores da sociedade”, explica a antropóloga Marion Quadros, da UFPE. “O ser humano tem sexualidade plástica, ou seja, pode ser homo, hetero ou bissexual, pode mudar de um para o outro ao longo da vida etc. O problema sobre monogamia e poligamia é que estão sempre atreladas a relações de poder. Nem uma nem outra significa a

opção certa ou errada. A poligamia não é mais instintiva que a monogamia. Tanto uma quanto a outra são vividas por meio de regras socioculturais. Ser macho ou fêmea não implica maior propensão para poligamia ou monogamia.” É claro que a biologia não resume o comportamento do animal humano, mas é tentador considerar que, como escreveu o médico Dráuzio Varella, em matéria de sexo o Homo sapiens, como a maioria dos mamíferos, está mais para passarinho cantor (polígamo) do que para rato de montanha gelada (monógamo). O animal humano não pode fugir sempre do fato biológico. Tome-se o ciúme, por exemplo, companheiro indesejado de 10 entre 10 casais. A descoberta de relações “extraconjugais” pode despertar reações violentas e, na maioria das vezes, deixado em seu próprio curso, o instinto ordena a separação (sim, também nos animais). O mesmo instinto que atiça a poligamia acende a fogueira do ciúme. Seria a véspera do fracasso, como canta Alceu Valença? O que faz a cultura do bicho-homem é recalcar o instinto, ou transformá-lo em parte do universo cultural. A crítica de arte francesa Catherine Millet é um retrato desse esforço. Em 2001, lançou autobio-

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“A liberdade sexual entre os casais, a chamada relação aberta, é uma forma tácita de relativizar ou abandonar os pressupostos sobre os quais se assenta a monogamia” grafia narrando as suas peripécias sexuais, que logo virou best-seller em dezenas de países. O detalhe é que suas aventuras foram relatadas com o aval do marido, o escritor Jacques Henric, com quem mantinha um relacionamento aberto no qual se distinguia claramente a monogamia social da poligamia sexual. Seu novo livro, Dia de sofrimento, será lançado este ano no Brasil, e narra o ciúme doentio que desenvolveu depois que soube que Henric também era infiel. “Assumir uma sexualidade muito livre não nos impede de cair na armadilha assustadora do ciúme e não nos protege de antemão contra a dor que a acompanha”, declarou Millet à revista Nouvel Observateur, resumindo a tensão onipresente aos dramas conjugais.

De acordo com a crítica de arte, a longevidade de seu casamento se deve à liberdade que manteve fora dele, e vice-versa, ou seja, ela só podia ser livre sexualmente porque se sentia protegida pelo amor incondicional do marido. Nem no auge do ciúme, ela garante, o relacionamento correu risco. A lógica pode parecer estranha, mas faz sentido. “Tecnicamente, a monogamia tem a ver com casamento, não necessariamente com a atividade sexual (aí seria fidelidade). É por isso que um polígamo pode ser adúltero”, analisa o filósofo Pablo Capistrano. “Particularmente, não acredito em uma fidelidade afetiva inerente ao ser humano. Somos essencialmente infiéis do ponto de vista dos desejos, mas o fato de desejarmos não implica que tenhamos que ceder a esses desejos. Sou meio kantiano nisso, acho que a liberdade não está em fazer o que se quer, mas em determinar-se de acordo com a razão.” Mas onde está a razão quando se trata de sexo? O caso de Catherine Millet e Jacques Henric ilustra o impasse do instinto que envolve a poligamia. “A liberdade sexual entre os casais, a chamada relação aberta, é uma forma tácita de re-

A crítica de arte Catherine Millet publicou livro em que relata aventuras sexuais

lativizar ou abandonar os pressupostos sobre os quais se assenta a monogamia. Serão a ‘poligamia’ e a ‘poliandria’ (uma mulher com vários parceiros) mais promotoras do prazer e da felicidade?”, questiona o filósofo Alberto Oliva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para Oliva, “os relacionamentos movidos a desejos momentâneos com diferentes parceiros podem evitar a monocórdica reinvenção do mesmo. Mas o fundamental é saber se o ser humano, vivendo sob a égide do individualismo, suporta, preocupado em construir um relacionamento com envolvimento, se sentir afetivamente ‘mais um’ na vida do outro”. A escritora Carola Saavedra acredita que o assunto é da esfera privada, e que não cabem digressões moralistas. “Monogamia e poligamia são formas de estruturar uma sociedade e pouco têm a ver com o que acontece ‘extraoficialmente’ no casamento. Importante é não dar a esses conceitos uma conotação moral de certo ou errado. Tirando o aspecto legal, são apenas formas de se relacionar, e acho que se trata de uma escolha pessoal, que só diz respeito aos envolvidos na relação.” Mas será possível afastar a componente moral da questão? “A forma como os seres humanos vivem sua vida sexual é moral e não biológica”, ressalva Felipe Fernandes. Nesse sentido, a escolha individual se dá sobre o pano de fundo cultural de um lugar. Enquanto a cultura no mundo se mistura e se globaliza, no entanto, os pressupostos da monogamia são confrontados com hábitos sociais diferentes. “Com a chamada globalização, o amor romântico, modelo em que as mulheres e homens podem ‘escolher’ seus parceiros afetivos e sexuais a parMAR 2009 • Continente x

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tir de uma corte, tem adentrado o universo do sistema de castas da Índia, altamente fundado na escolha de parceiros sexuais por determinada família (clã)”, exemplifica Felipe Fernandes. Segundo ele, o caso indiano é uma mostra de como o desejo é culturalmente produzido. “As possibilidades de se desejar uma pessoa são limitadas pelo tempo e pelo espaço, bem como por regras de ordenação do social de cada povo.” O biólogo menciona que, entre certos povos, a menstruação é maligna. “A menstruação pode ou não ser carregada de ritos e ditos. As regras sobre o que se pode e o que não se pode dizer sobre fenômenos biológicos são culturais.” Seria por isso que tendemos a crer em metáforas biológicas que organizam a nossa vida sexual, como disse Simone de Beauvoir, em O segundo sexo: “O óvulo é estático e englobante, o espermatozóide ágil e penetrador: logo, a mulher em casa, cuidadora do privado; o homem público, provedor. A biologia, mais do que explicar, carrega em si instrumentos de manutenção de determinada ordem sexual, produz a família heterossexual monogâmica como norma ‘natu-

“A poligamia institucionalizada, tal qual adotada em alguns países, é nociva à mulher na medida em que, sendo transformada em uma delas, deixa de ter seu direito de escolha plenamente respeitado” ral’ fundada na reprodução como destino único a que seríamos, todos, submetidos”. O mesmo modelo oriundo das metáforas biológicas imporia uma equivocada noção de que o homem, para satisfazer os instintos, poderia ser mais promíscuo que a mulher, o que transformaria a poligamia num delito de gênero, havendo a propensão à tolerância quando o homem é quem pula a cerca, e um maior grau de condenação se a infidelidade vem da mulher. O que tem lá seus custos, adverte Felipe Fernandes: “Produzir um homem como ‘ser mais livre sexualmente’ requer grande sofrimento para as

crianças. Os pequenos homenzinhos são submetidos a situações de violência e constrangimento cotidianamente para poderem, futuramente, ser homens”. Por outro lado, pode gerar relações de poder baseadas no laço sexual. “A poligamia institucionalizada, tal qual adotada em alguns países, é nociva à mulher na medida em que, sendo transformada em uma delas, deixa de ter seu direito de escolha plenamente respeitado e assim passa a se tratada como um meio e não como um fim em si mesmo. E isso a rebaixa em sua dignidade humana”, pondera o filósofo Alberto Oliva. Fernandes acrescenta que entender o macho humano como naturalmente polígamo não passa de uma regra de organização da vida em sociedade, “reproduzindo, assim, o sexismo e a homofobia como formas de manutenção da ordem. Não há luta contra a natureza humana na instituição da monogamia. O que há é uma ordem social que difunde a família nuclear (heterossexual e monogâmica) como norma a ser seguida, e todo e qualquer comportamento sexual que seja diferente desta norma é considerado desviante”, observa o biólogo. Em 2004, foi destaque na mídia a notícia de uma comunidade poliândrica nas montanhas do Himalaia, na fronteira entre a Índia e o Tibet. As famílias foram entrevistadas e se declararam mais seguras vivendo daquele jeito, já que os homens não precisavam viajar para longe atrás de outras mulheres. No ano No continente africano, a poligamia é permitida para homens. Fela Kuti teve dezenas de mulheres

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seguinte, 2005, uma jornalista egípcia, ao tentar convencer o marido a obter uma segunda esposa, deu início a uma campanha pública em favor da poligamia, o que lhe valeu a revolta de grupos feministas. Na África do Sul, desde 1998, a poligamia é permitida para os casamentos realizados de acordo com as crenças africanas, e a justiça examina a possibilidade de permitir igualmente os matrimônios polígamos entre muçulmanos, já que no islamismo esse tipo de relação é aceita – desde que não se ultrapasse o limite de quatro esposas. Na Nigéria, no ano passado, um homem de 84 anos de idade foi condenado por manter 86 esposas, com as quais gerou nada menos que 170 filhos. Nota-se que a autonomia do indivíduo se depara, portanto, com instituições sociais responsáveis pela prática de hábitos e costumes. “Como os hábitos e costumes são uma segunda natureza, cabe sempre investigar se contrariam a primeira natureza, a natureza propriamente dita. E se o fazem, fazem-no em prol ou em detrimento da felicidade e do bem-estar do homem”, observa o professor Alberto Oliva. “O crucial é tentar saber o que fazem as convenções com nossas vidas. É preciso sempre avaliar, de preferência caso a caso, se os costumes são tirânicos a ponto de restringir dramaticamente o que podemos fazer e buscar de melhor em nós mesmos e fora de nós, ou se são meios de regular os relacionamentos, evitando que se tornem disfuncionais e destrutivos.” Pode vir à tona, então, o problema da liberdade. Quem seria mais livre, o polígamo ou o monógamo? Como lembra a antropóloga Marion Quadros a respeito do instinto, a resposta deve incluir a elaboração social. Para o filósofo Eduardo Mendieta, da Universidade Stony Brook, em Nova York, a liberdade não é inerente à natureza humana.

Direito contemporâneo já admite casamentos legais entre pessoas do mesmo sexo

“O que existe são práticas de liberdade, como Foucault diria, e com essas práticas se abrem novos sentidos, novos horizontes de liberdade, enquanto os antigos se tornam menos importantes. A liberdade é produzida, criada, modificada, e não achada, dada ou delegada. Cada sociedade é uma expressão de como os humanos inventaram maneiras diferentes de ser livres.” Para Pablo Capistrano, mudanças na cultura acarretaram as mudanças no comportamento sexual. “A ideia hoje é ‘um parceiro de cada vez’. A flexibilização do casamento com a lei de divórcio acabou produzindo uma mudança substancial

Casais homossexuais buscam o modelo heterossexual de convivência conjugal (nuclear e monogâmica), enquanto, por outro lado, a resistência se afirma, com homossexuais reivindicando a pluralidade de padrões familiares

na moral social, o que leva a essa forma híbrida, nem uma monogamia definitiva, nem uma poligamia temporária”, define Capistrano. Segundo Felipe Fernandes, a rearrumação dos comportamentos é visível. Casais homossexuais buscam o modelo heterossexual de convivência conjugal (nuclear e monogâmica), enquanto, por outro lado, a resistência se afirma, com homossexuais reivindicando a pluralidade de modelos de família. “O primeiro movimento é um caminho das margens para o centro (modelos diferentes daquele considerado ‘normal’). O segundo movimento, por sua vez, é do centro para as margens (diferentes modelos, todos com o mesmo status)”, analisa. Eduardo Mendieta vê as transformações com otimismo. Para ele, as mudanças abrangem a intimidade, o desejo e o amor romântico. “As pessoas cada vez mais estão escolhendo ter relações por escolha, e não por necessidade, casando-se por amor e se divorciando com a mesma frequência quando o amor acaba”. De acordo com o filósofo, o fato de muitos indivíduos estarem se casando mais velhos, ou de muitas mulheres escolherem ter filhos fora do casamento ou sem marido, são indicadores do aumento de liMAR 2009 • Continente x

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ESPECIAL berdade decorrente de uma nova visão sobre o matrimônio. A poligamia poderia conquistar um novo espaço, a seu entender, se polígamos lutassem por seus direitos em território puramente legal (e não no território religioso, como acontece com os mórmons nos EUA). “Isso seria mais interessante, e potencialmente transformador”, arrisca Mendieta, que segue a mesma direção da também filósofa Judith Butler, da Universidade de Berkeley, na Califórnia. Em entrevista no ano passado, depois de uma palestra na Espanha, Butler defendeu o casamento homossexual alegando que, se a orientação sexual fosse um impedimento, então o casamento seria algo discriminatório. Para completar, ela disse: “Eu não vejo por que o casamento deva ser limitado a duas pessoas. Isso é arbitrário e, da mesma forma, potencialmente discriminatório. Há tipos de organização sexual que não implicam a monogamia, e de relacionamentos que não requerem o casamento ou reconhecimento legal – mesmo quando se busca aceitação cultural”.

Fragilidade conjugal e modernidade Roberta Bivar C. Campos

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s pesquisas, mais que revelar, confirmam o que já sabemos. Os homens e as mulheres, desde os tempos remotos, traem e continuam traindo. A novidade é que os números estatísticos, hoje, são incrementados pelo crescimento do número de mulheres que traem cada vez mais, em especial as mais jovens, enquanto que o número de homens adúlteros tem se estabilizado nos últimos anos (Veja, 19/novembro/ 2008).

Para além das questões de gênero e geracional acima apontadas, há algo anterior que precisa ser comentado. A “família contemporânea” – forma de organização social constituída através da “conjugalidade” e que assumiu novos sentidos e transformações, após os anos 1960, no Ocidente – carrega consigo como elemento de sua contemporaneidade a própria possibilidade de sua dis-

solução, deixando a outrora promessa de eternidade para o que já fora um dia. Vejamos o que aconteceu na sociedade após os anos de 1960, de acordo com François De Singly: 1) a diminuição do número de casamentos e de recasamentos e o aumento das uniões livres; 2) o aumento dos divórcios, das separações; 3) o crescimento das famílias monoparentais (domicílio de um dos pais vivendo com um ou mais filhos), das famílias compostas ou recompostas (domicílio constituído por um casal no qual pelo menos um dos cônjuges tenha um passado matrimonial e a guarda de um dos de seus filhos); 4) a diminuição do número de nascimentos;

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5) o aumento do número de nascimentos fora do casamento; e 6) o aumento do trabalho assalariado das mulheres, principalmente das mães, e, consequentemente, dos casais cujos cônjuges têm uma atividade profissional. Diz o sociólogo De Singly: “O casamento não é mais uma instituição que, ao mesmo tempo, marca início da vida em comum e a protege. A vida conjugal tornouse instável ou, mais exatamente,

Nos nossos tempos, as relações são líquidas como no mercado, efêmeras como no consumo. A nossa capacidade de amar é ameaçada dramaticamente

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sua fragilidade mudou de sentido em relação a outras épocas. Doravante, são os atores sociais que decidem se separar; não é mais a morte que desfaz os casais (...). O período contemporâneo é caracterizado por um maior domínio do destino individual e familiar e isso

por duas razões que se reforçam: um sistema de valores que aprova essa autonomia, desvalorizando essa herança material e simbólica, e as condições objetivas que permitem o controle desse domínio individual, sobretudo a contracepção e as leis a ela relacionadas”. Homens e mulheres, expressando sua crença na autonomia, recusam-se a seguir antigos padrões de comportamento, como, por exemplo, desempenhar papéis sociais de marido e esposa, e passam a afirmar e realizar o desejo de serem sujeitos de seus destinos. Subjacente a essa atitude está a desvalorização da dependência para com as instituições e as pessoas. Sociólogos diagnosticam: quanto mais forte é a adesão ao sistema de valores que fortalece e sustenta o indivíduo na busca de si mesmo, na realização plena de sua autonomia, mais o casal é frágil. A busca da felicidade não se acompanha simplesmente da negação da disciplina e do controle sexual, ela demanda, na verdade, transgressão (adultério, traição) no nome da realização pessoal. De fato, a família no projeto modernista, em especial em sua

Busca de prazer e individualismo marcam relações afetivas

segunda fase (pós-moderna ou alta-modernidade), não procura a solidez; ao contrário, desvaloriza o que é eterno e tradicional, assumindo forma mais líquida. É nela, no seio da intimidade da vida privada, que podemos ser o que nós somos verdadeiramente, onde nos despimos dos papéis sociais, e podemos nos expressar autenticamente. O filósofo canadense Charles Taylor caracterizou o tempo contemporâneo pela sensualidade e por esse expressionismo individualista, a que chama de “era da autenticidade”. Todavia, essa busca incessante de si e sua expressão é um caminho que nos cega ao outro, ao compromisso, à responsabilidade com o outro, alerta Zigmund Bauman, também filósofo. Em tempo histórico-social assim, como é possível amar? Bauman é pessimista. Nos nossos tempos, as relações são líquidas como no mercado, efêmeras como no consumo. A nossa capacidade de amar é ameaçada dramaticamente. Quando a equação da relação afetiva resulta no aumento do sacrifício, da doação e os ganhos já não são tão interessantes, sempre se pode escolher uma outra (um outro) com quem a chance de se satisfazer mais plenamente é fantasiada. Para Bauman, isso não leva exatamente à felicidade. Essa moralidade põe em risco não só as relações amorosas e familiares, mas a própria sociedade. No mundo contemporâneo repleto de reflexividade, estamos sempre avaliando se escolhemos bem os nossos parceiros. E nessa obstinação não é possível o cultivo de terreno sólido para que a confiança floresça. Um tempo que conspira contra a confiança, sem certezas, apenas com esperanças. C.Taylor adverte quão tentador é ver apenas ilusões na autenticidade, encontrar nela o simples egoísmo e a busca do prazer, e ver a MAR 2009 • Continente x

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aspiração à self-expression, à luz do consumismo. É tentador também o outro olhar, otimista demais: ver apenas benefícios contra os horrores da tirania familiar, não contabiliza os custos da liberdade e da autonomia. Um dado sociológico chama a atenção: apesar de toda traição e de novos arranjos familiares, a maioria dos casais casados continua estável. Muitos querem a solidez e a segurança (o casamento) e não a união livre. O casamento é percebido como “algo mais”, sem, entretanto, refletir uma adesão inquestionável a esta instituição. Um dado curioso é a própria demanda por legalização do casamento homossexual. Por que se quer a regulação do estado na esfera onde se lutou tanto por autonomia e liberdade? Ao que parece, a grande maioria, hetero ou homo, deseja um compromisso entre a duração do casamento-instituição e a liquidez da união livre. Queremos, sem pretensão, sem muita certeza, mas com muita esperança, o melhor de dois mundos.

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Infidelidades literárias Zuleide Duarte

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uando a escritora moçambicana Paulina Chiziane publicou, em 2002, o romance Niketche: uma história de poligamia, contribuiu com um interesse maior por autores africanos e seus livros, e acirrou a discussão sobre o velho novo tema da poligamia. Mas, se em Niketche há um polígamo acuado pelas cinco esposas, não é com esses personagens masculinos que se faz intrigante literatura, capaz de tornar reconhecíveis pela vida afora os seres de papel. O personagem da mulher adúltera

dissemina-se pelos diversos textos literários, causando espécie e conquistando lugar na frequentação do imaginário. Em Portugal avulta, na ficção de Eça de Queirós, ao lado de uma galeria de praticantes da poliginia, outra não menos expressiva de adeptas da poliandria. Ali se encontram Luísa, do romance O primo Basílio, Leopoldina, amiga polígama e promíscua e o próprio Basílio. Além desses, Os Maias traz a Gouvarinho, Raquel Cohen, Maria Monforte, João da Ega, o próprio Carlos

da Maia e sua irmã Maria Eduarda. Os dois últimos marcam presença no rol dos incestos, também expressivamente registrados na literatura. Do mesmo Eça, a bígama Ludovina de Alves & Cia, estreou no Brasil através do cinema. Se a conservadora e católica sociedade portuguesa ensejou a exposição desses casos na ficção assim como na vida real – lembre-se aqui o processo envolvendo o escritor Camilo Castelo Branco e a senhora Ana Plácido –, o que não dizer da sociedade inglesa, em cuja história figura o polígamo rei Henrique VIII? Na literatura basta referir Lady Chatterley, o marido doente e seu amante Clifford Mellors; Rochester, a esposa louca, e Jane Eyre entre tantos.

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Em Niketche: uma história de poligamia, Paulina Chiziane faz retrato conjugal da África

A Gustave Flaubert, Madame Bovary rendeu um processo por atentar contra a moral, mas também contribuiu para cunhar um termo que a psicologia e a crítica da cultura vêm usando largamente: bovarismo. Enfatize-se que as relações múltiplas ou a não-exclusividade de parceiro/parceira no leito, não se restringia apenas a Emma Bovary. Os parceiros que teve, Rodolfo e León, não eram nada exclusivistas. Como Manon Lescaut, do livro homônimo do Abade Prévost, Marguerite Gautier e mais centenas de personagens femininas encontradas em romances, contos, novelas e peças teatrais, Emma enganou e foi enganada, sem fugir à regra. Casada legalmente, como a criação de Flaubert ou cocote, “amiga” e protegida, a mulher aparece nessas narrativas como regra três: teúda e mateúda de príncipes, duques, banqueiros, coronéis via de regra casados, com grande prole e enfastiados do leito conjugal. As personagens femininas polígamas, adúlteras ou simplesmente “ardendo em várias flamas”, como dizia o bardo Camões, estão presentes na memória literária como se elas tivessem inaugurado o tipo. Rapidamente acorrem Ana

Karenina, D. Guidinha do Poço, Constance, Luísa, Gracinha Ramires, Capitu (tendo ou não traído), Virgília, Darlene, D. Flor, compondo o painel das mulheres cuja moral não recomenda. Oriundas do famigerado índex, ou não, muitas delas sofrem oposição, preconceitos e juízes apressados até dos seus criadores, como acontece com Manuel de Oliveira Paiva, apresentando, no romance, uma D. Guidinha feia, arrogante, incapaz de despertar interesse no sexo oposto, dotada de um apetite sexual voraz, como se fosse possuída pelo diabo, com quem, provavelmente pactuava para despertar o interesse masculino. Os Salomões, Casanovas, Barbas-

Personagens como Madame Bovary, Capitu, Ana Karenina e Dona Flor personificam o imaginário da traição feminina na história da literatura mundial, cujas narrativas causaram mais polêmicas do que as corriqueiras traições masculinas

azuis, Brás Cubas ou o caixeiroviajante Ezequiel Vanderlei Lins, o seu Quequé, do caruaruense José Condé, apesar de emblemáticos, ainda não despertam a sanha moralista ou legalista dos zelosos de plantão, com a veemência que ocorre com as mulheres. Essa leitura tendenciosa e parcial torna o texto de Chiziane ainda mais relevante, na medida em que apresenta a poligamia por um viés que permite encarar a questão madura e criticamente. Em Niketche, as vozes da tradição se entrecruzam, refletindo sobre as motivações de uma prática antiga como a poligamia. Razões econômicas, sociais e religiosas justificam a sua prática. No texto lê-se: “Cada tempo a sua história –...a prosperidade mede-se pelo número de propriedades. A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande patriarca deve ter várias cabeças sob seu comando. Quando se tem poder, é preciso ter onde exercê-lo... Num lar polígamo não há filhos ilegítimos...” O trecho representa a fala da tia Maria, velha lobolada (quantia paga pelo noivo, espécie de dote) aos dez anos para ser a vigésima quinta esposa de um rei. Viúva, Maria tornou a casar, vivendo de acordo com o texto. Com dois maridos na mesma casa, como a Darlene do filme Eu, tu, eles. O livro mostra, inclusive, o conflito entre duas formas de encarar o mesmo problema: mulheres do norte, instruídas nas escolas de amor, praticantes dos ritos de iniciação, conhecedoras de magias para submeter sexualmente os parceiros, tatuadas, genitálias alongadas estriadas para o amor. Mulheres pequenas e mimosas. As do sul, cristianizadas, com hábitos europeus, sem as técnicas da ancestral arte do amor, virgens embora mães, grandes, fortes, aptas ao trabalho e à maternidade. Ingênuas na arte do amor. MAR 2009 • Continente x

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sabores

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

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o Brasil, a Coca-Cola chegou em 1941, durante a Segunda Guerra. Primeiro em Pernambuco, onde havia uma base americana. Apenas para servir às forças armadas. Porque Woodruff, em um arroubo patriótico, decidiu que todo soldado americano deveria poder comprar o refrigerante, em qualquer lugar, pelos mesmos 5 cents. Pouco importava o custo. E logo a garrafinha se converteu em símbolo nacional. No Recife, a produção começou na Fábrica de Água Mineral Santa Clara; mas logo se espalhou por todo o Estado e chegou a Natal – produzidos em miniunidades, a partir de kits importados. A primeira fábrica “de verdade” foi instalada no Rio de Janeiro – em São Cristóvão, na rua Conde de Leopoldina. O concentrado e o gás, que vinham dos Estados Unidos, eram misturados em um enorme tanque de 300 litros, usando colheres de pau feitas com peroba do campo – madeira que não deixa gosto nem cheiro. Só no primeiro dia foram vendidas 1.843 caixas. O primeiro slogan, por aqui, apenas reproduzia o americano “A pausa que refresca” (1942). Depois veio aquele que é considerado, até hoje, o melhor de todos: “Isto faz

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Uma breve história da Coca-Cola (final)

um bem” (1952) – criação do consagrado romancista J.G. de Araújo Jorge. Em seguida, outros, sempre ligando o produto à sua época. Como “Tudo vai melhor com Coca-Cola” (1964) – destinado a toda uma geração que ouvia Elvis

Presley e Little Richard em festinhas regadas a Cuba Libre. Ou “Isso é que é” (1970) – exaltando a natureza. Ou “Coca-Cola é isso aí” (1982) – com o piano de Tom Jobim tocando Águas de março. Até o atual “Cada gota vale a pena”.

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Em média, hoje, são vendidas 40.000 garrafas/ latinhas por segundo. Até no Oriente Médio, onde é conhecida como Mecca-Cola – uma marca “islamicamente correta”

Com o tempo, o produto foi se sofisticando. Latas de alumínio apareceram em 1950; a garrafa família (760 ml), em 1959; máquinas post-mix, em 1970; Coca de litro, em 1976; Diet Coke, em 1983; tampas de rosca, que permitiam guardar os refrigerantes deitados, na geladeira, em 1985; embalagem descartável one way, em 1988. Depois, para conquistar o mercado dos gordinhos, vieram Coca Zero (sem nenhum açúcar) e Coca Light Lemon (com sabor de limão e menos calorias). Intervalo, nesse caminho de sucessos, foi a tentativa de reduzir custos da fórmula original com a “Nova Coca” – lançada na primavera de 1985. O problema era que esse novo sabor era muito ruim. O Wall Street Journal fez teste com funcionários da própria CocaCola, na fábrica de Atlanta; e, mesmo ali, aquele novo sabor da Coca perdeu para o da Pepsi. Sem contar que o mundo assistiu à mais cara campanha publicitária de todos os tempos, com Michael Jackson – que, naquela época, ainda era negro e não gostava de criancinhas. Nas telas, o queridinho dos Estados Unidos aparecia dançando, rodopiando e segurando latas de Pepsi com sua luva colorida. Um desastre para a Coca, que virou até piada, em

receita

Frango na Coca-Cola INGREDIENTES: 3 800 g de frango em pedaços (coxa e sobre-coxa) 3 1 pacote de sopa “creme de queijo” 3 1 garrafa pequena de CocaCola 3 Manteiga PREPARO: 3 Tempere o frango a gosto. Passe manteiga no frango e envolva cada pedaço com a sopa “creme de queijo”. Coloque em assadeira untada de manteiga e regue com CocaCola. 3 Leve ao forno, coberto com papel-alumínio, por aproximadamente 40 minutos. Retire o papel e deixe dourar.

manchete do Post (de Nova York): “Descanse em paz, aqui jaz a CocaCola, 1885-1985”. Passando, a Pepsi, a ser o mais consumido refrigerante dos EUA. Por pouco tempo; que, 90 dias depois, voltou o velho sabor – agora com o nome de Classic. E vieram novas campanhas de marketing, ainda mais caras. Entre elas, na Copa de 86 no México, a

invenção da Ola – com a torcida, em um senta-levanta, imitando as ondas que se veem no rótulo. Logo voltando a velha Coca a ser a número um. Com poucas exceções, em países como Escócia (onde a preferida é uma bebida local, a Irn Bru), Canadá (com o Canadá Dry) ou Argentina (com a Pepsi). Em média, hoje, são vendidas 40.000 garrafas/latinhas por segundo. Em todo lugar. Até no Oriente Médio, onde é conhecida como Mecca-Cola – uma marca “islamicamente correta”. CocaCola se toma pura, com gelo e rodelas de laranja ou limão; ou como base de bebidas famosas – Cubra Libre (com rum) e Vaca Preta (com sorvete de creme). É também ingrediente de bolos, tortas e carnes (galinha, porco, carneiro) assados. Até, por ironia do destino, em alguns casos voltou a ser usada como remédio para enjôo, enxaqueca, ressaca, desidratação; embora, disso já soubesse John Styth Pemberton, seu inventor, há mais de um século. Cumprindo, por fim, lembrar que também se presta para fins heterodoxos, impensáveis para seus criadores, como amaciante de carnes e desentupidor de pias. O mais saboroso desentupidor de pias do planeta, em verdade se diga. MAR 2009 • Continente x

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pontocom Imagens: Reprodução

 ARQUITETURA

Imagens: Reprodução

O bizarro e o genial na arquitetura Pense rapidamente na construção mais incomum que você já viu. Entrando no Unsual Architecture, você encontrará, no mínimo, edifícios e casas ainda mais estranhos – e, em vários casos, belíssimos. Feito a partir de contribuições dos visitantes, o site conta com um bom acervo de prédios famosos, como a Biblioteca da Alexandria, no Egito, projetada por Frank Gehry, e La Pedrera, em Barcelona, Espanha, assinada por Gaudí. As principais bizarices podem ser vistas nas casas – algumas, na verdade, instalações artísticas – como a Nautilus House (acima), na Cidade do México, e a Casa de Pedra (abaixo), em Guimarães, Portugal, atualmente tida como a segunda melhor construção do site. Construções brasileiras também têm espaço no endereço. O autor? O mais que reconhecido mundialmente Oscar Niemeyer. Ele assina duas obras que constam no site: O Museu de Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro – a sétima obra com melhor cotação dos leitores –, e a Catedral de Brasília, nada menos que a mais interessante para os visitantes. (Diogo Guedes) 

http://unusual-architecture.com

 QUADRINHOS

 CINEMA 1

 CINEMA 2

O quadrinista Laerte é um dos mais importantes nomes do Brasil, na área. Desde a criação de Piratas do Tietê, sucesso na década de 1990, o paulista realiza trabalhos que tendem a brincar com a lógica – a história citada, por exemplo, trabalha a possibilidade de piratas habitarem o poluído Rio Tietê e praticarem atos de vandalismo em uma metrópole moderna. No Manual do Minotauro, além de disponibilizar o conteúdo que a Folha de S.Paulo publica diariamente, Laerte também posta alguns trabalhos antigos e raros. (DG)

A cena pernambucana de cinema é uma das mais criativas do país, com uma significativa produção de longas e curtas-metragens, sendo recentes exemplos nesta bitola Muro, de Tião Bezerra, e KFZ-1348, de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso. Essa riqueza, no entanto, não é exclusividade da produção. A crítica também merece destaque, principalmente por iniciativas como o site Cinema escrito, mantido pelo coordenador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, Luiz Joaquim. Apesar de só ter s do em 2007, o endereço conta com todos os seus escritos produzidos desde 1997, que, além de incluírem a crítica, ainda passeiam pela reportagem, entrevista e cobertura de festivais, dentre outros. (DG)

O blog Art of the title sequence reúne aberturas de filmes, séries de TV e animações, com o foco na qualidade dessa arte quase invisível aos olhos do espectador. Sem se prender a gêneros e épocas, o site coloca vídeos online e para download, acompanhados de resenhas e extras, como fotos dos filmes e entrevistas com os realizadores. Um exemplo recente é a retrospectiva da carreira de Richard Morrison, criador das aberturas de Brazil, Alta fidelidade e Sweeney Todd, com comentários do próprio sobre seu trabalho. (Flávio Pessoa)

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http://manualdominotauro.blogspot.com

www.cinemaescrito.com

http://www.artofthetitle.com

O Laerte que nem todos conhecem

Além da produção pernambucana

Aberturas de filme em destaque

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 BIOGRAFIA

Independência com profissionalismo

Música e mercado é o blog do advogado Bruno Ramos, que desenvolve estudo sobre o circuito independente. O visitante não deve esperar pela banda mais acessada do MySpace: a proposta é outra. Lá, estão dados sólidos sobre iniciativas do Ministério da Cultura que já deveriam ser familiares ao público (como o bem pensado Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural, que possibilita miniturnês a bandas alternativas) e notícias de órgãos como a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin). O espaço trata a música como cadeia produtiva, ampliando a discussão que muitas vezes se restringe a público e banda-sucesso. (Thiago Lins) 

http://musicaemercado.blogspot.com

FAVORITO

POST DO MÊS – [Blog Pop up!]

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Falando direto com os fãs

Outro dia surgiu, como se fosse uma grande surpresa, a notícia que o Sonic Youth estava publicando novidades sobre o disco novo através do Twitter. Lembro, logo quando começou a febre do site, que eu fiz um link entre o que rolava por lá e o antigo mIRC. As pessoas foram transformando os miniposts em diálogos e, de repente, tinha um monte de conversa rolando, gente se conhecendo etc. Mas é engraçado que, na música, que concentra as mudanças mais rápidas do que acontece na web hoje, esse processo ainda é muito lento, isso quando chega a existir. O fato é que tem muito pouco músico e banda que realmente sabem usar a internet de forma eficiente. A maioria ape-

nas carrega as músicas no MySpace, enquanto os mais cuidadosos não vão além de achar um template bacana para a página. O bate-papo fica para lá. (...) Lembrei-me disso tudo hoje, quando vi essa lista (http://bit. ly/4LqM), montada pelo norteamericano Gabriel Nijmeh. São os twitters de várias bandas mundo afora (...). Fiquei pensando como seria uma lista dessa entre os independentes, aqueles que têm ainda mais obrigação de usar bem a internet. Sei de muito poucos. (...) Enquanto isso, a Nação Zumbi vai completar um mês de blog novo… com dois posts até agora. E vocês? Conhecem algum twitter de banda que vale divulgar?

PERFIL Bruno Nogueira é jornalista e mestre em comunicação. Além de escrever no Pop up! (www.popup.mus. br), ele contribui para o site RecifeRock! e faz curadoria dos festivais Microfonia e Abril pro Rock.

BAIXE E OUÇA

Autor do livro Para rir até chorar com a cultura popular, Marcos França iniciou o blog Cultura Nordestina com o intuito de dar continuidade à proposta do livro. Nele, os posts apresentam, com muito humor, poesia, contos, poemas, curiosidades sobre o Nordeste, artigos, eventos e reflexões sobre a cultura local. (Gabriela Lobo)

Em Pernambuco, misturar elementos tão diferentes quanto rock e maracatu já pode ter virado clichê. Mas ainda não vimos de tudo: tem gente tocando frevo... em ritmo de ska, isso mesmo. E a olindense ska Maria Pastora o faz com naturalidade, interpretando clássicos que vão do conterrâneo Capiba aos jamaicanos do Skatalites. O grupo acaba de disponibilizar seu primeiro EP no MySpace. (TL)

www.culturanordestina.blogspot.com

www.myspace.com/skamariapastora1

Nordeste com humor

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CINEMA

O bem-amado em dias de set Marechal Deodoro, no interior de Alagoas, foi transformada na cidade cenográfica Sucupira, da peça de Dias Gomes, e agora enfrenta sua primeira versão para o cinema

Fotos: João Henrique Campos

Bernardo Valença

A

obra Odorico, o bemamado, de Dias Gomes, foi lançada para teatro na década de 1960. A peça conta a história de um prefeito demagogo, Odorico Paraguaçu, que é eleito devido a uma promessa de erguer o primeiro cemitério da sua cidade, Sucupira. Depois de assumir o cargo e construir o tal campo-santo, ninguém da cidade morre para inaugurá-lo. Daí, surgem as artimanhas para que alguém morra. A peça

já foi transformada em novela – pelo próprio Dias Gomes – e em série de TV. Agora, vai virar longa-metragem e deve ser adaptada para minissérie. O filme é dirigido por Guel Arraes, com o roteiro dele e de Cláudio Paiva. Guel já havia produzido uma versão de O bem-amado para o teatro – ficou em cartaz no ano passado –, dirigida por Enrique Diaz. Com a produtora Paula Lavigne, o diretor resolveu transformar a obra de Gomes em longa-metragem.

O filme é baseado nos originais de Dias Gomes, mas com leves mudanças. “Na peça original, a história é contada numa sucessão de esquetes costurados pela busca de Odorico por um defunto que inaugure o cemitério e o alivie da pressão da oposição. No roteiro do filme, procuramos costurar mais as situações, suavizando a passagem entre cada uma delas”, conta o co-roteirista Cláudio Paiva, que já é familiarizado com o diretor do filme: “Nossa

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Marco Nanini dá vida a Odorico Paraguaçu, no teatro e no cinema

parceria existe há um bom tempo. Conhecemos-nos fazendo a TV Pirata, na TV Globo, e até hoje trabalhamos juntos. Esse é o nosso segundo longa e, comparado ao filme A grande família, acho que estamos caminhando para resultados cada vez melhores.” Filho do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, Guel tem certa dificuldade em falar de política, mesmo gostando do assunto. Ainda assim, o diretor sa-

lienta que o filme é uma crítica aos políticos capazes de qualquer coisa para provar sua competência, que enrolam o povo com seus discursos herméticos, feitos para aparentar inteligência. O humor, muitas vezes, é a saída para falar de um país como o Brasil. “Acreditamos que seja muito oportuno lembrar uma obra como O bem-amado, porque ela responde aos anseios do público de rir dos políticos venais. Odorico ainda está

vivo. E continuamos morando em Sucupira”, afirma o diretor, lembrando que o seu personagem principal não é inspirado em nenhum político em especial, sendo a síntese dos maus políticos brasileiros. A versão cinematográfica terá uma nova roupagem: Sucupira vai ser uma daquelas cidades do interior com vontade de ser capital. O personagem principal, Odorico Paraguaçu, será interpretado por Marco Nanini, que já fez o mesmo papel na MAR 2009 • Continente x

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CINEMA peça que Guel produziu. As irmãs Cajazeiras, Doroteia (Zezé Polessa), Dulcineia (Andréa Beltrão) e Judiceia (Drica Moraes), que na peça original são beatas apaixonadas pelo prefeito, nesta versão ganharão mais destaque e serão, além de moralistas e beatas, a elite “aperuada” da cidade. Zeca Diabo, o matador da trama, será interpretado por José Wilker e vai morar numa cabana isolada do mundo. Um dos personagens, o jornalista Vladimir (Tonico Pereira), será a junção do dentista Lulu Gouveia e do jornalista Neco Pereira, que na peça original faziam o papel de oposição a Odorico. No set de filmagem, a história era outra. Em novembro, já havia rumores de que a pequena Marechal Deodoro (AL) “sairia de cena” para dar lugar à Sucupira. Tombada pelo patrimônio histórico, ela é berço do primeiro presidente da república (que dá nome ao local). “A decisão

final do set foi por conta da reduzida população de Marechal – em torno de 45 mil habitantes. Afinal, sabemos do transtorno que é filmar uma produção desse porte”, disse Daniel Fontoura, produtor de locação. O transtorno foi mesmo grande. A produção fechou as ruas, colocou faixas de isolamento e clamava por silêncio em cada cena, “tudo para fazer com que pareçamos estar na década de 1960”, disse Tomás Portella, assistente de direção. As barreiras eram necessárias; em cada lugar fora do enquadramento da câmera havia, pelo menos, 100 moradores assistindo a tudo em silêncio. Mesmo tendo pagado aos donos das casas, “alugando” as ruas da cidade, a produção ficou impressionada com a aceitação dos moradores. “No Rio, isso seria impossível”, comenta o assistente de platô Anderson Vilar, “o povo daqui está colaborando muito”. No dia 20 de janeiro, chegavam à cidade os primeiros integrantes

da equipe, para começar a gravar dois dias depois. “Não tinha nem cigarro, nem energético”, afirmou Anderson, inconformado depois de ter ido a uma vendinha. Com a produção ainda para chegar, advertiu o vendedor para que ele lotasse o estoque desses dois itens, indispensáveis num set formado, na maioria, por fumantes. “Depois, fui procurar saber como andavam as vendas e ele disse que estava esgotando tudo”, disse Anderson, com um ar de consultor de negócios. Tantos cigarros e energéticos dão uma ideia do ritmo frenético com que a produção trabalhava. “Nós fazemos uma cena no tempo normal de qualquer diretor, mas a quantidade de quadros por cena é muito maior, por isso essa correria toda”, dizia Tomás, “mas Guel já sabe o ângulo exato que quer das cenas, não fica para escolher na edição, isso ameniza um pouco a quantidade de trabalho”. Quem

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olhava de longe tanta correria, tantos gritos de ordem e pedidos de silêncio, não percebia que se tratava da gravação de uma comédia. No set, tudo era questão de tempo – com o programa prescrito no roteiro de gravação não se admitia atraso; “Guel trabalha como um relógio suíço”, comentou a produtora executiva Olívia Guimarães. “Cadê Matheus?”, gritou o diretor se referindo a Matheus Nachtergaele, ausente no set. “Ele está terminando o cabelo e em cinco minutos estará aqui”, respondeu Tomás. Com ar de reprovação, Guel olhou para ele e disse: “Eu dou 15 segundos, se ele não chegar, vou buscá-lo”. Passados os segundos contados na cabeça, o próprio diretor sai com Tomás em um carro da produção para buscar Matheus. Como não deu tempo do penteado ficar pronto, decidiram por acrescentar um chapéu à cabeça de Nachtergaele, resolvendo o problema.

Nada podia atrapalhar as gravações. “Se estiver chovendo, a gente fecha o quadro e pronto”, disse Tomás, encharcado, sob a chuva que desabava em Marechal Deodoro. “Vamos senhores! Ninguém aqui é de açúcar!”, ele gritava ao pessoal da produção, que corria para preparar a próxima cena. Viraram-se com as pausas que a chuva deu, mas o céu só foi dar trégua no dia seguinte. “Meus conterrâneos! Tomo posse como prefeito desta cidade com as mãos limpas e o coração nu, despido estriptisicamente de qualquer ambição de glória.” O discurso de Odorico Paraguaçu (Marco Nanini) despejava-se sobre os figurantes e varava as ruas

A versão cinematográfica terá uma nova roupagem: Sucupira vai ser uma daquelas cidades do interior com vontade de ser capital

Cerca de 1.800 figurantes participaram das cenas externas

de Sucupira, confundindo-se com a realidade das ruas de Marechal Deodoro, onde um morador falava para si: “Melhor que o prefeito daqui”, como quem assume o papel de mais um eleitor da trama, caindo na lábia de Odorico. Era de cima da sacada da prefeitura que Nanini virava prefeito ao som de cada “Ação!”, mas, para além da câmera, a prefeitura era somente um cenário, montado em frente de uma residência, cujos moradores não pareciam incomodados em viver – temporariamente – cobertos por uma fachada. Atrás do cenário, também, estava o mercado público, que, nas duas semanas de filmagem, parou de funcionar normalmente, pois virou a entrada de uma loja de roupa em Sucupira. Nos quatro cantos da pequena Marechal, os comentários eram sobre o filme. Em geral, a população estava adorando o alvoroço. “Dá um movimento à cidade”, diziam vários. “Tem gente queimando o feijão direto”, falava a moça na varanda, assistindo à banda de fanfarra que tocava na rua de sua casa, durante as gravações dos cortejos fúnebres. Qualquer movimentação diferente era motivo para largar a comida no fogo, o menino no chuveiro e a roupa na pia, sair de casa e ver o pessoal fazendo cinema lá fora. As moças tomavam banho, perfumavam-se e dirigiam-se às gravações, numa cidade onde nem tem cinema. Pois é, “só tem cinema em Maceió”, dizia o menino que pescava no píer, com um olho na vara e outro na cena. Quando soube que o filme era para o cinema, perguntou triste: “E não vai sair na televisão não?”, mal sabendo que a prefeitura de Marechal Deodoro pretende fazer uma grande exibição do longa na cidade. Embora alguns figurantes tenham vindo da capital alagoana, em torno de 4 mil pessoas da ciMAR 2009 • Continente x

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CINEMA dadezinha inscreveram-se para fazer a figuração (aproximadamente 10% da população de Marechal), além dos atrasados, que todos os dias apareciam querendo saber como participar. Os figurantes ganhavam em torno de 45,00 reais por dia e, ao todo, foram cerca de 1.800 contratados. O fato de uma superprodução de R$ 10 milhões cair de paraquedas numa cidade interiorana como Marechal Deodoro significa uma movimentação muito maior do que a que os moradores perceberam na cidade. Porque, para dar vida à imaginária Sucupira de Dias Gomes, foi preciso que a produção contratasse equipes de construção cenográfica, camareiras, costureiras, ajudantes de produção, eletricistas, operários e diversos outros funcionários locais. Além dos contratados, cerca de 50 carros e 40 ca-

Cenário da prefeitura de Sucupira foi erguido em frente a moradias e mercado público

sas foram alugados em Marechal, sem falar dos gastos com alimentação, hospedagem e despesas de consumo da equipe de filmagem. Essa movimentação econômica, invisível na tela, tem importância social. O ator José Wilker conta que a cidade onde gravou o filme Guerra de Canudos (1997, direção de Sérgio Rezende) era tão pobre que, quando eles desmontaram o cenário, a população chorou, pois a “cidade” que a produção havia construído era melhor do que a real. “É uma pena quando saímos de uma cidade assim. Onde gravamos, em Canudos, não tinha nada, nenhum comércio estabelecido; durante o período de filmagem foram surgindo bares, lojas etc.”, fala Wilker, ressaltando o lado positivo da indústria cultural. "Além da economia", realça a secretária de Turismo de Marechal, Patrí-

cia Sampaio: “O mais importante mesmo é a troca cultural. Tantas pessoas de lugares diferentes visitando a nossa cidade, essa vai ser a maior saudade que a população sentirá desse filme”. No dia 6 de fevereiro, a equipe deixou a cidade para continuar as gravações em estúdios no Rio de Janeiro. Com o cenário desmontado, Marechal Deodoro deixou de ser Sucupira, voltando aos seus dias de realidade.

Nas duas semanas de filmagem, a população local foi mobilizada pelas gravações da comédia, com lançamento previsto para o final deste ano

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Uma novela bem-amadíssima Fernando Monteiro

Arquivo Rede Globo

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dramaturgo Dias Gomes tinha o que se poderia chamar de “instinto do Brasil”, isto é, possuía o timing deste país. Em 1961, quando Flávio Rangel (Teatro Brasileiro de Comédia) lhe fez encomenda de uma nova peça com mais ou menos os “sabores” do seu maior sucesso (O pagador de promessas), este não teve dúvida: foi buscar no “país da piada pronta” o enredo que daria origem, mais tarde, à telenovela O bem-amado. Com seu bom faro, o baiano localizou um acontecimento perdido na crônica de uma pequena cidade do Espírito Santo, “onde um candidato à prefeitura fora eleito prometendo construir um cemitério”. Para Dias, isso era mais Brasil do que a inspiração gilvicentina do teatro de Ariano Suassuana, e, rapidamente, ele conseguiu escrever a peça encomendada. O título escolhido foi “Odorico, o bem-amado, e os mistérios do amor e da morte”. Estava aberto o caminho para o encontro de O bem-amado com seus

dois grandes veículos naturais: uma emissora empenhada em produzir novelas cada vez mais populares e os atores Paulo Gracindo e Lima Duarte, figuras cujo folclorismo televisivo levaria prefeitos de verdade, pelo Brasil, a se sentirem “honrados” em tirar fotos com “Odorico”/ Gracindo, segundo ele próprio.

A supernovela de 1973 foi um fenômeno. A primeira exibida em cores, ela teve sucesso imediato, mesmo que o público não percebesse a “sátira ao Brasil da ditadura militar”, conforme os registros da Rede Globo. Mais facilmente apreensíveis eram as ironias de Dias Gomes em torno da paixão nacional pela retórica oca, com Odorico Paraguaçu à frente do uso de palavras pomposas e neologismos eventualmente forçados. Dizem que o próprio Gracindo propôs algumas das expressões como “botando de lado os entretantos e partindo pros finalmentes”, “os cachacistas juramentados”, “as donzelas praticantes” e aqueles advérbios que ficaram sendo citados, chatamente, durante muitos anos, desde 1973: – “Deverasmente”, “Pra frentemente!”, “Pra trasmente!” Resumindo o plot essencial do texto: Sucupira é um lugar que não tem onde sepultar os mortos, sendo obrigada a recorrer às cidades da vizinhança a léguas de distância.

Paulo Gracindo foi imortalizado no papel de Odorico Paraguaçu MAR 2009 • Continente x

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Arquivo Rede Globo

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Paulo Gracindo (Odorico), cercado pelas irmãs Cajazeiras, nos anos 1970

“Vote em um homem sério e ganhe um cemitério”, é o slogan da campanha vitoriosa do candidato Odorico. Infelizmente, depois que ele se elege, parece que as pessoas “desistiram” de morrer, e isso cria um “grande entretanto” (conforme diria) para sua carreira política: se ninguém falece de morte morrida, não há defunto, já que “o falecimento é condição sine qua non do estado defuntício”, sempre segundo o verborrágico Paraguaçu, ansioso pela inauguração do campo-santo. E a culpa, para o edil, passa a ser de ninguém menos que o recém-chegado médico “Juarez Leão” (Jardel Filho), que está apenas tentando fazer o seu trabalho com dedicação, enquanto corteja justamente a filha do burgomestre do município pobre (“Telma”, o primeiro papel de Sandra Bréa na TV). Com uma multidão de personagens acrescentados à versão telenovelesca (“Donana Medrado” e “Zelão das Asas”, entre outros), a

peça original ganharia inspiração também watergateriana, em função do escândalo político-americano que rolava nos noticiários, paralelamente à bem-amada novela do começo da década de 1970 (o prefeito convencendo o secretário Dirceu Borboleta a instalar um microfone no confessionário da igreja, a fim de descobrir os segredos de alguns inimigos que lá se reuniam). Entre os personagens que cresceram na versão televisiva, talvez o “Zeca Diabo”, de Lima Duarte, seja o mais memorável. Com fama de pistoleiro, Zeca está de volta à Sucupira e é procurado pelo prefeito para providenciar algum cadáver “inaugurador” do vistoso cemitério novo... Com essa situação básica – e mais as intrigas criadas para alongar a trama –, a telenovela teve audiências espetaculares e pôs à prova a exuberância das cores na TV. As cenas exteriores foram gravadas em Sepetiba (RJ), e a atriz Ida Gomes recorda que a cor branca das suas

pernas costumava saturar no vídeo. Até que o problema fosse resolvido, sua personagem (Doroteia Cajazeiras) teve que se mover pouco nos cenários, e com as pernas maquiadas. Paulo Gracindo chegou a subir ao palanque metido em terno de cetim verde sobre uma cintilante camisa cor-de-rosa, enquanto seu filho – Gracindo Júnior – teve os cabelos tingidos de laranja para compor o papel do vigarista Jairo Portela. A Censura Federal voltou sua atenção, em julho de 1973, para alguns detalhes de O bem-amado. Implicou que a palavra “coronel” não deveria “ser usada 'indiscriminadamente', por parte de alguns personagens” – e, acima de todos, por Zeca Diabo – no trato com o prefeito Paraguaçu, uma vez que isso poderia ferir as suscetibilidades de altas patentes melindradas com as naturais alusões aos “coronéis” do interior da Bahia, ou seja, aos fazendeiros que se metiam na política para garantir o poder no interior nordestino. A diligente censura da época do “milagre brasileiro” (sic) também faria apagar o áudio de capítulos nos quais Odorico Paraguaçu se referia ao temido Zeca Diabo como “capitão”. Conforme se lê nos orgulhosos inventários da Rede Globo, “O bem-amado foi a nossa primeira produção a ser exportada e abriu o mercado estrangeiro para os produtos nacionais”.

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A arte de enxergar mais que sombras

Fotos: Divulgação

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Pelos lançamentos de box com os principais filmes de Robert Bresson e do livro Notas sobre o cinematógrafo, é possível conhecer melhor o pensamento desse filósofo da sétima arte Marcelo Costa

R

obert Bresson se destaca seleto grupo de cineastas que refletiram e teorizaram sobre o cinema ou o ato de filmar, devido ao rigor, à densidade de seu pensamento e à coerência que ele guarda com sua obra. O lançamento de um box da Versátil com três de seus principais filmes (Pickpocket, O processo de Joana Dar’c e O dinheiro) juntamente com outras obras e a edição do livro Notas sobre o cinematógrafo são boa oportunidade de conhecer mais a fundo o pensamento desse filósofo da sétima arte. Famoso pelo rigor formal, decorrente da construção de regras e conceitos seguidos à risca, Bresson perseguiu a idéia da verdade, de um realismo espiritualizado como matéria-prima do cinematógrafo – que fazia questão de distinguir do cinema, sinônimo de teatro filmado. “Dois tipos de filmes: aqueles que utilizam os recursos do teatro (atores, encenação etc.) e se servem da câmera com o intuito de reproduzir; aqueles que utilizam os recursos do cinematógrafo e se servem da câmera com o

intuito de criar”, afirma em Notas sobre o cinematógrafo. O livro é uma compilação de reflexões e aforismos acerca do cinematógrafo e de sua capacidade de desvelar a realidade. Assim como Dziga Vertov, Bresson propunha a autonomia da linguagem cinematográfica em relação às outras manifestações artísticas: “O verdadeiro do cinematógrafo não pode ser o verdadeiro do teatro, nem o verdadeiro do romance, nem o verdadeiro da pintura”. Nesse sentido, o seu pensamento se aproxima do conceito de kino-glaz ou cine-olho, proposto por Vertov: a câmera como uma máquina capaz de revelar a realidade que nenhum olho humano é capaz de captar. Mas, enquanto Vertov – o cineasta da Revolução Soviética – se preocupava em expor as engrenagens de dominação e de manipulação de poder das sociedades, o cineasta francês referia-se a uma realidade distinta, abstrata e independente de contextualizações históricas e sociais. O cinematógrafo, para Bresson, era um instrumento capaz de revelar clarões de verdade em meio às

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Robert Bresson teorizou sobre o Cinema e sobre o ato de filmar

imagens projetadas numa sala escura; como se através de suas lentes fosse possível capturar mais do que sombras projetadas na caverna, mas testemunhar a dinâmica dos corpos propriamente ditos. As imagens e os sons em movimento, pensados independentemente, tornam o real perceptível por um instante. Para tanto, ele desenvolveu leis de ferro que possibilitavam esse encontro com o real. Depois de As damas de Bois de Boulogne, o cineasta passou a defender a utilização de atores não profissionais para conferir espontaneidade e uma dose de mistério aos seus filmes. Bresson acreditava num decalque da realidade através do automatismo dos movimentos, num “retoque do real com o real”. A realidade exprimia-se numa “maneira visível de falar dos corpos”, capaz de transmitir uma espiritualidade poética: é a mão do jovem pároco ao escrever suas confidências e conflitos em Diário de um padre, o cavalo branco que se move entre os corpos ensanguentados em Lancelot Du Lac, ou o repouso do corpo molestado do jumento Balthazar em meio ao rebanho de ovelhas em A grande testemunha. Entretanto, essa dinâmica não deveria ser subordinada ao pensamento, ou a um modelo pré-concebido apenas executado no momento da filmagem. Para Bresson a criação acontecia através do olhar atento durante o processo de captura, como um pintor em alerta diante de um quadro de tintas frescas. Filmar correspondia a provocar um previsível encontro com o imprevisível, com o que há de eterno no casual e no cotidiano. Essa maneira de pensar conferiu um estilo muito peculiar e inconfundível, presente de forma madura nos três filmes que integram o box. MAR 2009 • Continente x

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CINEMA Em Pickpocket (1959), a dinâmica dos corpos fica evidente nas cenas em que Michel, o batedor de carteiras, protagoniza um verdadeiro malabarismo com as mãos para tomar os objetos de valor de suas vítimas desatentas. Logo na cena inicial, Bresson propõe um desmembramento – planos fechados exibem os movimentos de suas mãos, enquanto seu rosto enigmático em close transita entre a inexpressividade e a excitação – numa valorização do que acontece fora das margens do quadro. Considerado como a obra máxima do cineasta, Pickpocket revela um indivíduo atormentado pela excitação de roubar e pela dificuldade em estabelecer relações afetivas, numa livre adaptação de Crime e castigo de Dostoievski. A angústia e o isolamento vivido por Michel explicitam características caras ao seu estilo inconfundível, como o gosto pela solidão e pela incomunicabilidade. O personagem encerra-se

em seus sentimentos e conflitos, como se gritasse solitariamente dentro de um quarto escuro de janelas acusticamente isoladas. Não há nenhuma revelação muito clara e, sim, uma ocultação de sentimentos não domesticados por uma perspectiva interpretativa. Talvez o mistério seja uma das razões do fascínio pela personagem de Joana D’Arc, cuja trajetória retoma outro ponto marcante na vida e obra de Bresson: a questão da fé. Se em Diário de um padre, um jovem pároco tem que enfrentar a ingenuidade e a fragilidade física na busca pela austeridade espiritual em meio a uma comunidade hostil, em O processo de Joana D’Arc (1962), a fé da personagem se defronta com a intolerância religiosa dos inquisidores em um tribunal a serviço dos interesses ingleses. É curioso notar a imagem da cruz na cena final de ambos os filmes como um indício da afinidade cristã do autor. De certo modo,

Bresson sublinha a força espiritual, o bom caráter e a fé de Joana D’Arc diante de seus algozes torturadores, que a condenam à fogueira sob a acusação de heresia e blasfêmia. Baseado nos autos do processo do julgamento da heroína francesa, o filme acompanha o martírio da jovem moça nos tribunais e investe na força dos diálogos e na recusa de elementos dramáticos. A idéia de desprover seus modelos de toda e qualquer expressividade confere à obra um realismo capaz de desmitificar a personagem e humanizá-la, a ponto de provocar uma aridez. A poesia do filme deve-se aos instantes, aos interstícios, e ao corpo da personagem, tratado como elemento sagrado a ser profanado e pulverizado. Juntamente com a Paixão de Joana D’Arc de Carl Th, Dreyer, ao qual se contrapõe, o filme nos dá a dimensão do calvário dessa fascinante personagem, embora sem a mesma profundidade e ressonância da obra expressionista de Dreyer.

Acima, o cartaz e uma cena de Pickpocket (1959). Ao lado, O processo de Joana D’Arc (1962)

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Aforismos do livro Notas sobre o cinematógrafo

Cena de A grande testemunha (1966)

É também sob a ótica moralista e o tema da reificação das relações humanas que Bresson constrói sua última obra. Baseado no conto A nota falsa de Liev Tolstoi, O dinheiro (1983) é uma reflexão sobre a ganância e o comportamento humano diante do nãocomprometimento ético e moral da vida em sociedade. A partir de um crime aparentemente simples – o repasse de uma nota falsa – o filme acompanha as consequências e transformações vividas por personagens indiretamente envolvidos até chegar ao que há de mais “hediondo” no homem. Como em Lancelot Du Lac, a ausência de dramaticidade combina com o realismo duro e opaco da violência – embora neste caso ela se manifeste no extracampo. Assim, Bresson mantém o seu estilo inconfundível que influenciou diversas gerações: algumas vezes árido demais, por acreditar numa realidade demasiado metafísica, em outras, intrigante e minimalista como alguém que percebe lágrimas no deserto. Em Elogio ao amor, Jean-LucGodard presta-lhe uma grande homenagem quando uma jovem, parente de um casal idoso que havia atuado na Resistência Francesa, questiona os valores e a visão do cinema de um produtor de Hollywood. “Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e a imobilidade”, lê a jovem em Notas sobre o cinematógrafo. As referências aos conceitos desenvolvidos

por Bresson colaboram para Godard desferir seu elogio mais rasgado: “Bresson é o cinema francês, como Dostoievski é o romance russo, e Mozart a música alemã”. O fato é que a ruptura com a linguagem convencional do “teatro filmado” e a busca por uma linguagem própria através da imagem e som proposta por Bresson reverberou entre os idealizadores da Nouvelle Vague. A inovação, o realismo, o improviso, o ritmo lento e o gosto pelo silêncio apontavam para uma nova maneira de pensar e sentir o cinema. Enquanto Rossellini eclodia na Itália com o neorrealismo, Bresson propunha o seu realismo espiritual na França. Onde os neorrealistas eram sociais, concretos e políticos, Bresson era abstrato, semiótico e rigoroso. Apesar das particularidades, eles guardam em comum o espírito vanguardista que contaminou gerações e um comprometimento ético com a arte. Ainda é possível perceber o alcance da influência de Bresson, seja nos preceitos do movimento Dogma, iniciado na Dinamarca, ou no realismo humano proposto pelos irmãos Dardenne.

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Nada de atores. (Nada de direção de atores). Nada de papéis. (Nada de estudo de papéis). Nada de encenação. Mas a utilização de modelos, encontrados na vida. SER (modelos) em vez de PARECER (atores). Filmagem. Nada no inesperado que não seja secretamente esperado por você. DO VERDADEIRO E DO FALSO Na mistura do verdadeiro e do falso gera o falso (teatro fotografado ou CINEMA). O falso quando é homogêneo pode gerar o verdadeiro (teatro). Na mistura do verdadeiro e do falso, o verdadeiro ressalta o falso, o falso impede de acreditar no verdadeiro. Um ator simulando o medo do naufrágio, no convés de um navio verdadeiro numa tempestade verdadeira, nós não acreditamos nem no ator, nem no navio, nem na tempestade. DO AUTOMATISMO Nove entre dez dos nossos movimentos obedecem ao hábito e ao automatismo. É contra a natureza subordiná-los à vontade e ao pensamento. Filmar com improviso, com modelos desconhecidos, em lugares inesperados propícios a me manter num estado tenso de alerta. Modelo. Alma, corpo inimitáveis. Filmes de cinematógrafo: emocionais, não interpretativos. Nada de psicologia (aquela que descobre somente o que ela pode explicar). Encontrar um parentesco entre imagem, som e silêncio. Dar-lhes aparência de se agradarem mutuamente, de terem escolhido o seu lugar. O que nenhum olho humano é capaz de captar, nenhum lápis, pincel, caneta, de reter, sua câmera capta sem saber o que é e retém com a indiferença escrupulosa de uma máquina. A visão do movimento dá felicidade: cavalo atleta, pássaro. O real não é dramático. O drama nascerá de uma certa evolução de elementos não dramáticos.

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metrópole

Marcella Sampaio

O anjo canalha nos abençoa a todos Galápagos Bossa Nova/Divulgação

P

oetas (de verdade) são sempre pessoas que pairam sobre a realidade, participando dela ao mesmo tempo em que a observam com um olhar muito próprio. O nosso olhar, de pessoas comuns, sobre eles, também é particular: queremos sempre saber o que está por trás da figura, qual a sombra que se esconde ali. Afinal, quem já viu poeta que não tem um pé na loucura, na melancolia ou, pelo menos, na insensatez? Difícil. Dia desses, em uma revista nacional especializada em cultura, li uma matéria que levantava uma questão que sempre me intrigou: por que Vinicius de Moraes transformou-se apenas no cara que, no imaginário popular brasileiro, casou com não sei quantas mulheres, tomava todas e fazia “musiquinhas” com “parceirinhos”? Não que estas características não lhe pertençam, de alguma maneira, mas a poesia que produziu ao longo da vida, esta, sim, é que interessa. As canções, dentro do gênero MPB/bossa-nova/samba, são ótimas, a gente adora. A poesia de Vinícius, no entanto, comove intriga, surpreende. Além do rigor estético com que o poeta escreveu seus versos, os temas, profundos, tristonhos, sombrios até, ainda deixam muita gente desavisada com o queixo na mão. Se quisermos ser simplórios, ou talvez maniqueístas, poderíamos dizer que as canções eram feitas nas fases de euforia, enquanto os

poemas traduziam os momentos de melancolia de Vinícius. Sua ânsia por viver de paixão em paixão era, segundo alguns de seus biógrafos, correspondente a esses estados alternados de espírito, tudo isso misturado à culpa, ao misticismo, à falta de senso prático, aos excessos. Atormentado, um ser complexo? Canalha, pura e simplesmente, disse, quando conversávamos sobre isso, um colega professor muito pouco sensível aos dramas pessoais do poeta. “O cara era um fdp, irresponsável, imaturo, fazia cara de coitado porque sabia que isso atraía as mulheres.” Segundo ele, a excelência da poesia de Vinicius não se discute, e sua inabilidade em lidar com a própria vida é que o tornou, aos olhos da crítica especializada, menos do que realmente era (é). O grande público também se acostu-

mou a enxergá-lo como um farrista, cheio de amigos e de mulheres, mas não como um artista de nível excelente, tão bom quanto Drummond e João Cabral, por exemplo. A aura folclórica criada por ele mesmo em torno de si teria favorecido a injustiça. Meu caro colega é categórico, e não aceita diagnósticos com vieses psicanalíticos. Pode ser que Vinicius tenha sido mesmo um grande egoísta, vivendo sempre numa circunferência em torno do próprio umbigo. Quem poderá dizer, porém, que essas circunstâncias não tenham sido catalisadoras do seu processo criativo? Se for o caso, a gente perdoa. Um pouquinho de canalhice não ofende, e pode ser até interessante (longe do meu e do seu quadrado, naturalmente). A bênção, poeta.

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