Revista Desvio - 3ª edição

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Revista Desvio / Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vol. 2, n. 2 (2017). Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017. Semestral ISSN: 2526-0405 1. Revista publicada por alunos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2. Arte, memória e patrimônio. I. Revista Desvio. II. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. II. UFRJ.

Revista da Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ano 2 | n. 3 | Novembro 2017


REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ

EXPEDIENTE UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

ESCOLA DE BELAS ARTES

Reitor Roberto Leher Vice-reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento Pró-Reitoria de Graduação – PR1 Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR2 Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR3 Roberto Antônio Gambine Moreira Pró-Reitoria de Pessoal – PR4 Agnaldo Fernandes Pró-Reitoria de Extensão – PR5 Maria Mello de Malta Pró-Reitora de Gestão e Governança – PR6 Ivan Ferreira Carmo

Diretor Carlos Gonçalves Terra Vice-diretora Madalena Ribeiro Grimaldi

REVISTA DESVIO Publicação Semestral de alunos e ex-alunos da Escola de Belas Artes – UFRJ Ano 2 Nº 3 – Novembro de 2017

Daniele Machado Editora chefe

Marcela Tavares Revisão

Gabriela Lúcio Editora executiva

Thiago Fernandes Design gráfico e diagramação

João Paulo Ovidio Agrippina Manhattan Crítica Revisão

Bárbara de Andrade Fernando Rodrigues Ana Noronha Carolina Alves Rosangela Pertile Colaboradora Diagramação e revisão Revisão e Fotografias Revisão Revisão

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Créditos do I PEGA – I Encontro de estudantes de graduações em artes do estado do Rio de Janeiro Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica Assessor Executivo Antonio Manuel Coordenadora de Pesquisa e Público Daniele Machado Coordenadora de Produção Dandara Renault Designer Leonardo Santana Coordenador Operacional Cremilson Oliveira

Universidades

Revista Desvio

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Felipe Amancio

Universidade Federal do Rio de Janeiro Ana Noronha Thiago Fernandes Universidade Federal Fluminense Ana Pimenta Daniele Machado Pedro Peçanha

Editora-chefe Daniele Machado Editora-executiva Gabriela Lúcio Designer Thiago Fernandes Entrevistador e Revisor João Paulo Ovidio Colaboradores Agrippina R. Manhattan Ana Noronha Bárbara de Andrade Carolina Alves Fernando Rodrigues Marcela Tavares Rosangela Pertile

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SUMÁRIO 07. Editorial 08. Informativos 11. Exposição | I PEGA – Encontro de Estudantes de Graduações em Artes do Estado do Rio de Janeiro Ana Noronha, Ana Pimenta, Daniele Machado, Felipe Amancio, Pedro Pessanha e Thiago Fernandes 68. Artigo | Intersemiose na ditadura: poesia > visualidade < repressão. Estudo de caso: expoesias Adriana Fernandes 78. Artigo | Multiplicidades identitárias: o abstracionismo informal em face da construção de uma nova vanguarda brasileira Ananda Muylaert 87. Artigo | Atravessamentos corporais: a dança e a representatividade negra no empoderamento de mulheres negras e de periferia Andreza Jorge 94. Artigo | Porque não houve grandes artistas travestis? Agrippina R. Manhattan 99. Artigo | Narrativas da região portuária do rio de janeiro: ações artísticas, manifestações culturais e intervenções no cotidiano Carlaile Souza 108. Artigo | Lugares do delírio: trânsitos entre arte e loucura na contemporaneidade Daniela Cassinelli 123. Artigo |Só me interessa o que não é meu: fragmentos para uma genealogia da collage Diego Franco 132. Artigo | Arte contemporânea em Angola: entre o local e o global Felipe Amancio 139. Artigo | Fernando pinto maravilha: um ziriguidum tropicalista Leonardo Antan 148. Artigo | Vênus de urbino: renascimento e gênero Luiz Henrique Duarte 154. Artigo | Parangotíteres ou titerelé: o jogo titerilesco insurgindo na obra de Hélio Oiticica e na dança da porta-bandeira Maria Madeira 160. Artigo | Breve reflexão epistemológica no campo da conservação e restauração de bens culturais Maria Elena Venero Ugarte e Luana Aguiar 167. Artigo | As diferenças da figura feminina latina: um paralelo entre representações femininas de artistas latino-americanos Maria Van Camp 5 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017


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SUMÁRIO 173. Artigo | Metáforas uterinas. Série: rememoração e reconstrução do feminino Silvia Cordeiro 182. Proposta livre | Investigações fotográficas: experimentando um outro tempo da imagem Fernando Rodrigues 184. Proposta livre | Um monitor Jandir Jr. 187. Proposta livre | A Escola de Belas Artes como propulsora de encontros e coletividade: Atrocidades Maravilhosas e Zona Franca como estudos de caso Thiago Fernandes

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Editorial A revista Desvio chega a sua terceira edição e cumpre um de seus desejos iniciais: mais do que divulgar publicações de estudantes de graduações, tornar possível o encontro desse pesquisadores. Assim, a terceira edição é dedicada ao I PEGA – Encontro de Estudantes das Graduações em Artes do Estado do Rio de Janeiro. Uma proposta organizada em parceria com o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica e estudantes interessados das universidades.

zar as drásticas mudanças nos direitos dos trabalhadores atacados dia após dia e os julgamentos sobre processos de corrupção, realizar um projeto colaborativo dá trabalho, mas é uma chave possível para enfrentar esses novos e, ao mesmo tempo, tão velhos tempos.

A edição conta ainda com a memória das eleições que ocorreram para a diretoria da Escola de Belas Artes e com avisos dos projetos e eventos por vir. Encerramos o texto afirmando que ao tornar A edição fica assim dividida entre dois cadernos. aberta a construção, organização e realização do O primeiro com o conteúdo da exposição – em I PEGA, convocamos os estudantes para agir dencartaz entre os dias 14 de outubro e 11 de novem- tro do espaço público que é o Centro Municipal bro de 2017. O segundo com as comunicações de Arte Hélio Oiticica. O Estado deve representar acadêmicas e livres que ocorreram entre os dias a maioria do povo que o elege, garantir direitos 9 e 11 de novembro. fundamentais, mas a participação popular não deve estar restrita a cobranças e participações O objetivo de dar visibilidade a produção dos nos períodos eleitorais. Construir é necessário e estudantes de artes de graduação, teve também preciso! um resgate histórico de refletir sobre legado da exposição Nova Objetividade Brasileira, ocorrida Boa leitura! no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1967, onde destacou na Tropicália de Hélio OitiEquipe Desvio cica, a frase A pureza é um mito, tema do I PEGA. Rio de Janeiro, 09 de novembro de 2017 Diante do cenário brasileiro que ataca a cultura de todos os lados, como manobra para invisibili-

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INFORMATIVOS

e, principalmente, requalificada quando do processo para reerguer a Escola após o incêndio.

Eleição para direção de graduação e pós-graduação da Escola de Belas Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA – UFRJ)

Chapa 2 – Inovaeba Diretor: Marcus Dohmann / Vice-Diretor: Robério Dias / Diretor de Pós-Graduação: Felipe Scovino

Chapa1 - [RE]NASCER Diretora: Madalena Grimaldi / Vice-Diretor: Hugo Backx / Diretora de Pós-Graduação: Julie Em meio à crise política e moral pela qual passa Pires o País, este é um momento de escolhas difíceis. Os desafios são sérios e só serão superados com Apresenta-se o momento em que a nossa bicenmuito trabalho, sacrifício e união, a partir de restenária Escola de Belas Artes irá escolher a sua postas que valorizem a tolerância e a unidade. nova direção para o quadriênio vindouro. JustaNesse sentido, estamos empenhados na consmente no ano de 2016, de tão importante celetrução de um novo ambiente colaborativo para a bração dos seus 200 anos, a nossa querida EsEscola de Belas Artes, que, além de se preocupar cola de Belas Artes foi abalada por um sinistro com uma cultura inclusiva entre os diferentes incêndio que colocou em risco seriamente todas cursos, possa se tornar novamente uma referênas suas atividades acadêmicas e administrativas. cia na formação artística para a sociedade. A união de todo o seu corpo social: estudantes, funcionários técnico-administrativos e professoNão temos dúvidas que é preciso investir na Escores, permitiu que superássemos esse difícil mola de Belas Artes com uma visão empreendedora, mento, garantindo que nossa EBA ressurgisse buscando parceiros que possam nos ajudar em literalmente das cinzas, retomando com vigor e ações que irão transformar o atual cenário em pujança suas atividades. Agora é o momento da que nos encontramos. Se quisermos gerir uma reconstrução, da busca incessante por novos obmudança, terá que ser de forma coletiva. E isso jetivos que permitam à nossa Escola encontrar vai exigir empatia entre todos os que compõem novamente as condições necessárias e adequadas essa instituição: docentes, servidores técnico adao pleno desenvolvimento de suas atividades de ministrativos e estudantes. Mudança é a palavra ensino, pesquisa e extensão, à altura da tradição que motiva a nossa mobilização e inovação é a e da importância que a EBA possui na educação ação necessária para empreendê-la. superior na UFRJ e no Brasil. O século XXI é um século que traz novas dinâmicas e que passa por uma nova realidade: a de assumir riscos e empreender. Não há como tentar enxergar o futuro pelo retrovisor. Precisamos investir em um capitalismo mais “humano” e ajustado, valorizando a solidariedade, o compartilha-

Caso queira conhecer o nosso Plano de Gestão para o quadriênio 2018-2022 é só acessá-lo na página da EBA. O que ali é exposto é fruto de toda a experiência acumulada em gestão acadêmica e administrativa do grupo, já obtida anteriormente

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mento, a sustentabilidade, a justiça e, sobretudo o respeito com o próximo, como temas transversais a todas as disciplinas que oferecemos em nosso escopo, para construção de uma Escola de Belas Artes inovadora, fortalecida e socialmente presente.

VI Bienal da Escola de Belas Artes

Bienal da Escola de Belas Artes propõe reflexos como temática para a sua sexta edição. A exposição reúne no total 37 alunos dos cursos de graduação e pós-graduação, os quais apresentam suas pesquisas plásticas e contribuem para divulgação Nosso objetivo primordial é implementar e con- de uma Escola plural de práticas e poéticas artíssolidar as ações que revertam as graves conse- ticas. O catálogo da exposição conta com textos quências vivenciadas atualmente pela Escola de críticos escritos por alunos do curso de história Belas Artes, do exílio sofrido em 1975 ao recen- da arte, iniciativa que contribui para integração te infortúnio do incêndio do Prédio da Reitoria, entre teóricos e artistas, e nos permite tratar a buscando uma sede própria junto ao polo cultu- instituição como uma unidade sólida. Após duas ral do Rio de Janeiro, onde haja visibilidade para edições sediadas no Centro Municipal de Artes o Museu Dom João VI e para todas as obras, das Hélio Oititica, a mostra esse ano ocorrerá nas mais raras à produção mais atual de nossos estu- galerias do Museu Nacional de Belas Artes, com dantes e artistas. Referimo-nos a um lugar que inauguração prevista para o dia 17 de novembro faça jus à insuperável importância do patrimônio e encerramento no dia 17 de dezembro. histórico, artístico e cultural que a Escola de Belas Artes colecionou ao longo desses seus últimos 200 anos de existência, tão representativo para a nossa Cidade do Rio de Janeiro e para o País. DIAS DE ELEIÇÃO: 30 e 31/10 e 01/11/2017. RESULTADO: Chapa 1 venceu com 289 contra 264 da chapa 2. O quantitativo total de votos por função, além de brancos e nulos pode ser visto no site da EBA – UFRJ: http://www.eba.ufrj.br/images/arquivos/ tabela_apuracao.pdf Saudamos as eleições democráticas e esperamos uma gestão voltada para melhorias da Escola de Belas Artes e especialmente voltadas para o corpo discente.

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Desvio, Gabriela Lúcio, que iniciou sua carreira acadêmica como estagiária do Setor de Conservação do Museu Casa de Rui Barbosa (MCRB) A Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) insti- e atualmente é pesquisadora na categoria IC no tuição de cultura, pesquisa e ensino, está sendo MCRB, apresentando uma diversidade de produameaçada pela possibilidade de ser transformada ções relacionadas a sua pesquisa. em Organização Social (OS). Já é sabido que esse tipo de parceria público-privado, especialmen- Tal espaço tão rico e único não pode ser perdido. te na cultura, resulta em destruição de órgãos e Endossamos aqui a fala de nossa editora executidesvalorização, tendo como exemplo as bibliote- va: NÃO MEXAM COM A NOSSA CASA! NOTA DE APOIO A FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA

cas parque fechadas. A Revista Desvio manifesta-se contra o desmonte que ocorre na cultura, e veemente contra a transformação de qualquer instituição pública de cultura – como a FCRB – em OS.

Entendemos que as instituições de cultura e sem fins lucrativos dependem de uma administração completamente pública para realizarem suas atividades de maneira justa e independente, a FCRB destaca-se por ser um local de conhecimento e Equipe editorial da Revista Desvio. oportunidades de pesquisa para jovens estudantes e pesquisadores já sacramentados, temos como exemplo a editora executiva da Revista

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EXPOSIÇÃO

I PEGA – Encontro de Estudantes de Graduações em Artes do Estado do Rio de Janeiro Apresentação “A PUREZA É UM MITO”

das graduações em artes das universidades do RJ com o objetivo visibilizar o trabalho de pesquisadores artistas e/ou teóricos iniciantes, provocar encontros e discussões e resistir no campo das artes em um cenário crítico. Não podemos deixar de marcar aqui os episódios recentes de ataques a exposições de arte e seus profissionais, com intenções de censura e criminalização daquilo que deve gozar da mais absoluta liberdade. Como assinalou o mestre Mario Pedrosa no ano seguinte, em meio a um cenário que lamentavelmente se parece com o atual “arte é o exercício experimental da liberdade”. Não há como não sê-lo. E não deve!

Era o que enunciava uma parede vermelha da Tropicália de Hélio Oiticica que, apesar de erguida 50 anos atrás, ainda se desdobra como as faces do penetrável onde foi escrita. Esteve presente na exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1967. Seus organizadores, Oiticica entre eles, negavam a redução do que se produzia no Brasil a um movimento estético, puro, repleto de dogmas como os “ismos” que o precederam. Defendiam sim uma chegada, uma formulação de múltiplas frentes, onde diversas tendências gerais podiam ser observadas – mas que se dividiam em vários vetores da produção brasileira. Nos parece que se em 1967 havia a intenção de formular um “estado”, um mapeamento das váEsta enunciação também integra um imaginá- rias frentes de especificidade da experiência da rio não incomum, conhecido desde o manifesto arte no Brasil de 50 anos atrás, esse gesto se aliantropófago de Oswald de Andrade, que aponta nha com a vontade atual, de abraçar nossas urpara algo que considera crucial para a formação gências (que são muitas) e nossos interesses (que de uma brasilidade: a ideia de uma digestão das são múltiplos). Uma antropofagia não só do que influências externas a modelos nacionais, da vem de fora, mas do que vem de nós mesmos. contaminação como prática, da impureza como Nos devoremos, sem pretender uma falsa homoelemento central na construção da nossa identi- geneidade. São nossas diferenças que desenham dade. o contorno do nosso encontro. Somos multidão. Somemos. O I PEGA surge, em parte, em homenagem aos 50 anos que se completam em 2017 desde que Ana Pimenta, Ana Noronha, Daniele Machado, foi realizada a exposição Nova Objetividade Bra- Felipe Amancio, Pedro Pessanha e Thiago sileira. Acreditando na importância da pesqui- Fernandes sa na graduação, o encontro é organizado pelo (Curadores) CMAHO, pela revista Desvio e por estudantes

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A EXPOSIÇÃO PELOS CURADORES Ana Noronha (UFRJ) Uma questão que particularmente me interessa no processo de curadoria é o modo como, num sistema específico de obras, cada trabalho parece se reformular de acordo com seus contextos e diálogos. Nesse sentido, durante todo o processo de pesquisa e montagem da exposição observei como um conjunto de obras, selecionadas inicialmente sem uma relação evidente, foram pouco a pouco reconfigurando suas potências e adquirindo outras possibilidades de discussão. De uma forma curiosa, vejo que suas múltiplas potências relacionais convergiram para uma espécie de genealogia das políticas do corpo. E tal fato, no contexto do PEGA, me parece constituir-se em algum nível como uma espécie de retrato das atuais militâncias políticas, seja em âmbito universitário ou não.

ou ao menos a carga ideológica que representavam demonstra-se mais uma vez presente. De modo análogo, a obra Anti-Jardinagem de Yago Toscano manifesta possibilidades de resistência aos macropoderes à partir da evidenciação de formas de trabalho e produção alternativas. O artista, que atua como professor em uma escola rural da Baixada Fluminense e realizou algumas pesquisas com o MST, desloca através de sua obra algumas técnicas de agroecologia para o âmbito da exposição. Ademais, propõe discussões acerca da potência da utilização de técnicas de produção tradicionais, que podem ser encaradas como estratégias de resistência da população campesina aos constantes avanços da normatização do trabalho impostas pelo agronegócio – o que por sua vez trata-se de uma distensão no cabo de guerra da autonomia dos corpos.

Confluindo a uma reflexão similar, as propostas As relações entre o corpo e a manutenção de po- de “performance-relato” de Marina Jerusalinsky der, portanto, se apresentam sob diferentes pers- colocam em debate precisamente a noção do que pectivas sociais. Nas obras de Thiago Ortiz tais comumente é considerado trabalho. Nesse senquestões se manifestam com particular destaque tido, a artista propõe diferentes ações e abordano que se refere à contenção do corpo como me- gens que tensionam fronteiras comumente esdida de controle político. Em Barricadas, o artis- tabelecidas entre conceitos como trabalho/ócio ta apresenta o corpo como uma espécie de célula e performance/relato. Em uma de suas perforde iniciativa da revolução, e portanto como uma mances (ou não-performances) anteriores, a arespécie de ameaça às instituições de poder, o que tista inclusive contratou alguns indivíduos para o torna alvo das mais variadas formas de conten- não trabalharem por um dia em sua companhia, ção. Dessa forma, o artista reconstitui em si mes- realizando o que quisessem. E, dessa forma, tormo processos de tortura já realizados por uma na-se instigante observar como tais proposições série de regimes ditatoriais ao redor do mundo. artísticas podem desarranjar as relações empreJá em Habeas Corpus, sua segunda obra, reali- gado/empregador. za um processo quase inverso. Ao projetar em seu próprio corpo fotografias de presos políticos Nesse contexto, a obra 3/1000 de Guido Lamim, desaparecidos, o artista realiza uma espécie de que se trata da realização manual de um novelo recomposição desses agentes extintos. De algum de lã com 1000 nós e em 3 cores, também tenmodo, tais corpos readquirem sua concretude, siona tais relações. Utilizando-se de um modo de

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produção compulsivo – similar à produção fabril – o artista também busca subverter essas lógicas. Segundo o artista, o próprio nome da obra demonstra como os processos de produção fabris por vezes reduzem o objeto a uma simples catalogação numérica, de modo que o título 3/1000 poderia inclusive ser comparado ao sistema de catalogação do código de barras. Ainda em relação às várias formas de manutenção de controle do corpo, vale inclusive citar os recentes episódios de censura de arte ocorridos em grandes instituições como o Santander Cultural (âmbito privado) e Museu de Arte do Rio (parceria público-privada). Episódios estes ocorridos devido à presença de posicionamentos políticos que suscitam discussões de cunho moral (diversidade sexual e nudez) e que são de difícil absorção por parte destas estruturas. E neste contexto, a performance Cru de Aline Meira, que apresenta a nudez como um meio possível para discutir questões muito mais abrangentes presentes nas relações humanas, acaba adquirindo um caráter de resistência que talvez não se tornasse tão evidente em momentos anteriores a tais ocorrências. Desse modo, é interessante observar como tais obras, em um contexto como a realização de um encontro de graduações, ultrapassam tais espaços e suscitam múltiplas discussões que evidenciam diferentes dinâmicas de trabalho e espaços de atuação de macro e micropoderes. Vale, contudo, lembrar que as próprias universidades e os modelos que estas propõem são também espaço de manutenção de uma certa lógica, e que talvez seja interessante repensar este espaço também como uma espécie de laboratório de observação dos caminhos que o ensino acadêmico propõe para a arte.

Ana Pimenta (UFF) Pude perceber que os trabalhos dos artistas do grupo o qual fiz a curadoria envolvem direta ou indiretamente a temática da existência do ser para além dos limites do corpo ou do indivíduo, mas à sua ativação como sujeito, ator social no mundo. Assim, pensando talvez em um grau de maior para a menor evidência dessa relação ressoante, organizo este texto. A obra de Paula Isabelle (bacharelado em Artes Visuais com ênfase em Pintura/UFRJ), titulada “War Zone”, é composta por dois suportes de papel nos quais a artista trabalha a aquarela na figuração de dois corpos. As pinturas ligadas e distanciadas por uma linha de costura vermelha evocam a proposição da artista para uma reflexão das relações traçadas pelo sujeito contemporâneo. Baseando-se no conceito de uma substancialidade fluída dos contatos, a partir de Zygmunt Bauman, o trabalho de Isabelle possui incrível potência plástica, tanto na escolha da aquarela decisiva para uma representação não delimitada dos corpos, que mediante o processo contemporâneo de constante fragmentação passam a encontrar-se a si próprios em fluidez; como na opção da artista por não usar molduras, trazendo para a obra fragilidade e proficuidade de uma impermanência, características justamente formadoras das relações contemporâneas. Mariana Paraizo (bacharelado em Artes Visuais com ênfase em Escultura/UFRJ) expõe pela primeira vez videoarte, na qual aparecem desdobramentos de uma pesquisa e interesse da artista no âmbito da performance filmada. Paraizo, em “Cúmplice”, realiza o que chama por roubo encenado, onde vem revisitar a apresentação de objetos, afetivos ou não, furtados de amigos; e narrativamente traçar diálogos com escândalos

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políticos de corrupção fomentados pela mídia. No registro de uma câmera de vigilância, vemos a artista transitar de maneira orgânica por sua sala-de-estar recolhendo os bens dos presentes, convidados simplesmente para uma celebração informal. A ação se inspira nas táticas de “pickpockets” dos anos 60, em português “batedores de carteiras”, ladrões estrategistas de “mãos leves’’ conhecidos como mestres na prática do furto. O vídeo segue com movimentações da artista e uma maleta preta sem serem percebidas, circulando a todo tempo por capturas. O material foi então editado por Mariana utilizando recursos de efeitos visuais – marcações cíclicas e fundo escurecido interferem à imagem – para simular quando nos telejornais gravações de câmeras de segurança são exibidas e se pretende mostrar ações ilícitas, como provas de crimes ou flagrantes. Desse modo, suportado pela relação de confiança construída entre amigos, é estabelecido espaço específico para a realização da performance. Laura Vainer (licenciatura em Dança/UFRJ) convida o público à troca, por meio do bilhete preso à prancheta que integra a instalação “exercícios para despoluir o amor_prática de leitura”. De forma carinhosa e redação poética, o recado dirigido ao visitante – “meu bem” – traz instruções para a ativação do trabalho, que se dão a partir da proposta de livre intervenção no caderno de 64 folhas depositado sobre a mesa. Ali na baixa banca de madeira, acompanhada dos pequenos banquinhos, Laura expõe sua monografia, o bloco encontrado entre papéis rasgados, envelopes vazios destinados para o seu endereço e uma sopeira de louça preenchida por parafusos que se encontram espalhados. Todos objetos ali manuseáveis, postos para interação, e idealmente para uma “desorganização” da disposição construída. Ao lado do bilhete estão canetas e lápis, ofertados

para que se interfira na tese. Vainer vê na potência do encontro com as pessoas que visitarem a instalação, caminhos de comunicação e expansão do trabalho que dá conclusão à todas as graduações. Penso que sua preposição torna a monografia metodologicamente processual; rasante para outras direções além das estantes da Academia; exposta, discutível e disposta para atualizações coletivas. A proposta dos artistas Daniele Machado, Victor Oliveira e Thaina Iná (bacharelado em Teoria da Dança/UFRJ) realiza-se em uma série de encontros, conversas e práticas denominada “encontro de escrita coletiva”. A ação, estendida em instalação, ocupou o espaço da sala de leitura do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica constituída de computador, projetor e pedaços de fita crepe, que percorreram toda a extensão aérea, criando uma espécie de teia na formação de sutis obstáculos para os corpos adentrados, parecendo ressoar tridimensionalmente tudo o que por ali se conversaria. Na sala, os visitantes são convidados para o desenvolvimento da escrita de uma carta -e-mail destinada à Instituição artística, iniciada no questionamento sobre o lugar da dança nos espaços expositivos e sua própria indefinição como prática dentro da Academia: “Não somos Belas Artes, não somos esporte, não somos terapia - e somos - porque nós não sabemos o que somos”, manifestam os artistas. O arquivo, reeditável a todo tempo (dentro e fora da galeria) por qualquer pessoa com acesso à internet e uma conta cadastrada, ser plataforma coletiva e expansiva para a discussão que tende a ser cristalizada no âmbito da Universidade. Jean Carlos Azuos (mestrado em Artes Visuais/ UERJ) e Alan Muniz (bacharelado em História da Arte/UFRJ) recriam o quarto na galeria 4. “O quarto e as alegorias do afeto” desdobra-se de

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uma série de instalações relacionadas à pesquisa dos artistas sobre o cômodo da casa enquanto território de construção de subjetividades. Como tentativa, o trabalho busca evocar aspectos íntimos e pessoais dos indivíduos, que no espaço do quatro se passam e entrecruzam. A noção do quarto para os artistas se constrói significativamente para além de suas estruturas físicas, mas em âmbito virtual, a partir de diversos atravessamentos e sobreposições de memórias, histórias, sensações, alegorias. Portanto, por tratar-se desse espaço de alta potência imagética e construtiva, torna-se possível sua alusão para o espaço da galeria, mediante apresentação de alguns objetos/e formas que dele derivam. A exemplo, a figura de anjinhos que Jean e Alan trazem penduradas em cabides: seres da guarda a quem pede-se proteção antes de dormir, encontrados em suspensão sobre as camas da infância, pelo quarto. Por fim, seguindo a lógica apresentada em início, mas que já não sei se faz ideal sentido, pois somos e tudo está na relação com o outro (!), a vídeo-performance de Jean Carlos Azuos, “Um abrigo. Um mar”. Em plano único e estático, há uma caixa de papelão na areia e o mar ao fundo. O registro foi realizado pelo artista de forma orgânica em torno de questões que norteiam as configurações de abrigo, e como prolongamento do seu processo artístico na escala do quarto. Ali, a caixa converte-se em casulo no ato de encontro entre corpo e mar, interno e externo. E concluo por enxergar com a mesma evidência nos seis trabalhos, assim como na vida, a importância dos entrelaçamentos humanos e a valorização da alteridade como potencializadores da experiência artística.

Daniele Machado (UFF) Pensar a atividade da curadoria pelas vias da “cura”, sugerida pela palavra, pelo cuidado, traz o afeto que esse exercício pode propor. Cuidado consigo e entre todos, em colaboração. A construção do discurso polifônico que se encontra no PEGA, aqui no recorte dos seis artistas com os quais lidei de forma direta, forma um lindo coral. Coral sem tom, desafinado talvez, mas onde é possível acessar uma pequena amostra da diversidade presente na produção dos artistas atuantes na cidade. Aqui, em maioria, no início de suas carreiras. Para começar os trabalhos Ningen de Barbara Bandini e Metamorfose de Mateus A. Krustx. Trabalhos de gestos íntimos. No primeiro, o esforço por guardar as memórias cotidianas da artista que as escreve em carvão. Ao virar as frágeis páginas de papel vegetal, presas entre si por uma delicada pulseira, o carvão desfaz as curvas das letras. No segundo, um vídeo de emoção intensa. O artista, de unhas coloridas, acaricia seu peito nu. Tateia a textura, os buracos e o relevo de cada parte. Trabalhos de gestos íntimos e de uma ironia refinada. Guardar compulsivamente as memórias para que se percam. Tocar delicadamente o próprio corpo e exibir. Em tempos de ódio, se amar, se tocar, é de uma brutalidade revolucionária. A ironia é um recurso presente em todos estes seis artistas. Luísa Marinho com In: cuerpo e Vitor Canhamaque com Máscara de Imersão. Luísa cria um roteiro de quatro performances que realizou no México a partir de trabalhos já existentes de outros artistas. Estavam expostos o roteiro, os relatos sobre as ações, uma pequena imagem instantânea que expunha os registros de cada uma das quatro ações... Uma dessas não

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aconteceu. Um jogo que brinca com a atmosfera ritualística entre a performance e os seus registros. Vitor propôs uma cena com a ideia de que o visitante participasse da obra toda em tom azul: o quadro, a máscara e o barulho do mar que sonorizava seu ambiente. A ideia inicial do artista, do público imergir no escuro da máscara ao vesti-la e abstraísse a galeria ouvindo o som do mar, contrastava com a tensão que vibrava dos olhos sinistros na tela e na máscara e seguiam todos pela sala e com a rigidez e aspereza da máscara que aparentava alguma fobia antes de ser vestida. Por fim, ainda a ironia, dessa vez escancarada, circulava pelos trabalhos de Bruna Mendez-Franco, Queira providenciar, e de Cyanogaster Noctivaga Arte barata + falência. “De: __ Para: ___ Queira providenciar: ___”. Bruna deixou ao público formulários para reivindicar o que quisessem diante do incêndio catastrófico que atingiu o prédio Jorge Machado Moreira da UFRJ em outubro de 2016 e precarizou, ainda mais, o funcionamento da Escola de Belas Artes. As solicitações penduradas em um varal, é claro, ultrapassaram as demandas da EBA e se estenderam às urgências que todos compartilhamos sobre o ambiente público. Cyanogaster Noctivaga encerra esse breve texto com um conjunto de lambe-lambes colados em meio a imagens aleatórias que denunciam graves eventos ocorridos na EBA e na UFRJ, e anunciando que vende arte barata. Quem sabe assim alguém se interessa por comprar... será?

Felipe Amancio (PUC-Rio) Uma vez aberta a exposição, pode-se agora refletir com mais calma sobre os rumos que se tomou. Como um dos curadores do PEGA, fiquei responsável por um grupo de artistas a partir de uma seleção prévia de trabalhos com os quais me identifiquei. No entanto, sabendo que tais trabalhos muito dificilmente ficariam próximos, não houve uma preocupação de constituir um eixo temático ou narrativa, seguindo apenas o livre curso das afinidades estéticas. E se, de início, não havia nenhuma preocupação sistêmica a organizar os trabalhos, não é o que, como uma estratégia de racionalização, pretende o presente texto. Escolho então comentar os trabalhos a partir da disposição espacial nas galerias. O primeiro deles é da artista Andréa Nasci (EBA -UFRJ) que, anteriormente composto por três trabalhos individuais, é exposto como um só trabalho sob o título de Emaranhado de nós (2017). Isso foi possível por Nasci ter como temática de sua produção a construção de identidades, não fixas, mas plurais que se desenvolvem ao longo da vida como muitos nós. Há aqui uma brincadeira com a homonímia entre o pronome pessoal e um dos elementos de seus trabalhos, o nó, uma ambiguidade fortalecida através do uso constante de linhas como símbolos da tessitura da vida, seus descaminhos e os vínculos que amarram um “nós”. Inversamente, as investigações de Gabriel Fampa (PPGAV-UFRJ) não partem de uma atitude reflexiva, da interioridade em relação ao social, e sim desse primeiro núcleo de sociabilidade que é a nossa casa. Preocupado com o significado, ou sua falta, dos objetos que mantemos ao nosso redor, o artista recompõe de modo curioso uma pilha de móveis e eletrônicos (brinquedos), formando uma espécie de torre, uma coluna que pode ser completada e recomposta pela imaginação do espectador. Mais do que invalidar a utili-

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dade de tais objetos ao transformá-los em arte, Pedro Pessanha (UFF) Fampa busca nos questionar o quão necessário eles são para nós. Muitos dos trabalhos expostos no PEGA se debruçam sobre questões do corpo, em questões Ainda sobre objetos, doméstico ou não, é o que que atravessam a formação de seus contornos no propõem os trabalhos de Nicolle Crys (UFRRJ) e mundo, na sua relação com o outro e consigo: e Silvia Schiavone (UERJ). Crys, com sua obra PRI- todas as linhas de tensão que emergem das fronSÃO (2017) cria através de uma pequena instala- teiras entre os dois. ção, um território inóspito que discute o mal-estar contemporâneo, e o modo como constituímos O vídeo de Rodrigo Pinheiro, estudante de Arnossas vidas a partir de arranjos prisionais, e re- tes Visuais na EBA-UFRJ, registra SUGADOURO, lações que cerceiam a liberdade; já a instalação de três intervenções em espaços de convívio que, Schiavone propõe discutir sua luta pessoal contra se utilizando de fita adesiva, visam a criação de as doenças pélvicas a partir de uma cama – mó- novas relações com o encontro e o contato com vel de grande simbolismo, que nos acompanha o outro. Dessas três, uma foi remontada para a do nascimento ao leito de morte, e no intervalo do exposição: RALO-SUGADOURO. Placas aderensono, na passagem do dia para a noite. A artista tes e pegajosas estendidas no chão da na qual os reveste esta cama com uma padronagem uterina espectadores interagem (de forma deliberada ou sem esconder a estranheza dessa justaposição. não) logo ao entrar na galeria, abrindo a percepção para as outras proposições que a procedem. Por mais caro que seja à história pessoal da ar- Segundo Rodrigo, “O meu trabalho inscreve-se tista este também é um gesto de libertação desse no esforço por perverter a dormência do corpo órgão enfermiço, libertação da função sociobio- em face aos contínuos encontros desestabilizadológica da reprodução. Esse gesto de destituição res; dessilenciá-los.” também é observável no ato final da performance: Algo tão doce (2017), de Flora Bulcão (UERJ). Tanto as obras de Carine Caz quanto as de Alice A artista, após cobrir sua nudez pelo tecer uma Ferraro tensionam materiais que costumam esvestimenta de algodão doce, se dirige ao público tar atrelados à adequação do corpo da mulher e oferecendo os pedaços disso que a cobria. Lon- os subvertem numa direção contrária, de libertage de ser uma cena leve, lúdica, a performance é ção. Em Quedra Livre, Alice se utiliza do silicone, marcada por uma forte carga dramática, pela do- plástico comumente usado em cirurgias estéticas ação, destituição da docilidade que as mulheres, para modificação e aumento dos seios, e o usa desde meninas, são incentivadas a se cobrir. Rosa, para moldar peitos naturais de mulheres numa o algodão doce remete não só à feminilidade, mas escultura disforme e flácida que se derrete num a certa infantilidade imposta às mulheres, como banquinho, que no seu próprio movimento natuo dever de permanecer jovial, e as restrições de ral de queda parece desafiar a cultura vigente que assumir posições de comando e direção numa so- insinte em exigir sua rigidez eterna. Já em Moça ciedade que as vê como um ser menor. Fecha-se de Família, Carine se apropria de porcelanas tíaqui um relato parcial, uma amostra dessa expo- picas de uma mesa familiar tradicional e, usando sição plural, de trabalhos e temas diversos que uma tipografia oriunda das pichações dos muros foi o PEGA. da cidade, rabisca adjetivos atrelados ao compor-

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tamento esperados da mulher “do lar”. Seu gesto consiste numa profanação análoga àquela do pixo, que usa uma plataforma de opressão (muros/pratos) como suporte para expressão de si no mundo. O resultado é uma instalação que se suspende entre o peso dos enunciados pichados e a fragilidade da porcelana que parece quase não suportá-los, numa ironia equilibrista.

trabalho como “Parte do ciclo constante de trabalho realizado por mulheres - doméstico, estético, corpóreo. O corpo presente em casa, lares; o corpo enquanto moradia - as relações sexuais que permanecem e a carga atemporal que é contida como marcas nesses corpos.”

Fernando Rodrigues, estudante de Artes de Licenciatura em Educação Artística na EBA-UFRJ, As duas artistas estudam Artes Visuais na expôs um auto-retrato sem título que mostra EBA-UFRJ, e têm um projeto conjunto de expe- parte de uma pesquisa pessoal de identidade e riências performáticas e intervenções urbanas sexualidade, onde o artista aparece engolindo chamado Mina Preciosa. diversos alimentos fálicos. Fernando usa a fotografia como um espaço de investigação de si e de Antonio Amador, formado pela EBA-UFRJ e mes- seus desejos, num jogo de exposição e escondetrando em Estudos Contemporâneos das Artes rijo envolvido no gesto dúbio de engolir e de se no PPGCA/UFF, apresentou uma leitura perfor- retratar. mática de suas prescrições do Cuidados de si #6. Antonio trabalha usando sua rotina como mé- Essa amostragem do trabalho de estudantes de todo para elaboração de uma série de propostas Arte do Rio de Janeiro parece apontar tentativas que visam o cuidado consigo mesmo, pensando de dar conta da relação deles com suas urgências o corpo e suas condições biológicas, particular- e presenças num contexto precário que é o de mente sua relação com a diabetes. Nesta, ele estudar e pensar artes hoje por aqui. Uma procriou textos que emulam receituários médicos, dução que surge do estar no mundo de cada um, misturando a linguagem clínica com escritos de com suas complexidades e questões particulares, artistas e poetas, com prescrições de leitura e mas interligados por uma necessidade de lidar práticas para “atletas do coração” e a quem mais com os atravessamentos que moldam seus corinteressar interpretar suas dosagens no auxílio pos e identidades. do cuidar de si. Thiago Fernandes (UFRJ) Júlia Vita, estudante de Artes na UFF, apresentou seu Trabalho Doméstico na abertura do PEGA. O O PEGA vai muito além de uma seleção de obras trabalho consiste na lavagem das camisinhas que de estudantes de artes. Esta exposição reflete a Júlia coletou por alguns meses em suas relações pluralidade da produção artística contemporâsexuais. Depois de lavadas, as camisinhas foram nea e afirma a potência dos estudantes de graestendidas num varal. A performance se mostra duação. Revela seus anseios, suas angústias, amcomo parte de um processo, num movimento plifica suas vozes em um momento em que tanto de exteriorização do íntimo e manutenção das tentam calar os artistas e censurar instituições. marcas de relacionamentos que transparecem nos seus resquícios, no visual e no odor dos pre- A cidade como espaço plural, onde se afirmam servativos estendidos na corda. Ela descreve esse as diferenças, é um objeto de interesse de uma

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grande parcela dos artistas que integram a mostra. Como Analu Zimmer (UERJ), que em sua Deriva e coleta: mapeamento afetivo, traz à memória a ideia de “delírio ambulatório” de Hélio Oiticica. Zimmer se entrega ao acaso, se debruça sobre um mapa da cidade, que se encontra exposto no PEGA, e sobre ele lança três moedas, que formam um triângulo dentro do qual a artista encontra um bairro para realizar sua caminhada, entre eles: Santa Teresa, Fundão, Anchieta e Barra da Tijuca, quatro pontos totalmente diversos da cidade, escolhidos ao acaso, e de grande distância entre si. Suas singularidades são ilustradas através de objetos colhidos pela artista em sua caminhada, que são expostos em vitrines, ao lado de desenhos dos mesmos, como uma catalogação de sua coleta. Além dos objetos, as vitrines exibem pequenas fotografias espontâneas, que são conferidas pela artista apenas no ato da revelação. Uma chave, componentes eletrônicos, fragmentos de brinquedos, um pedaço de papel com um texto erótico manuscrito, objetos que foram de encontro à artista são exibidos fora de seu contexto original e resignificados pelo olhar do observador. Uma catalogação do imaginário da cidade também é realizada por Bárbara da Paz (UERJ), em Cidade Expressiva. A artista expõe um photobook de 11 páginas com imagens de cartazes e estênceis encontrados por ela em suas caminhadas. Bárbara explora o universo das imagens de rua e as estratégias populares de comunicação, onde se misturam anúncios publicitários, políticos e poéticos, alguns parcialmente rasgados e destruídos, mas que têm sua duração prolongada através do registro fotográfico da artista. A ideia de “delírio ambulatório” é retomada ainda por Pedro Ambrosoli (UFRJ), com a performance Cores Proibidas, onde o artista faz refe-

rência à performance homônima realizada pelo dançarino japonês Hijikata Tatsumi. Pedro sai do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica acompanhado por outros performers que vestem roupas cujas cores lhes agradam e refletem suas identidades. Após um “delírio ambulatório” pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, os artistas se encontram no Largo da Carioca, um dos pontos de maior movimentação de cidade, onde deitam-se no chão por alguns minutos, se opondo ao fluxo da massa que circula naquela região. Em seguida, os participantes se levantam e circulam pela praça em um ritmo acelerado, para então se unirem, formando uma massa corporal, explorando as maneiras de circular no espaço respeitando a individualidade de cada um. A ação segue para a Praça Tiradentes e é finalizada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Também no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Ana Alves (UERJ) se encontrou, ao longo da exposição, com pessoas em situação de rua, que convidou para se juntar a ela em um almoço dentro do espaço expositivo do PEGA. Não acredito que poderia catalogar 2 quentinhas no museu, porque sim como uma performance, ou um happening, ou nem mesmo como estética relacional. O que Ana Alves propõe é um momento de comunhão com uma pessoa, onde dividem a mesma sala, a mesma mesa, a mesma comida. Figuras comuns pelos arredores da Praça Tiradentes, porém invisibilizadas devido à banalidade como é encarada suas situações, adentram um espaço que, apesar de público e de livre acesso, os intimida. Um espaço onde a presença de seus corpos causa estranhamento, devido à atipicidade dessa situação. No entanto, a casualidade do encontro é reforçada pela ausência de registros, que se justifica por um cuidado de não se criar uma estetização da situação e uma objetificação de uma pessoa que foi convidada pela artista

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única e exclusivamente com o intuito de realizar uma refeição e de se ter um momento de convívio. Quem, por acaso, esteve na exposição durante o encontro, se deparou com duas pessoas almoçando sobre uma mesa de bar vermelha. Quem não presenciou o encontro (parcela em que eu, mesmo como curador, me incluo), observou no espaço expositivo apenas uma mesa com duas cadeiras, pratos, copos e talheres, os únicos vestígios do acontecimento. O universo das imagens de rua aparece mais uma vez no trabalho de Camilla Braga (UFRJ), Faixa de Divulgação, que consiste em uma faixa de ráfia, muito comum no subúrbio como uma estratégia de comunicação, onde a artista anuncia seus serviços de “performance, vídeoarte, instalação, fotografia e etc...”. Camilla Braga ironiza seu papel como artista inserida em um contexto capitalista onde seu trabalho torna-se uma mera mercadoria. No contexto do PEGA, podemos pensar ainda na artista em formação, que busca meios de ter seu trabalho reconhecido e de manter sua estabilidade financeira diante das dificuldades de encarar um circuito de difícil inserção e uma sociedade que enxerga sua profissão como apenas um hobby.

do trabalho de Agrippina resultaria em sua morte. A morte também é um elemento do trabalho de Mônica Coster (UFRJ), Mortalha. A artista expõe uma toalha de mesa ao lado de um texto escrito sobre a parede, que relata um fato sobre aquele objeto. Mônica conta que seu pai, enquanto fazia uma lista de compras, recebeu a notícia da morte de sua madrasta e acidentalmente largou a caneta sobre a mesa onde estava o tecido, deixando uma mancha de tinta sobre o mesmo. O pano manchado foi guardado pela artista, como uma lembrança daquela morte, assim como a caneta, que foi a mesma utilizada para escrever o texto que relata esta história sobre a parede do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Um objeto de pouca importância para a artista tornou-se um objeto afetivo e uma tentativa de captar o momento fugidio da morte. Em um diálogo com o ready-made duchampiano, Mônica Coster resignifica o pano de mesa ao inseri-lo em um espaço artístico e compartilha sua experiência com os visitantes da exposição. A mancha já havia indicado o fim do caráter utilitário do objeto e, consequentemente, a sua morte. A sua inserção na exposição, contudo, lhe dá outra vida, não mais utilitária, mas poética e simbólica.

Embora tenha tentado traçar elos entre os artisAgrippina Manhatan (UFRJ) também traz a fi- tas aqui citados, que fazem parte do grupo sob gura da artista como um produto. Seu trabalho, o qual estive responsável, como curador, duranComunhão, consiste em um perfume fabricado te o processo de produção desta exposição, não artesanalmente com o seu próprio sangue e ofe- se pode deixar de notar suas singularidades. O recido ao público da exposição. Além da referên- PEGA é composto por um grupo heterogêneo de cia à tradição cristã, Comunhão provoca reflexões artistas, de diversas origens, gêneros e camadas sobre autoria, uma vez que o sangue contém seu sociais, que refletem a diversidade existente nas DNA, e problematiza a fetichização da imagem universidades de arte do Rio de Janeiro. Mesmo da artista. Seria impossível não relacionar o tra- diante de greves, incêndios e outras tantas difibalho de Agrippina à famosa Merda de Artista, culdades, resistimos e nos unimos para mostrar de Piero Manzoni. No entanto, enquanto Manzoni quem somos nós e do que somos capazes. produziu uma série de 90 latas que supostamente conteriam suas fezes, a produção em larga escala

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Agrippina Manhattan Comunhão 2017 Agrippina R. Manhattan é graduanda pela Escola de Belas Artes da UFRJ em Artes Visuais e História da Arte. Oscila entre a produção teórica e a pratica. Dentre seus trabalhos investiga questões sobre identidade, gênero e corporeidades.

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Alan Muniz e Jean Carlos Azuos O quarto e as alegorias do afeto 2017 Alan Muniz, 26 anos, Maré-RJ. Técnico em Produção de Moda-FAETEC. Graduando em História da Arte-EBA/UFRJ. Artista @fatalnoafeto. Jean Carlos Azuos, 24 anos – RJ. Artista Visual e Educador. Bacharel em Artes Visuais (UERJ). Mestrando em Processos Artísticos Contemporâneos (UERJ).

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Alice Ferraro Queda Livre 2017 Estudante de Artes Visuais e Escultura, artista ativista carioca. Propaga mensagens visuais feministas em muros e vestimentas. Desenvolve uma pesquisa sobre o corpo abjeto e a feminilidade vaidosa criada pela sociedade contemporânea. Além da pesquisa acadêmica também é tatuadora e fundadora do brechó virtual @alteradassa de customização de roupas.

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Aline Meira Cru 2017 Me colocar como artista nesta busca constante é mover-se no sentido de compreensão do corpo, do corpo que transa com espaços, que dialoga. Colocar-se no corpo mundo, no trânsito da forma que transforma. A matéria da performance é vida e essa é minha busca: corpo, estética, política, gênero e cura; tudo que me move retira do eixo, do centro do todo. Desabitua e desmecaniza o meu ser inconstante no paralelo do tempo e espaço.

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Ana Alves 2 quentinhas no museu, porque sim 2017 Fez o curso de Licenciatura em Artes Plásticas pela UFRJ e atualmente é mestranda em Processos Artísticos Contemporâneos, junto ao Programa de Pós-graduação em Artes - PPGArtes /UERJ. Investiga práticas de apropriação e remix da imagem a partir de várias mídias, incluindo gravura, vídeo, instalação e desenho. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.

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Analu Zimmer Deriva e coleta: mapeamento afetivo 2017 Analu Zimmer nasceu em 1995 no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha. Graduanda em Bacharelado em Artes Visuais pela UERJ, a artista investiga o mapeamento afetivo do território urbano. Através da deriva e da coleta de objetos tece uma cartografia sensível do epaço e propõe um novo olhar acerca da realação pessoal com a cidade.

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Andréa Nasci Emaranhado de nós 2017 Nascida no Rio de Janeiro, Andréa Nasci (Andréa Nascimento dos Santos) é artista plástica e educadora formada em Educação Artística - Artes plásticas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pelos cursos livres que frequento na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Participou das exposições coletivas: Afroresistências (UFRJ), Corpo e Obra - Semana de Integração acadêmica (UFRJ), e Programa de Fundamentação / Parque Lage (trabalhos resultantes do Programa). Seu trabalho tem como base a construção de identidade(s) através de um processo poético, por muitas vezes fazendo alusão aos vários “eus” existentes em nós – seres inacabados, sempre envolvidos num processo de fazer-se, desfazer-se e refazer-se. É.

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Andreza Jorge e Simonne Alves Ao Vento 2017 Andreza Jorge, 29 anos, moradora do Complexo da Maré. Licenciada em Dança pela UFRJ, Mestranda em Relações Étnico Raciais pelo CEFET-RJ. Criadora do Projeto Mulheres Ao Vento. Negra, feminista, poeta e atuante em projetos sociais de base comunitária. Simonne Alves, 27 anos. Licenciada em Dança pela UFRJ. Criadora do Projeto Mulheres Ao Vento. Negra, feminista, bailarina, musicista e circense.

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Antonio Gonzaga Amador Cuidados de si #6 (prescrição) 2017 Mestrando em Estudos Contemporâneos das Artes PPGCA/UFF. Graduado em Pintura pela EBA/ UFRJ em 2013. Participei de cursos e oficinas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage entre 2012 e 2014. Integrei o Laboratório Contemporâneo para jovens artistas na Casa Daros, em parceria com o Instituto MESA e o Coletivo E em 2014. Cursei em 2016 o acompanhamento de processos artísticos no Saracvra - por Paula Borgui e Bianca Bernado. Dentre as exposições no qual participei destaca-se a 27° Mostra de Arte da Juventude (Ribeirão preto/SP), sendo um dos artistas premiados; o 35° salão Arte Pará - 2016 (Belém/PA), premiado como ‘Amador e Jr. Segurança Patrimonial LTDA.’; o salão Arte Londrina 4 - Alguns Desvios do corpo (Londrina/PR). Atualmente desenvolvo uma pesquisa artística sobre o corpo e minhas condições biológicas, em especial a patológica de possuir diabetes tipo 1, o comportamento metódico e a rotina.

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Barbara Bandini Ningen 2016 Bacharel em Artes Visuais pela UERJ – 2016.1. Bolsa de Iniciação Cientifica com o Projeto “Cinema em Cabo Verde” do Professor Jorge Cruz. Atualmente Bolsista no Ateliê de Cerâmica na UERJ. Participação no ENEARTE 2015 em Santa Maria-RS com a instalação “Distorção”. Exposição FORMA-AÇÂO 2015, Espaço Cultural És Uma Maluca. Participação no Grupo de Mulheres “O Círculo”. Tem desenvolvido trabalhos relacionado a memória e questões femininas.

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Bárbara da Paz Cidade expressiva 2017 Residente do Rio de Janeiro e nascida em 1984, Bárbara da Paz é graduada desde 2009 em Desenho Industrial, com habilitação em Programação Visual, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente trabalha como Programadora Visual na Universidade Federal Fluminense (UFF) e está cursando uma nova graduação em Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, desde meados deste ano, ingressou no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ, com interesse em realizar sua pesquisa acerca de questões que envolvem arte e rua.

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Bruna Mendez-Franco Queira Providenciar 2017 Bruna, 25 anos. Designer, completando os estudos em Comunicação Visual na UFRJ.

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Camilla Braga Faixa de Divulgação 2017 Camilla Braga é artista visual, moradora da Zona Norte do Rio de Janeiro, aluna da EBA-UFRJ e ex-aluna da Escola de Artes de Visuais do Parque Lage. Trabalha a partir de suas vivências na cidade, reposicionando símbolos cotidianos, criando diálogos entre o trabalho funcional e o circuito de arte do Rio de Janeiro.

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Carine Caz Moça de Família 2017 Carine Caz nasceu no Rio de Janeiro em 1994. Artista-pesquisadora, graduanda do curso de Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ), desenvolve uma pesquisa sobre a relação de indivíduos com os espaços público e privado com ênfase na vivência da mulher. É membro dos coletivos Tua Rua e Mina Preciosa.

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Cyanogaster Noctivaga Arte barata + Falência 2016 careavx. noctivaga pombagyra cyana. arte inútil, flopage, etc. trabalhos gráficos no amor. impressão barata. diagramo sua vida em 3 dias. freelancer. trabalho de camping em fenômenos urbanos, sobrevivendo na metrópole. artes práticas. investidas nas tormentas e fantasias que habitam o imaginário humano. situada no conflito diante as contradições que o século XXI deixa à mostra. nos pormenores das interações entre indivíduos, sua identificação e posicionamento diante da sociedade civil e o peso q ela deposita sobre seus assalariados e lúmpens.

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Daniele Noronha, Thaina Iná e Victor Oliveira Encontro de escrita coletiva 2017 Daniele Noronha é graduanda do Bacharelado em Dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente é intérprete-criadora da Companhia de Dança Contemporânea da UFRJ – Núcleo de Dança e Pesquisa Afro-brasileira (NUDAFRO) e assistente de direção da Portus Cia de Dança. Participou do Projeto Laboratório de Linguagens do Corpo (LALIC/UFRJ) onde atuou na criação do vídeo dança “Na altura dos meus olhos” selecionado para o Dança em Foco – edição 2016. Como sua autoria tem como criação o vídeo dança “Relações” selecionado para o 10° MIVSC Mostra Internacional de Videodança de São Carlos (UFSCAR) e para exposição “Plano de onde? Piloto de quê?” na Galeria Espaço Piloto do departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, no XX Encontro Nacional de Estudantes de Arte no Distrito Federal. Thaina Iná é graduanda de bacharelado em teoria da dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, atua como intérprete-criadora na companhia de dança Corpo Estranho, do departamento de Arte Corporal do curso. Pertenceu a primeira turma do núcleo de formação intensiva em dança da Escola Livre de Dança da Maré, da Oi Kabum! Escola de arte e tecnologia, cursando audiovisual, e do Laboratório de Arte Educação, também do Departamento de Arte corporal da UFRJ. Integrante-fundadora do coletivo Movimento Comporta, desenvolve ações dentro e fora da universidade investigando o corpo como ferramenta dançante e a dança como ferramenta corporal. Victor Oliveira é graduando em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atua como intérprete-bailarino da Companhia de Dança Contemporânea da UFRJ, sua trajetória se deu na investigação e criação em dança, através da pesquisa em linguagens coreográficas e simultaneamente debruçou seus estudos em Performance na Escola de Belas Artes da UFRJ. Os trabalhos mais recentes como: Missa do Corpo, Mycobacterium e Camélia, investigam questões de gênero, e a possibilidade de criar novos corpos alterando a própria imagem corporal.

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Fernando Rodrigues Sem título 2017 Graduando em Licenciatura em Educação Artística - Artes Plásticas, na Escola de Belas Artes - UFRJ.

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Flora Bulcão Algo tão doce 2017 É bailarina, coreógrafa e atriz. Preparadora corporal das peças Mulheres de Papel (Direção Felipe Valentim) e Clã das Lobas Andarilhas (Direção Isabel Sanche), a estrearem ainda em 2017, coreografou também duas temporadas e o filme da novela “Gaby Estrella” (canal Gloob). Foi intérpretecriadora da Cia. da Ideia (direção Sueli Guerra), dos grupos Contadores de Estórias (Paraty) e Cia. Jean Jacques Sanchez (FR/BR). Como atriz, frequentou a Escola de Teatro Martins Pena, o Atelier für Physisches Theater (Alemanha) e atuou no filme “O Ornitólogo”, de João Pedro Rodrigues (PT). Participou de cursos em escolas como P.A.R.T.S. (Bélgica), SNDO (Holanda), SEAD (Áustria) e Tanzfabrik (Alemanha). Estudou nas faculdades de dança Angel Vianna e UFRJ e está prestes a se formar em Artes Visuais na UERJ, onde pesquisa o corpo e seus desdobramentos artísticos. Formada no método Brincadeira de Angola, certificado pelo Instituto Brasileiro de Capoeira-Educação, ministra aulas de capoeira infantil em diversos espaçoS e vem desenvolvendo a técnica Dançapoeira, aliando elementos de capoeira com a dança contemporânea.

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Gabriel Fampa Cúmulo 2016-2017 Miniaturas 2017 27 anos, graduado em Ciências Sociais pela UFRJ, atualmente é mestrando em Linguagens Visuais, também pela UFRJ. Trabalha em diferentes vertentes. Seus principais interesses têm passado pelo vídeo, pela escrita e pela apropriação e ressignificação de objetos.

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Guido Lamim 3/1000 2017 Estuda artes visuais com ênfase em escultura na Escola de Belas Artes da UFRJ. Tem interesse em pesquisar corpo e cor na arte contemporânea.

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Jean Carlos Azuos Um abrigo. Um mar 2016 24 anos - RJ. Artista Visual e Educador. Bacharel em Artes Visuais (UERJ). Mestrando em Processos Artísticos Contemporâneos (UERJ).

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Júlia Vita Trabalho Doméstico 2017 Júlia Vita (1995) é artista e poeta nascida em Niterói, a cidade onde atualmente reside. Em prática, está com “Trabalho doméstico” desde o início de 2017 - processo performativo constante - e o “pesca.nºEu”, projeto poético de palavras e discurso de mídia. Possui trabalhos anteriores em audiovisual como “FOFA”, “Vermelho lábios” e “Nosso filme”, dentre outras ações envolvendo diferentes plataformas da imagem. Suas poesias podem ser lidas em revistas virtuais, no blog autoral Versoando e em seu próprio facebook, onde também dispara gestos artísticos.

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Laura Vainer exercícios para despoluir o amor_prática de leitura 2017 Artista em dança e escrita. Graduada em Licenciatura em Dança na UFRJ, atualmente em residência no c.e.m - centro em movimento (Lisboa/PT), a escutar o ensinar-aprender da dança em sua relação com práticas de criação.

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Luisa Marinho In: cuerpo 2017 Luisa Marinho (Rio de Janeiro) é artista e pesquisadora. Mestranda do Programa em Artes da Cena da ECO/UFRJ, atua nas encruzilhadas entre a performance e a escrita. Investiga políticas de memória para os saberes indígenas e diaspóricos através da preservação e difusão dos mitos e ritos de religiões brasileiras, em projetos como Desencanto (Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais 11ª Edição) e Ficções e Falsidades (Edital FAPERJ / SEC- RJ – Programa de Estímulo à Criação, Experimentação e Pesquisa Artística).

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Mariana Paraizo Cúmplice 2017 Mariana Paraizo performa sua existência cibernética como @sourcedotisa. Graduanda em Artes Visuais na UFRJ, com passagem pelo curso de Letras da PUC-Rio e EAV, concentra sua produção atualmente em ações performadas para vídeo, pesquisas plásticas relacionadas ao uso do papel e na escrita como pratica artística e na elaboração de objetos expositivos e intervenções.

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Marina Jerusalinsky Não trabalho: uma performance não vista 2017 Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1990. É artista, pesquisadora e educadora, graduada em Artes Visuais pela UFRGS (2013) e mestranda em Artes pela UERJ. Trabalha com arte de ação e projetos participativos, em que a palavra oral e escrita adquirem um papel central. Participou de exposições coletivas e uma individual, e recebeu dois prêmios de Destaque como pesquisadora no Salão da UFRGS. Também integra o coletivo Camará: Arte é Educação, desde 2016.

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Mateus A. Krustx Metamorfose 2017 Em sua produção, Mateus A. Krustx trabalha a partir de sua teoria da Automitologia, que afirma aceitação e a transformação do corpo do indivíduo como ferramenta de mudança, através da criação e afirmação da sua identidade. Entre seus trabalhos, podemos citar as séries “Licantropia” e “Fantasma”, ambas evidenciam a relação com seu corpo e sua sexualidade. A. Krustx, aborda com apuro temas de extrema complexidade e através de sua sensibilidade é capaz de fascinar até os espectadores mais impetuosos.

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Mônica Coster Mortalha 2017 Mônica Coster é artista e estuda Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Foi bolsista nos projetos de iniciação artística e científica A Biblioteca Experimental e A arte, a história e o museu em processo. Frequentou cursos livres na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e no Museu de Arte no Rio. Realizou intercâmbio de graduação na Universidade de Málaga, Espanha. Em 2017, fez sua primeira exposição individual Sem sinal, na Fábrica Bhering e participou de coletivas, tais como a V Bienal da EBA e Intervenções: Entre XIX e XXI, no Museu Nacional de Belas Artes.

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Nicolle Crys PRISÃO 2017 O meu trabalho se define como um não-lugar. Não tenho um eixo específico, mas posso dizer que dialogo com algumas linguagens: a fotografia, o desenho, a gravura, a construção na tridimensionalidade, a escrita, o som, o vídeo. Tenho algumas influências, mas gostaria que não fossem definidoras (pois podem mudar) poderia dizer o nome expressionismo. Fiz algumas performances, vendi poesia na rua, fiz alguns curtas e participei do projeto de música eletrônica Decadência Mode. Atualmente, estudo no curso de Belas Artes da UFRRJ, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e estou iniciando a Revista Conceptus.

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Paula Isabelle WAR ZONE 2017 Paula Isabelle é estudante de graduação em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bacharel em Comunicação social pela Universidade Federal Fluminense (2014). Atualmente, sua pesquisa artística se concentra em estudos acerca de questões que envolvem o corpo, expressão corporal, identidade, e relações sociais. A artista trabalha aliando as linguagens da fotografia e da pintura, dedicando-se, majoritariamente, ao emprego da técnica da aquarela.

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Pedro Ambrosoli Cores proibidas 2017 Concepção: Pedro Ambrosoli Performers: Allan Corsa, Daniela Cassinelli, Elilson, Felipe Barros, Guilherme Tarini, Leonardo Tavares, Luana Fonseca, Matheus Pinheiro, Mayara Velozo, Pedro Ambrosoli, Walla Capelobo, Zene Gatynha Martins Fotografias: Aline Beatriz de Souza, Rodrigo Pinheiro, Silvia Schiavone, Thainá Barcelos Pedro Ambrosoli é mestrando em História da Arte pela Alma Mater Studiorum - Università di Bologna, graduado em História da Arte pela UFRJ, curador e artista interdisciplinar. Se interessa em pesquisar imagens e corpos que escapam aos nomes e se movem através no tempo como anunciava Aby Warburg (1866-1929). Já expôs em coletivas e individuais no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Quadrienal de Praga 2015, Casa Daros e Instituto Cultural Gêrmanico de Niterói.

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Rodrigo Pinheiro SUGADOURO 2017 RALO-SUGADOURO 2017 Rodrigo Pinheiro, artista-pesquisador estudante do curso de graduação Artes Visuais na Escola de Belas Artes da UFRJ. Atualmente, sua pesquisa vem se desdobrando em proposições interativas a partir da criação de objetos e linguagem vídeo.

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Silvia Schiavone Hysterimental - Úteros Fragmentados 2017 Bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade do Rio de Janeiro (2017). Tem trabalhado principalmente com as articulações entre arte e manualidade, feminino e sagrado, rituais no fazer artístico e contingência, artesania e costura. Tem realizado trabalhos plásticos com foco no feminino e na poética relacional. Atualmente vem desenvolvendo uma pesquisa a respeito das doenças pélvicas, a iconografia do útero, e a inserção da mulher no espaço de arte.

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Thiago Ortiz BARRICADAS CORPORAIS I - Bloqueio por asfixia 2013 HABEAS CORPUS (que tenhas o teu corpo) 2013 Nascido no RJ, Thiago Ortiz tem 30 anos. Artista visual, é aluno da EBA/UFRJ e já frequentou cursos na EAv Parque Lage. Sua pesquisa artística percorre os caminhos da história do Brasil, tentando estabelecer um diálogo com a narrativa do país, no que tange aos processos políticos, culturais e religiosos. Sua poética de trabalho aborda questões sobre as religiões afro-brasileiras e também sobre as lacunas deixadas pela ditadura no Brasil.

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Vitor Canhamaque Máscara de Imersão 2017 Iniciou seus estudos em artes na EAV Parque Lage no ano de 2015 na experimentação da linguagem pintura e, em 2017, ingressa na Escola de Belas Artes da UFRRJ. Em um processo de reconexão com a essência do indivíduo, o artista imerge em uma densidade de azuis explorando dualidades inerentes a isso – meditação e inquietação, interno e externo. A angustia aqui traduzida sob a grafia dos olhos convida o visitante a explorar essas camadas de questionamentos, um concentrar em si.

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Yago Toscano Anti-Jardinagem 2017 Yago Toscano, nascido em Rio de Janeiro (BR). Yago Toscano é artista visual, curador, crítico, professor e pesquisador. Através de acontecimentos instalativos, fotografias, objetuais, esculturas e outros dispositivos-situações, o artista trata de relações entre arte, políticas públicas, commodities, produtos/produções da terra e transespecismo nas vias políticas, sociais e transdisciplinares.

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CRÍTICA

NOTAS SOBRE I PEGA João Paulo Ovídio As críticas sobre o I PEGA foram desenvolvidas e selecionadas de duas formas. A primeira, de João Paulo Ovídio, integrante da equipe da revista Desvio, que acompanhou todo o processo de elaboração e realização do I PEGA. As outras duas foram selecionadas mediante edital público para selecionar pessoas de fora do processo para escrevê-las.

O PEGA comprova os esforços do corpo editorial1 da Revista Desvio em ampliar os lugares de discussões, contemplando a priori obras e artigos de graduandos em Artes no Rio de Janeiro, mas sem excluir a participação de pós-graduandos e até mesmo pesquisadores independentes. Com essa iniciativa a Desvio é transportada do campo virtual para o físico, ocupa o espaço com sons e imagens, de ordem sensorial, evoca a participação dos agentes. O Encontro é o primeiro de muitos frutos a ser colhido – e publicado – o grande e ambicioso passo inicial, a luta por voz e vez, ação necessária em tempos difíceis.

vembro. Entretanto, os Encontros se diferenciam em seus objetivos, visto que o I PEGA preza em construir um evento com a participação de alunos de diferentes universidades, tanto na concepção quanto na organização do projeto. O Políticas Incendiárias, apesar de em ato solidário abraçar os irmãos da UERJ2, configura-se como Encontro da Pós-Graduação da UFRJ, indicando a grande anfitriã no título3. A organização de tal Encontro está centrada na mão de uma única instituição, porem a principal diferença com o I PEGA diz respeito ao engatinhar desse em relação à longa trajetória da primeira.

Na busca por construir uma integração entre as universidades cariocas, a proposta da 3ª edição da Desvio foi durante muito tempo o sonho dos estudantes, assim sendo, essa publicação possui caráter especial por transformar uma antiga ambição em uma ação concreta. Torna-se importante ressaltar que tal proposta é uma realidade há anos para os pós-graduandos em Artes, não sendo necessário se deslocar para longe na procura de exemplos, vide o XXI Encontro de Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ: Políticas Incendiárias, realizado concomitante ao I PEGA. Ambas as mostras ocorrem no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, inauguradas no dia 14 de outubro e com encerramento previsto para o dia 11 de no-

A diferença de vinte anos entre esses dois eventos permitem nos atentarmos para algumas questões, por exemplo, a pós-graduação é aclamada como lugar de pesquisa por excelência, ao passo que são pífias os incentivos de pesquisa na graduação. As jornadas de iniciação científica não contemplam as demandas e especificidades dos graduandos em Artes, o evento por englobar todos os cursos da universidade se torna genérico, impedindo um retorno consistente para os trabalhos apresentados. Em poucas palavras, as jornadas servem para cumprir protocolo, e nada mais. Diferente da pergunta sem resposta, O que veio antes: o ovo ou a galinha?, na ordem natural a graduação antecede a pós-graduação, sendo assim, por quê as universidades não se preocupam

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em construir integrações sólidas entre essas? É fundamental formar pesquisadores hábeis a dar continuidade aos seus estudos nos programas de pós-graduações. Reitero que tais afirmações são pautadas nos cursos de ensino superior de Artes visuais no Rio de Janeiro, pois careço de informações relativas à condição das instituições de outros estados, contudo acredito serem semelhante a nossa realidade, senão pior. Através da Plataforma de Emergência, programa de extensão do CMAHO, a revista Desvio lançou uma convocatória para reunir todos os interessados em colaborar na organização do evento. A primeira reunião, no dia 19 de junho às 17h30, serviu para definir a temática geral: a pureza é um mito, estruturar o edital e formulários de inscrição, delegar funções e estabelecer um calendário. Exatamente duas semanas depois foi lançada a chamada para o envio de propostas acadêmicas, comunicações livres e obras artísticas. Atribuo como diferencial a esse Encontro a iniciativa da comissão organizadora em ceder dias e horários para sanar as dúvidas dos candidatos, isto é, dispor de pessoas a fim de explicar passo a passo as normas do edital, visto que para muitos a submissão de trabalho era uma experiência inédita.

riormente citado, e a VI Bienal da Escola de Belas Artes da UFRJ5, ambos os encontros consolidados pela universidade. A título de curiosidade, os artistas Pedro Ambrosoli e Yago Toscano estão presentes tanto na exposição do I PEGA quanto na mostra organizada pelo PPGAV, portanto é possível contrapor as suas obras, tencionando relações e compreendo melhor a poética que as tangenciam. Outros artistas selecionados para o Encontro das graduações em Artes também fazem parte da VI Bienal, são eles: Alice Ferraro, Gabriel Fampa, Mariana Paraizo e Rodrigo Pinheiro. Tais artistas, com exceção de Fampa6, apresentam trabalhos diferentes na VI Bienal.

Possibilidades geram escolhas, e acredito que os envolvidos conseguiram transmitir a seriedade necessária para alcançar quantidade expressiva de inscrições. Deadline. Nenhuma outra alteração foi realizada no cronograma, consequentemente os co-curadores madrugaram com o propósito de gerar o parecer de todos os inscritos a tempo. No dia após o término das inscrições, a equipe se reuniu para debater quais propostas deveriam ser aceitas, aceitas com ressalvas ou recusadas. A conversa contribuiu para discutir cada proposta, distinguir a linha tênue entre algumas comunicações livres e performances, a reunião também foi útil para grifar as especificidades das obras, A comissão organizadora do Encontro da gra- se essas requeriam tomada, luz, parede, pedestal, duação resolveu estender o prazo das inscrições, etc. No edital constava uma lista de materiais e prorrogou o limite para o dia 21 de agosto, con- equipamentos de apoio disponíveis aos artistas, cedendo aos interessados mais uma semana. O no entanto, eles deveriam solicita-los no ato da Encontro da pós-graduação fez o mesmo, en- inscrição. Tal disponibilidade parte do interesse tretanto, esbanjaram generosidade ao alongar da comissão organizado em fornecer recursos o prazo por mais um mês. As propostas foram básicos para os proponentes, sobretudo àqueles enviadas para o I PEGA até o último minuto, e que carecem de equipamentos e dependem desem seis semanas o Encontro recebeu cerca de 80 ses para expor seus trabalhos. propostas dividas em três categorias4, tal número foi motivo de orgulho e comemoração em razão Foram classificados com ressalvas os artistas que da concorrência com o evento do PPGAV, ante- necessitavam de acompanhamento, uma conver-

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sa para melhor compreensão do trabalho, seja de ordem técnica ou poética. Algumas inscrições foram recusadas por apresentarem proposta confusa, não cumprirem as normas do edital e até mesmo por outras questões de viabilidade; em determinados casos optamos por selecionar uma proposta do artista, recusando as demais7. Recentemente assisti uma performance recusada no I PEGA, pude ter uma dimensão maior do trabalho, também serviu para comprovar a minha desconfiança da impossibilidade de realiza-la nas dependências do CMAHO. No cargo de assistente de produção da VI Bienal pude comparar as propostas entre as duas mostras, encontrar artistas recusados aqui sendo aceitos lá, e vice-versa, como também percebi as diferenças nos quesitos de avaliação adotados por uma comissão de seleção em relação a outra. Apesar da Bienal negar as seções rígidas de outrora, a comissão mantém a preocupação de contemplar alunos de diferentes cursos, graduandos e pós-graduandos, atitude que preza por afirmar a pluralidade da instituição e evitar hegemonias. No dia 01 de setembro, data de divulgação dos aprovados, os artistas foram divididos entre seis co-curadores8, os quais se responsabilizaram por fazer o acompanhamento crítico e articular as obras. A princípio a equipe de curadoria criou os seguintes eixos: corpo e violência, gêneros e sexualidades, memória e narrativa, instituição e profissão artista, e o espaço público. Tais contribuíram como ignição, pois durante o processo expográfico esses agrupamentos foram contaminados, ou seja, a mostra não apresenta as obras dentro de núcleos fechados, ao contrário, essas foram distribuídas na busca por relações e diálogos não estabelecidos previamente. O corpo editorial da Desvio, incluindo os novos colaboradores, encarregaram-se de revisar os artigos acadêmicos, os quais integram a presente edição

da revista. Também houve a preocupação de estabelecer uma curadoria com os textos, considerando as aproximações temáticas, materializadas nas mesas de comunicações dos três últimos dias do Encontro. A semana antecedente a abertura da exposição foi um período de grandes tensões, contudo o estresse gerou ensinamentos valiosos para todos os envolvidos com a montagem do I PEGA. Acredito ser necessário adotar postura mais rigorosa na próxima edição, visto que alguns participantes foram displicentes, desse modo certas conturbações podem ser evitadas. Aproveito essas linhas para manifestar o meu desapontamento, não com o Encontro, mas com os artistas que declararam impossibilidade de integrar a mostra praticamente as vésperas da abertura. Tal situação é bastante preocupante dado que são raros os centros culturais que acolhem os novos artistas, em especial os quais não partilham da ideia do curador-legimitador, quer dizer, dessa figura responsável por indicar quem é digno ou não de expor suas obras. Os desistentes, apesar de poucos, provocaram desfalques, sendo necessário repensar e adaptar, na medida do possível, o projeto expográfico. Os co-curadores mantiveram esforços para se comunicar com os artistas, portanto, a falta de satisfação sobre a participação ou qualquer postura semelhante demonstra mau-caratismo. Não se faz uma exposição coletiva “nas coxas”, pois cada trabalho merece uma atenção específica, e talvez falte essa consciência em algumas pessoas, as quais acreditam que estaremos sempre à disposição. A comissão organizadora estipulou uma data limite para a entrega das obras no CMAHO, entretanto alguns casos foguiram a regra, por exemplo, a intervenção Sugadouro9 de Rodrigo Pinheiro. Inicialmente o artista propôs expor somente o

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nhão sobre um totem, um frasco de perfume com líquido de coloração terrosa, o qual é composto por álcool, propilenoglicol, sangue e água deionizada. Diferente do perfume Fame de Lady Gaga, o qual sofreu rumores de ter em sua composição sangue e sêmen, Agrippina de fato dá o seu sangue pela arte. O título e a composição propicia analogia com a mitologia cristã, visto que Jesus Cristo doou seu corpo e sangue em ato de sacrifício, assim sendo a artista também convida o público a partilhar de sua essência. Estamos diante de uma obra que indaga ao público sobre a sua obseção com a produção artística, chegando aos níveis mais extremos, o do consumo da seiva do artista. Na última galeria, Cyanogaster estampa seus lambe-lambes, facilmente confundidos com anúncios publicitários encontrados nas ruas da cidade, e por meio desses propõe questionamenA mostra do I PEGA se inicia ainda do lado de tos sobre as condições de trabalho dos artistas, fora, acima da porta da galeria do 1º andar, com muitas vezes submetidos a ofertas ínfimas. a Faixa de divulgação de Camilla Braga. Gostaríamos de expor a obra na rua, mas não foi possível O dia da abertura contou com apresentação de por questão de autorização, além dos riscos de três performances. Não desfrutei da oportunidadanificação causados pela chuva e o vento. Ca- de de assistir a primeira, Encontro de escrita comilla apresenta como proposta uma faixa, onde letiva de Thaina Farias, Victor Oliveira e Daniele indica sua profissão, artista contemporânea, e Noronha, marcada para as 14h30. A proposta em oferece os serviços de performance, videoarte, questão sofreu diversas alterações até chegar ao instalação, fotografia, etc, práticas oriundas da seu formato atual, e não obstante da frase-discontemporaneidade. O etc dá brecha as mais di- positivo proposta pelo grupo de artistas: “Cartas versas interpretações, deixa implícita a técnica e marcam datas, mas nós perdemos as datas”, de dificulta as classificações da obra, vide o Salão da fato perdi a performance. Na primeira galeria, às Bússola (1969)10. A faixa de Camilla, dotada de 16h, Amador Gozanga Amador realizou a segunhumor, ao questionar o trabalho do artista, e a da apresentação da abertura do I PEGA, uma leimultiplicidade de seu fazer, a aloca no hall dos tura performática de prescrições antes poéticas artistas-etc. Faixa de divulgação dialoga com Co- do que médicas. Amador inscreveu somente a comunhão de Agrippina R. Manhattan e Arte Ba- municação livre, e semelhante ao caso de Rodrirata + Falência de Cyanogaster Noctivaga, pois go Pinheiro, convidamos o artista a expor os Cuia obra desses três artistas tangem a questão da dados de si #6 (prescrição). Só após ver Amador profissão artista. em cena percebi o erro de não termos proposto o mesmo convite para Jandir Jr., posto que os dois Dentro da primeira galeria encontramos Comu- são parceiros na série Amador e Jr. Segurança Pavídeo, mas devido o caráter interativo da obra, a comissão entrou em consenso e o convidou para intervir na galeria. Por causa da condição perecível da intervenção o artista se responsabilizou em monta-la no dia da abertura do I PEGA. Ao entrar na galeria o visitante depara-se com o aviso: experimentar descalço, sendo convidado pelo artista para pisar no Sugadouro. Uma chapa de papelão retangular revestida com fita isolante, a face da cola encontra-se exposta ao toque, o pé que pisa na obra se sensibiliza e se contamina. Parafraseando Heráclito, o visitante ao retornar a mesma obra, nem a obra é a mesma obra, nem o visitante é o mesmo visitante. O desgaste pelo tempo fará de Sugadouro até o final da exposição outra obra, logo o visitante gozará de uma nova experiência.

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trimonial LTDA11. De qualquer modo, no dia 09 de novembro, primeira data das comunicações do I PEGA, esses dois artistas estão “escalados” para integrar a mesma mesa. Tal dupla também integra o eixo profissão artista.

público espontâneo do CMAHO. A mostra contou com artistas que construíram instalações para a realização da performance, outros que apresentaram registro do trabalho em outro local, e até mesmo os quais não estavam presentes no início da mostra e passaram a estar com os vestígios A terceira e última performance do dia ficou por da ação. Além da performance, alguns artistas conta de Júlia Vita com Trabalho doméstico, a solicitaram espaço para falar um pouco sobre a apresentação foi registrada por João Arthur e se obra e o processo de pesquisa. O Encontro, desse encontra disponível no facebook da artista12. Jú- modo, conseguiu articular pesquisadores e artislia iniciou a performance em silêncio e terminou tas, exemplificado em sua programação de ensem proferir uma palavra sequer, o espectador cerramento, onde será possível compartilhar os foi alocado na posição de voyeur, pois a artista desafios da escrita e do fazer, ou melhor, o pensar não estabeleceu contato visual em nenhum mo- arte de modo crítico. mento, concentrou-se unicamente em realizar o trabalho. O adjetivo doméstico se refere ao am- O I PEGA, de modo geral, pode ser considerada biente do lar, ou a qualidade de mansidão, ser do- uma mostra de sucesso, seja pelo retorno dos comesticado, ao passo que o substantivo cumpre a legas e profissionais em História da Arte, ou pelo função de nomear o sujeito que presta serviço ao número de visitantes e publicações nas redes solar. A artista incorpora os múltiplos significados ciais, o importante é a abertura para discussões dessa palavra ao exercer o Trabalho doméstico, e a visibilidade alcançada. É necessário produzir lava e enxagua as camisinhas na busca por puri- ajustes para a próxima edição, quando será posficação, e no varal as estende e deixa secar com sível criar contraposições e verificar os acertos o tempo. Tal material foi exposto como registro e equívocos desse projeto. Estar na comissão do da performance, vestígio de sexo anterior aquela evento me permitiu uma compreensão maior das ação, não sendo possível afirmar troca de afetos demandas de elaboração e montagem de exposientre a performer e o parceiro, temos somente a ção, tal como também pude conhecer novos arcerteza que o ato foi consumado. Como um diá- tistas, ficar a par da produção desenvolvida nos rio aberto, a artista constrói uma imagem onde obscuros ateliers das universidades, pois são raas interpretações variam entre a narrativa de in- ros os momentos em que esses encontram a luz. tenso desejo carnal ou exploração sexual. Esperamos, no plural, pois não falo só por mim, mas por toda equipe editorial da revista Desvio, Além das performances na abertura da mostra, que o I PEGA sirva como vitrine, espaço de divulo I PEGA contou com apresentações ao longo de gação os novos artistas cariocas, os quais espequatros semanas, sobretudo no que diz respeito ramos reencontrar nas vias do cenário artístico aos três últimos dias da mostra – 09, 10 e 11 de carioca. novembro – coincidindo com as datas da programação das comunicações livres e acadêmicas. O Encontro se propôs a divulgar as atividades, no entanto, alguns performers optaram por trabalhar com o imprevisto, apresentar a ação para o

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NOTAS 1 Daniele Machado, Gabriela Lúcio, João Paulo Ovidio e Thiago Fernandes. 2 Mostra Panelas de pressão com curadoria de Fernanda Pequeno. 3 O Encontro do PPGAV é organizado por alunos da UFRJ, porém acolhem propostas de pesquisadores de outras unidades. E apesar dos Programas de Pós-graduações em Artes possuírem seus próprios encontros, desde 2010 ocorre bienalmente o PPGA – Encontro de Pesquisadores dos Programas de Pós-graduação em Artes Visuais do Estado do Rio de Janeiro, o qual é organizado pelo PPGAV/UFRJ, PPGCA/UFF e PPGArtes/ UERJ. 4 O encontro recebeu 6 comunicações livres, 14 artigos acadêmicos e 59 obras artísticas. 5 A inauguração da VI Bienal da EBA está marcada para o dia 17 de novembro, no Museu Nacional de Belas Artes, uma semana após o encerramento do I PEGA. O tema escolhido para mostra foi Reflexos. 6 Gabriel Fampa expõe no I PEGA a obra Miniatura (2017) e cúmulo (2017), no entanto, somente a primeira foi aceita na VI Bienal. 7 Os artistas Gabriel Fampa e Thiago Ortiz são os únicos a participar da exposição com duas obras. 8 Co-curadores: Ana Noronha (UFRJ), Ana Pimenta (UFF), Daniele Machado (UFF), Felipe Amancio (PUC), Pedro Pessanha (UFF) e Thiago Fernandes (UFRJ). 9 Rodrigo Pinheiro. SUGADOURO. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hgWwgzl8o84>. Acesso em: 15 out. 2017 10 No regulamento do Salão da Bússola constava que os artistas poderiam inscrever as obras nas categorias de desenho, escultura, objeto etc. Muitos artistas optaram por inscrever o trabalho como etc, e tal episódio ficou conhecido pejorativamente como Salão dos Etc.

11 A dupla se veste com traje formal, uniforme padrão para seguranças institucionais, a fim de causar estranheza ao público com as atividades performáticas, as quais são inesperadas visto que diferem das funções associadas a tal figura. Júlia Vita. Trabalho Doméstico. Disponível em: <https://www.facebook.com/julia.vita.98/ posts/1562342600495922> Acesso em: 17 out. 2017.

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CRÍTICA

ÚLTEROS HISTÉRICOS Adeilma Costa Ao visitar a exposição do 1º PEGA – Encontro de Estudantes de Graduação em Artes do Estado do RJ, o público se depara com uma cama forrada com um lençol branco na última sala de visitação. Esse leito passaria despercebido facilmente por um visitante distraído que passa em média de 15 a 20 segundos em frente a um trabalho artístico. O que tem de diferente numa cama de solteiro forrada com um lençol branco? Olhando mais uma vez percebemos uma estampa bem peculiar em um tom terroso: úteros estampados por todo o tecido branco. O lençol estampado com as silhuetas de úteros faz parte do trabalho “Hysterimental – úteros Fragmentados” de Silvia Schiavone. A palavra Hysterimental vem de Hysterical que pode ser traduzido como histérico. Úteros histéricos fazem alusão à Era Vitoriana, século XIX, na qual as mulheres desviavam seu comportamento da normalidade subserviência esperada por uma sociedade conservadora, eram tratadas como doentes histéricas. Para acalmar a irritabilidade feminina proveniente das frustrações sexuais ocasionadas por maridos que não conheciam o corpo de suas mulheres, foram inventados os vibradores para combater a histeria feminina. Não foi porque os médicos eram preocupados com prazer e bem-estar das mulheres. Pelo contrário, os homens acreditavam que as mulheres não eram capazes de sentir prazer em suas relações sexuais. Os doutores alegavam que se cansavam muito tratando essas mulheres ditas histéricas e a necessidade fez com que os vibradores fossem inventados para poupar as energias deles no tratamento nos consultórios médicos. Os orgasmos

das mulheres eram chamados de paroxismos pelos médicos vitorianos. Além de curar “a histeria”, o aparelho servia como estímulo para as mulheres engravidarem. Porém, para o inventor do dispositivo, o médico Isaac Baker tinha seus efeitos colaterais: Baker argumentava que a manipulação profissional do clitóris curava a histeria, mas isso só piorava o problema, porque as mulheres continuavam voltando, cada vez mais frequentemente, para receber tratamento. Para ele, a única solução eficaz era a retirada cirúrgica do clitóris1. Se a mulher tivesse gostando de usar o vibrador era porque não estava servindo ao propósito de cura da histeria. O que na verdade não era doença, era apenas a ignorância de uma sociedade machista e retrógrada que enxergava a mulher como uma reprodutora da espécie humana que deveria ser domesticada, recatada e do lar. Aliás, a retirada do clitóris é uma prática bastante comum na África: A clitoridectomia, como é chamada, é um ritual de passagem, ou iniciação, praticado na África, Oriente Médio e sudeste asiático há 2000 anos. (...) e os povos que fazem a clitoridectomia acreditam que ela ajuda a manter a virgindade das solteiras. Além disso, reforçaria a identidade do grupo2. Analisando o design da estampa dos úteros do trabalho de Silvia Schiavone em tom marrom, nos remete aos mitos dos nativos americanos da

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Terra como um útero no qual a vida nasce fertilizada pela chuva surgindo do seu interior os seres vivos. Após a morte retornam para mesma terra que os gerou para renascer em outra forma. Gaia, Geia ou Gé é a personificação para Mãe-Terra ou mãe-natureza e deusa primordial que surgiu do caos e do nada gerando os titãs, ciclopes e titânides com sua união com Urano, seu filho.

seu corpo frágil. Apesar de todas as dores que ela teve que conviver durante a sua vida, soube mostrar a sua fortaleza interior através de suas pinturas. Nesta pintura, ela manifesta o seu luto pela perda de seu filho. Vemos uma linha vermelha como uma artéria que liga vários elementos que compõe o quadro de tristeza de Frida: o feto do filho abortado, a bacia onde fica o útero vazio, a coluna cervical, um caracol que se arrasta para Gaia é a personificação do antigo poder se locomover, uma flor e um autoclave. Além da matriarcal das antigas cultura Indo-Euro- cama com lençol branco que pode simbolizar o péias. É a Grande Mãe que dá e tira, que vazio e o luto. nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes3.

A cor branca do lençol estampado pode evocar a ideia de pureza imaculada, virtude e inocência. O branco é a cor da novidade, do começo, do vazio e do silêncio. É também chamada de “cor da luz” porque reflete todas as cores do espectro. A cor branca reflete todos os raios luminosos proporcionando uma clareza total, sugerindo uma libertação, que ilumina o lado espiritual e restabelece o equilíbrio interior.

Hysterimental – úteros Fragmentados” de Silvia Schiavone (2017). Foto da autora.

O branco é símbolo da paz, da espiritualidade, da inocência e da virgindade. Na cultura ocidental a cor branca está associada à alegria, enquanto no oriente está associada à morte, ao luto e à tristeza4. “Hospital Henry Ford ou Cama Voadora”, Frida Kahlo (1932).

Uma das pinturas mais viscerais de Frida Kahlo: Hospital Henry Ford ou Cama Voadora (1932) mostra a artista marcada por uma vida de sofri- Há semelhanças entre “Hospital Henry Ford ou mento devido a sucessivas tragédias em sua vida Cama Voadora” de Frida Kahlo e “Hysterimene a impossibilidade de gerar filhos por causa de tal – úteros Fragmentados” de Silvia Schiavone,

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entre elas estão: a cama vazia pelo luto da perda de um filho e o vazio pela ausência física de alguém na cama hysterimental; o desenho da bacia vazia de Frida sem o útero se relaciona com os úteros que se repetem ao longo do lençol; a cama do hospital está sobre uma paisagem urbana sem vegetação e o tom terroso dos úteros estampados no lençol onde não há vida sendo gerada. Em ambos os trabalhos há úteros histéricos. Úteros que gritam que clamam por algo além das vontades alheias e que repetem seus desejos para serem ouvidos. Pedem por liberdade de expressar seus sentimentos mais profundos sem ser importar com a censura da sociedade. O empoderamento dos úteros fragmentados pela histeria do mundo misógino.

NOTAS 1 https://eravitoriana.wordpress. com/2016/02/10/histeria-o-orgasmo-femininoe-a-estranha-invencao-dos-vibradores-noseculo-xix. Acesso: 28/10/2017. 2 https://super.abril.com.br/saude/a-retiradado-clitoris-e-comum-na-africa/ Acesso: 28/10/2017. 3 http://aslendasdamitologiagrecoroma. blogspot.com.br/2009/04/gaia.html Acesso: 28/10/2017 4 https://www.significados.com.br/cor-branca/ Acesso: 28/10/2017. 5 https://www.artsy.net/article/artsy-editorialthe-traditional-mexican-votive-paintings-thatinspired-frida-kahlo Acesso: 28/10/2017.

Referências Adeilma Costa é artista visual. Graduanda em licenciatura em Artes Visuais pela UERJ. Ad Costa (nome artístico) seguia outra carreira como pedagoga formada pela UERJ antes de iniciar a faculdade de artes visuais. Aquarela possibilitou novas possibilidades artísticas, no entanto o ingresso à faculdade em Artes Visuais ampliou seu repertório imagético culminando na produção de objetos artísticos com cunho político e social. Fez exposições coletivas no Rio de Janeiro pela COART-UERJ em 2016, “A Exposição” com Coletivo Forja no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo em Santa Teresa, cidade do Rio de Janeiro. Mostras COART 2014.1 e 2014.2 junto com o Coletivo Aquarelas Cariocas. Sua última exposição coletiva foi no evento “Olha Geral” em 2017 também pela COART- Uerj. https://adeilmacosta.blogspot.com.br adeilmacasado@yahoo.com.br.

Kathleen, Martin. Rosennberg, Ami. O Livro dos Símbolos: Reflexões sobre imagens arquetípicas. Ed. Taschen, 2010. Oxford University Press 2007. Dicionário Escolar Oxford Português-inglês. Inglês- Português. Edição atualizada de acordo com novo acordo ortográfico 2015.

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CRÍTICA

Thales Valoura Prazer, eu sou a mudança.

Museu, travestido logicamente de frases e palavras mais prazerosas. Meu nome dá medo, eu entendo.

Dizem por aí que gosto de romper com as tradições dadas pela sociedade de cada época, de me juntar às vezes com certas teorias e programas Meu nome dá tanto medo que em pleno século políticos e chutar baldes cheio d’água para tudo XXI estou sendo acusada de humilhar os bons transbordar. Sim, tudo verdade. costumes da família, e de dar voz à pedofilia, à zoofilia e a outras “ilias”. Veja só! As múltiplas Nos momentos de tensão, surjo para abrir novas manifestações artísticas, trazendo os problemas portas. Nos momentos de escuridão, para dar es- sociais à tona, estão sendo questionadas. Logo perança. Nos de esperança, movimento. nos séculos em que juntei forças com a arte contemporânea para descontruir os padrões euroFaço. Refaço. Esperansiono. Destensiono. Ajudo peus de “belas artes”. Que desprogresso! Estua mover. Crio. dantes de artes tendo que revisitar discussões de 50 anos atrás, não como algo já superado e Dou chance a novas ideias. Quebra de paradig- avançado, mas novamente somando forças para mas, preconceitos, construções. Desconstruo. Ou seguir com nossos diversificados desejos e quespelo menos tento. tionamentos. Tento. Tento com outros. Tento com outras. Tento. Há 50 anos no Brasil, em meio a politicagem barata e repressões nada baratas, me juntei aos artistas. Cantando Domingo no Parque com Gilberto Gil e os Mutantes no Festival da Canção, fazendo Terra em Transe com Glauber, estive presente no afã de ajudá-los a respirar num ar poluído de conservadorismo. Estar num Museu de Arte Moderna, tão impregnado de “ismos” europeus, questionando o modo de fazer arte junto com Oiticica foi tão prazeroso quanto estar na primeira greve geral do Brasil com as mulheres há 100 anos. Hélio Oiticica (e outros organizadores) lançou meu nome nas grandes paredes do

Ao mesmo tempo fico feliz de poder estar com os homens para (re)questionar. Ainda mais feliz de agora poder estar junto com mulheres, gays, trans, negras/os, junto com a margem. Olha eu me juntando com novos corpos, novas vozes, novos olhares, novas manifestações artísticas. Olha eu. Olha nós. Na exposição do segundo andar do Centro Municipal Hélio Oiticica estamos todos lá olhando e sendo olhados. Quem disse que não se pode ter toalha de mesa pendurada em uma parede de museu? Nem uma mesa de plástico e muito menos pichações? Mais mulheres artistas expondo sim, mais arte contemporânea sim, mais questionamentos levantados também – Olhando.

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Uma cama arrumada é arte onde? Camisinha pendurada num varal? Sério? Um bololô de fios juntos? Uma placa cheia de cola quente? Até eu faço isso! Ai, quantas feministas, quanto mimimi. Tá tudo legal, mas senti falta de mais pintura e esculturas – Sendo olhado. Todavia, contudo, entretanto, apesar de obras com conteúdo erótico estarem expostas atrás de uma cortina com classificação indicativa, cumprindo regras, a exposição escancara todas as portas possíveis fechadas para a tal liberdade de expressão. Uma pena alguns museus hoje em dia ainda forçarem a barra com sua não acessibilidade, seus lugares de privilégios branco-ocidentais, essa posição áurea de não receber críticas. Assim, exposições como o I PEGA - Encontro de Estudantes de Graduações em Artes do Estado do Rio de Janeiro são vistas, muita das vezes, apenas por seus pares, chegando a ser não entendida por alguns e até criticada por outros tantos. Será que tenho que me fazer mais presente? Mas mesmo assim estou lá: estou com a presença maciça de fios em algumas obras, sendo eles para costurar, demarcar espaços ausentes, para virar um varal ou apenas para se misturar com outros fios e formar uma bola. Estou questionando problemas sociais com pichações em pratos de louças, na colcha da cama toda pintada com a genitália feminina, em lambe-lambes. Estou em outras formas de escrita, outras formas de apresentar textos, outras formas de ouvir os outros. Nas miniaturas, nas plantas a serem regadas, em receitas médicas e perfumes.

presente há 50 anos e ganharam outras forças e formas hoje. Estive tanto lá, quanto estou nesta exposição. Estou aqui também nestas linhas, desconstruindo formas acadêmicas de escrita. A meu ver, acredito que meu dever tanto em 1967 como em 2017, com tanta força e carinho, é reconhecer que não estou sozinha: Obrigada artistas por levarem nosso objetivo comum para além de nossos pensamentos. Obrigada arte por me deixar ser quem eu sou e me propagar em seus lugares de comunicação. Estou sim na cabeça de muitos, mas estar num ambiente onde todos me almejam não há preço! Obrigada novos ventos, novos ares, novas energias. Ah! Querem saber mais de mim? Procurem conversar com os estudantes que (se) expuseram na primeira mostra de graduandos do Rio de Janeiro.

Thales Valoura, 24 anos, trabalha na Escola de Belas Artes da UFRJ há 4 e faz graduação em História da Arte na mesma Universidade. Frequentador assíduo desde pequeno de exposições, teatros e salas de cinema, atualmente escreve sobre teatro para o site rotacult.

As diferentes formas de expressão das obras nesta exposição muito conversam com a parede vermelha de Oiticica em 1967. Novas maneiras de pensar e de se estar num mundo se fizeram

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Artigo

INTERSEMIOSE NA DITADURA: POESIA > VISUALIDADE < REPRESSÃO ESTUDO DE CASO: EXPOESIAS Adriana Fernandes Em pleno período repressivo da ditadura militar, as artes passavam por um processo de autoquestionamento quanto à forma e ao conteúdo. Os artistas em geral buscavam novos meios de expressão utilizando a hibridização de linguagens. Alguns eventos, como as Expoesias, foram oportunidades para abrir o diálogo entre as mais diversas produções pelo país e pelo mundo. Palavras-chave: Expoesias; ditadura militar; poesia visual; intersemiose. Introdução

À frente da iniciativa do Departamento de Letras e Artes da PUC estava Affonso Romano de No dia 24 de setembro de 1973, o colunista Zózi- Sant’Anna, poeta, professor e crítico literário. A mo em seu espaço no Jornal do Brasil informava, Expoesia II aconteceu em Curitiba e a Expoesia sob o título “Expoesia”: III em Nova Friburgo (RJ).

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A Expoesia I, a ser montada na PUC a partir de 22 de outubro, coletando material relativo à poesia sonora, visual e escrita, terá também uma seção de debates sobre cada um dos grupos atuantes dentro da poesia brasileira.

A idéia era realizar uma mostra da produção poética nacional para pesquisa de pós-graduação em Literatura na PUC-Rio.

A resposta dos poetas dos mais variados estilos e “escolas” ultrapassou os limites de uma mostra, transformando-se num ‘acontecimento’ na meA parte da poesia Neoconcreta será dida em que foi entendido como um questionacoordenada por Roberto Pontual; poesia mento à Ditadura, em plena fase de consolidação. Praxis, por Mário Chamie; poema Processo, por Moacy Cirne; e a poesia Undergrá- Para além desses limites, a experiência das Expolia, por Reinaldo Jardim. esias abre a possibilidade de se pensar os eventos nos termos de um processo intersemiótico, tal Como prévia da Expoesia I, o Depar- como pensado por Kothe (1981) e Plaza (2003). O tamento de Letras e Artes da PUC abrirá que permite pensar as Expoesias nesses termos dentro de uma semana a Exposição de é a ênfase na visualidade, apontando na prática Poesia Concreta Alemã, com o patrocínio, uma tendência a hibridação/ hibridização das também, do Instituto Goethe. linguagens artísticas.

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O presente trabalho pretender tratar desta temática, com o objetivo de compreender as Expoesias como uma possível experiência no campo da intersemiose, perguntando-se, porém, sobre a consciência efetiva dos poetas/artistas e se eles assumiam tal perspectiva estética.

cando o interlocutor (o público) numa posição de identificação e estranhamento dentro desse contexto. Possibilitando, assim, novas interpretações sobre os fatos. Ainda em Plaza (op. cit., 2003, pág. 217): A Tradução Intersemiótica de cunho poético pode ser contextualizada de duas formas: primeira, face ao contexto da contemporaneidade da arte, isto é, como política; segunda, como prática artística dentro dessa contemporaneidade, isto é, como poética.

Arte e Intersemiose

A tradução intersemiótica é a expressão de signos de um meio para outro. Roman Jakobson foi um dos primeiros estudiosos que delinearam o conceito de intersemiótica, classificando as traduções em três formatos: intralingual (transcrição de um texto em outros signos dentro de uma O semioticista Flávio Kothe, ao abordar a questão mesma língua); interlingual (a tradução propria- em seu livro Literaturas e Sistemas Intersemiótimente dita); e a intersemiótica (a transmutação cos, nos traz uma interessante declaração: de dados em outros signos de planos diferentes). A poesia não é apenas oscilação entre som Segundo Jakobson, a tradução intersemiótica e sentido (como afirmou Valéry), mas som “consiste na interpretação dos signos verbais por e sentido se configuram nela em função do meio de sistemas de signos não verbais’, ou ‘de silêncio que os permeia e contra o qual se um sistema de signos para outro, por exemplo, afirma. (KOTHE, 1981, pág. 06). da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura’, ou vice-versa” (PLAZA, 2003, pág. 12). O pensamento ou ideia, para ser comunicado, necessita ser traduzido em signo. O signo é uma mediação comunicativa entre seres sociais, e como tal, sujeito à interpretação e compreensão do receptor. Plaza (2003, pág. 20), citando Maria Lúcia Santaella, nos coloca que: “o símbolo é inevitavelmente incompleto. Sua ação própria é a de crescer, desenvolvendo-se num outro signo”.

Fig.1: RICHER, Gerard; October 18, 1977: Baadr-Meinhof series, Confrontation 1 and 2, 1988. Óleo sobre tela. Série baseada em fotografias de membros da facção terrorista Red Army: sua captura, prisão e morte.

Na arte, a tradução intersemiótica atua como forma de diálogo e transição das questões sociais e A título de ilustração citamos as obras de Richter políticas para um novo campo signíco, ao des-re- (Fig.1) e Don Delillo sobre a experiência trágica contruir a memória relativa destes pontos, colo- do grupo Baader-Meinhoff. Richter, motivado

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por este caso, cria uma série de pinturas a partir Para falar das negações, temos, assim, de rede registros fotográficos dos membros do grupo tornar ao campo da tradução intersemiótica tal considerado terrorista: as prisões e mortes. como foi praticado no passado, mais claramente no Brasil, no que tange à poesia, na segunda meJá Don Delillo retoma o assunto e escreve um tade do século XX. Nesse sentido, Plaza destaca a conto com o mesmo título (2002) tomando a ex- Poesia Concreta, os fenômenos de multimídia e posição dos trabalhos do artista como pano de intermídia como formas precursoras da tradução fundo. intersemiótica que, contudo, não se confundem com ela. Em suas palavras, são mais: No Brasil, há uma referência importante na obra “Primeiro de Abril”, no campo da literatura, de ...fenômenos de interação semiótica entre Salim Miguel (1994), na qual o autor recria, por as diversas linguagens, a colagem, a monmeio da ficcionalização, a experiência da própria tagem, a interferência, as apropriações, prisão nos primeiros dias do Golpe Militar de 64. integrações, fusões e re-fluxos interlinOutro exemplo encontra-se no artigo de Nina guagens [que] dizem respeito às relações Velasco (2007) a respeito do trabalho da artista tradutoras intersemióticas mas não se visual Rosangela Rennó, na série Vulgo, realizada confundem com elas. Trazem, por assim com base em imagens de uma penitenciária. dizer, o gérmen dessas relações, mas não as realizam, via de regra, intencionalmente. Nessa medida, para nós, o fenômeno da TI estaria na linha de continuidade desses processos artísticos, distinguindo-se eles, porém, pela atividade intencional e explícita de tradução. (PLAZA, id., p. 12)

Interessa-nos, para examinar a experiência das Expoesias, situar a posição de Julio Plaza que, ao assumir a tradução de cunho intersemiótico como forma de arte e prática artística medular da contemporaneidade (PLAZA, 2003, pág. 217), destaca o caráter crítico desta no período anterior, na segunda metade do século XX, quando Eis aqui a base de uma hipótese para orientar a a arte era marcada pelos seus “poderes de ne- nossa reflexão acerca da experiência das Expoegação”. A propósito, cita Octavio Paz (Hijos Del sias. Neste sentido, vale perguntar se tal experiLimo, 1974) que aqui transcrevemos: ência, acontecida no Brasil no ano de 1973, traz a intencionalidade da tradução intersemiótica nos Hoje somos testemunhas de outra muta- termos acima formulados por Julio Plaza. ção: a arte moderna começa a perder seus poderes de negação. Já faz anos que suas As artes e a poesia na Ditadura Militar negações são repetições; a rebeldia convertida em procedimento, a crítica em retóri- No artigo “O fruto de um decênio” publicado no ca, a transgressão em cerimônia. A nega- Jornal de Brasil em 11 de outubro de 1973, Trisção deixou de ser criadora. Não digo que tão de Athayde (pseudônimo jornalístico de Alvivemos o fim da arte: vivemos o fim da ceu Amoroso Lima) pergunta-se qual o benefício idéia da arte moderna.” (PAZ, apud PLA- trazido pela “revolução de 64” (entenda-se, a insZA, 2003, p. 205-206) tituição da ditadura militar) e responde que, apesar do relativo progresso econômico e absoluto

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regresso político, notável fora a ressurreição do interesse pela poesia ocorrida no período. Ressurreição com a força de provocar a criação, pelo JB, do suplemento mensal Jornal da Poesia, em contraponto aos demais “territórios intelectuais”, que, no ambiente de vigilância repressiva, deixavam a produção ficcional, a crítica, a historiografia e mesmo o jornalismo a permanecer nas gavetas de editores ou diretores. Alega que a “revolução” arrancou a poesia do esgotamento em que se encontrava, expressando-se de modo novo.

O que havia de novo na poesia era a sua visualidade, uma tendência que, contudo, estava em curso nos anos das décadas anteriores, em apresentar suas criações em configuração visual para além da escrita. Tomando a composição estética como associação ao sistema literário, movimentos ganharam corpo e forma. Mais exatamente no movimento concretista em fins dos anos 50 sob a iniciativa dos irmãos Campos em São Paulo que já apontava a expressão da literatura com a preocupação da forma visual. No Rio, o movimento Neoconcretista aceitava o pressuposto da Na verdade, a novidade advém de um contexto abstração defendido pelos concretistas, mas rerepressivo marcado pelo silenciamento completo cusava a pura racionalidade; queria uma abstrada oposição política, instaurada a partir do Ato ção sensível. Os Bichos, de Lygia Clark, série de Institucional no. 5, de 13 de dezembro de 1968 esculturas de formas mutáveis inspiravam-se na (STOTZ, 1986). Sonia Virgínia Moreira destaca, poesia de Ferreira Gullar: como a próprio nas palavras “marginal”, “alternativo”, “indepen- poeta lembra: “O primeiro ‘Bicho’, de Lygia dente”, “underground” e “artesanal” os diversos Clark, se inspirara no meu livro-poema ‘Fruta.” significados emprestados à experiência artística (GULLAR, entrevista de 2011) dos anos de maior fechamento político, ou seja, a década de 1970: Entretanto, o que há de novo vem com a vertente “marginal” que tem a influência da geração beat Ser alternativo no início da década de 1970 (Ginsberg, Kerouac e outros), trazida pelo poeta significava produzir fora da zona de in- Chacal, com a hibridização das formas de expresfluência direta do Estado ou à margem do são artísticas. Ele assim rememora a descoberta aparato industrial que cercava qualquer quando, em meio aqueles poetas todos circunsproduto antes e depois da sua entrada no pectos que assistia em Londres no ano de 1974, crescente mercado consumidor. As desco- aparece Ginsberg: bertas de novos caminhos acontecem simultaneamente mas sem a premeditação … com uma muleta, uma perna engessada, e envolvem grupos de poetas, músicos, aquela cara desgrenhada, senta-se à mesa atores, diretores de cinema e artistas pláse começa a falar as poesias dele, até que ticos, principalmente. (MOREIRA, 1986, p. num dado momento ele tira uma sanfoni30) nha de lado, começa a marcar a métrica e o ritmo da sanfona e falar aqueles blues Em outros termos, as novas expressões artísticas e dar risadas, onomatopéias fantásticas... buscam meios não-convencionais de veiculação Eu pensei: genial! Isso aí sim é poesia, isso do que se produz. Isso se deu nos chamados “jorpode ser uma linguagem nova no Brasil nais nanicos” (id., p.30). (MOREIRA1986, p.31).

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A Nuvem Cigana, cooperativa de poetas, músicos como este (Fig.3): e desenhistas na qual o poeta Chacal é um dos pioneiros, organiza, a partir de 1974, as “Artimanhas”, perfomances que juntavam música, teatro, poesia, dança, uma série de coisas não apresentadas de forma acadêmica”, em eventos que chegavam a reunir mais de mil pessoas (id., p.38). Enquanto isso acontecia no Rio, na poesia, ainda de acordo com Sonia Moreira (1986, pág. 38), “uma das primeiras tentativas de uma nova linguagem chegava de Fortaleza, em 1970, através do poeta Pedro Lyra” com o poema-postal. Este “já anunciava a associação de duas áreas para uma mesma vertente de manifestação alternativa: os artistas plásticos juntavam-se aos poetas.” Eis uma amostra da produção de Lyra (Fig.2):

Fig.3: Poema-Processo de Moacy Cirne, publicado no Balaio Comum, Boletim (in)formal do Departamento de Comunicação Social da UFF –nº8 (EXTRA) – Niterói, 22 de outubro de 1986.

A poesia, aliás, faz outros encontros: mais do que dialoga, integra-se no movimento musical do tropicalismo, nome oriundo, aliás, do trabalho “Tropicália”, de Helio Oiticica. O impulso da manifestação em diversas linguagens se evidenciou e intensificou na música a partir da década de 60 como sinais de resposta artística politicamente ativa à repressão do período da Ditadura. Um encontro entre a música (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes) e a literatura (Torquato Neto, Waly Salomão e Capinan). A exemplificar nos versos iniciais da música “Geléia Geral”, de Gil e Torquato:

Fig.2: Trabalho de Pedro Lyra, extraído de seu blog: http://www.almadepoeta.com/poemaspostais_pedro_lyra.htm

Outra expressão era o Poema-Processo, evidente nos trabalhos de Moacy Cirne. Anos depois, retomando essa experiência, ele apresenta trabalhos

Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplandente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geléia geral brasileira Que o Jornal do Brasil anuncia.

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Para Leila Míccolis, a influência do tropicalismo na poesia contribuiu para a emergência da imprensa poética, na forma da publicação “nanica”, rodada a mimeógrafo. (MÍCCOLIS, 1986, pág. 68). Eis uma imagem interessante (Fig.4) dessas publicações encontrada no blog “Alternativa Nanica”, inserida no texto As origens e atuações da Imprensa Nanica, escrito por Betina Lod em 11 de junho de 2012:

Fig.4: Imagem extraída em http://alternativananica.blogspot. com.br/2012/06/as-origens-e-atuacoes-da-imprensa.html

Affonso Romano de Sant’Anna, em seu livro “Música popular e moderna poesia brasileira” aponta os “sintomas dessa mudança” (SANT’ANNA, 1978, pg. 113): 1. Surgimento de inúmeras revistas de poesias, mesmo em formato empobrecido (mimeografado), sendo muitas vezes vendidos e divulgados pessoalmente pelos poetas, em bares, teatros e butiques; 2. O Jornal de Poesia, suplemento do Jornal do Brasil, abriu espaço para as mais variadas tendências e estilos; 3. A realização das Expoesias ocorridas no ano de 1973 e que, no conjunto, reuniu mais de 600 poetas; 4. “Poemação” que aconteceu no Museu de Arte Moderno no Rio, em 1974, reagrupando poetas de diversas correntes; 5. O apontamento feito por Heloiza Buarque de Holanda sobre as novas tendências na poesia, com a antologia: “26 poetas hoje” (Holanda, 1976, Apud Sant’Anna, 1978); 6. Disseminação da poesia oral em eventos no Rio e São Paulo.

As Expoesias

O autor apresenta, ainda, outros movimentos de Pode-se considerar que, a partir do ano de 1973, a vanguarda na poesia brasileira que antecederam poesia moderna brasileira entrava em uma nova a hibridização de linguagens artísticas: “Concrefase. Impulsionados pelo contexto político-social tismo” (1956); “Neoconcretismo” (1958); “Tennesse período, poetas e artistas buscavam ampli- dência” (1957); “Práxis” (1962); “Violão de Rua” tude estética que fosse para além das propostas (1962); “Poema Processo” (1967); “Tropicalismo” formais dos movimentos vanguardistas anterio- (1968). res, em vigor entre 1956 e 1968. Nesse momento, a poesia deixava de ser uma linguagem submeti- A poesia toma formas visuais, em seu próprio da à música, caminhava na direçãode configurar- formato e idealização, mas também com uso de se com mais autonomia, mas também pretendia imagens e trabalhos fotográficos e plásticos. As se desenvolver em diferentes técnicas de expres- linguagens ultrapassam seus campos de domínio para ampliar a experiência estético-sensorial da são. comunicação artística.

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A seguir, iremos nos dedicar ao caso das Expoesias.

poesia neoconcreta, traçando a inter-relação da poesia e das artes visuais desde a Antiguidade. Outros artistas, escritores e músicos participaEm outubro de 1973, Affonso Romano de ram do evento (Fig.5), como Chico Buarque de Sant’Anna, então professor no programa de Hollanda, Gilberto Gil, João Cabral de Melo Neto mestrado no Departamento de Letras e Artes da e Ronaldo Bastos, contemplando assim a música Puc-Rio, no intuito de amplificar os estudos com popular brasileira. No entanto, quando convidaseus alunos e trazer à tona a produção poética dos a participar, os irmãos Campos se recusaram, daquela época, sugere um projeto que culmina alegando que se tratava de um evento “ecléticona realização da mostra Expoesia. Assim, lança caritativo”, e ainda declararam: “a poesia é ou um chamado na imprensa: “Mandem poemas não é.” (artigo de Heloiza Buarque de Hollanda – visuais, poemas corporais, poemas em super-8, Nosso verso de pé quebrado, publicado na revista poemas orais, escritos, dramáticos, enfim, o que Argumento, 01-1974). estão produzindo sob o nome de poesia.” O nome justifica-se nas próprias palavras de Romano de Sant’Anna: “O projeto acabou se chamando Expoesia. Vários significados: exposição do que é, do que não é (ex) e do pretende ser poesia.” O evento, que se desdobrou na Expoesia 2 (Curitiba) e Expoesia 3 (Nova Friburgo), foi considerado “como um dos 10 acontecimentos mais importantes da cultura brasileira em 1973” (Suplemento Literário do Minas Gerais, 13-7-74, citado em Sant’Anna, 1978, pg. 118).

Fig.5: De cavanhaque estava Affonso Romano de Sant’Anna, o idealizador desse encontro que reuniu aí entre outros,Jards Macalé, Gilberto Gil, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque. Fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/o-encontro-do-expoesia -em-1973

O resultado da convocação foi a apresentação de 3 mil poemas de mais de 600 poetas: os mais diversos grupos de poesia e poetas individuais se reuniram em diálogos e em mostras coletivas. Todos os movimentos convergiram para uma troca e exposição de poesia nos mais variados suportes: visual, sonora e escrita, além de happenings e performances.

Com o objetivo de concentrar e contemplar todo o tipo de manifestação poético-artística, e tendo em vista a necessidade de liberdade como processo de pesquisa, não houve censura ou critérios de julgamento a priori, abrindo espaço para poetas desde aqueles já reconhecidos, passando pelos que possuíam uma produção independente, até novos escritores.

Na Expoesia 1, realizada na cidade do Rio de Janeiro, na semana de 22 a 26 de outubro de 1973 foram exibidos painéis, proferidas palestras e debates. Já na abertura, Roberto Pontual abordou a

Como o critério não perpassava pela qualidade ou a preocupação em qualificar os trabalhos em bons ou ruins, e sim pela participação na mostra, a autonomia ganhava espaço. Pensamento que

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ia contra ao posicionamento dos Concretistas, mas encontrava apoio em movimentos como a Poesia Marginal, embora ambos os grupos, entre outros, já atuassem em suportes multimidiáticos. Programação da primeira mostra Expoesia (Fig.6):

burgo (RJ), ficou sob a coordenação da professora Eliana Yunes da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, onde o vento ocorreu. Novos trabalhos, principalmente de alunos da própria instituição foram anexados aos já existentes.(Ibíd.) Esses acontecimentos igualmente tornaram evidente a necessidade de questionamentos e respostas na poesia, nas artes visuais e na música às repressões políticas, à censura, às crises sociais. Enfim, o importante era estar ativo e atingir o público de alguma forma, criando consciência sobre a situação, já que parecia quase impossível um isolamento do artista das adversidades sociais. Muitas vezes o punho cerrava-se em protesto, como se verifica na obra abaixo (Fig.7):

Fig.6: Jornal de Minas Gerais: Suplemento Literário, de 13 de julho de 1974

Fig.7: Fonte: Hollanda, 1974, pág. 91.

A Expoesia 2, realizada em Curitiba ficou em exibição por um mês e foi coordenada por Valêncio Xavier e Aramis Millach, recebendo apoio do Instituto Goethe, devido à Exposição de Poesia Concreta Alemã, e da Prefeitura Municipal de Curitiba. Jaime Lerner, então prefeito de Curitiba, ficou tão entusiasmado com o projeto que inaugurou um Centro de Criatividade, abrindo espaço próprio para o estímulo e produção poética. Nessa mostra, mais 200 trabalhos foram acrescidos aos da primeira edição. (SANT’ANNA, 1978, pág. 120)

Dessa forma, a poesia e as artes em geral, na proposição das Expoesias, passaram a estabelecer uma relação mais aberta e alcançável entre artistas e públicos, procuram combater o elitismo no domínio de criação e recepção da arte. Para visualizarmos um pouco dessa experiência, disponibilizamos, a seguir, imagens do da mostra e de alguns trabalhos expostos retirados da Revista Argumento (1974), no artigo de Heloisa Buarque de Hollanda (Fig. 8, 9 e 10):

A Expoesia 3, realizada na cidade de Nova Fri-

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das décadas de 1950 e 1960, viu-se sem alternativas para firmar-se com propriedade. Foi notório um vazio na produção e divulgação dessa expressão, sendo necessário um distanciamento para retornar ao cenário com autonomia – a exemplo dos poetas chamados de “geração mimeógrafo” (ou poetas marginais) - para daí voltar a dialogar em igualdade com outras expressões artísticas. Poetas como Ana Cristina Cesar e Chacal auxiliaram nesse processo tendo maior contato com os grandes meios de divulgação, sobretudo na imprensa. Embora nem todos os artistas participantes das Expoesias tivessem uma consciência plena do caráter político que a experiência da mostra expressava, o evento cultural foi considerado, nas próprias palavras do Affonso Romano de Sant’Anna, o mais subversivo do ano de 1973, o que enfatiza a força questionadora da produção artística perante a ditadura militar. Sobre a tendência intersemiótica explorada por artistas que utilizavam as mais diversas técnicas e estilos, podemos considerar que a parceria do artista e escritor Julio Plaza com outros, principalmente do grupo Concretista, desenvolvendo trabalhos como poemas-objetos, com o intuito de criar obras em que os signos da escrita transitassem no campo das artes visuais, e vice-versa, contribuiu para se estabelecer um embasamento teórico aprofundado sobre o assunto.

Fig.8: Fonte: Hollanda, 1974, pág. 82. Fig.9: Fonte: Hollanda, 1974, pág. 86. Fig.10: Fonte: Hollanda, 1974, pág. 85.

Nas Expoesias aconteceram experimentos que podem ser classificados no campo da intersemiose. Tanto a apresentação de Brito e Holanda, assim como o estudo de Sant’Anna, confirmam esta avaliação, ainda que não informem acerca

Considerações finais

A poesia, tendo sido absorvida e vista de modo de uma reflexão teórica de cunho intersemiótico. subordinado às demais linguagens, como a música e as artes visuais, principalmente no período

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Adriana Fernandes é mestranda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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ARTIGO

MULTIPLICIDADES IDENTITÁRIAS: O ABSTRACIONISMO INFORMAL EM FACE DA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA VANGUARDA BRASILEIRA Ananda Muylaert O artigo busca apresentar as formas pelas quais a produção abstracionista informal nipônica do decorrer da década de 1960 atravessam os ideais da construção de uma vanguarda de referências plurais, e ao mesmo tempo questionar sua marginalidade em relação à ideia vanguardista. Coube à arte e à identidade imigrante se estabelecerem em um entre-lugar de altíssima densidade, às margens da oficialidade, absorvendo tudo ao seu redor em um processo superantropofágico. Palavras-chave: Arte moderna brasileira; abstracionismo informal; tachismo; Japão; Nova Objetividade Brasileira. Em 1932, o sociólogo Oliveira Viana afirmara que “o japonês é como o enxofre, insolúvel”, se referindo à suposta impossibilidade da assimilação completa dos imigrantes ao Brasil, que então já eram milhares, espalhados principalmente pelo Sudeste do país. De fato, a integração dos japoneses ao país jamais se mostrou como tarefa fácil; o governo brasileiro, em 1890, decretou a proibição da entrada de cidadãos asiáticos e africanos ao mesmo tempo em que estimulava a imigração de europeus – ainda que a medida tenha durado apenas dois anos, delineava um cenário de clara segregação e de desejo de europeização do país. Então, os japoneses que chegavam ao Brasil encontravam-se culturalmente e socialmente isolados do resto da população, tanto pela barreira linguística quanto pela discriminação racial. É justificável e até natural, que, inicialmente, as diferenças e barreiras socioculturais entre os brasileiros e os imigrantes tenham sido vistas como intransponíveis, e como se não houvessem esforços por parte dos últimos para uma verdadeira adaptação, já que muitos dos japoneses que aqui

chegavam tinham em seus planos retornar em breve à sua terra natal (arranjo que para muitos foi adiado, ou simplesmente cancelado, com o advento das duas grandes guerras mundiais). O Brasil, então, pode ser tratado como uma espécie de purgatório para esses imigrantes – um entre -lugar onde se espera o retorno ao Japão. É num entre-lugar, também, onde o abstracionismo informal, tendência aderida pela parcela mais expressiva de artistas nipo-brasileiros, era colocado na conjuntura da arte brasileira: às margens da oficialidade, dividido entre casa (lugar de pertencimento físico, Brasil) e lar (lugar de pertencimento emocional, Japão). Construíam-se, então, paisagens de lavouras de café e pequenas casas coloniais com as linhas definidas e cores pouco saturadas do shin-hanga1, que se no Japão eram azuladas, no Brasil assumiam tonalidades terrosas e amareladas, como as de Tomoo Handa. A distância geográfica implicava também em uma disparidade estética, que por sua vez não se apresentava somente em grande escala, no observacional, mas nos preceitos das próprias

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práticas semióticas dos ambientes; também na arte, na filosofia, e, principalmente, na socialização e na educação recebida pelo grupo.

ao patamar mais perto da oficialidade que iria chegar na virada da década de 60. Em 1959, o crítico Mario Pedrosa afirma que a 5ª Bienal de São Paulo fora tomada por uma “ofensiva tachisEntre o Ocidente e o Oriente ta e informal”: além da grande quantidade de telas abstratas informais expostas e da presença de Seguindo o mesmo modelo dicotômico de nati- George Mathieu, tachista francês, o vencedor do vo/estrangeiro, no qual entre as extremidades primeiro prêmio da exposição foi Manabu Mabe, encontravam-se os imigrantes, o entre-lugar do pintor nascido em Kumamoto, no Japão, e que abstracionismo informal fica situado entre a arte morava no Brasil desde 1934. formal – isto é, o oficial – e a arte “rudimentar”, que seria a produção completamente exterior às instituições de arte. Muito disso se devia à ausência de um suporte crítico e teórico especializado para apoiar as produções. Ferreira Gullar, em sua “Teoria do Não-Objeto”, afirma que a arte informal é “conservadora e reacionária”, como um retorno ao “quadro de cavalete” com o qual o neoconcretismo buscava romper: Os artistas dessa tendência continuam — embora desesperadamente— a se valer dos apoios convencionais daqueles gêneros artísticos. Neles o processo é contrário: em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura, o quadro, o espaço convencional, e põem o mundo (os materiais brutos) lá dentro. Partem da suposição de que o que está dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de Arte.” (GULLAR, F. apud COCCHIARALE, F.; GEIGER, A., 1987, p. 241).

Fig. 1: “Vento em Flor”, Manabu Mabe, óleo sobre tela, 1965. São Paulo/SP.

A premiação de Mabe (fig. 1) na Bienal, em segunda análise, é muito simbólica para a incorporação dos imigrantes japoneses ao conjunto da arte brasileira: ele fora selecionado para ganhar o prêmio de melhor pintor nacional. Apesar de ter passado a primeira década de sua vida no Japão, Mabe só começara a pintar quando já trabalhava nas lavouras de café em Lins, junto com Tikashi Fukushima, que fora desenhista – ainda que A tendência, na verdade, nunca encontrou lugar técnico, em uma fábrica de aviões – em Tóquio, no establishment artístico brasileiro, nem mes- antes de se mudar para o Brasil. Tomie Ohtake, mo em seu ápice. Acompanhando a tendência na que chegara ao Brasil aos 23 anos, só começou Europa e no Japão, que viram a arte informal e a pintar aos quarenta; Flavio Shiró Tanaka, que o tachismo crescerem ao longo da década de 50 imigrou ainda criança, começou a produzir em em boa parte pelas ações do crítico e curador Mi- sua adolescência, em São Paulo. No entanto, o chel Tapié, o abstracionismo informal foi alçado abstracionismo informal ainda era visto como

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mera importação de uma moda internacional; como uma colonização cultural, que não poderia ser mais distante e mais contrária ao desejo em ebulição de uma arte pura e declaradamente nacional. No “Esquema Geral da Nova Objetividade Brasileira” (1967), Hélio Oiticica afirma que a “antropofagia é a defesa que possuímos contra o domínio exterior, e a principal arma criativa, a vontade construtiva” e clama pela incorporação da cultura colonizadora em um processo definido como superantropofágico, onde o resultado final seria uma mistura puramente nacional feita a partir de elementos globais.

Tem-se, então, que tanto a arte brasileira idealizada, quanto a arte imigrante, altamente permeada pelos valores orientais, perante a História da Arte oficial, se situavam exatamente na mesma posição de periférica. Foram, e são, excluídas e esquecidas pela construção de uma História que só contempla os países ocidentais desenvolvidos. Clement Greenberg, em Vanguarda e Kitsch, sugere que se analise de forma mais profunda a “relação entre a experiência estética, tal como vivida por um indivíduo específico – não o indivíduo em geral - e os contextos sociais e históricos em que essa experiência tem lugar”. O Brasil, país inter-trópicos, de mata atlântica e caAos imigrantes, era quase obrigação se sujeitar a fezais, quente e úmido, e da perpétua e violenta um processo similar de absorção cultural – o que luz solar perpendicular ao chão, fica a dezessete seria se submeter aos juízos estéticos e artísticos mil quilômetros de distância do Japão. O Japão de outra nação se não uma microexpressão de não faz parte da “zona tórrida”. É terra de pouum colonialismo cultural, considerando-se que cas palavras, plantações de arroz e bambuzais; de eram europeias a arte e a filosofia disseminadas residências construídas em madeira de cedros e no Brasil? O abstracionismo informal brasileiro carvalhos, rodeados por mares de coníferas tão nunca foi um braço do mecanismo de coloniza- distantes dos ipês e do pau-brasil. Como conciliar ção, até porque nunca teve força ou adesão su- as diferenças entre a experiência dos dois lares? ficiente para promover isso; mas sim uma forma de autoafirmação, uma vontade íntima de se Autonomia interpretativa e beleza intangível caracterizar e se colocar como parte do conjunto – a arte nacional, brasileira por definição. A A vontade de liberdade imanente nas convenções identidade dos imigrantes era frequentemente do expressionismo abstrato explica a grande dispreterida em prol da assimilação ao país, aban- seminação da tendência nos países que tiveram donando-se práticas, hábitos alimentares, obje- participação intensa na Segunda Guerra Muntos domésticos, gestos que não se encaixassem dial, como um grito que fora sufocado ao longo de alguma forma na vida no Brasil; e, mais os- da duração do conflito - essa coerção ao livre distensivamente, o abandono do idioma nativo, que curso fora sentida na pele também pelos cidadãos é dos mais importantes aspectos para a criação dessas nações que viviam em outros lugares. Em e manutenção de uma identidade individual e 1942, o governo brasileiro proibiu a veiculação nacional. O pintor Tomoo Handa, que chegou ao de jornais e programas, o uso dos idiomas e a Brasil com apenas dez anos de idade, afirmara mera aglomeração de imigrantes de países assoque “não terá havido imigrante que tivesse aban- ciados ao Eixo (Japão, Itália e Alemanha). Entre donado os seus costumes mais que o japonês”. os atingidos por essa medida, estava o grupo Sei(HANDA, 1971, p. 22) bi (Seibi-kai)2, fundado em 1935 por imigrantes japoneses na cidade de São Paulo. O pintor japo-

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nês Kakuzo Okakura, em seu livro “Os Ideais do dos pintores nipo-brasileiros em um estilo que, Oriente”, colocara a liberdade como crucial para ao mesmo tempo em que mesclava as referêna produção artística: cias, dialogasse com os ideais da filosofia japonesa, valorizando a gestualidade acima de qualquer A liberdade é o maior privilégio de um ar- outro elemento da pintura, a expressão e análise tista, mas liberdade sempre no sentido de subjetivas e as suas dimensões imaginadas. autodesenvolvimento evolutivo. A arte não é nem o ideal nem o real. Imitação, seja da O imaginário, então, se torna fundamental, pornatureza, dos antigos mestres, ou acima que os ideais de beleza budistas e xintoístas dide tudo de si, é suicida para a realização da recionam a apreciação ao indizível, ao latente, individualidade, que regozija sempre em à mais simples das atitudes - são os desdobradesempenhar um papel original. (OKAKU- mentos que dão valor e tornam um objeto pasRA, 1905, p. 228) sível de ser apreciado. A estética japonesa é uma estética da vida, absolutamente indissociável do Entre os membros do Seibi, a liberdade indivi- cotidiano de um indivíduo; Mario Pedrosa chega dual na produção era como regra - havia imen- a dizer que “se há um país onde a integração das sa variedade de processos e resultados, dos su- artes pode estar perto da realidade é o Japão”, já miês de Massao Okinaka à geometria fluida de que tudo se apresenta entranhado a esse existir Ohtake e as paisagens rurais de Handa, e o que estético. Não existe separação entre arte e auto os unia era simplesmente a socialização orien- cultivo. O princípio budista da impermanência tal que haviam recebido: o idioma, o passado, é crucial para a compreensão da visão estética as cidades onde nasceram. Era um grupo cuja japonesa: a efemeridade é o mais básico e mais finalidade era a criação de rede onde se pudesse inescapável aspecto da vida, e é na transiência discutir, produzir e divulgar os trabalhos feitos que floresce o belo. Cada objeto traz consigo inpelos imigrantes nipônicos – a formação origi- contáveis possibilidades de experiência que ponal do grupo era composta não só por artistas dem atingir aquele que o maneja ou observa, não plásticos, mas também por jornalistas, escritores por sua aparência, mas pela história que carrega: e poetas – e não o estabelecimento de dogmas a essa sensibilidade ao impalpável, ao transitóque segregariam suas produções, etiquetando-as rio, e à infinita complexidade de cada elemento como japonesas. Situavam-se no entre-lugar no do mundo que cerca o sujeito chama-se mono no meio de “artista brasileiro” e “artista japonês”; aware, e ela carrega o mesmo tom de melancolia boa parte deles praticaram estudos formais no do lacrimae rerum. campo das artes em universidades do estado de São Paulo, e estabeleceram contato intenso com Quando o olhar se rende ao gesto artistas brasileiros e com vanguardas europeias, especialmente o cubismo, o expressionismo e o Nesse sentido, tachar o abstracionismo informal fauvismo. Mas, como japoneses, direcionavam nipônico como reacionário é analisá-lo sob a ótiseu olhar estético de forma muito distinta da fei- ca decrépita da beleza visual ocidental; é ignorar, ta pelos doutrinados pela vontade de perfeição, absolutamente, que o valor da obra se encontra proporção e ordem matemática greco-romana. além do visível, e que produzir com esse ideal em Não surpreendente, então, foi o assentamento mente por si só já é revolucionário: uma ruptu-

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ra com uma das mais poderosas hierarquias da Arte, a da subordinação dos outros sentidos ao olhar. É apagar a individualidade, tanto do sujeito-artista puro quanto do grupo no qual ele se encaixa, e optar por considerar a construção da arte informal como mera obra do acaso é também apagar toda uma trajetória que culmina no processo de criação. Em outras palavras, é reduzir a pintura ao quadro, e o signo ao significado. Nesse ponto, a arte informal se encontra com a transcendência visada pela Nova Objetividade: enquanto uma busca o campo táctil-sensorial, ainda muito externo, a outra estabelece uma espécie de “sexto sentido”, almejando se colocar inteiramente dentro do espectador. Essa vontade de introspecção surge de forma radical na série “Pinturas cegas”, de Tomie Ohtake. Ainda que feitas nos moldes dos quadros de cavalete, as pinturas cegas implicam em um fechamento da artista para o mundo exterior, um distanciamento da própria produção, tornando o gesto a unidade pictórica básica, deixando a mão livre da subordinação ao olho. É sua antropofagia particular (HERKENHOFF, 2013), a digestão e expurgação do que há de mais íntimo, onde o expressar se torna mais importante do que o exprimido. Ao espectador, resta olhar para a obra como se olhasse para seu próprio interior, projetando a obra em si em vez de tentar se visualizar nela. Ainda que houvesse intersecções entre a busca por uma arte imaculada como a desejada pelos neoconcretistas e construtivistas e a percepção altamente subjetiva valorizada pela estética nipônica, o abstracionismo informal permanecia isolado, sempre a certa distância da arte formalista. Em primeiro momento, é óbvio deduzir que a arte informal não poderia se aproximar em nada de uma arte formalista, mas o infor-

malismo apresentado nas pinturas dos japoneses parece menos uma ruptura com a forma em si como com a construção da mesma. O artista não pinta a forma, mas deixa-a se pintar sozinha – como Ohtake fizera nas pinturas cegas. Elas brotam como água de nascente, em um movimento de autogênese sobre a superfície da tela. A forma se constrói e se expande, mas não se define como figura, nem se isola do fundo; não se pode dizer se ela é figura ou gesto, pois ambos se tornam indissociáveis. Seus limites são questionáveis. A forma conversa cria significados, comunica-se com seus arredores. Essa comunicação não se mostrou efetiva na função de substituir a troca verbal. O discurso teórico da arte informal não existia, assim como uma crítica especializada: “o informalismo não produziu discursos de grupo porque a questão da liberdade ocupa um lugar central em sua ação; sistematizá-las em princípios seria portanto profundamente contraditório” (COCCHIARALE e GEIGER, 1987, p. 20). Mas como teorizar quando não se entende, nem se pode fazer entender?

Fig. 2: Sem título, Tomie Ohtake. Óleo sobre tela, 1963. São Paulo/SP.

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Das barreiras encontradas

de ser transposta. O historiador da arte Clement Greenberg, em seu texto “Vanguarda e Kitsch”, O artista estava confinado aos limites da sua lín- associa a alfabetização ao consumo da cultura gua, e esses limites não poderiam ser facilmente oficial: derrubados. O idioma japonês utiliza três sistemas de escrita diferentes: o hiragana, para pala- O kitsch é um produto da revolução industrial vras japonesas; o katakana, usado para palavras que, urbanizando as massas da Europa ocidende origem estrangeira; e os kanji, ideogramas tal e da América, implantou a chamada alfabeabsorvidos da escrita chinesa. Os três alfabetos tização universal. Antes disso, o único mercado são utilizados concomitantemente; na verdade, é para a cultura formal, em contraposição a culjustamente esse uso simultâneo dos três que tor- tura popular, estivera entre aqueles que, além na uma frase em japonês legível, já que não exis- de saber ler e escrever, dispunham do ócio e do tem espaçamentos entre as palavras. É, portanto, conforto que vão sempre de par com algum tipo um idioma estruturalmente muito diferente do de refinamento. Até então isso estivera inextricaportuguês, principalmente na forma escrita. O velmente associado a saber ler e escrever. Com alfabeto latino (romaji), sistema de escrita oficial a introdução da alfabetização universal, porém, e exclusivo em todos os países da América e da a capacidade de ler e escrever tornou-se quase Europa Ocidental, só passou a ser ensinado nas uma habilidade menor, como dirigir um carro. escolas japonesas após a Segunda Guerra Mun- Não pode mais servir para distinguir as inclinadial, apesar do sistema Hepburn de romanização ções culturais de um indivíduo, pois não era mais da língua japonesa ter sido publicado no final do a condição exclusiva de gostos refinados. (GREséculo XIX. ENBERG, 1965, p. 11) Como o ensino do romaji ainda era pouco disseminado no Japão, a maior parte dos japoneses que chegaram ao Brasil antes da década de 50 era, portanto, efetivamente analfabetos, já que não sabiam ler o alfabeto latino. Tornou-se natural que os imigrantes se fechassem entre si, criando comunidades onde se veiculavam informações e se comunicava exclusivamente em japonês – não por saudosismo ou por falta de vontade de se assimilar ao novo país, mas por simples questão de sobrevivência. Dentro das comunidades, tornava-se muito mais simples se adaptar à vida no Brasil: o alinhamento a essa lógica foi a chave para a criação do grupo Seibi. Tem-se um cenário geral, então, de isolamento dos imigrantes, causado não só pelas diferenças culturais e comportamentais, mas principalmente pela barreira linguística extremamente difícil

A maioria dos imigrantes havia recebido educação formal no Japão – uma análise do inspetor de imigração J. Amândio Sobral, de 1908, indicara que apenas 13% dos japoneses que aportaram no Brasil eram analfabetos, enquanto a taxa geral de analfabetismo entre a população total do país era de 65% - mas, como se sabe, foram alfabetizados como orientais. De acordo com Kakuzo Okakura, em “Os Ideais do Oriente”, “o conhecimento Ocidental confunde beleza com ciência, e cultura com indústria”. Assim, a arte oriental é vista com desprezo pelos que buscam na arte uma beleza matemática, dogmática como a idealizada no Ocidente. A urbanização e a alfabetização são tão conectadas com o desprezo pela arte “rudimentar” quanto a imposição dos ideais artísticos ocidentais é responsável pela sempre tão condescendente e inferiorizadora visão da arte produzi-

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da fora do eixo Europa/América do Norte. Ainda mória de um lar, ou seja, do pertencimento emode acordo com Okakura, cional a um lugar físico que se apresentava por meio das relações sociais, com outras pessoas, A história da arte Japonesa é a praia onde com a cultura e com o ambiente – a multitude de cada onda sucessiva do pensamento Eu- lugares íntimos5 associadas ao Japão - se tornou ropeu deixa uma marca quando bate na imprescindível para a construção da arte inforareia da consciência nacional. (…) A arte, mal e o encaixe desta no que seria uma nova amcomo a teia de diamantes Indra4, reflete a pla arte brasileira – plurifacetada, heterogênea, corrente inteira em cada elo, e não existe ausente de unidade e ainda assim bem-definida, em nenhum momento em um molde final como a desejada pela Nova Objetividade. (…). Qualquer historiografia dos ideais artísticos japoneses se torna, então, quase Flavio-Shiró Tanaka dissera que “o Japão ficou, a uma impossibilidade, enquanto o mundo vida toda, para mim como memória de cores – o Ocidental permanecer tão ignorante quan- branco da neve – ou de certos sons – os pés de to aos variados ambientes e fenômenos meu pai pisando a neve, quando me levava nas sociais nos quais a arte é colocada, como costas, a caminho dos banhos públicos”. Já Tose fosse uma joia. Definir-se é limitar-se. A mie Ohtake, ao aportar em Santos, tivera como beleza de uma nuvem ou de uma flor está primeira impressão do Brasil “o Sol muito claro em seu desdobramento inconsciente de si – quando saí do navio, olhei para o céu e senti mesma. (OKAKURA, 1986, p. 8) cheiro de amarelo”. As cores e as impressões são incontáveis, misturando-se no olhar e nas meA reflexão prismática mórias, refletindo em um fenômeno prismático, multidimensional, abrangendo tempo e espaço, O abstracionismo informal do Brasil não é nem caracterizando-se como movimento e momento, japonês, nem brasileiro. É global, feito de uma misto de passado, presente e futuro. multiplicidade de referências, cores brasileiras, caligrafias orientais, processos ao modo action painting de Pollock – ela é, como uma teia feita de Ananda Muylaert é graduanda pela UERJ. diamantes, um reflexo multifacetado, a transformação da experiência imigratória em algo físico. NOTAS É a amálgama entre a vivência artística brasileira e a filosófica japonesa, a vontade construtiva e 1 Movimento gravurístico surgido no início do séa introversão budista, a experiência de guerra e culo XX, no Japão, de revival do ukiyo-e, marcade paz, a reformulação de todas as vivências em do pelo retorno às técnicas clássicas de gravura e uma a partir do ponto em que estas se converpela aproximação aos principíos impressionistas gem. Parte de uma reestruturação completa do de observação da luz e das cores. modus vivendi dos imigrantes, durante a qual foi 2 Seibi-kai (lit. “Associação de Aprimoramento alterado, também, seu senso artístico e estético [dos estudos de artes]”) é um encurtamento de (HANDA, 1972); e, ainda que ajustados a viver no São Paulo Bijutsu Kenkyu Kai-Seibi (Grupo de Brasil, mantinham-se sempre conectados ao país Estudos de Belas Artes de São Paulo). por um infrangível fio de reminiscência. A me3 Imaculada, aqui, é usado no sentido não de lim-

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peza ou pureza – afinal, a “pureza é um mito” (OITICICA, 1967) – mas de um cenário geral de fronteiras bem-definidas, sem manchas provocadas pela pressão exterior imposta pelas expectativas; imaculada por ser auto-afirmativa e consciente de si própria, solidamente identitária. 4 A teia de Indra (deus hindu) é uma metáfora da filosofia hinduísta e budista que trata as ações todas como interdependentes, conectadas entre si, onde um fenômeno só pode surgir a partir de outro – uma relação de causa e efeito de infinitas dimensões (“gênese condicionada”). 5 Ver “Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência”, de Yi-Fu Tuan. REFERÊNCIAS 5a BIENAL do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1959. COCCHIARALE, F.; GEIGER, A. Abstracionismo, informal e geométrico: a vanguarda brasileira dos anos 50. Rio de Janeiro, 1987. CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: A mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial, 2000.

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ARTIGO

ATRAVESSAMENTOS CORPORAIS: A DANÇA E A REPRESENTATIVIDADE NEGRA NO EMPODERAMENTO DE MULHERES NEGRAS E DE PERIFERIA Andreza Jorge O presente artigo discorre acerca dos resultados gerados a partir do ensino da dança que valoriza a cultura de matriz africana e gera representatividade entre suas alunas e no quanto tal metodologia pode ser uma ferramenta de transformação social através do empoderamento de mulheres negras em uma periferia do Rio de Janeiro. Através de uma pesquisa em projetos de intervenções podemos observar os impactos desse tipo de ensino nas alunas. Palavras-chave: Dança; feminismo; mulher negra. Introdução

disponíveis para vivenciar atravessamentos propiciados pelo professor a partir de sua meta de Este trabalho tem o objetivo de apresentar uma atuação nesse cenário exposto. A possibilidade pesquisa a partir de uma análise empírica sobre a ser aprofundada dentro do espaço de aulas de a potencialidade das aulas de dança, consideran- dança foi o ensino da dança com foco principal do para esse projeto o ensino da dança como a na cultura Africana e Afrobrasileira, com o objecriação de um espaço de troca e disponibilidade tivo apresentar para os alunos modelos alternacorporal, sem a definição de um estilo prévio, tivo ao hegemônico, de força, beleza, inteligência mas com o foco na corporeidade e no desenvol- e criatividade, para então produzir movimentos e vimento de potencialidades subjetivas traçadas estímulos corporais. na relação professor-aluno e aluno-espaço para a construção das aulas. Segundo, Earp: Em um complexo de Favelas do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré, inicia-se o desejo de investiO corpo é fluxo e refluxo. É uma individu- gar a atuação de projetos de intervenção artística ação do ser que está em constante proces- que tenham como característica o ensino da danso de transformação das energias que se ça Africana e Afrobrasileira, e o impacto produzicondensam em diferentes campos (físico, do nas mulheres participantes das aulas através mental e emocional), interagindo continu- de resultados obtidos na autoestima, na autoconamente entre si, formando o todo. O corpo fiança e no Empoderamento dessas mulheres. vela e revela o ser. Deve ser compreendido e Nesse sentido, traçamos ao longo deste trabalho tratado em compatibilidade com o que é – a possibilidades de compreensão da realidade a vitalização e revitalização da criação. (EARP ser investigada, tendo muitas questões a serem apud GUALTER et PEREIRA, 2000, p. 11). exploradas, tais como: Qual impacto de realizar aulas de dança em um espaço de periferia no Rio Com isto, abre-se uma vasta rede de possibilida- de Janeiro? Qual o impacto de inserir a temática des a serem aprofundadas, pois se tem corpos sobre relações étnico-raciais dentro de aulas de 87 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017


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dança em uma periferia? E seguir aprofundando com o recorte: Qual o impacto de aulas danças com referenciais positivos de mulheres e divindades negras, para o Empoderamento de mulheres negras do Complexo da Maré? Quais os resultados gerados a partir de vivências corporais com foco na cultura Africana e Afro-brasileira em mulheres negras do Complexo da Maré para seu Empoderamento e criação de identidade? A partir desses questionamentos, a pesquisa busca os impactos produzidos através de um projeto de intervenção de dança que une as relações de corpo e subjetividade de uma aula de dança com o tema da valorização cultural Africana e Afro -brasileira em Mulheres Negras do Complexo da Maré para seu processo de Empoderamento e criação de identidade.

Justificativa Com o passar do tempo e do progresso social, juntamente com o desenvolvimento do sistema político vigente no Brasil, o capitalismo e a ideia de sucesso e ascensão pautada na aparência em um modelo criado e padronizado que segrega culturalmente homens e mulheres, fazendo com que percam suas origens ancestrais e identidade cultural. À vista disso, torna-se necessário pensar em uma alternativa para resgatar os valores de um povo, empoderando e potencializando esses valores, seus costumes, suas características e fenótipos, uma vez que tais padronizações pré-estabelecidas de aparências e de atitudes a serem aceitas socialmente excluem a maior parte da população brasileira, com cor de pele mista, transitando em etnias como negra e indígena e todas suas combinações.

Objetivos No presente trabalho serão analisados projetos de dança no Complexo da Maré que tenham como eixo temático principal a cultura africana e afro-brasileira, assim como também será feito um mapeamento das mulheres negras que participam das aulas. A partir desses dados, serão realizadas entrevistas para investigar o impacto gerado a partir das intervenções dos projetos no que cerne a autoestima, autoconfiança, representatividade, produção e criação de identidade nas participantes negras. A análise terá um foco nos temas sexualidade, maternidade, ancestralidade, gênero, identidade, memória, autoestima e representatividade. Desse modo, busca-se investigar os resultados gerados a partir da atuação dos projetos de intervenção de dança que utilizam referências culturais africanas e afro-brasileiras, com o intuito de Empoderar e produzir representatividade em mulheres negras do Complexo da Maré.

Descendentes de negros e índios tiveram/têm sua cultura, seus costumes, perdidos pelo descaso e pela desvalorização, transformando os descendentes em pessoas que não se reconhecem na sociedade como detentores de uma enorme bagagem de ancestralidade e cultura, desvalorizando seus costumes, modos de agir, religiosidade, sua relação com a natureza e o mundo, sua aparência física, transformando e criando pessoas que não aceitam e se envergonham de sua cor de pele, seu cabelo e seus corpos pelo fato de não estarem de acordo com os padrões sociais estabelecidos. “Não foi por acaso, ou pela vontade divina que o negro foi escravizado, comercializado e “naturalmente” conceitualizado como raça inferior” (REGUEIRA, 2004, p. 24). Ao pensar em um campo de pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, especificadamente em um território popular, uma favela, todo o trabalho de pesquisa se insere em um contexto peculiar. É

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preciso levar em consideração as características daquele lugar, das pessoas que moram naquele lugar, o processo de formação desse espaço e, por conseguinte, o que diferencia essas pessoas de outras em outros espaços na cidade. Com isso, temos a necessidade de contextualizar, nesse projeto de pesquisa, algumas das peculiaridades do Complexo da Maré, utilizando principalmente dados empíricos de observação e atravessamentos afetivos de uma moradora e cria* da Nova Holanda, uma das 17 favelas do Complexo. Segundo Valdean (2014): A Maré é formada por 17 comunidades com um total de 140 mil habitantes distribuídos em quase 5 quilômetros quadrados. O bairro Maré é emoldurado pela Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela, principais vias da cidade do Rio de Janeiro. É um oficialmente um bairro desde 1993. (VALDEAN, 2014) Os espaços populares têm como características principais o fato de serem historicamente um lugar marcado por ausências do poder público, ausências de serviços de necessidades básicas e população majoritariamente das classes baixas do Rio de Janeiro, tendo sido formados em sua maioria por famílias removidas, ocupações sem fiscalizações governamentais e migração entre estados do Brasil. Com esse histórico de ausências e uma criação de identidade que parte da luta e da resistência dos moradores para ter o mínimo de dignidade para sobreviver, tem-se um cenário com pessoas que tiveram desde sempre seus direitos básicos negados, sua autoestima afetada e sua força física explorada, sendo majoritariamente negros e pardos, como fruto do processo de escravidão que marca construção histórica de racismo e desigualdade da sociedade brasileira.

A Maré, diferente de outras favelas do Rio de Janeiro, possui uma localização privilegiada, próxima às principais vias expressas, com uma vasta oferta de transporte público, próxima ao aeroporto e a Universidade Federal do Rio de Janeiro e com uma gama de projetos sociais e organizações não governamentais atuando em diversos segmentos, como esportes, cultura, educação e lazer. Tais fatores tornam a Maré um espaço comumente frequentado por pesquisadores, por intervenções acadêmicas e iniciativas filantrópicas e não governamentais com o objetivo de preencher lacunas governamentais. Ainda assim, é um universo de 140 mil habitantes que vivem e sentem diariamente o peso de ser morador de favela, com as frequentes incursões policiais e toda a questão referente a guerra às drogas que vigora dentro dos espaços populares. Ao pensar nas questões levantadas pelo projeto, as mulheres tornam-se o objeto de investigação principal, levando em consideração os contextos supracitados acumula-se a importância de pontuar as relações de poder, a inequidade de gênero estabelecida na sociedade de maneira geral e fortemente mantida e marcada nos espaços populares. Ao pensar nas favelas como espaço de ausências de direitos, as demandas específicas referentes às mulheres se tornam maiores, fazendo com que as mesmas tenham seus direitos violados e quase nenhuma chance de recorrer. Pensar no lugar em que a mulher ocupa nesse espaço, nas suas angústias, nas principais situações em que são encontradas e no resultado dos padrões sociais rígidos de gênero sobre suas vidas abre caminhos para entender os altos índices de violência contra mulher no Brasil, a urgência em falar sobre os padrões físicos impostos pela sociedade para essa mulher se sentir adequada, para entender as especificidades da mulher que é mãe, suas necessidades e demandas, criar al-

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ternativas para o desenvolvimento intelectual e profissional da mulher que sejam livres de preconceitos e discriminação, garantir a liberdade e o conhecimento do corpo feminino, estimulando o direito ao prazer e ao respeito, dentre outros caminhos. E assim, espera-se que a mulher entenda esse lugar de Empoderamento, buscando se fortalecer, criar vínculos e principalmente obter acessos a modelos positivos de mulheres empoderadas. Empoderamento” é um neologismo que vem da palavra inglesa empowerment e significa uma ampliação da liberdade de escolher e agir, ou seja, o aumento da autoridade e do poder dos indivíduos sobre os recursos e decisões que afetam sua vida. Fala-se, então, do empoderamento das pessoas em situação de pobreza, das mulheres, dos negros, dos indígenas e de todo aqueles que vivem em relação de subordinação ou são excluídos socialmente (OIT, 2005, p. 81)

No caso da mulher negra, sua identidade pode se fragmentar por conta da angustia sentida através da não aceitação de seu próprio corpo, voltando-se contra ele, podendo buscar formas para uma transformação radical, com finalidade de deixar de ser, São procedimentos perigosos, uma vez que a única referencia que a mulher negra tem de “ser”, foi construída a partir do referencial estético que está desejando alterar completamente. Em última instância, esta mulher está desejando sua auto-destruição. (OLIVEIRA, 2008)

O corpo é o foco do almejado Empoderamento, essa produção dos significados produzidos a partir da corporeidade feminina e negra que precisa ser esmiuçada e investigada por ter sido historicamente alvo de exclusão e humilhação, seja através da mídia e das atitudes socioculturais (hábitos) adquiridas no período de escravidão. É preciso uma atuação direcionada para essa problemática e ampliar as discussões levando em conta, como Milton Santos (2002, p. 159) pontua, O projeto propõe ainda um recorte para a popu- “três dados de base: a corporeidade, a individulação de mulheres negras moradoras do Com- alidade e a cidadania, a corporeidade tem valor plexo da Maré, ao entender que ao pensar nas central porque o corpo é capaz de trazer dados relações sociais de poder estabelecida, as mulhe- objetivos, ainda que a sua interpretação possa res negras acabam por ocupar uma posição mais ser subjetiva”. Por isso, a pesquisa visa analisar os vulnerável, devido ao preconceito racial e de gê- projetos que atuam com as linguagens artísticas nero. Mulheres negras são criadas em uma socie- da dança e tenham um olhar atento e profundo dade sexista e racista não tendo acesso a modelos aos atravessamentos gerados nos corpos dessas positivos e representatividade desde a infância. mulheres. Ainda que as mulheres africanas e afro-brasileiras tenham deixado um legado muito importante Com os temas de gênero, corpo, feminismo nepara a preservação dos patrimônios cultural e re- gro e valorização da cultura de matriz africana, ligioso africano e afro-brasileiro, até hoje sofrem pretende-se gerar resultados que auxiliem na com uma tamanha invisibilização ou uma forma compreensão de resultados positivos e impactos estereotipada de representá-las impostas pela causados nas mulheres negras a partir de intersociedade brasileira racista e sexista (OLIVEIRA, venções sociais, especificando os projetos de dan2008, p. 28). Segundo Oliveira (2008): ça, que trabalham diretamente com as noções

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corporeidades e ludicidade e então analisar quais são as possibilidades criadas a partir de um projeto de intervenção direcionado para um público tão especifico dentro de um território popular no Rio de Janeiro. Metodologia O universo pesquisado para o entendimento das questões supracitadas foca primeiramente em um quantitativo de 10 mulheres participantes de dois projetos de intervenção de dança e africanidades realizados no Complexo da Maré. Este número não se refere ao universo total de participantes do projeto. Ele parte de uma escolha estimativa de mulheres negras, alunas assíduas no projeto e escolhidas aleatoriamente. Estão sendo também entrevistadas mulheres brancas e idealizadores do projeto a fim de realizar uma comparação sobre o impacto do tema e entender o contexto pedagógico das aulas respectivamente. A pesquisa está sendo realizada com uma metodologia de análise qualitativa, a qual segundo Chizzotti (2006), é fundamentada na compreensão de que a realidade é construída na interação com o ambiente, nas diferentes relações humanas e sociais com a proposta de fazer perguntas abertas para ter a oportunidade de analisar como as entrevistadas se enxergam dentro desse contexto. Um dos instrumentos utilizados é a entrevista semi-estruturada que, de acordo com Minayo (2001), é composta por perguntas fechadas e abertas a respeito da existência, do impacto dos projetos sociais na vida das entrevistadas em relação a sua autoestima e criação de identidade. Tal metodologia foi escolhida por acreditar que desta forma cria-se liberdade para que as entrevistadas possam se expressar e responder

as questões da maneira que considerarem mais prudentes e verossímeis. Para a realização do trabalho há um aprofundamento em leituras que abordem os temas gênero, raça e etnia, feminismo negro, corporeidade, com pesquisadores e pensadores que tratem a questão da introdução da temática dos assuntos referentes à cultura afro-brasileira no âmbito educacional e cultural da sociedade, além da criação e manutenção de um diário de campo com observações sobre as aulas. Pretende-se levantar questões dentro de todo o contexto social e analisar os limites que surgem a partir de tais iniciativas, bem como mudança nas relações sociais, as estranhezas geradas nas participantes ao se deparar com os temas, a resistência dos seus familiares, os limites religiosos, dentre outros desafios. Buscamos reconhecer e explicitar as transformações causadas, os impactos diretos e indiretos provocados pela inserção de mulheres, donas de casas, estudantes, mães, filhas e avós dentro dos seus espaços de convivências, das suas famílias e locais de trabalho ressaltando enfim a importância de um projeto de intervenção artística dentro desses espaços. É preciso deixar claro que qualquer resultado dessa experiência de pesquisa não poderá ser objeto de generalização, mas sim indicar reflexões e questionamentos que permitirá perceber um nuance do tema proposto, possibilitando e fomentando o debate político e sociológico. Resultados parciais Estão sendo analisadas duas propostas de aula de dança na Maré, porém somente temos resultados de pesquisa em uma aula que teve como característica um processo artístico com começo, meio e fim, com aulas regulares e semanais ao longo seis meses. As mulheres que participaram

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das aulas criaram coletivamente um espetáculo de dança chamado Obinrin-Ventos na Maré com o tema do feminismo a partir da inspiração de uma Orixá chamada Iansã. As participantes do projeto chamado “Mulheres Ao Vento” não tinham experiências prévias em dança e as idades giravam em torno de 15 a 71 anos. As entrevistas ainda não chegaram na fase final de aplicação nem mesmo de análise. No entanto, já é possível observar alguns pontos relevantes e de interesse para a pesquisa a partir das falas das entrevistas. Usarei nomes fictícios para manter o sigilo sobre a identidade das participantes. Dentre as entrevistadas participantes temos: Andreia, de 37 anos, raça negra como nossa “Entrevistada 1” (E1); Amanda, de 15 anos, raça negra, como “Entrevistada 2” (E2); e, por fim, Aline, de 70 anos, raça branca, como “Entrevistada 3” (E3). Abaixo segue a transcrição das entrevistas com as participantes:

E3: Eu gosto das professoras, das conversas, das coisas que tô aprendendo sobre cultura, que muitas vezes a gente é ignorante e não sabe que as coisas são cultura.

Por que escolheram/resolveram fazer aulas de dança? E1: Eu estava precisando me exercitar, movimentar o corpo, não queria mais ficar em casa e só cuidar de marido e filho. E2: Minha irmã falou que ia ter as aulas de dança, eu já fiz dança quando era pequena, fiz balé, mas nunca mais tinha feito nada e ai quis fazer. E3: Eu vim com a minha filha, ela insistiu para eu fazer algo, um exercício, eu pensei que não ia conseguir dançar nada, mas agora estou aprendendo.

Considerações finais

Você percebeu alguma mudança na sua autoestima? E1: A gente vai ouvindo tanta coisa ruim ao longo da vida que até esquece quem a gente é. Sempre tive problema em aceitar meu corpo, meu cabelo, mas a gente vai aprendendo a se olhar e se valorizar, a gostar de si. Com a dança, com as apresentações você aprende a se admirar. E2: Eu acho que sim, pois a gente vai ficando mesmo tímida e tem tanta mulher negra linda, eu gosto de estar na frente dançando, todo mundo me olhando, eu me sinto bem melhor agora. E3: Você ganha saúde, passei a dançar ate em casa, meu marido não entendeu nada, só ficou falando que tô diferente.

É importante ressaltar que a pesquisa ainda está em andamento, tendo iniciado junto às mulheres um processo de entrevistas e conversas sobre suas impressões e sensações ao participarem das aulas de dança. As perguntas e as respostas explicitadas são apenas uma pequena parte da pesquisa, que conta também registros em vídeo e fotos das aulas, das apresentações, como material para análise.

Através deste pequeno recorte, nota-se a releO que mais gostam nas aulas? vância da realização de projetos de intervenção E1: Eu gosto de aprender as coisas, conhecer coi- social que tem o corpo como foco. Visto que tesas novas, nunca tinha feito aula de dança, agora mas como o machismo e racismo estrutural reaprendo um monte de coisa sobre dança e cultu- velam-se nas falas das participantes em diversos ra. Eu gosto de saber as histórias dos orixás. momentos da pesquisa. Sendo possível de obserE2: Eu gosto de me movimentar, ensaiar, fazer var em todas as conversas com as mulheres, inapresentações, me sinto bem no palco. dependentemente de sua idades, seja através dos

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seus relacionamentos afetivos, das suas relações familiares e/ou de convívio comunitário.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

Outra observação importante é garantir o recorte étnico-racial para ilustrar as diferentes demandas existentes entre as mulheres negras e as mulheres brancas no que cerne as questões sobre autoestima. Com isso, afirmo que a pesquisa segue a fim de atingir os objetivos e apresentar resultados que indiquem possíveis caminhos para trabalhar essa temática em diversos contextos, de forma lúdica e educacional.

OIT. Manual de capacitação e informação sobre gênero, raça, pobreza e emprego: guia para o leitor/ Organização Internacional do Trabalho. Brasília: 2005.

Andreza Jorge é graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro REFERÊNCIAS CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis: Vozes, 2006. GOMES, Nilma Lino. Uma dupla inseparável: cabelo e cor da pele. In. BARBOSA, Lúcia M. de Assunção. De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: Editora UFSCar, 2003. GUALTER, Katya; PEREIRA, Patrícia. Apostila da disciplina Fundamentos da Dança. Rio de Janeiro: DAC/ EEFD/ UFRJ, 2000. 21 p.

OLIVEIRA, Kiusam Regina. Candomblé de Ketu e educação: estratégias para o empoderamento da mulher negra. São Paulo: USP, 2008. REGUEIRA, Aparecida Tereza Rodrigues. As fontes estatísticas em relações raciais e a natureza da investigação do quesito cor nas pesquisas sobre a população no Brasil: contribuição para o estudo das desigualdades raciais na educação. Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado) - UERJ, 2004. SANTOS, Milton. O país distorcido. São Paulo: Publifolha, 2002. SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Imagens Negras: Ancestralidade, diversidade e educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. VALDEAN, Francisco. #DEDENTRODAMARÉ. Disponível em: < http://observatoriodefavelas. org.br/noticias-analises/dedentrodamare/>. Data de acesso: 20/08/2017

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Artigo

PORQUE NÃO HOUVE GRANDES ARTISTAS TRAVESTIS? Agrippina R. Manhattan O estudo visa investigar as relações estabelecidas pelos corpos que escapam da heterocisnormatividade (não-binários, travestis e transgêneres) e suas posições durante a história da arte. Seu silenciamento foi claro e massivo, sua (rara) presença foi restringida a posições subalternas como a de modelos e musas, ou exotificada enquanto anomalias de comportamento (freaks). Este ensaio propõe analisar brevemente a recente inserção de artistas trans no cenário da arte contemporânea ainda que sua presença seja demasiadamente inferior à de artistas cisgeneres. Palavras-chave: Gênero; História da arte; Inclusão, Historiografia. Acompanhei recentemente a polêmica envolvendo a última edição do Prêmio Pipa, onde uma reviravolta drástica de última hora deixou o público cético sobre a legitimidade da votação. Independente disso, foi a publicação de uma das artistas participantes (Lyz Parayzo) que me chamou a atenção ao perguntar “Alguma mulher venceu o prêmio Pipa?”, e ao ser informada que já houve ganhadoras ela disse “trans com certeza nenhuma”. Essa provocação me deixou inquieta. Passei a investigar essa marginalização dos corpos trans1 nos espaços da arte, apesar de sua suposta inclusão recente, usando como base o texto de Linda Nochlin, Porque não houve grandes mulheres artistas? (cuja adaptação gerou o título deste ensaio) por dois motivos: um deles é a semelhança com a situação enfrentada pelas artistas mulheres cis e por acreditar ser interessante construir um pensamento contrapondo as situações de ambos os grupos para entender quais são os compartilhamentos e as especificidade de cada um. O outro motivo é a falta de bibliografia disponível para o assunto (Por que não houve grandes travestis historiadoras da arte?), como bem explicitou Jota Mombaça:

Há pessoas trans fazendo teoria mundo afora, apesar de aqui no Brasil, por todos condicionantes sociais excludentes que conhecemos, estas presenças ainda serem muito pontuais e com pouco poder de decisão: ainda assim, onde estão elas nos referenciais bibliográficos quando se abordam questões trans? (MOMBAÇA, 2015). Uma das passagens mais potentes do texto de Nochlin se dá quando ela explica que tal pergunta opera como uma armadilha, pois ao tentarem respondê-la tal como ela é colocada as feministas estariam engajando-se num trabalho de especialista que deseja mostrar a importância do negligenciado ou do gênio menor e tacitamente reforçam suas implicações negativas. O mesmo se dá para a situação das artistas travestitrangeneres2.Reconhecer que não houve grandes artistas trans não significa questionar a capacidade dessxs artistas ou a potência de seus trabalhos e sim reconhecer que isso se dá pela dominação heterocisnormativa em nossas instituições e em nossa educação, reprendendo todxs aqueles que não tiveram a sorte de nascer brancos, preferencialmente classe média e acima de tudo homens. (NOCHLIN, 2016, p. 8)

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Na realidade, nunca houve grandes mulheres artistas, até onde sabemos, apesar de haver algumas interessantes e muito boas que ainda não foram suficientemente investigadas ou apreciadas, como não houve também nenhum grande pianista de jazz lituano ou um grande tenista esquimó, e não importa o quanto queríamos que tivesse existido. É lamentável que seja esse o caso, mas nenhum tipo de manipulação de evidência histórica e crítica vai alterar a situação, nem acusações de distorções machistas sobre a história. Não existem mulheres equivalentes a Michelangelo, Rembrandt, Delacroix, Cézanne, Picasso ou Matisse, ou mesmo nos tempos recentes, a Kooning ou Warhol, assim como não há afroamericanos equivalentes dos mesmos (NOCHLIN, 2016, p. 7-8). Se Nochlin pode relacionar a questão das mulheres com a dos afroamericanos, eu relaciono as questões das mulheres trans com a das cis uma vez que esses grupos foram convencidas culturalmente de que são minorias. O problema do outro, como Nochlin aponta, é sempre o problema do oposto: ao falar de mulheres trans estou falando de homens cis, ao falar da marginalização estou falando do privilégio. Então me pergunto se esse recorte tão especifico /homens brancos cis de classe média/ é tão populoso para que não seja considerada minoria. Não é. Nas artes assim como em outras áreas de controle do patriarcado esses elementos exercem seu domínio por causa de seus privilégios e de seu poder, ambos atribuídos a eles historicamente. É uma questão social e, sobretudo, econômica.

senta como desafio para os teóricos a criação de uma nova geografia da arte que pudesse incluir as demandas das “chamadas” minorias para que se resgatasse as vozes que foram silenciadas para a construção de uma história da arte que é predominantemente europeia (ou melhor, da Europa Ocidental visto que os países do leste europeu também foram excluídos desse projeto), branca e burguesa. As demandas do público que espera dos historiadores que reescrevam a história (BELTING, 2006 p. 95), nas palavras de Belting, nos leva de volta para o problema identificado por Linda Nochlin e é preciso ter cuidado para não mordemos a isca. Revisitar a tradição em busca de uma ou outra figura trans que tenha sobrevivido ao cistema3 não anula o problema estabelecido pela pergunta anterior: Porque não houve grandes artistas travestis? A exceção não anula a regra, esse tipo de pensamento meritocrático é justamente uma das falácias que o sistema capitalista implementou em diversas áreas, inclusive nas artes. Pensar que uma artista travesti para ser legitimada precisa somente fazer trabalhos com potência estética para igualar-se ao trabalho de pessoas cis é retomar a noção moderna da figura do Grande Artista bem como uma ingenuidade ao pensar que o mercado e o sistema da arte não têm também seus preconceitos (vemos, por exemplo, a disparidade entre artistas homens e mulheres nos acervos dos museus como bem mostra o trabalho das Guerilla Girls (fig.1).

Penso ser crucial aqui retomar o pensamento de Jota Mombaça sobre a falta de referenciais bibliográficos quando se abordam questões trans pois acredito que essa é uma das principais causas que levaram ao apagamento das artistas travestis duHans Belting em seu livro O fim da história da arte rante a história da arte. Mombaça, ao referir-se ao inclui um capítulo em que explicita a necessidade texto de Spivak, Pode um subalterno falar?, diz de revisitarmos a falha do projeto modernista de que “É claro que o subalterno ‘fala’ fisicamente; conceber uma história da arte universal e apre- contudo, sua ‘fala’ não adquire status dialógi

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co — no sentido proposto por Bakhtin –, isto é, o subalterno não é um sujeito que ocupa uma posição discursiva desde a qual pode falar ou responder”(MOMBAÇA, 2015) e elx ainda completa “O subalterno (…) não pode ser escutado ou lido” (MOMBAÇA, 2015).

Fig. 1: Guerilla Girls, Do Women Have To Be Naked To Get Into the Met. Museum? Impressão sobre Papel. New York/NY. Foto: Metropolitan Museum of Art, New York, 1989 .

O fato da transexualidade ser considerada por muito tempo perversão sexual ou patologia impediu que esses corpos ocupassem locais de estudo acadêmico e discussão intelectual banindo-os para áreas marginalizadas como a prostituição ou encarcerando-os em instituições médicas. Esse cenário ainda não foi totalmente revertido. A maior parte da população travesti no Brasil, por exemplo, atualmente ainda recorre à prostituição como forma de subsistência/sobrevivência. Porque não houve grandes artistas travestis é uma de uma série de perguntas que devemos fazer para entendermos toda a situação de exclusão sofrida pela população travestitrangenere. Por que a transexualidade só deixou de ser considerada transtorno psiquiátrico nos anos 90? Por que ainda vemos tanta evasão escolar por falta de respeito ao uso do nome social sendo que este é garantido por lei? Por que a questão da passabilidade é um tema recorrente nas discussões como forma de hierarquização (quanto mais passabilidade mais o reconhecimento da identidade de gênero) e por que ainda temos a fixação no órgão genital como o martelo que decide quem é homem e quem pode ser mulher?

Apesar de acreditar que as academias hoje apresentam uma maior abertura ao diálogo para tais questões é preciso ter cautela. A entrada de tais discussões no ambiente acadêmico é insignificante se não for acompanhada pela possibilidade de entrada desses corpos trans no mesmo espaço. Arrisco-me a dizer que nunca haverá grandes artistas travestis enquanto não houver travestis historiadoras da arte. O motivo é simples, enquanto a história for escrita pelos que oprimem, os oprimidos não terão voz. Como diz Nochlin: Aqueles que dispõem de privilégios, inevitavelmente se agarram a eles com força, não importando o quão marginal a vantagem envolvida é até que sejam persuadidos a render-se a um poder superior de alguma ordem ou outra. Dessa maneira, a questão da igualdade das mulheres, na arte ou em qualquer outro campo, não recai sobre a relativa benevolência ou a má intenção de certos homens, ou sobre a autoconfiança ou “natureza desprezível” de certas mulheres, mas sim na natureza de nossas estruturas institucionais e na visão de realidade que estas impõem sobre os seres humanos que as integram (NOCHLIN, 2016, p.12). Tal apagamento, acredito, se dá pela falha dos conservadores em reconhecer as necessidades de tais pessoas ao entrarem no meio acadêmico, como por exemplo, o direito ao nome social. O que na realidade é um reflexo da falta de aptidão da academia, sobretudo no Brasil, de lidar com a diversidade. Assim como a academia cria um ambiente não-inclusivo para as travestistransgeneres, ela também o faz para a população negra, para as mulheres e para aqueles de baixa renda. Desta forma, ela assegura a perpetuação de uma hegemonia heterossexual, branca, ocidental e de predominância

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masculina. Por que não houve grandes artistas negras? Por que não houve grandes artistas travestis negras? Por que não houve grandes artistas chinesas? Por que não houve grandes historiadores da arte brasileiros?

O descolamento criado por ambas as artistas é um exemplo das táticas usadas por indivíduos que não se veem representados na história da arte ou na cultura. Ellen Y. Tani escreveu em seu ensaio What Makes Contemporary Art Feminist? que a apropriação de trabalhos de arte canônico (como é o caso de Mickalene) e a intervenção em paradigmas históricos (como é o caso de Giorgia) são ferramentas usadas pelas artistas feministas, e, neste caso, transfeministas também, para subverter a autoridade dos mesmos (TANI, 2015).

Fig. 2: Mickalene Thomas, A Little Taste Outside of Love, Acrílico, esmalte e strass no painel de madeira. Brooklyn, New York. Foto: coleção Brooklyn Museum, 2007

Essas questões não passam despercebidas a artistas que insistem, apesar de todas os empecilhos já citados, perseverar em sua poética e fazer sua voz ecoar, como podemos ver na obra A Little Taste Outside Of Love de Mickalene Thomas (fig. 2) que usa a apropriação do quadro de Ingres para inserir um corpo feminino e negro dentro de uma tradição de sexualização do corpo feminino, como explicitado pelo trabalho das Guerrila Girls anteriormente citado, e da exclusão das mulheres negras nas cenas clássicas, exceto quando retratadas como escravas. Ou na obra da artista Giorgia Narciso (Fig.3), Hermaphroditus, em que ela retrata seu próprio corpo nu, colocando para o espectador a figura de uma mulher que possui um pênis, quebrando a concepção binária de mulher/vagina homem/pênis para inserir um corpo contrassexual e feminino. O trabalho de Giorgia apresenta também o descolamento do poder para si, já que ela assume a postura central na obra e, ao contrário de outras representações do corpo travesti – como em Sleeping Hermaphroditus de Bernini ou Mario Banana de Warhol – ela não aparece somente no lugar de modelo, mas também no de artista.

Fig. 3: Giorgia Narciso, Hermaphroditus, Pastel seco sobre papel. Rio de Janeiro /RJ. Coleção da artista. Foto: Imagem cortesia da artista, 2017.

A inclusão das temáticas travestitransgeneres na arte é um sinal de que nossos corpos (me incluo nessa fala enquanto pesquisadora mulher nãocis) não podem mais ser submetidos aos antigos estandartes sejam eles do pensamento clássico de gênero pelo binarismo ou pelo apagamento de nossas falas na história da arte. As artes e a academia ainda não estão preparadas para que nossas questões sejam levantadas. Mas não há mais tempo de espera: as travestis chegaram para mostrar que, na verdade, aqui sempre estiveram.

Agrippina Manhattan é graduanda em História da Arte, na Escola de Belas Artes - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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NOTAS 1 Termo usado pela ativista trans e vereadora Indianara Siquieira para descrever uma união entre pessoas travestis e mulheres trans que são, como colocado por Amara Moreira, palavras sinônimas, o que não quer dizer que signifiquem o mesmo (MOREIRA, 2017). 2 Termo usado pela ativista trans e vereadora Indianara Siquieira para descrever uma união entre pessoas travestis e mulheres trans que são, como colocado por Amara Moreira, palavras sinônimas, o que não quer dizer que signifiquem o mesmo (MOREIRA, 2017). 3 Trocadilho com as palavras cisgênero e sistema que indica o domínio repressor heterocisnormatico. Aprendi este termo com a fabulosa Mariah Rafaela lendo sua dissertação Antropofagia Queer, (Trans) Imagem e Poder, 2015. 4 Passabilidade é um termo usado nas discussões de transfeminismo que significa literalmente ser passável, em outras palavras ser confundida com uma pessoa cis. A passabilidade é muitas vezes encarada como algo a ser desejado pelas pessoas trans como se ao ser passável ela fosse “de verdade”. No entanto frequentemente a imposição da passabilidade se enquadra como uma forma de controle dos modelos binários homem/mulher, pênis/vagina impossibilitando a existência de uma diversidade dos modelos sexuais.

MOREIRA, Amara. Travesti ou mulher trans: tem diferença? Mídia Ninja, 2017. Disponível em < http://midianinja.org/amaramoira/travestiou-mulher-trans-tem-diferenca > Acesso em 20/08/2017. NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições Autora/ Publication Studio São Paulo, 2016. Tradução de Juliana Vacaro. SILVA, Mariah Rafaela. Antropofagia Queer, (Trans) Imagem e Poder. Mariah Rafaela Silva. 2015. 93f. Trabalho de conclusão de curso (TCC) de história da arte – Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. TANI, Ellen. What Makes Contemporary Art Feminist? An Art Genome Project Case Study. New York: Artsy, 2015.

Referências BELTING, Hans. Arte Universal e minorias: Uma nova geografia da história da arte.In: O fim da história da arte: Uma revisão 10 anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. MOMBAÇA, Jota. Pode um cu submisso falar?. Medium, 2015. Disponível em https://medium. com/@jotamombaca/pode-um-cu-mesticofalare915ed9c61ee Acesso em 19 set 2017.

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ARTIGO

NARRATIVAS DA REGIÃO PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: AÇÕES ARTÍSTICAS, MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E INTERVENÇÕES NO COTIDIANO Carlaile Souza A proposta visa investigar narrativas (re)produzidas por artistas, instituições do poder público e privadas, moradores da Região Portuária do Rio de Janeiro e atores sociais diversos, analisando como essas histórias e discursos dialogam com o cotidiano, passado, manifestações culturais, religiosas e tradicionais e se propagam no cenário atual de transformações na infraestrutura urbana ali recorrentes. Salientaremos como esses fatores constituíram a região em um lugar polifônico e híbrido, que se ressignifica a partir de intervenções variadas. Refletiremos como ações artísticas e manifestações culturais realizadas nesta região se integram ao contexto social, sendo importantes para compreensão de fenômenos sociais de convivialidade. Palavras-chave: Narrativas; Arte; Região Portuária; Intervenções; Cotidiano. A partir de observações efetuadas na Região Portuária do Rio de Janeiro, a proposta desta pesquisa é investigar os processos de criação e intervenções nas quais o agente que produz imagens fotográficas acarreta, as narrativas visuais do cotidiano que o mesmo constrói e sua performance. Consideramos que os registros fotográficos do cotidiano são uma forma em que pode ser detectada pouca interferência no momento de concepção da imagem. Por esse motivo, o epicentro de nosso recorte será analisar a figura do “intruso fotográfico” na Região Portuária do Rio de Janeiro e as imagens históricas e atuais registradas deste lugar por agentes diversos. Citamos, por exemplo, os fotógrafos Augusto Malta e Marc Ferrez, que registraram as transformações urbanas da cidade do Rio de Janeiro, como a construção do Porto do Rio de Janeiro, no início do século XX. Além disso, de acordo com os dizeres da placa que apresentamos neste projeto, moradores dessa área demonstraram aversão à figura do agente que produz imagens fotográficas. A Região Portuária do Rio de Janeiro esteve “abandonada” por

anos. Da década de 80 para cá, com os primeiros projetos de revitalização e reestruturação desta área – Sagas1, Prorio2 e, posteriormente, com o Projeto Porto Maravilha, iniciado em 2009 – a região tornou-se foco de inúmeros investimentos no setor imobiliário, comercial, industrial e no âmbito na arte e cultura. O Projeto Porto Maravilha – Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região Portuária do Rio de Janeiro –, segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro e empresas privadas que são parceiras no empreendimento3, tem a finalidade de promover a reestruturação local, por meio da ampliação, articulação e requalificação dos espaços públicos da região. A iniciativa surgiu aproveitando a realização da Copa do Mundo de Futebol, realizada em 2014 aqui no Brasil, e, principalmente, dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. Como o ocorrido em Barcelona, na Olimpíada de 1992, o projeto de candidatura do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos está vinculado à revitalização

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da Região Portuária e obras na infraestrutura de seus bairros. De acordo com informações disponibilizadas no site do Projeto Porto Maravilha4, a proposta prevê a preservação e valorização do patrimônio cultural, recuperação e restauro material do patrimônio artístico e arquitetônico, estímulo ao turismo e outras ações. Desde o início de grandes obras na infraestrutura da Região, descobertas foram feitas, como o Cais do Valongo e da Imperatriz, na Gamboa; equipamentos culturais foram instalados, como o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), inaugurado em 2012; e o Museu do Amanhã, aberto ao público em 2015, ambos localizados no bairro Saúde, e outras ações que estão permitindo uma nova reconfiguração desta área. Essas ações atraíram novos públicos, instituições públicas e privadas e atores sociais diversos. Ao mesmo tempo, artistas e grupos que atuam nas áreas da arte e da cultura já existentes neste lugar tornaram-se mais visíveis. Com isso, ações artísticas e manifestações culturais foram realizadas mais frequentemente, (re)produzindo outras narrativas, em alguns casos atendo-se ao passado do lugar, outras introduzindo novos discursos, elementos, agentes sociais, linguagens e agregando elementos de outras culturas e tradições de lugares distintos. Um dos exemplos é a instalação da Casa do Maranhão, no bairro Gamboa, em que a comunidade maranhense e adeptos se encontram, realizam eventos, oficinas, intercâmbios com grupos da cultura popular, mantendo suas tradições e as difundindo em solo carioca.

lorizassem o patrimônio cultural imaterial da Região Portuária e voltados à chamada Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região do Porto do Rio de Janeiro5. No total, R$ 2 milhões foram destinados a 20 propostas nas áreas de fotografia, audiovisual, teatro, dança, literatura e outras ações. As seguintes propostas de artistas, grupos e coletivos foram premiadas: Carnaval do B.E.M - Oficinas e Atividades Pré-Carnavalescas do Bloco Escravos da Mauá; Desfiles dos Blocos e Bandas da Liga Portuária; “Em Torno da Fábrica” - Fim de Semana do Livro no Porto; Mystérios e Novidades do Porto; Oficinas de História na Zona Portuária; Porto Aberto: A Memória Viva; Porto da Pequena África; Projeto Som e Samba Carioca; Roda de Samba da Pedra do Sal, de Mão Dadas; Arte Arteira de Tia Lucia; Cabaré do Porto; Guia Acessível: Espaços Culturais e Gastronômicos do Porto Maravilha, Percorrido por Bicicleta; Histórias Afro Brasileiras, Cenas Itinerantes Ano I; Noite de Autógrafos; Pedra Que Samba; Porto de Memórias - Retratos em Postais; Porto em Foco: Registro Fotográfico das Transformações na Região Portuária; Prata Preta: Folia Sempre, Ditadura Nunca Mais - 50 Anos do Golpe de 64 no Brasil - Providência Sustentável6.

Alguns projetos tiveram como proponentes artistas e grupos que possuem vínculos, que moram ou estão instalados na Região Portuária, enquanto outros participaram do edital por interesses diversos. Em nossa pesquisa, verificamos que parte das propostas foi executada, como as oficinas de História na Zona Portuária, realizadas no Cemitério dos Pretos Novos, por meio do Instituto dos Pretos Novos (IPN); o documentário Em 2013, a Prefeitura do Rio de Janeiro, por meio Pedra que Samba, que conta a história do samba da Companhia de Desenvolvimento Urbano da na Pedra do Sal, e outros. Entre eles, o projeto Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), di- Histórias Afro Brasileiras, Cenas Itinerantes, reavulgou o edital Prêmio Porto Maravilha Cultural, lizado pelo grupo Periferia Cena Portuária, enceque pretendia premiar projetos culturais que va- nava parte da história da escravidão pelas ruas e

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espaços históricos marcantes da região do porto. A primeira cena era apresentada na Pedra do Sal; em seguida o Observatório do Valongo, seguindo ao Jardim Suspenso do Valongo, no Morro da Conceição, bairro Saúde. Os atores passavam, ainda, pelo Cais do Valongo e da Imperatriz, prosseguindo ao Centro Cultural José Bonifácio e finalizavam no Cemitério dos Pretos Novos, na Gamboa, apresentando e adaptando a encenação em cada espaço percorrido. A peça é apreciada, na maioria dos casos, por turistas, pesquisadores e outros interessados na região. No entanto, podemos observar que é apresentada nos espaços constituídos como integrantes do Circuito da Herança Africana7, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro.

Brasil (1989), e do artista alemão Johann Moritz Rugendas, que registraram em suas telas o cotidiano da cidade que observavam àquela época no Brasil. As historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu (2013, p. 119), no artigo Lugares do tráfico, lugares de memória: novos quilombos, patrimônio cultural e direito à reparação, citam que “pelo testemunho do desenhista Rugendas, no início do século XIX, as áreas da Pedra do Sal e da Prainha serviram como primeira morada aos pretos novos que chegavam da África”.

Em Viver na rua, viver a rua: usos e práticas da moradia escrava na Guanabara oitocentista, Ynaê Lopes dos Santos (2011) salienta o relato de viajantes que aportavam em terras brasileiras e relatavam o que presenciavam. Um deles é DeAssim, atestamos inúmeras formas de retratar bret, convidado a participar da Missão Francesa, a região, apresentando narrativas efetuadas por em 1816, que resultou na fundação da Academia moradores deste lugar, que possuem vínculos Imperial de Belas Artes no Brasil. Durante sua diversos com a região, e atores sociais conside- estadia em terras brasileiras, o pintor observou rados “de fora”. Refletir sobre essas narrativas é o cotidiano e o representou em suas obras, deimportante, pois cada um possui uma maneira monstrando o trânsito entre a escravidão e os de narrar, que pode ser apregoada ou não de li- universos da casa e da rua. Em sua observação gações sentimentais e memoriais, e para visuali- da obra “Interior de casa de família pobre com zarmos os objetivos que esses projetos e ações al- escrava entregando dinheiro”, Santos (2011, p. cançaram. Ao mesmo tempo em que essas ações 96) relata que: artísticas e manifestações culturais são realizadas, respondendo a necessidades e vontades dos A cena retratada mostra uma escrava na proponentes dos projetos e narrando histórias ou sala da casa, com um cacho de bananas acontecimentos ocorridos na Região Portuária, na cabeça entregando algumas moedas à seja no passado ou presente, tais iniciativas tamsua jovem senhora. Segundo a imagem e bém podem contribuir para camuflar processos os comentários de Debret, é evidente que de modernização da região e que envolvem desose trata de uma família humilde. A própria cupação de famílias, gentrificação, entre outros casa dá os sinais de pobreza: casa ao rez fatores. do chão, com sala e cozinha pau a pique; a presença das galinhas no interior reforEssas narrativas focadas no cotidiano da região ça a rusticidade da moradia. Debret ainjá eram elaboradas no período da escravidão, da afirmou que aquela única escrava era como as do pintor francês Jean-Baptiste Debret, responsável pelo sustento da família, pois publicadas em Viagem Pitoresca e Histórica do era ela quem saía às ruas em busca de tra-

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balho, e por isso mesmo, quem trazia dinheiro para suas senhoras, sem especificar que atividades a cativa realizava. Mesmo retratando uma família pobre em cuja residência as senhoras e a escrava dividiam o mesmo espaço, por meio da postura e da posição das personagens, o francês deixou claro que estava mostrando uma relação de poder independentemente da condição econômica. O exame dessa cena indica a complexidade dos arranjos domésticos. (SANTOS, 2011, p. 96) Também rememoramos os fotógrafos carioca Marc Ferrez, o alagoano Augusto Malta e o espanhol Juan Gutierrez que, por meio de fotografias, retrataram as transformações da cidade do Rio de Janeiro, entre elas as mudanças na Região Portuária. Desses artistas e fotógrafos que citamos, apenas um era originário do estado do Rio de Janeiro, enquanto os outros eram de outros países e estados. Tal característica é importante, uma vez que mesmo vivendo em terras brasileiras ou cariocas, a visão inicial que imprimiam à região era de um olhar “de fora”. Interessa-nos retratar que essa visão externa influencia na produção de obras, sob diversos aspectos. Néstor Canclini (2006, p. 21) relata que: O antropólogo chega à cidade a pé, o sociólogo de carro e pela pista principal, o comunicólogo de avião. Cada um registra o que pode, constrói uma visão diferente, portanto, parcial. Há uma quarta perspectiva, a do historiador, que não se adquire entrando, mas saindo da cidade, partindo de seu centro antigo em direção aos seus limites contemporâneos (CANCLINI, 2006, P. 21)

dos com os questionamentos sobre a produção desses agentes externos à região. Neste sentido, também remetemos a Clifford Geertz (2009, p. 146), que enfatiza que “este processo de atribuir aos objetos de arte um significado cultural, é sempre um processo local”. Mapas: versões visuais Na pesquisa, encontramos outras maneiras de representar narrativas. Remeteremos a versões visuais a respeito da região, que incorporam e veiculam interesses e formas de avaliar e conceber espaços ocupados coletivamente, interferindo nas maneiras por meio das quais são concebidos e experimentados por diferentes atos sociais. Entendemos que sem uma análise exaustiva estamos nos referindo a ocorrências estudadas por pesquisadores, acionadas frequentemente pelo poder público e agências particulares, que circulam e são recriadas pelos moradores da região, não de modo homogêneo ou consensual. Com o surgimento de outras ocupações e realização de intervenções urbanas na infraestrutura da Região Portuária pelo poder público e empresas privadas, a configuração da área tem se alterado e sido apresentada de diferentes formas. Uma delas é por meio de mapas, elaborados pela Prefeitura do Rio de Janeiro, pelo Projeto Porto Maravilha, Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e por artistas do Morro da Conceição. Em dois deles, verificamos as transformações propostas na infraestrutura da região, dentre elas a alteração dos limites de bairros e outras modificações. Essa representação efetuada pelo poder público e empresas privadas indica, com ênfase, os locais considerados “atrativos”8.

De acordo com nossa vivência na região - com Rudolf Arnheim (1989), em seu texto A Percepuma perspectiva “de fora” - fomos surpreendi- ção de Mapas, descreve as formas de leitura vi-

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sual encontradas em mapas e maneiras de reconhecimento de uma informação ali destacada. O autor ressalta que os elementos constituintes em mapas são apresentados por meio de desenhos, pintura, cores, traços e distribuição ordenada dos ambientes, buscando uma compreensão objetiva do ser humano. De acordo com Arnheim: Numa imagem simbólica como um mapa, nenhum detalhe está hermeticamente desvinculado de seu contexto. Os mapas desencorajam o isolamento de detalhes singulares. Asseguram a continuidade do mundo real. Mostram as coisas no seu ambiente, e, portanto, exigem um discernimento mais ativo da parte do usuário, a quem se oferece mais informação do que veio buscar; o usuário, porém, também é convidado a olhar para as coisas com inteligência. Uma maneira de olhar as coisas inteligentemente é vê-las no seu contexto (ARNHEIM, 1989, p.206).

tação contempla a Praça Mauá, Saúde, Gamboa, Morro da Conceição, Santo Cristo, Nova Rua Larga, Morros da Providência e Livramento, Linha Férrea, Senador Pompeu, Morro do Pinto e Porto Olímpico. Em cada setor foram destacados espaços e elementos que são considerados representativos da cidade do Rio de Janeiro, cuja finalidade seria “evidenciar suas peculiaridades e seu potencial de desenvolvimento”10.

As duas representações do mapa foram elaboradas com base nas intervenções urbanas ocorridas na infraestrutura dessas regiões, mostrando os impactos das obras e apontando as alterações que estão para acontecer. No instante em que o poder público e empresas privadas decretam lugares considerados importantes de uma região em detrimento de outros, essas áreas são reconfiguradas e, ao mesmo tempo em que é propagada a intenção de dinamizar o trânsito, melhorar a mobilidade, visibilidade e conforto aos seus usuários, essas configurações alteram o conhecimento que o residente tem de sua localidade, seu No mapa elaborado pelo Porto Maravilha, um le- cotidiano e as relações sociais entre eles, muitas vantamento foi realizado dos pontos turísticos e vezes correspondendo a transformações efetivas de comércio, espaços de entretenimento – boates em suas práticas. e bares –, religiosos – igrejas –, equipamentos culturais – como museus e teatros –, entre ou- Giulio Carlo Argan (2005), em História da Arte tros da Região Portuária. Esses lugares, no total como História da Cidade, apresenta textos que de 107, foram divididos em 14 categorias. A gran- dialogam sobre os espaços do meio urbano, a de quantidade de elementos “atrativos” apresen- arte e o sujeito imerso no complexo citadino. Em ta paradoxos do que pretende-se valorizar, uma seu estudo, vincula a arte à construção do meio vez que os critérios adotados para essa valori- urbano e às relações sociais entre os sujeitos, zação são difusos. Para Arnheim (1989, p. 212), sinalizando preocupação sobre a valorização de “um mapa que contém um máximo de detalhes determinados espaços em detrimento de outros. torna mais difícil a apreensão dos elementos es- De acordo com Argan (2005, p. 77), “a atribuição de valor histórico e artístico não apenas aos senciais”. monumentos, mas também às partes remanesUm segundo mapa do Projeto Porto Maravilha centes de tecidos urbanos antigos, ainda depende apresenta a proposta de divisão da Região Portu- certamente de um juízo acerca da historicidade ária em 11 núcleos homogêneos9. Essa represen- deles”.

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Um terceiro mapa analisado, do projeto O Morro e o Mar, foi elaborado pelo Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), destacando ateliês e descrevendo lugares considerados “atrativos”, como o Sítio Arqueológico da Avenida Barão de Tefé, Jardim Suspenso do Valongo, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Fortaleza da Conceição, Palácio Episcopal, Café Imaculada, Edifício A Noite, Praça Mauá, Restaurante Galeria Sacabral, Igreja e Largo São Francisco da Prainha, Pedra do Sal, entre outros espaços. O mapa contempla basicamente os espaços com potencial turístico e apresenta a região induzindo a considerar como importantes os locais sublinhados pelo MAR. Porém, tendo em vista que esse mapa é um instrumento de referência e localização durante visitas guiadas, nas quais um profissional de turismo explica com mais detalhes os percursos, histórias e o que eram – são – os espaços ali instalados, existiria neste processo, segundo Arnheim (1989, p. 205) “a imaginação alimentada pela experiência”, que evoca imagens por meio das ilustrações no papel “a partir dos reservatórios da memória do observador”. Um quarto mapa que analisamos foi desenvolvido pelos artistas do Projeto Mauá, na edição de 2013. A apresentação é diferenciada se comparada ao mapa do MAR, seja pela maior quantidade de ateliês quanto pela definição dos lugares “atrativos”, definidos anteriormente. Além dos espaços considerados relevantes, o mapa excluiu outros, como a Pedra do Sal e Sítio Arqueológico do Valongo. Ali, os artistas estão inseridos no mesmo contexto dos modelos anteriores, com seus espaços de criação considerados “atrativos”, citados com a mesma importância e destaque que outros monumentos históricos ou pontos turísticos. As definições de locais importantes neste mapa possuem critérios, apesar de difusos, que

se ligam à história de cada lugar e ao que pretende-se valorizar. Ações artísticas e manifestações culturais As ações artísticas e manifestações culturais realizadas na Região Portuária são, de certo modo, utilizadas como estratégias para o crescimento econômico e estímulo ao turismo da região, pois as iniciativas para revitalização das áreas portuárias preveem esse retorno financeiro. No artigo Museus e cidade: o caso do MAR na Zona Portuária do Rio de Janeiro, Sabrina Parracho Sant’Anna (2013) descreveu as negociações para a instalação do MAR, os conflitos políticos gerados com as diversas propostas para sua construção, discursos oficiais e a possibilidade da edificação desse equipamento cultural na região que agregasse uma rede de agentes sociais que, de certo modo, suscitariam o debate do papel do museu. Analisando documentos e reportagens jornalísticas que informavam a condução do processo para edificação da instituição, a pesquisadora ressalta que, além do incentivo à arte e cultura, os poderes público e privado e outras instituições envolvidas na elaboração do projeto objetivavam o retorno financeiro e o incremento do fluxo turístico. As negociações duraram mais de dez anos. Neste tempo, artistas do Rio de Janeiro se posicionaram contra a construção do Museu denunciando, conforme aponta Sant’anna (2013, p. 47), o processo de gentrificação, a “espetacularização” e a “impossibilidade de consenso”. No entanto, diferente do projeto inicial, que pretendia ser uma filial da famosa Fundação Solomon Guggenheim – mantenedora de diversos museus internacionais –, e após polêmicas e discussões sobre sua construção, o MAR passou a ser interpretado, de acordo com a pesquisadora, como revelador “do polo de economia criativa que tem se criado na região”. A autora ressalta que:

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A nova sede do MAR se inscreve, portanto, numa série de políticas baseadas na ideia de que é preciso criar novos mercados para a produção brasileira de bens de cultura. Trata-se, simultaneamente, de centrar o desenvolvimento da região na criação de um polo de consumo cultural, ampliando as fronteiras e incluindo novos consumidores, mas também de transformar a Zona Portuária num espécie de vitrine internacional, capaz de atrair turistas, uma classe criativa e mercado. O MAR se presta, portanto, a construir uma imagem da cidade cuja eficácia se mede de mais a mais pelo que se fala sobre ou pela quantidade de vezes que é acessada (SANT’ANNA, 2013, p. 51).

locais de implantação de novas áreas comerciais e habitacionais”.

Neste cenário, também remetemos à pesquisa de Alain Quemin (2008) ao acompanhar a edição do Nuit Blanche11, um evento de arte que aconteceu entre a noite de 4 a 5 de outubro de 2013, na França, em que vários ateliês permaneceram abertos para o público e diversas atrações movimentaram as regiões contempladas pela ação. O estudo originou o artigo A arte contemporânea no decorrer de uma noite: um olhar sociológico sobre a Nuit Blanche 2013 e sua recepção pelo público. Nele, o pesquisador ressalta o sucesso do evento e participação em massa da população - um número estimado em mais de um milhão de pessoas que se dirigiram aos locais onde as Leopoldo Guilherme Pio (2012), por sua vez, exposições de arte aconteceram -, as práticas coinvestiga iniciativas no âmbito cultural empre- letivas observadas e destaca os possíveis motivos endidas na Região Portuária, descrevendo os que fez a iniciativa ser bem recebida pelo público. processos de intervenção urbana realizados pelo Quemin ressalta que: Projeto Porto Maravilha, os discursos de memóAo ser apresentada a um grande número ria da cidade e os investimentos nesta área. Em de pessoas, a arte contemporânea pode se seu artigo A revitalização do Porto do Rio de Jatornar uma realidade não mais hermétineiro: memória e cultura como centralidades na ca ou repulsiva, mas acolhedora, exponorganização da sociedade contemporânea, o audo ainda mais sua abertura, que funciona tor relata que as transformações na infraestrutucomo uma passagem em direção a outras ra foram inspiradas em modelos internacionais realidades, que se abrem sobre a cidade, empregados em países como Estados Unidos, sobre seus diferentes lugares e até mesmo Holanda, Honk Kong, Índia, Inglaterra, Espanha sobre outros personagens encontrados due Argentina, e nos estados brasileiros Maranhão, rante a noite e com os quais se inicia um Espírito Santo e São Paulo. contato (QUEMIN, 2008, p. 200-201). Pio (2012, p. 309-310) declara que as intervenções urbanas na infraestrutura na região do Por- Áreas consideradas históricas se tornam regiões to do Rio de Janeiro e do seu entorno podem ser em que a cultura e a arte são vistas como fatointerpretadas “como mais um ato de reinvenção res de valorização econômica e imobiliária, cuja da identidade da cidade”. O autor completa que pretensão é recriar espaços “atrativos” para a ci“a necessidade de renovar a economia e a identi- dade, empresários, turistas e moradores de oudade urbana da cidade justifica a recuperação de tras regiões que buscam esses locais para moncentros históricos e áreas portuárias, vistos como tar empreendimentos e, antes pouco exploradas,

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do Morro da Conceição. 3 No âmbito do poder público é gerenciado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP). No lado privado, a iniciativa é administrada pela Concessionária Porto Novo – contando com as construtoras OAS Ltda, Norberto Odebrecht Brasil S.A e Nossa contribuição, a partir desta pesquisa, está Carioca Christiani-Nielsen Engenharia S.A -, resvoltada para a inclusão enfática dos fenômenos ponsável pelas obras e que deterá a concessão da artísticos, dos elementos da vida social que fazem região por 15 anos. Disponível em: http://www. com que os indivíduos produzam coletivamente portonovosa.com/pt-br/sobre-a-concessionaria. significados para a arte. Se ela fará ou não senti- Acesso em: 20 de agosto de 2017. do para suas vidas, se será ou não apreciada posi- 4 Disponível em: http://portomaravilha.com.br/ tivamente, o fato é que ela tem a ver com práticas web/sup/OperUrbanaApresent.aspx. Acesso em: coletivas de ocupação do espaço em que a arte 20 de agosto de 2017. é experimentada, com formas dos indivíduos 5 Disponível em http://portomaravilha.com.br/ se relacionarem e com dimensões relevantes da materias/edital/edital-cultura.aspx. Acesso em: vida cotidiana. 20 de agosto de 2017. 6 Disponível em: http://portomaravilha.com.br/ materias/premio-porto-maravilha/p-p-m.aspx. Acesso em: 20 de agosto de 2017. Carlaile Souza é mestre pela Universidade 7 Segundo o site do Projeto Porto Maravilha, o Federal Fluminense. Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana é um projeto de políticas de valorização da memória e proteção do patrimônio da Região NOTAS Portuária, formado por diversos monumentos históricos, como o Cais do Valongo e da Impera1 Segundo Fernando Diniz Moreira e Eliana Mitriz, Cemitério dos Pretos Novos, Centro Cultural randa Araújo da Silva Soares (2007), o nome SAJosé Bonifácio, Largo do Depósito e Jardim SusGAS é formado pelas iniciais três bairros - Santo penso do Valongo. Disponível em: http://portoCristo, Gamboa e Saúde. Foi um projeto de promaravilha.com.br/conteudo/ccjb.aspx. Acesso teção ao conjunto de imóveis, que propunha nova em: 20 de agosto de 2017. legislação que preservasse o uso residencial e pa8 Essa definição foi encontrada no site do Projeto trimônio arquitetônico e cultural dessas áreas. Porto Maravilha. Ver em http://portomaravilha. 2 As autoras Márcia Frota Sigaud e Maria Maducom.br/web/direito/conhecaRegiao.aspx. Acesso reira Pinho (2000), o Prorio foi um projeto criado em 20 de agosto de 2017. em 1998 que tinha como princípios básicos inten9 Disponível em: http://portomaravilha.com.br/ sificar a articulação entre os diversos programas web/direito/conhecaRegiao.aspx. Acesso em: 20 da Prefeitura do Rio de Janeiro, promovendo um de agosto de 2017. conjunto de ações complementares à organização 10 Idem. urbana, que visavam reabilitar e valorizar o pa11 Traduzindo, Nuit Blanche significa “noite em trimônio urbanístico, paisagístico e arquitetônico claro”. Ver em Quemin, 2008. apontadas também como lugares para moradia. Os artistas, de certo modo, correm o risco de se tornarem “inimigos” dos moradores que esperam viver em suas áreas sem terem seu modo de viver abalado ou tendo que lidar com os interesses de especuladores imobiliários.

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PIO, Leopoldo Guilherme. A revitalização do porto do Rio de Janeiro: memória e cultura como centralidades na organização da sociedade conARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como His- temporânea. In: Rio de Janeiro: um território tória da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. em transformação. SANTOS, Angela Moulin S. ARNHEIM, Rudolf. Intuição e Intelecto na arte. Penalva, MARAFON, Glaucio Jose, SANT’ANNA, Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Maria Josefina Gabriel (orgs.). Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989. Gramma, 2012. REFERÊNCIAS

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artigo

LUGARES DO DELÍRIO: TRÂNSITOS ENTRE ARTE E LOUCURA NA CONTEMPORANEIDADE Daniela Cassinelli Desde o século XX o trânsito entre arte e loucura vem sendo colocado sob diferentes pontos de vista. A partir de um enfoque institucional, tomando-se o contato entre o mundo da arte e o da psiquiatria, o presente artigo tem por objetivo analisar a proposta curatorial da exposição Lugares do Delírio, no Museu de Arte do Rio, através de textos e falas disponíveis nas mídias oficiais, que colocam em questão as fronteiras entre arte e loucura na contemporaneidade, procurando descortinar seus discursos no seio da instituição museológica. Sendo assim, experiências prévias de exposições de arte sobre a loucura no Brasil, e conceituações feitas por críticos de arte, como Mário Pedrosa, em contato com o trabalho da revolucionária Nise da Silveira, pretendem dar conta de um contexto brasileiro anterior ao da exposição analisada, relacionando-os. A pesquisa tem como horizonte teórico os discursos do qual a arte e a loucura foram submetidos historicamente, e confrontandoos busca encontrar pontos de convergência e divergência entre eles. Desta forma, revelar como as exposições de arte se propõem a pensar a loucura na sociedade e agir sobre ela, e ressaltar a importância das práticas artísticas e culturais para a mudança de configurações ultrapassadas baseadas na instituição hospitalar, criando outras concepções e realidades criativas-afetivas, que se propõem a novas dinâmicas de cidadania. Palavras-chave: arte; loucura; exposição 1.Introdução

dia 7 de fevereiro ao dia 10 de setembro de 2017, é capaz de trazer para debate o lugar estabeleciEsta pesquisa parte da tentativa de uma arqueo- do da loucura e da arte, propondo intermeios e logia dos dispositivos historicamente acionados conexões entre eles. Para isso, faremos um breve pela arte e pela loucura, ou seja, escavar seus pro- panorama de exposições de arte sobre a loucura cessos de significação e construção sócio históri- no Brasil a partir do século XX, afim de relacioca até a atualidade através das figuras do artista ná-las, destacando o que a proposição curatorial e do louco, e das instituições que lhe caberiam, desta exposição levanta de diferente, e como faz isto é, do museu e do manicômio, entendidos refletir o paradigma da arte e da saúde mental na como instrumentos do pensamento hegemônico contemporaneidade. eurocêntrico, cartesiano, burguês, etc, de forma que estão muito presentes ainda hoje na nossa No início do século XX estava a psiquiatria em maneira de compreender e agir sobre o mundo. seu auge com a presença de inúmeros hospícios ao redor do país, cujos tratamentos com lobotoPor meio dessas ferramentas analíticas, anali- mia e eletrochoques eram parte da rotina hospisaremos como a exposição “Lugares do Delírio”, talar, e a arte procurava se reformular através do que ficou em cartaz no museu de arte do Rio do que chamamos movimento modernista. É neste

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contexto que o campo clínico e o artístico irão se contaminar. Atravessadas pelos saberes psicanalíticos, essas contaminações se darão: seja pelo auxílio ao diagnóstico psiquiátrico ou práticas alternativas que começam a ganhar espaço com a Reforma Psiquiátrica, seja pela apropriação de uma estética que afirmasse os ideais de autonomia e singularidade da arte pelos artistas e críticos da arte moderna. As experiências no ateliê dirigido por Nise da Silveira no Engenho de Dentro serão, portanto, definitivas para o rumo da arte moderna no Brasil, por meio do contato entre a produção dos internos e a de artistas e críticos brasileiros relevantes, principalmente no caso de Mário Pedrosa. Em conversa realizada na abertura da exposição ao público, e disponibilizada no canal do youtube do museu, a curadora Tânia Rivera aponta que “Paulo Herkenhoff já nos chamou bastante a atenção pro fato de que de fato na arte contemporânea brasileira especialmente nessa, enfim, que tem sua matriz no neoconcretismo no Rio de Janeiro, os.. os artistas do Engenho de Dentro tem uma influência fundamental”.

parte nessa partilha”(RANCIÈRE, 2005, p.15). Sendo assim, iniciaremos com a feitura de uma arqueologia da loucura e da arte, desde o final da Idade Média até o início do século XX, e então, daremos um panorama das relações que se deram entre estes campos no Brasil, a partir deste século. Adiante, explicitaremos a escolha dos dados que utilizaremos nesta pesquisa, e finalmente analisaremos a exposição em questão tendo em vista o que vimos até aqui, procurando entender como seu discurso levanta noções já construídas e propõe o público a revisar conceitos que se borram através da ideia de delírio. 2.Loucura, Arte e Sociedade 2.1 Materialismo Cultural

O materialismo cultural, a partir de uma perspectiva sócio-histórica, embasa a seguinte pesquisa à medida que a “hesitação diante do que parece ser a riqueza da teoria já desenvolvida e a plenitude da prática já alcançada possui o embaraço, a gaucherie mesmo, de qualquer dúvida radical”(WILLIAMS, 1978, p.11), ou seja, o confronto entre os paradigmas institucionais estabelecidos, O hospital psiquiátrico é trazido para dentro do como o museu e o manicômio, assim como as fimuseu, por meio da documentação sensível das guras do artista e do louco, através das práticas práticas artísticas que lá ocorrem e dos relatos de que os põem em questão podem criar fissuras caseus agenciadores, colocado lado a lado de obras pazes de produzir reformulações ideológicas, que de artistas canônicos e contemporâneos, usuários constroem continuamente a realidade histórica, ou não da saúde mental. Para além das paredes criando o embaraço de que Williams fala. expositivas e dos muros do hospital, procuramos pensar como a saúde mental é questão urgente Nesse sentido, a compreensão de processos que que concerne a todos no exercício da cidadania e construíram o imaginário ocidental da loucuno compartilhamento do espaço da cidade. Sen- ra, assim como aqueles que fizeram emergir a do assim, é possível pensar como partilhamos o personagem do artista e o estatuto da arte, tal sensível na medida em que a “partilha de espa- qual entendemos hoje, é importante para locaços, tempos e tipos de atividade [...] determina lizar as questões propostas neste artigo. Portanpropriamente a maneira como um comum se to “nos perguntaremos por quais processos de presta à participação e como uns e outros tomam transformação ou mediação esses componentes

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passaram antes de chegarem a esse estado acessível”(WILLIAMS, 1980, p.66), apresentando um panorama breve e sucinto, entendendo que trata de campos infinitamente expansivos em sua conceituação, e por isso, para além do esforço realizado nesta pesquisa. A partir de interrogações que surgem do presente, a necessidade de se fazer uma arqueologia torna-se de extrema relevância diante da análise de dado acontecimento situado no contemporâneo, pois este “dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história”(AGAMBEN, 2009, p.72). Como dizia Foucault “estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito [...] trata-se de, enunciando o que foi dito, redizer o que nunca foi pronunciado”(1977, p.15) 2.2 Historicidades e discursos 2.2.1 - Arte, artista, museu x Loucura, louco, manicômio No contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, com o crescimento das cidades e o que chamamos Renascimento, uma série de transformações entra em curso no mundo europeu, quando os ideais teológicos abrem alas para os humanistas, na medida em que as “preocupações intelectuais se sobrepõem às exigências espirituais e dogmáticas [...] [e o] imenso apetite de cultura inverte os limites impostos pela fé dos séculos precedentes”(MINOIS apud WOORTMANN, 1996, p.5), a racionalidade ganha, portanto, papel central na legitimação dos saberes ditos científicos. Dessa maneira, enquanto a arte era inventada e legitimada pelos métodos cientí-

ficos e os artistas reivindicavam sua posição social, a loucura era posta sob o domínio moral da razão e os ditos loucos, excluídos da cidadania. Existia, no século XV na Itália, uma “luta de pintores, escultores e arquitetos para verem reconhecidas suas profissões como artes liberais”(BLUNT, 2001, p.70). Nesse sentido, a poesia e a retórica, por exemplo, eram consideradas artes liberais, enquanto a pintura e a escultura eram vistas como mecânicas, e a distinção entre elas “era que as primeiras eram praticadas por homens livres e as segundas por escravos”(Id., p.71). Sendo assim “o principal objetivo dos artistas em sua reivindicação para serem vistos como liberais era dissociar-se dos artesãos, e, em suas discussões a respeito do assunto, eles se encarregavam de ressaltar todos os elementos intelectuais em sua arte”(Id.). Segundo Giulio Carlo Argan o “Renascimento [...] se distingue da Idade Média exatamente por esse acréscimo de um ato de consciência”(2004, p. 12). O uso da perspectiva tornou-se, pois, um argumento de peso a favor dos pintores, a partir do “papel desempenhado pela matemática na pintura do início do Renascimento”(BLUNT, 2001, p.71). As academias surgem em oposição as guildas, e a individualidade do artista vence sobre a coletividade dos artesãos, e “os próprios artistas, cientes de sua qualidade de agentes e protagonistas da história, propuseram-se deliberadamente afirmar a própria personalidade”(ARGAN, 1994, p.27) Ao mesmo tempo, a loucura, que na Idade Média tinha característica de saber proibido, esotérico, cósmico, vai assumir gradativamente o caráter de erro, de irregularidade na conduta, de desvio moral, pois as “figuras da visão cósmica e os movimentos da reflexão moral, o elemento trágico e o elemento crítico irão doravante separar-se cada vez mais”(FOUCAULT, 1978, p.32). No universo

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simbólico da loucura um “objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos”(Id., p. 12-13), “barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. [...] As cidades escorraçavamnos de seus muros [...] esses passageiros incômodos”(Id, p.13). Assim, De um lado, haverá uma Nau dos Loucos cheia de rostos furiosos que aos poucos mergulha na noite do mundo, entre paisagens que falam da estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do fim dos tempos. Do outro lado, haverá uma Nau dos Loucos que constitui, para os prudentes, a Odisséia exemplar e didática dos defeitos humanos(Id., p.33). A visão cética da loucura ganha cada vez mais força, e é vencida no âmago mesmo da razão: “aos poucos, a loucura se vê desarmada, e seus momentos deslocados; investida pela razão, ela é como que acolhida e plantada nela”(Id., p. 41). Desse modo, o discurso da Razão, inaugurando a era moderna, no seio da Renascença, norteia os conceitos de arte e de loucura, que serão ressignificados sob novas égides ao longo dos séculos através da construção de dispositivos, isto é de “um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas”(AGAMBEN, 2009, p.28), a partir da edificação de instituições como o museu e o manicômio, de que falaremos adiante, e do olhar construído sobre eles.

a condição mesma de impossibilidade do pensamento, a exclui do domínio da verdade, “ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser. [...] Doravante, a loucura está exilada”(FOUCAULT, 1978, p.54). No âmbito governamental a “grande criação política do século XVII é o Estado nacional, e a sua formação típica é a monarquia absoluta”(ARGAN, 2004, p.71). Portanto, numa sociedade estruturada pelo poder monárquico e pelos interesses ascendentes da burguesia, casas de internação surgem como instrumento de controle e ordem social, parecendo “atribuir uma mesma pátria aos pobres, aos desempregados, aos correcionários e aos insanos”(FOUCAULT, 1978, p.55). Sob os ideais burgueses “a loucura é percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho”(Id., p.83), portanto aqueles que eram considerados improdutivos não mereceriam lugar na sociedade. Afim de conter a miséria e as revoltas, os pobres eram recolhidos, doentes ou convalescentes, pela autoridade real ou judiciária de Paris e aprisionados no Hospital Geral, “uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa, que ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa”(Id., p.56). Dessa maneira, não se configura como instituição médica, mas “é uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época”(Id., p.57). Sendo assim, “prevalece a vontade do soberano e do governo, que querem fazer da cidade-capital a imagem do Estado e do poder”(ARGAN, 2004, p.72)

Já no século XVII, aparecem os primeiros espaços Ademais, no século das luzes, a “invenção do mudestinados a internação dos chamados loucos na seu moderno (e da arte e da estética) pelo IlumiEuropa. Descartes, considerando a loucura como nismo foi acontecimento de implicações tão pro-

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fundas e tão radicais quanto o fora vários séculos antes a formulação da perspectiva centralizada”(PREZIOSI, 1998, p.50). O museu surge como ferramenta disciplinar, que direciona o olhar, “definindo, formatando, modelando e “reapresentando” muitas formas de comportamento social por meio de seus produtos ou vestígios”(Id.). Dessa forma, educa o olhar para aquilo que deve ser visto e como deve ser lido, ordenando a história através de um aparato ficcional à serviço da centralidade do estado-nação europeu. Portanto, o museu cristalizou e transformou uma variedade de práticas antigas de produção, formatação, armazenamento e exibição do conhecimento em uma nova síntese que era comensurável à elaboração oitocentista de outras formas modernas de observação e disciplina em hospitais, prisões e escolas(Id.).

parecimento das entidades mórbidas gerais que agrupavam os sintomas em uma figura lógica, em proveito de um estatuto local que situa o ser da doença, com suas causas e seus efeitos”(Id., p.17) e “que substituiu a pergunta «o que é que você tem?» [...] por esta outra [...]: «onde lhe dói?»”(Id., p.17-18). A partir dessa sutil, porém decisiva mudança, o saber médico passa a tratar indivíduos como objetos de suas próprias investigações científicas. Colocada sob a categoria de doença mental, a experiência da loucura será mais uma vez subjugada, agora a partir do discurso médico-científico e de seus instrumentos. Em menos de um século, o poder psiquiátrico se instaura não mais a partir da localização de lesões, mas numa “ausência de corpo”, logo “será necessário poder tornar explicito aquilo que se esconde, aquilo que se oculta não no interior do corpo, nos tecidos ou órgãos, mas no interior das condutas, dos hábitos, das ações, dos antecedentes familiares, da história de vida”(CAPONI, 2007, p.99), Dessa maneira, o “manicômio permite que se articulem magistralmente dois problemas sociais: a garantia de harmonia da ordem social (que exige ser protegida contra a ameaça de desordem) com certas exigências de cura que falam da eficiência terapêutica do isolamento e do encerramento”(Id., p.100).

Nesse sentido, tais formas modernas de observação e disciplina tem função coercitiva e limitadora, presumindo normas e técnicas bem definidas, e, sendo assim “repele[m], para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber”(FOUCAULT, 1999, p.33). Tanto hospital quanto museu estão à mercê dos ideais civilizatórios burgueses e são, portanto, instrumentos de poder que afirmando certas experiências, negam outras, estabelecendo um regime de (in)visibili- Fizemos até agora uma pincelada sobre a história dades e hierarquias do olhar. da arte, do artista e do museu, e da loucura, do louco e do manicômio, que em direções opostas Ainda no século XVIII, a medicina sofre uma re- vem afirmar a ideologia burguesa, criando mecaorganização de suas formas com o nascimento da nismos de visibilidade e invisibilidade, de enunclínica, em que as “formas da racionalidade mé- ciação e silenciamento, erguendo conceitos, que dica penetram na maravilhosa espessura da per- como percebemos, são completamente fictícios, cepção, oferecendo, como face primeira da ver- pois se baseiam em “um sistema específico de dade, a tessitura das coisas”(FOUCAULT, 1977, regras pragmáticas, fundado sobre a prescrição p.11), passando a guiar-se por um olhar localiza- cultural da conduta de participantes”(OLINTO, do e não mais geral, ou seja, por meio do “desa- 2003, p.81), ou seja, são “modelos prevalecentes

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do mundo social supostamente ancorados no real”(Id., p.82), e que ainda estamos, portanto, em total relação nos dias atuais. Por mais que se mudem as roupagens, os ideais clássicos estão mais perto de nós do que imaginamos.

loucos em São Paulo, que seria “uma ocasião para criticar o medíocre gosto da classe média, que, centrado em cenas de amor/procriação, repele o ‘anormal’ por colocar em crise seu sistema de valores, por revelar o que há de mais profundo no homem e na natureza: o ‘demoníaco, mórbido e A partir do século XX até o XXI, quando a psica- sublime’”(FABRIS apud FRAYSE-PEREIRA, 1995, nálise revoluciona o pensamento e o modernis- p.38). Percebe-se que os discursos psicanalíticos mo vem questionar todo uma tradição artística atravessaram nesse momento tanto a psiquiatria e cultural, e posteriormente os movimentos de quanto a arte, como expressão da interioridade e reforma psiquiátrica e a transição para a arte da universalidade secreta do homem. contemporânea vem estabelecer outras visões de mundo, começam a haver entrecruzamentos en- Nesse sentido, as práticas de Nise da Silveira no tre o fazer artístico e o fazer clínico, que timida- Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Denmente borrando suas fronteiras, encarando seus tro, apoiadas nas teorias de Jung, revolucionam abismos, podem reposicionar, ou pelo menos, fa- as práticas psiquiátricas da época, baseadas na zer refletir, seu lugar no mundo. lobotomia e nos eletrochoques, quando assume a direção da seção de terapêutica ocupacional do 2.2.2 - Arte e Loucura no Brasil (São Paulo e hospital em 1946 e instaura a “terapêutica ocuRio de Janeiro) pacional, oferecendo atividades que permitam a expressão de vivências não verbalizáveis por A emergência do discurso psicanalítico, assim aquele que se acha mergulhado na profundeza como as questões vanguardistas na arte, no sécu- do inconsciente” (SILVEIRA, 1981, p.102) que lo XX, possibilitaram a interação entre o campo “era considerada um método subalterno, desticlínico e o artístico. Sendo assim, a ideia de in- nado apenas a ‘distrair’ ou contribuir para a ecoconsciente atravessa tanto a psiquiatria quanto a nomia hospitalar” (SILVEIRA, 1992, p.16). arte, e a produção estética dos ditos loucos passa a interessar a psiquiatria enquanto possibilidade O ateliê de pintura era frequentado, além dos inde diagnóstico, enquanto a arte volta-se para esta ternos, por Almir Mavignier, que era colaborador produção afim de afirmar-se enquanto moderna. da doutora Nise, e seus amigos, jovens pintores Nas décadas de 1920 e 1930, no Hospital de Ju- que, como ele, mais tarde se tornarão grandes queri, em São Paulo, “Osório César começou, sis- nomes da pintura brasileira, como Ivan Serpa e tematicamente, a colecionar, catalogar e analisar Abraham Palatnik. Além disso, o grande crítico os desenhos dos internos do Hospital Psiquiátri- de arte Mário Pedrosa virá a se interessar pela co, vendo nessas produções, além de expressões produção dos ditos anormais, e “a “loucura” foi psicopatológicas da loucura, semelhança com um dos modelos no qual espelhou o movimento o que os artistas modernos estavam produzin- de ruptura com a lógica do mercado vigente e se do”(REINHEIMER, 2010, p. 53), e realiza então instituíram no Brasil as representações romântias primeiras exposições com trabalhos de inter- cas do artista como um indivíduo singular”(REInos. Adiante Flávio de Carvalho, em 1933, orga- NHEIMER, 2010, p.54). niza uma exposição com desenhos de crianças e

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O artista moderno era responsável por uma reformulação de valores e axiomas, rompendo com “velhos preconceitos intelectualistas, concepções convencionais e acadêmicas quanto à natureza do fenômeno artístico”(PEDROSA, 1986, p. 283284), recriando o mundo a partir de sua sensibilidade. Dessa forma, tal “transformação foi devedora, em grande medida, do debate travado a partir de formas de representação pictórica específicas”(REINHEIMER, 2010, p.52), em que o estilo abstrato se constituiu como forma expressiva representativa do regime de singularidade, através da ideia de interioridade e subjetividade, influenciadas diretamente pelas teorias de Freud em relação ao inconsciente. Mário Pedrosa será, pois, figura importante neste processo de reformulação do conceito de arte, que passa a dar ““forma aos sentimentos e imagens do eu profundo”, [em que] cada indivíduo era considerado como “um sistema psíquico à parte, e também uma organização plástica e formal em potência””(PEDROSA, apud REINHEIMER, 2010, p.54). O crítico irá defender que: a atividade artística é uma coisa que não depende, pois, de leis estratificadas, frutos da experiência de apenas uma época na história da evolução da arte. Essa atividade se estende a todos os seres humanos, e não é mais ocupação exclusiva de uma confraria especializada que exige diploma para nela se ter acesso. A vontade de arte se manifesta em qualquer homem de nossa terra, independente do seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado (PEDROSA, 1949: 151-152). Nesse sentido, era “a naturalização do processo criativo como algo intrínseco à espécie humana

que permitia a Pedrosa unir “loucos”, “crianças”, “selvagens”, “analfabetos” e “artistas” em uma mesma classe, a de criadores.” (REINHEIMER, 2010, p.54) O movimento modernista precisava, portanto, afirmar-se, reivindicando a autonomia da arte, e encontra nas produções marginais, livres dos cânones culturais, exemplos desse ideal. Jean Dubuffet, artista francês, funda em 1945, com o objetivo de reunir e proteger a obra dos considerados marginais, a Companhia de Arte Bruta, a qual define como “operação artística inteiramente pura, bruta, reinventada em todas as suas fases pelo autor, a partir somente de seus próprios impulsos”(THEVOZ apud SILVEIRA, 1981, p.15). A esta arte que Dubuffet denomina Bruta, Mário Pedrosa deu o nome de Arte Virgem. Sendo assim, “Pedrosa afirmava que os artistas modernos haviam assimilado as conquistas relativas ao que chamou de ‘expressão desinteressada’ e que por isso foram, muitas vezes, identificados aos primitivos e aos loucos, ou apontados como infantis ou mistificadores”(PELBART; LIMA, 2007, p.727). Nesse período, foram organizadas duas exposições com os trabalhos dos artistas que frequentavam o ateliê da terapêutica ocupacional, uma em 1947, no Ministério da Educação, e outra em 1949, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Em ocasião dessa última, Nise escreve no prefácio do catálogo da exposição: os loucos são considerados comumente seres embrutecidos e absurdos. Custará admitir que indivíduos assim rotulados em hospícios sejam capazes de realizar alguma coisa comparável às criações de legítimos artistas – que se afirmem justo no domínio da arte, a mais alta atividade humana(SILVEIRA, 1981, p.16).

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Os valores atribuídos à arte e à loucura que estávamos revisando, ficam aqui claros: enquanto a arte é enobrecida como “a mais alta atividade humana”, a loucura se situa no embrutecimento e na absurdez. Mais à frente, em 1981, realizase na XVI Bienal de São Paulo a exposição “Arte Incomum”, que é apresentada por Walter Zanini no catálogo da exposição da seguinte maneira: “por Arte Incomum, entendem-se aqui múltiplas manifestações individuais da espontaneidade da invenção não-redutíveis a princípios culturais estabelecidos”(FRAYSE-PEREIRA, 1995, p.41). Em 1982, Frederico Morais organiza a exposição “À margem da vida”, que reuniu obras de presidiários, crianças, idosos e pacientes psiquiátricos no MAM-RJ, e onde a obra de Arthur Bispo do Rosário é pela primeira vez apresentada.

Rio de Janeiro, para além dos muros do hospital, como os blocos de carnaval Tá pirando, pirado, pirou!, Loucura Suburbana, Harmonia Enlouquece, e propostas múltiplas como o Hotel e Spa da Loucura. Dessa maneira, o campo que se abre na contemporaneidade tenta lidar com estes processos de desterritorialização e reterritorialização de conceitos e sujeitos: Para essa clínica não interessa o sistema da arte ou a arte institucionalizada, mas sim procedimentos artísticos associados a uma arte do efêmero e do inacabado que comporte as desterritorializações e os desequilíbrios dos sujeitos dos quais se ocupa. Já a arte contemporânea não está interessada na loucura como entidade psicopatológica, mas numa certa forma de produção ‘esquizo’, uma desterritorialização que fica adensada nos esquizofrênicos, o que faz que muitas experiências artísticas possam comportar um tipo de experiência limite e preparar uma relação com aquilo que uma cultura rejeita (PELBART; LIMA, 2007, p.732).

Nesse contexto, a arte contemporânea já está em voga, originária do intenso movimento dos artistas da década de 60/70, “realizando e ultrapassando as categorias de arte, tornadas categorias de vida, seja pela estetização do cotidiano, seja pela recriação da arte como vida”(FAVARETTO apud FABRINI, 1994, p.7). Dessa forma “O artista deixa de ser o mago criador para tornar-se propositor de situações que vão chamar a interferência dos ex-espectadores, agora participantes, e ambos irão configurar o que se chamava 3.Metodologia obra”(LIMA, 2006, p.325). Tratando-se de uma pesquisa qualitativa, utiliAo mesmo tempo o processo de Reforma Psiqui- zaremos de dados disponibilizados nas mídias átrica se inicia em meados dos anos 1980 através oficiais do Museu de Arte do Rio, analisando, em do “processo de substituição da internação psi- primeiro lugar, o texto que apresenta a exposiquiátrica [...] com a criação dos Núcleos de Aten- ção no site, em seguida, a conversa realizada com ção Psicossocial (NAPS) e Centros de Atenção a curadora na abertura e que está disponível no Psicossocial (CAPS)”(REINHEIMER, 2010, p.56), canal do youtube do museu, e posteriormente, o visando ampliar o sistema de redes locais e de texto curatorial. Finalmente, observaremos tretrocas sociais. Nesse sentido diversas iniciativas chos de falas ocorridas na ocasião de desfiles de culturais vem sendo desenvolvidas em conversa blocos de carnaval que integravam o calendário com o espaço da cidade, mais especificamente do expositivo, também disponível no canal do you-

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tube da instituição. Com isso, procuramos dar um panorama da proposta curatorial alavancada pela ensaísta e psicanalista Tania Rivera a convite do ex-diretor cultural do MAR e idealizador da exposição, Paulo Herkenhoff, e do discurso expográfico, analisando como estes revelam as institucionalizações a qual estão submetidos, além de reatualizar a questão arte e loucura, propondo intermeios entre o clínico e o artístico.

das ideologias européias burguesas que discorremos anteriormente, estabelece uma relação de atritos e criação de paradoxos pelo caráter cultural e educacional que pretende alavancar. Basta nos perguntarmos que cultura merece espaço se impondo sobre outra. Além disso, possui caráter econômico, vale lembrar que é uma iniciativa da prefeitura com a Fundação Roberto Marinho, é mantido pelo Grupo Globo e patrocinado pelo BNDES, na medida em que movimenta o merO que se trata fazer aparecer é o conjunto cado (muito lucrativo) da arte. Trabalhando com de condições que regem, em um momento dispositivos que acionam contradições dentro do dado e em uma sociedade determinada, o espaço instituído e de sua relação com o munsurgimento dos enunciados, sua conser- do, produz “efeitos de sentido [que] constituem vação, os laços estabelecidos entre eles, a a imagem da instituição na qual a obra é exposta maneira pela qual os agrupamentos em e o discurso curatorial em que sua pertinência é conjuntos estatuários, o papel que eles contextualizada”(MARTÍNEZ, 2011, p.217). exercem, a serie de valores ou sacralizações pelos quais são afetados, a maneira 4. Lugares do Delírio pela qual são investidos nas práticas ou nas condutas, os princípios segundos os O texto que descreve a exposição no site do muquais eles circulam, são recalcados, esque- seu a apresenta da seguinte forma: “o MAR inaucidos, destruídos ou reativados. Em suma gura seu programa de exposições de 2017 com trata-se do discurso no sistema de sua ins- uma mostra dedicada ao delírio, força criadora titucionalização (FOUCAULT, 2000, p.95). que concerne a todos em sua capacidade política de reposicionar a razão.” E continua: Sendo assim, é importante ressaltar a missão da instituição na qual a exposição se insere: o MAR, Dando sequência ao programa Arte e Soinaugurado em 2013 no contexto da revitalização ciedade no Brasil – eixo curatorial dedida zona portuária do Rio de Janeiro, tem forte cado a aspectos urgentes à vida social no valor educacional, objetivando integrar as escopaís, como moradia e educação [...] Lugalas e os moradores da região, deslocados pelas res do delírio é uma oportunidade ímpar intensas obras de revitalização ocorridas ali. Nesde, sem distinguir usuários e não usuários se sentido, a criação de um polo cultural para a do sistema de saúde mental, entrecruzar cidade é uma estratégia que faz parte do processo trabalhos de artistas de outras partes do de gentrificação que a região vem passando. O Brasil e do mundo. porto, por ter sido local de chegada de milhões de escravos que ali se assentaram, é um polo his- Admite-se que a questão da saúde mental é urtórico da cultura afrobrasileira no Rio de Janei- gente e é preciso abrir-se diálogo sobre ela junto ro, conhecido também como Pequena África. A a sociedade, sendo o museu uma instituição culchegada de um museu como o MAR, carregado tural privilegiada que se propõe trazer questões

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a sua volta para dentro de suas paredes expositivas, incitando reflexão sobre estas. Sendo assim, em conversa de galeria, a curadora Tania Rivera aponta que a exposição “traz uma contribuição ao eixo Arte e Sociedade ao abordar um tema tabu até hoje, apesar de décadas já de Reforma Psiquiátrica no.. no mundo e no Brasil, que é o tema da loucura.”

ademais com artistas como Fernando Diniz, Arthur Bispo do Rosário, Bernardo Damasceno, entre outros, que através de obras plásticas que se conectam pela forma, uma fazendo referência a outra, liga artistas vindos de universos bem distintos. b) a fronteira Arte/Cuidado, comportando uma série de vídeos que retratam diversas práticas artísticas em instituições de saúde mental, como o grupo Arte+Cuidado, o Espaço Aberto ao Tempo, com o trabalho de ‘psiquiatria poética’ realizado por Lula Wanderley e inspirado em Lygia Clark, o Ateliê Gaia, da Colônia Juliano Moreira e Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, entre outros. Além de mapas de Fernand Deligny realizados no seu trabalho com crianças e adolescentes autistas na França.

A centralização na ideia de delírio como fio condutor da exposição parece ser uma estratégia para abranger experiências de (re)construção de realidade, sejam elas mediadas pelo sistema da arte ou pelas instituições psiquiátricas, ao instituir um termo que, por não estar tão carregado de conceitos previamente estabelecidos e estigmatizantes, como é o caso do termo loucura, abre a possibilidade de conectar tais experiências. Na conversa realizada na abertura da exposição, Tania Rivera diz: Há também um sub-eixo que é “a ideia do barco, o barco como objeto”, no qual a curadora nos nós apostamos de saída em recusar a ideia explica um pouco o porquê da escolha desse elede “loucura” como objeto de reflexão para mento: essa exposição e apostar na noção de delírio como uma forma muito mais aberta eu fui levada a escolher os barcos um poue, digamos, ativa, positiva, de pensar o a co aleatoriamente, depois eu me dei conta os estados inumeráveis do ser, como dizia de duas coisas que eu achei engraçadas: Nise da Silveira citando Artaud, a multiuma é que uma exposição no MAR... no plicidade de estados do ser né na sua posmar precisamos de barcos, certo? Se não sibilidade de sair dos trilhos da realidade afundamos; e esse é um modo éh não mecompartilhada. tafórico, literal, de tomar a linguagem que tem a ver com éh isso que a gente tá tenA exposição se divide em diversos eixos, sendo tando tocar, que a gente tá tentando aprodois os que parecem guiá-la e que são apresenximar com o termo delírio. Então, no mar tados majoritariamente em partes diferentes do precisamos de barcos, e só há poucos dias pavilhão, são estes: atrás, graças a um comentário do Marlon Miguel, eu me dei conta que isso também a) a questão Razão/Loucura, apresentada pela é uma menção a famosa “Nau dos Loucos”, obra de Cildo Meirelles com o mesmo título e que que teria existido né na Idade Média, e é abre a exposição, e que segundo Tânia “é uma retomada por Michel Foulcault na no seu espécie de definição poética de toda a questão”, famoso livro História da Loucura, éh e que

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éh era destinada justamente a excluir os loucos da sociedade, se colocavam loucos dentro desse barco e eles eram éh abandonados à deriva no mar. Então aqui a gente tem tentativas de barcos que não nos deixem afundar, e uma aposta de que não não estaremos à deriva, mas poderemos navegar nesse.. nesse mar.

evidência apenas o aspecto estético da produção plástica dos artistas, sendo seu contexto muitas vezes de extrema relevância por estarem dissociadas vida e arte, cabendo aos mediadores estabelecer este contato. A suposta autonomia da arte se destaca pela disposição expográfica, passando a ideia de que as obras falam por si e entre si. O curador, nesse sentido, tem a função de estabelecer conexão entre as obras, criando e conduA escolha do barco não é feita por acaso, Fou- zindo uma narrativa com base no olhar. A figura cault afirma que “a água e a loucura estarão li- do curador se torna cada vez mais relevante na gadas por muito tempo nos sonhos do homem contemporaneidade, pois com a conceitualização europeu”(1978, p.17), e acrescenta que “o «luna- cada vez maior da arte “adjetiva-se o curador tismo» não é estranho a esse tema. A lua cuja como criador [...] [e] a exposição como obra”. influência sobre a loucura foi admitida durante Como mediador entre a instituição, os artistas séculos, é o mais aquático dos astros”(Id., p.18). e o olhar do público, ele possui papel crucial na Portanto, a disposição de tais peças cria uma nar- maquinaria educacional que o museu exerce na rativa lúdica que conduz o espectador a uma via- sociedade. gem por águas delirantes. Essa função do museu fica evidente nos próprios A não-distinção entre artistas que atuam mais programas lá oferecidos, segundo o site oficial “O incisivamente sobre o sistema da arte e aqueles MAR, por meio de sua Escola do Olhar, desemque foram internalizados durante boa parte da penha sua função primeira que é a educação [...] vida procura colocar tais produções lado a lado, tendo sempre como mote a arte e a cultura visuconfundindo os juízos de valor historicamente al”. Propondo-se propagar os discursos da arte, construídos de que vínhamos falando, borrando o museu ensina seus “usuários [...] a ler o que as fronteiras entre arte e loucura, aproximando deve ser visto”(PREZIOSI, 1998, p.51). Dessa for-as através de sua potência criativa sobre a re- ma, “tudo num museu é colocado sob a pressão alidade, ressaltando Tânia que “não se trata de de um modo de ver”(ALPERS, 2001, p. 138) e o arte bruta, [...] se trata de construção, se trata de “que o museu registra é distinção visual, e não delírio construtivo”. Dessa forma, a categorização significância cultural”(Id., p. 139), assimilando da produção dos ditos loucos, seja como arte bru- aquilo que está fora dele, e convertendo “produta, arte virgem ou arte anormal, como foi trazi- tos culturais em objetos de arte”(Id, p. 140), atrada historicamente por outras exposições sobre o vés da “capacidade inesgotável que o sistema de tema no Brasil, é negada em prol da incorporação arte possui para incorporar propostas e formatos de suas obras pelo sistema da arte, representado ao seu domínio”(MARTÍNES, 2011, p.215). pela figura da curadora e do museu, colocando tais produções e seus sujeitos criadores sobre o Por um lado, percebemos que o conteúdo e a promesmo patamar. posta da exposição incitam debates que pretendem reposicionar os lugares da arte e da loucura No entanto, nesse primeiro momento, fica em hoje, por outro, faz-se necessário notar onde esses

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discursos estão inseridos e por que processos são institucionalizados. Sendo assim, quando desconectada de seu contexto de produção, como é o caso das obras apresentadas segundo o primeiro eixo que mencionamos, “a arte se desvincula do compromisso com uma temporalidade histórica específica”(Id., p.231) passando a ser vista pelo viés estético apenas. Além disso, a imensa quantidade de trabalhos os mais variados, pode tornar superficial a apreensão das obras, na medida em que há informação demais para ser capturada. Porém, de modo geral, o saldo é positivo e principalmente pela presença dos vídeos que mostram práticas alternativas realizadas hoje no campo da saúde mental, saímos de lá com a ideia de que a situação na qual os usuários de saúde mental enfrentam hoje está de fato mudando, e isto depende também do nosso olhar sobre eles, não mais como seres embrutecidos e desprovidos de razão, mas enquanto indivíduos que sentem e criam, a partir de outros destes ‘inumeráveis estados do ser’ e que, portanto, devem estar integrados a sociedade e não mais à margem dela. No texto curatorial, que apresenta a exposição e está localizado no início de seu percurso, a curadora escreve: “tomando seu impulso no projeto original de Paulo Herkenhoff, esta exposição afirma que os lugares do delírio são muitos e variados, e tenta assim explorar e questionar as fronteiras entre normal e patológico, entre arte e vida, entre o museu e o mundo”. Porém, de que forma, para além do discurso institucionalizado, visões e vivências podem ultrapassar as paredes do museu e do hospital psiquiátrico, e alcançar a cidade em sua multiplicidade? Nessa perspectiva, realizou-se, como parte da programação da exposição um encontro de blocos de carnaval que integra usuários e moradores próximos às instituições psiquiátricas, como é o

caso do Loucura Suburbana, nascido no Centro Psquiátrico Pedro II, e que reforçam as redes locais como alicerces da Reforma Psiquiátrica e, portanto, da gradativa desinstitucionalização destes espaços e integração de seus usuários à sociedade. Adilson Tiamo, artista e participante deste encontro, fala: É porque antigamente o seguinte: a nossa família pegava o as pessoa doente mental e qué logo internar, desfazer das pessoas, internar, põe no hospital, lugá de doente é no hospital, essa ideia ela foi de Dom Pedro II, só que hoje em dia nós tamo lutando o seguinte: o hospital cura a pessoa depois volta para casa tem que voltar para a sociedade porque o lugar de doente mental é junto com a sociedade. A respeito dos diversos processos que a cidade passou e ainda vem passando devido as olimpíadas, Livia Flores, também artista, comenta: Colônia Juliano Moreira foi atravessada pela transolímpica né foi literalmente cortada ao meio pela transolímpica né então esse carro-coração seria uma espécie de monumento hahan contra-olímpico ou contra essa contra esse processo brutal que o que a cidade vem atravessando né. Sendo assim, a luta pela saúde mental e pela dignidade de seus usuários é também uma luta pelo acesso à cidade – para exemplificar essa realidade um evento marcado em ocasião de uma exposição dos artistas do Ateliê Gaia no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no mês de maio, mês de comemoração dos 30 anos de luta antimanicomial, que reuniria os artistas para uma conversa, teve de ser cancelado, pois, de acordo com a página oficial da instituição

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no facebook, “a Secretaria Municipal de Saúde e a Secretaria Municipal de Cultura, após impedimentos para conseguir transporte para os artistas participarem da atividade, decidiram por cancelar a Roda de Conversa da exposição Atelier Gaia” - e precisa se dar nos seus variados espaços, sejam eles o museu, o hospital ou a rua, alavancados por seus respectivos agentes e pensados por todos, pois é além de responsabilidade dos órgãos públicos, de responsabilidade geral do exercício da cidadania a inclusão destas pessoas de forma plena na sociedade. 5. Conclusão

discursos, sendo a “contemporaneidade, portanto, uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”(AGAMBEN, 2009, p.59). Seria, pois, interessante também analisar essa questão sob outro viés, como por exemplo, através das contribuições do sociólogo Erving Goffman ou sob a perspectiva de Deleuze e Guattari, buscando outros enfoques, entendendo que como discussão urgente, precisa sair da obscuridade e silenciamento a qual foi lançada durante séculos e alcançar os espaços já instituídos, como o da própria academia. Para finalizar, gostaria de citar a fala de uma espectadora presente na abertura da exposição:

Compreendemos até aqui as construções dadas a conceitos como arte e loucura, comentando brevemente sobre as exposições que colocaram estes conceitos em questão no passado e analisando como eles são revisitados hoje no contexto contemporâneo brasileiro, ressaltando a importância do debate para com a sociedade em todos os níveis. Procuramos destrinchar o papel do museu, localizando sua função social, cuja formação de leitores de mundo se pauta na forma como as narrativas lhes são apresentadas em exposições como esta. O MAR, para além de suas contradições, busca dar relevância a questões de interesse social em suas exposições, através do eixo Arte e Sociedade. Dessa forma, que olhar se constrói sobre a loucura hoje?

É, boa tarde a todos, eu sou Fernanda Brunhosa, paciente, ou melhor, cliente, do doutor Lula Wanderley Soares, e queira dizer que eu gostei muito da exposição, mas teve uma coisa assim que mais me tocou lá no fundo da alma nessa exposição, foi assistindo os vídeos, um rapaz disse que ele se matriculou na faculdade de direito, e ele demorou dezesseis anos pra se formar, mas ele se formou, ele conseguiu. Então meu recado que eu queria dar pra cada um, não somente pra usuários, mas pra todos, nunca desistam dos seus sonhos, porque podem demorar, mas eles vão se realizar.

Esta pesquisa é importante pois, ao analisar uma exposição sobre a loucura através da arte contemporânea, podemos perceber, em relação as demais pesquisas já realizadas a respeito de exposições que compreendiam ainda a arte moderna, como os campos da arte e da psiquiatria se transformaram desde então, modificando seus

Daniela Cassinelli é graduanda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Este artigo foi realizado com orientação de Sabine Moura, doutora pela Pontifícia Universidade Católica.

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Artigo

SÓ ME INTERESSA O QUE NÃO É MEU: FRAGMENTOS PARA UMA GENEALOGIA DA COLLAGE Diego Franco O movimento em direção ao mundo do consumo modificou profundamente o significado dos objetos e as práticas nas quais eles estavam envolvidos, ao mesmo tempo em que a reprodução mecânica e a tecnologia redefiniram praticamente todos os campos de conhecimento, estabelecendo novas formas de distribuição e consumo que remodelaram certos paradigmas no campo artístico. O presente trabalho busca analisar como essas modificações foram catalisadas pelos movimentos artísticos a partir do século XX, refletindo especialmente sobre a prática da collage nas artes visuais. Palavras-chave: collage; fragmento; ready-made. A reprodução mecânica e a tecnologia redefiniram a história, a imagem e a música, estabelecendo, entre outras coisas, novas formas de distribuição e consumo através de jornais, propagandas, canais de rádio, televisão e cinema, o que remodelou a aura das beaux arts. Pensar genealogicamente a collage dentro deste contexto mostra-se um caminho interessante para compreender as modulações que a prática sofreu através do tempo, o que pode efetivamente iluminar as diferentes motivações, inspirações e linhas de força imiscuídas nela em determinados momentos. O desenvolvimento cruzado da produção em massa e da mídia de massa na economia capitalista surge como uma transformação radical na vida cotidiana, reorientando muitas atividades para o consumo. Coisas que antes eram produzidas localmente e, muitas vezes, manualmente, passaram a ser produzidas em massa e transformadas em objetos de consumo. A transição para o mundo do consumo alterou profundamente o significado dos objetos, assim como as práticas nas quais eles estavam envolvidos. Interessa pensar aqui especialmente as práticas simbólicas e estéticas que emergem atravessadas por essas

transformações, a fim de lançar um lampejo sobre como a arte respondeu à fragmentada era do consumo. Quando o pensamento se volta para a técnica da collage, há uma tendência de pensá-la enquanto estratégia tipicamente moderna, principalmente por terem sido utilizadas exaustivamente nas artes visuais durante o século XX. Entretanto, não há muita novidade na ideia essencial de associar diferentes imagens e objetos para formar uma identidade expressiva diferente. A construção de imagens a partir de técnicas semelhantes pode ser encontrada em diferentes momentos de várias culturas, por exemplo, nos poemas caligráficos japoneses do século XII, nos quais os poetas escreviam sobre folhas de papel pintadas e depois coladas umas nas outras, ou nos trabalhos dos artesãos de livros persas do século XIII, cujo couro elaborado compreendia imagens pintadas em peles de cabra que depois eram cortadas e delicadamente costuradas. Como nota o artista e pesquisador Eddie Wolfram, a ideia primordial de produzir imagens juntando pedaços diversos e aleatórios que poderiam estimular a imagina

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ção a liberar associações escondidas, aumentar um texto escrito ou ilustrar uma narrativa é simples e está envolta na gênese da vontade criativa do homem, assim como seu impulso de dançar e contar histórias. (WOLFRAM, 1975, p.9)

radicado na Inglaterra Oscar Rejlander apresentou, em 1857, uma alegoria intitulada “Two way of life”. Considerada a primeira fotomontagem, o trabalho resulta da composição de trinta negativos em papel fotográfico que provocou o público de então com sua originalidade. Algumas décadas depois, Valério Vieira cria uma das primeiras versões brasileiras da fotomontagem (Fig. 1), de uma primazia técnica que o fez ganhar medalha de prata na Exposição Universal de Saint Louis, em 1904. A composição mostra uma sala onde encontram-se os mesmos 30 personagens interagindo entre si, o que mostra, junto a outros trabalhos do fotógrafo, o grau de experimentação desenvolvido no campo fotográfico antes da era do fotoclubismo que, diferentemente, buscava como referência estética a pintura representativa para elaborar suas composições.

Apesar de quase instintiva enquanto forma de perceber e assimilar o mundo, ocorre com a collage uma significativa mudança no século XIX. Ela passa a refletir a produção mecânica em massa de objetos e impressões como jornais, fotografias, anúncios publicitários e selos postais, o que permite a ampliação dos álbuns de recorte, os “scrapbooks”, que de certa forma surgem como uma prática embrionária da collage enquanto produto moderno. Professor da universidade de Birmingham, Rona Cran nota que neste século a produção de collage foi predominantemente popular, uma atividade de lazer para famílias europeias e americanas de classe média alta, assumindo aos poucos um significado crescente e variado em outras áreas (CRAN, 2014. p.12). Esse argumento ecoa o pensamento de Baudrillard (1996) sobre a modernidade estar estritamente ligada à capacidade que grupos e classes sociais recém-chegados ao poder têm de superar o exclusivismo dos signos, promovendo uma proliferação de signos sob demanda. Surgia imitações, cópias, falsificações e técnicas para produzir os signos que desafiavam o monopólio e o controle aristocrático vigorado até então. O acesso e a Fig. 1: Valério Vieira, Os Trinta Valérios, 22 x 28,7 cm em cartão 31 x 37,5, Rio de Janeiro/RJ. Acervo da Biblioteca Nacional. consequente manipulação das imagens ganhava aos poucos o terreno poroso do cotidiano, paraCom esse exemplos torna-se importante percelelamente a uma desestabilização dos signos que ber que o que marca os primórdios da collage, estiveram enraizados em posições relativamente seja com os caligrafistas japoneses, os livreiros seguras no interior de hierarquias sociais fixas. persas ou mesmo os fotógrafos do século XIX e, no caso de Valério, início do século XX, é um O processo descrito acima possibilitou que, aos impulso para se produzir algo bonito, útil e inpoucos e cada vez mais, as imagens fossem materessante estética ou tecnicamente, o que difenipuladas de forma a criar situações fantásticas re substancialmente do significado da prática na através da montagem de fragmentos. O sueco modernidade. Assim como outros pesquisadores, 124 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017


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Rona Cran argumenta que é somente a partir de Picasso e Braque que a collage transforma-se em um meio de subverter os métodos estabelecidos de se produzir arte, sendo eles os primeiros artistas a conceitualizar as dimensões da collage em oposição aos seus elementos puramente práticos ou técnicos. Voltaremos a esse ponto.

suas disjunções, descontinuidades e percepções confusas, na raiz dos mitos mais antigos que formaram o pensamento Ocidental é possível encontrar uma miríade de percepções de ruptura, desmembramento e estruturas fragmentadas. O professor da universidade de Illinois, David Banash (2013) analisa o Shevirah da cabalá, assim como os mitos de Osíris e Orfeu para pontuar a Apesar de poder tomar diferentes formas, a colla- essencialidade primordial de uma certa ansiedage consiste em duas ações essenciais: selecionar de acerca da fragmentação do sujeito antigo e a e organizar fragmentos, sendo pois esse concei- construção de um entendimento do mundo ento essencial para pensar essa prática. No mundo quanto estrutura fraturada2. moderno, ao analisar e padronizar todos os aspectos do processo de produção, o pensamento No contexto antigo, a percepção de uma subjeFordista formulou uma vasta fragmentação dos tividade fragmentada é complementada pela métodos produtivos, os quais eram igualmente dialética entre o desmembramento de Osíris e integrados na linha de montagem. O processo a redenção de sua totalidade por Ísis. De forma não se aplicava apenas às peças e produtos fa- semelhante, o mito do Shevirah reconhece um bricados: através de pesquisas sobre o tempo de mundo dividido, enquadrando seu significado se produção, os próprios trabalhadores foram que- entrelaça a um desejo pela união transcendenbrados e seus movimentos encaixados nas meno- tal desses fragmentos. O historiador Gershom res partes possíveis dentro da lógica da esteira de Scholem explica que, na cabalá, a partir do ato produção1. Apesar de Foucault salientar que em primordial da criação, todos os seres têm sido qualquer sociedade o corpo está preso no interior seres em exílio que anseiam serem resgatados, de poderes muito apertados, os quais lhe impõem levados de volta: tudo está, de certa forma, quelimitações, proibições ou obrigações, houve a brado, tudo tem uma falha, tudo está inacabado3. partir do século XVIII novas e significativas estra- (SCHOLEM, 1965, p.113) tégias nos esquemas de docilidade. Não se tratava mais de cuidar do corpo como se ele fosse uma Ainda mais enfático que a lenda de Osíris, a cabaunidade indissociável, mas de trabalhá-lo deta- lá imagina não apenas o eu mas todo um mundo lhadamente, de forma fragmentada, exercendo em fragmentos. Onde a antiguidade reconhecia sobre ele uma coerção sem folga que o mantinha a fragmentação, também enfatizava contextos ao mesmo nível da mecânica (FOUCAULT, 2013, para restituir o todo, seja na magia de Ísis ou na p.133). Cortando os processos de fabricação em transcendental união dos shekhinah. Entretanto, uma série de operações irredutíveis, o Fordismo a modernidade apresenta uma mudança signifiseparou os trabalhadores de qualquer compreen- cativa na ênfase sobre o fragmento, na qual ele são concreta de um processo total, provocando torna-se sinédoque para uma beleza impossível, uma intensa alienação da produção intrincada a incompleta, para sempre perdida. Beleza que certos trabalhos convidam a sentir e experienuma profusão sem precedentes de coisas. ciar, mas cuja totalidade não desejam encarnar. Embora o Modernismo seja caracterizado pelas A melancolia que envolve as falsas ruínas no sé

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culo XVIII, por exemplo, pode ser associada a um momento de profunda e violenta fragmentação dos modos de vida, uma mudança cada vez mais moldada pelo capitalismo. A apreciação voltavase para o quebrado, o inacabado, o fragmento de um momento perdido. O papel do fragmento na estética modernista seria reescrito em um mundo guiado pela mecanização, a produção e uma velocidade sem precedentes. Enquanto os mitos e os desejos de unidade e totalidade que coordenaram o mundo antigo poderiam ter sido incorporados nas práticas de collage, a realidade bruta da escassez tornou esse acontecimento impraticável. Os materiais da collage moderna são eles mesmos os detritos de vastas operações mecânicas de fragmentação - restos, botões, ingressos, páginas de revistas, fotografias, páginas de livros, embalagens -. Assim, a técnica se mostra na modernidade como a arte da superprodução e dos resíduos fragmentados sem precedentes do consumismo. Sua estética comemora o incompleto; a vontade de encontrar a beleza em contrações irresolúveis ou monstruosas é um espelho do sujeito criado pela fragmentação do trabalho na linha de montagem, passeando pela loja de departamentos, ou lendo os jornais e recolhendo nas ruas objetos industriais4. (BANASH, 2013, p.49)

charges e fotografias que, a partir da montagem elaborada na redação, apresenta um dia na vida daquela cidade no qual cada fragmento forma o signo de um significado visual. No início do século XX, a arte representativa conforme prevaleceu na Europa desde o Renascimento vinha provando ser, de certa forma, inadequada para as propostas de um grande número de jovens artistas desejosos por expressarem a crescente sensação de inquietude e deslocamento vivida nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Em 1912, Georges Braque e Pablo Picasso começaram a colar objetos na superfície de suas pinturas, usando fragmentos da experiência cotidiana como artigos de jornais e ingressos para desmantelar a concepção da pintura enquanto um mero suporte através do qual a realidade poderia ser vista (Fig. 2). Para eles, e para os artistas que trabalhariam com collage depois deles, a arte seria um artifício para encarnar a vida, mais do que para simplesmente documentá-la.

Picasso é considerado por muitos pesquisadores como um mago que transforma jornal, folhas secas e peças de bicicleta em valor de criação, elevado ao nível de um Midas que transforma em ouro o que toca. Rosalind Krauss (2006) argumenta ser importante compreender que o ouro obtido pela transformação do jornal no contexto pictórico é consideravelmente diferente da garimpagem da arte do passado para atender às leis do Nesse contexto, o jornal pode ser analisado en- pastiche. Para ela, com o advento da colagem o quanto reflexo vivo das contradições de uma cubismo moldava cada vez mais um signo visusociedade essencialmente fragmentada: no apa- al livre para circular dentro do espaço pictórico, nhado de um único dia se dispõem extensamen- sem ligação com qualquer referente fixo e, porte, lado a lado e um lado contra o outro, os mate- tanto, inteiramente inconversível, um significanriais mais diferentes e contraditórios, inúmeros te como símbolo, na verdade, agindo livremente. fragmentos de situações do dia que passou. Uma colagem de situações, propagandas, anedotas,

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sante constatação de Bakhtin, na qual ele coloca que a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação (Bakhtin, 1981, p.113). A partir dos papier collés de Picasso e Braque, começava a se desenhar uma nova poética que passou a incorporar, para além dos elementos da paisagem, todos os objetos físicos e reais que povoam a realidade imediata, os quais passavam a ser investidos de uma nova carga simbólica ou significativa através da sua incorporação na obra de arte. Para o artista Max Ernst (1948), aquele que fala de colagem, fala do irracional. O processo de Fig. 2: Pablo Picasso, Copo e garrafa de Suze, guache e papel recortar partes de textos, imagens ou objetos colado, Paris/França, 1912. Washington University, St. Louis. e remontá-los em novos trabalhos revela a fragilidade natural das ideologias, desvenda uma Mais do que isso, Rona Cran argumenta que en- certa camada irracional e invisível que sustenta quanto é possível quebrar e deformar uma ima- as crenças mais sinceras. A história da collage gem, algo que Picasso em particular vinha fazen- nas artes visuais traça as ironias fundamentais do com sua pintura e seus desenhos, as letras do capitalismo para o papel branco onde, com que então apareciam na arte Cubista eram, como seus cortes e justaposições, os artistas destroem Braque bem pontuou, resistentes a essa manipu- e reformulam ideologias antigas, espelhando as lação, provocando tanto o artista quanto o obser- forças econômicas que fragmentam, cortam e revador a contemplar a linguagem enquanto uma estruturam o mundo. Assim como o artista que dimensão extra no contexto da obra de arte, uma seleciona elementos ready-made para criar um faceta adicional da identidade da pintura, assim novo discurso, o consumidor monta uma nova como uma intrusa de um outro reino (CRAN, 15- totalidade fora da infinitude de fragmentos in16, apud WESCHER, 1978, 20). Para o autor, a dividuais aos quais ele é colocado contra, literalcollage de Picasso e Braque eram menos um ata- mente comprando novas identidades. que à instituição de arte do que um impulso para fazer arte de uma forma totalmente nova, o que No contexto de um mundo preenchido com um significa mostrar e ver as coisas diferentemente. infinito fluxo de produtos, serviços, imagens, narrativas, formas, objetos e informação de todo Estava plantada a semente de um movimento tipo, o trabalho de Duchamp, especialmente as nas artes visuais pontuado pelas inúmeras in- obras que trabalham sob a lógica do ready-made, fluências que recebe do meio social, seja através soa como um teste devastador para os limites de do jornal, das revistas femininas ou dos pôsteres identidade da arte e do artista: ele faz com que nos muros da cidade. Isso reflete uma interes- compras banais voltem a ter significado, o que de

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certa forma trás para a consciência a necessidade de inventar o mundo mais do que simplesmente o consumir. Os ready-mades são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte, em um gesto que, ao mesmo tempo, dissolve a própria noção de obra. Apesar da problematização da arte enquanto instituição, o gesto radical de Duchamp aponta para a necessidade de ressignificar o mundo que nos rodeia, criando maneiras de viver e produzir significados em frente a um oceano de marcas, produtos e informações. Os mecanismos delirantes do artista, onde mecanismo e delírio, método e demência entrelaçam-se para abrir todo um novo caminho de reflexão no mundo artístico, entrelaça a combinação plástica, mental e verbal a uma nuvem irônica e crítica. Octavio Paz identifica em seu gesto não tanto uma operação artística, mas um jogo filosófico, ou antes, dialético: é uma negação que, pelo humor, se torna uma afirmação. (PAZ, 2014, p.29) O mecanismo delirante de Waldemar Cordeiro (Fig. 3) coloca certas idiossincrasias da collage no contexto neoconcreto brasileiro, momento no qual a realidade ordinária tornou-se objeto assimilável pela arte através da montagem sobre a tela, gesto que ficou conhecido como arte concreta semântica5. O trabalho é composto por quatro aros de bicicleta, cada qual com uma cor específica - amarelo, preto, marrom e azul - que encontram-se montados sobre uma tela, conectados por uma corrente. O aro menor, negro, está conectado também a um pedal por outra corrente, dando a ilusão de que seria possível movimentar os aros girando o pedal. Motivado por um gesto que, de certa forma, assemelha-se ao que moveu a produção artística no início do século XX na Europa, para Cordeiro não cabia à realidade ser representada através de artifícios, podendo ser mostrada enquanto coisa, de modo que o espaço

bidimensional da representação pictórica é abandonado e objetos da realidade diária são incorporados à planicidade da tela. Um processo que levaria à desintegração do quadro tradicional, do espaço pictórico.

Fig. 2: Waldemar Cordeiro, Contra o Naturalismo Fisiológico Op, madeira e rodas de bicicleta, São Paulo/SP, 1965. Coleção da família. Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural.

O mecanismo poético que possibilita essa fase da pesquisa concreta é a montagem, através da qual objetos reais - dos mais variados gêneros e origens, tendo sido cortados, pintados ou, simplesmente, inalterados - são usado para a constituição da obra. A montagem compõe vários fragmentos, ou vários quadros de diferentes tendências num só quadro, sendo esta mais uma expressão do antidogmatismo, do anti-estilo da arte contemporânea. Com o fim da utopia da redenção social via revolução tecnológica, a instrumentalização da arte pela lógica produtivista industrial e a coisificação dos sentidos, Givaldo Medeiros (2007) nota uma inversão do reduto naturalista que imperava nas artes brasileiras e uma acomodação às novas tendências europeias. Isso torna possível a descoberta de uma dimensão poética latente na realidade, um certo retorno ao real que, segundo o professor Fabrício Vaz Nunes, une Waldemar Cordeiro ao principal crítico dos Novos Realistas, Pierre Restany. Em ambos os casos, existe a descoberta do folclore industrial contemporâneo e de suas possibilida

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des expressivas ligadas ao senso da natureza moderna. (NUNES, 2014, p.157) Em sua manifestação no século XX, a estratégia da collage se configurou através de encontros e justaposições significativas que falam sobre desconstrução e deslocamento, enquanto simultaneamente representava a possibilidade de diálogo e síntese entre elementos heterogêneos. O conceito de fragmento, essencial à prática, implica na dialética entre o universal e o particular, o todo e a parte, em um momento no qual a técnica passava por uma transformação do seu significado, devido ao aumento de circulação da informação, o boom das lojas de departamento e o enraizamento do fordismo enquanto principal método de produção nas fábricas. Como produzir significado a partir de uma imensa onda de fragmentos ready-mades? Conectando práticas de collage através de diferentes mídias, gêneros, movimentos artísticos, tempos e espaços, entendemos essa estratégia criativa não como uma resposta local a um problema específico, mas tal como reflexo de uma verdadeira resposta dialética à ubiquidade da forma mercadoria como ela se desenvolveu através da produção de massa, da mídia de massa e da cultura de consumo.

Diego Franco é mestrando na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Notas 1 [tradução nossa] “A produção do Modelo T exigia 7882 operações de trabalho distintas, mas, observa a Ford, apenas 12% dessas tarefas - apenas 949 operações - requeriam ‘homens fortes, capazes e praticamente fisicamente perfeitos’. Do

resto ... ‘descobrimos que 670 operações poderia ser realizadas por homens sem pernas, 2.637 por homens com uma única perna, dois por homens sem braços, 715 por homens com um único braço e dez por cegos.” (BANASH, 2013, 50, apud Ford, 1922, 108) 2 Apesar das inúmeras modulações que a história de Osíris sofreu através dos séculos, a maioria das fontes concordam que ele e sua irmã/esposa Ísis eram filhos do deus da terra, Geb, e da deusa do céu, Nut. Juntos, eles governaram o Egito até a morte de Osíris. Enquanto em alguns textos Osíris morre ao cair no Nilo, na mais popular e duradoura versão do mito ele é morto pelo seu irmão calculista Seth, que o desmembra o corpo espalhando seus pedaços pelo Egito. Ísis junta todos os fragmentos, exceto seu falo, e através de suas habilidades mágicas trás Osíris do mundo dos mortos, concedendo a ele a vida eterna. Assim, Osíris torna-se o deus da morte, sendo retratado muitas vezes com a carne verde, como se estivesse em estado de apodrecimento. Citado por Banash, o professor Tom Hare argumenta que o desmembramento mitológico de Osíris mimetiza semiótica e psicologicamente a construção egípcia da consciência subjetiva fragmentada. (BANASH, 2013, 43, apud HARE, 1999, 23). 3 Segundo o mito, a criação começa com a essência divina imaginada como uma radiante luz em direção ao pleroma, o espaço do universo. Ironicamente, para colocar a criação em movimento, Deus performa o ato do tsimtsum, ou a limitação pessoal, portanto a criação começa com o exílio de Deus. Todavia, algumas das luzes divinas escapam como faíscas, chamadas sefiroth, representando as qualidades e potencialidades divinas: vontade, sabedoria, intuição, graça, julgamento, compaixão, eternidade e esplendor. Todos os seres carregam uma porção dessas luzes, chamadas shekhinah. Entretanto, os vasos - recipientes - que são o mundo material mostraram-se mui

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to frágeis para conter a força do shekhinah e se partem, fragmentando as centelhas divinas. Essa ruptura, chamada shevirah, ou “a quebra dos vasos”, representa o universo com suas partículas fragmentadas que foram separadas da unidade divina. O drama da criação inicia o tikkun, o desejo pela reintegração dos fragmentos da criação com a unidade que é Deus. 4 [tradução nossa] “Collage is the art of overproduction and the unprecedented fragmenting wastes of consumerism. its aesthetic celebrates the incomplete; its willingness to find beauty in irresolvable contractions or monstrous wholes is a mirror of the self created by the fragmentation of working the assembly line, wandering through the department store, or reading the newspapers and gleaning in the streets for industrial objects rather than in pastoral fields for grain.” 5 Cordeiro busca a transformação histórica da arte concreta através da superação do seu purismo acadêmico e da adoção de uma nova compreensão do fenômeno artístico, acreditando que demolir o significado é demolir o sistema. A preocupação fundamental é a pesquisa da relação entre os signos e as coisas, tendo como característica o fato de não se confundir com a figuração tradicional. O artista buscava novas estruturas significantes que eram criadas a partir da apropriação de objetos de uso comum - objetos não pertencentes, portanto, ao universo da arte tradicional -, ecoando e, de certa maneira, ressignificando o ready-made duchampiano ao transformar estes objetos em signos estruturados como mensagem construtiva.

BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996. CORDEIRO, Waldemar. “Realismo: musa da vingança e da tristeza”. Habitat, São Paulo, 83, maio/junho de 1965.

Referências

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WOLFRAM, Eddie. History of Collage: An Anthology of Collage, Assemblage and Event Structures. Michigan: Macmillan, 1975.

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NOTAS

Referências

1 Isabela Frade é artista e educadora, doutora em Comunicação e Pós Doutora em Artes pela ECA/ USP. Docente do PPGARTES/UERJ, Procientista FAPERJ; coordenadora do projeto de extensão Cerâmica viva UERJ/SR3. Lidera o Grupo de Pesquisa - CNPq Observatório de Comunicação Estética. Integra o coletivo de arte O Círculo. 2 A UERJ SEM MUROS é um Evento que ocorre anualmente Universidade do Estado do Rio de Janeiro e representa o compromisso permanente de professores, alunos e funcionários técnico-administrativos em produzir resultados e socializar o patrimônio cultural, científico e tecnológico da universidade com aqueles a quem de fato o saber acadêmico se destina: escolas de todos os níveis, instituições públicas e privadas e indivíduos de todas as classes. É a democratização da ciência de forma prazerosa, instigante, criativa e reflexiva. (Fonte SR3 UERJ)

AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos. São Paulo: Editora Senac, 2002. FRADE, Isabela. Arte Viva Na Via Uerj Mangueira - Modelagem de Corpos e Lugares de Convivência. Rio de Janeiro: ANPAP, 2012. HELLER, Alberto Andrés. John Cage e a poética do silêncio. Florianópolis: UFSC, 2008. NÓBREGA, Antônio. Programa da TV Futura Danças Brasileiras - Mestre-Sala e Porta-Bandeira. OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Editora Roco, 1986. SALOMÃO, Waly. Qual é o parangolé? São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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ARTIGO

ARTE CONTEMPORÂNEA EM ANGOLA: ENTRE O LOCAL E O GLOBAL Felipe Amancio Este texto tem como tema a exposição: Daqui pra frente: arte contemporânea em Angola, de curadoria de Michelle Sales, apresentada na Caixa Cultural – RJ no início de 2017. Objetivou-se o desenvolvimento de um comentário que aborde os trabalhos dos artistas em conjunto com as questões propostas, tais como: as condições pós-coloniais, diaspóricas, relações raciais e a produção artística entre o local e o global. Palavras-chave: Arte, pós-colonial, Angola. Daqui pra frente: arte contemporânea em Angola é o título da exposição curada por Michelle Sales na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, entre março e maio de 2017. O título ao mesmo tempo que nomeia os anos de trabalho que antecedem abertura da mostra, também sinaliza um marco, o fim da era colonial – ou antes independência – ao suscitar expectativas, lançando questionamentos sobre o que virá a partir do momento atual, o que terão pela frente nossos irmãos em língua e sangue, angolanos. Portugal como elo em comum de um passado histórico, fator determinante da formação sociocultural do Brasil e de Angola, das similaridades também, muito dolorosas, serviu de cenário de agridoce nostalgia para o encontro de pesquisadores em arte, unidos, mais do que pela lusofonia, por questões decorrentes de seus passados coloniais. E foi assim que, pesquisando o cinema em língua portuguesa, Sales teve sua pesquisa atravessada pelo encontro de um grupo de artistas; pessoas que embora de lugares tão distantes, calham de se encontrar por este mesmo elo, a partir de diferentes questões e rotas. Anos mais tarde, tal encontro deu forma a exposição realizada no Rio de Janeiro, focando na produção de

três deles: Délio Jasse, Mónica de Miranda e Yonamine. Não se pretendendo uma crítica, a escrita deste texto busca refazer o trabalho curatorial de costura de fronteiras transnacionais, culturais e estéticas, através do comentário de alguns trabalhos. Motivada pelo interesse em abordar as relações entre ex-colônias e metrópole que, nesta exposição se desdobram a partir do caso de Angola, a minha maneira, escolho traçar aqui uma linha interpretativa que, a partir das obras que foram expostas, do que nos é dado a ver, busca percorrer, atravessar e reunir questões, das que nos parecem mais francamente abordadas, quer seja pela nitidez fotográfica, até onde as imagens mais imprecisas nos deixam entrever. Neste percurso, toma-se a primeira a esquerda, local que foi exposta a série Além mar, 2013 de Délio Jasse. Artista luandense familiarizado com as artes gráficas, nesta série de fotografias encontradas, Jasse nos apresenta o registro de uma tarde de confraternização entre brancos e negros, soldados e civis, e toda uma sorte de dualismos improváveis em plena guerra de independência nas décadas de 1960-70. Aquela tarde da qual não

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Fig. 1: Délio Jasse. Além mar, série fotográfica, 2013

sabemos ao certo se durante um dia de trégua, é de grande significação por reforçar a ideia de um Portugal amigável, de “brandos costumes” como comenta Sales ao referir-se a Gilberto Freyre. Dessa série, podemos tomar a emblemática foto em destaque na qual vemos um português abraçado a duas moças locais [Figura 1]. Contudo, embora não seja possível identificar o tipo de relação entre esse homem e essas mulheres, podemos atentar para o modo permissivo com que as abraça, e, analisando esta foto no conjunto da série, podemos perceber o entrosamento de dois grupos: homens brancos e mulheres negras, nas areias e águas do rio. Longe de querer romantizar a cena, como se difunde pela mitificação da miscigenação – maneira que o próprio Waldir de Freitas Oliveira (1965, p.37), em relato de viagem a Luanda, considera que “[...] os portugueses não conseguiram ali realizar, ou não o desejaram, a grandiosa obra de colonização que realizaram no Brasil. O primeiro fato que nos denúncia tal cousa é a ausência da miscigenação racial. ” Deveras, o comentário de Oliveira não foi para tais ima-

gens, mas é preciso lembrar que a miscigenação não teve início nos moldes de um romance burguês, antes se deu a partir dessa dissimetria nas relações de poder, de raça e gênero. Mais uma vez é preciso dizer: as cenas recolhidas por Jasse são de um contexto de guerra, de mulheres deixadas por seus maridos pelos mais diversos motivos. Em suma, é preciso lembrar os lugares muito bem demarcados até hoje de brancos e pretos em Angola, lugares que a miscibilidade dos tons de pele não veio transpor. De Jasse, a exposição traz também mais dois trabalhos, a série Identidade Poética, 2009 e o vídeo Darkroom, 2013. Assim como o trabalho anterior, essa série não apresenta fotografias clicadas pelo artista, mas fotografias encontradas nos mais diversos lugares. O gesto fotográfico aqui é o da seleção, que, embora costume ser a etapa final, é tomado pelo artista como seu ato inicial; de não mais produzir, fotografar, e sim recolher e selecionar os excessos de um mundo abarrotado de imagens. A série Identidade poética trata também

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Fig. 2: Délio Jasse. Identidade poética, série fotográfica, 2009.

disso, dessa profusão de imagens, das imagens indistintas, anônimas dos rostos carimbados em documentos oficiais [Figura 2]. O artista realiza uma exumação dessas imagens, mas sem qualquer redenção, nenhuma história é contada a fim de reinserir essas pessoas numa narrativa que as devolva nome e paradeiro. São imagens do trânsito, deixadas a se apagar duplamente, tanto pela tinta dos carimbos burocráticos, dos protocolos que deixam fora de seu quadro qualquer subjetividade destoante de seus códigos, quanto pelo desbotamento nos rumos que vieram tomar; são stills de algo que já se passou. Outra profusão de imagens é apresentada pelo vídeo Darkroom, 2013, no qual cenas de Luanda são continuamente sobrepostas [Figura 3]. Este trabalho aborda de uma maneira interessante a relação do artista com sua cidade, suas memórias, e como estas são recompostas, deslocadas, apagadas por constantes mudanças. E se algo ainda podia se salvar nas imagens do trânsito, na dignidade de retratos do passado, tudo aqui está posto a perder; as memórias que muitas das vezes são as únicas relações dos emigrantes com suas terras natais, modos pelos quais reconstituem e firmam suas identidades, não cessam de

mudar, de se sobrepor, de se transformar. Diante do tempo, nenhuma cena pitoresca é permitida permanecer. Implacavelmente, todas as imagens são tomadas em continua mutação, até o ponto de se tornam indistintas aos olhos que a conheceram.

Fig. 3: Délio Jasse. Darkroom, vídeo, 2009.

Talvez, o conjunto de maior lirismo dessa mostra seja o trabalho da artista Mónica de Miranda. Nascida no Porto, de mãe angolana, as obras de Miranda buscam explorar suas origens através de fotografias e vídeos realizados nas viagens que faz ao país de sua mãe. Mas, que Angola é esta que é imaginada, inscrita em suas fotografias? No tríptico Break-line, 2016 vemos uma ginasta hastear uma fita vermelha aos céus, numa estrada que corta uma terra desértica [Figura 4]. Ape-

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Fig. 4: Mónica de Miranda: Break-line, fotografias em tríptico, 2016.

sar da curiosa construção na foto da esquerda, não há grandes marcos que caracterizem aquele lugar. A paisagem – esse conceito que forjamos sobre a natureza, do qual também fizemos um gênero artístico – encontra-se aqui desolada, despovoada. A cena desértica que a artista nos apresenta pode na verdade ser qualquer lugar, ou até mesmo o não-lugar do qual fala Marc Augé (CANTON, 2009, p.58). É a autoestrada, os lugares de trânsito e não permanência, a polissêmica break-line que podemos traduzir por “linha de ruptura”, metáfora tautológica dessas imagens. A estrada como linha de ruptura, das separações e encontros da vida; a estrada que separa e a linha que costura, ou melhor, essa simbólica fita vermelha hasteada como filete de sangue de um reencontro com Angola.

pelas estradas de um subúrbio, e de repente para virado numa direção. A imobilidade de sua posição e o preto de suas vestimentas parecem marcar uma reverência, um luto. Mas há também o naufrágio em um porto, os planos que não chegaram a se concretizar – seria esta outra maneira de morrer na praia?

Mas não só em busca da própria história Miranda constitui o seu trabalho, este é o caso dos vídeos: An Ocean between us (2012), Casa portuguesa (2017) e Hotel Globo (2015). Apresentados em sequência e sem constituir uma lógica estrita, neles temos a construção de narrativas soltas, da qual desconhecemos o princípio e o fim, as cenas começam sem maiores introduções, e terminam sem grandes desfechos. Há talvez uma história de amor interrompida por um oceano no primeiro vídeo, ou mesmo uma desculpa para se contar uma história, uma das muitas maneiras que se pode falar de separação espacial e afetiva; há também a ausência de casa, e o homem que vaga

Último artista a ser comentado neste texto é também aquele cujo trabalho menos facilmente se entrega, pois, se alguma narrativa ainda pode ser traçada nos trabalhos de Jasse, tanto pelo recorte temporal das fotos como documentos, quanto pelas composições visuais nos vídeos de Miranda, muito pouco Yonamine nos deixa para atinarmos. É como o próprio artista diz em entrevista ao jornal Público: “Quero fazer um trabalho sem identidade. Sinto-me cidadão cósmico, cosmopolita. Estou a seguir a minha vivência, os caminhos por onde passei. O meu trabalho podia ser feito por um japonês, um português, um alemão, um africano.” Nascido no ano da independência de

Perguntas também não são respondidas no trabalho Biting nations (2007) de Miranda. Neste vídeo vemos a própria artista roendo e mordiscando bandeiras pintadas nas próprias unhas [Figura 5]. Roer unhas é um sinal de ansiedade, apreensão. O colorido das unhas é mordido um a um, como diferentes sabores, escolhas, em um ato de espera angustiante, o erotismo não está de fora desta estranha degustação.

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Fig. 5: Mónica de Miranda, Biting nations, vídeos em tríptico, 2007.

Fig. 6: Yonamine. Can, vídeo, 2010

Angola, Yonamine não hesita em se entregar ao caos do mundo contemporâneo, presente também em sua produção; nenhuma peculiaridade é mantida pela nostalgia da pátria, como diz o artista: “Muitas vezes esqueço-me de onde vim. Mas, quando me lembro, fico triste porque não tenho muitas referências lá mesmo, não tenho um museu que mostre o que os meus antepassados fizeram, não tenho uma biblioteca em Luanda.” Tendo Lisboa como sua base, esse artista do mundo não está livre de tomar essas instituições

ocidentais, ou melhor, a falta delas como lugares da memória, por isso busca trabalhar com o que lembra de ter vivido. Com uma forte influência da arte urbana, seus trabalhos podem remeter aos excessos das grandes cidades, de imagens e grafismos, símbolos que são constantemente reposicionados, sobrepostos, apagados, feitos vestígios. Igualmente, os materiais não são dos mais nobres; do excesso como excedente, mas também como resto, da-

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Fig. 7: Yonamine. La carpa, projeção sobre barraca, 2011

quilo e daqueles que se encontram às margens, o trabalho de Yonamine faz uso justamente dessa visualidade babélica, anárquica das ruas das grandes cidades, e também de seus dramas. É o caso de trabalhos como Can, 2010, um vídeo que registra a perfuração de latinhas de bebidas [Figura 6]. Contudo, mas do que um pontilhismo de perfuração, o artista nesta obra trava um embate com um vício antigo, ao confeccionar ele próprio um cachimbo para fumar crack – que por sua vez também é um substrato barato de outra droga, disponível aos mais pobres. O artista que viu amigos se perderem no vício, vê também o nome dessa droga se repetir no trabalho La carpa, 2011 no qual temos o logo da Coca-Cola, bebida que tem em sua composição o mesmo vegetal base da droga, projetar-se sobre uma barraca de acampar [Figura 7]. A barraca que pode tanto remeter a um divertimento passageiro é símbolo da precarização da vida dos que nada tem ou que tudo perderam, dos que restam de fora e dividem entre si a pobreza.

Em conclusão, em termos de conjunto, duas observações precisam ser feitas: a primeira, de ordem mais formal, é a preponderância de vídeos e fotografias como suportes privilegiados pelos artistas; a segunda, que não se desloca da primeira, diz respeito a apresentação de um discurso. Antes de mais nada, é preciso reconhecer as dificuldades de se apresentar uma cultura diferente, algo de que não se é próximo, o risco de falar pelo outro. Se este, de certo modo, é quase sempre o ofício do curador, Sales nesta exposição precisou também ser intérprete de linguagens crioulas, produções hibridizadas nas quais não há purismo, nem manutenção da cor local. Este é o caso das obras dos três artistas apresentados que podem, inclusive, frustrar aqueles que nesta exposição buscavam qualquer espécie africanismo, como primitivismo ou geometrizações coloridas, e outros clichês quaisquer que se possa ter da África. A exposição – como bem marca seu subtítulo – não trata da arte angolana, mas da arte que lá é feita, em Angola.

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Sutil, mas escapa-se com isso de falar de um todo, de tomar as obras apresentadas como ícones de uma angolanidade. Contudo, isso também não significa a concretização do desejo de Yonamine, de uma arte totalmente cosmopolita, sem identidade. É a identidade, como lembra Moacir do Anjos (2005;14), que não mais se forma a partir de registros puramente territoriais, daquilo que um grupo resguarda dos demais, mas sim das formas específicas de posicionamento frente ao outro, as maneiras como acolhe ou rejeita o que é de fora, readapta e reinventa, num processo constante de transculturação. Tal processo, entretanto, não é simétrico, nem livre de embates: é um jogo de forças. São os grandes centros de poder financeiro e midiático bombardeando as zonas periféricas do mundo com suas produções culturais, mas também a influência de menor grau dessas zonas em retorno, assim como o modo particular que adaptam a influência que recebem.

Felipe Amancio é mestrando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e bolsista da CAPES. REFERÊNCIAS ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro. Editora Jorge Zahar, 2005 CANTON, Kátia. Espaço e lugar. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009 . CORDEIRO, Ana Dias. Yonamine confessional. Público. 28 de março de 2012. Disponível em: https://www.publico.pt/2012/03/28/ culturaipsilon/noticia/yonamineconfessional—302663 (Acessado em agosto de 17) SALES, Michelle. Daqui pra frente: Arte contemporânea em Angola: catálogo da exposição realizada na CAIXA cultural Rio de Janeiro. Galeria 3 de 21 de março a 14 de maio de 2017.

OLIVEIRA, Waldir Freitas. Brancos e pretos em Angola. Afro-Asía. Salvador. v 1, n 1, p.33-39, Não se trata de mera cópia ou mimetismo acrí1965. tico, mas de hibridismo, isto sim. As interações culturais não produzem sínteses, reunificações, redução a um, mas junções ambíguas de partes que permanecem reconhecíveis, e, no entanto, formam coisas nunca antes vistas. Cada artista reinterpreta à sua maneira, traduz ao seu vocabulário as influências que recebe, e se tratando de artistas provenientes das chamadas zonas periféricas, devem saber negociar os cálculos de suas recepções nos circuitos hegemônicos da arte. No entanto, há uma segunda tradução que é a curadoria, trabalho de intérprete, de mediação com o público, cujo desafio desta foi manter-se longe dos lugares comuns, de alocar no cosmopolitismo ou regionalismo, obras e questões que primordialmente são dos trânsitos, das trocas e disputas.

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artigo

FERNANDO PINTO MARAVILHA: UM ZIRIGUIDUM TROPICALISTA Leonardo Antan A pesquisa busca olhar a produção dos desfiles das escolas de samba a partir do olhar da História da Arte, entendendo o carnavalesco como autor e artista. E o campo dos desfiles como pertencente ao da arte não institucionalizada. A partir dessa noção, a pesquisa analisa a trajetória do Fernando Pinto que relacionou com as ideias e conceitos do movimento tropicalista. Retrabalhando em sua obra os símbolos nacionais a partir do deboche, da crítica e da alegoria. Dialogando com uma série de artistas da arte brasileira da segunda metade do século XX. Palavras-chave: Escolas de samba, artista, carnavalesco, tropicalismo, arte brasileira. Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante, de uma estrela que virá numa velocidade estonteante e pousará no coração do hemisfério sul. (Um índio - Caetano Veloso) Os patins deslizam sobre o chão quadriculado de branco e preto, conduzidos por estranhos índios punks. É calor, verão, manhã de sol forte no Rio de Janeiro, na Marquês de Sapucaí. É a Discoteca Saci, onde índios também tocam heavy metal. É a grande casa noturna de Tupinicópolis, a cidade indígena pós-marajoara, retrô-futurista, símbolo do Tupi Power, onde, seus habitantes fazem compras no Shopping Boitatá e Supermercado Casas da Onça, se hospedam no Palace Hotel Tupiniquim e vão à Farmácia do Raoni. Para se divertir, opções não faltam como o Cine Marajoara, que tem o épico Iracema II em cartaz, o Cassino Eldorado e até o Bordel da Uiara, comprando com a moeda guarani e sendo comandados pela Tupioca dos Poderes, onde o Tupi-Cacique dá as ordens.

de discussões surgidas quase vinte anos antes pelo momento tropicalista, articulando também questões-chave em sua produção, tais como pensar o Brasil contemporâneo rearticulando os signos tropicais através do uso alegórico do deboche e da ironia. De modo que, em sua trajetória de dezesseis anos e quatorze desfiles assinados no grupo especial carioca, de 1971 a 1988, o artista pernambucano atualizaria questões tropicalistas que foram repensadas e ressignificadas pelos intelectuais da década de 1970, no que se convencionou chamar de “cultura marginal”2. Além das escolas de samba, Fernando Pinto atuaria como diretor teatral, cenógrafo, figurinista e coreógrafo. Ao chegar de Pernambuco em 1969, instalar-se-ia no icônico Solar da Fossa3 e durante os anos 1970, além do cenário teatral, seria responsável pela estética do grupo As Frenéticas, fazendo parte do coletivo Dzi Croquettes e assinando a direção de shows e cenários de outros artistas como Elba Ramalho, Simone, Chico Anysio e Ney Matogrosso.

Apesar do estranhamento inicial, com a cons- Em entrevista, o artista assumiria sua herança trução de sua “lendária cidade índia do terceiro artística: milênio”1, Fernando Pinto atualizaria uma série 139 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017


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De certa forma, sou filho estético da Tropicália, aquele movimento maldito maravilhoso. Tropicália, para mim, é a curtição em cima de tudo e de todos. Tropicália é o verdadeiro Brasil, o subterrâneo; o que todo mundo faz e ninguém mostra. (O GLOBO, 15/02/1980)

via buscando encarar as questões que formavam a cultura brasileira dos anos 1960, num desejo de universalizar o Brasil, colocando-o na rota internacional.

Nas artes plásticas, Hélio Oiticica. Na música, o grupo liderado por Gil e Caetano. No teatro, Zé Celso Martinez. No cinema, Glauber Rocha. No Em carnavais assinados em duas fases diferentes, carnaval, Fernando Pinto atualizaria essas quesa primeira delas no Império Serrano e a segun- tões anos depois, em 1980, em seu desfile “Tropida na Mocidade Independente de Padre Miguel, cália Maravilha”, para a Mocidade Independente Pinto lidaria com sintomas e processualidades de Padre Miguel, no qual articularia uma série de levantadas pelo momento tropicalista e retraba- ícones da Tropicália e da cultura brasileira, como lhados pelos artistas das gerações seguintes, nos ele bem define, numa espécie de concepção próanos 1970 e 1980, das quais fez parte. No presen- pria da História do Brasil: te trabalho serão discutidos três desses sintomas: Se o enredo é “Tropicália Maravilha” é por as noções de brasilidade, os signos tropicais e a que eu sou um pouco filho da Tropicália. linguagem alegórica. Quis fazer um enredo que brincasse com a Encarar o Brasil de frente natureza, a dança, a música do Brasil. Que brincasse com o Brasil mesmo, enquanto Tropicália é a primeiríssima tentativa país, mas não de uma forma ufanista e sim consciente, objetiva, de impor uma imagem a partir de um visão crítica. A tropicália é obviamente brasileira ao contexto atual da exatamente isso: curtir muito, às vezes até vanguarda e das manifestações em geral chegando ao deboche. (Folha de São Paulo, da arte nacional. (OITICICA, 1986, p.106) 08-02-80) Assim definiu Hélio Oiticica o penetrável “Tropicália” que sintomatizaria as questões do momento intitulado tropicalista a partir de seu trabalho. Esta seria a primeira de uma série de obras que trariam questões semelhantes ao buscar repensar a cultura brasileira a partir de 1967, evocando símbolos da nacionalidade estabelecida pelo modernismo de modo irônico e festivo, ao mesmo passo em que afirmavam que aqui era o “fim do mundo”4.

No discurso do carnavalesco sobre o enredo ficaria claro um caráter irônico, beirando ao deboche, uma leitura anti-histórica de uma manifestação artístico-cultural que se pretendia “séria”. A Tropicália, uma forma de pensar o Brasil, seria evocada por ele como uma espécie de comentário muito pessoal ao “movimento”5 numa tentativa de atualizar o assunto para o período político-social de então à formação brasileira, evidenciando nossos principais símbolos, tais como as obras entendidas como tropicalistas. um processo que Contrapondo-se à dicotomia entre alienados Hélio Oiticica definiria como reconhecer que a e engajados, às canções de protesto e à Jovem formação brasileira “é de uma falta de caráter Guarda, a Tropicália surgiria como uma terceira incrível: diarreica; quem quiser construir (nin-

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guém mais do que eu, “ama o Brasil”!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia – mergulhar na merda. (OITICICA, 1973, p. 151) A narrativa proposta em setores ou quadros se articularia com a própria alegoria de um Brasil que se queria e não queria ser, segundo a concepção de seu criador. Se tratando de uma construção fantasmagórica de um Brasil que se apropria de uma dita história oficial, mas mergulha em sua merda. É um processo muito parecido com a encenação de “O Rei da Vela”, do Teatro Oficina em 1967, definida como “uma farsa fantasmagórica que satirizava a pompa oficial, ridicularizava abertamente o ‘bom gosto’ e se deleitava com o grotesco” (DUNN, 2009) Esse jogo complexo entre o cafona, o kitsch e o grotesco é ainda mais tenso se analisarmos o momento histórico dos desfiles das escolas de samba6 em que Fernando Pinto atuou. Assim, como Zé Celso e Caetano Veloso, Fernando Pinto trazia o exagero à tona novamente7. Era uma referência ao teatro de revista, estética que contribuiu para a formação num primeiro momento, e a partir da chamada “revolução salgueirense” foi colocada de escanteio. Relíquias do Brasil

de Rubens Gerchman e os desfiles de Fernando Pinto, revisitados e reprocessados em diversas camadas na trajetória do carnavalesco pernambucano. Primeiro, no aspecto mais óbvio, das frutas e faunas representadas abundantemente em desfiles diversos, onde se destaca mais uma vez “Tropicália Maravilha”, com setores dedicados a estes signos representados em carros alegóricos e uma visão debochada da flora brasileira a partir do título “O cravo brigou com a rosa por causa da margarida gostosa”. Fernando Pinto explicaria que o setor marcaria uma ode à margarida que devia ser valorizada em seu aspecto popular, em relação à monarquia da rosa. Essa celebração irônica e divertida de uma imagem tropical esvaziada poderia ser comparada às imagens coloridas e alegóricas de Glauco Rodrigues e no forte subtexto das bananas de Luiz Henrique Amaral. Além da fauna e da flora, outro signo de brasilidade resgatado do ostracismo pelo movimento tropicalista foi a figura exótica de Carmen Miranda. A cantora luso-brasileira seria o enredo do segundo carnaval da trajetória de Fernando Pinto, em 1972. O desfile “Alô, alô, taí Carmen Miranda”, apresentado pelo Império Serrano, é provavelmente o primeiro a abordar um ícone da cultura de massa, conhecida no âmbito popular.

Ao tentar “impor uma imagem obviamente brasileira”, Hélio Oiticica lançaria mão dos mais famosos clichês da identidade nacional forjados pelo modernismo, através da arte institucionalizada, por meio da música, do teatro e do cinema; processo no qual as escolas de samba teriam papel fundamental, elevadas ao patamar de símbolos da nacionalidade.

No depoimento para O Globo, de 1973, escrito diretamente pelo carnavalesco, ele fala sobre o processo de construção do enredo em que optaria por uma construção não linear: “Sou uma pessoa muito ligado ao teatro e vejo o carnaval como o maior espetáculo que a gente tem”. Várias reportagens nos jornais O Globo e Jornal do Brasil, destacariam as referências do cinema e teatro na criação da apresentação. Essa visão do teatro Todos os ícones de tropicalidade como condição de revista e também da chanchada seria uma linde brasilidade, negados até então, emergiriam do guagem adotada por Fernando no sentido de vasubterrâneo destas áreas com a música de Cae- lorização do popularesco, mal visto no carnaval tano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, a visualidade da época.

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A análise de um dos principais teóricos da Tropicália, Celso Favaretto, destaca essa “transformação do mau gosto em símbolo de contestação no domínio dos comportamentos, através do uso sistemático do deboche” (2007, p.122). Além de obras tropicalistas já citadas, como a peça “O Rei da Vela”, o tema também apareceria em artistas visuais como Rubens Gerchman e seu “Rei de Mau Gosto” e Nelson Leirner, em “Altar de adoração a Roberto Carlos”, ambas de 1966, que articulavam o “mau gosto”, o “popular” e o “brega” de maneira irônica.

ser lido como um grito de alerta à preservação ambiental. O desfile seria dividido em vários quadros com momentos distintos, o primeiro ato é o simbólico “Mocidade abraça o índio brasileiro”, o desfile seguiria mostrando os hábitos e as culturas indígenas antes da chegada do colonizador, a chegada dos “invasores” e a revolta dos nativos contra eles. A presença do estrangeiro seria tratada de maneira alegórica, marcando uma forte negação da história oficial ainda apresentada por algumas escolas do período.

Nos anos 70 e 80, além de Fernando Pinto, uma Deixe nosso índio ter seu chão série de artistas refletiria sobre o tema indígena. Seja de maneira alegórica, como Glauco RodriMuito além da fruta, da fauna e da Carmen Mi- gues, seja nas pinturas hiper-realistas da série randa, o principal signo da brasilidade na tra- Xinguana, em 1975, do artista goiano Clóvis Irijetória de Fernando é, sem dúvida, a figura do garay, que também colocaria índios fora de seu índio tropical que exercia verdadeiro fascínio so- lugar esperado ao representá-los vendo televisão bre o artista, aparecendo na sua produção com ou bebendo Coca-Cola. Um processo que apareespecial destaque. Dos carnavais assinados pelo ceria no tropicalismo também como uma maneiartista, foram três desfiles dedicados aos nati- ra de valorizar esse ‘primitivo e nosso’ como elevos brasileiros, o que se convencionou chamar mento de subversão, inversão e transvaloração. A de trilogia indígena por alguns historiadores do utopia antropofágica reencontra no nosso passacarnaval e que aparece declarada por Fernando do primitivo todas as qualidades necessárias ao numa edição do jornal O Globo de fevereiro de presente. 1987. A partir de uma análise mais generosa desse recorte específico, percebe-se um certo nível Sobretudo para o carnavalesco, a questão parece de desenvolvimento e diferenças que marcaram ser o índio usado como signo popular de maneira uma espécie de continuidade desses três enredos. subversiva. Estabelecendo uma crítica ao branco através do índio, num jogo de relações que disO primeiro deles, realizado em 1973, no Império tancia o espectador do que está sendo falado. De Serrano, “Viagem encantada Pindorama8 aden- modo parecido ao que que Caetano Veloso termitro” marcaria uma abordagem do Brasil antes na a sua já citada canção “Um índio”: da chegada colonizadora. A linguagem do enredo teria um aspecto lúdico e onírico a partir da E aquilo que nesse momento se revelará inserção das lendas e mitos indígenas. Dez anos aos povos. Surpreenderá a todos não por depois, Fernando Pinto retornaria a questão inser exótico, mas pelo fato de poder ter dígena em sua volta à Mocidade, após sua rápisempre estado oculto quando terá sido o da passagem em 1980. Abandonando a proposta óbvio. mais lúdica, “Como era verde meu Xingu” pode

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Esse caráter dúbio e crítico também apareceria no trabalho de Anna Bella Geiger que, a partir de 1977, iniciaria a série “Brasil Nativo, Brasil Alienígena”, em que se apropriaria de cartões indígenas que traziam a figura do nativo como símbolo de exportação e ela mesma reproduziria as cenas marcando um contraste, entre “colonizador” e “colonizado”. Apesar dessa tendência alegórica, os índios de Fernando Pinto não se distanciariam muito da fotografia de Claudia Andujar que, com a série Marcados chamaria atenção para a dizimação da população indígena de maneira mais etnográfica. Documentos atuais da Comissão da Verdade revelam o massacre indígena no período ditatorial, além do alerta pela demarcação das terras indígenas, em pauta na época e até hoje. Ambos os assuntos eram previstos na obra do carnavalesco. Ao levar para avenida o enredo Tupinicópolis, em 1987, como parte final da trilogia do Tupi Power, o artista pernambucano deixaria claro tais questões com a alegoria da construção de uma metrópole urbana fundada pelos índios. Onde, segundo as definições de seu próprio criador no texto da sinopse, “a cultura Tupiniquim falaria para o mundo via Tupinicópolis”. Definida como um carnaval de “ficção científica tupiniquim”, o enredo surpreenderia com o seu último carro alegórico, que apresentaria um “plot twister” digno de roteiro hollywoodiano. O carro “O palácio do lixo – Tupilurb” traria o lixo da cidade indígena com os escombros do Cristo Redentor, do Elevador Lacerda e do Monumento às Bandeiras, em São Paulo, numa referência à cena clássica da versão original de “Planeta dos Macacos” (1968) quando ao encontrarem os destroços da Estátua da Liberdade numa praia, os protagonistas percebem que não estão em outro planeta, como imaginavam, mas sim na própria Terra do futuro. Os vestígios, o lixo e os mendigos desse carro alegórico têm o mesmo sentido.

Tupinicópolis não seria a possibilidade de um Brasil, mas o seu futuro. Sua fundação marca a resposta de Fernando às questões levantadas pelos primeiros desfiles da trilogia. Dando como resposta final para o problema colonial a expulsão do colonizador, após sua absorção antropofágica, como sugerida por Oswald de Andrade e realizando um desejo proposto por Hélio Oiticica em seus escritos: Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de significado próprio. (OITICICA, 1986, p.108) Tupinicópolis não confirmaria “a incompetência da América católica” cantada por Caetano Veloso em “Podre Poderes”, mas fundaria uma resposta nova a ele e ao Brasil de então. Afinal, “só a antropofagia nos une”. Alegria, alegoria Alegoria no universo da escola de samba é o nome usado para os carros-cenários que compõem a linguagem e a estética dos desfiles. Enquanto na teoria da arte pode se referir também a um conceito, um tipo de figura de linguagem, onde se diz uma coisa querendo dizer outra, sendo discutida mais amplamente na modernidade por Walter Benjamin. A relação entre alegoria e Tropicália já foi muito abordada, sendo apontada inicialmente num dos principais críticos do movimento, Roberto Schwarz. Mas seriam os estudos de Celso Favaretto que viraram canônicos sobre o assun-

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Em Tupinicópolis, a quantidade de informação de algumas alegorias, como o Shopping Boitatá, advém dessa construção, mas também marca uma referência do espectador como um flâneur que ao ser atravessado pela Tupinicópolis é atingido por milhões de informações. Algo muito próximo da música “Alegria, Alegria”, de Caetano “Ziriguidum 2001 – Um Carnaval nas Estrelas” Veloso, que retrata exatamente uma figura que foi realizado pela Mocidade Independente de Pa- flana pela cidade capitalista sendo bombardeado dre Miguel, em 1985, e propunha literalmente de informações simultâneas. Tanto a experiência um desfile de escolas de samba no espaço sideral. percebida na música, quanto no desfile têm um Segundo a definição do próprio artista, “nos anos quê alucinatório, o que seria uma outra caracte2000, cada planeta do sistema solar vai incorpo- rística da concepção de alegoria. rar o espírito da festa brasileira e estará organizado o carnaval cósmico”9. Resumindo o enre- A experiência de Ziriguidum e Tupinicópolis cardo, os noves planetas se juntariam a nove festas regam algo de transcendental e onírico, justapor populares brasileiras: Corsos dos mares da Lua, conceitos tão distantes no imaginário comum. Pirilampo de Mercúrio, Rancho da primavera de “Parece que estou sonhando”, dizia o próprio Vênus, Caboclinhos Marcianos, Boi-robô Satur- samba-enredo de 1987. São imagens fragmentano, Frevo Uraniano, Afoxé dos Filhos de Plutão, das e com associações externas, como no “proJúpiter e os fandangos siderais e Reisados de Ne- cesso de deslocamento do sonho, onde o ouvinte tuno. é remetido a algo remoto, advindo disso a estraAs construções alegóricas de 1985 e 1987 são nheza das imagens tropicalistas”11. Os desfiles muito aproximadas em vários sentidos, como por tratam, como as canções tropicalistas, de um deexemplo, a noção de um “carnaval nas estrelas” senrolar de imagens, nascidas da justaposição e e uma “cidade de índio” que trazem consigo uma desejos coisificados, montando uma cena fantasaparente simplicidade, sendo compreendidas fa- magórica12. cilmente por qualquer espectador, mas dotadas de várias camadas de significações mais densas, Nos quesitos estéticos, Ziriguidum também mardeixando no ar uma profundidade a ser revelada. caria uma revolução na linguagem das escolas Esse efeito contraditório trata da ambiguidade de samba ao apresentar o carro alegórico “Nave sempre ressaltada pelo momento tropicalista e já Mãe”, que seria o primeiro carro acoplado da explicitada por Oswald de Andrade, em seu ma- história13, marcando uma expansão do tamanho nifesto antropófago, como a floresta e a escola, das alegorias e seu gigantismo, pois, com a nova ou o arcaico e o moderno. A cidade urbana de estrutura do Sambódromo, era necessário o reindígenas traria essa “justaposição entre o ‘uni- pensar as formas dos carros alegóricos. Em seus verso tropical’ e o universo urbano-industrial” desfiles de 85 e 87, isso ficou claro. Suas alego(DUNN, 2007, p.118). Onde o procedimento con- rias ganhavam novos formatos e dimensões. Nas sistiria em submeter os arcaísmos culturais à luz formas, Fernando fugia do estilo “igreja barroca branca do ultramoderno, apresentando o resul- amontoada de arabescos” e das formas naturais. As alegorias de Fernando são artificiais, abstratado como uma alegoria do Brasil10. to. A partir deles, que analisaremos a alegoria na obra de Fernando Pinto. Sobretudo nos seus dois desfiles mais reconhecidos, “Ziriguidum 2001” (1985) e “Tupinicópolis” (1987), em que se tornaria muito forte o conceito alegórico na concepção da linguagem do artista carnavalesco.

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tas, retas, o excesso de informações não provém do todo da forma, mas do acúmulo de muitas partes individuais. Carros como a Discoteca Saci, o Cassino Eldorado e a Nave Mãe chamam a atenção por seus formatos vazados e arrojados, valorizando muito mais os destaques e composições. Esse arranjo mais dinâmico viria, provavelmente, de uma visão futurista que se mostraria com uma espécie de fascínio para Fernando Pinto, e que se apresentaria mais fortemente na segunda fase de sua carreira, de 1984 a 1988.

Sou a Mocidade, sou independente , vou a qualquer lugar

Na coluna que assinou como convidado na revista Veja14, o carnavalesco assumiu que entenderia o carnaval como uma reunião de muitas linguagens artísticas, de maneira que ele se configura como o maior espetáculo teatral-artístico do mundo. Esta visão, explorando a festa muito além de seu lado puramente cultural, marcaria em Fernando sua participação num processo artístico de seu tempo. Com vivência de teatro, FerNa coluna em que assinou para a revista Veja em nando Pinto articulou uma linguagem baseada fevereiro de 1985, ele declarou várias referências no palco, tendo atuado em diversas montagens entre a literatura e o cinema como Arthur Clarke, de peças, como diretor, ator, coreógrafo, cenógraIsaac Asimov, Stanley Kubrick, os filmes da sé- fo e figurinista. rie Star Wars, Barbarela e Contatos Imediatos de Terceiro Grau. Na produção do tropicalismo A aceitação do trabalho do diretor no carnaval musical, a ideia de um futuro no sentido prático como arte seria marcada a partir da apresentação e imaginário seria presente sobretudo na obra de de 1983. Se no resultado oficial, a Mocidade IndeGilberto Gil, em canções como a icônica “Expres- pendente chegaria apenas em sexto lugar, a má so 2222”, “Dois Mil e Um”, “Cultura e Civilização” posição não seria tão destacada pela crítica care “Cérebro Eletrônico”, que buscariam lidar com navalesca, mas revoltaria, surpreendentemente, a classe artística carioca. A repercussão renderia o futuro no contraste com o presente. uma nota na coluna social do Jornal do Brasil, asEm Tupinicópolis, além do carro alegórico da sinada por Zózimo. No quadro intitulado “Obra Tupilurb, que marcaria o tempo futuro onde a de artista”, o jornalista comentaria a polêmica do narrativa se passa, outro carro traria esse ima- papel de liderança tomado por Frederico Morais, ginário da ficção científica, o elemento chamado falando do desejo de articular eventos com a obra “Tupi Cacique”. Plasticamente, “Tupi Cacique” de Fernando. O desejo de fazer uma exposição seria um rosto indígena dourado atrás de numa seria concretizado logo após o carnaval, quando tela de computador e um teclado. A explicação as alegorias e adereços do desfile de 1983 ganhada narração da transmissão da rede Globo o de- riam de fato status de objetos de arte ao serem finiria como “soberania e sabedoria de Tupinicó- expostos na Galeria César Arché em Ipanema, polis, o programador do grande cérebro eletrô- durante o mês de março daquele ano. A exibição nico tupiniquim, a “Tupinformática.” De modo das obras marcaria de maneira bem clara a cirque com essa descrição, o Tupi Cacique, não se culação de Fernando Pinto pelo universo da arte configuraria como uma liderança real, mas sim institucionalizada do seu tempo, não só no teauma espécie de sistema central e operacional, o tro, mas nas artes visuais em geral. próprio “Cérebro Eletrônico” de Gil.

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Além desta exibição, outro marco da articulação de Fernando Pinto com o mundo da arte seria sua atuação na decoração dos bailes do Pão de Açúcar. No mesmo lugar, em 1984, seria criado no lugar uma galeria de arte, na qual artistas exporiam obras especialmente pensadas para o local. Descrita pelo Jornal do Brasil, o título da matéria seria simbólico: “Caretas não entrem; Arte de vanguarda no Pão de Açúcar” e explicava que a iniciativa buscava uma aproximação de um público jovem, com obras de site-specific e que propusessem obrigatoriamente uma participação com o público. Se a cultura marginal buscava ampliar seu alcance com o público, numa relação direta e sem mediação, como resposta à tentativa de controle do governo militar, Fernando Pinto encontraria sua atuação e seu veículo nas escolas de samba, dialogando diretamente com as massas, configurando-se como um artista afinado a sua época. Já para o carnaval, foi, paradoxalmente, o carnavalesco mais ligado ao seu tempo e à sua geração de artistas visuais, e também mais à frente dele, contribuindo para a espetacularização da festa, numa via outra além das “artes eruditas” do Municipal. Fernando Pinto foi um dos carnavalescos com a maior circulação no sistema artístico, não ligado às artes tradicionais e estabelecidas, mas ao cenário marginal que marcou a formação cultural carioca, atualizando as questões lançadas pela Tropicália.

Leonardo Antan é graduado em História da Arte pela UERJ. NOTAS 1 Como definiria o próprio carnavalesco no texto da sinopse descrevendo o enredo em 1987.

NOTAS 1 Como definiria o próprio carnavalesco no texto da sinopse descrevendo o enredo em 1987. 2 Segundo Coelho (2010), no contexto posterior à eclosão do movimento tropicalista em 1967, configurar-se-ia uma geração de artistas que optariam pela “marginalidade” na luta contra um sistema controlado pelo governo ditatorial. No entendimento proposto, haveria uma diferença conceitual entre a Tropicália e o tropicalismo musical, de modo que o primeiro seria uma reunião de questões e modos de pensar percebido em diferentes obras do período e o segundo um movimento de fato, organizado no âmbito musical. 3 Solar da Fossa seria uma espécie de pensão localizada em Botafogo que abrigaria uma série de artistas e intelectuais nos anos 60 e 70. Por lá passariam nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, entre outros. O Globo, 18.02.1973. 4 Trecho da canção “Marginália II”, de Gilberto Gil e Torquato Neto. 5 Não entendemos a Tropicália como um movimento unificado e organizado com proposições claras, mas sim uma maneira de articular uma série de problemáticas que surgiram em convergência nos mais diferentes trabalhos de uma mesma época e seguiram sendo como uma espécie de “conjunto de teorias” constantemente atualizado sobre o Brasil. (COELHO, 2010) 6 Partindo da noção desse trabalho de compreender os desfiles como um microcosmos da História da Arte brasileira, ao mesmo tempo pertencente a ela, mas autônomo, com suas próprias linguagens e tensões. 7 Favaretto (2007) denomina isso “procedimento cafona”. 8 “Pindorama” como lugar místico apareceria no manifesto antropófago de Oswald de Andrade no famoso “matriarcado de Pindorama” e na música

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“Geléia Geral”, de Gil e Torquato Neto: “Pindorama, país do futuro”. 9 O Globo. 06-02-1985. 10 FAVARETO, 2007, p.113 11 Idem, p.126. 12 Idem, p.115. 13 Acoplado é quando vários chassis e carros diferentes são unidos formando um só. 14 Edição de número 857, publicada em 6-2-1985. referências AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FERREIRA, Felipe. Escritos Carnavalescos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense, 2011. GUIMARÃES, Helenise Monteiro. Carnavalesco, o profissional que “faz escola” no carnaval carioca. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. RODRIGUES, Jorge Caê. Anos fatais: design, música e tropicalismo. Rio de Janeiro: 2AB, 2007. Novas ideias, 2007. SCOVINO, Felipe. Táticas, posições e invenções: dispositivos para um circuito da ironia na arte contemporânea brasileira. Tese de doutorado apresentada à Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.

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ARTIGO

VÊNUS DE URBINO: RENASCIMENTO E GÊNERO Luiz Henrique Duarte A forma de ver depende do contexto cultural. Na contemporaneidade a noção de obra-prima e de gênio que se limita a forma e ao conteúdo da pintura é uma visão de arte ultrapassada. A reflexão deste trabalho se baseia na construção histórica dos modos de ver através dos apontamentos de John Berger, depois há uma análise dos arquétipos descritos por Foucault em Os Anormais, onde é analisado o pensamento que cerca a imoralidade, neste trabalho também é inserido o conceito de performatividade de Judith Butler acerca das diferenças entre os gêneros, entendidos como culturalmente construídos e não de forma biológica. Palavras-chave: gênero; arte; anormal; modos de ver.

Fig 1: Tiziano Vecelli - The Venus of Urbino – 1538 – óleo sobre tela - 119 × 165 cm - Galleria degli Uffizi, Firenze. Fonte: <<http://www.arteeblog.com/2016/05/analise-da-venus-de-urbino-de-tiziano.html>> acesso em 09/07/2017.

A base do pensamento renascentista está na teoria neoplatônica, que ao ser analisado no século XVIII por Kant, conceitua que tudo que era visto, era moralmente julgado e o que é considerado imoral se afasta da ideia do bem, do belo e da verdade, e em última instância era afastada da ideia de Deus. A imoralidade se conecta também ao sexo e um paradigma é instaurado, como o

homem pode satisfazer seus impulsos sexuais sem ele se tornar imoral? O nu está intimamente ligado a forma de ver a mulher. Em uma rápida pesquisa em obras que antecederam o Renascimento, nas culturas persas e africanas vemos que a nudez explorada da mulher é feita de forma tão ativa quanto a de seu

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parceiro masculino. Já no Renascimento europeu essa forma de ver retrata uma mulher que é tão objeto quanto o próprio quadro e o protagonista da imagem passa a ser o sujeito observador. Essa mulher-objeto da cultura falocêntrica, visto que ao adquire-se a pintura, também compra-se a a aparência da coisa que ela representa, faz a mulher ser o outro, ser o exótico, ser o desejo e é essa mulher que une três arquétipos descritos por Foucault: “o monstro”, “o incorrigível” e “o masturbador’, a mulher que não é moral, que não é cristã, passiva e leal, ela se torna necessariamente, no contexto do Renascimento, a junção desses três arquétipos. A influência desses arquétipos está na construção do conceito de gênero da contemporaneidade.

que a entrada da mulher era mal vista e muitas vezes proibida. Essa tradição dos ateliês ajuda a formar uma equação simples, uma equação formada pelo artista homem, pelo mecenas que era homem e pelo quadro objeto-mulher. São esses ateliês que ajudaram a difundir a noção de obra -prima, uma noção que é baseada na forma e no conteúdo, por tanto, uma noção que só engrandece o artista masculino e torna o ambiente artístico excludente, o que de certa forma colabora ainda mais para a equação cujo o resultado é o objeto-mulher. Para sair dessa equação é necessário que a história da arte olhe para as artes que não as excluíram, tais como as artes decorativas, tapeçaria, enfim, é preciso descentralizar.

A difusão da pintura a óleo coincide com o capiA representação da nudez não é novidade na his- talismo primitivo do Renascimento e a própria tória da arte, mas cabe entendermos a diferença pintura passou a demonstrar como ela pode ser entre nudez e nu: “A nudez é simplesmente estar desejada, e como ela pode satisfazer os desejos e sem roupa, enquanto que o nu é uma forma de impulsos do seu proprietário. arte”. (BERGUER, 1999, p. 55) O nu ao se tornar uma forma de arte e a arte por sua vez ser ob- Ao ser imposto o artista como homem e o mejeto da cultura, a arte vai expressar o discurso cenas também como homem, a mulher além do de uma cultura, de uma sociedade, por tanto, a status de objeto, se torna o outro. O outro tem forma do nu da mulher, seus gestos, feições, po- um mistério, não sabemos de tudo dele, mas sições e o espaço que ela se situa não diferencia quando o vemos despido, o mistério é revelado e do pensamento do homem daquele espaço-tem- as perguntas são respondidas e essa curiosidade po. Há, então, um retroalimento no qual a ima- pode ir mais além, o homem pode possuir aquele gem é influenciada pela cultura e a sociedade é mistério, possuir aquele objeto que será exclusiinfluenciada pela imagem. Como já foi visto, o vamente dele, é um feitiço, um fetiche. nu feminino das culturas não-europeias (as précolombianas, indianas, persas e africanas) mos- No caso da Vênus de Urbino ela já é do observatram uma expressividade equiparada com o nu dor, já está em sua casa, está em sua cama e com masculino, isso ajuda a sublinhar a cultura euro- o olhar dela e gestos, ela quer que o observador falocêntrica. a possua e não apresentará nenhuma forma de resistência, afinal, ela está se auto-imoralizando Tiziano Vecelli teve como forma de aprendizado para satisfazer os impulsos do protagonista do a maneira medieval, no qual, o mestre ensina ao quadro, o observador. Essa noção que o observaaprendiz a forma e conteúdo das imagens em um dor é o protagonista é porque ela olha para fora ateliê. Esses ateliês são ambientes masculinos e do quadro, olha para quem está na sua frente,

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afinal a Vênus não protagoniza porque ela é tão objeto quanto a cama e o lençol.

masculinas heteronormativas e que não respeitassem as leis, por mais que algumas dessas leis fossem injustas, eram consideradas imorais. A Essa forma de representar a mulher não só in- imoralidade será dividida em tres arquétipos, fluencia o imaginário do homem, mas também esses modelos foram construídos somente mais o das próprias mulheres. O que diferencia es- tarde, mas servem para entender a sociedade do ses dois imaginários é que ao invés de se verem século XVI que é a cultura que cerca o quadro como o “outro” vêm de forma a julgar o compor- de Tiziano Vecelli. Os arquétipos, descritos por tamento, se é moral ou imoral em uma ação de Foucault são: “o monstro”, “o indisciplinado” e “o auto-vigia constante. masturbador”. Na forma artística do nu europeu os pintores e os proprietários-espectadores eram geralmente homens, e as pessoas, em geral mulheres, eram tratadas como objetos. Esse relacionamento desigual está tão fortemente fincado em nossa cultura que ainda estrutura a percepção que muitas mulheres têm de si próprias. Elas fazem consigo mesmas o que os homens fazem com elas. Como os homens, elas fisicalizam a própria feminilidade. (BERGER, 1999, p. 65) Ao redor da Vênus na composição do quadro e aos seus pés, está o cachorro símbolo da fidelidade, ao fundo estão uma criança, uma criada e um baú e todos estão no mesmo ambiente, o que transmite a ideia de uma residência aristocrata. Em uma espécie de satisfação dos desejos masculinos no núcleo familiar, possuir esta mulher não se trata de uma aventura, trata-se de um dever matrimonial, de ostentação do sentimento de possuir, e ao ter o quadro você se casa com ele e ele lhe será fiel e te amará como mostram as rosas vermelhas que a Vênus segura, representando a lascividade vermelha, tímida, escondida em baixo da pureza do lençol branco. Todas as outras pessoas que constituíam a sociedade que não jogavam o jogo das regras

O “monstro” é aquele que extrapola tanto as leis naturais quanto as jurídicas, é importante ressaltar que mais adiante, após o século XVI é entendido que a natureza é um produto cultural e por isso é passível de ser controlado, entende-se que não importa a forma que você nasce, a sua fisiologia ou a sua cultura, você pode ser controlado e se o indivíduo não estiver dentro dos padrões masculinos heteronormativos (nos quais, inclusive, a mulher deve ser submissa ao homem, afinal de contas essa é a lei natural e jurídica), ela é considerada como uma pessoa não normal, imoral. O monstro é uma infração que se coloca automaticamente fora da lei, e é esse um dos primeiros equivocos. O segundo é que o monstro é, de certo modo, a forma espontânea, a forma brutal, mas, por conseguinte, a forma natural da contranatureza. É o modelo ampliado, a forma, desenvolvida pelos próprios jogos da natureza, de todas as pequenas irregularidades possíveis. E, nesse sentido, podemos dizer que o monstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o princípio de inteligibilidade de todas as formas – que circulam na forma de moeda miúda – da anomalia. (FOUCAULT, 2001, p. 71)

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O sujeito “indisciplinado” é um tipo de monstro, que após algumas tentativas de correção nada deu certo, é como um monstro que tem reinscidências em seus atos de forma constante. É um sujeito, em última instância, incontrolável do ponto de vista da moral.

Esses três arquétipos formam a Vênus de Urbino. A mulher que é entendida como um objeto deve se comportar como um objeto e não querer provocar os instintos do homem renacsentista. Estando nua a Vênus provoca, ela se situa na ação do arquétipo do “monstro”, infligindo a lei que é posta às mulheres. Já o arquétipo do ‘incorrigíOra, o indivíduo a ser corrigido também vel” se apresenta na medida em que ela é uma tem em comum com o monstro esta outra mulher casada, fiel e, no entanto, está se oferediferença: sua taxa de frequência é eviden- cendo para o sujeito que a olha. É reincidente em temente muito mais elevada. O monstro é seu “ato monstruoso”, ela não está ali somente por definição, uma exceção; o indivíduo a para servir a seu marido, está para servir quem ser corrigido é um fenômeno corrente. É olha e quem olha pode ser uma pessoa qualquer. um fenômeno tão corrente que apresenta- Finalmente, o arquétipo do “masturbador” se e é esse seu primeiro paradoxo – a carac- expressa porque ela se toca, e para se tocar são terística de ser, de certo modo, regular na necessários pensamentos “pecaminosos”. Esses sua irregularidade. (Foucault, 2001, pági- arquétipos vão ter alterações em suas concepções na 73) com o passar dos séculos com a inserção e transformação da medicina, do direito e da cultura. O arquétipo do “masturbador”, que mais tarde influencia na medicina moderna, no século XVI, Como dito, a Vênus está em uma residência arisé aquele sujeito que toca e se toca, se masturba tocrata e isso se torna relevante, pois pensar o partindo da premissa de que tem pensamentos gênero é também pensar a etnia e a classe so“pecaminosos”, imorais, expúrios e que esses cial, visto que o sujeito nobre é tratado de forma pensamentos devem ser relatados ao padre. Uma diferente do sujeito pobre. A figura do monstro forma de controle social e católico. para Foucault é dividida em mais dois pequenos arquétipos, é como se houvesse um monstro di… O confessor deve saber apenas do que ferente para os dois grandes nichos sociais do re“for necessário”; deve esquecer tudo o que nascimento, o pobre e o nobre. O pobre tem sua lhe foi dito no exato momento em que a monstruosidade geralmente pautada na fome, confissão terminar; deve primeiro interro- suas ações ditas monstruosas são quase semgar sobre os “pensamentos”, para não ter pre ligadas à fome, já o monstro nobre tem suas de interrogar sobre atos (…). Ele interro- ações monstruosas pautadas na necessidade do gará perguntando ao penitente que tipo de sexo, ou seja, é o monstro sexual. O monstro sepensamentos teve, que tipo de atos come- xual, nesse contexto, não é o protagonista obserteu, “com quem”, e com essas perguntas vador, ao contrário, é a Vênus, essa mulher que “tirará”, diz halbert, “da boca do penitente se oferece, a imoral, pois ao homem está guardatodas as espécies de luxúrias, sem se pôr do o direito ao anonimato. Novamente, Foucault no perigo de ensinar alguma a este. (FOU- nos apresenta um exemplo do século posterior CAULT,2001, p. 235). ao da pintura, mas não nega que a sociedade já tenha tido essas referências sociais.

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Ao homem heterosexual foi reservado e protegido seus mais variados direitos subjetivos e objetivos, a busca da normalidade é uma busca incansável do controle de um sistema que se retroalimenta, que no século XV começa a sair dos olhos da igreja, mas que no século XVI ainda possui uma larga influência, apesar do poder objetivo ter diminuído através dos séculos, vai influenciar de forma direta os outros mecanismos de poder como o direito e a medicina, principalmente a psiquiatria, que serão objetos da burguesia. Os três arquétipos descritos por Foucault perpassam a nossa concepção atual do que é a anormalidade, e que em uma configuração complexa histórica e interdisciplinar, aponta objetivamente os conceitos sociais que a opinião comum possui. Afinal, são séculos usando a imagem e a cultura para educar sobre a normalidade dos direitos masculinos heterosexuais, subjugando as variadas diferenças e a subjetividade plural. A Vênus de Urbino é uma alegoria da mulher imoral, uma mulher nua que seduz, encara, feitiça e faz com que o homem renascentista se desvie do caminho moral, da ideia do bem, do belo e da verdade, em ultima instância faz com que se afaste de Deus. Para Butler há uma “ordem compulsória” que exige uma coerência ao sexo biológico. Essa ordem provém de uma expectativa heterosexual culturalmente construída. Para a filósofa, todos os gêneros se constituem através da performatividade, desde os torcedores de times de futebol às donas de casa, enfim, toda a sociedade tem a sua essência comportamental neste conceito. Essas performatividades são imaginadas e fruto de uma expectativa socialmente construída para cada sexo biológico e que está em constante transformação à medida que a cultura se transforma. O conceito de gênero descrito por Butler tem uma clara influência da historicidade cons-

truída por Foucault sobre a anormalidade, onde quem não estiver dentro da expectativa da performatividade designada, não é considerado normal. Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo, nem tão pouco tão aparentemente fixo quanto ao sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo.(…)Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. (BUTLER, 1990, p. 24). A manutenção dessa ordem heteronormativa masculina tem em sua base hábitos, modelos, repetições, memória coletiva, todas construídas sobre o ponto de vista masculino e positivista. A anormalidade é uma subversão da ordem estabelecida. Tiziano pinta aquilo que está no seu imaginário de um jeito que torne a pintura desejada sendo influenciado e influenciando a expectativa que a ordem social impunha, é um retroalimento entre a intersubjetividade social e a subjetividade do artista, afinal, o que ele quer é agradar o mecenas, a elite econômica de sua época. Portanto, a questão da normalidade está conectada intimamente aos interesses da elite e no qual a sua única preocupação é a manutenção da própria normalidade. Vale lembrar que quanto menos plural for uma sociedade, quanto menor a diferença entre as pessoas, ou seja, quanto maior

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for o numero de “normais”, maior a facilidade dos mecenas e da elite continuar sendo elite, continuar sendo detentoras do poder. Os nichos de mercado que influenciam a cultura, ajudaram a consolidar a classe média no século XX e cada vez mais abre espaço para as performances consideradas fora do padrão estabelecido, por tanto, a elite burguesa ainda explora a performatividade, mas no contemporâneo engloba também cada vez mais a diversidade por conta da lógica do mercado.

A história da arte tem o dever ético de transformar sua visão e encontrar novas formas de gêneros da historiografia da arte, isso se dá porque enquanto a noção de obra-prima for a noção principal, a história da arte estará excluindo incontáveis obras, incontáveis histórias, culturas e subjetividades e irá enaltecer sempre o pensamento masculino, heteronormativo, excludente e opressor.

Em Butler, o gênero não se conecta à antropologia, pois é um estudo através da visão da ética e essa é a principal cisão do pensamento de gênero que a filósofa propõe. Não é mais a categoria de gênio e da obra prima que conecta a leitura de obras do passado e da contemporaneidade, mas sim a categoria da sensibilidade humana que é constantemente renovada. Sendo assim, a historiografia da arte deve ser sempre renovada, assim como a Escola dos Anales fez com seus gêneros historiograficos ao constituir o conceito de microhistória, por exemplo, e com isso superar a visão excludente positivista.

Luiz Henrique Duarte é graduando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. REFERÊNCIAS BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro. Rocco, 1999. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1990.

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Artigo

PARANGOTÍTERES OU TITERELÉ: O JOGO TITERILESCO INSURGINDO NA OBRA DE HÉLIO OITICICA E NA DANÇA DA PORTA-BANDEIRA Maria Madeira O artigo trata de um projeto de pesquisa que tem o estandarte das porta-bandeiras e os parangolés do artista Hélio Oiticica como suporte para desenvolvimento de títeres, que fazem uma costura sobre as questões de gênero no samba, através da figura da dama do samba, a porta-bandeira. Palavras-chave: Teatro de Animação. Artes Visuais. Parangolé Introdução: Parangotíteres ou títerelé é uma investigação artística em processo, que teve início com o desenvolvimento do projeto de investigação científica Damas samba - o imaginário do feminino na figura da porta-bandeira na comunidade da Mangueira. O projeto deu continuidade à pesquisa desenvolvida no ano de 2015 na comunidade da Mangueira, onde reunimos narrativas criadas espontaneamente por crianças da comunidade essas narrativas que mesclam realidade e ficção são baseadas na cotidianidade mangueirense/ Setor Candelária e, como estratégia de comunicação, se tornaram um espetáculo de teatro de bonecos trabalhado em oficina de títeres com mulheres da comunidade. Tanto o texto como os títeres foram construídos ao longo de encontros semanais na comunidade. Tivemos como texto final a história do personagem Gato Rosa (Fig.1), que entra no samba, que envolve a todos, e que opera, enquanto vínculo afetivo local, um ponto de encontro de várias narrativas sobre a vida mangueirense. O boneco tem uma capacidade lúdica e agregadora inestimável (características empáticas) a conexão dos aspectos pessoais e sociais promove situações revestidas de emoção e afeti-

vidade. Por este motivo, o boneco funciona como fio condutor de integração entre os participantes. A partir desta experiência bem sucedida, demos continuidade ao processo de investigação vinculada ao projeto de arte pública e educação junto ao projeto geral TERRA, ARTE, VIDA - ações ambientais e saberes comunais (UERJ/FAPERJ) coordenado pela professora Isabela Frade1 e ao qual contribuímos como integrante da equipe de pesquisadores.

Fig 1: Gato Rosa. Foto: Maria Madeira, 2015.

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Metodologia

-bandeira, também estamos falando das diferentes formas da dança, do gesto, das representações destes modos diante das paisagens culturais contemporâneas que a comunidade mangueirense vive intensamente.

Para começar a desenvolver a nova pesquisa definimos que seria uma figura feminina de importância, respeito e admiração dentro da comunidade do samba, por isso escolhemos a figura da porta-bandeira como central para o desenvol“São muitas as maneiras de se dançar o vimento de nossa pesquisa. Iniciamos o nosso samba. Para mim, uma das mais interesprocesso fazendo um breve estudo exploratório santes é a do mestre-sala e porta-bandeira. onde elaboramos um pequeno questionário com A coreografia é uma mistura de maneirisdez perguntas para um grupo de porta-bandeiras mos do minueto dançado nos salões, com que denominamos como “Damas do Samba”. Ena dança do lundu, praticada pelos escravos trevistamos seis mulheres de diferentes escolas africanos. O mestre-sala exercita o ofício de samba, Buscamos o entendimento delas sobre da conquista de seu par com meneios e o que é ser a porta-bandeira de uma escola de mesuras, e a porta-bandeira responde às samba, fizemos algumas perguntas, por exeminvestidas com esquivas sedutoras.” (NÓplo: o que era, para ela, ser uma porta-bandeira? BREGA) Que importância tem este título? Qual importância da porta-bandeira para a comunidade? Ao refletir sobre os tanto ritos que acontecem destacando os símbolos que são apresentados Durante o desenvolvimento do projeto levanta- em um desfile que vai do sagrado ao profano mos a questão de gênero diante da constante e com maestria da performance da dançarina, extremada violência que as mulheres vivenciam percebemos em sua dança, em sua total entrega na Mangueira, permitindo a crianças a elabora- ao estandarte (que tem a representatividade de ção lúdica e criativa de narrativas diferenciadas simbolizar o pavilhão), pontos já percebidos pelo sobre os modos de vida que esse contexto de artista Hélio Oiticica em seu estudo e anotações violência traz, transformando suas visagens e sobre o PARANGOLÉ: abrindo espaço para novas imagens para além da realidade da opressão. Como diz Janaina MiranDesde o primeiro “estandarte”, que funcioda Paulo, uma das entrevistadas: “A porta banna como ato de carregar (pelo espectador) deira é a primeira dama da escola, um exemplo”. ou dançar, já aparece visível a relação da O modelo feminino de nobreza e elegância pode dança com o desenvolvimento estrutural levar a outras configurações de um ideal femidessas obras da “manifestação da cor no nino e servir como elemento de mediação para espaço ambiental”. Toda a unidade estruo levantamento sobre as diferentes imagens do tural dessas obras está baseada na estrufeminino. tura-ação que é aqui fundamental: o “ato” do espectador ao carregar a obra, ou danObjetivo çar, ou correr, revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura Ao tratarmos das diferentes imagens do feminiatinge aí o máximo de ação própria no senno, tendo como protagonista a figura da porta tido do “ato expressivo”. A ação é a pura

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manifestação expressiva da obra. (OITICICA, 1986, p.70)

do Samba, percebemos algumas falas repetidas, respostas clichês, como “A porta-bandeira leva o pavilhão na Avenida”. Resposta dada ao se refeRelevância da pesquisa rir à bandeira que maneja durante o desfile. Não descartamos o bordão dito por quase todas enEm nossa pesquisa o estandarte/bandeira em- trevistadas, muito pelo contrário, incorporamos punhado pela porta-bandeira se transforma em em nosso trabalho de investigação científica e na títere, um títere que é também um parangolé. criação do nosso títere. Dentro do teatro de animação o boneco pode ter muitas representações tanto por suas ligações Seria pois o Parangolé um buscar, antes de com a máscara como por se identificar com obmais nada estrutural, básico na constituijetos rituais [...] ele pode ser concreto ou abstração do mundo dos objetos, a procura das to, o boneco é uma analogia. É um reflexo nosso raízes da gênese objetiva da obra, a plas(AMARAL, 1997, p.75). Por estas características mação direta perceptiva da mesma. Esse dadas aos bonecos seu corpo poderia ser criado interesse, pois, pela primitividade construcomo estandarte ou outra forma qualquer. Nos tiva popular que só acontece nas paisagens empenhamos em encontrar um feitio que abarurbanas, suburbanas, rurais, etc.(OITICIcasse em sua estética o estandarte e o parangolé, CA, 1980, p.66). estudamos várias conformações até chegarmos aos Parangotíteres ou Titerelé (Fig. 2) . Com a Não há na obra de Oiticica o espectador como em figura criada pudemos observar as interferências geral se compreende um espectador, um ser ‘pasdo jogo titerilesco insurgindo na obra de Hélio sivo da visualidade assistida’, Hélio Oiticica tira o Oiticica e na dança da porta-bandeira. espectador de uma zona de conforto ao transferir para ele o espectador/artista/ator, a vivência da criação artística. Em nossa investigação criamos títeres-parangolés (parangotíteres ou titerelé) que une o espectador/ator ao manipulador/bailarino, convertendo todos estes “seres” aos gestos, a movimentos de elegância e cuidado com o objeto/títere que carrega. Estabelecemos como única regra de condução gestual do boneco que não se pode deixá-lo cair no chão. Fig 2: Parangotíteres ou Titerelé. Foto: Maria Madeira, 2017.

Discussão De que se trata esta forma? É um boneco que podemos vestir, colocar nossos braços, são inspirados livremente nos parangolés de Hélio Oiticica e nos estandartes que as porta-bandeiras carregam em sua passagem pela avenida. Para a criação estética dos títeres analisamos as respostas dadas ao questionário que fizemos as Damas

Apresentamos nossa proposta durante o 27º UERJ Sem Muros2 no dia 27 de abril de 2017, convidamos os participantes a interagir com os bonecos (parangotíteres ou titerelé). Oferecemos uma experiência sensorial da qual cada participante se permitiu “ser o boneco” e se deixar ser

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uma dama do samba, ou seja, ele (espectador) deixou que seu gesto, seu movimento de baile possibilitasse a entrega ao objeto, realizando uma dança digna de uma porta-bandeira em sua passarela máxima: a Avenida do Samba! Onde há todo o cuidado com o “pavilhão/boneco” para não ter vacilos e não ir ao chão. A resposta visual (Fig. 3 e 4) foi como uma espécie de êxtase consciente, um prazer vivenciado com a razão e a emoção em sintonia.

Fig 3 e 4: Parangotíteres ou Titerelé. 27º UERJ SEM MUROS, Rio de Janeiro/RJ. UERJ Campus Maracanã. Foto: Isabela Frade, 2017

tir, talvez, uma dama do samba. Nosso títere não tem bandeira, ele é o títere e a bandeira. Dado importante a acrescentar no desenvolvimento desta experiência é relatar que antes de convidar os participantes a interagir com os títeres, cada um deles deveria pegar os bonecos e sambar ao silêncio, explicamos sucintamente o que era a pesquisa e colocamos apenas uma observação sobre como manipular, que tal qual o estandarte da porta-bandeira o títerelé não poderia cair no chão. A ideia dos parangotíteres ou titerelé é também que ao carregar/manipular o boneco o espectador/ator/manipulador se encontre envolto das histórias dessas personagens reais, as damas do samba, as porta-bandeiras e que seus corpos e anima entrem em comunhão com os rituais, com a música. Som este que é para ser sentido, pois não é executado, a música do silêncio o samba sem som. “O silêncio não é acústico (...) é uma mudança da mente, uma reviravolta.” (Cage, 1959, p.164). A mudança de chave é importante no processo de entrega ao atuar com os parangotíteres. Este boneco, esta forma animada pelo participante anônimo já vem carregada de música, de tradição, de ritmo e de história. Seu significado é baseado na Arte Contemporânea, uma vez que ele é também uma releitura do Parangolé, obra de Hélio Oiticica e é também cultura popular, o carnaval da qual faz uma insurgência em um de seus signos mais importantes, o estandarte da porta-bandeira. Fechando seus significados, é um títere, um boneco e com o boneco se joga, se brinca, se move, se cria e se dança! Resultados:

Observando a interação dos participantes ao manipular o títere/estandarte se percebe que ao Ao final da experiência com os títeres-parangolé atuar, os participantes envolvem todas as partes no 27º UERJ Sem Muros perguntamos aos partidos seus corpos na experiência, deixando-se sen- cipantes suas sensações. Nos relatos constam

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frases e palavras como: felicidade, estar pleno, vivência comunal, corpo e mente percebendo o instante. Os resultados sensoriais são de profunda importância para a continuação e aprofundamento da proposta investigativa que, todavia, estamos em processo de aperfeiçoamento técnico e teórico.

Considerações finais: O processo artístico do projeto implica em profundas e intensas possibilidades, em algumas observamos que necessita mudanças, aperfeiçoamento, estudo, outras não, já percebemos ter encontrado o seu cerne. Do ponto de vista técnico temos uma escultura bastante satisfatória, nos agrada muito o boneco ser construído com materiais rudimentares, baratos e populares. Sua cabeça ser feita de jornal sem que haja um rosto desenhado, definido ou com alguma parte que se sobressaia. Nas roupas, percebemos que o tecido utilizado para fazer a maioria dos parangotíteres não ficou bem, pois seu caimento na dança é duro e/ou pesado, não dando a malemolência desejada. Estamos investigando novos materiais e começando a trabalhar com refugo de fantasias, porque em nosso trabalho de criação artística buscamos como meta incentivar a via sustentável e praticar este discurso. Definimos, todavia, que a estampa de todas as roupas será lisa(mas podendo ter palavras escritas nas roupas) e a paleta de cores a ser utilizada nas próximas experiências será apenas com cores primárias e secundárias (vermelho, azul, amarelo, laranja, roxo e verde). Queremos perceber os efeitos visuais que ocorrem quando os titerelés dançam... Seguimos pesquisando! Nossa pesquisa até o momento vem contando com o apoio financeiro e institucional da FAPERJ. Esperamos seguir com o apoio para que possamos expandir, aprofundar e compartilhar nosso trabalho de investigação científica no campo das Artes visuais e do teatro de animação.

No entanto a investigação já caminhou um pouco mais e estivemos visitando o ensaio da Escola Minueto do Samba, escola que tem como objetivo formar novas porta-bandeiras e mestres-salas, trabalha com crianças a partir dos sete anos de idade, está localizada no bairro do Méier, Rio de Janeiro, comandada pela porta-bandeira Viviane Martins. A ida até o espaço teve a intenção de observar os gestos que são referidos ao estandarte e como os corpos se deslocam na dança com as bandeiras em punho. Pretendemos oferecer nossa experiência sensorial com os parangotíteres a um grupo de alunos da Escola, para descobrir novas expressões e gestos corporais que são impressas na manipulação quando feita por profissionais da área do samba. Estamos em busca de compreender mais apuradamente a potencialidade do boneco dentro de outros espaços e investigar com mais profundidade como se dá o jogo titerilesco neste diálogo intrínseco com a obra de Hélio Oiticica e o estandarte da porta -bandeira. Os parangotíteres trazem àqueles que os manipula um tanto da carga da sua história e tradição dos mamulengos, ele o boneco, adota a irreverência e a beleza bruta da matéria. É provocador, quer provocar o outro, quer existir e só existe se quem manipula com maestria é aquele que conhece os códigos estabelecidos entre um pavilhão e sua representante maior, aquela que Maria Madeira é graduanda na Universidade do carrega a escola na avenida do samba, a “Dama Estado do Rio de Janeiro. do Samba”!

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NOTAS

Referências

1 Isabela Frade é artista e educadora, doutora em Comunicação e Pós Doutora em Artes pela ECA/ USP. Docente do PPGARTES/UERJ, Procientista FAPERJ; coordenadora do projeto de extensão Cerâmica viva UERJ/SR3. Lidera o Grupo de Pesquisa - CNPq Observatório de Comunicação Estética. Integra o coletivo de arte O Círculo. 2 A UERJ SEM MUROS é um Evento que ocorre anualmente Universidade do Estado do Rio de Janeiro e representa o compromisso permanente de professores, alunos e funcionários técnico-administrativos em produzir resultados e socializar o patrimônio cultural, científico e tecnológico da universidade com aqueles a quem de fato o saber acadêmico se destina: escolas de todos os níveis, instituições públicas e privadas e indivíduos de todas as classes. É a democratização da ciência de forma prazerosa, instigante, criativa e reflexiva. (Fonte SR3 UERJ)

AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos. São Paulo: Editora Senac, 2002. FRADE, Isabela. Arte Viva Na Via Uerj Mangueira - Modelagem de Corpos e Lugares de Convivência. Rio de Janeiro: ANPAP, 2012. HELLER, Alberto Andrés. John Cage e a poética do silêncio. Florianópolis: UFSC, 2008. NÓBREGA, Antônio. Programa da TV Futura Danças Brasileiras - Mestre-Sala e Porta-Bandeira. OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Editora Roco, 1986. SALOMÃO, Waly. Qual é o parangolé? São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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ARTIGO

BREVE REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA NO CAMPO DA CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO DE BENS CULTURAIS Maria Elena Venero Ugarte Luana Aguiar O artigo aborda conceitos da área de conservação e restauração a partir do relato e análises de intervenções em obras de arte que compõem o acervo de dois importantes museus europeus: Museu do Louvre (França) e Museu do Prado (Espanha). Assim mesmo, como trabalho que exige saberes especializados e permanente atualização, chamamos a atenção para a importância da profissionalização e a conseguinte regulamentação da profissão. Por debruçar-se em objetos de imensurável valor cultural e histórico, o trabalho do conservador-restaurador toma dimensões muitas vezes inesperadas e ocupa setores diversificados da sociedade, como veremos nos casos que o presente texto recupera. Palavras-chave: Conservação - Restauração - Arte – História - Patrimônio La Restauración todavía comienza y termina como una interpretación de la obra (...) No sólo se trata de los aspectos físicos de cosas y lugares producidos por personas, sino también complejas cuestiones culturales en torno a creencias, convicciones y emociones, y en torno a significados estéticos, materiales y funcionales. (MATERO, 2000, apud VIÑAS, 2003, p.134)

a preocupação pela salvaguarda de tudo aquilo que representa a memória coletiva (oficial). Desse tempo para a atualidade, os critérios de intervenção foram mudando até o momento em que a preservação se torna escopo de políticas de estado.

Neste contexto cultural e ideológico, ao longo do século XIX, criam-se importantes coleções públicas de arquivos, museus e bibliotecas e, em 1. Introdução consequência, surge a necessidade de capacitar novos profissionais que cuidem desses espaços Desde a antiguidade, as obras de arte eram res- de memória. O ofício do conservador-restauratauradas, na maioria dos casos pelos próprios dor se dá também sob estas circunstâncias e as artistas que as produziam ou, sob encomenda, teorias da conservação e restauração se conforrestauravam outras de épocas anteriores. Já no mam primeiramente a partir do pensamento de século XVIII, com a formação das noções de pa- artistas, arquitetos e historiadores, até chegar trimônio e identidade nacional, passam a ser va- aos dias atuais em que a figura do cientista se faz lorizadas com maior clareza as culturas do pas- também presente. sado e os objetos que guardam suas marcas. À medida que se pensa a custódia do passado como Seguindo o fio desta história, cabe neste texto forma de integração nacional, cresce, também, pincelar algumas ideias atuais que circulam na

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prática do profissional a partir de dois casos de restauração que tiveram lugar na França e na Espanha, países de grande tradição no campo. Estes, como outros tantos casos, nos ajudam na reflexão sobre a prática do conservador-restaurador que tem seu trabalho permeado por condições, juízos de valor, teorias e correntes de pensamento que incidem na tomada de decisões caso a caso.

o território do especialista e se criam comissões para discutir a prática do profissional na área; assim, em 1930, reúnem-se, em Roma, duzentos profissionais (entre diretores de museus, historiadores de arte e cientistas) para um encontro internacional sob o auspício do Escritório Internacional de Museus da Liga das Nações, com a proposta de estabelecer os métodos científicos para o tratamento do legado histórico e artístico universal (Op. Cit. p.8). Este encontro é o pon2. Antecedentes históricos da Conservação e to de partida para a publicação de documentos Restauração internacionais que consolidam a noção de patrimônio artístico-cultural-universal, como é o caso A disciplina de Conservação e Restauração de da Carta de Atenas (1931) e a Carta do Restauro Bens Culturais é relativamente nova no âmbito (1972), e que se propõem padronizar os critébrasileiro. Segundo Beatriz Coelho (2011, p.13), rios epistemológicos, técnicos e científicos para a a aposta na área dentro da academia data da abordagem e tratamento dos bens culturais. década de 50, quando o professor Edson Motta cria duas disciplinas dentro da Escola de Belas No final do século XX, as repercussões deste Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: novo pensamento começam a aparecer no Brasil Restauração de Pinturas e Restauração de Obras e, em 1979, é criado o Centro de Conservação e de Papel. A iniciativa do professor Motta reper- Restauração (CECOR), vinculado à Universidade cutiu também em outras universidades brasilei- Federal de Minas Gerais (UFMG), que, até hoje, ras, como na Universidade Federal da Bahia. Até representa um centro de referência em pesquientão, as práticas de conservação e restauração sa. Em 2008, a mesma universidade passa a eram assunto para ateliês de artistas e pessoas oferecer o curso de Conservação e Restauração “habilidosas”, com certo talento para as manu- de Bens Culturais Móveis, desta vez em nível de alidades. graduação. Seguindo esta tendência, e também em nível de graduação, a Universidade Federal No panorama mundial, as preocupações pela de Pelotas (UFPel) e a Universidade Federal de profissionalização do campo começam muito an- Rio de Janeiro (UFRJ) criam seus próprios cursos tes, junto com a necessidade de abrir janelas para entre os anos 2009 e 2010. o diálogo com outras áreas do conhecimento e de inseri-lo na categoria das ciências. Um caso A consolidação da área, a partir da sequência de emblemático que representa este novo desenho medidas que as instituições educativas e cultumultidisciplinar é do convite que recebe Louis rais, tanto brasileiras quanto estrangeiras, têm Pasteur, em 1864, da academia de Belas Artes de adotado, preparou um terreno em que se seParis para ministrar um curso de física e química meiam propostas diferenciadas, a partir de teoaplicada à arte (FRONER, 2008, p.5). Após algu- rias e reflexões vindas dos diversos campos de mas décadas, já no século XX, principalmente na confluência que alimentam as práticas da conEuropa, se intensificam os esforços por demarcar servação e restauração. Na atualidade, se espera

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do conservador-restaurador um embasamento teórico consistente e multidisciplinar, junto à sua capacidade para transitar por diversas áreas do conhecimento e dialogar com outros profissionais, confrontando opiniões, críticas e sugestões que provenham dessa rede de conhecimentos. A necessidade de uma postura crítica se torna cada vez mais um princípio, já que, em muitas ocasiões, as intervenções de restauro, principalmente quando se trata de obras de arte da alta cultura, criam um palco de debates acalorados e apaixonados, como nos casos que mostraremos a seguir.

seja por questão de gosto ou por acreditar que a remoção das camadas de verniz traria à tona as imperfeições de uma obra inacabada. A pintura que havia ocupado Da Vinci por longa data e que modificará até o final dos seus dias podia estar incompleta ou com falhas, e esta revelação podia ser desastrosa para o mundo da arte. Talvez aqui se colocava em jogo a desconstrução de uma “aura” que blinda de qualquer imperfeição os pintores do renascimento.

A equipe que polemizava com este primeiro grupo estava conformada por especialistas com uma visão “mais científica”, e se colocavam a favor da 3. Estudo de caso: Leonardo Da Vinci e A Res- Restauração por enxergar a pintura de Da Vinci tauração do Século - Contexto e controvérsias através da sua materialidade, isto é, por ver uma na intervenção da obra A Virgem e o Menino imagem distorcida, com manchas e repintes que com Santa Ana ameaçavam a sua legibilidade e estabilidade. Um outro motivo também reforçava a decisão a favor: O objeto que se coloca no centro das discussões a quantidade de camadas de verniz que a obra é a obra que ocupou a vida de Da Vinci até sua receberá em intervenções anteriores de Restaumorte, A Virgem e o Menino com Santa Ana, ex- ração podia colocar em risco a camada pictórica posta no Museu do Louvre - França. A proposta pela força que exerciam sobre ela. Estas camadas de intervenção da obra (limpeza e reintegração) de verniz também criavam uma superfície pouestendeu-se por três anos; entre 2008 e 2009 fo- co homogênea, alterando o índice de refração e, ram realizadas as análises de diagnóstico com o portanto, as cores originais. propósito de determinar a proporção dos danos na superfície, já que o exame organoléptico (ob- Estes dois pontos de vista que a Restauração de servação direta através dos sentidos) constatava A Virgem eo Menino com Santa Ana nos permialterações preocupantes na camada superficial. tem e proporcionam refletir sobre o fato de que Em 2010 se decide pela intervenção, se forma a intervenção “não é uma atividade neutra ou um comité científico constituído por especialis- transparente para o objeto; pelo contrário, semtas em Da Vinci e se elege, por concurso público, pre tem impacto sobre sua evolução, e implica a a restauradora que executará o trabalho (LÓPEZ, realização de um conjunto de eleições não ape2014). A partir desse momento, uma série de nas técnicas, mas também ideológicas.” (VIÑAS, questões emergem e nos proporcionam subsí- p. 91)1. Amparados em Viñas, podemos dizer que dios para reflexões éticas, teóricas e metodológi- uma obra de Da Vinci não é mais apenas um objeto do passado imerso no presente, ela é uma cas que pretendemos levantar neste artigo. Desde o início, as reuniões do comité científico entidade que recolhe todo o espírito de uma civiestiveram regadas a polêmicas. Por um lado, es- lização e reconhece nela a essência dos cinco sépecialistas que se opunham à intervenção da obra culos de história da “alta cultura”. Com este dado

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ideológico, toda interferência, a qualquer nível, provoca e provocará sempre questionamentos éticos, identitários e políticos que ultrapassam o âmbito do objeto. Símbolo de uma cultura erudita, ela não pode ser tocada sem que esse toque tenha o sabor da heresia; talvez seja este o sentimento daqueles que resistem ao seu tratamento. A própria nomeação de “Restauração do Século” dá uma dimensão notável, à altura do que a obra representa para a humanidade e, principalmente, para a história da arte. 3.1. Análise da intervenção Os trabalhos foram executados no próprio laboratório de restauro do Museu do Louvre, sob o comando do diretor do Departamento de Pintura do museu e a participação do Centro de Investigação e Restauração dos Museus da França (C2RMF). As análises preliminares foram de substancial importância para as decisões tomadas, tanto quanto foram durante todo o procedimento. López, em seu artigo sobre a Restauração da obra quinhentista, detalha todos e aponta dois deles usados pela primeira vez na pintura: a microtopografia e a imagem de alta resolução (p. 128). O conhecimento da técnica construtiva, dos materiais usados, dos pigmentos etc., que as análises revelam, constituem uma etapa importante que não deve ser ignorada pelo restaurador. Lançar mão de todo o arsenal tecnológico e científico possível é uma condição para uma intervenção bem-sucedida. Após chegar a um consenso entre a comissão, determinou-se que a primeira etapa focasse apenas na remoção das manchas mais visíveis da superfície, daquelas que interrompiam a legibilidade da imagem. No entanto, e trazendo conceitos brandianos2, é sempre um juízo de valor que vai determinar como avançar e o que sacrificar, as-

sim, após as primeiras deliberações optou-se por entrar na etapa de remoção de parte do verniz com o cuidado para não chegar a atingir a película que está em contato com a camada pictórica. Esta etapa potencializou as discórdias e causou o afastamento de dois especialistas da comissão que defendiam a mínima intervenção, inclusive do verniz, por considerar que atualmente não se dispõe do ferramental técnico e teórico para executar a intervenção de forma mais controlável. Superando todas as discrepâncias, finalmente foram retiradas da obra finas camadas de verniz e também os retoques de anteriores intervenções que estavam ocasionando distorções, para concluir com a reintegração cromática. Teria sido a melhor opção? Esta pergunta é difícil de responder, como é difícil decidir pelas soluções para o tratamento da obra, simplesmente porque “as alterações de um objeto podem ser valoradas de forma muito diversa pelos diferentes espectadores, inclusive num mesmo momento histórico (VIÑAS, p 106). Neste ponto, parece pertinente o conceito de palimpsesto que Viñas resgata quando se refere à sucessão de textos que as obras de Restauração acumulam ao longo da sua trajetória. Quando se restaura uma obra, diz o autor, se restitui uma possibilidade de leitura, em detrimento de todas as outras leituras possíveis que ela guarda (p.117). A imagem deteriorada é também uma leitura possível, pois transmite uma mensagem, conta a sua história; assim, a escolha de um texto pertence a instâncias que vão para além da intervenção propriamente. Este estudo de caso deixa em evidência o valor subjetivo que toma conta dos objetos da Restauração e revela o conflito de convicções, crenças e valores que lutam para prevalecer. O confronto de subjetividades, de poderes, de intelectos é um ingrediente sempre presente ao longo de toda a

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atividade humana.

a limpeza e contesta o argumento do restaurador que coloca sob suspeita a autenticidade da assi4. Estudo de caso: A Restauração do Caballero natura por estar com letras em maiúscula e ter de la mano en el Pecho erros ortográficos e traços toscos. O especialista é questionado pelo deputado com base em certiA pintura El Caballero de la mano en el pecho é de ficações anteriores que atestavam a originalidade autoria de El Greco, datada aproximadamente de da assinatura, muitas delas, diz ele, produzidas 1580. Retrata a figura de um nobre de identidade pelo próprio museu, inclusive após o termo do desconhecida que despertou muitas especulações trabalho. Os debates estendem-se ao longo do devido às suas semelhanças com diversos perso- ano de 1999 e ecoam na imprensa nacional com nagens da história espanhola. O retrato perten- a alarmantes manchetes que incentivam as opiceu a um duque e depois passou a ser parte do niões de amadores e profissionais, a favor ou em acervo pictórico do Rei Felipe V até que, em 1819, contra. Tal é o tamanho da comoção que, mais de foi levado para a reserva técnica do Museu do uma década depois, o caso dá origem a um doPrado (Espanha), onde se encontra até hoje. cumentário sob o título Fondo para un caballero, (CANO, 2010). Em 1996 decidiu-se pela limpeza do quadro sob responsabilidade do especialista em obras de EL Este caso, como o anterior, nos deixa refletir soGreco, o restaurador Rafael Alonso. Após meses bre a magnitude que as intervenções de restauro de intervenção, e concluída a limpeza, a obra foi podem alcançar, mesmo que seja “apenas uma para a Exposição de Barcelona, com algumas al- limpeza”. Discutir erros e acertos nos procediterações que não deixavam ninguém indiferente, mentos do restaurador não é o assunto de fácil muito menos no meio de uma coletividade que a conclusão, nem é a proposta deste texto. A polêreconhece como traço da sua identidade nacional. mica ora relatada vem para constatar a amplituDevido ao resultado do processo de limpeza, as de de questões éticas e estéticas que permeiam polêmicas se estenderam por longos anos, o as- as discussões na conservação e restauração que, sunto ocupava as conversas tanto de especialistas como vimos, não se colocam apenas na esfera quanto de apreciadores da obra de El Greco. Até técnica. Além do conhecimento científico, pero meio político se fez presente quando, em 1999, passam no plano da Restauração, questões de um deputado leva o caso ao Congresso Nacional representação e do imaginário sociocultural que da Espanha e cobra explicações do governo. Mui- orientam pronunciamentos ao respeito do tratos pontos são observados nas audiências: pri- balho do restaurador. Neste ponto, é oportuno meiro, o fundo do cavaleiro que muda de preto resgatar a fala de Brandi quando afirma que “a para cinza sugere uma limpeza severa que arran- obra vale pela atividade humana que a plasmou e ca a cor escura original; segundo, a assinatura do não pelo valor intrínseco da matéria(...)” (2005, autor quase desaparece e é coberta por uma ve- p.73). ladura; terceiro, se reduz o tamanho da tela sob o argumento de não ser original e que foi ampliada 5. Considerações finais num reentelamento. Na presença do diretor do museu e do secretário da cultura, o parlamentar Não são poucos os casos que causaram polêmiaponta as transformações que a obra sofreu após ca na área de conservação e restauração de bem

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culturais. A modo de menção apenas, a recente polêmica centrou-se na escultura El Caballito de Tolsá, uma estátua equestre de Carlos IV da praça de Cidade do México; em 2013, um banho de ácido nítrico deixou a obra de bronze com aspecto alaranjado e verdoso. A escultura passou por uma nova Restauração em 2017 e sua reinauguração foi motivo de muita celebração por parte da comunidade mexicana. Como este, podemos citar também casos como da Virgem de VárezFisa e do Ecce Homo, na Espanha; das estátuas de Marte e Vênus, em Roma; entre outras tantas intervenções que passaram à história pela repercussão nacional e o impacto no cotidiano. Para amarrar as reflexões que esses casos motivam, algumas considerações nos parecem importantes: a) toda e qualquer intervenção no objeto social deve estar precedida de um total entendimento por parte do profissional de seu potencial simbólico, mesmo que se trate de um patrimônio modesto, termo este emprestado de Waisman (1992, apud VIÑAS, 2013, p.34) para referir-se a um objeto de um só indivíduo ou família. Como objeto cultural, a relevância do objeto a ser restaurado reside naquilo que é capaz de resgatar no plano afetivo, identitário ou histórico; pessoal ou social. b) quando falamos de passado e dos objetos que vieram desse tempo, devemos sempre estar atentos para questionar o nosso entendimento da história e do conceito de autenticidade que transita em nossas argumentações, já que o passado sempre é reconstruído com elementos disponíveis no presente e, portanto, pretender resgatar a autenticidade da obra, isto é, a obra como era no seu tempo de criação, resulta em um esforço ilusório; podemos resgatar dela apenas seu protoestado3, ou seja, aquilo que o agente da intervenção escolhe como grau satisfatório de autenticidade, e isto, evidentemente, é um valor mutável.

Para finalizarmos, podemos dizer que, embora intervir em objetos de memória provoque acaloradas discussões, acreditamos que estar consciente da fragilidade das certezas, dará ao profissional maior serenidade para atuar no campo da Restauração, questionando-se sempre sobre seus conceitos, seus métodos e suas soluções, para retirar da obra não apenas os vernizes e os repintes, mas, principalmente, deixar à luz das novas gerações o seu percurso e o brilho da sua história. Privilegiar a instância histórica ou a estética, conforme os preceitos brandianos, deverá ser uma decisão caso a caso, mas seja qual for a escolha, o registro da trajetória da obra deverá estar sempre em pauta. Estas reflexões, e todo o arcabouço teórico que está por trás da conservação e restauração, permitem enxergar com mais afinco a extrema necessidade de tornar a profissão regulamentada e cada vez mais estudada em salas de aula e centros de pesquisa.

Maria Elena Venero Ugarte é graduanda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Luana Aguiar é mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. NOTAS 1 Tradução livre 2 Cesare Brandi é uma das figuras de grande destaque na área de restauração do século XX. 3 O conceito de “protoestado” é amplamente abordado por Salvador Viñas (2003) em seu livro.

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REFERÊNCIAS BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Trad. Beatriz Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

VIÑAS, Salvador Muñoz. Teoría Contemporánea de la Restauración. Madrid: Editorial Síntesis, 2003.

Documento: Carta do Restauro, 1972. Disponível COELHO, Beatriz. Estado atual da conservação em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfindo patrimônio escultórico no Brasil. Revista Ge- der/arquivos/Carta%20do%20Restauro%20 1972.pdf> Acesso em 01 maio 2017. conservación, n° 2, 2011, p. 7-19. FRONER, Yacy-Ara & ROSADO, Alessandra. Princípios históricos e filosóficos da conservação preventiva. Belo Horizonte: LACICOR-EBA-UFMG, 2008. LÓPEZ, M J G. La Santa Ana de Leonardo da Vinci. La restauración del siglo o simplemente una restauración controvertida. Proyectos y Actuaciones. Revista PH: Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, nº 85, abril 2014, p. 124-141. Disponível em:<http://www.iaph.es/revistaph/index. php/revistaph/article/download/3483/3433> Acesso em: 03 jul. 2017.

Vídeo: Fondo para un caballero. Disponível em: <http://www.canalpatrimonio.com/video-fondo -para-caballero/> Acesso em 30 jul. 2017. Vídeo: Leonardo Da Vinci – A restauração do Século. Disponível em: < https://youtu.be/qy8Wg5aDmU> Acesso em 15 jun. 2017.

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AS DIFERENÇAS DA FIGURA FEMININA LATINA: UM PARALELO ENTRE REPRESENTAÇÕES FEMININAS DE ARTISTAS LATINO-AMERICANOS Maria Van Camp A pesquisa tem como objetivo explorar a representação da figura feminina por artistas latinoamericanos. Pretende-se estabelecer um paralelo entra algumas obras de artistas mulheres e artistas homens, assim como entre acadêmico e moderno no âmbito da América Latina entre 1864 e 1839. A relevância da pesquisa advém da necessidade de se discutir a constante apropriação do corpo feminino por parte de artistas homens, onde a mulher é vista exclusivamente como objeto artístico e estudo de forma. Palavras-chave: Artistas mulheres; Representação feminina; América Latina. Este trabalho pretende traçar um paralelo comparativo da figura feminina na produção artística Latino-americana. O recorte temático será os trabalhos das artistas Amélia Pelaez e Frida Kahlo, em comparação com as representações femininas feitas por Diego Rivera, Juan Cordero, Felipe Santiago Gutiérrez, Emilio Pettoruti e Antonio Gattorno. Pretende-se formar um paralelo a partir das mudanças socioeconômicas e políticas do papel da mulher na sociedade e as mudanças estéticas na produção artística da época. O estudo da figura feminina na arte não poderá ser feito apenas considerando a produção dessas como artistas, é necessário também analisar a utilização da forma feminina em trabalhos realizados por artistas homens. Pretende-se realizar um panorama das diferenças entre a figura feminina retratada por homens e a produção artística de artistas mulheres. O tema da identidade nacional ou regional está implícito nas obras de grande parte dos pintores da América Latina nesse período. Ao analisar algumas de suas obras, encontra-se em boa parte

da produção artística, pinturas que expressam a preocupação com a busca de raízes, pois sem uma identidade cultural não há uma construção total da nação. Existe certa dificuldade de apreender o que seja identidade assim como traçar suas fronteiras, em uma tentativa de determinar os mecanismos de sua criação e contínua elaboração. Partindo do pressuposto de que as culturas não são estanques e nem homogêneas, as suas representações identitárias são essencialmente híbridas, heterogêneas e mutáveis, particularmente nas nações na América Latina. A partir da implementação das Academias de Belas Artes os gêneros de pintura trabalhados foram os clássicos (Pintura Histórica, Retratos, Paisagens, Pinturas de gênero). Com o passar do tempo os artistas começaram a se tornar mais independentes de certos ideais estrangeiros e partindo do idealismo nacionalista, esses artistas foram misturando cada vez mais cenas e características nacionais com técnicas e formas europeias.

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O primeiro par de obras a ser analisado, são pinturas de Juan Cordero (México, 1822-1884) e de Felipe Santiago Gutiérrez (México, 18241904). Em “La Bañista” (Fig.1), Cordero retrata uma mulher parcialmente coberta por um tecido branco, deixando apenas seu ombro e parte de sua perna a mostra, molhando seus pés em uma fonte. É uma pintura acadêmica, de composição e temáticas clássicas. O principal diferencial é o cenário composto de folhagens essencialmente tropicais, o que daria um aspecto nativo mesclado ao clássico. Já em “A caçadora dos Andes” (Fig. 2), o corpo feminino despido seria a representação da caçadora, em primeiro plano, e a paisagem os Andes, em segundo plano. Esse seria a primeira pintura de nudez mexicana, não surpreendendo a escolha de uma mulher despida. A posição pouco comum em que a modelo se apresenta demonstra grande conhecimento em perspectiva do pintor, sendo então uma pintura de grande importância para a história artística do México. Os elementos naturais da América Latina, como a paisagem, servem para garantir que a produção artística latina não seja apenas uma importação.

As condições locais também se mostravam problemáticas. A pintura do nu feminino, por exemplo, em muitos lugares era inaceitável. Quando os quadros de Cordero, com seus nus semi-encobertos (A banhista [ilust. 2.3], A morte de Atala) postos em cenários tropicais, foram mostrados numa exposição especial em 1864, eles chocaram o pudico povo mexicano. Os nus do argentino Pueyrredon foram executados em segredo e. posteriormente, pintados por cima. Na Venezuela, os desenhos com modelos de mulher nua ao vivo eram, ate 1904, proibidos na Academia. (ANDES,1997, p.30)

Fig. 2: Felipe Santiago Gutiérrez, A caçadora dos Andes 1891. Óleo sobre tela ,Colección Andres Blaisten, México.

Depois do intenso processo de catequização na América Latina, realizado pelos espanhóis, a religiosidade permaneceu intrínseca na vivência da população. É interessante observar que conforme uma mentalidade conservadora foi introduzida à população, esta se tornou resistente a um dos gêneros de pintura mais trabalhados em todo o mundo: a pintura de nus (especificamente o feminino). A qual era uma composição plástica, inFig. 1:Juan Cordero, La Bañista 1864.Oléo sobre tela, Coleção tensamente difundida como exercício pictórico. Banco Nacionaldel México. Analisando a partir de um ponto de vista conSobre esses dois quadros, Dawn Ades discorre no temporâneo, a representação do nu feminino por Livro “Arte na América Latina”: artistas homens tem caráter exploratório, onde o corpo da mulher se torna objeto, seja de exercício

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artístico ou do deleite visual do espectador.

Os artistas modernistas latinos tratam dos conflitos sociais e de classe por toda a sua obra, senJá em “Mujeres junto al rio” (Fig. 3), Antonio Gat- do esse o seu objetivo principal. Consequentetorno (Cuba, 1904-1980) trabalha um tema clás- mente em sua maioria não ousam tanto com as sico: “as banhistas”, que foi adaptado em vários formas, dessemelhante às vanguardas europeias. momentos. Também representa a nudez femini- Contudo modernizam a pintura narrativa, onde na porém de maneira muito diferente, pois retra- o principal será sempre o relato e toda a experita um ritual típico pela ótica da pintura europeia. mentação com a forma será ponderada. Os moAssim como nas duas obras anteriores, é eviden- dernistas latinos não serão fiéis especificamente te o cenário tropical representado, com folhas a nenhuma das vanguardas e exploram caractede bananeira e frutas (detalhe do prato no canto rísticas diversas dos movimentos em conjunto. inferior esquerdo), e duas mulheres indígenas e uma mulher negra. A qual carrega uma bacia na Diferentemente em “Dos Mujeres” (Figura 4), cabeça, provavelmente com suas roupas, o que Diego Rivera arrisca mais com a composição. era uma prática muito comum entre mulheres Transformando o natural em geométrico, Rivera mais modestas. Esteticamente essa pintura já de- desconstrói os corpos das duas mulheres tornanmonstra um tratamento cubista, porém contro- do-os planos. Ao mesmo tempo a justaposição lado, trabalhando as formas femininas geometri- de formas dá profundidade ao segundo plano da camente e sintetizando as formas e volumes em obra. Diego desenvolve sua produção cubista na planos. É possível fazer um paralelo com a obra mesma época que Picasso, porém seu uso da forde Modigliani e com o Art Déco. Ideologicamente ma é mais clássico do que seu contemporâneo. da mesma forma manifesta as questões moder- Por não trabalhar com uma temática diretamennas, como as dificuldades na realidade do povo, te ligada à construção de uma identidade nacionesse caso as mulheres cubanas se banhando ao nal, Rivera aventura-se. O seu trabalho com cor é inovador e seu uso do cubismo é sintético. rio.

Figura 3: Antonio Gattorno, Mujeres junto al rio 1927. Óleo sobre Tela, Cuba.

Figura 4: Diego Rivera, Dos Mujeres 1914. Arkansas Arts Center Foundation, EUA. 169

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Sem compromisso com a realidade, o artista desenvolve uma pintura de gênero de uma cena bastante conservadora, onde representa duas mulheres, provavelmente da elite, entretanto de maneira extremamente inovadora decompondo e fragmentando os corpos em um plano único e geométrico. A figura feminina é extremamente versátil e plástica, sendo assim é ideal para uma arte tão diversificada como a do Modernismo. Os modelos clássicos de pintura continuam sendo utilizados, porém agora extrapolam a rigidez acadêmica e suas características formais e ideológicas se transformam, utilizando-se de uma cartela mais ampla de motivos e funções. Em relação aos retratos, esses não são mais apenas objetos de adoração familiar pelas elites e representações pictóricas de figuras (em sua maioria homens) importantes. Os mesmos ganham status de obra de arte e por meio da prática do autorretrato, começam a trabalhar com questões mais profundas, como o psicológico do próprio artista.

Figura 5: Emilio Pettoruti, Testa di Donna,1920. Óleo sobre tela, Argentina (61.5 x 38 cm).

Nessa obra especificamente pode-se fazer uma associação com as obras do pintor italiano Amadeu Modigliani. Entretanto a artista mantém ao longo de toda sua produção, fidelidade narrativa e trabalha com um caráter conservador da abstração. O que é compreensível, pois quando há uma mudança muito grande no caráter narrativo, a questão plástica é mais conservadora.

A figura da “Gundinga” é bem sintética, seu pescoço é alongado e a diferença na proporção enEm “Testa di Donna” (Fig. 5) Emilio Pettorutti tre a cabeça e o tronco da personagem é notável. (Argentina, 1892-1971), demonstra claramen- Apoiado no abandono da “sacralidade acadêmite a mudança formal na linguagem estática dos ca” da pintura, o artista se liberta criativamente retratos. Assim como Rivera, explora o cubismo e pode ter maior preocupação com a criação de porém de maneira diferente. Pettoruti trabalha estilo e o trabalho de forma, ao invés de enaltecer com um cubismo comedido, harmonioso, belo, o modelo do retrato. uma visão clássica do cubismo americano, quase Art Déco. Ainda sim o artista chocou o público argentino com sua maneira inovadora de pintar. Em contraponto temos “Gundinga” (Fig. 6) de Amelia Peláez (Cuba, 1896-1968) que foi pioneira do modernismo em Cuba, mistura suas raízes cubanas com a estética do modernismo. Cabe a pintura o registro de tipos étnicos, para a construção visual de nação e a Gundinga é um tipo nacional. Figura 6: Amelia Peláez, Gundinga 1931. Óleo sobre tela, Cuba. 170 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017


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No quadro “Duas Fridas” (Fig. 7), Frida Kahlo (México, 1907-1954) utiliza-se do autorretrato para autorreflexão máxima. As suas duas Fridas se diferenciam, sobretudo, pelas vestimentas. O seu olhar fixo, diretamente para o espectador, hipnotiza e desconcerta. A estética de suas obras é muito particular, era retratas suas questões internas de maneira inteligível, porém afastada de realismos. Visualmente se aproxima do surrealismo, contudo não trata do inconsciente e sim com o psicológico. Figura 8: Frida Kahlo, Autorretrato 1932. Óleo sobre tela, México.

No campo das representações da figura feminina, as artistas têm a vantagem de poder trabalhar com sua própria imagem. A imagem do feminino por essas é múltipla, e espelham a visão que tem sobre si. O empoderamento é traduzido por meio de composições complexas, que trazem questões do “ser mulher”, associada com questões pessoais, como Frida, e nativas, como Amelia. Em seu livro “A Imagem da Mulher”, Cristina Costa toca em vários pontos, que apesar de serem especificados para a arte brasileira, são pasEm seu “Autorretrato” (Fig.8) Frida se representa síveis de discussão por toda a produção artística em meio a características do período. De um lado latina. Parafraseando a autora, o campo das artes a bandeira dos Estados Unidos, os arranha-céus, visuais afeta diretamente a formação dos indivías máquinas e as chaminés de indústria repre- duos como partes de um coletivo, e por meio da sentando o mundo capitalista, a partir de figu- arte o “ser social” se transforma. ras alegóricas da modernidade. Do outro lado as ruínas de templos, a caveira e as estátuas como A figura feminina é frequentemente usada como ícones pré-colombianos, além da vegetação pró- tema em todos os gêneros de pintura, “dando pria do local, mostram uma Frida dividida entre forma às principais preocupações sociais e estétio passado e o futuro. Ao segurar uma bandeira cas do Modernismo” (COSTA, 2001, p.27). Onde mexicana ela reafirma sua identidade nacional, e o seu uso pode agregar “a mestiçagem e a aculmesmo estando em pé entre o México e os Esta- turação, elementos importantes para a criação dos Unidos, a presença do sol de lua no primeiro de uma identidade visual” (COSTA, 2001, p.27), deixa clara a parcialidade da pintora. o que era umas das maiores preocupações nesse Figura 7: Frida Kahlo, As duas Fridas 1939.Óleo sobre tela, México.

período.

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É alarmante a disparidade nos estudos do papel da mulher, não só na arte como no seu papel social como um todo, comparativamente com o do homem. E é de extrema importância, não só, o desvendamento da figura feminina como objeto de estudo, como a produção artística das pintoras. No livro “The Female Nude” de Lynda Nead, fica claro a razão da vasta produção de pinturas de nudez feminina. “Qualquer pessoa a qual examine a história da arte ocidental deve ser golpeado pela prevalência de imagens do corpo feminino. Mais do que qualquer outro tema, o nu feminino conota ‘Arte’. A imagem emoldurada do corpo feminino, pendurado na parede de uma galeria de arte, é uma abreviatura para a arte de forma mais geral; é um ícone da cultura ocidental, um símbolo da civilização e realização.” (NEAD, p.1; The Female Nude). O corpo é visto como “Arte”, e ao ser exposto numa parede de museu é ícone da cultura ocidental, que é basicamente definida pela europeia, a qual por sua vez influenciou extensamente a latina. O feminino representado na obra é símbolo de civilização e realização, e partindo da sociedade patriarcal é instrumento inanimado do ser erudito. Essa série de conceitos difusos na sociedade criou um sistema opressor das mulheres, que precisa ser combatido. E é por meio do estudo da produção artística de artistas mulheres com ideais fortes e uma visão crítica das representações das figuras femininas que será alcançada a quebras dos paradigmas e estereótipos do “ser mulher”.

Maria Van Camp é graduanda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. REFERÊNCIAS ADES, Dawn. “As Academias e a História da Pintura” (pp. 27-39). In: Arte na América Latina. A Era Moderna, 1820-1980. (sobre a arte do século XIX, em português). CORRÊA, Patrícia. Disponível em: < https://picasaweb.google.com/110802800169956608147/ AmericaLatinaSecsXIXEX X1>. Acesso em: 08 de junho de 2016. COSTA, Cristina. A imagem da mulher: um estudo da arte brasileira - São Paulo: Ed. SENAC São Paulo; Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio. Canclini, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2011. MONASTERIO, Paulo Ortiz. Frida Kahlo: suas fotos- São Paulo: Cosacnaify, 2010. Museu Arocena. Disponível em: <http://www. museoarocena.com/colecciondepinturabndm>. Acesso em: 08 de junho de 2016 Nead, Lynda. The female nude; art, obscenity and sexuality-Londres: Routledge, 1997. Traduzido pela autora. Anyone who examines the history of western art must be struck by the prevalence of images of the female body. More than any other subject, the female nude connotes ‘Art’. The framed image of female body, hung on the wall of an art gallery, is shorthand for art more generally; it is an icon of western culture, a symbol of civilization and accomplishment. SCHWARTZ, Jorge. “Introdução” (pp. 45-94). In: Vanguardas Latino-americanas. (sobre o contexto geral e os principais debates do vanguardismo latino-americano na literatura e nas artes visuais, em português). Warburg, Banco Comparatívo de Imagens. Disponível em: <http://warburg.chaa-unicamp.com.br/artistas/view/2046> Acesso em: 08 de junho de 2016.

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Artigo

METÁFORAS UTERINAS SÉRIE: REMEMORAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO FEMININO Silvia Cordeiro Este trabalho versa sobre a construção de esculturas de tecido focalizando a relação íntima entre a mão e a cabeça. As esculturas feitas artesanalmente são tomadas como objetos fetiche,ou objetos dotados de poder sobrenatural no sentido antropológico, e carregam cada uma delas uma historicidade autoral que perpassa desde uma antropomorfose ritualística até meu repertório pessoal e artístico. Através da produção desta série de metáforas uterinas, busco levantar uma reflexão sobre as questões do feminino e do sagrado, do manual e do ritualístico, do contingente e do devir. As relações de gênero acabam ficando enleadas com a temática do meu estudo prático, onde o papel social de reprodutora que a mulher carrega é levantado através da iconografia do útero, do artesanal e da costura. A produção dos objetos fetiche foram feitas com base nas ideias de agência e intencionalidade (GELL, 2005), onde a repetição soa como forma de trazer á memória e reconstruir a verdadeira potência feminina. Palavras-chave: Arte; Fazer Artístico; Artesão; Artesanato; Têxtil; Costura; Experimental; Processo criativo; Útero; Fetiche; Tecido; Agência; Intencionalidade; Reconstrução; Feminino; Rememorar; Feminismo; Maternidade. Assim como os outros trabalhos desta mesma série de “Metáforas Uterinas”, os úteros sobre os quais falo neste artigo também foram criados através da ideia de agência e intencionalidade e os considero como objetos fetiche, já que são oriundos de processos rituais dentro do meu fazer artístico. Porém, neste trabalho, abordarei a temática do gênero e da arte como pano de fundo para minha expurgação mística, onde o sagrado feminino assume corpo. A proposta do estudo das séries “Metáforas Uterinas”, das quais este trabalho pertence, é pensar os úteros como fetiches no sentido antropológico do termo. A partir dessa proposta, trabalhar com duas ideias: agência e intencionalidade (GELL, 2005). A ideia de agência (que deriva principalmente de Alfred Gell) serve para pensar a poten-

cialidade do fetiche em agir sobre os outros, que pode ser o artista ou aquele que olha sua obra. A intencionalidade se refere ao que foi proposto a fazer, o objeto/fetiche estende esta intencionalidade, funcionando como uma espécie de mediador. Isso transforma meu fazer artístico num ritual particular (sobre o qual falarei mais a frente) que transforma minhas esculturas de tecido em objetos dotados de uma simbologia mística. Esta simbologia advém dos rituais de expurgação tomados sob a forma de intervenções sobre os moldes de úteros de tecido. O objetivo do estudo artístico é pensar na produção de cada útero enquanto expiação de sentimentos ligados ao meu próprio corpo e a situações vivenciadas por ser mulher e mãe, no sentido de desmistificar certos parâmetros sociais ligados ao feminino. Neste estudo, o caráter simbólico da produção

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das poéticas visuais toma a posição secundária, onde a iconografia do útero ligada á maternidade assume caráter principal. Ao realizar os ritos artísticos de produção dos objetos, procuro desmistificar o papel da mulher enquanto matriz geradora e receptáculo, analogando a problemática da maternidade e do feminino à condição de invisibilidade da mulher na arte, sendo a minha produção e vivência enquanto artista e mulher, meu próprio objeto de estudo. Para nortear os conceitos, julgo pertinente ratificar o conceito de fetiche: este diz respeito a objetos entendidos como possuidores de poderes sobrenaturais (definição antropológica), enquanto fetichismo se refere a uma doutrina ou culto que tem como base “um suposto modo de pensamento daqueles que atribuem poder sobrenatural (e também agência e intencionalidade) a objetos inanimados” (PIRES, 2009, p.13). Associada à ideia de agência dos objetos (GELL, 2005), explica a personificação do fazer artístico, que transubstancializa os úteros de tecido em objetos mágicos. A Mulher, a Arte e o Útero - A Reconstrução da Figura da Mulher Através de suas Metáforas Uterinas: Abordar a temática “uterina” no processo criativo, retoma importantes questionamentos que sempre acompanharam-me enquanto mulher e enquanto artista. Ser mãe e ser artista em uma sociedade que ainda jaz em patriarcado e sexismo, reverbera uma potência simbólica que transcende o ato do fazer manual em si. O princípio criador que não limita-se ao ato da criação do objeto de arte, mas a criação da vida, tende a ser diminuído e inferiorizado. Sob os olhares fálicos de uma supremacia socialmente patriarcal, a mulher assume o papel secundário de ser receptácu-

lo e matriz. O útero era a mulher, a mulher era o útero. As mulheres que não podiam ou não queriam ter filhos, eram desprezadas e consideradas inferiores, secas, improlíferas, improdutivas, áridas, inúteis. E mesmo após a quebra no silêncio histórico e historiográfico da mulher, esta visão de reprodutora ainda se encontra amplamente difundida em muitos nichos da sociedade como um todo, debaixo do olhar branco e heterossexual masculino. A mulher, submissa e excluída, sempre lutou para ser reconhecida como um indivíduo dotado de capacidades além da característica biológica de reprodução. Graças à psicanálise, a mãe será promovida a “grande responsável” pela felicidade de seu rebento. Missão terrível, que acaba de definir seu papel. Sem dúvida, esses encargos sucessivos que sobre ela foram lançados fizeram-se acompanhar de uma promoção da imagem da mãe. Essa promoção, porém, dissimulava uma dupla armadilha, que será por vezes vivida como uma alienação.(BADINTER, 1980, p.238) O papel da mulher na arte não é diferente: suas atividades criativas foram invisibilizadas ao longo da história. Discutir gênero na arte não só problematiza os cânones historiográficos, mas coopera para um questionamento e uma reflexão sobre os motivos da exclusão e da desqualificação da mulher em nossa sociedade como um todo, preconizando a descolonização de artistas e de instituições (e seus curadores, críticos e mantenedores). A arte tem poder para conscientizar a mulher sobre o seu verdadeiro papel social e sua participação na história, levando-a a uma reconstrução do seu papel cultural, conferindo-lhe forças para libertar-se das amarras da tutela masculina

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e, assim, reescrever com autonomia a sua própria história. A arte feminista tem o intuito de promover uma mudança no papel da mulher na sociedade, lutando contra a violência social, institucional e física que muitas ainda sofrem , questionando sua inserção no “mercado” de arte contemporânea. Ainda é comum que a mulher assuma o papel ancestral de servidão, fruto de uma educação primordialmente dirigida para os assuntos do lar. Arte e mulher, por si só, compõem uma dupla de subversão e de saída do lugar comum ainda nos dias de hoje, nos fazendo refletir que o papel da mulher urge sair do locus temporal de alienação, retomando a consciência de sua própria essência. Discutir arte e gênero pode ajudar a problematizar várias questões sobre o feminismo e sobre o papel da mulher na sociedade como um todo, não só problematizando o papel da mulher no circuito de artes e o uso da sua imagem como normatização de condutas, mas também dando voz àquilo que elas sempre quiseram dizer e, muitas vezes, não encontraram meios inclusivos para tal.

O Fazer Manual, A Costura dos Úteros: A escolha da costura é incontestável. Paixão desde a infância, agulhas e linhas permeiam minha vida das mais diferentes maneiras. Neta de costureira, tive acesso à técnicas riquíssimas e de criatividade e artesania ímpares: quilting e patchwork, crochê em trapilho, tear manual, modelagem, dentre outros. Logo, a costura faz parte inerente da minha linguagem e manifestação artística, mesmo que não seja a única forma, é uma das mais importantes. Tendo crescido num universo de criação, este trabalho artesanal feito de casa sempre foi algo familiar. Por isto escolhi trabalhar costurando os úteros, replicando-os, usando o tecido para transubstancializar meus medos na forma orgânica do meu órgão.

A iconografia do útero traz consigo minha historicidade, já que apresento e apresentei vários problemas pélvicos (múltiplos miomas, perda de uma das trompas, endometriose infiltrativa, aderência pélvicas que deixam meu útero sem mobilidade, cicatrizes pós miomectomia, útero retrovertido…), que tornam minha pelve e útero um local de constante mutabilidade identitária, A arte pode funcionar como sensibilizado- materializando, reconstruindo e desconstruindo ra e catalisadora, impelindo as pessoas a a corporeidade do feminino num fluxo constanse envolverem em movimentos organiza- te. A pelve mantêm-se candente, inflamada. dos que buscam provocar mudanças sociais radicais. A arte é especial por sua ca- Esta imagética de fertilidade e criação que repacidade de influenciar tanto sentimentos conecta ao primitivo assume a tríade mística como conhecimento. [...] A arte progres- de útero-feminino-artesanal como algo que não sista pode ajudar as pessoas a aprender pode ser modificado e as intervenções feitas nos não apenas sobre o caráter intensamente moldes por mim (costura de pérolas, queima, social de suas vidas interiores. Em última engessamento e afins) assumem o papel de uma análise,pode incitar as pessoas no sentido histerectomia dicotômica e simbólica. da emancipação. (Davis, 2017, p. 166) De acordo com Joffre M. de Rezende (2004), em seu livro Linguagem Médica,útero foi um dos órgãos que mais nomenclaturas recebeu. Na me

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dicina grega O útero recebeu 3 denominações: técnicas manuais e os rituais de agência e intenmétra, hystéra e delphys. cionalidade e suas relações com a minha pesquisa poética e visual, associando minha historicidade Métra (do indo-europeu mater,mãe, fonte e ori- aos questionamentos propostos (a maternidade gem da vida), é encontrado em vários autores e a produção artística feminina enquanto atos clássicos da antiguidade, como Heródoto e Pla- ínferos e diminutos), mostra que os ritos simbótão. Hipócrates também dele se utilizou. Na ter- licos denotam a resolução empírica e pessoal das minologia médica atual temos diversas palavras questões levantadas. formadas com essa raiz grega, tais como metropatia. metrorragia, endométrio, miométrio etc. Metáforas Uterinas e Criação dos Úteros: Hystéra foi o termo mais vezes empregado em escritos médicos, sendo encontrado em várias passagens dos livros de Hipócrates, Galeno e Sorano. Algumas palavras que derivam de hystéra histeria, histerômetro, histerectomia, histerossalpingografia etc. Delphys é igualmente encontrado em Hipócrates e Aristóteles como sinônimo de hystéra. Apesar da pluralidade de nomes que a medicina grega transmitiu aos latinos para nomear este órgão tão importante, os romanos criaram mais um, uterus, que predominou na nomenclatura anatômica. A etimologia da palavra uterus é incerta e admite-se uma forma primitiva no indo -europeu, udero, com o sentido de ventre, que teria evoluído para udaram, em sânscrito, hystéra, em grego, e uterus em latim. Uma segunda hipótese aventada é que uterus derive de outra palavra latina, uter, que quer dizer odre (recipiente de couro utilizado para guardar água ou vinho). A palavra uterus foi inicialmente utilizada pelos romanos para designar apenas o útero grávido, o qual lembraria um odre cheio de água pela presença do líquido amniótico. Posteriormente, passou a nomear o órgão, independentemente do seu estado. Discutir os motivos que fizeram-me utilizar as

Discorri sobre a produção dos objetos fetiche em outro artigo, mas julgo importante uma breve explanação afim de nortear o processo. Segundo Pires Quando algo é criado, modelado ou organizado, a força criadora da ação que modela esta coisa fica nela. Tal força atrai energias eficientes mesmo depois que o ingrediente tenha sido retirado de seu corpo vivo (a árvore, p. ex.), sua história o torna um vetor de virtudes. “Os ingredientes são restos de eventos, de objetos ou de corpos vivos […] escolhidos para evocar certos tipos de energia de realização de algo, certos efeitos desejados, certas intenções que animam seus utilizadores” (ibid.: 54-55). […] “Fetiches sem fetichismo não são suficientes”, afirma o autor, argumentando que as virtudes naturais das coisas são apenas o preâmbulo para que se possa agir com elas; é necessário “certo tipo de manipulação intencional do objeto ou de relação com o objeto” (ibid.: 72). É o tratamento ritual que possibilita uma comunicação íntima capaz de obter os efeitos mais importantes dos fetiches. Os fetiches (bo e vodu) possuem uma potência própria a ser manipulada pelos seus especialistas, potência que impõe uma significação ao conjunto

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através de rituais que fundem ingredientes criando um meio de acesso ao sobrenatural. O fetiche se torna objeto de sacrifícios dedicados a uma força que é independente de sua materialidade tangível, uma força da qual é o prolongamento no mundo sensível(idem 1993b: 118-119).

A produção dos moldes se dava da seguinte maneira: um molde de um útero real foi utilizado para cortar as peças, busquei uma imagem qualquer em um livro de anatomia. O molde foi feito de acordo com o tamanho do meu próprio órgão baseando-se em minhas ultrassonografias pélvicas. Os moldes piriformes de algodão cru (tecido orgânico e sem tingimento) são costurados Novidades são criadas por mestres expe- a mão com linha de crochê na cor preta, que faz rientes através de fórmulas canônicas, ou alusão ao fio de sutura do cirurgião. O recheio seja: alguém, morto ou vivo, precisa dar é feito com acrilon (também conhecido como sentido ao conjunto do objeto para colo- manta acrílica, utilizado para encher almofadas e cá-lo em contato com a potência sobrena- brinquedos de pelúcia) , a maleabilidade da matural em jogo. (Pires, 2009, pg. 107 e 108. triz uterina deve ser resguardada, o molde não Grifos do autor) pode ficar muito denso. A ausência dos ovários na representação do útero também é proposital. Sem óvulos, o útero perde sua capacidade priO útero assume o papel de um órgão de expia- mordial de gerar vida e torna-se locus imagético ção, as ações sobre seu corpo emanam uma for- de reconstrução simbólica dos múltiplos papeis ça criadora que determina o quão místicos eles femininos dentro da minha pesquisa artística. são. As metáforas se dão quando minha catarse ocorre, quando direciono ritualisticamente aos Tantos úteros, diversas leituras, processos e rimoldes de tecido meus sentimentos de medo, tuais líricos, cuja sobrenaturalidade fragmentador, culpa e todos os outros que tenham relação se sob a forma de indumentos irreais. De acordo com o fato de ser eu mulher e mãe, prolongando com esta visão, os fetiches atraem as energias pemeu mundo sensível e criando simbolicamente las quais têm afinidades. De posse destes fetiches, os objetos fetichizados. os úteros, eu teria o poder de manobrar fluxos de situações, manipulando-as de acordo com os inOs úteros de tecido (Fig. 1) já prontos eram guar- teresses próprios. Através destes objetos, a possidados, algumas vezes meu “estoque de úteros” bilidade de modificar o próprio destino seria uma ficava vazio, então o expurgo já acontecia desde a possibilidade. Esta última leitura enfatiza muito produção do órgão base, da matriz. Eles ficavam mais a relação de “ódio”, como se ao livrar-me guardados prontos para serem “usados“. A chave do meu órgão e exteriorizá-lo, eu pudesse, então, para ocorrer a minha produção artística eram as tornar-me eu mesma. Livrar-me deste locus do situações em que eu julgava necessário expurgar poder maternal, o útero, seria como romper com ou organizar sentimentos e lembranças ruins e a argamassa cultural que constitui a figura da confusas ou alegrias tamanhas todas elas ligadas mulher como ser reprodutor, retomando o leme ao feminino. Esta tornou-se a parte melancólica das pulsões libidinais e erotógenas do meu corpo mais íntima e expurgadora, mas também organi- social, desfragmentando a construção do corpo zadora do processo, dando sentido aos diversos feminino como um corpo maternal. De objeto a sentimentos. abjeto fetichizado.

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não é valorizado por uma sociedade, e portanto não valoriza a mãe, o amor materno não é mais necessariamente desejo feminino? (BANDITER, 1985, p.16) Desejei a maternidade, mas ela modificou-me por dentro e por fora, ela foi ritualística e fetichizou meu próprio útero. Fig.1: molde do útero já pronto (algodão cru, linha preta de crochê e recheio de acrilon)

O Útero Gessado: Este útero (Fig. 2) representa a forma literal das minhas aderências pélvicas severas, um útero imóvel, coberto, rebocado. O gesso, assim como um sistema social imóvel e quedo, delimita e determina o papel do útero e da mulher na construção do corpo feminino como figura materna, da qual ela não pode fugir. Um destino certeiro baseado em determinismos sociais e não biológicos, onde o inconsciente da mulher predomina sobre seus processos hormonais. Segundo Elisabeth Parece-me que devemos deixar a universalidade e a necessidade aos animais e admitir que a contingência e o particular são o apanágio do homem. A contingência dos comportamentos e dos sentimentos é o seu fardo, mas também a única falha pela qual se exprime sua liberdade. Hoje, uma mulher pode desejar não ser mãe: trata-se de uma mulher normal que exerce a sua liberdade, ou de uma enferma no que concerne às normas da natureza? Não teremos, com excessiva freqüência, tendência a confundir determinismo social e imperativo biológico? Os valores de uma sociedade são por vezes tão imperiosos que têm um peso incalculável sobre os nossos desejos. Por que não poderíamos admitir que quando

Este útero narra a normatização da mulher-mãe como ser incapaz de inserir-se um outros meios sociais. A Impassibilidade da mulher tem aglutinantes motivos maternais.

Fig.2: útero encoberto por gesso cré

Útero Dissimulado: Camuflado primitivamente na areia/terra (Fig. 3), este útero remete aos desejos ancestrais de uma evocação libidinal feminina, onde o corpo não é mais locus maternal, mas lugar de uma pulsão que rompe com a garantia de fecundidade social. Ele dissimula-se e encobre-se, fugindo da autoridade paternal e marital e retoma as rédeas de si, conferindo à mulher o direito ao seu próprio corpo e ao seu próprio útero. Semelhante à terra que precisa ser semeada, seu mérito não é apenas ser um bom ventre, mas ter a opção de também não ser.

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O Útero Perolado:

Fig.3: útero com areia de praia colada sobre seu corpo, fotografia tirada durante o processo

O Útero Improlífero Este útero queimado (Fig. 4) foi flambado no intuito de limpeza e desinfecção das mazelas existentes em minha pelve. Deformado e desencontrado, resultado de uma tentativa extrema e inconsciente de libertação. É como se eu tentasse me livrar dele para poder ser eu mesma, sem as dores pélvicas, sem as obrigações sociais de ser matriz e receptáculo de novos seres. Coincidentemente, após a queima do molde, a trompa esquerda pendeu-se assim como a minha. Após uma limpeza cirúrgica (miomectomia, cirurgia para retirada de vários tumores benignos que meu útero tinha), perdi a trompa esquerda. Uma espécie de castração e esterilização parcial simbólica. O castigo da desobediência em não querer ser a figura unicamente maternal.

Fig.4: útero após sua queima com álcool

O uso do ornamento (Fig. 5) ratifica minha idiopatia iconográfica. Embora as pérolas possam ter diversas leituras, em meu universo de criação simbólica elas funcionam como a exacerbação dos óvulos. Como se todos eles, ao mesmo tempo, saíssem da toca dos ovários e cobrissem o corpo do útero de forma a não mais cumprirem o papel biológico da concepção, somente o frívolo papel do adorno. Eles deixam de ser imóveis e passivos, assumindo o papel imperativo de fertilidade criativa.

Fig.5: útero com pérolas coladas sobre toda sua extensão

CONCLUSÃO A intencionalidade na produção dos úteros, fruto da minha intenção em relação a mim mesma e meu corpo, foi abordada no capítulo de criação, onde explico que ao produzir os objetos fetiche, tento uma maneira de reconstruir simbolicamente o meu órgão e a figura da mulher isenta dos padrões sociais da maternidade. Já a intencionalidade em relação ao expectador que vê minha obra, mostrou-se secundária e posterior à produção inicial, mas não menos importante. Minha intenção é, primordialmente, causar certo estranhamento e reflexão por parte do espectador, fazendo o mesmo captar de alguma maneira, o caráter simbólico e o ritualístico envolvido du

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rante o processo de produção artística. A agência do objeto independente da intencionalidade se desdobra nas imprevisíveis maneiras que a minha obra agirá sobre os outros, algo que não tenho como controlar ou mesmo supor. Obviamente a leitura da arte é dada de maneira muito particular.

são de gênero, ajudando a problematizar várias questões sobre o papel da mulher na sociedade como um todo, não só seu papel no circuito de artes. Não se trata de uma politização de experiências pessoais, mas de transformar um objeto num símbolo primitivo que livra a mulher do castigo dado a Eva: as dores do parto e, consequentemente, as dores de ser mulher. A narrativa Minha historicidade e a materialidade dos meus da mulher como uma criatura fraca e frívola, que úteros são elementos chave para entender a vida cai facilmente nas tentações da carne ao aceitar e a agência da criação dos meus objetos como fe- a maçã no Éden, imputa-lhe erroneamente um tiches, onde vivências conferem não só um valor papel secundário até mesmo dentro da ideia de particularmente simbólico a eles, mas também a concepção. A mulher veio da costela de Adão, materialização da memória de uma relação di- mas curiosamente é ela quem possui o receptácotômica com o meu útero. Encontrar valor nos culo, o útero. úteros e estabelecer uma relação de apropriação e objetificação com eles, separa-os do lugar ao qual É através da arte, que não se prende a narrativas fazem parte, reinserindo-os num cenário novo preestabelecidas, que conseguimos romper com e metafórico. Estes valores não residem apenas estes padrões dominantes, engendrando novas na junção da minha intencionalidade á materia- condutas sociais e imputando novas significação lização do objeto final, mas são recriados a cada ao mundo. Um mundo mais justo e compreensífruição, de acordo com cada um que aprecia e vi- vel, onde a mulher não só almeja, mas escapa de sualiza a obra. Reapropriando-os de acordo com uma existência insatisfatória, tornando-se uma suas influências particulares, cada pessoa cria com o todo. uma relação exclusiva com o fetiche. Esta singularização de valores num objeto que materializou As metáforas uterinas exibem uma plasticidade eventos, faz dele um fetiche. própria e denotam uma latência orgânica capaz de relativizar a plenitude do papel feminino na O suporte e os materiais de trabalho utilizados arte. São metáforas polissêmicas, esvaziadas ajudam a dar forma à este processo e têm tam- num lirismo sarcástico, manifestando uma dibém sua importância simbólica. Muito embora mensão espiritual ao mostrar que não existem a intenção tenha sido representativa, alguma somente em sua materialidade, pois reconduzem forma de abstração pode ter sido emanada indi- a uma realidade invisível. retamente, pois quem não conhece a anatomia de um útero, verá um amontoado de material e tecido, uma substância amorfa e sem literalidade, Silvia Cordeiro é graduanda pela Universidade traduzindo uma iconografia híbrida, no limiar da do Estado do Rio de Janeiro. abstração antropomórfica. Abordar o útero, as poéticas da artista e as questões da mulher não deixa de ser uma discus-

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GELL, Alfred. A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia. Concinnitas, ano 6, volume 1, numero 8, 2005.

Referências

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PROPOSTA LIVRE

INVESTIGAÇÕES FOTOGRÁFICAS: EXPERIMENTANDO UM OUTRO TEMPO DA IMAGEM Fernando Rodrigues

Fig. 1 e 2: Fotos do projeto Investigações Fotográficas, na Oficina Experimental realizada no dia 20 de maio de 2017, no CAp-UFRJ.

Esta pesquisa tem como objetivo apresentar parte do que vem sendo desenvolvido no projeto de ensino, pesquisa e extensão “Investigações Fotográficas”, que existe desde 2013, no CAp-UFRJ. Coordenado pelas professoras Cris Miranda (CAp-UFRJ) e Verônica Soares (EPSJV/ Fiocruz). O projeto é dedicado aos docentes da educação básica, estudantes de licenciatura, ar-

tistas visuais e estudantes do ensino médio e fundamental do CAp. Desenvolve-se a partir de experimentações de procedimentos fotográficos históricos, artesanais, analógicos e digitais na construção de poéticas artísticas e formadoras do olhar em relação com o ensino da arte. Objetiva a reflexão sobre a relação entre processo educativo e a fotografia, a arte, as tecnologias e a produção

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e circulação da imagem fotográfica no cotidiano As atividades propostas objetivam a compreensão e na contemporaneidade. do fenômeno da luz e do processo de formação da imagem, o conhecimento do funcionamento O mundo digital mudou definitivamente a forma interno de uma câmera fotográfica por meio da como nos relacionamos com as imagens. Pos- produção de câmaras escuras portáteis, a expesivelmente a maior parte da comunicação feita riência imersiva em câmaras em movimento, a através dos dispositivos eletrônicos, sejam atra- discussão de conceitos filosóficos, científicos, físivés delas. No Whatsapp, Instagram, Facebook, cos, e também a vivência - relação com um outro Pinterest e Flickr passamos o dia mergulhados tempo da imagem diferentemente a qual temos em imagens. Um exemplo disso, a empresa Ins- agora na contemporaneidade. E também, no ano tagram divulgou que tem cerca de 80.000.000 de em que a disciplina de artes vem sendo ameaçafotos carregadas por dia em sua plataforma. da por cortes no currículo obrigatório brasileiro, projetos de pesquisa em artes se tornam cada Neste trabalho, através de uma comunicação vez mais importantes e necessários para a defesa de 20 minutos, feita por powerpoint, pretendo desse saber em sala de aula e na vida. abordar parte das atividades realizadas no ano de 2017 no projeto, como a ‘câmara escura’ [fig 1] e o ‘cinema baldio’ [fig 2], experiências inspiradas nos trabalhos do fotógrafo e educador Miguel Fernando Rodrigues é graduando pela UniversiChikaoka e da artista visual Rosa Bunchaft. dade Federal do Rio de Janeiro.

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PROPOSTA LIVRE

UM MONITOR Jandir Jr. O seguinte texto foi escrito fugidiamente durante alguns dos momentos em que eu deveria estar monitorando um museu. O apresentei em papéis rotos para quem trabalha comigo ali, o pus num processofólio onde me faço documento e, ainda assim, o apresento para vocês. É que me deu vontade de conversar coisas com quem mais já salvaguardou; se, por exemplo, como eu, acham não-objetos iguais as pinturas de cavalete quando as monitoram. Pergunto então para nós, estudantes de artes que monitoraram, monitoram e monitorarão as paredes vermelhas que falam do mito da pureza: o que temos a dizer? Trabalho monitorando um museu, o que tem evocado minha imobilidade, quando nesta função versus o estado de ação a que associo os artistas, quando olho suas obras expostas. Mas que estranho é crer essa condição de ação permanente nessas pinturas, esculturas, nesses não-objetos... é como se, a cada mirada, elas se ressemantizassem como a presença da ação de um outro, em antítese ao nosso estado sedentário, já espectadores. Claro: associar o sedentarismo como condição do meu e do seu espectar incorre numa redução grosseira da vigilância do olhar à nada, como se fruir fosse pouco, uma condição inativa. Mas fruir, frente a corpulência do pintor que emerge de sua pintura, é só olhos. É disso que falo, dum fato estritamente relativo ao movimento da mão que pincelou uma tela, do tensionar do braço ao desbastar no alto da escultura, do compasso do dedo que tamborilou clicando na câmera fotográfica, ou mesmo das pernas e da voz indo de lá a cá para viabilizar esta exposição onde estou. Ó: acho que vemos a cinética do artista ao olharmos suas peças inertes; já nosso corpo, ainda que em ação constante, não reside deste modo indicial num objeto público, e ver tantas imagens faz mal. Essa última frase foi o que ouvi da Mariana quando foi monitora comigo e não dava sinais de vida como as coisas que vejo aqui; pen-

so que nossa condição como espectadores é diferente da de quem só vê. Mas talvez as imagens de que ela falou sejam menos a do bronze que a da pátina no bronze, nos dizendo do quão rápido pereceremos, que não há sedimentação possível na brevidade da carne, que enrugamos e morremos o corpo sem sequer suportar o grão, empoeirarmo-nos... Mas não... não podemos usar o verbo desta forma. Por nos movermos é que também não haverá poeira em nós, diferente das coisas estanques neste museu, ainda que, no núcleo invisível em cada uma delas, haja uma dinâmica que nunca haverá no nosso próprio âmago. É, nos movemos da pele pra fora, mas pouco por dentro - um coração pulsando, a filtragem nos rins, não tanto mais que isto - e uma pintura se move da pele pra dentro, pouco por fora. Pra ser mais exato, somente quando ocorre um princípio de sinistro, como quando esbarraram num quadro do Taunay e o deixaram inclinado, é que esse externo movimento se torna visível, pelo menos para mim. Reconheço, contudo, que há quem espreite os moveres ínfimos duma peça dessas, como aquele meu professor de química, quando disse que até os carbonos da Monalisa continuam se transformando em qualquer outra coisa que não ela - e que eu nem ninguém saberia dizer com propriedade que outra coisa é -, e que, visto

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isso, nada durará duma mesmíssima forma para sempre. Mas quanto às movimentações internas em uma obra, elas não são as de ordem física, como as de nossos órgãos. O pulso da madeira é inaudível; não falo do ranger das cadeiras às três da manhã, hora do diabo. E seus cupins nada sentem dessas pulsações, já que morrem como nós. Mas, estranho que seja à nossa efemeridade, somos nós os espectadores das obras de arte em sua completude; não só em sua face estável, mas nesse seu interior movente que não apreendemos pelos sentidos mas, ainda assim, sabemos existir. Por isso, agora, assumo que eu mesmo fico confuso... o que eu olho quando lhe olho? Cê parece tão móvel quanto parada. Cê parece tão eterna quanto eu... minha eternidade me é nos meus momentos de lapsos de memória, nesses em que não digo do meu fim à narrativa em curso. E eu nunca vi você falar de seu próprio fim, pintura. Nisso realmente nos parecemos. Caso fosse por esquecimento seu talvez fôssemos idênticos. Mas essa sua capacidade de andar parada e de, portanto, me fazer sentir parado até quando ando me cansa um pouco. Gostaria de lhe falar sobre isso. E por isso adotei essa forma de escrever agora, como se lhe endereçasse. Tive vontade de me fazer ver como alguém mais próximo, mesmo que em monólogo. Acho que é porque só me entendo como alguém especial, destacado do resto do mundo ordinário, quando experiencio a solidão, e não dá pra estar sozinho quando com todos esses não-objetos, tão mais especiais que eu, os quais muites vêm para vê-los, e não a mim. Daí, quando escrevo, posso escolher endereçar ou não; conjugar-me, conjugar-lhe, falar ‘nós’. Contudo, mais conjugo-me; mais sou eu. E por ser eu, serei só, e só, serei singular, especial. Mas não basta isso: este texto é na relação conflituosa entre eu e você. E que texto não é? Ainda que escrevamos em solidão, inscrevemos em nós o alfabeto; nos atamos por ele. Aceito, frente a isso,

que falo pra você desde o princípio disso aqui. E eu já nem sei se é um humano, uma obra, uma galeria... talvez seja pouca a diferença, já que eu mesmo não desejo a diferença entre o eu carne e o que eu escrevo agora. Há uma continuidade, assim como na foto que vejo, autorretrato do homem Tião, retrato por ele mesmo retratado; tudo dele a carne. Mas o pó continua a não se sedimentar em mim publicamente, já que não resido em exposição num algo meu, já que somente escrevo. Mas pouco importa: daqui, imprimirei estas minhas letras apertadas num pedaço de papel qualquer, carregarei onde trabalho, mostrarei a quem, como eu, monitora um museu. Escrevo muito, mas caberá numa folha só. Será mais fácil falar muito em pouco espaço, inscrevê-lo muito, quase por completo, do que querer um lugar maior ou reduzir a escrita, aquilo que macula as superfícies. Mas logo eu, monitor, empregado em preservar superfícies, estou aqui a escrever. O paradoxo se faz: deixo de proteger pinturas, esculturas, a superfície de coisas como essas, para sujar outra superfície de grafite, de tinta, investindo contra sua brancura. Mas estou cansado, já escrevi muito, o tempo do mundo passou por mim e não termino de editar o que inscrevo pelas letras. Devo voltar ao trabalho. Aceito perder: não consigo dar forma ao que escrevo, não me convenci. Mas temo pelo acidente à obra, apesar do sinistro não chegar a acontecer nunca, e nada mudar na vida de um monitor para além do medo que esses princípios irão lhe submeter, por ser sempre ele o responsável caso uma movimentação externa brusca ocorra numa obra, por ser ele pago para ter medo. Por isso eu sou pago para ter medo. E quando não tenho porque ter medo aqui, encontro-me parado, como parados ficam os ascensoristas entre o apertar de um e de outro botão, como parados ficam executivos entre uma e outra tecla em que digitam. E parados não cumprimos função produtiva, mas creio

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que uma função ideológica, em algo bela; somos como monumentos ao trabalho. Quase que sinto meus órgãos pararem quando paro em serviço pelo serviço, sendo tomado em seguida de um só movimento impetuoso e inaudível dentro de mim. Por trinta segundos fui estátua, fui monumento. Mas não se fez pátina na minha pele, que não é de bronze. A carne é que é matéria e monumento ao trabalho, não minhas palavras, nem seu bronze. Mas disso eu já sabia desde o início. Esse texto me dá a impressão de ser todo meio dispensável frente a isso. Então volto ao seu princípio. Trabalho monitorando um museu.

Jandir Jr. é graduando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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PROPOSTA LIVRE

A ESCOLA DE BELAS ARTES COMO PROPULSORA DE ENCONTROS E COLETIVIDADE: ATROCIDADES MARAVILHOSAS E ZONA FRANCA COMO ESTUDOS DE CASO Thiago Fernandes

Felipe Barbosa, Sem titulo. Atrocidades Maravilhosas. Avenida Gomes Freire. 2000. Fonte: alexandrevogler.com.br

Minha proposta livre para o I PEGA é uma apresentação oral / comunicação sobre minha atual pesquisa que tem como estudos de caso o Atrocidades Maravilhosas e o Zona Franca, duas ações coletivas que tiveram início na Escola de Belas Artes e foram realizadas, respectivamente, entre 1999 e 20001 e entre 2001 e 2002. O Atrocidades Maravilhosas foi uma ação coletiva realizada por, inicialmente, 20 artistas, em grande parte estudantes de graduação e pós-graduação da Escola de Belas Artes, e surge como um desdobramento da pesquisa de mestrado de Alexandre Vogler na EBA. Cada integrante foi

responsável pela criação de um cartaz que era impresso em larga escala, em uma tiragem de 250 unidades, e colado em grandes vias da cidade, formando grandiosos painéis com a mesma imagem repetida. Esta ação se destaca por ter difundido a Intervenção Urbana no Rio de Janeiro, que foi cada vez mais utilizada ao longo da década de 2000 por outros artistas. Guga Ferraz, um dos integrantes do grupo, negocia um espaço na Fundição Progresso para a realização da Festa do Baco, evento que organizava na EBA, e para servir de ateliê ao Atrocidades Maravilhosas. Mais tarde, surge a ideia de fazer

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nesse espaço um evento semanal, de caráter anticuratorial, convidando artistas a realizarem trabalhos que não conseguem executar em galerias e espaços institucionais. Este evento é chamado de Zona Franca e acontece todas as segundas feiras, sem interrupções, durante 51 semanas. Guga Ferraz faz a coprodução do evento ao lado de outros artistas que, em sua maioria, são também integrantes do Atrocidades Maravilhosas e tiveram passagem pela EBA.

tas que articularam essas ações e de um levantamento bibliográfico. Serão exibidas imagens e comentado o processo dessas ações, além do papel da Escola de Belas Artes em seu surgimento e seus desdobramentos.

A proposta tem origem no meu trabalho de conclusão de curso de bacharelado em História da Arte, sobre o artista Guga Ferraz, e na minha pesquisa como bolsista de Iniciação Artística e Cultural, sobre a história da Escola de Belas Artes Observa-se três questões importantes no contex- a partir de 1975 (com a sua transferência para o to dessas ações: a primeira é a ausência de um Fundão) até os dias de hoje1. Tenho como objeticircuito artístico bem estruturado no Rio de Ja- vo partilhar o material coletado e o meu processo neiro, que faz com que estudantes e artistas re- de pesquisa, que se desdobrará em minha dissercém-formados busquem alternativas de exposi- tação de mestrado. ção, como a utilização do espaço público, ações coletivas e a criação de espaços alternativos geridos por eles mesmos. A partir daí, encontramos a segunda questão, quando o artista que deixa de ser um mero produtor de obras de arte e torna-se Thiago Fernandes é mestrando pela Universidaum agenciador de um circuito artístico alternati- de Federal do Rio de Janeiro. vo criado por ele mesmo, um artista-etc., segundo a definição proposta por Ricardo Basbaum. A Notas terceira questão é a busca cada vez maior da formação universitária por artistas. Ao realizar um 1 A data se refere à primeira intervenção do Atrolevantamento de artistas que se formaram pela cidades Maravilhosas, que é o foco da presenEBA a partir da década de 1970, observei que na te pesquisa. O grupo desenvolveu ainda outras década de 1990 houve um aumento muito sigações até 2003. nificativo de artistas contemporâneos que pas2 A pesquisa “Contagem regressiva aos 200, cosaram pela Escola, em comparação com as duas meçando ao contrário: artistas contemporâneos décadas anteriores, fato que se devem também à formados pela Escola de Belas Artes de 1975 à implantação do mestrado em Linguagens Visuais atualidade” é coordenada pelo Prof. Dr. Ivair em 1995. Reinaldim desde 2016, com a proposta de estudar a história recente da EBA, após a sua transferênO Atrocidades Maravilhosas e o Zona Franca cia para o Fundão. O grupo realiza entrevistas surgem no contexto explicitado acima e têm com artistas contemporâneos que estudaram na sua origem em encontros proporcionados pela EBA (na graduação ou na pós-graduação), que Escola de Belas Artes. Na minha comunicação, são gravadas em vídeo e em breve serão disponivou apresentar o material coletado durante a bilizadas na internet. pesquisa, a partir de entrevistas com os artis-

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