Edição 6 - Revista Desvio e Caderno Especial Artes e Maternidade

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arte memรณria patrimรณnio ED #6 I 2019.1

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Revista Desvio / Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vol. 4, n. 4 (2019)-. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019. Semestral ISSN: 2526-0405 1. Revista publicada por alunos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2. Arte, memória e patrimônio. I. Revista Desvio. II. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. II. UFRJ. CDD: 700

Revista da Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ano 4 | n. 4 | julho 2019

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EXPEDIENTE UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ Reitor Denise Pires de Carvalho Vice-reitora Carlos Frederico Leão Rocha Pró-Reitoria de Graduação – PR1 Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR2 Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR3 Roberto Antônio Gambine Moreira Pró-Reitoria de Pessoal – PR4 Agnaldo Fernandes Pró-Reitoria de Extensão – PR5 Maria Mello de Malta Pró-Reitora de Gestão e Governança – PR6 André Esteves da Silva Pró-Reitora de Políticas Estudantis – PR7 Luiz Felipe Cavalcanti (Superintendente Geral de Políticas Estudantis) ESCOLA DE BELAS ARTES Diretora Madalena Ribeiro Grimaldi Vice-diretor Hugo Borges Backx

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Publicação Semestral de alunos e ex-alunos da Escola de Belas Artes – UFRJ

Ano 4 Nº 4 – julho de 2019

Diretora de Arte

Colaborador Temporário Pedro Rangel ed. 6

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Colaborador Temporário Gabriel Vieira

Colaboradora Temporária Alice Ferraro

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Colaboradora Temporária Amanda Tavares


Colaboradora Temporária Clarisse Gonçalves

Colaboradora Temporária Daylane Marinho

Colaboradora Temporária Emmanuele Russel

Colaborador Temporário Fabrice Guimarães

Colaboradora Temporária Isadora Romantini

Colaboradora Temporária Juliana Sutil ed. 6

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Colaboradora Temporária Luciana Souza

Colaborador Temporário Vitor Martins

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Colaboradora Temporária Luiza Amaral


Pareceristas Gabrielle Nascimento Batista Graduada em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Escola de Belas Artes, com especialização em História e Culturas africanas e afro-brasileira, pelo Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos. Mestre em História e Teoria da Arte, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, UFRJ, na linha de Imagem e Cultura. No mestrado, pesquisou a história da montagem da Coleção Africana do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA-RJ), bem como o processo de aquisição por parte da instituição, no ano de 1964, com bolsa CNPq. Atualmente, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História, em Questões das artes não-europeia, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tem experiência na área de Artes e atua principalmente nos seguintes temas: Identidade, Imaginário Nacional, Memória, Patrimônio, Colecionismo, Museu e Arte Africana.

Thiago Grisolia Fernandes Graduado em Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA-UFF), onde desenvolveu pesquisa a respeito das relações entre escritura, visualidade e silêncio na arte contemporânea brasileira. Atualmente é doutorando em Ciência da Literatura (PPGCL-UFRJ). Tem experiência nas áreas de Artes e Literatura.

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ONLINE /  revista desvio www.revistadesvio.com

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Editorial DESVIOS: NOVAS ROTAS PARA 2019

A passagem do ano trouxe consigo uma série de mudanças para a Desvio, muitas das quais impulsionaram os membros do corpo editorial a buscar novos caminhos e possibilidades para que, assim, pudessem dar continuidade ao trabalho. Na primeira semana de 2019, a Desvio passou a ocupar um novo espaço, adotando parte do Ôrgani.Co Atelier como escritório. Desse modo, tornou-se mais do que uma revista, passando a ser uma instituição cultural que se dedica a desenvolver projetos nas áreas de artes, memória e patrimônio, para além da publicação acadêmica. O desvio feito já era previsto, uma vez que no último ano a Revista se dedicou a organizar seminários e exposições, como Junho de 2013: 5 anos depois, Seminários Metodologias Artísticas: pesquisa, política e invenções, II PEGA. Tais eventos foram desdobrados em publicações já disponíveis em nosso site. Agora, com o escritório, a proposta da equipe se expande a fim de atender um número maior de demandas, ressignificando o espaço como galeria, residência e escola, um verdadeiro ponto de encontro e confluências para o circuito carioca das artes visuais. A criação da Galeria Desvio, por exemplo, faz parte dessa nova empreitada, cumprindo a função de um espaço de arte dedicado à exibição do trabalho de jovens artistas, localizada no coração pulsante da cidade do Rio de Janeiro: a Lapa. Chegamos à sexta edição da Revista Desvio. No ano corrente, comemoramos três anos de existência e resistência, divulgando, fomentando e produzindo conteúdo de maneira autônoma, sendo executada exclusivamente por um esforço e interesse coletivo de estudantes das áreas de arte, memória e patrimônio. Com muito orgulho chegamos a esse terceiro ano com nove edições publicadas, sendo seis (06) correntes e três (03) especiais. Quanto à presente edição, contamos com a publicação do texto livre do artista Yhuri Cruz, uma manifesto apresentado em 2018 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. O artista atualmente participa da Residência Carmen, uma parceria entre a Desvio e o Orgâni.Co Atelier. Os artigos, ensaios e resenhas selecionadas nos permitem construir diálogos profícuos, com sistema de pares.

Os pesquisadores Beatriz Rauscher e Victor Marcelo, da Universidade Federal de Uberlândia, dedicaram-se a investigar a gravura política de Rubem Grilo no Jornal Movimento, ao passo que Letícia Moreno, da Universidade ed. 6

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Federal do Rio de Janeiro, apresenta um olhar para o acervo digital do Centro Internacional de Artes das Américas, interessada na presença de documentos referentes à xilogravura nordestina. Ana Paula da Conceição e Marcos Gonzales, da Fundação Oswaldo Cruz, estão engajados na divulgação científica e compartilham conosco suas reflexões sobre o uso do grafite para a democratização da ciência, enquanto Thamires Mota e Cândida Bessa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, buscam divulgar as oficinas realizadas com adolescentes dentro do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Tadeu Ribeiro, da Universidade Federal Fluminense, aborda a pele e o corpo na arte contemporânea brasileira, assunto que também interessa à Aline Zimmer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que, por seu turno, estuda as questões raciais presentes na performance da artista Priscila Rezende. O último núcleo, formado por três pesquisadores, volta-se para a questão do cinema, fotografia e audiovisual. Guilherme Gurgel, da Universidade Federal Fluminense, trata em seu artigo sobre a recriação de som para um filme surrealista de 1928, à medida que André Pitol, da Universidade de São Paulo, mergulha na poética do artista Alair Gomes e, por fim, Marcus Lemos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, traz uma análise sobre o sarcasmo presente no filme Showgirls.

Ainda nessa edição, contamos com o Caderno Especial - Maternidades, com curadoria de Carolina Rodrigues, Fernanda Correa e Roberta Calábria. A publicação é composta por artigos, entrevistas, relatos de experiências, textos de mães pesquisadoras e artistas, as quais se propuseram a discutir a temática com outras mulheres. Há uma entrevista com a artista Roberta Barros e outra com as integrantes do Coletivo de Mães Ilustradoras, além do desdobramento da roda de conversa realizada no dia 16 de fevereiro no escritório da Desvio. Fernanda Correa apresenta uma proposta para transformar o meio acadêmico e artístico em espaços mais inclusivos para as mães, bem como Gabriela Moura clama por mudanças. Por fim, Joyce Delfim parte de uma perspectiva feminista para tratar a representação da maternidade na história da arte. Em um cenário tão ríspido para o campo da cultura e educação, encontramosnos resistindo, pois acreditamos em nosso trabalho. A manutenção da Revista Desvio inspira força para todos que acreditam na importância do conhecimento científico e sua divulgação, como também para aqueles que compreendem a troca de experiências como processo importante de aprendizagem. Vivemos em meio a intensos conflitos, turbulências e nebulosidade, porém, nada irá nos impedir de continuar na luta!

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MARIELLE PRESENTE! ANDERSON PRESENTE! HOJE E SEMPRE!

O desvio é à esquerda! ;) Equipe Desvio Rio de Janeiro, 01 de julho de 2019

foto @1yuridias

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Sumário 16

TEXTO | Nenhuma direção a não ser ao centro por Yhuri Cruz

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ARTIGO| A Gravura Política de Rubem Grilo: publicações impressas no Jornal Movimento por Beatriz Rauscher e Victor Marcelo

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ARTIGO | Sobre a xilogravura nordestina: brasilidade, modernismo e comunidade por Letícia Moreno

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ARTIGO | A arte do grafite e a democratização da ciência por Ana Paula da Conceição e Marcus Gonzales

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ARTIGO | Arte e Educação em Hospitais: oficinas de artes no núcleo de estudos da saúde do adolescente por Cândida Maria B. C. A. Rodrigues e Thamires Burlandy da Mota Chagas

81

ARTIGO| A fronteira do eu e o outro: a pele na arte contemporânea por Tadeu Ribeiro

94

ARTIGO | Rompendo silêncios: as performances de Priscila Rezende por Aline Alessandra Zimmer da Paz Pereira

108

ARTIGO | O som do surrealismo nos anos 2000: como a era da internet recriou o som de um filme surrealista de 1928 por Guilherme do Amaral Gurgel

126

ENSAIO| Alair Gomes: cinema, teatro, fotografia por André Pitol

135

RESENHA | Showgirls: uma ode ao deboche na representação clichê hollywoodiano por Marcus Lemos

145

TRADUÇÃO | Adriana Valdés. Ninfas e anjos: O pensamento a partir da obsessão com uma imagem. Tradução por Marcela Tavares.

154

Dupla de Artistas| Glauce Pimenta Rosa e Márcia Falcão

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CADERNO ESPECIAL | ARTE E MATERNIDADES por Carolina Rodrigues, Fernanda Correa e Roberta Calábria

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Roda de Conversa: Arte e Maternidades com Mardejan França, Mahyrah Alves, Roberta Barros, Kika Motta, Cecilia Cavalieri, Kelly San.

178

TEXTO | Propostas e sugestões inclusivas para mães nos meios artísticos e acadêmicos por Fernanda Correa

181

TEXTO | Um convite às artistas mães ou Nós podemos contar - e mudar - nossa história por Gaabriela Moura

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202

ENTREVISTA | O Coletivo de Mães Ilustradoras. Entrevista com Ana Kacurin, Anne Brumana, Gaabriela Moura, Gabi Domingues, Isabel Svoboda e Sula Freire por Carolina Rodrigues e João Paulo Ovidio ENTREVISTA | Feminismo maternal, arte contemporânea e violência obstétrica. Entrevista com a artista Roberta Barros por Roberta Calábria

218 ARTIGO | “Querem o seu colo de Madona”: considerações sobre a representação do corpo materno por Joyce Delfim

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Artista da Capa | Felipe Barros

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Artista da Capa - Caderno Maternidades | Maressa Andrioli ed. 6

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Texto NENHUMA DIREÇÃO A NÃO SER AO CENTRO Yhuri Cruz 2018

MANIFESTO - CENA em dois atos contra a produção artística e a perspectiva elitista / colonial / branca na arte brasileira desde o modernismo ao velho-contemporâneo EAV - PARQUE LAGE PERSONAGENS O MODERNO e sua prole O VELHO CONTEMPORÂNEO e seus seguidores CORPOS que revidam na ação artística e na presença FANTASMA

ATO I - Gatilho A cena se passa na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, local-chave para o entendimento da produção artística contemporânea brasileira pós-80. Ela acontece durante o curso de formação e deformação oferecido a 25 bolsistas, com o nome “Qualquer direção fora do centro”, que foi de abril a dezembro de 2018. O gatilho, no entanto, aparece de cara: na primeira aula do curso.

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ATO II - Contra-ataque A cena é ação-tentáculo (raiz) e sem previsão de término, acontece dentro do corpo e da mente daqueles que sentiram o ataque e/ou daqueles que acreditam e compartilham, mesmo que por empatia, da dor da ponta da lança. A ação se dá através do grito ou do silêncio, mas sempre no movimento.

ATO I – GATILHO Dentre sua longa e importante produção, Anna Bella Geiger possui um trabalho de vídeo chamado “Centerminal”, de 1974. No curto vídeo, de aproximadamente 1 minuto, Anna Bella se encontra numa floresta – segundo a artista, na parte da Floresta da Tijuca (RJ) próxima ao local onde hoje se encontra o Parque Lage e a Escola de Artes Visuais. A cena: nos primeiros segundos, Anna crava fundo com uma lança um ponto no chão da floresta: um centro, um ponto de equilíbrio. Após cravar esse centro, Anna Bella atira a lança à esma para a floresta, longe de si, longe do centro. O enquadramento do vídeo acompanha o trajeto da lança e o desenho da parábola que ela faz até se aproximar do solo.

Corte: não vemos a vítima. Nos últimos 10 segundos do vídeo, tem-se um zoom em Anna Bella e a vemos segurando um cartaz com uma insígnia e um texto em que se lê Any direction out of the center (Qualquer direção fora do centro).

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São diversas as possíveis interpretações para a obra. No entanto, o que ela engatilha em mim é uma sensação de revolta, de oposição. Qualquer direção fora do centro possui em si uma condição inerente para existir: estar no centro, ou pertencer ao centro, estar equilibrado nele, para então dar o bote, atirar a lança, anywhere (em qualquer direção). Independente das motivações de Anna Bella Geiger (é sobre macro-gatilhos), a obra me soa como uma declaração que vem do centro, de quem olha de um ponto de vista determinante, majoritário, privilegiado. A ponta da lança que sai do centro só pode atingir um lugar: a margem (a mim). Eis aí a sensação de revolta. Seria o ataque – pois o vídeo me parece tratar sobre a questão ofensiva – contra o meu lugar?

E falo sempre do meu lugar: NADA ULTRAPASSA O CORPO

***

Fantasma – O peso do corpo sobre o chão? Oh, céus! Como é pesado!

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(Pano.)

ATO II - CONTRA-ATAQUE Eu estou fora do centro. E se você olhar a terra atentamente pode encontrar várias pontas de lança aqui. Uma ao lado da outra e, em alguns cantos, empilhadas sobre as raízes das árvores ancestrais.

Pois são muitos os ataques e não se vê no horizonte um dia em que não haja ao menos um. Eu tiro uma lança do meu próprio chão e com ela cravo meu centro – leia-se aqui a margem, o subúrbio, a periferia. Na margem, eu estabeleço meu ponto de equilíbrio. E segurando a arma que à mim foi arremessada, revido. Contra-ataco. A margem sempre foi esse lugar de uma exclusão dúbia. Onde a elite econômica/cultural branca nunca esteve, mas sempre a visitou para ter sobre ela uma fonte exploratória e apropriatória. O olhar-ataque para “fora”, qualquer direção fora do centro, pauta a arte moderna e velha-contemporânea, como epistemicídio, fetichização, como antropofagia.

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PRETXFAGIA (NHAC) INDIXFAGIA (NHAC) NORTESFAGIA (NHAC) CUIRFAGIA (NHAC) – MARGEMFÁGICOS! O resultado é uma arte mastigada pelos dentes da branquitude. Como dizia tunga, os dentes são lanças que se afiam diariamente. Uma arte-papinha dada às bocas da elite, com gosto diluído de Brasil(eirxs) liquidificado(s). Corpos processados (assassinados e enterrados), digeridos, miscigenados como política de apagamento de Estado, eugenia. Política de nhac Eu-preto, eu-suburbano, eu-pansexual, eu-subjetivo: eus trazemos e eus somos meus territórios e eus estamos em deslocamento. NENHUM LUGAR A NÃO SER O CENTRO. NENHUMA DIREÇÃO A NÃO SER AO CENTRO. APÓS A DIÁSPORA, NENHUMA DIREÇÃO A NÃO SER AOS CENTROS DE SI. Eus (maior que eu) vamos elaborar um ataque e ele será como um autorretrato: performance de gira e roda. A imagem que falta é a nossa presença.

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- O ataque. NENHUM LUGAR A NÃO SER NO CENTRO (DA RETINA) (Pano em chamas.)

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Artigo A GRAVURA POLÍTICA DE RUBEM GRILO: PUBLICAÇÕES IMPRESSAS NO JORNAL MOVIMENTO

Beatriz Basile da Silva Raucher1 Victor de Oliveira Marcelo2

Resumo: O presente artigo propõe analisar a colaboração do artista Rubem Grilo para o Jornal Movimento durante a década de 70, período intensificado da Ditadura Militar no Brasil, tendo como base o levantamento do arquivo do jornal, fontes bibliográficas e registros de entrevistas com o artista. Pretende-se também compreender a relação entre a xilogravura e a ilustração, assim como aproximar a produção do artista a outros gravadores que dialogam com seu trabalho. Palavras-chave: Gravura, Ilustração, Jornal Movimento, Rubem Grilo.

1 Professora doutora no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: beatriz.rauscher@gmail.com 2 Graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: marcelo.victor2014@bol.com.br 22   |  revista da graduação eba/ufrj


Introdução O presente artigo recorta a análise da colaboração do artista Rubem Grilo para o Jornal Movimento durante a década de 70, período intensificado da Ditadura Militar no Brasil, tendo como base o levantamento do arquivo do jornal, fontes bibliográficas e registros de entrevistas com o artista. Nosso propósito foi entender a relação entre a xilogravura e a ilustração, assim como aproximar a produção do artista a outros gravadores que dialogam com seu trabalho. Será observada aqui a presença das relações entre arte e política na obra de Grilo. Partindo do campo da gravura, podemos observar que suas características processuais, como a gravação, a impressão e a multiplicação, são determinantes como dispositivo estético privilegiado para a arte crítica. Desde sua origem ela apresenta um caráter multi-exemplar sendo utilizada para a publicação impressa de imagens e textos com uma função gráfica.

A xilogravura consiste na arte da gravação (graphein) sobre a madeira (xylon). O modo de trabalho obedece a um procedimento simples e com o emprego de poucos materiais. Para Walter Benjamin (1994) com a xilogravura o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita. No entanto, outras técnicas de impressão que permitiam um desenho direto como a litografia e a gravura em metal, fizeram com que a xilogravura perdesse a prioridade nesse espaço. Seu retorno ocorrerá no século XX pelos artistas do Expressionismo, movimento de vanguarda artística, cuja temática enfatiza o drama humano. Esses artistas elevaram a xilogravura do ofício à linguagem ressaltando seus aspectos e a valorizando a expressão. No Brasil, a tradição da xilogravura está ligada às manifestações populares tais como o cordel, que já na década de 20 começou a confeccionar seus folhetos ilustrando-os desta forma na qual a imagem seguia o conteúdo imagético da poesia. De outro lado, artistas modernos egressos das vanguardas europeias, entre os quais destacam-se Oswald Goeldi e Lasar Segal, ajudaram a difundir a xilogravura no país e a formar uma geração de gravadores, alguns vinculados à gráfica impressa e ao trabalho da ilustração. ed. 6

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Na geração na década de 70 se insere o artista mineiro Rubem Grilo, que começou sua carreira no Rio de Janeiro em 1971 e em 1973 iniciou a colaboração em periódicos. O artista contribuiu com jornais como Opinião, Versus, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, Pasquim, além do Jornal Movimento de 1975 a 1979.

1. Artistas gravadores que publicaram ilustrações Fabrício Vaz Nunes (2015) propõe algumas formas de análise para a relação entre o texto literário e a ilustração, o que ajuda a entender o conceito de ilustração e como esta se apresenta no contexto da gravura. Para Foucault (2008), as palavras conservam sua derivação do desenho e estado de coisa desenhada. A imprensa, meio no qual será popularizada a escrita, tem sua origem na tipografia, desdobramento das primeiras técnicas de gravação e impressão.

O trabalho realizado em parceria entre um artista e um escritor para Nunes (2015) é uma tarefa complexa que revela afinidades, analogias, aproximações, do mesmo modo, que tensões e a defesa da autonomia das linguagens e das diferentes formas de expressão. Alguns gravadores colaboraram com a ilustração de textos literários e periódicos. Entre eles estão Axl Leskoschek (1889 - 1975) xilogravador austríaco que veio para o Brasil fugindo do nazismo e lecionou no Rio de Janeiro, tendo como alunos vários nomes da gravura brasileira. Ilustrou livros, a maioria publicada pela Editora José Olympio, entre eles as traduções brasileiras de Fédor Dostoïevski (1821 - 1881). Oswald Goeldi foi outro xilogravador que ilustrou textos literários, incluindo as Obras Completas de Dostoievski pela mesma editora, José Olympio. E na década de 40 se consolidou como ilustrador e começou a colaborar com o jornal A Manhã. Além destes, artistas como Poty Lazzarotto, Lívio Abramo, Hansen Bahia, entre outros, foram gravadores que colaboraram ilustrando trabalhos de escritores. As imagens que acompanham textos literários, na maioria das vezes, são criadas a partir do mundo do texto.

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Na ilustração literária em sua forma mais tradicional – ou seja, em que o trabalho gráfico é produzido posteriormente à obra escrita – as imagens “nascem” do texto, ou melhor: nascem de uma determinada relação estabelecida entre texto e ilustrador. Mas se o texto, por si só, não sugerisse a todos leitores, ilustradores ou não, uma série de “imagens”, como imagens verbais, a ilustração de livros de ficção não seria possível. Se a contaminação entre imagens e textos vale para as imagens, deve ser válida também para os textos. (NUNES, 2015, p.37)

No entanto, quando se trata da gravura usada no Jornal Movimento por Rubem Grilo o próprio artista em entrevista ao SENAC em 1999 diz que utilizou justamente a técnica da xilogravura para diferenciá-la de uma forma apropriada pela imprensa. Há uma distinção entre o trabalho de Grilo e a ilustração, se entendermos esta no sentido tradicional. Para Kornis (1985) no trabalho do artista a imagem não se subordina ao texto, enquanto a ilustração se situa como transposição visual deste.

2. Arte e política nos anos 70 no Brasil Nos anos 70 o Brasil passava pela Ditadura Militar (1964 a 1985), um contexto político de repressão ao que fosse oposto ao regime governamental. No cenário cultural as mudanças estimuladas pelo capitalismo favoreciam o consumo de massa e de produtos da indústria midiática norte americana. De outro lado estavam intelectuais e colaboradores de várias áreas que resistiram e foram responsáveis por uma produção cultural( ?) diversificada. Para Cayases (2014) a arte neste período é politicamente comprometida, não pelo tema, mas pelo meio, por esse ímpeto de sair na procura do público, sair às ruas em busca de pessoas para criar uma consciência do presente. Bases estas que já estavam sinalizadas nos anos 1950 e 1960. ed. 6

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Apesar das artes visuais não terem o mesmo impacto do cinema ou do teatro ou entendimento rápido como na música, havia nesse período um movimento de comunicação, de extrapolar as fronteiras institucionais. Nesse sentido, a gravura de Rubem Grilo em um jornal acompanhava essas mudanças.

3. Gravadores brasileiros contemporâneos a Rubem Grilo Os artistas se posicionaram nesse contexto, cada um à sua maneira, alguns produzindo trabalhos mais diretos, outros menos, porém sem deixar de serem críticos ao momento que o país passava. Nomes da gravura como Antônio Henrique do Amaral e João Câmara possuem características que podem ser dialogadas com a produção de Rubem Grilo. Antônio Henrique Do Amaral (1935-2015), paulista, estudou gravura com Lívio Abramo e no final dos anos 60 desenvolveu trabalhos em xilogravura como uma forma de crítica ao governo. O Brasil já vivia sob Regime Militar (1965-1985) que se tornou ainda mais repressivo nos anos 70. O enquadramento, o uso do preto e branco e a fragmentação do corpo são elementos perceptíveis tanto em seu trabalho quanto na obra de Grilo e, em ambos aparece contida a referência à tortura. Nas obras de Grilo este aspecto fica mais evidente com a presença frequente de muitos objetos pontiagudos e cortantes (Figuras 1 e 2).

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Fig. 1 – AMARAL, Antônio Henrique do. Consensus. 1967. xilogravura, p&b., 45,5 x 64 cm.

Fig. 2 – GRILO, Rubem. Jornal Movimento. São Paulo, n. 100, p. 02, 30 de maio de 1977. ed. 6 I julho 2019

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João Câmara é outro artista comprometido com uma visão crítica da sociedade. Esse artista paraibano teve uma produção que retratou as questões sociais e o período da Ditadura Vargas (1930 e 1945) entrelaçando ficção e dados históricos em uma série de pinturas e 100 litografias, intituladas Cenas da Vida Brasileira, realizadas de 1974 a 1976. Tanto nos trabalhos de Câmara quanto nos de Grilo a estranheza é uma marca (Figuras 3 e 4). Linhas finas demonstram a exímia habilidade dos artistas na gravação, revelando um trabalho minucioso.

Fig. 3 - CÂMARA, João. Magics Engraving. litografia, p&b., 21,5 x 35,5 cm.

Fig. 4 – GRILO, Rubem. Jornal Movimento. São Paulo, n. 20, p. 02 , 04 de fevereiro de 1977.

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4. O Jornal Movimento O Jornal Movimento surgiu em 1975 em São Paulo, como um jornal alternativo que acreditava na tarefa de que era possível não apenas descrever o mundo, mas ajudar a transformá-lo. O novo periódico surgiu como resistência ao fim do semanário Opinião, tendo a vontade de realizar um “jornal dos jornalistas”, feito da colaboração e financiamento coletivo, como aponta Azevedo (2011). Um jornal comprometido com a política e a crítica social. Rubem Grilo trabalhou na equipe na sessão de arte exercendo a função de desenhista, durante os anos de 1975 a 1979. Sua participação, assim como outros já vinha da experiência no Opinião. Em entrevista para Otto Reifschneider o artista explica as motivações para participar desses projetos.

Na época surgiram os jornais alternativos, com a publicação de bons desenhistas, o que me pareceu um caminho mais estimulante, longe dos impasses conceituais da arte. O resultado era direto. A imagem entrava em circulação. A função social da obra passava a se justificar somente pela circulação da obra, encontrando o leitor. (GRILO, apud REIFSCHNEIDER 2013, p. 129)

No arquivo do jornal cerca de 80 imagens foram publicadas durante os cinco anos, totalizando 49 edições, em que o artista colaborou. O ano em que Grilo mais publicou foi 1977. Ao todo foram sete capas e 14 imagens se repetem em edições e anos diferentes. A obra de Grilo se insere na história da gravura brasileira como legítima herdeira dos Clubes de Gravura os anos 50. Aracy Amaral (2003) revela que os artistas engajados nos clubes de gravura colocavam suas imagens em cima das notícias como comentário aos fatos políticos. E Costa (1994) complementa ao dizer que a gravura não abandonou a ilustração, tendo como tema o homem e a realidade social. Por este motivo manteve presente ed. 6

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a ligação entre arte e política, falando de si própria, da arte e do país, e é considerada, por este autor a ‘arte da luta’. É nessa vocação que a obra de Grilo se insere, não apenas no período da colaboração com Jornal Movimento, mas por toda sua carreira.

4. O artista Rubem Grilo Para Rubem Grilo a imagem é decorrência de muitos estudos em desenho que depois se tornam matéria para entalhar a madeira e fazer as impressões. Como coloca Paulo Herkenhoff (1996), “Grilo pensa com a faca de gravar, pensa gravando. Uma tarefa que requer muito tempo”. Do Rio, Grilo enviava suas impressões em xilogravura. O processo era ainda mais trabalhoso do que das ilustrações habituais. Eram gastos dois dias gravando a madeira para depois “carimbar” o papel aponta Azevedo (2011). E guardar as matrizes lhe permitia reimprimir as imagens em outros momentos. No jornal as imagens eram reduzidas por conta da diagramação e muitas vezes fragmentadas, exceto as capas, as únicas também que ganharam cores. Na maior parte do tempo elas serviam de ilustrações acompanhando textos jornalísticos e literários. Percebe-se ao comparar algumas dessas imagens em catálogos que elas apresentam títulos de cunho social (‘Crise do Capitalismo’, ‘Greve’, ‘Relações de Trabalho’, entre outros). As reais dimensões são relativamente pequenas, entre 20 a 30 cm, mas ricamente detalhadas. Em termos de análise das personagens e das cenas retratadas chama atenção a construção das figuras. As linhas finas do entalhe confeccionadas com buril lembram corpos dissecados. Personagens velhas e muitas vezes mascaradas aparecem nas cenas em uma clara referência ao caráter conservador e reacionário do governo da época. A construção ficcional, na sua obra, pode ser lida como uma metáfora da própria sociedade brasileira, que mantém estruturas arcaicas no poder.

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As figuras representadas não possuírem uma identidade específica que as caracterizem como alguma personalidade política da época. Isso diferencia a produção do artista do trabalho tradicional da ilustração jornalística como vistas em quadrinhos e charges. Em algumas imagens as figuras são fundidas a objetos ou a bichos e tornam-se híbridos. Como no surrealismo, seres fantásticos ganham vida e se manifestam em narrativas repletas de enigmas. É possível notar a presença da violência pelo uso contínuo de ferramentas que aludem à tortura, algo praticado por regimes autoritários e que aterrorizava o Brasil no período. Grilo evoca essa questão associando essa carga agressiva dos objetos a outros símbolos como a balança, referindo-se à justiça, ou os livros, ao conhecimento. A sutileza é uma estratégia das artes do período para passar pela censura, vistas à luz da história, as mensagens críticas são evidentes. O artista informa em entrevista que diferente da charge, mais facilmente compreendida por ser popular e lidar com assuntos de forma mais direta, a ilustração tinha camuflagem e podia ganhar impacto dependendo do contexto. Como aponta Rancière (2012) a arte é política antes mesmo de possuir uma mensagem política. Percebe-se isso no trabalho de Grilo que não oferece soluções, mas um sentimento humano de identificação com as pessoas.

O artista continuou colaborando com a imprensa após o período no Jornal Movimento (1975-1979). Ilustrou capas e livros para escritores, como Ferreira Gullar, Lygia Bojunga e Marina Colassanti e trabalhou para o fascículo Retrato do Brasil, um balanço do que foi o Brasil na Ditadura Militar.

Considerações Finais Este artigo procurou observar as imagens de Rubem Grilo para o Jornal Movimento ancoradas na contextualização das artes nos anos 70, inclusive da gravura e da ilustração, aproximando a produção do artista a de seus contemporâneos, para enfatizar sua relevância como presença política na arte brasileira.

As imagens de Grilo são singulares, pois nos revelam um retrato do cenário sociopolítico brasileiro, em uma abordagem quase surreal. Um trabalho ed. 6

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artístico com liberdade expressiva possibilitando inventar mundos fantásticos, mas que traz à tona uma faceta sincera da sociedade. A permanência de sua obra está na estranheza e no rigor dos detalhes. Muitas situações contidas nas imagens ainda ressoam tão fortes e atualizadas. Com sua produção o artista possibilita um olhar crítico para as relações humanas e sociais. Fica a questão: Até quando essas imagens irão ser vistas como resquício de antigas estruturas que insistem em continuar? Enquanto isso a arte e gravura como dispositivo estético poderá ser acessada pelos artistas para cumprir, para além da ilustração, um caráter crítico.

REFERÊNCIAS AMARAL, A. A experiência dos clubes de gravura. In: Arte pra quê?: a preocupação social na arte brasileira 1930-1970. 3. ed. São Paulo, Studio Nobel, 2003. p. 174-225 AMARAL, A. H. do. In: Antônio Henrique Amaral. Disponível em:https:// bit.ly/2zyknN8. Acesso em: 13 jan 2018. AZEVEDO, Carlos (Org.); AMARAL, M.; VIANA, N. Jornal Movimento: uma reportagem. Belo Horizonte: Editora Manifesto. 2011. 336 p. LESKOSCHEK, Axl. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <https://bit. ly/2Hu3gjR>. Acesso em: 10 de Fev. 2018. BENJAMIN, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. p. 165-196. CÂMARA, João. In: João Câmara. Disponível em: https://bit.ly/2Lk8D62. Acesso em: 13 jan 2018.

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Imagens AMARAL, Antônio Henrique do. Consensus. 1967. xilogravura, p&b., 45,5 x 64 cm. Disponível em: < http://www.antoniohenriqueamaral.com/gravura/ udo1es3r4lozty0j9n5jc8wvup4bzb>. Acesso em 10 de ago de 2018. GRILO, Rubem. Jornal Movimento. São Paulo, n. 100, p. 02, 30 de maio de 1977.

Disponível em: AZEVEDO, Carlos (Org.); AMARAL, M.; VIANA, N. Jornal Movimento: uma reportagem. Belo Horizonte: Editora Manifesto. 2011. DVD CÂMARA, João. Magics Engraving. litografia, 1974-1976, p&b., 21,5 x 35,5 cm. Disponível em: < https://www.joaocamara.com/obras_series/magicas/>. Acesso em 10 de ago de 2018. GRILO, Rubem. Jornal Movimento. São Paulo, n. 20, p. 02 , 04 de fevereiro de 1977.

Disponível em: AZEVEDO, Carlos (Org.); AMARAL, M.; VIANA, N. Jornal Movimento: uma reportagem. Belo Horizonte: Editora Manifesto. 2011. DVD)

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Artigo SOBRE A XILOGRAVURA NORDESTINA: BRASILIDADE,MODERNISMO E COMUNIDADE

Letícia Moreno1

Resumo: Neste artigo, investiga-se o senso de comunidade dentro dos preceitos criados pela organização do arquivo digital do Centro Internacional de Arte das Américas do Museu de Belas Artes de Houston, nos EUA. Ao pesquisar no arquivo digital, percebe-se a presença de documentos sobre xilogravura brasileira dentro do eixo documental referente a fazeres artísticos e comunidade. A partir disto, três documentos sobre xilogravura brasileira são selecionados e objetiva-se, neste texto, compreender as possibilidades de significado dentro dos três documentos distintos e possibilitar um novo olhar sobre a produção de arte moderna brasileira, ao abraçar a xilogravura nordestina como tema a ser pesquisado2.

Palavras chave: arquivo digital, arte latino-americana, xilogravura

1 Graduanda em História da Arte pela EBA-UFRJ, ilustradora autodidata, pesquisa a autonomia do desenho na arte contemporânea. Originalmente de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, hoje residente de Maricá. Letícia Moreno | leticiamoreno@live.com | UFRJ 2 Este texto é fruto de pesquisa realizada junto ao projeto Arte nas Américas: teorias e historiografias, sob orientação da professora Patricia Corrêa (EBA/UFRJ), com apoio do Programa de Bolsas de Iniciação Artística e Cultural da UFRJ. ed. 6 I julho 2019 35


Introdução A produção gráfica brasileira, em destaque a gravura, foi extremamente importante para a linguagem estética da arte brasileira durante a segunda metade do século XX,podendo ser considerada um resgate de referências artísticas e técnicas intrínsecas à brasilidade. A produção xilográfica brasileira, em destaque a nordestina, pode ser entendida como uma das facetas da modernidade artística brasileira, que se reapropriou das técnicas de impressão de tradições populares para o experimentalismo estéticoartístico. O empréstimo acadêmico, a necessidade de expressividade e linguagem particular, bem como os experimentalismos gráficos das últimas décadas do século XX,marcaram a presença da xilogravura na arte brasileira. Considerando a herança da arte moderna para o Brasil,chama atenção o fato de que a xilogravura não tenha sido muito trabalhada nas pesquisas do meio acadêmico. Entretanto, ao deparar-me com a presença de documentos que discorrem sobre a produção xilográfica brasileira, com destaque para a produção nordestina, em um arquivo digital de arte moderna latinoamericana de um museu em Houston, nos Estados Unidos, percebi a potência da gravura nordestina como representante da modernidade brasileira. Este encontro me motivou a investigar o contexto de inserção desses documentos e seus possíveis sentidos. O arquivo Digital Documents of the 20th-century Latin American and Latino Art3 faz parte do Centro Internacional de Arte das Américas (ICAA)4, que compõe o Museu de Belas Artes de Houston, nos EUA. O arquivo visa reunir documentação referente à produção artística das Américas Central e do Sul dentro do recorte temporal do século XX, uma vez que o Museu de Belas Artes de Houston possui acervo de arte latino-americana. O arquivo objetiva proporcionar visibilidade para o acervo e em geral para a produção da América Latina, distanciando-se da hegemonia artística estadunidense e europeia, assim possibilitando novas pesquisas, novos olhares, sobre a participação latino-americana dentro do campo da história, crítica e teoria da arte. 3 Em tradução livre: Documentos Digitais de Arte Latina e Arte Latino Americana do século XX. 4 Em inglês: International Center for the Arts of the Americas. 36   |  revista da graduação eba/ufrj


Para que o arquivo seja alimentado, grupos de pesquisa espalhados pelas Américas Central e do Sul, em países como México, Colômbia, Peru, Chile e Brasil, pesquisam documentação local sobre a atuação artística latino-americana dentro do intervalo de 1900 a 1999. Por ser um arquivo digital de fontes primárias, a gama de documentos que tratam destes assuntos é diversa, passando por folders e catálogos de exposições ocorridas nestes tempos à manifestos e publicações de críticos e historiadores da arte,todos bem-vindos como material a ser selecionado. Após esta triagem, os documentos são digitalizados e enviados pela internet para o Centro de Artes nas Américas, em Houston.

Chegando no ICAA, os arquivos passam por uma categorização. Acrescentam-se palavras chaves, que resultam da pesquisa anterior feita pelos centros, selecionando termos que resumem o assunto de cada documento; quando possível acrescentam-se sinopses em inglês e em alguns casos no idioma original, em espanhol ou português. E, por fim, a equipe Documentos Digitais setoriza os documentos em 13 (treze) eixos temáticos que dão conta de assuntos referentes à América Latina das formas mais distintas, abordando relações entre a produção artística, sociedade e política. Um dos eixos que reúne 600 dos mais de 8 mil documentos que hoje compõem o arquivo digital é intitulado como: “Em busca pela Democracia: Artes Gráficas e Construção de Comunidade” (originalmente:In Pursuit of Democracy: Graphics and Community-Building). Os documentos deste eixo tratam principalmente da produção latino-americana após Primeira Guerra Mundial, em torno de coletividades que se utilizavam dos artifícios dos fazeres gráficos, em destaque a produção impressa de baixo custo, como ferramenta de linguagem identitária e/ou estética. Ao estudar esta seção do acervo, três documentos foram selecionados para fins de melhor aprofundamento dos conceitos apresentados pelo tema do eixo.

Os documentos abordam a produção gráfica brasileira, especificamente da segunda metade do século XX, datados entre as décadas de 60 e 90. O fato de tratarem sobre a produção gráfica brasileira em um acervo internacional já pode despertar interesse,mas,outra característica dos documentos escolhidos é a abordagem da produção xilográfica nordestina. Portanto, compreender o senso de comunidade identificado pela equipe editorial do Documentos Digitais nesses documentos que tratam das narrativas da xilogravura nordestina e como estas narrativas se diferem, se reafirmam ou se encontram é, portanto, a intenção investigativa deste artigo. ed. 6

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“A Gravura na Bahia”, “A nova gravura de Juazeiro do Norte” e “Notas sôbre a xilogravura popular brasileira”. Os documentos selecionados são referentes à xilogravura na segunda metade do século XX, focando na produção nordestina em dois eixos: a gravura baiana e a gravura cearense. Cada um de uma natureza distinta, trazem informações relevantes sobre a xilogravura brasileira, igualmente sobre a compreensão do termo “comunidade” aplicado a estes documentos pelo eixo editorial ao qual foram associados no arquivo. O assunto do documento A Gravura na Bahia é a produção baiana de gravura presente na Bienal de São Paulo de 1966, presença que foi significativa a ponto de ter sido destinada uma sala especial para estes artistas na Bienal em questão. Riolan Metzker Coutinho, o autor, diz que há um retorno à gravura, especificamente xilogravura,e este retorno deve-se à presença de gravadores na Bahia por volta dos anos 1940.

As passagens, nos fins da década dos 40, de Poty, Goeldi e Marina Caran, que aqui trabalharam e expuseram, vieram despertar no meio bahiano de então a consciência das inesgotáveis possibilidades de uma técnica que, pela economia de meios que permite, estaria fadada, alguns anos depois, tornar o meio de expressão por excelência dos jovens artistas da Bahia. (...) A realização de urna xilo implica em gastos materiais mínimos e, por tratar-se de um processo de reprodução, pode ser vendida a preços bem mais acessíveis que uma pintura ou uma escultura(COUTINHO, 1967, p. 2,)[grifo nosso].

Segundo Coutinho (1967), pela facilidade que a gravura em madeira proporciona para a produção, como técnica, e pela presença de artistas como Poty Lazzarotto, Oswald Goeldi e Marina Caran, houve um resgate à gravura na Bahia, proporcionando, portanto, uma nova fase na produção.

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O autor, entretanto, não desconsidera a “predisposição” existente no estado, uma vez que as ilustrações de literatura em cordel eram feita sem xilogravura, deixando evidente que este fazer não era nenhuma novidade para os baianos. Com acréscimo da influência do grupo docente da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA)acima mencionados,criou-se um ambiente fértil para que este fazer obtivesse espaço na produção artística. Considerando o cenário acadêmico da Escola de Belas Artes da UFBA, qual seria a motivação destes jovens artistas em relação à xilogravura? Qual seria a razão pela escolha de xilogravura como método de expressividade enquanto era possível produzir através da pintura ou escultura, como explica Riolan? A razão era simples: esgotamento. Havia um desejo por uma linguagem artística que fugisse do cotidiano –o dia-a-dia da produção acadêmica – e que fosse uma nova linguagem. Este grupo de artistas que adotou a xilo como nova linguagem é chamado de “Escola de Gravura Baiana” pelo autor do texto. Cansados da produção artístico-acadêmica, decidem resgatar esta linguagem artística popular. E, por fim, Riolan (1967) cita os artistas que estavam presentes na Bienal e fazem parte dessa nova escola artística, descrevendo brevemente a expressão artística de cada um, sem detalhamento. O senso de comunidade neste contexto se mantém na produção artística regional, atingindo com mais força a de origem acadêmica – de artistas que foram formados pela academia e que estavam buscando uma nova linguagem de expressão artística. A Escola de Gravura Baiana apresentada por Riolan Coutinho é sinônimo deste interesse coletivo de possuir uma linguagem particular que fosse capaz de representar esta nova geração de artistas. Em ordem de aparição no texto, os artistas desta nova escola são: Hansen Bahia, Calasans Neto, José Maria, Miriam Chiaverini, Hélio Oliveira, Juarez Paraiso, Leonardo Alencar, Emanoel Araújo, Edson Luz, Gilberto Oliveira, Sônia Castro, Edízio Coelho, Gley e Adam Firnekaes. O objetivo desta comunidade consistia no fazer como linguagem expressiva, deixando de lado o fato de já haver um cenário preexistente da gravura na Bahia, mas sim, compreendendo a xilogravura como linguagem artística intencionalmente, sendo uma contraproposta ao que se produzia na época e igualmente como experimentalismo e descoberta do que a xilogravura poderia oferecer como material. ed. 6

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Outro ponto determinante para o senso de comunidade é o fato de pertencerem ao mesmo grupo acadêmico, o que confirma a afirmação de um esgotamento plástico no ensino de artes na segunda metade do século XX. Uma vez que o retorno à gravura ocorre no Brasil, deve-se considerar o cenário acadêmico como um dos influenciados por este momento. Tendo isto dito, constata-se que os artistas em questão foram ora alunos ora professores da UFBA, na área de Belas Artes. O segundo documento sob diagnóstico é A Nova Gravura de Juazeiro do Norte. Estruturalmente, este documento se classifica como um livro-catálogo referente ao novo cenário da gravura nordestina, com o foco em Juazeiro do Norte, no Ceará. Gilmar de Carvalho, o autor, se responsabiliza por reunir toda esta produção contemporânea de Juazeiro do Norte, a partir de um recorte temporal de 10 anos – de 1989 até 1999 – recolhendo toda produção gráfica que envolvesse a gravura nordestina ora como tema, objeto de estudo ou assunto. Gilmar define a “Nova Gravura” de Juazeiro do Norte sendo, portanto, a produção ligada a um grupo de gravadores cearenses que, na segunda metade da década de 1980, iniciaram ou retornaram a suas produções gráficas, apoiando-se na xilogravura,com o intuito de “valorizar a criação em detrimento da diluição”(CARVALHO, 1999, p.6).Essa nova gravura recuperava uma produção tradicional – a xilogravura – e usufruía dos meios tecnológicos em ascensão, proporcionando uma nova compreensão da xilogravura, incluindo temas mais lúdicos e menos associados à sacralidade. Resumidamente, os trabalhos presentes em A Nova Gravura de Juazeiro do Norte são sobre xilogravura de cordel, destacando sua função ilustrativa. Em comparação à “Gravura na Bahia”, este documento demonstra uma abordagem popular do uso da xilogravura, destacando sua aplicabilidade à literatura de cordel. Aqui, o senso de comunidade pode ser destacado pela vontade conjunta de se reapropriar de um fazer que já fora identificado como local e particular da região nordeste, como resistência artística e de identidade cultural, quando em Gravura na Bahia a comunidade se dá pelo experimentalismo coletivo, através da xilogravura. Deve-se destacar que no final do documento há uma grande lista com os nomes dos artistas responsáveis pelos trabalhos incluídos na exposição,em ordem cronológica.

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Finalmente, Notas sôbre a xilogravura brasileira trata da xilogravura como expressividade artística e como tentativa de trazer atenção à xilogravura brasileira, a fim de torná-la um assunto investigável. O autor, Roberto Pontual,entra em concordância com Gilmar de Carvalho, autor de A Nova Gravura de Juazeiro do Norte, ao proporcionar à xilogravura brasileira importância como resistência e identidade local. Como, de um modo geral, todos os diversos setores do que poderíamos chamar de criatividade de base - substituindo a expressão arte popular, não por inteiro adequada - também a xilogravura continua sendo, entre nós um campo de pesquisa quase inexplorado. Não se conhece estudo realmente amplo de sua incidência em todo território nacional, especialmente no Nordeste onde sua visualidade rude se espraia aos milhares de cópias acompanhando a saga do romanceiro popular, que passa de mão a mão, de olhar a olhar, de comentário a comentário, preservando os elementos genuínos de uma cultura ainda em estado bruto, mas, talvez por isso mesmo, repleta de riquezas expressivas (PONTUAL, s/d, p. 641)[ grifo nosso].

Pontual sugere profundidade nas pesquisas sobre xilogravura brasileira, com a intenção de trazer para o campo da história e teoria da arte brasileira a possibilidade de investigar aspectos de uma brasilidade estético-temática. O autor lamenta a falta de estudos sobre xilogravura brasileira, em comparação à outras manifestações culturais que refletem um caráter de brasilidade, especificamente a brasilidade pela ótica nordestina, tal qual a pesquisa sobre cerâmica popular. Também lamenta o caráter anônimo que a produção xilográfica popular (ou “de base”, como diz no início do documento) acabara adquirindo, o que impede uma pesquisa coerente. Pontual narra um ocorrido referente ao anonimato que rondava a xilogravura nordestina naquele momento: Com freqüência, ocorre certo alheamento em relação a dados pessoais e à situação de cada um dos gravadores no seu contexto econômico e social específico, o que permitiria ampliar de muito a correção do conhecimento; exemplo dêsse alheamento está na apresentação redigida por Ariano Suassuna para o ed. 6

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álbum Xilogravura Popular do Nordeste (...) com reproduções de trabalhos do poeta e gravador José Costa Leite: terminada sua leitura, fica-se sem saber qualquer coisa a respeito do autor das pranchas(...)(PONTUAL, s/d, p. 642) [grifo nosso].

A intenção de Pontual é, portanto, ampliar a definição de xilogravura para além de uma prática popular-folclórica. Isto é, há um resgate à xilogravura como instrumento comunicativo, artístico e como expressão cultural em si. Referente ao processo de legitimação na produção artística popular no Brasil, o autor narra um caso no segundo tópico do documento. Pontual ilustra o caso do escultor e gravador popular Inocêncio da Costa Nick, também conhecido como Mestre Noza, sendo uma figura que primeiro teve reconhecimento –e por consequência legitimação – na França, antes de ser notado por seu próprio país de origem, no início do século XX (PONTUAL, s/d, p. 642). Em suma, este documento apresenta fatos que incomodavam Roberto Pontual em relação à ausência da xilogravura brasileira como assunto na nossa história da arte, no momento em que o texto fora escrito. Agora, referente à ideia de comunidade proposta pela seleção editorial do ICAA, neste documento apresenta-se a prática xilográfica como uma produção literária coletiva. A xilogravura aplicada à produção cordelista como um fazer comunitário que une o fator literário (cordel) com o fator artístico-ilustrativo (xilogravura).

Afim de melhor contextualizar a potência e influência da regionalidade na estética da gravura nordestina, destaco a autora Maria Luisa Távora que em seu texto Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular discorre sobre dois artistas nordestinos formados pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro, igualmente durante a segunda metade do século XX. O texto da autora em questão não está no arquivo documental estadunidense estudado aqui, entretanto, sua leitura é interessante por revelar outras facetas da produção nordestina fora do eixo regional nordestino. O texto de Távora traz relatos de uma produção artística resultante do ambiente acadêmico carioca, falando sobre artistas formados pela Escola Nacional de Belas Artes, atual Escola de Belas Artes da UFRJ e da produção de

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artistas nordestinos como, Isa Aderne5 e Newton Cavalcanti6. A autora traça um breve histórico de cada artista, contextualizando-os. Ambos fazem um resgate da estética e da temática nordestina como uma espécie de trânsito entre o acadêmico e o empírico. Não sendo reducionistas, não se apropriam apenas de um modo de fazer estético, mas aglutinam a linguagem particular do Nordeste a sua existência plástica, sendo esta igualmente uma expressão pessoal do universo particular destes artistas. Há um retorno às próprias narrativas vivenciadas enquanto estavam no Nordeste e expressadas em seu fazer xilográfico.

O encontro promovido por esta dupla de artistas-gravadores, envolvendo uma atitude expressionista com o universo da cultura popular agudiza os termos arte/existência. Isa e Newton, herdeiros do legado expressionista, estabelecem um trânsito entre o universo popular e culto, promovendo circularidade entre as respectivas criações, diluindo fronteiras(TAVORA, 2015, p. 87).

Desta maneira, sua formação em ambiente acadêmico, suas influências diretas de artistas que já estavam estabelecidas no meio artístico foi, de fato, importante para sua construção de linguagem, entretanto, as experiências particulares com a cultura nordestina foram de igual importância. Além disso, pode-se perceber devido a este trânsito entre acadêmico e popular uma resistência da linguagem nordestina fora do seu eixo de produção: “Ambos rearticulam a experiência vivenciada, manejam um repertório da visualidade popular do universo nordestino, colocando o observador diante de problemas éticos, morais e políticos que lhe são contemporâneos” (TAVORA, 2015, p. 87).

5 Isa Aderne (1923-) é uma artista paraibana, nascida em Cajazeiras. Veio para o Rio de Janeiro em 1938, quando começou a estudar pintura no colégio Anglo-Americano do Rio de Janeiro. Em 1947 iniciou a formação em pintura na ENBA (TAVORA, 2015, p.83-84). 6 Newton Cavalcanti (1930-2006) foi um artista pernambucano, nascido em Bom Conselho de Papa Caça, em 1930. Em 1952 veio para o Rio de Janeiro, para estudar no Liceu de Artes e Ofícios e em 1954 entrou na Escola Nacional de Belas Artes(TAVORA, 2015, p. 80). ed. 6 I julho 2019 43


Considerações Finais Por fim, pensar no conceito de comunidade aplicado a cada um destes documentos resulta na seguinte definição: reafirmação artísticoregional através da xilogravura. Independente da linguagem estética ou da motivação de cada um dos pesquisadores, críticos e artistas, percebe-se uma potencialidade de compreensão da brasilidade através desta linguagem que é particular do Nordeste. Respondendo a indagação de Roberto Pontual ao declarar que a xilogravura se mantém um campo inexplorado (PONTUAL, s/d,p. 642), a presença destes documentos em um arquivo digital de acesso livreonline possibilita novas pesquisas e descobertas da produção gráfica brasileira na segunda metade do século XX, fazendo com que a xilogravura se torne um campo a ser explorado no meio acadêmico tanto brasileiro quanto internacional. Além disso, a presença destes documentos no ICAA inclui a xilogravura nordestina como sinônimo de arte latino-americana e arte moderna brasileira, compreensão esta que deveria ser amplamente disseminada, ampliando, portanto, para a história da arte brasileira a possibilidade de pesquisa de xilogravadores modernos e também suas narrativas em relação ao século XX. Portanto, deve-se reconhecer a potência que a arte popular, a arte empírica, os fazeres de resgate de uma regionalidade, ou de uma estética e narrativa diretamente ligada a esta particularidade podem proporcionar, principalmente para a história da arte brasileira, com novos entendimentos sobre a própria produção artística e também para o aprofundamento de conceitos de brasilidade a serem explorados.

Referências COUTINHO,Riolan Metzker. A gravura na Bahia. In.Primeira Bienal Nacional de artes plásticas: 1966/1967. Exh. cat., Salvador, Brasil: Governo do Estado da Bahia, 1967.

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CARVALHO, Gilmar de. A nova gravura de Juazeiro do Norte.Exh. cat., Fortaleza, Brasil: Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 1999. PONTUAL, Roberto. Notas sôbre a xilogravura popular brasileira”.In.Revista de Cultura Vozes.Petrópolis, RJ: Vozes, ano 64, v.LXIV, n.8, p. 53-58/p. 641-646. TAVORA, Maria Luisa Luz.Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular.In.Anais do XXXV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Novos Mundos: Fronteiras, Inclusão, Utopias. Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte - CBHA, 2015.

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Artigo A ARTE DO GRAFITE NA DEMOCRATIZAÇÃO DA CIÊNCIA

Ana Paula P. da Conceição Marcos Gonzalez de Souza

Resumo: O grafite se tornou uma forma de arte urbana que reúne adeptos e admiradores na contemporaneidade. Os assuntos abordados com essa linguagem visual são variados, inclusive – mas excepcionalmente – relacionados à ciência. A partir desse fato, buscamos descobrir, sob a perspectiva da epistemologia da Ciência da Informação e da Divulgação Científica, o potencial do grafite para a democratização do conhecimento e do método científico. A análise é realizada a partir de seis casos recentes de uso, concluindo que a arte se presta, com efeito, a diversas modalidades de divulgação, desde que devidamente contextualizado.

Palavras-chave: Divulgação científica, Ciência da Informação, Arte urbana.

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Introdução

A abordagem de assuntos científicos em artes urbanas ainda é algo diferente do que costumamos observar. Geralmente, os temas sociais são os mais frequentes nessa arte, bastando um percurso pequeno em uma metrópole para confiarmos nessa afirmação. Ao tratarmos de grafites de manifestação espontânea, a temática das ciências é um repertório pouco explorado . São raras as ocorrências, mesmo se contabilizarmos, de projetos que induzem a colaboração entre grafiteiros e cientistas. Há algum tipo de bloqueio do diálogo entre as ciências e essa produção artística. O uso do grafite como meio de acesso à ciência precisa ser investigado, e é um dos desafios enfrentados por aqueles que se arvoram sobre o tema. Contudo, de forma surpreendente, um grafite com abordagem científica pode emergir de algumas paredes, nos levando à busca de um entendimento sobre o que ele representa naquele momento. E são esses grafites que nos permitiram apoio para pesquisa inicial, e abertura para um caminho ainda pouco conhecido. Na pesquisa realizada buscou-se um olhar para o conteúdo estético dos grafites, e também seu papel na popularização da ciência, refletindo sobre como esse papel é desenvolvido, e se atinge seu objetivo de compreensão da ciência. Para isso, fez-se necessário o uso e cruzamento de bibliografias que abordam artes e ciências. O tema envolve questões minuciosas relativas ao público, artistas, e contextos históricos e sociais, que se expandem além de estudos bibliográficos sobre grafite, divulgação científica, e ciência da informação. Por isso, o que apresentamos aqui é apenas resultado de uma pequena parte de um estudo que se inicia e precisa ser pesquisado em suas mais variadas vertentes. O grafite científico, termo que usamos para tratar os grafites que abordam ciências exatas e biológicas, precisou ser desmembrado para facilitar o entendimento de cada parte, uma como arte e outra como ciência para que ao final possamos juntar e obter uma visão mais holística do que tratamos, direcionado à afirmação da hipótese do potencial positivo do grafite para divulgação científica. Isso fica mais esclarecido na nossa metodologia. ed. 6

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Sendo o grafite nosso sujeito principal de estudo, iniciamos uma busca na história da arte que nos levou a inúmeros casos sobre a utilização de paredes para atividade de expressão e comunicação do ser humano. O mais antigo e conhecido caso se refere às pinturas rupestres. Mas não só o período pré-histórico nos remete a utilização das paredes como forma de expressão. Alguns povos antigos , como os Egípcios, utilizavam pinturas em paredes de túmulos para narrar o cotidiano de vida de algum nobre falecido. Já nas paredes de Pompéia, cidade romana soterrada pelas cinzas do Vesúvio em 79 d.C., Garraffoni (2007) catalogou expressões imagéticas e epigráficas das mais variadas formas e funções, “pinturas de refinados estilos, grafites que tratam desde ofensas pessoais a poesias amorais, passando por ironias e charadas, além de propagandas eleitorais ou dos espetáculos públicos”. Trazendo para tempos mais modernos, séc. XX, a técnica do muralismo, de grande explosão e reconhecimento principalmente no México, também é um exemplo sobre como a parede é aproveitada como suporte para expressões artísticas, e críticas sociais e políticas. E talvez, tenha sido o lado mais “rebelde” do muralismo, junto à necessidade de expressão de jovens “sem voz” de grandes e problemáticas cidades, associados à dinâmica e rapidez de uso da tinta acrílica em spray, que fizeram surgir no período de 1960-70 as primeiras manifestações artísticas do grafite. O grafite é, grosso modo, uma apropriação visual do espaço urbano (KESSLER, 2008) que encontra abrigo preferencial nos muros e paredes da urbe. Como quase toda arte parietal, o grafite é livre, comunicativo e efêmero. A vivência, mesmo que de forma não acadêmica com o universo do grafite, nos permitiu observar que a cidade é tida pelos grafiteiros como espaço livre para desenvolvimento artístico, não existindo nesse universo a questão do público ou particular, e sim o conceito de liberdade de expressão através da arte. E as únicas regras existentes não vêm de fora, e sim deles próprios de maneira informal e através do tempo. E somente a própria liberdade do grafite e ação climática são capazes de criar sua efemeridade, uma vez que qualquer indivíduo pode interferir na arte, assim como ações naturais de períodos de sol, chuva e vento, fazendo-os irreconhecíveis ao que eram inicialmente e até mesmo provocando seu desaparecimento.

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Sendo assim, visitamos o terreno fluido desse movimento de vanguarda, caracterizado por uma documentação dinâmica, dispersa em sítios na internet, blogs e revistas on line, tão efêmera quanto o próprio objeto que documenta. Essas são as fontes com que podemos contar. Para fins de análise, tomamos a literatura sobre fenômenos conexos, particularmente as epistemologias da História da Arte, Ciência da Informação, e da Divulgação Científica, apresentando como resultado uma primeira interpretação sobre o potencial do grafite em processos de comunicação de temas científicos.

Amparo teórico Paulo Knauss (2001, p.342) descreve o grafite como um “registro gráfico capaz de tramitar mensagens através de desenhos, símbolos e letras, elaborados a partir de um repertório simbólico que pode ser comum à sociedade em geral ou apenas do conhecimento de determinados grupos de sujeitos”. Assim como grandes pinturas em museus e galerias, o grafite também é uma expressão gráfica, porém essencialmente direcionada fora de um ambiente fechado, dispondo-se assim a um público diversificado, cujo sentido da obra pode variar para cada indivíduo ou grupo. Para nossos fins, a definição de Knauss é suficientemente próxima daquela fornecida por Paul Otlet, em seu clássico Traité de documentation (1934), que delimita o conceito de documento como um “registro do pensamento humano e da realidade exterior em elementos de natureza material”, para que consideremos um grafite como uma espécie de documento.

Seguidores de Otlet desenvolveram os elementos relacionados ao signo documento e à comunicação da informação nele contida. Para Buckland (1991), por exemplo, o termo designaria “textos ou, mais exatamente, objetos portadores de texto”, não havendo razão para não estender a noção a fim de “incluir imagens, sons e até mesmo a intenção de transmitir algum tipo de comunicação, estético, inspirador, instrumental, seja qual for”(1991, p.353). E assim, o grafite como documento, se insere nesse perfil de um objeto visual e propício à intenção de se comunicar. Nele encontramos o lado material, estética da arte urbana, e também um conteúdo comunicativo. ed. 6

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Meyriat (2016) distinguiu a noção de natureza material (o objeto que serve de suporte, seu continente) de outra conceitual, o conteúdo da comunicação, isto é, a informação propriamente dita, considerando que ambas são inseparáveis. A definição, segundo este autor, é “válida para qualquer objeto e, por isso, é muito ampla”, não sendo sequer necessário que o objeto tenha sido produzido com o fim de informar. Mesmo que um grafite tenha sido realizado apenas por uma questão estética e sem nenhuma intenção de explanar determinados assuntos, em algum momento ele poderá representar significado a um grupo ou indivíduo. Ainda que sua função principal seja outra, “suportar informação” (ter um conteúdo) pode se tornar uma das funções de qualquer objeto, escrito, gráfico, fotográfico, desenhado ou filmado – inclusive um grafite, como queremos – a despeito da intenção de quem o criou, pois um objeto é documento para “aquele que nele busca informação, ou seja, que lhe reconhece uma significação” (MEYRIAT, 2016, p.242). Daí a diferença entre mensagem e informação postulada por Capurro (2003): a primeira é uma oferta de sentido de um emissor, a segunda, uma seleção de sentido, segundo um receptor. Na nossa análise de resultados pudemos observar alguns casos onde a oferta e a seleção de sentidos tornaram-se claras e fundamentais para traçarmos um perfil de divulgação científica do objeto de estudo. A informação é produzida dinamicamente quando o sujeito por meio de um documento chega a um “mundo da informação”. Esse fenômeno se revela mais complexo quando tal informação é concebida como esse produto de interação entre registros materiais e o estado do conhecimento de uma comunidade discursiva. Nesse contexto, a abstratização sintetiza elementos objetivos e subjetivos, combinando propriedades reais dos objetos com a atividade do sujeito.

Na área da Ciência da Informação, essa abordagem passou a ser denominada pragmática, termo emprestado à Filosofia da Linguagem, que diz respeito à “língua em uso, em diferentes contextos, tal como utilizada por seus usuários para a comunicação” (MARCONDES, 2005). Parte-se da premissa de que, mais do que a descrição do real, a linguagem é uma forma de ação e o significado é determinado no momento do uso. Torna-se decisiva, nessa perspectiva, a consideração do contexto em que um documento é instaurado, entendendo-se por contexto justamente a situação concreta (o lugar, o tempo, a identidade dos falantes etc.) que influencia a compreensão e avaliação do

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que é interpretado (ARMENGAUD, 2006), ou seja, de seu conteúdo a partir de sua forma situada. Por isso, ao trabalharmos nesta pesquisa relacionada ao grafite não estamos apenas observando a arte em si, mas também todo o meio que o envolve. Isso é primordial para um entendimento mais completo acerca do grafites científicos, uma vez que cada objeto está inserido em um todo. Apesar da especificidade, a visão abrangente é necessária. Observamos isso, por exemplo, no grafite “Eu amo o Rio” onde o mosquito Aedes Aegypti foi pintado junto à frase, chamando a atenção sobre os numerosos casos de dengue registrados na cidade do Rio de Janeiro. Nossa proposta foi analisar alguns grafites que foram, ou se tornaram, veículo de comunicação de temas de interesse da ciência, também à luz de um segundo grupo de categorias, as reflexões epistemológicas em torno do conceito de “divulgação científica”. Para Lewenstein (2003), frequentemente equipara-se “compreensão pública da ciência” com a “apreciação pública dos benefícios proporcionados pela ciência para a sociedade”, sendo que tais benefícios são valorados sob o ponto de vista dos cientistas, não dos leitores. Lewenstein denominou tal situação como modelo de déficit, “uma vez que descreve um déficit de conhecimento que deve ser preenchido, com a presunção de que, depois de corrigir o déficit, tudo será ‘melhor’ (seja o que isso signifique)”. Esclarecendo, é como se o receptor fosse apenas um ouvinte, e o mensageiro portador único do conhecimento. Lewenstein também identificou na literatura um modelo que chamou de contextual, em que projetos de popularização reconheceram que os indivíduos “não simplesmente respondem à informação como recipientes vazios, mas sim processam informações de acordo com esquemas sociais e psicológicos que foram moldados por suas experiências anteriores, contexto cultural e circunstâncias pessoais”. Nestas abordagens, os sistemas sociais e representações da mídia eram considerados capazes de “amortecer ou ampliar a preocupação pública com relação a questões”. E isso significa, neste modelo, que o receptor entenderá uma mensagem de acordo com o contexto de vida, com sua percepção de mundo. Um grafite exposto na rua está aberto a todo tipo de indivíduo com os mais variados contextos sociais, culturais e econômicos. A percepção de cada um sobre um mesmo objeto, no caso ed. 6

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o grafite, é diferente. Toda informação será processada de acordo com o próprio conhecimento adquirido. Já o modelo da experiência leiga, identificado por Lewenstein, incentiva o resgate do “conhecimento local, às vezes chamado de ‘conhecimento leigo’”, aquele extraído nas vidas, histórias de comunidades reais e o patrimônio cultural por elas cultivado. Ao contrário dos modelos contextuais, “que assumem o valor do conhecimento científico, mas reconhecem a complexidade de sua entrega”, assume-se aqui que o conhecimento local pode ser tão relevante para solucionar um problema quanto o conhecimento técnico. As atividades de comunicação, nessa perspectiva, “precisam ser estruturadas de forma a reconhecer informações e conhecimentos já realizados por comunidades que enfrentam problemas científicos e técnicos”. Assim, o receptor deixa de ser apenas um coadjuvante da ciência, e passa a ter seu conhecimento popular valorizado. Um grafiteiro que pratica sua arte há anos nas ruas, pode ter tanto conhecimento de técnicas quanto um artista plástico formado numa academia de Belas Artes. O modelo de engajamento público engloba experiências de atividades destinadas a aumentar a participação pública e, portanto, a confiança na política científica. Essas atividades, ainda conforme Lewenstein, incluem “conferências de consenso, júris de cidadãos, avaliações de tecnologia deliberativa, clubes de ciências, votações deliberativas e outras técnicas”(p.16). Inspiradas pelo compromisso de democratizar a ciência, o modelo estimula o controle social da ciência por meio de alguma forma de capacitação e engajamento político. Lewenstein conclui que modelos como os que propõe fornecem apenas “uma ferramenta esquemática para a compreensão da comunicação pública das atividades científicas”, mas que, na prática, “muitas atividades combinam elementos dos diferentes modelos”, por exemplo quando informações sobre questões científicas básicas (conteúdo científico) são incluídas nos materiais de base para atividades de engajamento público. Levando-o em consideração, dissertamos a seguir sobre alguns objetos e ações de grafite que poderiam ser, ou efetivamente foram contextualizados em eventos de comunicação de certos temas que nos permitiu classificá-los como científicos.

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Metodologia

Já discutido inicialmente sobre a questão histórica, o grafite como documento de pesquisa, e também sobre modelos de divulgação científica, apresentamos os casos de grafites que abordam temas científicos utilizados para a pesquisa: Grafite “Meu Carro não polui” realizado em uma carroça de um catador de materiais recicláveis. Projeto Pimp My Carroça Idealizado pelo grafiteiro Mundano (Figura 01); Grafite da abelha “Save de Bees” realizado em uma parede pública pelo grafiteiro Louis Masai (Figura 02); Grafite “He Art Beats”. Um grafite de coração anatômico idealizado pelo grafiteiro Lonac (Figura 03); Grafite “Escher”, em homenagem ao arquiteto e artista Maurits Escher, e realizado pelo projeto Graffiti y Mates da Espanha (Figura 04); Grafite “Flamingo dissecado” realizado pelo grafiteiro Nychos (Figura 05).

Fig. 01: Carroça grafitada pelo Projeto Pimp My Carroça. Fonte: Rede social @pimpmycarroca ed. 6

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Fig. 02: A abelha de “Save The Bees”. Fonte: ingervandyke.com

Fig. 03: O coração anatômico criado por Lonac. Fonte: site Hypeness

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Fig. 04: Grafite Escher pelo projeto Graffiti y Mates. Fonte: site do projeto Graffiti y Mates

Fig. 05: Flamingo Dissecado grafitado por Nychos. Fonte: site Rabbit Eye Movement ed. 6

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Para cada grafite em estudo, criamos e utilizamos um quadro para analisar características do grafite e da divulgação científica. Nas características do grafite entram os seguintes critérios: assunto (se está adequado às ciências exatas ou biológicas), contexto (questões sociais, culturais, temporais, e históricas que envolvem o grafite em análise), autor (biografia e interesses), acesso (facilidade de acesso do público em geral) e clareza ( se o grafite consegue ser “lido”, e não sofreu consequências danosas por ações naturais ou antrópicas). Quanto às características de divulgação científica, escolhemos critérios relacionados ao público (qual público alvo, a quem atingiu), mediação (se existiu a necessidade de alguém “explicando” sobre o grafite), conteúdo (narrativa visual do grafite), e o principal, cidadania (onde o objeto ou a ação de grafite coloca o receptor como cidadão). Ao final, através do preenchimento desse quadro de critérios, analisamos de maneira geral se o grafite em questão pode ser considerado um potencial divulgador de ciências, de acordo com a bibliografia consultada. Considerando o comentário do próprio Lewenstein, de que, na prática, muitas experiências “combinam elementos dos diferentes modelos”, ao invés colocar as teses em julgamento, preferimos elencar os “elementos” salientados pelas experiências, acreditando ser esta a melhor contribuição que um artigo exploratório como este pode oferecer. Em tese, o contexto é um elemento importante na leitura, ou interpretação, de um grafite científico. Nychos não o fomentou, nem ele surgiu espontaneamente a partir de sua obra. A despeito de toda cientificidade impregnada no autor e em sua obra, não encontramos notícia até o momento de que ela tenha estimulado uma atividade de divulgação científica. Os grafites de anatomia criados por ele parecem ter ficado circunscritas ao meio artístico. Mesmo quando ilustrou o prédio de uma escola, tratava-se de uma escola de artes visuais (a Miami Ad School, nos Estados Unidos ), durante um evento do mundo da arte (Art Base 2014 ). O caso de Lonac é diferente: ao apresentar seu coração ao mundo, pela internet, o grafiteiro croata deixou escapar uma frase (“the blood is pumping in a different direction”) que lançou luz sobre a verossimilitude da sua representação. A frase sugere que o próprio artista já havia sido tocado pela questão “científica”, enunciando a “perspectiva da ciência” como possível

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contexto de interpretação. Alguns internautas aderiram espontaneamente e, sob essa luz, criticaram-lhe o conteúdo. Masai e Mundano instanciam localmente contextos reconhecidos por uma boa parcela da população mundial – respectivamente, a conservação da biodiversidade e a sustentabilidade socioambiental. Já Graffiti y Mates leva em seu contexto a democratização da ciência. Algo muito parecido com esse projeto espanhol acontece também na Austrália e recentemente no Rio de Janeiro.

Uma iniciativa australiana, a Co-Lab: Science Meets Street Art , optou por induzir um contexto em que ciência e arte pudessem se encontrar: reúne anualmente, em Kingston, Camberra, jovens cientistas e grafiteiros para uma colaboração na produção de grafites inspirados em ciências, em eventos públicos realizados durante a Semana Nacional de Celebração da Ciência e da Tecnologia. A última edição foi realizada em 2017. (Figura 06) Já em 2018 no Rio de Janeiro, um projeto chamado Grafite da Ciência preencheu os muros do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, onde na inauguração do projeto foi realizado um encontro entre artistas e cientistas para discutirem assuntos relacionados a arte e ciência. (Figura 07). E antes mesmo do Grafite da Ciência, o Rio de Janeiro também já abrigava o projeto Saúde e Arte de Rua, realizado pela prefeitura da cidade, estimulando hábitos de vida mais saudáveis. (Figura 08) Outro elemento componente de atividades de divulgação científica é, assim queremos, sua causa. Por ansiar pela “ampliação do conhecimento e da compreensão do público leigo a respeito do processo científico e sua lógica” ou “esclarecer os indivíduos sobre o desvendamento e a solução de problemas relacionados a fenômenos já cientificamente estudados” e, assim, estimular-lhes a curiosidade científica (ALBAGLI, 1996), a causa da experiência Co-Lab , é “comunicar os interesses da comunidade científica” (LEWENSTEIN, 2003, p.4).

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Fig. 06: Grafite científico do Projeto Co-Lab. Fonte: site scstreetart.com

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Fig. 07: Painel do projeto Grafite da Ciência. Fonte: site Para Mulheres na Ciência.

Fig. 08: Grafite do projeto Saúde e Arte de Rua no Rio de Janeiro. Fonte: site da Prefeitura do Rio de Janeiro ed. 6

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Essa causa alavanca críticas por sugerir “um déficit de conhecimento que deve ser preenchido, com a presunção de que, depois de corrigir o déficit, tudo será ‘melhor’”. Deve-se lembrar, no entanto, que os temas abordados nas experiências Co-Lab dificilmente adviriam do senso comum e talvez não fossem cogitados nem mesmo por artistas de rua, mas são (ao menos do ponto de vista dos cientistas) de interesse de todos. E no mínimo porque envolvem financiamentos, públicos e privados, cujos interesses devem ser monitorados, uma vez que aponta sobre pesquisas que estão sendo realizadas. O projeto Save the Bees também revela um esforço movido por uma causa, ambiental, que é subsidiada pelo conhecimento científico, portanto não é pela causa que os projetos de Constable (idealizadora do Co-Lab) e Masai podem ser diferenciados. Se a promoção da saúde é uma causa científica, como nos parece, o projeto Saúde e Arte de Rua, revela-se um interessante caso de fusão, pois além de estimular na população hábitos de vida mais saudáveis, também abraçou causas não-científicas como “Diversidade” (Religiosa, de Namoro, de Tipos de Família), “Cultura de Paz” e “Não à violência contra a mulher”. Quanto à causa que move o projeto Pimp my Carroça, é declaradamente não-científica: “o que a gente fez”, lembra Mundano, “foi uma causa, os catadores”. Porém, neste caso, a ciência lhe fornece um discurso já legitimado para que se possa criar ressignificado a um negligenciado grupo de trabalhadores de rua. Ou seja, é a ciência dentro das questões ambientais que age para que o lado social possa ser valorizado. Outro elemento notável nos casos estudados é a participação ou engajamento do público. No Co-Lab, constitui-se um receptor. Aos participantes dos eventos, oferece-se de fato um texto escrito com considerações sobre os cientistas, suas pesquisas e suas impressões quanto à parceria com um artista. Os projetos Save the Bees, de Masai, e Pimp My Carroça, de Mundano, por sua vez, revelam outra modalidade de participação que os próprios títulos dos projetos, contendo verbos no imperativo, parecem corroborar: a mobilização em favor da causa.

Masai distribuiu sementes e vasos de planta para que participantes de uma ação de grafite colocassem em seus jardins e fortalecessem as populações de abelhas. Uma cineasta teve a ideia de fazer um filme quando viu sua “abelha

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gigante no lado de um edifício”. Com uma causa científica, mas preconizando engajamento, Save the Bees é uma daquelas atividades que combinam elementos de diversos modelos, como observara Lewenstein, e com informações sobre questões científicas básicas (conteúdo científico) incluídas “nos materiais de base para atividades de engajamento público”. Quanto ao Pimp My Carroça, reúne muitas das características de mobilização, basta observar as milhares de pessoas de vários países do mundo que participaram do financiamento e da execução dos grafites nas carroças.

Discussão Por fim, cabe discorrer sobre a cientificidade de um grafite. A primeira questão que os casos da realidade nos suscitam é quanto à precisão das informações. O coração de Lonac, por exemplo, foi interpretado como informativo a sua revelia. Independentemente de sua beleza ou não, havia ali uma suposta imprecisão. Pergunta-se, daí, o quão tolerante à “licença poética” deve ser uma ação de divulgação científica que tem como documento um objeto artístico?

Outro debate acerca da cientificidade também é saliente nos casos de uso: só a Ciência é “científica”? O que vem a ser o pensamento científico? O que diferencia conhecimento científico do que Lewenstein chamou de experiência leiga, que se forma com um conhecimento local acumulado? Não há como negar que Nychos, acostumado desde criança com a dissecação de animais de caça, detém um conhecimento “científico” sobre as anatomias que explora artisticamente. Constable (Co-Lab) atribuiu seu gosto pelo “meio ambiente e pela ciência em geral” a sua juventude numa fazenda de ovelhas. O projeto Save the Bees, de Masai, é tributário da observação de apicultores americanos, não de cientistas. E Mundano também não é cientista, mas sabe o suficiente a respeito de reciclagem e sustentabilidade para idealizar um projeto cujo sucesso muito deve à inteligência dos catadores, cuja experiência de trabalho nas ruas lhes permitiu apropriarem-se da metáfora proposta pelo “artivista”, traduzindo-a, inclusive, em sua própria voz. ed. 6

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“Reciclem os políticos” surgiu da boca de um deles. Os exemplos mostram que há mais conhecimento científico na sociedade do que aquele extraído da Ciência – e não estaremos necessariamente lidando com crendices populares a- ou anti-científicas.

Conclusão Para a questão sobre a existência de um potencial no uso do grafite em processos de comunicação e, mesmo, de democratização de questões e temas “científicos”, avaliamos que sim, o grafite é um documento de grande elasticidade funcional para tais fins. Quando à causa, foi produtivo tanto na veiculação de assuntos oriundos da Academia quanto dos de interesse mais próximo à população. A linguagem também se mostrou capaz de instigar formas de participação diversas (recepção, adesão, mobilização) e, quanto à sua cientificidade, há casos de uma divulgação científica inspirados, inclusive, no conhecimento proveniente da experiência leiga. Pareceram beneficiados especialmente aqueles usos de grafite que induziram ou aderiram a um contexto. As experiências descontextualizadas ou não suscitaram interpretação (Nychos) ou ela foi episódica (Lonac), confirmando as teorias pragmáticas da informação e as observações de que, espontaneamente, raramente lembramos da ciência.

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SULAIMAN, S. N. Educação ambiental, sustentabilidade e ciência: o papel da mídia na difusão de conhecimentos científicos Ciência & Educação, v.17, n.3, p.645-662, 2011. TAVARES, R. C.; CRUZ, I. A.; SOUZA, E., et al. O Grafite como linguagem para a promoção da saúde. Revista Saúde em Redes, v.2 (suplemento), n.1, 2016. VERGARA, M. R. Ensaio sobre o termo “vulgarização científica” no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História da Ciência, v.1, n.2, p.137-145, 2008. ZAMBONI, S. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. São Paulo: Autores Associados, 2006.

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Artigo ARTE E EDUCAÇÃO EM HOSPITAIS: OFICINAS DE ARTES NO NÚCLEO DE ESTUDOS DA SAÚDE DO ADOLESCENTE Thamires Burlandy da Mota Chagas1 Cândida Maria B. C. A. Rodrigues2

Resumo: Esse artigo consiste na apresentação de práticas e experiências oriundas das oficinas do projeto Casa Ateliê, realizadas no setor de atendimento ao adolescente no espaço ambulatorial pertencente ao Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA) do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Elas têm como objetivo a divulgação da arte e do fazer artístico, além de estimular trocas de experiências e reflexões a partir das linguagens artísticas com os adolescentes a espera pelo atendimento médico. Apontamos ponderações a partir das nossas atividades e vivências as estreitando com as metodologias ativas, valorizando o saber e a história de todos os participantes da oficina com o objetivo de os proporcionar novas vivências através da arte.

Palavras-chave: arte, educação, construtivismo.

1 Thamires Burlandy da Mota Chagas é graduanda em Artes Visuais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é bolsista do CNPq no projeto Casa Ateliê coordenado por Denise Espírito Santo. | e-mail: thamires.mota@yahoo.com.br 2 Cândida Bessa é graduanda em Artes Visuais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é bolsista do CNPq no projeto Casa Ateliê coordenado por Denise Espírito Santo. | e-mail: canbessa@gmail.com 68   |  revista da graduação eba/ufrj


Introdução: O Projeto Casa Ateliê no NESA As oficinas de arte que ocorrem no Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), dentro do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) são uma continuidade e um desmembramento de outras parcerias do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e de outras unidades do HUPE. Essas oficinas estão relacionadas ao projeto Casa Ateliê: Arte, saúde e educação, que tem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto Casa Ateliê é uma interface entre as áreas de artes, saúde e educação. Ele tem como proposta ser um espaço experimental de artes voltado para crianças e adolescentes que estão de alguma forma ligados ao Hospital Universitário Pedro Ernesto por questões de saúde em ambulatórios ou enfermarias. O projeto que se inicia em julho de 2018 buscou implementar oficinas com as linguagens plásticas e visuais, voltadas para crianças e os adolescentes com diferentes diagnósticos incluindo em alguns casos os vários espectros do autismo. O projeto Casa Ateliê se constitui, portanto de uma interface entre arte, saúde e educação e está atrelado à pesquisa e produção de metodologias e materiais pedagógicos voltados para um trabalho com pacientes infanto juvenis numa unidade de saúde pública. No âmbito do projeto são realizadas oficinas de artes no ambulatório do NESA que buscam estimular o interesse das crianças e dos adolescentes para as linguagens artísticas. O projeto tem constituído um espaço de trabalho em sintonia com as diferentes categorias profissionais (assistentes sociais, dentistas, enfermeiros, fonoaudiólogos, médicos e psicólogos) e contribui para a inserção da arte num ambiente hospitalar. A participação nas oficinas não é obrigatória, os participantes são convidados a vivenciar as oficinas de artes visuais, muitas vezes na companhia de seus pais ou responsáveis. Esperase que eles se predisponham a participar das atividades e contribuam para o desenvolvimento desta pesquisa que envolve estudantes da licenciatura em Artes junto a outros profissionais da saúde.

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O presente trabalho pretende apresentar a experiência das oficinas de arte com crianças e adolescentes que ocorrem no ambiente hospitalar, ligado ao NESA, sem se restringir ao atendimento relacionado à saúde mental.

As Oficinas de Arte Com a nossa experiência nessas oficinas de arte, no ambulatório NESA, temos constatado que é possível levar a arte para um espaço normalmente não esperado. As oficinas se tornam espaços de reflexões que demonstram ser transformadores para os participantes. O NESA é um prédio de três andares para o atendimento predominantemente dos adolescentes; e atuam nele diversos profissionais da área de saúde. Existem trabalhos de rodas de saúde e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Com o projeto Casa Ateliê foram incluídas nesse setor as oficinas relacionadas às artes. O nosso público alvo nas oficinas são os adolescentes em atendimento no NESA, contudo, no decorrer das atividades, a participação foi estendida para as pessoas que acompanhavam os pacientes, desde os pais, ou avós, irmãos mais novos ou mais velhos, enfim, todos os presentes no ambulatório que demonstram interesse em participar. Segundo nossas expectativas, todos os adolescentes iriam se engajar com esta oportunidade de preencher o tempo ocioso à espera do atendimento de saúde, com práticas prazerosas, oportunidade de experimentar materiais artísticos e técnicas usadas algumas vezes apenas na escola, quando esta oferece esse tipo de material. Com o passar do tempo, percebemos que nem todos os adolescentes se interessam em se envolver com o projeto. A participação nas oficinas demonstrou ser variada. As crianças são as primeiras a se aproximar atraídas pelas tintas e pelos materiais (Figura 01).

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Fig. 01: Oficina de arte. Fonte: Acervo Casa Ateliê

Nossas oficinas acontecem num ambiente em que normalmente os jovens, que na maioria dos casos estão acompanhados de seus parentes que são tanto adultos como crianças, esperam pelo atendimento por muito tempo, às vezes por horas. Com isso, eles ficam entediados por permanecerem sentados em frente a uma televisão que exibe sempre a mesma programação. Quando chegamos e convidamos a todos para participarem de uma atividade que extrapola a normalidade monótona do contexto, temos esse tempo vago de espera e a curiosidade dos pacientes e acompanhantes ao nosso favor. Os participantes chegam com níveis de interesse e bagagem de conhecimento diversos. Alguns participam pela curiosidade, outros não acreditam que são capazes, e ainda alguns, por possuírem maior domínio da atividade plástica proposta no dia, criam algo mais do que é esperado. Nesse aspecto são levantadas reflexões pelo grupo, e percebemos trocas de experiências e interesse pelo trabalho do outro. As histórias se tornam parte no fazer das oficinas, sem que tivéssemos essa intenção prévia. Os participantes compartilham conosco e com os demais integrantes alguns ed. 6

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dos seus conhecimentos, contam sobre as suas vidas, histórias de amigos e parentes o que registram em desenhos e pinturas. No final, a maioria gosta de expor o seu trabalho no nosso mural, dando a oportunidade de ele ganhar a visibilidade de outras pessoas que passam por lá. Eles se tornam, com a troca de diálogos e imagens, agentes ativos de reflexão sobre algumas situações do cotidiano. O encontro de várias pessoas de lugares diferentes do Estado do Rio de Janeiro, com realidades sociais, econômicas e culturais distintas, nos traz ponderações inesperadas por causa dos pontos de vista muito diferentes. Somos beneficiadas com esta prática, pois ela é uma via fluida de mão dupla de informações e experiências. Nesse sentido, nossas práticas se estreitam com a teoria construtivista, pois a:

troca do repasse da informação para a busca da formação do aluno; é a nova ordem revolucionária que retira o poder e autoridade do mestre transformando-o de todo poderoso detentor do saber para um “educador – educando”, segundo as palavras de Paulo Freire, e esta visão deve permear todo um “ambiente construtivista” (ARGENTO, s/d., p.12).

Ensinamos e aprendemos a ensinar no mesmo espaço-tempo. Na medida em que agimos recebemos reações que nos indicam os caminhos que devemos seguir, por exemplo, ao tratar de um determinado assunto na roda da oficina, recebemos em troca relatos de experiências, histórias, que assim iluminam as linhas da rede de conteúdos possíveis para trilharmos em busca de uma nova experiência interessante para os participantes. Na oficina sobre pintura de corpos diferentes, onde iniciamos a discussão sobre a estética do corpo humano, tivemos a participação da mãe de um paciente que pintou conforme a proposta de produzir um corpo fora dos padrões e nos trouxe uma reflexão diferente da qual estávamos tendo com a inscrição: “um corpo preso no caos da sociedade” (Figura 02).

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Fig. 02: “Um corpo preso no caos da sociedade”. Fonte: Acervo Casa Ateliê

O contrário também acontece: os participantes sugerem práticas diferentes da proposta e a partir dela tecemos novas reflexões, como ocorreu na oficina de pintura da Mandala dos Desejos, onde o objetivo primário era desenhar e pintar representações de desejos de cada um. Neste caso, a prática se expandiu para a área da experimentação dos materiais, como as colas coloridas, giz a óleo, criando imagens que extrapolam os desejos, transformando-se em abstrações, formas, cores e texturas. O que constatamos, cada vez mais, é que a aprendizagem por meio da transmissão é importante, mas a aprendizagem por questionamento e experimentação é mais relevante para uma compreensão mais ampla e profunda. (MORAN, 2018, P. 2). ed. 6

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Estamos constantemente aprendendo também com os nossos desafios, e um deles é trazer o público alvo, os adolescentes que estão a espera pelo atendimento dos profissionais da saúde, para discutir e fazer conosco nossas propostas oriundas do campo da arte. Ao falar sobre suas experiências, todos igualmente ouvem os demais. Este momento propicia uma reflexão coletiva a respeito da alteridade. A prática de levar a arte em seu sentido mais amplo para o espaço da oficina no hospital, onde habitualmente não se trabalha esta linguagem, pode e já é feita em outros contextos, como é o caso de oficinas de artes em comunidades. Por conta disso, é uma necessidade atual dos professores que atuam nessas áreas, investigar metodologias que despertem o interesse e engajamento dos integrantes.

A aprendizagem é mais significativa quando motivamos os alunos intimamente, quando eles acham sentido nas atividades que propomos, quando consultamos suas motivações profundas, quando se engajam em projetos para os quais trazem contribuições, quando há diálogo sobre as atividades e a forma de realizá-las. (MORAN, 2018, P. 6).

Diante deste panorama, tivemos aderências diferenciadas de acordo com a proposta das oficinas, ao convidarmos não somente os jovens, mas todas as pessoas presentes no ambulatório. Adolescentes e crianças demonstraram interesse imediato com as oficinas de colagem e Mandala. Já as oficinas de Mandalas de lã, onde ensinamos a técnica necessária para produzi-las, as responsáveis pelos adolescentes demonstraram interesse tanto quanto eles, às vezes até mais, vindo a participar primeiro e encorajando os filhos a fazer o mesmo. Já com as oficinas de pintura, atingimos mais as crianças presentes no ambulatório. Nestas oficinas, percebemos que parte dos jovens ficou mais interessada no celular do que em participar, como se pintar fosse coisa apenas para crianças.

A diversidade etária das oficinas nos incentiva a aprender a diferenciar e adequar as metodologias que mais servem para cada participante. Por exemplo, ao explicar os procedimentos de feitura da Mandala de lã, os adolescentes compreendem mais rapidamente a técnica solicitada e

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trabalham simultaneamente. As crianças, no entanto, demandam mais tempo de compreensão e, com isso, um auxílio mais personalizado. Nesse sentido, temos a possibilidade de aprender algo novo tendo como base as nossas experiências na formação de esquemas de conhecimento. Este processo pode ocorrer durante toda a nossa vida.

[...] numa perspectiva de equilibração, deve procurar-se nos desequilíbrios uma das fontes de progresso no desenvolvimento de conhecimentos, pois só os desequilíbrios obrigam um sujeito a ultrapassar o seu estado atual e procurar seja o que for em direções novas...” (Piaget, O Desenvolvimento do Pensamento). [...] é o desequilíbrio que produz a motivação necessária para o sujeito buscar o conhecimento capaz de promover o retorno à sua condição de equilíbrio anterior. É a urgência em restabelecer sua capacidade de organizar a experiência, de interpretá-la, que alimenta os esforços em direção a uma equilibração de melhor qualidade e alcance. Isto posto, apenas o sujeito pode atuar com a intenção de restabelecer sua compreensão. (SILVA, 2012, p.211)

Nós também criamos desafios para os participantes, podendo talvez levar algum deles ao processo no qual Piaget (1975) define como assimilação: [...] é o processo cognitivo pelo qual uma pessoa integra (classifica) um novo dado perceptual, motor ou conceitual às estruturas cognitivas prévias (WADSWORTH, 1996). Ou seja, quando a criança tem novas experiências (vendo coisas novas, ou ouvindo coisas novas) ela tenta adaptar esses novos estímulos às estruturas cognitivas que já possui. O próprio Piaget define a assimilação como (PIAGET, 1996, p. 13): (...) uma integração a estruturas prévias, que podem permanecer invariáveis ou são mais ou menos modificadas por esta própria integração, mas sem descontinuidade com o estado precedente, isto é, sem serem destruídas, mas simplesmente acomodandose à nova situação. (ARGENTO, s.d., p.5). ed. 6

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Quando, por exemplo, propomos a oficina de ponto, linha e cor com o objetivo de os adolescentes produzirem figuras sobre o papel apenas com linhas de lã coloridas, naquele instante estamos trazendo à tona o conhecimento prévio deles sobre desenho. Ao utilizarem as estruturas motoras (riscar, pintar, articular) e intelectuais (técnicas, imaginação) que já possuem, eles tentam se adaptar a uma nova estrutura: o desenho feito de linha de lã. Adaptam-se à ausência de um instrumento previamente conhecido por eles e que seria responsável por pigmentar o papel. E aprendem a lidar com a maleabilidade da linha, quando ela própria se torna a coloração do papel. No entanto, quando propomos a oficina de Mandalas de lã, nenhum participante demonstrou saber previamente como confeccioná-la. Foi necessário ensiná-los a técnica essencial para se obter o modelo proposto da Mandala. No entanto, nos escapa a certeza sobre a estrutura inédita adquirida por eles com a técnica, pois cada participante possui suas experiências anteriores que também poderiam os levar ao resultado desejado. Se houve um aprendizado inédito entre os participantes, pode ter desencadeado o que (PIAGET, 1975) define como acomodação:

[...] a acomodação acontece quando a criança não consegue assimilar um novo estímulo, ou seja, não existe uma estrutura cognitiva que assimile a nova informação em função das particularidades desse novo estímulo (NITZKE et alli, 1997). Diante deste impasse, restam apenas duas saídas: criar um novo esquema ou modificar um esquema existente. Ambas as ações resultam em uma mudança na estrutura cognitiva. Ocorrida a acomodação, a criança pode tentar assimilar o estímulo novamente, e uma vez modificada a estrutura cognitiva, o estímulo é prontamente assimilado. (ARGENTO, s.d., p.6)

Já para as oficinas de pintura com guache, correndo o risco de todos já terem tido uma experiência com tinta e pincel, utilizamos a estratégia de disponibilizar apenas tintas de cores primárias. Isto levou os adolescentes a solucionar a ausência das cores secundárias, terciárias, e assim por diante,

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criando e experimentando misturas de tintas. Avaliamos positivamente o resultado, tendo muitos dos participantes se engajados mais com a feitura de novas tonalidades do que com a própria pintura. Nesta perspectiva constatamos conforme José Moran que: A aprendizagem mais profunda requer espaços de prática frequentes (aprender fazendo) e de ambientes ricos em oportunidades. Por isso, é importante o estímulo multissensorial e a valorização dos conhecimentos prévios dos estudantes para “ancorar” os novos conhecimentos. (MORAN, 2018, P. 3).

Neste sentido, não há preocupação de os adolescentes manterem o foco na proposta inicial da oficina, pois o que mais nos interessa é proporcionar experiências novas a eles, ou seja, uma interação do sujeito com o objeto, sendo esta uma iniciativa própria deles. Desta maneira, eles se apropriam do objeto e do meio criando novos artefatos e novas reflexões relevantes para si. Segundo Lilian Bacich e José Moran:

As pesquisas atuais nas áreas da educação, psicologia e neurociência comprovam que o processo de aprendizagem é único e diferente para cada ser humano, e que cada um aprende o que é mais relevante e que faz mais sentido para ele, o que gera conexões cognitivas e emocionais. Metodologias ativas englobam uma concepção do processo de ensino e aprendizagem que considera a participação efetiva dos alunos na construção da sua aprendizagem, valorizando as diferentes formas pelas quais eles podem ser envolvidos nesse processo para que aprendam melhor, em seu próprio ritmo, tempo e estilo. (BACICH e MORAN, 2018, p. VX).

Isso ocorreu com frequência na oficina de Pintura de Corpos Diferentes, onde nós instigamos os participantes a pintarem pessoas com corpos fora dos padrões de beleza. As crianças pequenas normalmente fazem os desenhos que já estão acostumados a fazer, independentemente de estarem ou não ed. 6

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dentro da proposta. Nesses casos, como ainda estão desenvolvendo suas habilidades psicomotoras, já consideramos válida a experiência. Por outro lado, os adolescentes comumente integram a proposta, mas há aqueles que não atendem a recomendação e pintam conforme seus desejos. Assim, tivemos desde pinturas abstratas a protestos, como foi o caso de um jovem que pintou uma estrada que atravessava toda a extensão da folha, três barracos pequenos no alto e uma inscrição “As favelas pede paz”.

Fig. 03: “As favelas pede paz”. Fonte: Acervo Casa Ateliê

A superfície de uma folha se torna então, uma janela para exteriorizar algo particular no qual queiram compartilhar com orgulho ou denunciar com revolta, como o caso desse jovem. Com isso, podemos perceber a

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possibilidade de fazer e causar uma sensibilização através de uma imagem feita apenas com quatro elementos organizados de forma esquemática. Este em questão possui apenas o céu azul, os três barracos vermelhos, a estrada e nos arremata com esta inscrição. Definitivamente não se é necessário saber técnicas avançadas do campo da arte para se expressar artisticamente.

Considerações Finais

A Casa Ateliê se torna, sem pretensão, um espaço de acolhimento para estimular e divulgar o conhecimento das artes, de alguns conhecimentos técnicos e do conhecimento formal da história das artes, dos artistas e alguns conceitos. É um espaço de acolhimento para que sejam afastados os sentimentos de insegurança, baixa autoestima e incapacidade. Esse espaço torna o fazer plástico prazeroso e desperta o desejo de experimentar novas linguagens. Como o fazer plástico não tem um único caminho, ao contrário, é estimulado o encontro da linguagem e da técnica do material para criar algo particular, e aumentar a sua troca de experiência do fazer com os demais, bem como as suas reflexões sobre aquela vivência e a vida.

Referências: AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

ARGENTO, H. Teoria Construtivista. Cognição e multimídia, s.d. Disponível em: <https://bit.ly/2LhH294>. Acesso em 13 fev. 2019.

BACICH, L.; MORAN, J. (Org.) Apresentação In: Metodologias Ativas para uma Educação Inovadora. Porto Alegre: Penso, 2018. ed. 6

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MORAN, J. (Org.) A sala de aula invertida e a possibilidade do ensino personalizado: Uma experiência com a graduação em midialogia. In: Metodologias Ativas para uma Educação Inovadora. Porto Alegre: Penso, 2018. NITZKE, J.; CAMPOS, M. e LIMA, M. “Teoria de Piaget”. In Piaget. 1997. PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. PIAGET, J. Biologia e Conhecimento. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. SILVA, Sérgio Antônio da. “Conflito Cognitivo: Herói ou Vilão?” In: Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas. Marília: Unesp, vol. 4, n.1, jan. -jul. 2012. Disponível em: <https://bit.ly/2L1ULyE> Acesso em: 10 abr. 2019.

WADSWORTH, B. Inteligência e Afetividade da Criança. 4a ed. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli, 1996.

Imagens: CHAGAS, T. “Um corpo preso no caos da sociedade”. 2018. Fotografia. Rio de Janeiro. CHAGAS, T. “As favelas pede paz”. 2018. Fotografia. Rio de Janeiro. MELLO, A. Oficina de arte. 2018. Fotografia. Rio de Janeiro.

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Artigo FRONTEIRAS DO EU E DO OUTRO: A PELE NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Tadeu Ribeiro1

Resumo: Este artigo propõe possibilidades de olhar para poéticas da arte contemporânea que suscitam a noção de pele como espaço fronteiriço e transicional onde se desdobram relações com o outro. A pele é aqui tomada como campo de disputa no qual se travam essas negociações, reconstruções e fricções. O desmembramento da ideia de corpo como objeto fechado e coeso (para possibilitar a construção de outras noções de corpo e pessoa) é o fio condutor para a reflexão sobre as potências de um corpo expandido, ampliado, que já não coincide com os contornos da pele.

Palvras-chave: pele, arte contemporânea, corpo.

1 Tadeu Ribeiro é bacharel em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrando na linha de Estudos Críticos das Artes do Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve pesquisa sobre o corpo na arte contemporânea. | tadeu. ribeiro.rodrigues@gmail.com, PPGCA-UFF ed. 6 I julho 2019 81


Em seu romance O cavaleiro inexistente, publicado em 1959, Italo Calvino narra a inusitada trajetória de Agilulfo, paladino do exército de Carlos Magno, que se distingue por intrigante condição: ele não existe. Não há vestígio da presença de um corpo dentro da exuberante armadura branca. Apesar de sua disciplina, coragem e alto grau na hierarquia militar carolíngia, tal característica o fazia diferente dos demais. Indagaram-lhe certa vez: “Deve ser pesado (...). E a armadura, nunca sai de dentro dela? Agilulfo então responde: “Não há dentro nem fora. Tirar ou pôr não faz sentido para mim”. A desconcertante característica de Agilulfo tensiona um aspecto fundamental da noção de pessoa: o binômio dentro-fora, a partir do qual um indivíduo se fabrica como idêntico a si mesmo no contato de alteridade com aquilo que lhe é outro (interior, superfície e exterior). O cavaleiro de Calvino é apenas sua pele, não se encarna por inteiro, e, ao longo da narrativa, são apresentadas suas angústias frente a tal situação:

Localizou-se debaixo de um pinheiro, sentado no chão, arrumando as pequenas pinhas caídas segundo um desenho regular, um triângulo isósceles. Na hora do alvorecer, Agilulfo precisava sempre dedicar-se a um exercício de precisão: contar objetos, ordená-los. (...) nesse meio tempo atravessam uma espécie de limbo incerto (...): a hora em que se tem menos certeza da existência do mundo. Ele, Agilulfo, sempre necessitara sentir-se perante as coisas como uma parede maciça à qual contrapor a tensão de sua vontade, e só assim conseguia manter uma consciência segura de si. Porém, se o mundo ao redor se desfazia na incerteza, na ambiguidade, até ele sentia que se afogava naquela penumbra macia, não conseguia mais florescer do vazio um pensamento distinto, um assomo de decisão, uma obstinação. Ficava mal: eram aqueles os momentos em que se sentia pior; por vezes, só às custas de um esforço extremo conseguia não dissolver-se. (CALVINO, 2013, p.20-21)

O terror em dissolver-se no mundo marca a existência de Agilulfo, que busca na experiência a substância de sua identidade: um corpo que não

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coincide com seu sujeito, figura que não remete a uma pessoa encarnada. Se um Eu coincide com um corpo, isto é, se a delimitação de cada indivíduo é definida pelos contornos de sua pele, o que afinal a armadura branca do personagem de Calvino encerra dentro de si, uma vez que não há dentro ou fora? Que possibilidade de Eu está no entre? Jean-Luc Nancy, ao refletir sobre a questão do corpo, afirma que este “diz inicialmente a distinção frente ao outro: o contorno onde começa e termina uma existência” (2015, p.7). O autor prossegue: “existir significa distinguir-se tanto do nada como de outras existências. (...) Nunca há, portanto, um corpo sem outros corpos”. Se as fronteiras do corpo de Agilulfo são sua própria existência e este Eu não coincide com seus contornos, que separa um interior de um exterior, talvez seja possível conceber um Eu que não coincida com um corpo. E, por conseguinte, um corpo cuja extensão não coincide com as fronteiras de sua pele. A pele, maior órgão do corpo humano, é também a superfície através da qual nos fazemos visíveis ao Outro e a nós mesmos. A pele indica um sistema virtualmente fechado, perfeito em si mesmo: “a pele perfurada, esburacada por uma arma, deixa a vida ir embora. A pele intacta guarda a vida, mantendo-a acumulada dentro de si” (ibid., p.55). Na medicina ocidental, o pudor em lacerar a pele humana marca um extenso período na concepção moral do corpo: apenas no século XVII temos registrada, por exemplo, a primeira descrição anatômica da circulação sanguínea. A pele rasgada liberta monstruosidades.

No século XIX, a pele já era utilizada para a elaboração de poéticas sobre corpos distópicos e disruptivos. No romance Frankenstein, de 1818, Mary Shelley narra as experiências de um cientista que dá vida a um ser híbrido a partir de excertos de diferentes corpos humanos. A monstruosidade da criatura está em perverter a pureza e a unidade de um Eu coeso, reunindo diferentes peles costuradas. De modo análogo, na mitologia grega, o escalpelamento aparece como punição de Apolo ao sátiro Mársias, que, com sua flauta, ousa desafiar a lira do deus olímpico. Escorchado, sem a pele que protegia sua carne contendo seu interior, Mársias torna-se criatura abjeta, perde sua dignidade de indivíduo, destituído do órgão que o separa do mundo e resguarda seu sentido. Em ambos os casos, a pele surge como elemento de legitimação de um Eu, enquanto sua ausência ou debilidade marca uma perda de si. ed. 6

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Se na célebre frase de Paul Valéry “o mais profundo é a pele”, a arte contemporânea cria possibilidades de restabelecer as fronteiras de si. A obra Divisor (Figura 1), de Lygia Pape, é composta de mais de uma centena de pessoas cujas cabeças irrompem de um imenso tecido branco. Ao transpassarem com o pescoço cada um dos orifícios dispostos no pano, os participantes tornam-se um só corpo, como num gigantesco e pulsante organismo que indiferencia suas partes. Há ali uma comunhão a ser experimentada: ao espectador é lançada a proposta de repensar seu corpo, sua propriocepção, sua espacialidade. O Cérbero de Pape perverte a lógica cefalocrática do corpo humano, embaralhando as hierarquias da verticalidade. Como num colossal xifópago branco, os contornos de cada indivíduo são redesenhados, dinamitando a noção prevalente de indivíduo. Sobre corpos atravessados por uma noção dilatada de pessoa, o sociólogo David Le Breton diz:

A emoção une provisoriamente os indivíduos num sentimento de fazer-se um com a equipe, dissolvendo-se em um nós espetaculoso. O corpo como fronteira de identidade é então esquecido. O mesmo ocorre nos protestos de rua, onde os manifestantes são levados por um sentimento de unidade, em função de um combate comum. Os foliões carnavalescos, de uma festa, de uma rave party, compartilham do mesmo sentimento de que as fronteiras do próprio corpo se apagam ao misturar-se aos outros (LE BRETON, 2016, p.273).

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Figura 1. Divisor, Lygia Pape (1968)

A noção de pessoa, constituída entre identidade, alteridade e alteração, transforma-se radicalmente: da fábrica como modelo o corpo burguês, higienizado e delimitado pela pele, elementos da abjeção e fragmentação do corpo sempre povoaram o imaginário artístico-literário, dos bestiários monásticos às representações da Salomé de Oscar Wilde no fim do século XIX, do cubismo analítico às poéticas viscerais da arte contemporânea. A desagregação desses corpos emerge como transformação, auge e falência das referências construídas, sobretudo a partir de Descartes, de um corpomáquina, pensado de maneira segmentada, estratificada e hierárquica; de um corpo que não somos, mas possuímos.

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Ao propor a pele como possibilidade poética da redefinição de um Eu, destacam-se as experiências com os Parangolés de Hélio Oiticica (Figura 2), frutos do primeiro contato do artista com a comunidade do Morro da Mangueira na década de 1960. A ideia dos Parangolés surge da ocasião na qual o artista percebe, num terreno baldio, uma “espécie de construção”, como conta em entrevista a Jorge Guinle Filho em 1980, feita por um morador de rua: “eram quatro postes, estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulos no chão. (...) a única coisa que eu entendi, que estava escrito, era a palavra ‘Parangolé’”. A estrutura improvisada parecia estabelecer diálogo com as experiências neoconcretas do artista, quando sua poética rompe com a bidimensionalidade da tela e parte em direção ao espaço do mundo. Desse modo, os Parangolés são constituídos de bandeiras, panos, capas e estandartes com os quais o público se veste e, ao movimentar-se, cria o sentido da obra. Em algumas das peças, frases incendiárias como “estou possuído” e “incorporo a revolta”.

Figura 2. Parangolé, Hélio Oiticica.

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As fronteiras do Eu tornam-se instáveis em Hélio: corpos cujas fronteiras são violadas para darem espaço a novas possibilidades de corpos. Um rearranjamento poético dos limites que separam o corpo do Eu do corpo do Outro. Nos Parangolés, a pele é substituída pela cor em movimento, enquanto o corpo permite-se ser atravessado, “possuído”, “incorporado”. No movimento, o Eu dissolve-se temporariamente e o corpo, esvaziado de suas camadas de significações, permite-se ser transpassado por outras sensações e consciências: abre-se para o mundo. Tim Ingold propõe, a partir do esgotamento do “objeto”, uma retomada da noção de “coisa”, “porosa e fluida, perpassada por fluxos vitais, integrada aos ciclos e dinâmicas da vida e do meio ambiente” (INGOLD, 2012, p.25). Para ele, o modelo hilemórfico – que contrapõe forma (morphé) e matéria (hyle) –, que se tornou hegemônico, concebe “a forma (...) como imposta por um agente com um determinado fim ou objetivo em mente sobre uma matéria passiva e inerte” (ibid., p.26). Sua proposta é pensarmos os “processos de formação ao invés do produto final, e aos fluxos e transformações dos materiais ao invés dos estados da matéria”.

Suponhamos que nos concentremos numa árvore qualquer. (...) A árvore é um objeto? Em caso positivo, como a definiríamos? O que é a árvore, e o que é não árvore? Onde termina a árvore e começa o resto do mundo? (...) A casca, por exemplo, é parte da árvore? Se eu retiro um pedaço e o observo mais de perto, constatarei que a casca é habitada por várias pequenas criaturas que se meteram por baixo dela para lá fazerem suas casas. Elas são parte da árvore? E o musgo que cresce na superfície externa do tronco (...)? Além disso, se decidimos que os insetos que vivem na casca pertencem à árvore tanto quanto a própria casca, então não há razão para excluirmos seus outros moradores (...). Se considerarmos que o caráter dessa árvore também está em suas relações às correntes de vento no modo como seus galhos balançam e suas folhas farfalham, então poderíamos nos perguntar se a árvore não seria senão uma árvore-no-ar. Essas considerações me levaram a concluir que a árvore não é um objeto, mas um certo agregado de fios vitais (INGOLD, 2012, p.28-29).

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Pensar o corpo como coisa e não mais como objeto, isto é, concebê-lo como processo, emaranhado de “fios vitais”, e não como um volume fechado, terminado, surge como alternativa aos binômios sujeito-objeto, dentro-fora. No rearranjamento das fronteiras de si proposto nas obras de Pape e Oiticica, somos convidados a pensar o corpo como porosidade, abertura, relação. Há, no instante poético, uma suspensão da pele como invólucro de um conteúdo coeso: somos corpo-no-ar, corpo-no-espaço, corpo-na-dança: corpo que é também composto de fios vitais, pêlos, bactérias, ar, água, flora intestinal, suco gástrico, vírus, merda, poeira.

Na revista Documents, editada por Georges Bataille entre 1929 e 1930, havia, ao final de cada edição, uma seção chamada dicionário crítico, na qual Bataille e outros autores criavam verbetes poéticos para palavras como rouxinol, arquitetura e boca. A empreitada batailleana consistia em desafiar a lógica racionalista, que classifica e dá formas fechadas aos objetos. É neste contexto que surge o verbete informe, termo elaborado por Bataille para pôr em xeque a razão que classifica o mundo (tendo na figura do dicionário um dispositivo dessa razão, por seu caráter idealista e asséptico). Para ele, o universo é comparável a um escarro, isto é, uma forma aberta e fluida, que se recompõe constantemente e jamais se fecha. É também no dicionário que surgem dois verbetes para a palavra homem. Num deles, Bataille opera uma vivissecção simbólica no corpo humano e redistribui suas substâncias orgânicas em outros objetos, evidenciando a porosidade entre as matérias que compõem um homem e um sabonete, implodindo as fronteiras que nos separam do mundo:

Um eminente químico inglês, o Dr. Charles Henry Maye, empenhou-se em estabelecer de forma exata de que é feito o homem e qual é seu valor químico. Eis os resultados de suas sábias pesquisas. A gordura de um corpo humano de constituição normal seria suficiente para fabricar sete porções de sabonete. Encontram-se no seu organismo quantidades suficientes de ferro para fabricar um prego de espessura média e de açúcar para adoçar uma xícara de café. O fósforo daria para 2.200 palitos de fósforo. O magnésio forneceria matéria para se tirar uma fotografia. Ainda um pouco de potássio e de enxofre, mas em quantidade inutilizável (...)2. 2

Revista Documents n4, Paris: Jean Michel Place, 1991.p

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A pele, pensada a partir dessa perspectiva, atua como limite que nos distingue de qualquer outro objeto banal. Quimicamente, apenas um conceito arbitrário classifica nossa matéria como humana. Uma ideia – frágil abstração – separa a carne humana da carne de um animal ou de uma cadeira. Partilhamos, em nossa composição, as mesmas substâncias que qualquer outra coisa. Comemos o mundo, metabolizamos e transformamos sua carne. A pintura a óleo, quando inscrição de pigmento sobre tela – pensada como superfície neutra –, vive, até as experiências modernistas, o paradoxo de Agilulfo, o cavaleiro de Calvino: não há dentro ou fora. A materialidade do quadro é suprimida por sua ilusão tridimensional, ou seja, quando olhamos uma pintura renascentista, por exemplo, buscamos algo que está além daquele objeto, não como matéria em si. O objeto-pintura abre-se como janela, um médium que encarna um conteúdo metafísico. É somente com o modernismo que a tela passará a ser concebida como matéria real no espaço: quando os pintores deixam voluntariamente seus gestos na tela como estratégia pictórica e ela é percebida pelos olhos do espectador como corpo. Lucio Fontana cria, a partir do fim da década de 1940, uma série de obras chamadas Conceitos Espaciais (Figura 3), na qual cria fissuras e lacerações na superfície cromática da tela. Com isso, o artista opera um rasgo – literal e simbólico – na tradição da pintura, ultrapassando o plano da tela e expondo sua materialidade. Em 2001, Adriana Varejão cria Parede com incisões à La Fontana II (Figura 4), na qual constrói incisões numa superfície que simula uma parede de azulejos. É desse mesmo período a peça Azulejaria verde em carne viva (Figura 5), em que artista exacerba a ideia de rasgos na tela, expondo o quadro como estrutura orgânica da qual, a partir das mutilações, pendem vísceras. A superfície da pintura é, afinal, transformada em corpo vivo e pulsante. A tela abdica de sua vocação ilusionista (de representação naturalista sobre um plano liso, asséptico e seco) para perverter a lógica pictórica da pintura como objeto fechado. Ela torna-se coisa.

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Figura 3. Conceito Espacial, Lucio Fontana (1965)

Figura 4. Parede com incisões a la Fontana (parte do tríptico de 2002), Adriana Varejão

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Figura 5. Azulejaria verde em carne viva, Adriana Varejão (2000)

É a partir desse corpo expandido, atravessados por devires, metamorfoses, comunhões e trocas que parte da arte contemporânea tece suas poéticas. Um corpo permeável, oco, que permite encher-se e esvaziar-se, pulsar. Nessa possibilidade de corpo, já não cabe pensar suas fronteiras como muralha, mas como arena, palco onde acontecem negociações, transformações, performatizações. Esse corpo já não existe a partir do esquema ontologizante que o define como algo coeso, como essência ou natureza. Tampouco seria uma ferramenta a serviço da mente ou um receptáculo inerte. O corpo do qual falamos se redefine incessantemente, está em movimento: pulsa, vibra, expande-se e contrai-se, convulsiona. No filme Memória do corpo, dirigido por Mario Carneiro em 1984, Lygia Clark conta sobre suas experiências terapêuticas com o corpo em seu ciclo de trabalhos chamado Estruturação do Self. No início do vídeo, Lygia apresenta os objetos relacionais que criou e utiliza com seus clientes: sacos plásticos com ar, água, areia ou isopor, tubos, tecidos etc. Para ela, tais objetos “só têm relação com o sujeito, de per si [sic] ele não tem qualidade nenhuma”, isto é, é através do contato que se fabricam seus sentidos, objetos fronteiriços cujas múltiplas significações possíveis estão no entre. Lygia narra, em seguida, o ed. 6

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caso de um de seus clientes, uma pessoa que, durante a ação de Lygia com os objetos relacionais, sentiu todas as células de seu corpo vibrarem e, depois do encontro, ao entrar no táxi e conversar com o motorista, lhe disse que se sentia capaz de ter uma “comunicação integral com o mundo inteiro, com o coletivo”. O trabalho de Clark operou um deslocamento desse corpo, descentralizando suas possibilidades de comunicação, consciência e contato para todas as moléculas, segundo conta ela. A certa altura do filme, Lygia aplica sua técnica no crítico Paulo Sérgio Duarte. Enquanto ele permanece deitado de olhos fechados, a artista manipula os objetos relacionais sobre seu corpo: ao fim do processo, com um conta-gotas, ela pousa delicadamente uma gota de mel em sua língua. Duarte narra sua experiência da seguinte forma: “(...) eu era sobretudo pele, sobretudo superfície (...) é como se eu conseguisse ficar todo na superfície. E a superfície é o lugar da gente com o mundo, é o lugar onde a gente está com o mundo (...) o mel me preencheu, me encheu, eu estava sem existir dentro, eu não estava vazio, não existia dentro, não existia interior, só existia superfície (...)”. Ao trazer para a superfície da pele a experiência daquele corpo, Lygia oferece uma possibilidade outra de vivenciar a si próprio. Ao lembrá-lo de sua superfície como parte intrínseca e pensante daquele corpo, a artista o convidou a ser a pele. Nas últimas páginas do romance de Calvino, Agilulfo, o nobre cavaleiro inexistente, tem um fim inusitado. O conflito da narrativa se dá quando um jovem guerreiro do exército de Carlos Magno põe em xeque o título de Agilulfo. Este, enraivecido, questiona-lhe: “Gostaria mesmo de ver, Torrismundo, você encontrar em meu passado algo de contestável. (...) Talvez queira contestar, por exemplo, que fui armado cavaleiro porque, há exatos quinze anos, salvei da violência de dois bandidos a filha virgem do rei da Escócia, Sofrônia?”. Torrismundo então lhe responde: “Sim, vou contestá-lo: há quinze anos, Sofrônia, filha do rei da Escócia, não era virgem”. Agilulfo, profundamente consternado, decide então partir em busca de Sofrônia para descobrir se o título lhe era realmente equivocado. Quando encontra a mulher e lhe pergunta se conhece Torrismundo, ela responde: “Se é Torrismundo, fui eu mesma quem o criou. (...) Cometi um incesto nefando!”. Ao ouvir tais palavras, o cavaleiro inexistente esporeia seu cavalo e, gritando “Não voltarão a ver nem a mim! Não tenho mais nome!”, e some bosque adentro.

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“Na verdade”, continua Sofrônia, “Torrismundo não é meu filho, e sim meu irmão, ou melhor, meio irmão”. Mas era tarde, Agilulfo já havia fugido. Sem seu título, sustentáculo de sua existência, ele já não se permitia viver. Após procurá-lo por certo tempo, Rambaldo encontra, numa clareira, espalhadas pelo chão, as partes da armadura de Agilulfo. Na alça de sua espada, havia um bilhete “Deixo essa armadura ao cavaleiro Rambaldo”. Tempos depois, Torrismundo encontra sentado à beira de uma estrada o escudeiro de Agilulfo, Gurdulu, falando com o gargalo de um frasco, e lhe pergunta: “o que procura aí dentro, Gurdulu?”. “Procuro meu patrão”, responde o excêntrico escudeiro. “Dentro daquele frasco?”, indaga Torrismundo. Gurdulu então explica: “Meu patrão é alguém que não existe; assim, pode não estar tanto num frasco quanto numa armadura”.

REFERÊNCIAS: CALVINO, Italo. O cavaleiro inexistente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes antropológicos, vol.18 no.37 Porto Alegre Jan./Junho 2012. NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015 Memória do corpo (Lygia Clark). Direção: Mario Carneiro, 1984

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Artigo ROMPENDO SILÊNCIOS: AS PERFORMANCES DE PRISCILA REZENDE1

Aline Alessandra Zimmer da Paz Pereira2

Resumo: Tendo como ponto de partida o aporte teórico de autoras como Renata Felinto dos Santos e Thais Avelar, o presente artigo analisa algumas performances da mineira Priscila Rezende que, a partir de uma poética marcada pelo confronto, tensiona os papéis vividos por pessoas negras no Brasil. Além de dialogar o trabalho de Priscila com o de artistas contemporâneas como Juliana dos Santos, o artigo também retoma a história da performance, com especial atenção à performance no Brasil e às obras de Antônio Manuel – mostrando como o corpo foi e ainda é utilizado na arte como ferramenta de provocação e reflexão em diferentes contextos políticos.

Palavras-chave: Priscila Rezende; racismo; performance.

1 Artigo produzido para a disciplina de História da Arte no Brasil IV, do Bacharelado em História da Arte (UFRGS). 2 Aline Alessandra Zimmer da Paz Pereira: Bacharela em História da Arte pela UFRGS. Foi bolsista de iniciação científica em pesquisas ligadas à arte “degenerada” e à recepção da obra de arte. No TCC, investigou a relação entre a obra da artista alemã Käthe Kollwitz (1867–1945) e a Gravura Moderna e Revolucionária Chinesa. Interessa-se por arte e política. alinealessandrazpp@gmail.com

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Num país em que ainda persiste o mito da democracia racial, desvelar o racismo incomoda, e não à toa as performances de Priscila Rezende (1985–) geram tamanho desconforto. Foi na graduação em Artes Plásticas pela Escola Guignard (UEMG) que a artista encontrou no próprio corpo uma ferramenta de reflexão sobre a “inserção e presença do indivíduo negro na sociedade brasileira”3 e o modo como a mulher negra é inferiorizada e menosprezada em relação à sua estética. Em entrevista para o canal Raiz Forte, no Youtube, Priscila comenta a respeito do desconforto que sua abordagem direta sobre o racismo causa em quem assiste:

Eu percebo hoje que existe um incômodo em se falar sobre racismo. [...] Quando eu fiz o trabalho Bombril [...] até uma colega de classe que estudava comigo, não negra, fez um questionamento, de por que no trabalho eu estava falando sobre essas situações negativas que o negro passa, sendo que têm tantos negros por aí de sucesso, que “chegaram lá”, como ela disse, por que eu não falava dessas pessoas? Porque eu acho que existe um silêncio, a gente passa por isso, mas as pessoas se incomodam que a gente fale sobre isso. Então eu acho que romper o silêncio já é muito importante (REZENDE, 2015).

Na performance Bombril (2010) a artista esfrega seus cabelos em objetos metálicos, como panelas. Bombril não é só uma marca conhecida de um produto de limpeza, mas também um apelido pejorativo para se referir aos cabelos afro. O cabelo liso é um dos marcadores do padrão branco de beleza e afastar-se desse padrão pode significar “excluir-se dos mercados, como o de trabalho e de relacionamentos” (SANTOS, 2017, p. 21).

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Disponível em: <http://priscilarezendeart.com/>. Acesso em: 19 jun. 2018. ed. 6 I julho 2019 95


Fig. 01: REZENDE, Priscila (1985–). Bombril. Performance no Memorial Minas Gerais Vale, 2013. Foto: Sabrina Bah

Além de refletir sobre os padrões de beleza, Priscila também aborda os trabalhos subalternos comumente relegados a pessoas negras – trabalhos domésticos, considerados menores – quando se apresenta, por exemplo, com os panos que as escravizadas vestiam. Ao metaforizar a escravidão, que na performance passa a ser a estética, Priscila ainda trata de corpos presos (SANTOS, 2017, p. 26). Na ação com cerca de uma hora, durante a qual Priscila esfrega seus cabelos em panelas, “o corpo se apropria da posição pejorativa a ele atribuída, transformando-se em uma imagem de confronto” (REZENDE, 2017 apud SANTOS, 2017, p. 26). Propositadamente desconfortável, a ação provoca o espectador a se defrontar com sua própria fala discriminatória, “obrigado

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a encará-la, sem que haja opções para evasivas, subterfúgios ou digressões” (REZENDE, 2017 apud SANTOS, 2017, p. 26). Conforme aponta Santos,

O incômodo causado nos/as espectadores/as de Bombril converte-se num disparador reflexivo acerca de como corpos negros têm sido pouco afagados, elogiados e amados. Respectivamente, dela emerge uma sensação de inadequação e não-lugar com a qual convivem negras/as num mundo pensando por e para brancos/as. Uma violência que pode ser desfrutada durante uma hora por não negros/as. Lembrando que no caso de negros/as essa agressão é condição existencial (SANTOS, 2017, p. 28).

No mesmo ano da performance de Priscila Rezende, em 2010, é lançada uma campanha bastante problemática da marca Bombril. Estreada no Dia Internacional da Mulher sob o slogan “Mulheres que Brilham”, o projeto visava revelar novos talentos da música brasileira e homenagear o “público fiel” da marca, que, segundo o publicitário Arnaldo Antunes, seriam as mulheres.

Fig. 02: Campanha Mulheres que Brilham, da marca Bombril, 2010.

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Como aponta Avelar:

[...] a publicidade da marca Bombril orbita sobre dois pontos absolutamente problemáticos. Da perspectiva do gênero, a divisão do trabalho e da cristalização dos papéis sociais, evidencia a manutenção da ideia de que a limpeza e os trabalhos domésticos são de responsabilidade das mulheres, o que transparece no seguinte slogan da marca: “Bombril, os produtos que evoluíram com as mulheres” (2011, negrito nosso). De outra parte, outra questão refere-se à maneira como a marca trata questões étnico-raciais absolutamente sérias, com total descuido, reforçando estigmas e a manutenção de papéis sociais, conforme aponta o respectivo slogan de 2007 “O nosso negócio é brilhar” (negrito nosso) (AVELAR, 2017, p. 35).

A campanha é ilustrativa de como o cabelo crespo, sob uma perspectiva racista, é ainda utilizado como signo que metaforiza o estigma – estigma esse que é reapropriado pela população negra e alas do movimento negro, como signo de identidade positiva (AVELAR, 2017, p. 36). Desse modo, o cabelo torna-se “mola propulsora de um questionamento desse padrão de beleza e feminilidade imposto de forma vertical às mulheres de forma geral, e às negras, de forma específica” (AVELAR, 2017, p. 37). Assim como Priscila, também a artista Juliana dos Santos (1987–) retoma experiências de vida na performance Qual é o pente? (2014), na qual sua avó Dona Benedita realiza o procedimento de alisamento de seus cabelos. O título faz menção à marchinha Nega do cabelo duro, composta por Rubens Soares e David Nasser em 1942, com os famosos versos “qual é o pente que te penteia?”. A marchinha foi interpretada por Elis Regina em 1969, e os versos também foram reapropriados por Planet Hemp em canção homônima lançada em 1997.

De acordo com Santos (2017), na família de Juliana é comum o uso do chá de carqueja para alisamento dos fios, cujo amargor é também metáfora para um processo de cura e de quebra no ciclo de práticas violentas contra os cabelos de mulheres negras. Na ação, a avó de Juliana retoma a história de sua própria relação com os cabelos, até que se nega a alisar o cabelo da neta.

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Fig. 03: SANTOS, Juliana dos (1987–). Qual é o pente? Performance no SESC Santana, 2015.

Segundo Santos (2017), na vida adulta, Juliana “compreendeu que a vó não negava os seus cabelos a partir do alisamento, mas sim que tentava evitar que a neta vivesse algumas situações de racismo que seriam determinadas pelo aspecto que eles teriam ao apresentar-se socialmente” (SANTOS, 2017, p. 24). Tal como na performance Bombril, de Priscila, os preconceitos sobre os cabelos afro também fazem parte da poética da artista Juliana, mostrando o quanto situações e vivências do cotidiano particular são reflexo de um contexto maior de racismo estrutural, no qual todos estamos inseridos. Retomando para as performances de Priscila e sua “poética de confronto” (AVELAR, 2017), cabe menção a outros dois trabalhos. Em Barganha (2014), a artista tem como ponto de partida a música A Carne, de Elza Soares. Os conhecidos versos “a carne mais barata do mercado é a carne negra” motivam a performance na qual Priscila é levada à venda por outra mulher em espaços públicos, ação na qual são colados adesivos em seu corpo, com preços cada vez mais baratos. A ação foi realizada no dia 20 de novembro de 2014 no Ceasa de Minas Gerais. Na entrevista de 2015 para o canal Raiz Forte, além do simbolismo da data (Dia da Consciência Negra) e do local (de vendas), Priscila chama atenção para o fato de que as mulheres trabalhadoras são minoria na Ceasa MG. ed. 6

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Fig. 04: REZENDE, Priscila (1985–). Barganha. Performance no Ceasa de Minas Gerais, 2014. Foto: Marcelo Baioto

Do mesmo modo, na performance Vem… pra ser infeliz (2017), o tema da hipersexualização da mulher negra é exposto de forma extrema. Seminua, Priscila utiliza adereços característicos do carnaval e ainda uma máscara de flandres, objeto de tortura usado durante o período escravocrata. Na performance, a artista dança os sambas-enredo (o da Globeleza ironizado no título) até a exaustão.

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Fig. 05: REZENDE, Priscila (1985–). Vem… pra ser infeliz. Performance SESC Palladium, 2017. Foto: Luiza Palhares

Além de ter as palavras “mulata”, “exportação”, “violão”, “exótica”, “cor de jambo” coladas em seu corpo com letras coloridas, chama atenção o sobrenome Sargentelli na perna esquerda da artista, em letras verdes. Osvaldo Sargentelli (1924–2002) foi radialista e também apresentador na extinta TV Tupi. No final da década de 1960 e início da década de 1970 foi responsável pela abertura de casas noturnas no Rio de Janeiro, onde eram apresentados shows com “mulatas”4. Sargentelli tentou inclusive emplacar a data de seu 4 A respeito da origem do termo, naturalizado como designação dos descendentes de negros e brancos, há duas origens possíveis: a palavra latina mulus (ou seja, mula, cruzamento híbrido de cavalo com jumenta ou de égua com jumento), associando miscigenação com infertilidade e impureza, e a palavra árabe muwallad, que define o descendente de árabe com “não árabe”. A fim de ampliar a discussão, indico a leitura dos verbetes Raça e Mestiçagem, no Dicionário crítico das ciências sociais dos ed. 6 I julho 2019 101


aniversário, 8 de dezembro, como “dia da mulata” (o que não vingou nos calendários oficiais). O padrão cristalizado das “mulatas de Sargentelli”, tidas como sensuais e “exóticas”, alimenta no exterior o imaginário que contribui para a publicidade do circuito de turismo sexual do Brasil. A escravatura, simbolizada na máscara de flandres, ressurge na performance de Priscila pela continuidade da bateria de samba. Enquanto a artista dança, por vezes o ritmo parece insinuar uma interrupção, mas logo recomeça e a performer segue dançando até que seu cansaço se torna perceptível para o público. O corpo cansado continua dançando e sustentando as palavras de estereótipos que, assim como a máscara de flandres, são também limitadoras de seus movimentos – porque limitam seus papéis sociais e limitam também o olhar do outro sobre esses corpos. Avelar pontua que se posicionar frente à conjuntura sociopolítica que perpetua a manutenção de assimetrias sociais significa “empreender ações frontais no sentido de contestar essa lógica vigente” (AVELAR, 2017, p. 21). As poéticas de confronto como as performances de Priscila articulam-se como ações diretas e intervenções simbólicas. Desse modo,

[...] o corpo ascende como instrumento vocalizador e suporte que delineia, na epiderme, o pulso que exprime questionamentos, anseios e tensões. Constituindo-se, portanto, em mídia, no sentido mais profundo do termo – meio intermediário de expressão e transmissão de mensagens – manifestado na necessidade de vocacionar questionamentos e tensões em relação às desigualdades e assimetrias sociais. Reafirmando-o como meio privilegiado de experimentação e expressão (AVELAR, 2017, p. 21).

Renato Cohen destaca o caráter híbrido da linguagem da performance, pois ela se coloca no limite das artes visuais e das artes cênicas, guardando características “da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade” (COHEN, 2013, p. 30). países de fala oficial portuguesa (2014), além do poema Não me chame de mulata, de Jarid Arraes. 102   |  revista da graduação eba/ufrj


Como gênero artístico, a performance emerge nos anos 1970 num momento em que vigorava o conceitualismo. A ênfase da arte conceitual nas ideias e não no produto final estava relacionada ao desdém para com o objeto artístico, visto como “mero fantoche no mercado de arte”; pois se a função do objeto de arte pressupunha ser econômica, então a obra conceitual não poderia ter esse uso (GOLDBERG, 2016, p. 142). Roselee Goldberg coloca que, nesse contexto, a performance tornou-se uma extensão de tal ideia, já que supostamente não deixava rastros e não podia ser comprada e vendida. Por fim, a performance também foi vista como redutora da separação entre artista e espectador, pela possibilidade de ambos vivenciarem a obra simultaneamente.

Apesar de a performance emergir nos anos 1970, suas origens remontam às experiências do Futurismo, do Dadaísmo e do corpo docente da Bauhaus reunido na Black Mountain College, na Carolina do Norte nos anos 1930, bem como aos trabalhos do músico John Cage (1912–2002) e do dançarino Merce Cunningham (1919–2009). Roselee Goldberg pontua a tentativa de ambos para que a arte não fosse diferente da vida: “Da mesma maneira que Cage via música nos sons cotidianos do nosso meio ambiente, Cunningham também propunha que se podia considerar como dança os atos de andar, ficar de pé, saltar e todas as outras possibilidades do movimento natural” (GOLDBERG, 2016, p. 106). Os happenings de Allan Kaprow (1927–2006), a action painting de Pollock (1912–1956) e as ações do grupo Fluxus também podem ser apontados como precursoras da performance. No Brasil, temos alguns antecessores: Flávio de Carvalho (1899–1973), ainda na década de 1930, quase foi linchado durante a performance Experiência N° 2, ao caminhar em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi; e também Antônio Manuel (1947–), com seu gesto ousado de tirar a roupa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), após ter sua proposta O corpo é a obra rejeitada para o XIX Salão Nacional de Arte Moderna em 1970. Claudia Calirman destaca que o ato espontâneo de Antônio Manuel tornou-se não só um símbolo de rebeldia contra as regras arbitrárias dos salões de arte, mas também contra a falta de critérios consistentes para a censura às artes por parte da ditadura civil-empresarial-militar (CALIRMAN, 2013, p. 43). Importante destacar que o gesto de Antônio Manuel foi repetido por uma mulher negra, Vera Lúcia Santos, que trabalhava como modelo vivo na Escola Nacional de Belas Artes. Dentre as narrativas que tratam do ato de Antônio Manuel, poucas são as ed. 6

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que mencionam a modelo que executou a ação junto a ele.

Calirman pontua que a ação de Antônio Manuel, por mais que estivesse distante das discussões na década de 1970 a respeito da construção social e cultural das identidades de gênero, estava em consonância com o cenário internacional da arte contemporânea. Como já mencionado, era um momento de crítica aos meios artísticos tradicionais, como a pintura e a escultura, momento em que o corpo ascende como um veículo a ser explorado como forma de expressão. Calirman, no entanto, estabelece algumas diferenças entre a body art estadunidense/europeia e o contexto brasileiro. Ao mencionar, por exemplo, a exposição pública do corpo nu do artista Vito Acconci (1940–2017), em que também havia um questionamento em relação à noção de masculinidade, ressalta que “foi executada no contexto do movimento em defesa dos direitos civis e dos protestos contra o recrutamento militar e a Guerra do Vietnã” (CALIRMAN, 2013, p. 46). No Brasil, ao contrário, as práticas relacionadas à body art estavam relacionadas à celebração. Segundo a autora, “a versão brasileira da body art destacou as associações dionisíacas do corpo por meio de sua incorporação às festividades do Carnaval, de seu comportamento libertador e da celebração do corpo físico” (CALIRMAN, 2013, p. 47). A autora ainda afirma que o feminismo não foi abraçado pelos artistas brasileiros com a mesma intensidade que o foi pelos artistas estadunidenses5. Mesmo que tivesse um caráter um tanto celebrativo do corpo, se levarmos em conta o clima político do Brasil nesse período, o ato de Antônio Manuel foi “um exemplo de como um corpo pode ser utilizado como ferramenta provocadora para desafiar, ou, ao menos, para irritar a ordem militar” (CALIRMAN, 2013, p. 49). A autora destaca que Foucault, em Vigiar e punir: nascimento da prisão (1975), afirma que a ameaça de tortura é um dos principais instrumentos usados por regimes disciplinares para fazer cumprir suas ordens, de modo a 5 Contribuíram para isso os estereótipos atribuídos às feministas na imprensa, fazendo com que artistas brasileiras negassem as ligações com o movimento, “por receio de serem reduzidas a ‘artistas-panfletárias’” (TRIZOLI, 2012, p. 413). No entanto, o interesse por temáticas feministas aparece na produção de artistas do período como Anna Maria Maiolino, Wanda Pimentel, Iole de Freitas, Regina Vater, entre outras. 104   |  revista da graduação eba/ufrj


tornar os corpos, objetos da intimidação, obedientes e dóceis. Assim como o gesto de Antônio Manuel, as performances de Priscila Rezende também são provocadoras de uma ordem vigente. Cabe, no entanto, apontar algumas diferenças: o corpo no trabalho de Priscila não é usado sob um viés de celebração, mas sim a partir de uma perspectiva que escancara exclusões, estereótipos e violências ainda presentes. Por isso a obra de Priscila é tão atual: nesse comparativo com as ações de um Antônio Manuel, por exemplo, nos damos conta de que as violências e silenciamentos que atingiram certos setores das classes médias, num contexto político de exceção, são regra para outros tantos setores da população, mesmo em contextos supostamente democráticos.

Assim como Antônio Manuel questionava os parâmetros dos salões e o arbítrio da censura às artes, Priscila não deixa também, de certo modo, de questionar o lugar da mulher negra na história da arte. O racismo estrutural que violenta vidas e limita papéis sociais impacta também o modo como a produção cultural de negras e negros, quaisquer que sejam suas poéticas, são lidas por aqueles que compõem o sistema da arte. Em recente levantamento sobre os principais manuais de história da arte, por exemplo, dos 2.443 nomes mencionados, apenas 22 são de artistas negros (destes, apenas duas mulheres negras, Barbara Chase-Riboud e Lorna Simpson)6. Quando Priscila retoma suas experiências para falar de racismo, numa autobiografia que também é coletiva, há o questionamento a esses “lugares menores”, entendidos como o lugar que cabe a pessoas negras. Desse modo, e consciente do caminho que escolheu para levantar essas questões, Priscila nos lembra de que “a arte tem esse poder de abrir o nosso olhar sobre aquilo que nos cerca, sobre a nossa sociedade, sobre o mundo e fazer com que a gente veja as coisas de uma forma diferente” (REZENDE, 2013).

REFERÊNCIAS 6 Pesquisa A história da _rte, coordenada por Bruno Moreschi. Disponível em: <https://historiada-rte.org/>. Acesso em: 08 jul. 2018. ed. 6 I julho 2019 105


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Artigo O SOM DO SURREALISMO NOS ANOS 2000: Como a era da internet recriou o som de um filme surrealista de 1928

Guilherme do Amaral Gurgel1

Resumo: Um filme surrealista de 1928, lançado na era silenciosa do cinema, ganhou pelo menos quarenta trilhas sonoras distintas depois da virada do século XXI. Como se explica esse fenômeno? Como a internet se torna um mediador entre artistas de nossa época e imagens produzidas no século passado? Que possibilidades estéticas essas novas sonorizações criam sobre esse material quase centenário? A apropriação de conteúdos na era da internet está em profundo diálogo com propostas presentes no seio do movimento surrealista de onde o filme A Concha e o Clérigo surgiu. Veremos o que o nosso século está fazendo com ele.

Palavras-chave: Surrealismo; Cinema silencioso; Dulac; Internet; Trilha sonora

1 Guilherme do Amaral Gurgel é bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. Estagiou com preservação na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) e no Centro Técnico Audiovisual (CTAv). Atualmente desenvolve pesquisas ligadas a Som no cinema silencioso, Estética e Internet. Email: guilherme.agurgel@gmail.com 108   |  revista da graduação eba/ufrj


Introdução

Encontramos com certa facilidade nos dias de hoje eventos com exibição de filmes da era silenciosa do cinema (pré-1929) acompanhados de sonorização ao vivo. Desde aqueles que aludem às técnicas empregadas nas salas de exibição daquela época até as novas tendências de soundpainting, os apaixonados por música e cinema parecem estar redescobrindo o potencial que esses filmes do século passado podem ganhar nas mãos de músicos habilidosos. Da mesma maneira, a internet possibilita que artistas ao redor do mundo componham suas próprias concepções sonoras para qualquer obra cinematográfica e divulguem seus trabalhos na rede, tornando-os acessíveis a uma infinidade de pessoas. Essas novas sonorizações travam um diálogo interessante com os acompanhamentos que existiam nas primeiras exibições de cinema. Cabe aqui, antes de mais nada, uma breve reflexão sobre as técnicas de som no período silencioso. O som habita as salas de exibição desde os primórdios do cinema e de forma muito mais rica do que estamos acostumados a pensar. Não se tratava apenas de um pianista solitário acompanhando o filme com sua música, como muitas vezes é representado popularmente, Rick Altman detalha em seu livro Silent Film Sound uma grande variedade de técnicas de sonorização empregadas nos cinemas americanos desde as primeiras exibições (inclusive com aparelhos de reprodução de imagem em movimento anteriores ao Cinematógrafo dos irmãos Lumière) até o advento do som sincronizado que tem como marco o ano de 1929 (ALTMAN, 2004). Entre essas numerosas formas de sonorização são listadas dublagens, narrações, foley e acompanhamentos musicais das mais diversas naturezas, indo desde trilhas originais até óperas e cantigas populares que agradassem ao público. Mais especificamente no caso do cinema brasileiro, o livro A Música no Cinema Silencioso no Brasil, de Carlos Eduardo Pereira, é também muito proveitoso no que diz respeito ao levantamento de dados sobre essas sonorizações em nosso país (PEREIRA, 2014). O que é importante ressaltar é a completa ausência de padronização sonora durante essa época. Não havia uma noção muito rígida do que seria o som próprio de cada filme, cada exibidor era livre para escolher o ed. 6

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acompanhamento que achasse mais adequado. O que também vale a pena citar é que muitos filmes eram exibidos sem acompanhamento sonoro algum além do ruído do projetor, como ocorria em salas de ingresso barato ou em sessões fora do horário de expediente dos músicos. A experiência sonora de um filme não pertencia exclusivamente à película, mas ao momento e lugar em que o expectador se encontrava ao assisti-la. Os filmes silenciosos tiveram, entretanto, muitas informações a respeito de suas sonorizações perdidas, uma vez que o mesmo filme abria infinitas possibilidades e não há como obter registros de todas as que foram empregadas. Como nem mesmo boa parte das películas desse primeiro cinema sobreviveu, menos ainda podemos dizer do som dessas obras, havendo casos em que ainda podemos ter pistas a partir de relatos, partituras, anúncios ou outros documentos, mas em uma imensa maioria essas informações foram totalmente perdidas. A Concha e o Clérigo (1928), dirigido por Germaine Dulac, é um desses diversos filmes silenciosos cujas informações a respeito de seu som original se perderam (SCHIPHORST). Não se sabe sequer se chegou a haver uma proposta de sonorização para ele no ano em que foi lançado ou se era pensado para ser assistido sem acompanhamento algum. O importante aqui é perceber sua singularidade, tendo sido a primeira empreitada do Movimento Surrealista no cinema, com seu argumento e roteiro escritos por Antonin Artaud. Mesmo assim, esse mérito foi rapidamente apagado. A Concha e o Clérigo gerou aversões tão profundas dentro e fora das vanguardas artísticas que foi deixado de lado até ser finalmente eclipsado pelo lançamento de Um Cão Andaluz, de Buñuel, no ano seguinte. Enquanto foi descrito pela censura britânica como tão enigmático que é quase sem sentido e, se existir algum significado, é sem dúvida censurável (ROBERTSON, 1993,P.39), também foi rechaçado pelos demais artistas surrealistas, com o próprio André Breton dizendo que Dulac havia corrompido o roteiro de Artaud ao femininizá-lo demais e havendo boatos de que Artaud teria mugido durante a exibição da obra como forma de ofender a diretora (ZALCOCK, 2018). Conforme voltou a despertar interesse, no fim dos anos 1990, o que proporcionou sua volta às salas de exibição e seu relançamento em diversos formatos (DVDs, vídeos na internet e etc), surgiu o problema de como

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pensar um som para ele. Isso levou as distribuidoras, organizadores de festivais, cinematecas, museus ou salas de cinema que se propunham a lidar com o material a convidar artistas para sonorizá-lo, abrindo caminho para interpretações totalmente novas de uma obra que está completando noventa anos de idade. Outros artistas também se aproximaram de A Concha e o Clérigo sem precisarem de qualquer convite, trabalhando em cima do filme por motivos próprios.

As trilhas compostas Iniciou-se em 2018, para esta pesquisa, a empreitada de catalogar todas as trilhas sonoras compostas para A Concha e o Clérigo depois do ano 2000, das quais fosse possível encontrar informações a respeito na internet. Ao iniciar o trabalho imaginava-se que seria um material muito rico se pudessem ser encontradas pelo menos cinco, mas foram encontradas quarenta. A enorme quantidade de material precisou ser classificada a partir de determinados parâmetros como o ano de composição, a origem geográfica do artista, a pessoa física ou instituição de onde surgiu a iniciativa de sonorizar o filme etc. Essa primeira organização foi o ponto de partida para tentar explicar o fenômeno de alguma maneira. Uma dessas explicações pode estar em problemas levantados já na época em que A Concha e o Clérigo foi lançado. A proposta de Artaud era criar um cinema que se libertasse da necessidade de representação, o que pode ter sido um dos pontos de conflito que surgiram entre ele e Dulac, já que a diretora guiou o desenrolar do filme através de um fio narrativo, ainda que vago. Essas diferenças de compreensão a respeito da proposta e do próprio cinema podem estar na origem das interpretações sonoras tão diversas que foram concebidas para o filme. Ele não apresenta sequências bem delimitadas em sua maior parte, estando muito mais próximo de um certo desenrolar de imagens em ambientes diversos. Isso possibilita que, através do trabalho com o som, alguns artistas tenham conseguido delimitar sequências que começam e terminam em pontos absolutamente distintos, moldando o entendimento que ed. 6

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o espectador tem do filme através dos pontos de início e fim de cada faixa ou estrutura melódica. Além disso, um trecho que nas mãos de um artista pode se tornar misterioso e assustador, ganha um tom cômico nas mãos de outro. Ou ainda, um artista pode ignorar qualquer necessidade de definir sequências para o filme, criando uma única trilha homogênea que flui ao longo de toda a película. Os casos encontrados possuem as naturezas mais diversas.

Assim como em termos de natureza da trilha, há também uma grande diversidade de meios que cada artista escolheu para exibir seu trabalho. Foram encontrados muitos que sincronizaram suas trilhas com o filme em vídeos para o YouTube, mas também outros que lançaram como conteúdo separado em álbum digital (geralmente através dos sites Sound Cloud e Band Camp). Há também uma quantidade expressiva de trilhas lançadas em DVDs e CDs. No caso das sonorizações ao vivo chama a atenção a diversidade de propostas, indo desde o soundpainting (improvisações ao vivo com aparelhagem eletrônica) (Fig. 01) até transmissões televisivas de trechos do filme sonorizado, como foi o caso da artista mexicana Daniela Franco, que exibiu sua versão no Canal 22 do México (FRANCO, 2011). Alguns escolheram uma abordagem mais acadêmica do material, como o grupo argentino El Desamble, que o musicou em algumas apresentações ao longo do ano de 2015 com propostas de referenciar as músicas vanguardistas dos anos 1920. Eles aparecem como um caso bem interessante por citarem desde Schönberg até Chiquinha Gonzaga, musicista brasileira cuja história está intimamente ligada a sonorização de filmes no Brasil, como influências para sua composição em cima de A Concha e o Clérigo (informações obtidas através do contato com a banda por e-mail para esta pesquisa). Um destaque muito especial vai para a proposta de Juliana Hodkinson, artista britânica que em 2012 foi convidada pelo Museu de Arte Moderna de Louisiana, na Dinamarca, para compor uma trilha que seria reproduzida em loop em uma instalação na exposição Avantgardens Kvinder 1920-1940 (Mulheres na Vanguarda 1920-1940) (Fig. 02). Hodkinson foi a única artista encontrada a decidir compor uma trilha foley em vez de musical, que resultou em experimentações muito interessantes de mimetismo e disjunção entre som e imagem (HODKINSON). Três casos merecem especial destaque pela atenção que atraíram. Steven Severin, que foi baixista do grupo de pós-punk Siouxsie and the Banshees ao longo dos anos 80 e 90, compôs uma trilha etérea e homogênea que desliza

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quase que por igual ao longo de todo o filme. O resultado foi apresentado ao vivo em algumas ocasiões e rendeu um álbum lançado digitalmente em sua página na internet (SEVERIN, 2009). Assim como ele, a artista Imogen Heap apresentou uma trilha própria para o filme em alguns festivais na Inglaterra (SAGE GATESHEAD, 2012). Um caso de destaque é também a trilha de Iris ter Schiphorst, musicista alemã que foi convidada pela Cinemateca de Amsterdã para compor uma trilha para a versão que a instituição havia restaurado do filme de Dulac. Seu trabalho foi provavelmente o único a ser apresentado publicamente no Brasil, na exibição de A Concha e o Clérigo dentro da exposição Surrealismo e Vanguardas realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro.

Fig. 01: Cartaz para uma exibição ao vivo de A Concha e o Clérigo em Brighton com acompanhamento sonoro. Fonte: Ward e Bown (2015). ed. 6

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Fig. 02: Instalação sobre A Concha e o Clérigo com trilha sonora de Juliana Hodkinson na exposição Avantgardens Kvinder 1920-1940 no Museu de Arte Moderna de Louisiana na Dinamarca em 2012. Fonte: Poul Buchard / Brøndum & Co. (Enviado por Juliana Hodkinson por e-mail).

Mas o que é de fato essa imagem produzida por Dulac sobre a qual tantos artistas trabalharam posteriormente? Se formos abordar a partir de sua vaga narrativa, diríamos que A Concha e o Clérigo é um filme sobre um padre que, ao desejar a esposa de um general, mergulha em um universo de delírios. De início o vemos em um laboratório que remete a alquimia, quebrando frascos com poções diversas e acumulando seus cacos em uma pequena montanha. A montagem introduz o personagem do general no ambiente, que dança pela tela ao sumir e reaparecer em pontos distintos do espaço. A tensão cresce até um corte brusco de imagem que nos transporta para uma rua na qual o padre é visto engatinhando. Surge na tela a carruagem do general e de sua esposa, o padre se surpreende e corre atrás, até chegar a uma igreja. O clérigo entra no prédio e se esconde atrás de uma pilastra para espreitar o casal, que já se encontra no confessionário, um de cada lado, calados e com expressões ausentes. Há um plano fixo dos olhos do padre arregalados e dirigidos a eles por algum tempo até que tome impulso para pular em sua direção. O

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movimento é em câmera lenta, o clérigo salta sobre o general, que permanece parado enquanto é estrangulado. Os planos montam uma triangulação entre os rostos dos três personagens, até que vemos a face do general ser recortada por um truque de edição e se dividir em duas partes. Nesse momento, o padre se afasta assustado enquanto o outro personagem começa a flutuar pelo ambiente como um balão. Em um novo corte somos transportados para uma praia, a partir da qual novas situações surreais vão se desenrolar. É sobre este enigmático material imagético que diversos artistas do século XXI foram convidados ou se propuseram a trabalhar. Ao pesquisar sobre as trilhas que surgiram por iniciativa dos próprios artistas, foi possível identificar três grandes motivações descritas por eles para escolherem o filme: 1. Os artistas que se interessaram pela linguagem do filme. 2. Os artistas que já possuíam histórico de trabalhar com sonorização de filmes silenciosos e incluíram A Concha e o Clérigo como parte de seu catálogo ou discografia. Eles se aproximaram da obra de Dulac não apenas pelo interesse no filme em si, mas por um interesse muito mais amplo em cinema silencioso. 3. Os artistas que foram movidos por questões ligadas ao feminismo. Vários deles disseram ter escolhido o filme por julgarem importante reviver a memória de uma mulher que teria sido apagada das narrativas históricas por motivos machistas. Buscou-se então refletir sobre as possibilidades estéticas abertas por essas apropriações, usando como base tanto os livros de caráter histórico quanto o livro A Audiovisão, de Michel Chion, no qual o autor explora diversas possibilidades de encontros entre som e imagem em um filme (CHION, 2008). Sua premissa é a de que a percepção de um desses elementos está intrinsecamente ligada ao outro, sendo a banda sonora uma dimensão sensorial que tem o potencial de imprimir ritmos, estados psicológicos e movimentos na imagem. Surge então o que talvez seja a maior contribuição de Chion como autor, a ideia de que podemos ouvir imagens e ver sons, ou seja, perceber as duas dimensões do filme como elementos indissociáveis. A imagem não apenas reproduz o som, assim como o som não apenas mimetiza ed. 6

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ou reforça a imagem, mas os dois elementos produzem um em cima do outro. Ao fim, a premissa deste estudo é a de negar que a imagem e o som do filme sejam dois campos fechados, cujos sentidos são construídos de formas independentes e sem possibilidades de serem reescritos. É graças a abertura desses campos que os quarenta artistas encontrados puderam produzir suas criações para o filme de Dulac, pois cada um deles criou um novo filme em cima de uma mesma banda imagética. No caminho inverso, cabe falar com muita atenção do que foi definido como trilhas involuntárias, pois se tratam justamente de produções sonoras que não foram originalmente pensadas para serem empregadas como trilha do filme em questão, mas que, ao serem usadas com esse propósito, ganharam novos sentidos e novos significados. Dessa forma podemos concluir que assim como a imagem, o som também não é um campo fechado, pois está sempre disponível a ser justaposto e agregado a outro contexto, a outro casamento com a imagem, que o transformará em algo novo.

Conclusão Essa atitude de ressignificar elementos distintos dentro de uma obra de arte já estava presente no movimento surrealista ao qual Germaine Dulac se inseria e inclusive antes, nas propostas dos dadaístas, nas obras de Duchamp etc. Hoje pode ser percebida na forma como artistas se vêem capazes de se apropriar de conteúdos cinematográficos, musicá-los e disponibilizar seus trabalhos nas redes. A própria ideia de produzir novas trilhas sonoras para um mesmo filme não é fruto do nosso século, mas ela foi potencializada pelas possibilidades abertas graças a internet, que por um lado facilita o contato com filmes lançados nas mais diversas épocas e por outro se mostra um canal de divulgação e compartilhamento dessas novas trilhas. A cultura de apropriações, reapropriações e remixes segue em seu profundo diálogo com as propostas do movimento surrealista do século passado, assim como se caracteriza como uma maneira muito própria da nossa época produzir arte.

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Se formos um pouco mais longe nessa comparação histórica, veremos como esse cenário dialoga com as formas de sonorização do primeiro cinema. Vimos na introdução deste artigo o quão rico de possibilidades um único filme era no período silencioso, essa riqueza foi sendo suprimida com o rumo que o cinema tomou ao longo anos 1920, quando a indústria batalhou pela padronização do som nas mãos dos produtores, tirando poder dos exibidores. Essa pesquisa nos ajuda a ver como a internet apresenta uma ruptura nesse processo. Uma pequena janela através da qual artistas podem compor inúmeras trilhas para um mesmo filme e transformá-lo em coisas novas na rede. A multiplicação de eventos com exibições de filmes junto de trilhas ao vivo também reforça essa janela, quem sabe quais semelhanças poderão surgir entre a forma como o cinema é encarado em nosso século e aquilo que era antes da padronização sonora?

REFERÊNCIAS ALTMAN, Rick. Silent Film Sound. 1. ed. Nova Iorque: Columbia, 2004. ARTAUD, Antonin. Feitiçaria e Cinema. In: GUINSBURG, J. (Org.). Linguagem e Vida. Tradução Sylvia Fernandes. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 170-172, 1970. Tradução de: Sorcellerie et Cinéma. CHION, Michel. A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema. 1. ed. Lisboa: Edições Texto & Grafia, Ltda, 2008. FRANCO, Daniela. Electrelane: La Coquille et le Clergyman from Composite [2007] by daniela franco. YouTube. 2011. Disponível em: <https://bit. ly/2ZuodFw>. Acesso em: 29 jun. 2018. HODKINSON, Juliana. La coquille et le clergyman/ The priest and the shell: solo liveelectronic. Juliana Hodkinson, Composer. Disponível em: <https:// bit.ly/30Jengk>. Acesso em: 29 jun. 2018. PEREIRA, Carlos Eduardo. A Música no Cinema Silencioso no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 2014. ed. 6

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ANEXO 1 TRILHAS COMPOSTAS PARA “A CONCHA E O CLÉRIGO” DEPOIS DO ANO 2000 QUE FORAM ENCONTRADAS NA INTERNET A seguinte tabela apresenta todas as trilhas sonoras compostas para A Concha e o Clérigo depois do ano 2000 cujas informações a respeito foram possíveis de serem encontradas na internet. Algumas informações foram supostas, mas sem encontrar confirmação. Nesses casos o item foi marcado com um asterisco.

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Ensaio ALAIR GOMES, CINEMA, TEATRO E FOTOGRAFIA

ANDRÉ PITOL1 Resumo: A visibilidade dada à poética de Alair Gomes ao registrar (não só) o corpo masculino serviu para chamar a atenção do campo da arte para uma produção potente em qualidade e gigante em quantidade. Esse ensaio apresenta alguns aspectos importantes da trajetória do fotógrafo e de seus interesses pelas imagens, a quem uma apresentação pontual auxiliaria a reposicionar o lugar e a narrativa que hoje construímos para seus ensaios fotográficos. Partindo de esboços datilografados, assim como de textos publicados em jornais e revistas entre as décadas de 1960 e 1980, o foco se dá nas referências de Alair nos campos da literatura (Alain Robbe-Grilet), cinema (Dziga Vertov e Júlio Bressane) e teatro (Jean Genet, Rubem Corrêa e Hélio Eichbauer), evidenciando com isso aproximações teóricas e efetivas experimentações práticas com tais linguagens artísticas, como em diversas publicações impressas nos EUA, na participação em filmes brasileiros e em propostas de elaboração cinematográfica e cenográfica.

Palavras-chave: Alair Gomes. Fotografia contemporânea. Linguagens artísticas. Intermídia.

1

André Pitol é pesquisador em Artes. Desenvolveu extensa pesquisa sobre a produção fotográfica de Alair Gomes com os trabalhos Alair Gomes: fotografia, crítica de arte e discurso da sexualidade (2013) e “Ask me to send these photos to you”: a produção artística de Alair Gomes no circuito norte-americano (2016). pitolpitolpitol@gmail.com 126   |  revista da graduação eba/ufrj


Voyeurismo, desejo, homoerotismo, fetiche, corpo. Estes são alguns dos termos tornados indissociáveis do trabalho fotográfico de Alair Gomes. A contemporaneidade póstuma que este alcançou na cena artística brasileira a partir dos anos 1990, teve como eixo principal o pressuposto de que sua fotografia era, predominantemente, homoerótica. Desde então, a sua permanência no debate parece ter sido paulatina e crescente, de modo que hoje as expressões acima indicadas somam-se a tantas outras, fazendo do fotógrafo “o pioneiro da arte homoerótica no Brasil”, onde “o desejo incontido de reproduzir o corpo de homens jovens em sua plenitude” estaria ligado à “busca no corpo a perfeição da escultura clássica”. A visibilidade dada à poética de Alair ao registrar (não só) o corpo masculino, serviu para chamar a atenção do meio artístico para uma produção potente em qualidade e gigante em quantidade. Uma produção imprescindível para qualquer exposição contemporânea cujo tema seja a sexualidade e o erotismo, ou os tangencie. Porém, a repetição desse repertório discursivo criou um olhar particular, que parece não ter se atentado para o fato de que uma fotografia não é apenas o seu tema, é mais do que aquilo que acreditamos a que ela se refira. Assim, retomar alguns pontos importantes da trajetória de Alair Gomes e de seus interesses pelas imagens, vários deles ainda alheios a um público curioso pelo artista, e a quem uma apresentação pontual do conteúdo auxiliaria a reposicionar o lugar e a narrativa que hoje construímos para sua produção artística.

CINEMA A captura de uma mesma cena e o rearranjo do conjunto de imagens em séries fotográficas, variando de trípticos até montagens de dezenas ou centenas de imagens, fez de Alair um criador de narrativas. Com uma produção que se inicia nos anos 1960, este tipo de montagem repercutiu em aproximações de sua fotografia com outros espaços criativos, como o cinema. Vale a pena lembrar do documentário A morte de Narciso (2003), de Luiz Carlos Lacerda, no qual rapazes trajados de maneira clássica recitam textos ed. 6

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eróticos de autores como Lúcio Cardoso, Francisco Bittencourt, Walmir Ayala e Jorge de Lima. Ou ainda o recente curta-metragem Inocentes (2017), de Douglas Soares, que dirige-se diretamente ao imaginário granulado da fotografia e da praia. Embora o objetivo de ambos os filmes seja trazer luz sobre o trajeto homoerótico de Alair, tais produções parecem chamar a atenção do espectador contemporâneo para outras relações que ele, em vida, já havia travado com o universo cinematográfico, como sua participação no filme de Júlio Bressane, Sermões – A história de Antônio Vieira, em 1989. Em uma das primeiras cenas, ajoelhado ao leito de morte do padre português interpretado por Othon Bastos, Alair Gomes aparece, de batina e cabelos brancos, também como um clérigo, segurando um terço e rezando. Esta participação indicava a oportunidade que teve para experienciar as relações entre observador e observado, que sua fotografia tanto abordou. Seu interesse pelo cinema é, ainda, anterior ao início de sua trajetória fotográfica. Em 1962, Alair publicou no Suplemento Literário do Diário de Notícias uma pequena resenha intitulada O enigma de Marienbad. Voltado para comentar o trabalho de Alair Resnais, O ano passado em Marienbad (1961), é para o escritor Alain Robbe-Grilet, roteirista do filme, que seu argumento direciona-se. Personagem central do Nouveaux Roman dos anos 1960, Robbe-Grilet levou a fundo a experimentação com a montagem das palavras na literatura e depois com montagem das imagens no cinema. Tudo isso por meio de estratégias de construção textual e cinematográfica realizadas pela composição e pela objetividade, com os quais ele propôs diversas manipulações da imagem, com o enquadramento, a sequência, o movimento da câmera, na produção de imagens temporais novas. Alair percebe na obra do escritor francês aspectos de montagem narrativa, ou disnarrativa, que resultaram em imagens que não seriam mais vistas como equivalentes do real, relação tida por ele como “uma concessão injustificável, uma armadilha insidiosa que a arte deve evitar” (GOMES, 1962, p. 4). Ele finaliza seu texto afirmando que “Marienbad poderia então ser vista como uma advertência” (Ibid.). Cabe-nos reativar sua advertência e direcioná-

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la para esmiuçar os usos que se faz dessa realidade homoerótica em sua produção fotográfica. O destrinchamento narrativo e a montagem presentes na resenha, foram centrais para o fotógrafo, uma questão que ele desmembrou em outros momentos, em uma análise artística contínua. Em 1979, Alair apresenta tal questionamento de uma outra maneira, em um curto parágrafo publicado na revista norte-americana Gay Sunshine: a Journal of Gay Liberation, juntamente com um ensaio fotográfico intitulado Carnival in Rio: a photo essay. Referindo-se ao cineasta e documentarista russo Dziga Vertov e ao seu cinema-olho, Alair aponta que embora trabalhasse com o cinema, Vertov pensava em termos fotográficos, sugerindo que sua “principal atividade foi a de editor, no sentido de compositor, com imagens fotográficas, concepções com as quais ele se entretinha” (GOMES, 1962, p. 4). Essa visão particular do trabalho artístico pela edição de imagens evidencia, paradoxalmente, a distância, ou a separação que Alair fazia de sua fotografia, com o cinema. Em uma entrevista realizada em 1983, Alair diz que, enquanto o cinema é “uma estrutura sequencial de diversas imagens [...] que se movem durante certo tempo e depois passam a ser acompanhadas de som”, a fotografia “em si não pede som exatamente porque ela não tem movimento e ela se contenta com a fixação de um determinado instante de movimento de situação” (PAIVA, 1983, s.p.). Assim, são as relações entre o movimento e a presença/ausência de som que produzem diferenças entre a sequencialidade da foto e a continuidade do cinema. Talvez por isso o fotógrafo apareça em notas do Jornal do Brasil em novembro e dezembro de 1978, como palestrante de uma mostra de filmes norte-americanos ocorrida no USA Center, em Copacabana, onde coube a Alair apresentar ao público um pouco sobre filmes como Intolerância, de D. W. Griffith, e de filmes mudos como O General, de Bursten Keaton. O que se percebe é que toda essa aproximação de Alair para com o cinema foi feita sempre a partir do ponto de vista fotográfico, ou como ele aponta na entrevista citada anteriormente, do seu interesse em “investigar o relacionamento entre a fotografia e as demais artes visuais. A meditação ed. 6

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sobre esse relacionamento me orientou muito também na escolha do gênero de fotografia que eu pratico” (PAIVA, 1983, s.p.).

TEATRO O relacionamento entre a fotografia e as demais artes, foi esmiuçado também no campo do teatro, especialmente por um episódio ocorrido em São Paulo. No início dos anos 1970, as peças O cemitério dos automóveis (de Fernando Arrabal) e O Balcão (escrito por Jean Genet) – ambas produzidas por Ruth Escobar e concebidas pelo argentino Victor Garcia, marcaram a cena teatral enquanto manifestos contra a ditadura e o cerceamento cultural. A montagem brasileira de o Balcão modificou a relação frontal do teatro tradicional e alterou as relações entre o palco, os atores e a plateia. A estrutura cilíndrica do palco vertical criada pelo arquiteto Wladimir Pereira Cardoso espalhava o público pelos vários níveis e alturas do espaço cênico – por entre rampas espirais, plataformas transparentes, passarelas suspensas e gaiolas-elevadores – permitindo que eles assistissem ao espetáculo de frente, de cima pra baixo ou de baixo pra cima, multiplicando e diversificando as possibilidades de experienciar a peça. O sucesso da montagem brasileira fez com que surgissem chances de apresentá-la no exterior, especialmente nos EUA. Ruth Escobar e Rofran Fernandes, assistente da peça, foram à Nova Iorque exibir o documentário sobre O Balcão feito pelo cineasta José Agripino de Paula, e se encontraram com possíveis apoiadores para a produção no Teatro Público de Nova York. Infelizmente, questões orçamentárias principalmente relacionadas à cenografia impossibilitaram sua realização naquela cidade. Mas um precioso registro ficou de toda essa história. Em dezembro de 1971, foi publicado na revista de teatro norteamericana Performance um ensaio fotográfico de Alair Gomes, intitulado The Balcony (a photo essay). Trata-se de um ensaio fotográfico de registro da peça. Em dez imagens que

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ocupam a capa e a parte central da revista (imagens que podem ser encontradas na internet), é notório que Alair, enquanto espectador, incorporou a proposta cênica para explorar as diversas relações entre os níveis de altura do cenário e de sombra, resultantes dos focos advindos de canhões de luz do fosso do palco, fabricando imagens diagonais, tanto de frontalidade quanto aquelas que modificam o horizonte do tema fotografado. A descoberta desta publicação, apenas sugerida em algumas pesquisas dedicadas ao fotógrafo, é uma forte evidência de que a divisão hoje realizada entre uma “fotografia artística” – a homoerótica – e uma prática amadora de registro documental não pode ser mais analisada de modo estanque, sem que as considerações estéticas de uma apareça na outra. Os ângulos que registram a peça, plongée e contre-plongée, partem das mesmas estratégias utilizadas pelo fotógrafo na janela de seu apartamentoateliê em relação aos rapazes nas calçadas, como nos trabalhos da série The Course of the Sun. Assim também ocorre com outras imagens realizadas por ele de outros espetáculos, como, por exemplo, a fotografia de José Wilker e Rubens Corrêa em O arquiteto e o imperador da Assíria (imagem disponível na internet). A peça realizada por Fernando Arrabal em 1970 (e que no ano anterior havia realizado Cemitério dos automóveis, a outra peça produzida por Escobar e Garcia). Para além de um exercício formal, tais conexões entre as imagens são importantes por aventar que, não apenas a experiência da janela contribuiu para a poética da distância de Alair Gomes, como também marcou o reconhecimento para com o trabalho do fotógrafo, imbrincado em sua vivência o seu contato cultural com o teatro, com o espaço cênico, com as relações de altura, distância, luz, sombra, proximidade da cena e distanciamento do objeto, pontos chaves para sua exploração da imagem. Sendo assim, distante daquela melancólica imagem construída de um artista, genial e solitário, em seu apartamento-ateliê em Ipanema, fotografando os rapazes na orla ou na praia, é preciso reconsiderar a circulação que Alair Gomes teve no ambiente teatral, cultural, universitário e científico carioca entre os anos 1960 e 1980. ed. 6

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FOTOGRAFIA As possibilidades e a reflexão que tanto o cinema quanto o teatro deram a Alair, permitiram a ele aprofundar diferentes questões técnicas e estéticas de seu próprio trabalho com a fotografia. Ressalto, por fim, o que pode ser um curto exemplo no qual o fotógrafo procurou conectar os aspectos visuais e fotográficos à linguagem do cinema e aos requisitos cênicos do teatro. Em agosto de 1974, Alair Gomes escreveu um “Esboço para uma composição cinematográfica”, propondo uma intervenção estética na peça Ensaio Selvagem, escrita por José Vicente e montada no Teatro Ipanema sob a direção de Rubem Corrêa (o mesmo que Alair fotografou junto com José Wilker em O arquiteto e o imperador da Assíria). O esboço datilografado de quatro páginas, dividido em três partes – pertencente ao Acervo Alair Gomes, da FBN/RJ –, é claro ao registrar que ele é resultado de discussões mantidas com o diretor da peça e com Hélio Eichbauer, cenógrafo e figurinista da peça. A ideia diretriz da composição cinematográfica era a montagem de uma narrativa paralela à estrutura central da peça, de modo que as imagens projetadas permanecessem autônomas e “sem prejuízo da marcação e do cenário, mas impondo-se sobre as interferências inevitavelmente introduzidas por ambos” (GOMES, 1974, p. 2). Se o trabalho de Robbe-Grilet, anteriormente, fora tido como uma advertência em relação ao efeito de real do cinema, aqui a composição de Alair era em suas próprias palavras, “uma denúncia visual”, um distanciamento da estrutura interna da peça, a fim de evitar o que chamou de “sobrecarga visual” (GOMES, 1974, p. 2). Para alcançar a “impressão dominante de fluxo, mudança e movimento” (GOMES, 1974, p. 2), o fotográfico propõe uma “multiplicidade de superfícies de projeção” (Ibid.) que deveria ocupar, no máximo, 2/3 do tempo do espetáculo. Nesta multiplicidade estaria, por exemplo, a utilização de telas brancas que abrangiam todo o cenário ou apenas partes e que garantiriam momentos pontuais e precisos para as imagens projetadas. As telas seriam apenas acionadas mediante alguma projeção, visando uma “melhor integração entre imagem cinematográfica e imagem viva” (GOMES, 1974, p. 3) no palco.

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A parte final do esboço sugere saídas técnicas e uma série de estratégias visuais para a projeção cinematográfica, como o escurecimento progressivo de projeções, e o retorno no final da peça da mesma imagem projetada na abertura. Tudo a partir do tema dos quatro elementos naturais – fogo, ar, terra e água – proposto por Corrêa. A realização das intervenções visuais propostas em Ensaio Selvagem ainda é incerta, pois como coloca Alair, elas dependeriam do sucesso, ou do insucesso, das tentativas experimentais realizadas durante os ensaios. Nas notícias da época, é clara a ressonância do cenário que a peça teve por conta do exercício de linguagem que “atinge um depuramento e um requinte de espetáculo que o tornam, seguramente, tão integrado a uma proposta estética [que] se nutrem basicamente do contato com a realidade de seu tempo”, como coloca Macksen Luiz no jornal Opinião. (1974, p. 22). Em meio a tudo o que foi aqui exposto, se foi ou não utilizada, o que parece ser o ponto central é o interesse poético de Alair Gomes, que não deve ser negligenciado na discussão contemporânea de sua produção. Ao olhar para a linguagem do cinema e experimentar com o espaço cênico do teatro, sua séries fotográficas são o que são por conta da montagem e da composição narrativa peculiar nelas utilizadas. No texto Reflexões críticas e sinceras sobre a fotografia, de 1976, o fotógrafo afirma que “A fotografia é um meio que permite a produção de uma enorme quantidade de imagens; estar plenamente ciente desse fato e explorálo talvez seja indispensável para a prática da fotografia como forma artística independente” (GOMES, 2014, s.p.). Ele conclui que “Talvez seja apenas com a construção – não de imagens individuais que pretendem funcionar sozinhas, mas de estruturas complexas de múltiplas imagens – que um fotógrafo poderá lidar com concepções amplas, globais” (Ibid.) Para além de uma celebração à beleza e à perfeição de corpos cuja atemporalidade e branquitude remontam à estatuária greco-romana, e aproximações formais quase unânimes sobre sua obra, que nos faz lembrar dos perigos que os discursos celebratórios carregam, este texto procurou evidenciar recursos para que possamos ter um maior contato com as próprias realizações de Alair Gomes, e que mostrem sua fotografia como uma ed. 6

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sequência narrativa complexa e potente, que ultrapassa a ode totalizante do homoerótico, e nos ajude hoje a reconsiderar sua poética diante do que a historiografia já construiu sobre ela, sobre o contemporâneo de Alair Gomes e também sobre o nosso contemporâneo.

REFERÊNCIAS GOMES, Alair. “Esboço para uma composição cinematográfica destinada a integrar a produção de Ensaio Selvagem, de José Vicente, no Teatro Ipanema, sob a direção de Rubem Corrêa”. Texto datilografado, Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 03/08/1974. ______. “O enigma de Marienbad”. Diário de Notícias, Suplemento Literário. Rio de Janeiro, 17/06/1962, p. 4. GOMES, Alair. “Reflexões críticas e sinceras sobre a fotografia” [1976]. Revista ZUM, São Paulo, n. 6, abr. 2014. Não paginado. LUIZ, Macksen. Retratos da crise. Opinião. Rio de Janeiro, 16/09/1974, p. 22. PAIVA, Joaquim. “Entrevista com Alair Gomes, 19 jul. 1983”. Texto datilografado localizado no Cento de Documentação FUNARTE, Rio de Janeiro (RJ). Uma versão encontra-se publicada em português na Revista ZUM, São Paulo, n. 6, abr. 2014. Não paginado.

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Resenha SHOWGIRLS: UMA ODE AO DEBOCHE NA REPRESENTAÇÃO DO CLICHÊ HOLLYWOODIANO Marcus Lemos1

Resumo: Esta análise visa buscar novos olhares, inicialmente ignorados pela critica cinematográfica, no filme Showglrls, de Paul Verhoeven. Buscando como alternativas instruções narrativas que dão ênfase aos cunhos sarcásticos que circundam esta produção, a pesquisa tem como foco a representação da cultura de massa norte-americana enquanto manobra satírica para uma exposição de seu contraditório moralismo nacionalista. Palavras-chave: Verhoeven; Showgirls; Cinema; Fetichismo, Clichê.

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Graduando em História da Arte pela Escola de Belas Artes – UFRJ. Pesquisa e trabalha com questões que envolvem áreas de moda, cinema, cultura pop, gênero e sexualidade. Suas experiências profissionais incluem produção de conteúdo editorial e textual sobre o mercado fonográfico para o site Popclash. Já passou por instituições como IUPERJ e PUC-Rio, nos setores de Artes Visuais e Design, respectivamente. Contato: lemosmarcus@icloud.com |lattes: https://bit.ly/2ZjnPKJ ed. 6 I julho 2019 135


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“There’s always someone younger and hungrier coming down the stairs after you”2, afirma Cristal Connors (Gina Gershon) no ato final de Showgirls (1995). Sua colocação sintetiza bem a aposta de Paul Verhoeven na produção de seu clássico da meia-noite. Analisando a manutenção da indústria da fama e a hierarquia de seu poder, constrói uma narrativa com foco na jornada de uma anti-heroína como ponto de partida para sua crítica ao showbiz norte-americano.

Este período, que data o início dos anos de 1990, é marcado um momentochave no meio cinematográfico onde o sexo, que havia sido pulverizado em prol de um boom pudico-social, reencontrava suas representações na grande mídia, sendo especialmente readotado pelo cinema de autor. Nesta abertura discursiva, tratar sobre sexo explícito era uma atitude narrativa que afastaria a moralidade quanto à obscenidade. Assim, novas representações visuais da nudez acabaram encontrando novos caminhos em narrativas artísticas. Verhoeven era muito conhecido em seu meio de origem, circulando pelo cinema europeu setentista. Após a ultra visibilidade que seu Louca Paixão (1973) alcançou, gerando indicações aos grandes prêmios acadêmicos de cinema do ano, o diretor volta sua produção para o cenário norte-americano, onde ascende, utilizando como uma de suas estratégias narrativas as diferentes concepções do corpo feminino sob a ótica sexual. Uma década e meia depois de seu debut no mercado hollywoodiano, o diretor - responsável por dezenas de sucessos que variam entre blockbusters e experimentações como O Quarto Homem, Conquista Sangrenta e O Vingador do Futuro - se cansa da fórmula exigida pela indústria e aproveita este cenário de eclosão categorizante para prosseguir sua nova linha de pesquisa. Instinto Selvagem (1992), inicia seu flerte com as metodologias femininas e sexuais, mas Showgirls acaba levando à raiz a estruturação do que o new extremism3 é. Walter Salles explicita bem a conceituação desta nova onda de erotismo explícito:

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“Sempre há alguém mais novo e mais faminto descendo as escadas depois de você”.

New extremism é uma expressão cunhada pelo crítico James Quandt sobre a tendência cinematográfica de novas representações visuais do sexo explícito. ed. 6

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Há sinais por todos os lados. Na pintura, no cinema, na fotografia e na literatura. Depois do conservadorismo dos anos 80 e 90, volta-se a falar da nudez dos corpos, de desejo e de erotismo. O jornal francês Le Monde define o momento como um “violento e salutar retorno ao real, em oposição à amnésia imposta – e aceita – nas últimas décadas”. Não que o nu estivesse ausente da vida contemporânea. Ao contrário, foi banalizado mundo afora pela publicidade, que disseminou imagens de corpos “asseptizados”, retocados digitalmente para vender todo tipo de produto.

O filme foi ridicularizado pela crítica especializada, sendo negativamente encarado como o produto principal decorrente do cinema de arte pornô com um cunho populista – porque tradicionalmente esta categoria traz em sua composição cenas que carregam o sexo em seu âmbito mais real, sendo visível a tela uma penetração, como na pornografia, por exemplo. Entretanto, Showgirls, abusa da superexposição e dos cunhos sexuais, mas não concretiza tradicionalmente nenhum destes. O que incomoda é a sua megalomania e a variação de diferentes tipos de repetições estruturais e tradicionais. Suas representações sexuais têm a intenção de designar ao espectador nada além de repugnância. O filme circunda a saga da anti-heroína Nomi Malone, (Elizabeth Berkley), uma aspirante a dançarina que almeja a fama e foge de sua cidade do interior estadunidense para tentar a vida em Las Vegas. Ao chegar a cidade dos sonhos, Malone percebe que o ramo do entretenimento não funciona da forma como ela imagina, tampouco a vida adulta, explorando em narrativas desconexas diversos pontos e interações desta proposição. Essa sinopse parece mais uma de um blockbuster qualquer onde uma novata rebelde tenta alcançar seus objetivos aos encalços de uma megera - Cristal. O que transforma a narrativa deste filme não é a própria figuração sexual que o filme agrega, mas seu conjunto que tenta expor a podridão enraizada neste sistema. Kitsch é a palavra que melhor representa a estética do hotel-cassino, da cidade e do meio qual o filme se passa e que consequentemente refletem a todo momento as relações de repetições quais denuncia. Essas repetições

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variam desde atitudes que a personagem principal repreende e ocasionalmente reproduz, até cenas literalmente iguais pensadas duas vezes com atores diferentes nas mesmas reproduções de poder. Aqui, o foco é evidenciar o escândalo, a corrupção e o abuso que assolam as pessoas envolvidas nesse meio. Nomi constantemente traz à tona a metáfora da dança enquanto seu ato libertário – o que carrega consigo mesma em todo ato de recomeço. É relembrada a todo instante que ao apostar todas suas fichas em uma única possibilidade, tudo pode perder, mesmo agindo de forma completamente inconsequente – retratada por Verhoeven a todo instante de forma excessiva, quase forçada. Esta é uma característica identificada em todas as personagens, que vivem sob uma bolha melodramática. A hierarquia de poder dentro da indústria do entretenimento é o ponto principal para entendermos o porquê do acumulo milimetricamente pensado aos excessos do filme. Ao começarmos por Nomi, uma jovem-adulta que já cometeu muitos erros em sua curta trajetória e vive na eminência de não repeti-los, insistindo na amplificação de um sonho. Deseja insistentemente ascender dentro deste sistema, explorando desde suas menores esferas – onde inicia sua carreira, na boate Cheetah – até as grandes plataformas referenciais de sucesso da cidade – sendo a estrela principal do espetáculo Goddess. Puro clichê, mas adotados a corrupção, ao machismo, prostituição, luxo e a superexposição feminina, compõem em unidade a raiz do problema qual o filme deseja expor: a construção metafórica referente a indisposição do diretor com o campo de trabalho norte-americano e a exposição fraudulenta de um sistema abusivo. Segmentos que explicitam o assédio e a prostituição quase forçada por grandes produtores e esquemas de acobertamento sobre casos de estupro cometidos por pessoas famosas são algumas das pautas adotadas pelo diretor a expor, evidenciando há mais de 23 anos problemas que já eram de conhecimento notório, mas que foram expostos apenas recentemente pela grande mídia - como os escândalos envolvendo Harvey Weinstein e Kevin Spacey. Levando em consideração o protecionismo nacionalista cultural norte-americano, entendemos que uma crítica ao sistema adequada a uma nova decorrência estilística que flerta com a quebra do falso-pudor e flerta a todo instante com atuações e composições exageradas não sejam ed. 6

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agraciadas facilmente pela mídia especializada, assim sofrendo dezenas de críticas.É necessário olhar Showgirls na contemporaneidade com novos olhares, que o distanciam da análise do movimento cultural protecionista que retratava. É difícil conceber a qualidade de um filme cuja intenção seja o deboche e o exagero clichê representativo de uma indústria, com atuações sofridas e forçadas, mas ao mesmo tempo o que fortifica a critica de Verhoeven é sua análise e a miscelânea destes infortúnios propositais em sua composição cinematográfica. Este filme não é um ponto fora da curva de sua cinematografia. Isto é, quando pensamos na entrega e feitura do conceito originalmente proposto. Sua mise-en-scène opulenta continua a atrair e prender obsessivamente o espectador, mas entra em oposição aos contrastes adquiridos pela linguagem temática e narrativa abordadas, como a utilização excessiva de violência unida ao embate do patriarcado, a exposição do machismo e a desconstrução do glamour perante ao sexo, ao mesmo tempo destrinchado e coibido pela sociedade americana Alguns conceitos e sequências nos ajudam a compreender melhor a ilustração instaurada pelo diretor. As repetições mais uma vez aqui tornam a tona, onde a coreografia utilizada para todas as diferentes cenas de sexo da trama era a mesma, alterada apenas em tons de intensidade e violência, sempre instaurados por uma trilha sonora estritamente cafona inspirada nos softporns oitentistas. Existe uma construção linear em torno das representações sexuais dentro da narrativa do filme. Duas cenas são primordiais para esta análise: na primeira, ainda stripper no Cheetah, Nomi é abordada por Cristal para um lap dance em Zack (Kyle MacLachlan), produtor executivo de Goddess e seu namorado. Ela se recusa, até o proprietário do clube ouvir a antagonista oferecer quinhentos dólares e força-la. Essencialmente, a sequência se transforma numa exemplificação de preliminar. Mesmo estando completamente vestido, Nomi o leva ao orgasmo, enquanto esbanja sua sensualidade e desenvolve em dois minutos um fluxo pujante megalomaníaco que retrata satiricamente a forma com que mulheres são enxergadas enquanto objetos de desejo e fortuito masculino em outras produções cinematográficas – explorando nada além do clichê.

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Os níveis de significados desta cena e as interações entre as três personagens são mais que complexos. Ostensivamente, Cristal humilha Nomi demonstrando seu poder, “alugando-a” contra sua vontade – literalmente impondo uma forma escrava ao seu serviço. Entretanto, Nomi já havia criado uma oportunidade para ser apresentada a Cristal anteriormente e sabia de seu interesse, assim como também era de seu conhecimento os plenos poderes que Zack tinha no hotel-cassino. Assim, quando inicia seu ato, reverte o jogo de poder. Usa seu corpo para externalizar esse poder contra o namorado de Cristal, que não coincidentemente é seu futuro patrão. Embora Cristal tenha comprado o lap dance para Zack, é óbvio que ele, na verdade, é apenas um substituto para a namorada, que se vê seduzida e arrebatada pela sexualidade de Nomi – que posteriormente manda um de seus funcionários ao clube para oferece-la uma audição no corpo de baile de Goddess. É uma cena com cunhos e figurações sexuais, mas a última instância de sua significância permeia sobre o sexo. A segunda cena também gira em torno do empresário e da dançarina, agora membro do elenco do grande espetáculo. Neste contexto, Nomi entreouve conversas e descobre que a diretoria do hotel-cassino busca uma nova substituta para o papel principal, pertencente a Cristal. Assim, cede as investidas do chefe e aceita um convite para ir até sua casa, onde transam em sua piscina. Filmada de uma forma ultrarromântica, ultrapassando os limites do cafona, Verhoeven utiliza a repetição como uma forma de ligação ao primeiro enlaço entre as personagens. A coreografia, que opera como figuração sexual, funciona nesta metodologia de forma que uma ecoe sobre a outra e o espectador possa notar que Nomi está construindo as mesmas relações de poder em uma forma diferente.

Assim, se institui novamente a sátira, onde ao se aprofundar no calculismo e na manipulação, o diretor apresenta de forma rasgada uma alteração na proposição da personagem como consequência literal. De forma nada sensual, a cena se constitui com uma Nomi Malone se debatendo violentamente contra a piscina enquanto geme, incomodando o espectador perturbadoramente. Apresentando novamente o sexo como ferramenta narrativa com figurações literais, mergulhando na metalinguagem cinematográfica – construindo a relação entre sexo e violência ao mesmo tempo em que aprofunda os conceitos de oportunismo e figuração deturpada do corpo feminino e sensualidade. ed. 6

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Posteriormente, Nomi empurra sua rival de uma escada, após um dos hiperbólicos números musicais do filme. Ela sabe que no showbiz, quando não se sobra ninguém, é você quem é escolhido. Agarrando então o posto de estrela, ela brinca de inocente, mas se prova o contrário. Se mostra disposta a pagar qualquer preço pelo sucesso, mas eventualmente acorda após um violento segmento onde sua melhor amiga, Molly (Gina Ravera) acaba sendo estuprada pelo astro do rock Andrew Carver (William Shockley). Ela percebe que a cada passo dado para alcançar seus objetivos, perdia um pouco da sua humanidade e que aqui não conseguiria abrir mão de sua alma em troca do sucesso para acobertar o protegido de Zack. Neste último ato, seu passado infame é revelado – identificando as problemáticas em torno de sua personalidade como reflexos de um passado sombrio. Em seu derradeiro fim, a dançarina foge, pois não consegue confrontar a realidade, e se encontra em mais um estado de repetição: da exata forma com que o filme começa, buscando uma carona para qualquer outro lugar, curiosamente encontrando o mesmo homem que havia lhe levado a Las Vegas.Os artifícios narrativos

instaurados por Verhoeven constroem as problemáticas do filme num lugar onde o abuso do clichê e a violência do sutil coexistem num mesmo espaço. Assim, retrata dramaticamente o incômodo, afirmando:

Quanto mais eu pensava sobre, mais eu percebia que Showgirls deveria ser mais extravagante e mais excessivo do que o planejado dentro das grandes produções. Afinal, é sobre um espetáculo de Las Vegas. Se passa em uma cidade onde é comum encontrar diariamente grandes pirâmides, vulcões em erupção, tigres brancos e uma imensidade de neon tão brilhante quanto a luz do dia à meia-noite. Pessoas estão ganhando e perdendo milhões de dólares em volta de apostas. É literalmente uma cidade completamente extravagante. Logo, a versão hollywoodiana de um espetáculo de Las Vegas tem de deslumbrar os espectadores que a vivenciaram – assim como os que a não vivenciaram.A simulação da excitação

que deveria ser consumida pelo público juntamente a exposição das narrativas problemáticas de bastidores do showbiz são o que fazem de Showgirls debochado, ao artificializar e criticar a sensualidade e instâncias

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problemáticas como objetos de consumo fetichistas. Por fim, a abordagem do lado obscuro do sonho americano4 é quem ganha o jogo – expondo a contradição da falsidade de uma vida de espetáculo sob os holofotes.

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Teoria criada por Joe Eszterhas

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Referências Bibliográficas: VERHOEVEN, Paul. Showgirls. 128 min. EUA/FR- 1995. QUANDT, James. Flesh & Blood: sex and violence in recente french cinema. In: ArtForum, vol. 42, n. 6. Fevereiro, 2004. MOREL, Josue. La trilogie politique de Paul Verhoeven. 2016. Paris, França. Disponível em: https://www.critikat.com/panorama/dossier/latrilogie-politique-de-paul-verhoeven/ NAYMAN, Adam. It Doesn’t Suck: Showgirls. 2014. ECW Press: Toronto, Canadá. VERHOEVEN, Paul. “Sex, cinema & showgirls”. In: “Showgirls”: Portrait of a film; pp: 7-22. Aurum Press: Londres, Inglaterra. 1995. SALLES, Walter. O Erotismo Volta à Tona na Literatura e no Cinema Europeu. In: Folha de São Paulo, 7 de julho de 2001. ESZTERHAS, Joe. Hollywood Animal: A memoir. Vintage: EUA. 2004.

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Tradução Capítulo 3 - Ninfas e anjos: O pensamento a partir da obsessão com uma imagem.

Tradução de Marcela Tavares do terceiro capítulo do livro “De ángeles y ninfas: conjeturas sobre la imagen em Warburg y Benjamin” de Adriana Valdés, publicado pela editora Orjikh de Santiago de Chile em Julho de 2012.

O retrato póstumo de Walter Benjamin feito por Theodor Adorno, em 1950, termina com uma frase que me permitirei citar parcialmente: “Fundiu-se sem reserva na multiplicidade… na tentativa de analisar, apesar de tudo, o paradoxo com os únicos meios de que dispõe a filosofia: os conceitos”1. Sessenta anos depois – quando chegou o tempo de outra legibilidade para Benjamin – cabe a pergunta: se ainda se sustenta essa ideia de que os conceitos são os únicos meios que dispõe a filosofia. Ou, se para dizer isso, haveria que redefinir a noção de conceito. Se pode conjeturar que esta afirmação estremece, ao menos parcialmente, frente à irrupção incontrolável das imagens e de muitas dimensões do conhecimento e do pensamento, que esta irrupção traz consigo. O conhecimento que provem da imagem é fulgurante; o texto (que comumente é entendido como a conceitualização – a verbalização) vem depois.2 No livro das passagens, Benjamin compara o conhecimento com o relâmpago e o texto ao trovão, que se ouve um certo tempo depois da visão do brilho3. 1 ADORNO, Theodor W. “Caracterización de Walter Benjamin”, em Prismas, Barcelona. 2 Seria necessário pensar no que os artistas visuais entendem hoje por “conceito” para problematizar a relação entre “conceito e verbalização. 3 “In the fields with which we are concerned, knowledge comes only in lighted. 6 I julho 2019 145


Esta metáfora provavelmente irritaria a Adorno. No entanto, explica o caráter precursor que as atuais leituras concedem tanto a Warburg quanto a Benjamin, cujo momento de legibilidade chegou tantos anos depois. A palavra “conceito” adquire sentidos diversos em contextos distintos. É necessário dar uma pista: para Warburg, o “conceito” tinha relação ao mesmo tempo com o jogo (jogo de palavras) e com o trabalho de formulação de uma ideia: encontrar um pensamento e um jogo, pensá-lo desde múltiplos ângulos, criar variações sobre um pensamento recebido (em vez de criá-lo) “é o método que, na maioria dos casos, consegue a formulação definitiva que se estava buscando.”4 Neste trabalho, ao tratar do pensamento, me propus colocar a tônica menos na “formulação definitiva” do que no momento das “variações” e do “jogo” - de certa maneira voltando ao sentido renascentista e barroco do “concetto”, que serviu tanto à palavra “conceito” como ao “conceit” do inglês, que se relaciona com as figuras literárias do barroco (como também o faz, o “conceptismo” literário do século de ouro espanhol). Busco com isto, evitar que “os detalhes” - nos quais, segundo Warburg, se encontra o “deus bom”, ou “os ventos de um vestido” e nos quais, segundo Benjamin, há mais do eterno do que “em qualquer ideia”5 - fiquem subsumidos sob o excesso de “um idealismo que achata o plural para exibir a pretendida unidade do conceito”6. Tanto Warburg quanto Benjamin se obstinaram por persistir na diversidade, na pluralidade, da imagem e em resistir à sua redução ou “achatamento”.

ning flashes. The next is the long roll of thunder that follows”. “Dans le domaine qui nous occupent, il n’y a de connaissance que fulgurante. Le texte est le tonnerre qui fait entendre son grondement longtemps après” (Nos âmbitos que nos interessam, o conhecimento só chega como um relâmpago. O texto é o trovão, que se sente posteriormente”). BENJAMIN, W. The Arcades Project (N2.2) 4 STIMILI, D. “L’impresa di Warburg”, aut-aut 321/322, Milano, maggio-agosto 2004, p.104. Meus agradecimentos a Dra. Constanza Acuña por me mostrar este texto. 5 BENJAMIN, W. The Arcades Project, translated by Howard Eiland and Kevin McLaughlin, Cambridge, Mass. and London, England, Belknap/Harvard, 1999, p.432, (N 3, 2). 6 TACKELS, B. Walter Benjamin, Une vie dans les textes – biographie, Arles, Actes Sud, 2009, p.713.

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O conhecimento da imagem é instantâneo. (Warburg fala de “um retorno fulminante a uma maneira mais primitiva de captar, de capturar”7). O trabalho de pensamento que isto implica gera uma busca de um texto capaz de expressar – mais tarde – esse conhecimento. Este trabalho escolhe somente duas imagens chave, a da ninfa e a do anjo, para refletir o caráter do pensamento dos autores que nos ocupam, assinalando o que Alfonso Reyes chamaria de suas “simpatias e diferenças”. No caso de Warburg, entre a enorme quantidade de imagens com que trabalha sua erudição, é a imagem da ninfa que, reiteradas vezes, foi “uma obsessão em toda sua vida”8 Para se referir a uma só imagem: a ninfa pintada por Domeico Ghirlandaio no ano de 1486, no afresco Nascimento de São João Batista, da Capela Tornabuoni em Florença, é a imagem que melhor encarna a ideia do intempestivo, da irrupção do passado em um presente, que até agora viemos desenvolvendo. E o que Warburg definiu como “o élan, o gozo, a força do antigo mito”.9

DOMENICO GHIRLANDAIO, “Nascimento de São João Batista”. Capela Tornabuoni, Santa Maria Novella, Florença, 1486.

7 WARBURG, A. “Postscriptum alla conferenza di Alfred Doren ‘Fortuna nel Medioevo e nel Rinascimento”, 1923. In: aut-aut 321/322, Milano, maggio-agosto 2004, p.16. 8 CHECA, F. “La idea de imagen artística em Aby Warburg: el atals Mnemosyne, 1924-1929”. In: WARBURG, A., Atlas Menemosyne, op. cit., p.135. 9 Apud FORSTER, K.W., “Introducción a Aby Warburg”. In: The Renewal of Pagan Antiquity – Contributions to the Cultural History of the Eropean Renaissance. The Getty Research Institute, Los Angeles, 1999, p. 15. ed. 6 I julho 2019 147


A imagem da ninfa obcecou a Warburg e inclusive, na sua juventude, convenceu seu amigo André Jolles a sustentar uma correspondência sobre ela, em que Jolles deveria assumir o papel de um apaixonado pela ninfa, e a Warburg correspondia esgotar todas as possibilidades interpretativas da imagem.10 A correspondência não prosperou, nem a obra Ninfa conseguiu ser terminada, mas a persistência da imagem até os últimos trabalhos de Warburg no Atlas Mnemosyne, justamente antes da sua morte, dá testemunho da importância desta imagem em sua obra. O afresco de Ghirlandaio indica uma irrupção, uma fulgurante presença do passado pagão que se introduz, leviana, dançante, em uma pintura que, se não fosse por ela, a veríamos como estática. “Irrompe”, escreve Warburg, “nesta lenta respeitabilidade, neste controlado cristianismo”11. O pintor usou um modelo cronologicamente e tematicamente defasado em relação ao modelo das outras figuras: sua ninfa se apropria de uma silhueta da antiguidade romana, e a introduz em um contexto completamente diferente, com um valor também distinto. A ninfa, ao longo dos estudos de Warburg, vai se complexificando. Em Ruskin, ou Proust, ou em outras analogias mais ou menos contemporâneas a estes autores, a ninfa poderia ser vista somente como uma “fantasia masculina do período vitoriano tardio”12. Em Waburg, ao contrário, a figura da ninfa é muito mais potente e complicada; suas formas vão se identificando com a silhueta da mênade, com a força aterradora da energia dionisíaca e inclusive com outra figura chave para Warburg, a serpente, como foi brilhantemente estudado por Roberto Calasso13. “A loucura que vem das ninfas”, segundo ele, tem relação com “um saber líquido, fluido”, ao qual Apolo “irá impor sua 10 DIDI-HUBERMAN, G., L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Les Éditions de Minuit, Paris, 2002. p. 256, e FORSTER, K.W., “Introducción a Aby Warburg”. In: The Renewal of Pagan Antiquity – Contributions to the Cultural History of the Eropean Renaissance. The Getty Research Institute, Los Angeles, 1999, p. 21. 11 CALASSO, R. La locura que viene de la ninfas. Editorial Sexto Piso, México D.F., 2008, p. 28. 12 FORSTER, K.W., Op. cit. p. 19. 13 CALASSO, R., Op. cit. 148   |  revista da graduação eba/ufrj


medida”, menosprezando e humilhando “estes seres femininos portadores de um saber anterior a ele”, um “conhecimento metamórfico que se condensaria em um lugar que era ao mesmo tempo uma fonte, uma serpente e uma ninfa.”14. É, precisamente, o conhecimento perturbador; um conhecimento que passa não pela contemplação, mas por um ser possuído, raptado por uma possessão, o divino. A ninfa rapta, enraptures: Sócrates se declara “ninfolepto” em Fedro15. Na antiguidade pagã, diz Calasso, “todo aumento repentino da intensidade introduzia na esfera de um deus” e cada metamorfose era por si só um conhecimento, mas na esfera do pathos16. A fascinação de Warburg pela ninfa e pelo seu lado reverso, a serpente, esteve presente em seu episódio esquizofrênico, do qual emergiu, contra muitos prognósticos médicos, não renunciando aos seus estudos, mas ao contrário, em certo sentido intensificando-os até produzir a cura17, mediante “uma sabedoria dos gestos e das imagens” aprendida entre os índios Pueblo. Se a partir de Warburg pensamos a imagem da ninfa, como obsessão de uma vida, desde Benjamin teríamos que pensar o anjo. Os anjos – o anjo da Melancolia I de Dürrer, o Angelus Novus de Paul Klee18 - servem de exemplo 14 Ibid., p.14. 15 Calasso diz que Socrátes pecou contra a mitologia, por “desconhecer a linguagem dos simulacros, de uma sabedoria que se expressa com os gestos e as imagens” (Ibid., p. 25) 16 “Como Aristóteles definiu a experiência mistérica”, diz Calasso (Ibid., p. 21) 17 BINSWANGER, L. e WARBURG, A., La guérison infinie. Payot-Rivages, Paris, 2007. Warburg menciona sua convicção de contar com “uma potência autônoma de liberação da pertubação psíquica”. “Le symbole, ça panse”, e o símbolo parece ter sido mais saudável que o ópio ou o láudano que os mais destacados psiquiatras do momento receitaram a Warburg, entre eles Kraepelin. 18 WEIGEL, S., “Les chefs-d’oeuvre inconnus dans la galerie d’images de Walter Benjamin”. In: A.A.V.V. Imagens Re-vues, Hors-série n.2, 2010. Acessível em: http://imagesrevues.org. “Après l’acquisition de l’image à Munich, alors qu’elle était accrochée dans l’appartement munichois de Scholem, Benjamin, dans une lettre à son ami, la qualifie de “protecteur de la Kabbale” (16 juin 1921, GB II, p.160) Lorsque Scholem lui envoie alors le poème Salutation de l’Ange (…) pour le 15 juillet 1921, dans lequel un ‘Je’ lyrique adresse à Benjamin la lecture de l’image de Klee faite par Scholem du point de vue d’un ange, Benjamin répond par un remerciement qui dissimule une prise de distance: “T’ai-je dit un mot de son ‘salut’? La langue angélique compte au nombre de ses merveilles l’avantage qu’on ne peut lui répondre. Que faire alors sinon te prier de recevoir mes remerciements à la place de l’ange” (C I, p. 246). ed. 6 I julho 2019 149


de como as imagens não ilustram, mas, ao contrário, geram pensamento. Em primeiro lugar, o encontro de cada uma dessas imagens produziu em Benjamin uma impressão intensa; depois, um longo período de latência, no qual a recordação da imagem foi abrindo caminho na sua reflexão. Em seguida, se produziu um encontro com a imagem desde uma perspectiva mais analítica; a gênese de um texto, o pensamento sobre a imagem dialética, uma teoria nascente19. En adressant son remerciement expressément à Scholem “à la place de l’ange”, il réfute son identification avec l’ange aussi bien que l’identification de la figure de Klee avec l’imterprétation que Scholem en fait. D’une part, le souhait de revenir em arrière que Scholem a placé dans la bouche de l’Angelus (“Mes ailes sont prêtes à s’ouvrir/ Tant j’ai plaisir à revenir”) est contraire au souci constant de Benjamin: prendre em considération la distance de l’Histoire par rapport à la Création. Mais de plus, il n’a pas dû échapper à la sensibilité philologique de Benjamin que le poème convoque dans la strophe de fin une sorte d’autorité interprétative: “Je suis chose non pas symbole/ Qui signifie ce que je suis/ Tutournes em vain l’anneau magique/ Aucunement je n’ai de sens”; revendication qui, à la première personne, se trouve em plus autorisée par une voix angélique, alors que le poème attribue em même temps un sens tout à fait précis à l’image: il interprète l’Angelus comme l’incarnation d’un être céleste qui, sur le ton de l’annonciation, condamme le temps vivant à être peu hereux: “Car à rester le temps de vivre/ mon bonheur irait s’amoindrir” (C I, p. 247) (“Depois da aquisição da imagem em Munique, e quando estava pendurada no apartamento de Scholem nesta cidade, Benjamin, em uma carta a seu amigo, a qualifica de “protetora da Cabala”. Depois que Scholem o envia o poema “Saudação ao anjo” (…) no dia 15 de julho de 1921, no qual um “eu” lírico dirige a Benjamin a leitura da imagem de Klee, que Scholem faz assumindo um ponto de vista de um anjo, Benjamin responde com um agradecimento que dissimula sua distância: “Te disse algo sobre a sua “saudação”? Entre as maravilhas da fala angelical, ela conta com a vantagem de não poder ser respondida. O que fazer, então, senão pedir que recebas meus agradecimentos no lugar do anjo.” (C I, p.246) Ao dirigir seu agradecimento expressamente a Scholem “no lugar do anjo”, refuta a identificação deste com o anjo e também a identificação da figura de Klee com a interpretação feita por Scholem. Por um lado, o desejo volta a trás que Scholem coloca na boca do Angelus (“minhas asas se dispõem a abrir/ tal é meu prazer em voltar”) é contrário à constante preocupação de Benjamin: levar em consideração a distância que separa a história da criação. Também não devia escapar à sensibilidade filológica de Benjamin a estrofe final do poema, na qual se convoca uma certa autoridade interpretativa: “Eu sou coisa e não símbolo/ que signifique o que sou/ Em vão rodas o anel mágico/ Não tenho nenhum sentido”, reivindicação que, em primeira pessoa, se encontra autorizada pela voz angelical, enquanto, ao mesmo tempo, o poema atribui um sentido muito preciso à imagem: interpreta o Angelus como a encarnação de um ser celestial que, em tom de anunciação, condena o tempo vivente a ser pouco feliz: “pois se resta tempo de viver/ minha felicidade seria menor”). 19 Ibid., “Lors de la première recontre avec la Mélancolie de Dürer à Bâle, il y

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DÜRER, Melancolia I. Gravura, 1514.

KLEE, Angelus

Novus. Desenho e aquarela

sobre papel, 1920.

Como a ninfa para Warburg, estes anjos provocavam em Benjamin uma especie de incubação das suas imagens de pensamento “que culminava na avait quelque chose du même ordre que dans la Berührung par Klee: une impression intense qui, après être restée contenue pendant longtemps, allait faire l’objet de la discussion comme exemple du ‘regard aigu de l’allegorie’ dans L’Origine du drame baroque allemand. Les deux images tracent une figure analogue dans les écrits de Benjamin: première recontre: observation fascinée de l’image et forte impression ou Berührung – latence: l’image dans la tête em tant que vis-à-vis imaginaire de la réflexion – image de pensée: discussion de l’image et genèse de l’image dialectique d’une théorie naissante” (“Quando do primeiro encontro com a Melancolia de Dürer em Basileia, houve algo da mesma ordem que na Berünhrung de Klee: uma impressão intensa que, depois de haver sido contida durante um longo tempo, seria objeto de discussão como exemplo do ‘olhar agudo da alegoria’ no livro sobre o drama barroco alemão. Ambas imagens têm formas análogas nos escritos de Benjamin: primeiro encontro, observação fascinada da imagem e forte impressão ou Berünhrung – latência: a imagem na mente, como imaginário da reflexão – imagem de pensamento: discussão da imagem e gênese da imagem dialética de uma teoria que nasce”) ed. 6

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análise da imagem, levando em conta sobretudo a constelação das tensões históricas e sociais que se entrecruzavam nele (…) até o ponto que a observação de imagens na imaginação atua como latência da imagem dialética”, diz um texto crítico de 201020. A imagem dialética - “dialectics at a standstill”, espaço feito tempo, tempo feito espaço, detém o movimento, recolhe e fixa um momento em que o passado e o presente formam uma constelação21, e o faz “fulgurar no momento de um perigo” quando chega um certo momento de legibilidade, antes impossível. Pensando a relação imagem-pensamento, existe outro aspecto significativo dos anjos. Este aspecto encontramos nas duas versões do texto “Argesilaus Santander”, escritas em 1933 e inéditas durante a vida de Benjamin. Quase com as mesmas palavras, ele havia se referido aos anjos no anuncio da revista Angelus novus, no começo dos anos vinte. Escreve que, segundo uma lenda do Talmude, Deus cria a cada momento uma multidão de anjos novos, destinados a cantar louvores por um momento, para logo depois se dissolverem no nada22. Um desses anjos seria o pintado por Paul Klee. (Anjo, em hebreu, significa mensageiro, e diz Abulafia que estes anjos efêmeros desaparecem “como as chispas sobre o carvão”. Scholem o relembra ao escrever sobre “o anjo de Benjamin”23). Estes anjos efêmeros são a própria figura de um pensamento que se concebe como um relâmpago que ilumina de maneira fugaz o horizonte; de uma imagem dialética que fulgura e cega.

20 Ibid., “Mais les réflexions sur des images observées our leur souvenir – comme une sorte d’incubation de ses images de pensée – jouent un rôle important pour Benjamin, si bien que cette onservation d’images dans l’imagination agit comme latence de l’image dialectique” (“Mas as reflexões sobre imagens observadas ou sobre sua recordação – como uma espécie de incubação das imagens de pensamento – desempenham para Benjamin um importante papel, tanto que esta observação de imagens na imaginação atua como latência da imagem dialética.”) 21 CADAVA, E. Words of Light – Theses on the Photography of History, Princeton University Press, Princeton, 1997. p. 31. 22 Apud BRODERSEN, M. Walter Benjamin – A Biography, traduzido por Malcolm L. Green e Ingrida Ligers, editado por Martina Dervis, Verso, Londres e Nova Iorque, 1997, p. 118. 23 Mensageiros de uma era secularizada: “há esperança, mas não para nós”, “onde antes estava Deus, hoje se encontra a melancolia” (Scholem), etc.

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Estamos em ambos os casos, tanto em Warburg quanto em Benjamin, diante de imagens que de maneira nenhuma ilustram um pensamento; estamos, em ambos os casos, diante de imagens que geram um pensamento. A noção de sobrevivência das imagens, e a de imagem dialética, têm um parentesco que foi assinalado por Agamben. Nas imagens da ninfa de Warburg e dos anjos benjaminianos o sentido fica em suspensão; e é a suspensão (e não nenhuma “síntese”) o que interessa (diferentemente da dialética hegeliana a que Adorno se remete). Neste caso, a dialética que interessa não é lógica, mas sim “analógica e paradigmática (como em Platão)”24.

24

AGAMBEN, G. Ninfe, Bollati Boringheri editore, Turim, 2007, p.31. ed. 6

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Dupla de Artistas Glauce Pimenta Rosa Nascida no Maranhão e radicada em Saquarema RJ, ativista do movimento negro. Graduada em Turismo. Empreendedora e gestora criativa de projetos ligados à arte, cultura e moda étnica. Pesquisadora em linguagens corporais e expressões criativas. Multiartista, contadora de histórias, cantora popular, dançarina, performer, desenvolve seus trabalhos como uma forma de manter a cultura forte e viva, visando o empoderamento da mulher negra e indígena. Estudou Arteterapia e atualmente é formanda em Yoga Kemética. Mãe de um menino de 7 e de uma menina de 4 anos de idade. É integrante dos Coletivos: Companhia Mariocas; Agbara Obinrin, Intelectuais Negras da UFRJ e Primavera das Mulheres. Diretora artística da Kazawá - Território de trocas de saberes e sabores, espaço de resistência e afirmação cultural onde se visa ler a nossa realidade, contar e escrever a nossa história.

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Márcia Falcão Formada em Pintura pela EBA (2010), a artista tem como seu tema recorrente o feminino. Filha de uma família suburbana tradicional carioca, ou seja, matriarcal, sua vivência como mulher negra que transita pela cidade, suporta a engrenagem da sociedade e percebe desde cedo seu corpo objetificado , tem sido o ponto de partida para o desenvolvimento de obras que falam destas questões com ironia e uma certa acidez. Mãe de duas meninas negras, é possível perceber no discurso uma preocupação com a perpetuação da desvalorização da mulher negra. Revelar o cotidiano desta mulher para que vejam quem de fato ela é, é outra questão do trabalho da artista.

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Caderno Especial

Arte e Maternidades por Carolina Rodrigues, Fernanda Correa e Roberta Calábria

Em 1971, a historiadora da arte estadunidense Linda Nochlin publica a seguinte questão: “Por que não houve grandes mulheres artistas?”. A pergunta, retórica, é uma alfinetada em um sistema que silenciava, invisibilizava e impedia mulheres de, por diversos motivos, alcançarem sucesso, independência e retorno através de trabalhos artísticos. Hoje, quase 50 anos depois, este cenário é bem mais favorável, apesar de muito longe do ideal. Constituídas por privilégios, oportunidades e méritos diferenciados, é possível encontrar facilmente grandes mulheres artistas ao redor do globo. A legitimação de nomes de mulheres na távola redonda do conhecimento e da produção artística ainda encontra muitos percalços, mas graças à resistência e insistência de movimentos feministas, não há estranhamento - ao menos no mundo ocidental - ao nos depararmos com artistas mulheres circulando nos meios e mercados de arte. Em termos proporcionais é possível considerar nossa presença muito aquém do almejado, mas conceitualmente falando, ser mulher não é mais um impeditivo ideológico demonstrável sem constrangimento.

Há, porém, um papel social cujo imbricamento com o “ser mulher” ainda beira o indissociável: mãe. O debate é extenso, complexo, e fissurado por interseccionalidades distintas, mas neste espaço tomamos a liberdade de parafrasear Nochlin e, motivadas por um estranhamento sentido, porém ainda bem pouco debatido, nos perguntamos “por que não há grandes artistas mães?”. Nitidamente nos apoiamos no mesmo tom de Linda - é sabido que elas existem - para instigar leitoras e leitores a identificarem o atravessamento deste papel social enquanto parte integrante essencial das identidades. Mulher. Artista. Mãe. E outros tantos locais de enunciação passíveis de tangenciamento na contemporaneidade. ed. 6

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Pesquisamos, conhecemos, estudamos grandes artistas mulheres que são mães. Se elas existem não é uma questão. É época de responsabilidade sobre os apagamentos naturalizados, e assim, nós, curadoras, enquanto mães que somos (também), sentimos-nos convocadas a provocar vocês para que possamos refletir conjuntamente sobre este contexto. Os desdobramentos são muitos, bem como as sobreposições e oposições das condições maternas. Neste caderno especial vocês encontrarão textos autorais, entrevistas, obras e perfis de mulheres/artistas/mães. Mulheres cujas maternagens podem ou não ser suas interfaces de contato com o mundo e com seus trabalhos, mas para quem é impossível não reconhecer as implicações da condição de mães com os mesmos. Quanto as curadoras, somos nós: Carolina Rodrigues de Lima, historiadora da arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ, integrante do Núcleo de Arte, Antropologia e Patrimônio (NAPA) e pesquisadora na área de Antropologia da Arte, atuando principalmente nos temas: arte popular, colecionismo e patrimônio. É educadora e atua de forma independente em curadoria e produção de exposições em centros culturais no Rio de Janeiro. Também é moradora da zona oeste do Rio de Janeiro e mãe do Rafael, então com 7 anos de idade, autointitulado artista plástico, que vem ocupando alguns centros culturais com suas telas. Fernanda Correa, graduada em História pela UFF, mestre em História Social pela UFRJ e atualmente doutoranda em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como professora substituta, integrou o departamento de História e Teoria da Arte da EBA/UFRJ (2015-2017) e o departamento de Teoria e História da Arte do IART/UERJ (2013-2015 e 2018). Também é colaboradora na Revista Desvio e mãe da Maya, de um ano e oito meses. Roberta Calábria é bacharel em História da Arte pela UERJ, mestra em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e atualmente doutoranda em Artes na UERJ, onde pesquisa as representações da maternidade na arte contemporânea ocidental a partir de conceitos como performatividade, diferença e hospitalidade. Roberta também é doula e ativista pela erradicação da violência obstétrica. Mãe do Miguel, de 7 anos, e do Vicente, de 5.

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Logo no começo da ideia de fazer este caderno, percebemos que a qualidade do mesmo dependia intimamente da participação de olhares e vozes distintas, e por isso decidimos convidar mulheres mães artistas ou teóricas das artes para uma roda de conversa com a finalidade de trocar experiências e ter um panorama de questões que pudessem ser inerentes à condição da maternagem na carreira artística. Vocês podem ler mais sobre esta vivência na primeira parte do caderno, onde apresentamos as artistas que participaram e mostramos algumas obras das mesmas. Além das reflexões resultantes desta roda, o caderno especial traz ainda uma entrevista com a artista e pesquisadora Roberta Barros. Roberta Barros é autora do livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (2016), publicação resultante de sua tese de doutorado. Ela é mãe e na entrevista conta para a outra Roberta, a Calábria, sobre os atravessamentos destes papéis de mulher, mãe, artista e pesquisadora - bem como fala um pouco de suas obras que abordam mais diretamente o tema da maternidade. Temos ainda uma lista, elaborada pela Fernanda Correa, com sugestões inclusivas para que a maternidade seja compreendida como um processo que acompanha as mulheres ao longo de várias etapas da carreira acadêmica e, por isso, é fundamental que essa comunidade tenha consciência e acolha devidamente essas pesquisadoras. No Brasil, quase não temos políticas públicas voltadas para as recém-mães no meio acadêmico, não existe qualquer tipo específico de bolsas de financiamento ou de pesquisa para as mulheres que retornam às atividades acadêmicas após a licença maternidade, para dar apenas alguns exemplos.

Carolina Rodrigues apresenta o Coletivo de Mães Ilustradoras, formado por Anne Brumana, Gabriela Moura, Gabi Domingues, Isabel Svoboda, Ana Kacurin e Sula Freire, que foram convidadas a conversar conosco sobre maternagens, processos de criação, militância e o mercado de arte. Trazemos, também, o artigo “Querem seu colo de Madona: considerações sobre a representação do corpo materno”, de Joyce Delfim, bacharel em História da Arte pela UERJ, no qual desenvolve uma breve investigação da representação do corpo materno na história da arte. Nós três, juntas, apoiadas pelo corpo editorial da Revista Desvio, celebramos a oportunidade de ocupar este espaço trazendo à tona as costuras entre artes, ed. 6

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pesquisa e maternidades. Reconhecemos a importância de tecer estas reflexões, ao mesmo tempo que apontamos a urgência em questionar a viabilidade da manutenção dos padrões de produção acadêmica e artística considerando a isonomia possível entre eles e as condições maternas de nossa conjuntura. Cientes das dificuldades com as quais nos deparamos durante o processo curatorial deste caderno, estamos confiantes de que, mesmo diante delas, temos uma senda transformadora. Testemunhamos e catalisamos a transmutação de um novo caminho, longo e árduo, sim, mas impensável até pouco tempo.

Encerramos com as palavras de Gloria Anzaldua, estudiosa da teoria cultural chicana, cuja voz híbrida e escrita poética assumem o atravessamento cotidiano como único caminho possível para quem pensa o feminismo da diferença. Nos construímos nos pequenos espaços de manobra entre as interseções de nossos papéis e nós sabemos que, enquanto mães, estes espaços são ainda mais bagunçados e confusos, porém incrivelmente potentes.

Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés como dançarinas. Vocês são as profetisas com penas e tochas. Escrevam com suas línguas de fogo. Não deixem que a caneta lhes afugente de vocês mesmas. Não deixem a tinta coagular em suas canetas. Não deixem o censor apagar as centelhas, nem mordaças abafar suas vozes. Ponham suas tripas no papel. Não estamos reconciliadas com o opressor que afia seu grito em nosso pesar. Não estamos reconciliadas. Encontrem a musa dentro de vocês. Desenterrem a voz que está soterrada em vocês. Não a falsifiquem, não tentem vendê-la por alguns aplausos ou para terem seus nomes impressos.1

Um forte abraço e até breve!

1 ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, 1981. 160   |  revista da graduação eba/ufrj


Roda de conversa

Artes e Maternidades Gaabriela Moura Com o intuito de abranger e acolher olhares distintos, a curadoria do Caderno Especial Artes e Maternidades resolveu reunir mulheres mães artistas ou teóricas das artes em uma roda de conversa para trocar experiências e poder ter um panorama de questões que pudessem ser inerentes à condição da maternagem na carreira artística. Tivemos preocupação especial em buscar a participação de mulheres que representassem minimamente a diversidade em questões de orientação sexual-afetiva, etnia e classe. Mulheres com experiência na academia e fora dela, mães solo, integrantes de famílias com formatos mais tradicionais - algumas em transição dessas condições -, mães com experiências no exterior, mães autointituladas faveladas. Reconhecemos, porém, dado o recorte já tão específico da maternidade, a dificuldade de escapar da cisgeneridade - uma fratura que buscamos corrigir convidando neste editorial pessoas de identidade não cis, que sejam mães e artistas ou pesquisadoras, a colaborar virtualmente com os desdobramentos da publicação. Obtivemos, contudo, grande diversidade em linguagens artísticas. Participarem artistas que lidam com performances, instalações, vídeoartes, esculturas, pinturas, músicas, desenhos, internet, fotografia e escrita. A ideia inicial consistia em partir de uma apresentação para, então, trabalharmos com todas as integrantes questões pontuais que emergissem dessas falas, porém, se tratar de processos artísticos já envolve uma complexidade de vivências, incluir a experiência das maternidades faz ed. 6

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com que seja impossível elaborar uma síntese curta nesses relatos. Cada fala suscitava questões nas outras integrantes da roda, fazendo com que o encontro fosse muito mais longo que o previsto, mas provocando interações e reflexões que iam além de qualquer questão que pudéssemos propor. No encontro, foram abordadas questões fortíssimas inerentes às vivências de cada mãe artista. Tratar de maternidade é tratar também dos relacionamentos que deram origem aos filhos, da gestação, do parto (muitas vezes acompanhado de violência obstétrica), do puerpério, do se redescobrir enquanto indivíduo na nova condição e a inserção do novo ser em sua dinâmica de vida. Dentro dessa dinâmica, visitamos as mudanças ou florescer dos processos artísticos ou de pesquisa. Nós, curadoras, também expusemos nossos relatos na roda de conversa, não apenas provocando questões e reflexões, mas sendo também personagens no processo - e sobre a gente vocês podem ler mais no editorial. Apresentamos agora as mulheres que participaram da roda de conversa: Mardejan França: Marcelle França de Oliveira, conhecida como Mardejan. Nascida em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, criada pelas ruas e vielas cariocas, tem 26 anos e um filho de 8 anos, Pierre França. Engravidou e foi mãe aos 18 anos. De acordo com seu relato, estava passando por conflito familiar e sofrendo pressão de heterossexualidade compulsória, quando ocorreu a gravidez através de uma única noite embriagada. Assumiu o filho sozinha e ele só conheceu o genitor aos 2 anos, idade em que também foi descoberta a sua surdez. Até hoje o genitor não participa, tem apenas pequena participação financeira. Mardejan é mãe solo, lésbica, periférica e artista visual e musical. Com sua arte, narra suas experiências e visões de mundo, sexo e outras drogas. Recentemente, lançou seu primeiro cd “Mardejan – Acústico Money Ti Venci”, uma história de superação, sonho e luta. Sua contribuição na roda de conversa foi marcada pela performance de sua música Toda mãe chora, cuja letra trazemos na íntegra:

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Aí pi, liga a TV Que a mamãe vai aparecer Mas do jeito que as coisas tão Que não seja num caixão, né não? Por que eu quero te ver crescer mas pode crê Tô gravando agora e aonde eu vou Saiba que eu levo você Eu sempre levo você! Toda mãe chora Ela também tem sua derrota A lágrima que cai quando ela fecha a porta E te coloca pra dormir e você só quer brincar Ela nem sabe o que vai ser de amanhã quando acordar Mas ela não é mulher que se entrega O desespero vem com o medo, mas ela sabe que depois da tempestade Há um arco-íris na janela Mãe não é sinônimo de perfeição Mãe acerta e também erra Mãe atinge e pede perdão Muitas mães ainda acham que são donas da razão Talvez querendo te poupar de um caminho doloroso Talvez querendo projetar sua vida no seu sonho morto De alguns anos atrás, ela não conseguiu a medicina E é foda ver a filha cantando Rap nas esquina Morando na favela e criando sua cria sozinha Perdida às vezes, mas ela se acha ainda, sozinha Tem muito tempo pra aprender Meu moleque tá crescendo e eu tô crescendo com você Muita gente falando, se metendo opinando Vai tomar no seu cu! Nem minha conta tá pagando Nem me liga perguntando se a depressão já tá passando Vai cuidar da tua vida que da nossa eu tô cuidando, porra! ed. 6 I julho 2019 163


Toda mãe chora e tem seu dia de glória No sorriso da criança, minha força se renova Meu pedaço de céu, em meio ao caos dessa pressão Temos os nossos conflitos como em qualquer união Mas o amor entre mãe e filho vale qualquer Qualquer coisa, me chamem de louca! Ao ver meu menino lavando louça Brincando de boneca, botando o neném pra dormir O pai que não botou, nem registrou, só quis fugir A puta que pariu e cuida, pra não ter mais homens como esses por aqui Nunca quis ser normal, eu tenho minha vida e meu filho tem outra Na moral, eu vou te passar tudo que eu penso a respeito Mas se você quer seguir pro outro lado não tem jeito A gente tá aqui pra evoluir Se não for pra ajudar, então, evite julgar Uma boa conversa às vezes só faz melhorar Ninguém é dono da razão, nem as mães, nem você Estamos cada um com a sua missão Só vivendo pra aprender Toda mãe chora, então faz ela sorrir Elogiando seu cabelo ou chamando pra sair Toda mãe chora, você precisa conversar? Precisa de um leite ou um dia de spa? Toda mãe chora, deixa que eu choro com você Te ver não desistindo me inspira a viver Se você está tentando as mães também estão Então se liga, irmã, irmão na sua função! Aí filho, gratidão! Por tá do meu lado nessa caminhada Por ser luz no escuro dessa estrada

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Por me trazer colo e esperança quando me sinto fracassada Por nosso amor ser tão lindo e não importar mais nada Várias porrada! E a gente vai levando E ficamos mais fortes na parada E sai até umas gargalhada A vida é muito mais que cagar regra em outra casa Deixa a nossa, que a nossa é mesmo bagunçada rapaziada! Bagunçada pra caralho!

Mahyrah Alves:

Artista e pesquisadora visual, Mahyrah Alves nasceu e cresceu no Rio de Janeiro. Com mãe e pai artistas, a arte esteve presente na sua vida desde a infância. Em 2011, iniciou graduação em Pintura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sempre que possível transitando entre a universidade e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, iniciou uma pesquisa plástica direcionada à espacialidade dentro da pintura, desdobrando os espaços e suportes.

Ao se tornar mãe em 2013, questões sobre o cotidiano começam a fazer parte da poética dos trabalhos, que tiveram sua espacialidade potencializada. Antes bidimensional, essa estruturação espacial agora ganha “o mundo”, a partir da espacialização das telas e apropriação de objetos do cotidiano. Os trabalhos ganham autonomia em forma de instalações, performances, apropriações e passam a se desdobrar em torno de questões “metafísicas”.

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Mahyrah A., unidade, 2018, 90x70 cm, técnica mista sobre tela.

Roberta Barros: Roberta Barros é uma artista visual, pesquisadora, escritora e mãe. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. É autora do livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (2016), desdobramento de sua tese de doutorado (PPGAV/EBA/UFRJ), homônima, pela qual recebeu o prêmio Gilberto Velho de melhor tese daquele ano. Participou do projeto “Arte, Mulher e Sociedade - residência artística em maternidade pública”, no Hospital da Mulher Heloneida Studart, durante o qual desenvolve trabalhos performáticos que abordam temas como violência obstétrica, violência institucional, violência contra a mulher e direitos reprodutivos; dentre eles as obras Dar de si (2014), Não toque (2014) e Tomar para si (2016).

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Roberta Barros, Não toque, 2014. Registro de performance.

Kika Motta: Graduada em Artes Visuais - Escultura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, frequentou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, estudou Artes Cênicas e é formada na Escola Angel Vianna em Dança Contemporânea. Profissionalmente, atua como atriz, cenógrafa e artista visual. Lida com diferentes linguagens e transita entre escultura, videoarte, performance e instalação sonora. É mãe de Tereza, de 4 anos, e Marina, de 2 anos. A obra da artista aqui apresentada, Amostras de afetos, trata de uma coleção em frascos de vidro de diversos tamanhos, “amostras de afetos”, que diz sobre o processo de embate entre os encontros. É o que subsiste das experiências. Ele é feito com 4 prateleiras de madeira redondas com uma abertura no centro, ficando com 4 cm de largura e outra abertura de 6 cm em um pedaço do disco formando um semicírculo. Essas prateleiras são sustentadas pelos frascos de vidro, que apoiam a prateleira superior, até a última. Dentro dos frascos, elementos diversos de origem mineral, vegetal, animal e sintética. ed. 6

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Esse objeto inicialmente foi concebido como um protótipo de uma espécie de cápsula do tempo, onde uma pessoa entraria nesse espaço e se colocaria num ambiente, como um sítio arqueológico de escavações da memória. Um lugar num tempo indefinido, em que se possa vir de encontro com a essência das coisas e se deslocar para além da matéria.

Kika Motta, Amostras de afetos, madeira, vidro, elementos minerais, vegetais, animais e sintéticos, 40x30cm, 2016

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Cecilia Cavalieri:

primeiro salto eu achei que seria fácil até começar cuidando de onze pontos na buceta antes mesmo de cuidar daquilo que me diziam: - olha, é o seu bebê! a menina veio de uma ferida que demorou dois meses para cicatrizar e nunca cicatrizou como os centímetros largos e longos e brancos - mais conhecidos como estrias acidentados na barriga: o filho não cicatriza como cuidar dele até que se estabeleça um dispositivo de comunicação quentinho? ter um filho é sobreviver a ele com ele

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Quando a Carolina Rodrigues me convidou para participar dessa edição especial da Revista Desvio, sobre maternidade, contando um pouco da experiência de artista estrangeira por três meses na residência Mothers in Arts, em 2017, em Amsterdam, eu não sabia exatamente por onde começar nem qual tom abordar. Esse projeto mexe comigo nas minha feridas mais arcaicas, gosto dele e desgosto na mesma medida – tanto que nunca compartilhei ou divulguei o documentário da residência, do qual participo e no qual eu sou a artista que mais aparece, por puro constrangimento: um medo de ser vista na superfície do projeto, na parte mais white people problem do rolê, porque a imagem, a gente sabe, a imagem é traidora e ela não nos conta daquilo que transborda, daquilo que ela esconde. Foi uma experiência dificílima, mas, ao mesmo tempo, bonita, profunda, dura. Dela e nela colhi muitos frutos: uma exposição coletiva com três outras mulheres-mães-artistas potentes, projetos que desenrolaram a partir daí, um certo reconhecimento internacional, uma rede de contatos, um livro publicado. Mas essas coisas lindas eclipsam toda a parte desastrosa que é, na real, a condição de existência da parte boa, ou seja, o custo. E eu me pergunto até que ponto isso faz sentido, se faz. Tive a companhia de dois camundongos por um curto período de tempo, o que me colocou diante das próprias questões interespecíficas que permeiam o meu trabalho; fiz cocô e xixi acompanhada de minha filha na maior parte das vezes, pois o banheiro coletivo ficava no corredor e eu não tinha como largar um bebê de 2 anos sozinho no studio, que ficava num squat regularizado, ou seja, uma ocupação de artistas que a Holanda tratou logo de transformar em algo legal e tachável, no estilo neoliberal que eles apreciam. Os meus vizinhos homens-artistas-brancos do Leste Europeu me tratavam como lixo e nunca estenderam a mão pra carregar uma sacola de compras; meus adoráveis vizinhos sazonais, uma família Sírio-Libanesa, tomavam café da manhã comigo todos os domingos. Na Holanda, passei imediatamente de mãeartista branca de classe média, filha de mãe solo bancária e pai caminhoneiro ausente, para mãe-artista latina imigrante, ou seja, o grande estereótipo sexista da crazy latin american woman single mother, e isso me colocava diante da impossibilidade de esconder minha maternidade do mundo da arte, o que se mostrou algo limitante.

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segundo salto como olhar para sua filha de 2 anos e aquele pedaço do mundo que a rodeia depois de ouvir do seu vizinho búlgaro que ele não entende o que você faz aqui como mãe e artista sendo esta Mother in Arts especialmente porque ele nunca iria mesmo sair com uma mãe? e então você olha o corpo da menina que paira no seu colo e se lembra do quão merda você pode ser como mulher e se lembra do quão repugnante você pode ser como mulher e se lembra que isso é o primeiro mundo e você finalmente se lembra que a culpa ela permeia tudo mesmo onde ela não deveria existir ed. 6

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Quantas artistas mães foram historicamente forçadas a esconder sua maternidade de seu trabalho, bem como de suas vidas como artistas? Se o artista é esse ser que é radicalmente atravessado pelo mundo - isso pode parecer moderno demais e grotesco demais hoje - como é possível que a questão da maternidade tenha sido tão obliterada por tantas mães e artistas? Se a maternidade é, como concordamos, uma virada na vida de qualquer mulher, o que ela realmente faz na vida de uma mulher que é artista? O meio ~das artes~ é dominado por homens, não apenas no sentido de que é literalmente dominado por homens, mas também por uma atitude masculina que exclui a diferença. Se você é uma artista mulher, muito do que você faz / é será medido por “em uma escala de 0 a 10, quão comível você é” e, com sorte, como mãe você chegará à nota 5 - contanto que consiga esconder sua maternidade do mundo, porque se você passa muito tempo com seu filho, trocando fraldas, alimentando - nem estou tocando no assunto da amamentação, porque esta será a sua morte mais terrível -, você alcançará facilmente um glorioso zero. Por outro lado, se você esconder o seu filho da sua imagem como artista e da sua vida pública, talvez você consiga realizar o gesto masculino diante do mundo com maestria e facilidade. Como você pode soar ou parecer blasé se estiver suja de brócolis, molho de tomate, massinha, descabelada e talvez cheirando a algo sabor cocô-cheiro-de-bebêde-farmácia? Sexismo de primeiro mundo! Uma das experiências mais pedagógicas para mim durante a residência – onde, junto com outras três mães, dei o melhor para fazer a creche coletiva funcionar, e mesmo assim ela funcionou muito mal – foi perceber como as pessoas em geral me desprezam por ser uma artista-mãe, ou simplesmente por ser mãe. Esta foi a primeira vez, desde que me tornei mãe, que experimentei plena e profundamente a sensação de ser repugnante. E, na real, eu tive sorte, pois, apesar de toda a repugnância que eu sinto por mim mesma vinda dos artistas masculinos, também sinto o quão bem me encaixo no papel da latino-americana-louca que nem sequer serve para ser comida. Talvez eu ache graça, pois hoje em dia, nos meus 35, eu tenho algumas ferramentas para lidar com essas impressões e entender a textura da doença do mundo cisheteropatriarcal branco. E uma vez eu tenho as ferramentas comigo vou usá-las para trabalhar por uma arte que não exclua as mães e suas poderosas experiências de maternidade.

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terceiro salto um salto atlântico

o mar, a mãe e a mão de zee, de moeder en de hand estou flutuando e inundando desde que cheguei com minha mão pesada e quebrada em três meses eu mal mijei escorri pelas meia-calça e calcinha mal lavei meu cabelo mal tomei banho

mas eu consegui falar sobre meus trabalhos com Dora e talvez apenas com ela que estava tão aberta a mim ao ponto de eu mais machucá-la ela era a única em casa comigo por mim contra mim comigo por mim contra mim e talvez eu também estivesse tão aberta a ela e à nossa vida entre os canais que tive uma infiltração no meu dente o molar 27 e fiz um tratamento de canal pelo qual não posso pagar ed. 6

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é assim que minha residência acaba é assim que eu acabo: gotejando é assim que termina: na nossa pequena vida política a falha é sempre um método

trabalhos apresentados na residência:

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Cecília Cavalieri, this is what a mother looks like (isso é como uma mãe se parece), vídeo de 20’40”projetado sobre um espelho dividido e apagado com lixa d’água.

encurtador.com.br/glrvC encurtador.com.br/cemuA encurtador.com.br/mADSX encurtador.com.br/krI79 encurtador.com.br/AIY37 encurtador.com.br/sGLMP

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Cecilia Cavalieri, Afluentes.

Kelly San: Sou cria favelada da Maré, afroindígena, tenho 29 anos anos e sou mãe do Gael, de 5 anos. Historiadora da Arte em formação da Escola de Belas Artes da UFRJ. Passei por dias difíceis em meu processo de gravidez e maternidade dentro da instituição, que mesmo depois de uma série de políticas públicas de inclusão reivindicadas por diversos coletivos militantes, ainda não está preparada para esse tipo de situação. Trago vivências intrínsecas a minha trajetória nesses dois territórios - favela e universidade - na condição de mãe. Nesse sentido, tento combater esse perfil de exotificação que atribuem a mim nos espaços elitizados, sempre trazendo a questão das artes enegrecidas faveladas.

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Considero que, enquanto historiadora da arte, minha arte é a escrita, que é a minha maior contribuição subjetiva nesse mundo objetivo. Faço questão de ir na contramão dessa estrutura hegemônica que nada diz sobre as minhas ancestralidades e por isso não posso deixar de falar da minha vó Maria, que é indígena, e minha vó Dulcineia, neta de escravizada. Carrego a tentativa de apagamento delas na minha pele, mas o meu povo é resiliente. Meus passos vem de longe.

Não sigo nessa empreitada de vida sozinha. Tenho uma rede de apoio afetuosa e de muito amor, sou filha da Cirlei e do Cícero, que são o melhores presentes que uma pessoa poderia ter no mundo, sem contar os meus irmãos Kevin e Yuri e minha tia Cristina, e todes me ajudam nas minhas invenções nesse mundo. Durante muito tempo, escrevi crônicas sobre a maternidade/maternagem, mas isso teve que ficar um pouco de lado por conta da necessidade de investir em meu sustento, conciliando com os estudos na universidade. Nesse processo, criei a Gael, que pretende ser um centro de referência de moda para pensar memória, histórias que uma roupa pode trazer, trocando peças de roupas usadas pelo registro das histórias, dos momentos da vida que essa vestimenta presenciou, em um processo de desapego. Então, essas peças são vendidas e o percentual de lucro dividido entre a pessoa que cedeu a roupa e eu. A ideia é fazer esse centro funcionar dentro da Maré, com as mulheres da comunidade, num processo de reutilização, produção das próprias peças e também produção para venda externa. O nome do projeto, que também é o nome do meu filho, foi idealizado dentro de uma reflexão sobre o que me faz me situar no mundo nesse momento, na condição de mãe, sobre o que me motiva e me faz seguir em frente. É na parceria com meu filho que encontro essa força. Em minha pesquisa, exploro uma cartografia dos afetos como construção do cotidiano da favela, tratando principalmente sobre a reorganização de mulheres dentro de um território em que o Estado entende que as pessoas são matáveis.

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Propostas e sugestões inclusivas

PARA AS MÃES NOS MEIOS ARTÍSTICO E ADÊMICOS Por Fernanda Correa No Brasil, quase não temos políticas públicas para ajudar as recém-mães no meio acadêmico, seja enquanto estudante ou pesquisadora. Não existe qualquer tipo específico de bolsas de financiamento ou de pesquisa para as mulheres que retornam às atividades acadêmicas após a licença maternidade. As agências financiadoras sequer têm dados para compreender o impacto da maternidade na produtividade dessas mulheres ao analisar as propostas de pesquisas em pedidos de bolsa ou editais de financiamento. Quem é do meio acadêmico sabe que o trabalho consiste em horas dedicadas a leituras, pesquisa e escrita, atividades que exigem um alto nível de concentração e um ambiente minimamente qualificado para a sua realização. Portanto, além do despreparo das instituições em lidar com a maternidade como uma condição específica, há uma série de outros desafios próprios da carreira acadêmica que essas mulheres têm que encarar se quiserem seguir seus planos profissionais. Somam-se a isso as adversidades inerentes ao universo materno e uma sociedade insensível que espera que a mulher trabalhe como se não tivesse filhos e cuide dos filhos como se não trabalhasse. Nos últimos anos, iniciativas criadas por integrantes da comunidade acadêmica vêm tentando mudar esse cenário com propostas inclusivas a respeito da maternidade nesses espaços. No Brasil, o Parent in Science [https:// www.parentinscience.com/], projeto criado por cientistas mães (e um pai) em 2017, se destaca por cobrar medidas efetivas das instituições de pesquisa. No ano seguinte o grupo organizou o I Seminário de Maternidade e Ciência,

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reunindo representantes de várias entidades de pesquisa e demais interessados no tema. Além disso, o projeto criou formulários de pesquisa a fim de facilitar o levantamento de dados sobre as possíveis consequências da chegada dos filhos na carreira científica, em diferentes etapas da vidaacadêmica. Como estas medidas são recentes, ainda não existem dados consistentes para que este cenário se altere, o que não impede que sigamos nesta mesma esteira de ideias e propostas capazes de dar mais visibilidade a estas mulheres e mães no ambiente de pesquisa. Assim, me inspirando nas colegas pesquisadoras do Parent in Science, inicio aqui uma lista de sugestões e propostas inclusivas para que a maternidade seja incorporada como uma condição legítima com suas respectivas especificidades no ambiente da academia. Este é o primeiro momento de um projeto que se inicia. A ideia é que em um futuro próximo esta seja uma cartilha coletiva, feita por muitasvozes. •O reconhecimento público da maternidade acadêmica como umdesafio. •O reconhecimento da licença maternidade como uma pausa nacarreira.

As diretrizes de financiamento devem ser alteradas e as mães não deveriam concorrer sob os mesmos critérios daqueles que não fizeram nenhuma pausa em suas produções. •Suporte e assistência às mães em conferências, seminários, palestras e afins.

Muitas mulheres deixam de comparecer a esses eventos por não ter com quem deixar o(s) filho(s). •Suporte para as mães ou espaço recreativo para crianças em vernissages, aberturas de exposições e afins. •Reconheça adiversidade.

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As mulheres tornam-se mães em todos os estágios de suas carreiras e têm desejos e necessidades diferentes em relação ao trabalho flexível. Não assuma que uma solução se encaixa em todas as mães. Respeite as escolhas das pessoas e forneça uma gama de suporte que permita que todos prosperem. •Celebre as conquistas das mães acadêmicas e busque reduzir as barreiras para o seu crescimento profissional.

Fernanda Correa

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Texto UM CONVITE ÀS ARTISTAS MÃES ou NÓS PODEMOS CONTAR – e mudar – nossa história

Por Gabriela Moura

O ontem A representação da mulher no curso histórico e artístico, sempre baseada em arquétipos idealizados, sobretudo e de forma majoritária, por homens, influencia a auto imagem feminina e a percepção geral da mulher no seu espaço social. A história é contada por homens, inclusive, através da arte. Em todo esse percurso, tivemos grandes nomes de mulheres que tomaram para si a missão de contar e recontar essas histórias, mas abafadas pelo cenário predominantemente masculino, branco e elitizado.

Nós No momento em que a mulher toma para si a produção artística, ainda que não faça representações diretas de mulheres, produz sobre mulheres, afinal, impossível é dissociar a arte da história de sua autora. E quando uma mulher mãe toma para si essa produção, promove uma micro revolução, ao explorar um universo vasto e muito conhecido, mas difícil de apalpar quando não se vivencia. Pungente, catártica, poética, artística, a maternidade é universal, mas particular. Toda a solidão que a envolve pode servir para muito: autoconhecimento, luz, luta, arte. O flerte entre a doçura e loucura, a linha tênue entre amar muito e pirar muito. Esse mistério do universo que cabe no ventre de uma mulher. A puta que depende do pecado para reproduzir e a ed. 6

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Santa que pare ealimenta. O olhar feminino, particularmente feminista e materno, na arte, gera uma potência propulsora de extrema conexão. Consumir arte de mulheres é empoderador e mulheres mães apresentam outro cardume de possibilidades, vivências, perspectivas sobre o feminino, num grupo, de certa forma, marginalizado: o das mulheres mães.

O hoje Durante o processo que culminou no impeachment da primeira presidenta do Brasil, que começou em 2015 e encerrou-se em 2016, sobretudo nas eleições presidenciais de 2018 e, em 2019, início do desgoverno que impera, afundamos-nos em uma era de pós-verdades, obscurantismo e conservadorismo. Direitos que antes pareciam irrevogáveis se mostram solúveis. Como elucida Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” No panorama atual brasileiro, as artes plásticas têm efeito na criação de narrativas de combate à onda que chegou ao poder, colocando em prática o confronto e convidando à reflexão coletiva. E, nós, artistas, como mães, usando do epíteto a nós destinado, temos a possibilidade de trazer à tona uma visão feminista, libertária e progressista, dentro de um verdadeiro campo de batalha deideiasextremaseemprestamosesseamoràlutaetornarcentrais discussões e reflexões acerca de temas tão caros quanto urgentes, como questões raciais, de gênero, liberdades, entre tantas, no campo progressista. A palavra resistência, nunca antes tão popular, dialoga com a realidade política e social na qual o Brasil se encontra e a arte tem o poder de contar essa história e o dever de tentar mudá-la.

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O convite Refletindo sobre os movimentos artísticos até a contemporaneidade, conseguimos observar o papel destinado às mulheres em cada período. Tomando para nós o poder autoral dessa história, colocamos-nos no lugar que quisermos ou, ao menos, que gostaríamos de alcançar. Nas ruas, nas praças, no mercado de trabalho, nos meios políticos, sociais e artísticos. Que esse seja nosso tempo! Que nós, mulheres, sejamos as autoras de nossas próprias histórias! Que nossa voz ecoe quebrando todos os vidros, gritando as realidades! E assim, tomemos a caneta, o pincel, a câmera, os microfones e o curso da história, para nós e por nós!

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Entrevista

O Coletivo de Mães Ilustradoras

“Mulheres são como água, crescem quando se juntam”. Assim se apresenta o Coletivo de Mães Ilustradoras. Diante da exclusão sistemática que mulheres mães sofrem em diversas esferas sociais, culturais, políticas e, sobretudo, artísticas, seis feministas se unem para expor o universo feminino e materno através de seus traços. Formado em 2016, o Coletivo tem como objetivo suprir a demanda por ocupar espaços artísticos com instalações que retratem a visceralidade da maternidade não-romântica, o universo feminino não estereotipado, além de simbolizar a união de mulheres mães nesta catarse. Sendo assim, as dores e delícias se traduzem de forma pictórica, em cores e amores, como uma micro revolução. Então formado por Anne Brumana, Gaabriela Moura, Gabi Domingues e Isabel Svoboda o Coletivo lança em 2017 a Exposição Catártica. A mostra esteve presente, durante esse ano, no Delícias Café, na Tijuca; no Sobrado Boemia, em Laranjeiras; no Sarau Feminista, no Centro; e foi selecionada para a ocupação Ovárias, no Centro Cultural Laura Alvin, em Santa Teresa. Em 2018, chegou a vez da Expo Primavera Materna, apresentando as duas novas componentes: Ana Kacurin e Sula Freire. As obras variam entre aquarelas, colagens, xilografia, diversas técnicas sobre tela e marcenaria. Sobre as artistas: Ana Kacurin é mãe, doula e fotógrafa de partos, casamentos e família. Desenha desde que se entende por gente, cada hora com um material diferente. Trabalhou como tatuadora por alguns anos e hoje se dedica à arte

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de desenhar com a luz: a fotografia. Feminista, ativista pelo parto respeitoso e pela maternidade ativa desde a gestação de seu primeiro filho, há 8 anos, usa sua arte como ferramenta de ativismo. É mãe do Andrej e Dante. Anne Brumana, formada em belas artes pela EBA/ UFRJ e com muitas vivências no EAV Parque Lage. Mãe do Dante e do Gael. Apaixonada por bichos e plantas. Isabel Svoboda, artista plástica, 25 anos, mãe de Sebastião e Benedito, cursou belas artes na UFRJ e ampliou seu conhecimento com diversos cursos na EAV(escola de artes visuais do parque lage). Participou de diversas exposições e atualmente vive o malabarismo de ser mãe de dois e artista plástica autônoma Gaabriela Moura é estudante de design de moda, fotógrafa, empresária e artista plástica. Feminista interseccional, militante, apaixonada pelo feminino sem estereótipos e por tudo que é belo. É mãe de Nalu Rosa, Flor Teresa e Moreno Luiz. Gabi Domingues, formada em belas artes pela EBA/UFRJ atualmente é arte educadora da Rede Municipal de ensino do Rio de Janeiro. Se descobriu como artista/ilustradora através da maternidade e a luta pelo parto natural. Mãe do Francisco e Caetano, adora arte, café e cheirinho dos filhos. Sula Freire, formada em belas artes pela EBA/UFRJ, é professora de Artes Visuais do CAp/UFRJ. Mãe da Vivian, uma menina alegre e curiosa que transformou completamente a sua vida e sua forma de ver e retratar o mundo. Apaixonada pelas artes desde criança, adora desenhar e pintar o cotidiano. Propusemos, ao coletivo, algumas questões para desenvolverem individualmente, através de perguntas que pudessem contemplar a todas: 1. Percebemos que 4 das integrantes mencionaram o fato de terem estudado na EBA: Gabi Domingues, Anne, Isabel e Sula. Gostaríamos que falassem um pouquinho dessa experiência: se já ingressaram na universidade com filhos, se engravidaram durante a graduação ou depois, pois isso diz muito sobre o modo como vivenciaram a universidade. ed. 6

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2. Como vocês conciliam a maternidade e a produção artística? Os seus filhos participam ativamente desse processo de criação? 3. Geralmente os coletivos começam a partir de uma pauta comum, de militância em prol a garantia de direitos de uma minoria. Vocês possuem contato com outros coletivos de mães artistas no RJ e em outros estados? Se sim, como funciona a troca/diálogos com essas outras mães-artistas? Se não, quais outros coletivos ligados à maternidade influenciaram na formação desse coletivo especificamente? 4. Como o coletivo de mães ilustradoras foi idealizado? O que mudou de 2016 para cá, nesse período de 3 anos de trabalho? 5. Carolina: Vocês já se entendiam como artistas antes da maternidade ou foi essa experiência que despertou sua produção? Se já eram artistas, como a maternidade impactou a sua produção? Enviamos essas questões e cada artista desenvolveu individualmente em falas que procuravam abarcar a maior parte das questões de forma fluida: Ana Kacurin: Eu não estudei na escola de belas artes, na verdade, eu nunca fiz nenhuma formação como ilustradora. Eu trabalho, meu principal trabalho é com fotografia. E, sim, antes da maternidade, eu já me entendia como artista, mas uma coisa que eu levava muito por hobby, né? Depois da maternidade é que eu fui viver de fotografia. E, aí, viver da arte - digamos assim. E o desenho e a pintura, sempre fizeram parte da minha vida desde muito novinha. Na verdade, várias manifestações artísticas. Eu sempre pintei, sempre desenhei. Eu já trabalhei como tatuadora. Então foi uma outra época da minha vida pré-maternidade que eu trabalhei como artista também, mas ligada a ilustração, ao desenho por assim dizer. É uma coisa que sempre me acompanhou. O meu processo artístico não esteve sempre ligado a maternidade, embora eu já expressasse muito da minha visão política, talvez espiritual através dos desenhos. As encomendas só começaram a surgir, depois que eu entrei para o coletivo. Obrigada por isso! Mas ainda não são uma coisa expressiva na renda aqui de casa. O meu trabalho artístico ainda está resumido à fotografia. E a

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fotografia me permite me expressar muito bem, eu falo muito bem através da linguagem fotográfica. Então, a ilustração me permite uma ludicidade maior, talvez, e eu crio com as ilustrações totalmente sem a obrigação do trabalho, do ofício, do ganha pão, né? Então, ela é um hobby para mim, ainda. Agora que eu estou impossibilitada de trabalhar com a fotografia durante um tempo. Eu pretendo produzir mais. Agora, nesse período de licença, eu vou ficar mais tempo em casa, eu pretendo, estou sentindo essa necessidade de produzir mais, sabe. A temática do feminismo e do feminino, mas principalmente do feminismo, do ativismo feminista, me foi um apelo muito grande. Assim, quando as meninas me chamaram pro coletivo, essa foi a minha maior motivação para entrar. Porque eu percebi que através das ilustrações a gente tinha uma mensagem muito importante para passar, sabe? Eu já vinha trabalhando isso na fotografia, porque, como eu trabalho com fotografia de parto, e partos exclusivamente naturais, inexatos e respeitosos, eu já tinha essa pegada de através do meu trabalho levar a informação para as mulheres, acerca do parto, sobre violência obstétrica, sobre uma forma mais humana e respeitosa de trazer as crianças ao mundo... Então, eu sempre senti que meu trabalho contemplava esse desejo de mudar o mundo, sabe? E quando as meninas me chamaram pro coletivo foi uma surpresa, a minha produção é pouca, perto da produção das meninas. Pelo menos, eu sempre achei que elas produziam muito mais do que eu, eu não produzia muita coisa pra mostrar. Mas eu fiquei muito feliz, porque, como disse, era o meu rolê também, né? Eu olhava aquilo e falava: “Nossa que legal! Eu podia muito estar ali! Ia ser muito divertido!” Então, quando eu recebi o convite, foi uma alegria muito grande, assim, de poder estar com essas mulheres que eu admiro tanto. Eu já conhecia todo mundo, eu já admirava todo mundo, eu já seguia todo mundo. Eu fiquei muito, muito, muito feliz mesmo! Então eu ainda estou aqui torcendo para fazer jus ao convite.

Anne Brumana: Então, eu sempre flertei um pouco com a arte, mas em 2008 resolvi assumir isso de forma integral e entrar numa faculdade de Belas Artes e eu ed. 6

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me formei em 2012 e já estava grávida de 3 meses, algumas semanas. E, de alguma forma, desde que meu primeiro filho nasceu, a Anne mulher e a Anne artista ficaram completamente bloqueadas e a Anne mãe praticamente afogou todas essas outras facetas da minha personalidade. Eu fui completamente assoberbada e completamente inundada pela maternidade. E, quando as crianças cresceram, meu filho cresceu um pouco, eu comecei a ensaiar essa retomada, assim, essa busca pela Anne artista para além da Anne mãe e comecei a entender que a maternidade adicionou mais coisas a isso e que na verdade tinha um caminho, que dava pra seguir todos os caminhos e não um só, que dava para ser muitas coisas... só tinha que ter uma energia muito grande para brigar por essa Anne mulher e essa Anne artista, e aí, nesse processo, o coletivo já existia com a Gaabriela Moura e a Gabi Domingues e elas me fizeram um convite e eu aceitei. E, na verdade, foi uma energia muito potente, elas me pegaram pela mão e me ajudaram nesse processo. Então o coletivo me trouxe de volta e com o coletivo eu pude entender que era possível conciliar. Não fácil e não simples, mas que era possível. Então, a gente está desde essa época tentando conciliar, umas horas mais, outras menos, e tentando navegar pelas dificuldades de cada uma pela maternidade de múltiplos.... Porque todas temos muitos filhos, então são muitas demandas pra conciliar de muitas crianças e muitas mães diferentes, com muitas realidades diferentes, e a gente tenta, né? Não é simples, não é fácil, mas a maternidade fez de mim uma artista melhor, por incrível que pareça, eu acredito. Eu não comecei sendo mãe, mas a maternidade me trouxe

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novos desafios e novas percepções. Então, ainda estou nessa busca de retomar a arte e de ocupar mesmo esses espaços enquanto mãe. Porque a gente, sendo mãe... não tem lugar pra gente, né? A gente é silenciada, a gente é invisível, então para mim é muito rica essa proposta de mães ocuparem esse espaço de arte que é um espaço tão avesso a elas. A gente tem muitos sonhos para o coletivo, né? Muitos sonhos mesmo, desde livros até exposições e de ocupar mesmo um espaço que é negado pra gente, sabe? A gente sente muita dificuldade de se encontrar presencialmente, trocar energia. Eu sinto que quando estamos juntas, a coisa é muito fluida... Mas, no geral, é por conta das nossas demandas de maternidade, de carreira, né? Porque muitas de nós têm carreiras, não ganham dinheiro com arte assim, tem suas profissões e a maternidade, então a gente lida mais pelo whatsapp mesmo, usa a internet para se comunicar, para se influenciar e se alimentar mesmo. Foram poucas as vezes que a gente conseguiu se encontrar presencialmente. A gente está num momento agora de muitos puerpérios e desafios novos, desafios de carreira para algumas de nós. Então estamos num momento meio que de pausa, mas uma pausa de respiro, sabe? Eu acho que o coletivo é muito vivo, eu vejo que no futuro a gente vai trazer mais mulheres e fazer essa roda girar mais. Eu acho que o coletivo é muito potente, muito forte e a gente está só começando. Eu acredito muito na força de mães unidas assim e nós temos muitas pautas para defender, né? Um sonho que todas nós temos é munir esse coletivo com mais diversidade e a gente está caminhando para isso, está tentando mesmo, para além das próprias dificuldades e dos universos particulares, a gente tá tentando ter braço para isso. Eu particularmente acredito muito na proposta do coletivo e na força que ele tem. Isabel Svoboda: Sou artista plástica desde que me lembro. Filha de dois artistas plásticos, quando minha mãe ia pintar eu sentava na minha mesa para desenhar e dizia estar trabalhando também. Sempre foi assim, não lembro de mim sem tinta. Com 13 anos entrei num curso de pintura na Escola de Artes Visuais – EAV, no Parque Lage, onde estudei arte por 5 anos. Logo depois, mergulhei na faculdade, a experiência de pintar em um ateliê, com outros artistas, essa troca ed. 6

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diária, foi incrível. Aí, meio que pega de surpresa, sem planejar, engravidei aos 22 anos do meu primeiro filho, Sebastião. Durante os nove meses da gestação, continuei indo para faculdade e mal sabia eu que minha vida ia virar de cabeça pra baixo. Tinha certeza que ia dar conta de tudo, da casa nova, do bebê, das encomendas de pintura em aquarela, e achava que acabaria a faculdade. Tudo isso me fez enveredar pela temática do sagrado feminino, explorar a gestação, o sexo feminino, a mulher. Hoje percebo que produzi grávida mais do que nunca, e ganhei um público incrível de mães e mulheres, as quais acompanham minha trajetória. Quando Sebastião fez um mês, pintei minha primeira aquarela com ele pendurado no peito: fiz um retrato dele, meu menino sereio. Foi difícil conciliar, dar conta de tudo, e tive que fazer opções. Tive dificuldade com a amamentação, romantizei demais a maternidade, quando na verdade não tem nada de romântico, é um pequeno perrengue, gratificante, porém perrengue. Descobri aos poucos que perdi minha liberdade, e que ela não voltaria da mesma forma, a Isabel de antes morreu no parto. O que também não é tão fácil de se aceitar, descobri a solidão compartilhada, todo mundo sumiu um pouco e me vi com um bebê nos braços. Tive que me reinventar em todos os níveis, passava o dia com um recém-

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nascido pendurado na teta, trocando fraldas infinitas, amamentado em livre demanda, dando banho e lambendo a cria. Só conseguia pintar a noite, depois que ele dormia. Foi cansativo, uma época em que eu dormia muito mal. Após seis meses dessa pequena gigante revolução, fiquei grávida de novo. Pasmem: de DIU! Fiquei bem apavorada, mas segui em frente, e dessa vez mais cansada, pesada e sonolenta. Benedito nasceu num parto lindo em casa e como já era o segundo nem parei de trabalhar. Pintava com ele no sling ou amamentando mesmo. Depois de três anos sem pintar telas grandes praticamente só na aquarela consegui voltar aos tamanhos grandes e fiz uma exposição, foi uma sensação incrível de poder e liberdade. Pintar me faz muito bem. Tenho muito prazer no meu ofício. Pinto, pois preciso me expressar através das telas. Hoje, Benedito, o mais novo, fez 2 anos, e Sebastião já tem 3. A rotina é bem estabelecida, eles frequentam a escola e eu pinto nesse horário. Moro no interior do Estado do Rio, em um sítio, onde cultivo uma horta e crio galinhas. Divido um ateliê com uma grande amiga, Carina, que também é mãe! Temos um site onde vendemos nossos produtos, todos feitos com muito amor: o ateliê ciranda! [www.atelieciranda.com.br] Cada mês é uma surpresa! Nunca sei como vai ser o final do mês. Sigo sempre me reinventando. Atualmente podemos contar com as redes sociais que permitem uma nova forma de economia para pequenos empreendedores autônomos como eu, de modo que consigo vender meus produtos e sobreviver da minha arte.

Gaabriela Moura: Eu conheci a Gabi Domingues através do extinto Delícias café, que era um point da maternidade feminista da galera da Tijuca, e eu fui fazer um trabalho lá, fotografando, e vi de perto os trabalhos da Gabi; fiz contato com ed. 6

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ela, começamos a conversar e falei que estava com vontade de colocar alguma coisa no café também. E aí ela falou que tinha vontade de fazer um coletivo. Eu, como sou uma pessoa extremamente coletiva, na hora achei a ideia fantástica. Eu estava produzindo muito na época, pintando, desenhando, escrevendo, bombando na minha produção criativa, no meu processo criativo e artístico, estava grávida do Moreno e foi uma gravidez muito inspiradora, me fez fazer muitos movimentos. E aí eu procurei Gabi, ela falou que tinha esse desejo, falei: “Pô, que foda, muito bacana, vamos sim, como a gente vai fazer isso? Começamos a pensar, já idealizar uma exposição e como nossas obras poderiam conversar” E aí na mesma semana, nem sei dizer quanto

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tempo correu nesse nosso devaneio, eu falei : “Pô eu tenho uma amiga que eu amo, que desenha lindo e eu acho que tem tudo a ver com a gente e também tenho uma amiga que tem um trabalho muito bacana e que me ajudou muito, me dando opiniões e dicas nos meus trabalhos”. Aí nisso eu fiz contato com a Anne, que é essa primeira amiga que eu citei, perguntei se ela estava desenhando, se ela gostava da ideia e ela pilhou muito. Essa coisa de que essa narrativa, de que as mulheres juntas são como água, crescem, isso é muito inspirador e estimulante. A Anne topou na hora, colocamos ela no grupo e aí a gente começou a idealizar tudo, tudo que a gente precisava, que a gente queria; foi quando a Anne falou da Isabel, que foi a segunda amiga que eu tinha citado no começo da história; na hora eu falei: “Porra, foda, ia ser muito foda ter a Isabel com a gente”, que também topou imediatamente, ainda brincou dizendo: “Ah eu tô vendo esse negócio de coletivo de mães ilustradoras e eu tô porra, é meu rolê, quem são essas minas?”. Ela já conhecia a mim e a Anne, enfim, aí convidamos, ela entrou, e foi quando a gente começou a trabalhar firme com a exposição de lançamento que foi a Catártica. O nosso ponto em comum, politicamente falando, é o feminismo, sem dúvidas, e a ideia de que as mulheres mães são excluídas, né? São sistematicamente excluídas de todos os espaços, sociais, políticos e artísticos também. As mulheres no geral já são excluídas, as mulheres mães têm essa dupla questão. Aí fizemos a Catártica, bombou, foi um sucesso, em seguida a gente começou a expor em vários lugares, a gente começou pelo Boemia, fizemos no Laurinda (Centro Cultural Municipal Laurinda Santos Lobo), lá em Santa Tereza, fizemos sarau feminista, enfim, rolou muita coisa bacana em um espaço tempo curtíssimo que as pessoas se interessaram muito por isso. Quem são essas mães metidas a besta que estão fazendo esse desafio pra gente? E é isso, nem sei se eu me ative à pergunta, sobre essa questão, nosso ponto em comum: é o feminismo, todas de alguma forma somos militantes, quer seja na rua, quer seja artisticamente falando. Todos os nossos trabalhos dialogam com a militância e nós temos como ponto comum sermos mulheres mães que querem estar no circuito artístico e querem que outras mulheres mães estejam nos circuitos artísticos e sejam reconhecidas com essa especificidade. Eu não sei se existe outro coletivo de mães artistas, eu não conheço, nós não conhecemos, mas adoraríamos que a ideia se espalhasse, mas por enquanto nós não conhecemos, então não temos contato, não temos essa troca. Outros coletivos que influenciaram na formação, o último coletivo em ed. 6

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que eu estive envolvida antes do Coletivo de mães ilustradoras não era exatamente um coletivo, era um movimento, Mães e crias na luta. Eu sempre fui muito ligada à arte, à história da arte. O meu pai biológico era artesão e ilustrador, e eu sempre fiz muito artesanato e estudei teatro do oprimido, grande fã do Boal. E, aí, eu entrei na faculdade de pedagogia e acabei mergulhando no mundo acadêmico e deixando esse meu lado mais pra escanteio. E foi na gravidez do Moreno que eu me dei nome de novo. De novo não, porque eu não me dava nome antes, mas que tive esse ímpeto de me denominar artista. Primeiro porque eu comecei a trabalhar profissionalmente com uma paixão antiga que era a fotografia. Eu já tinha estudado fotografia com 14, 15 anos de idade e era um hobby e um prazer, um tesão que eu tinha na vida e foi na gravidez do Moreno que eu decidi que esse tesão viraria minha produção, e também na gravidez do Moreno que eu comecei a mostrar para o mundo o que eu pintava. E o que impactou na minha produção, não sei, essa gestação em si foi uma gestação que me deu muito ímpeto para me denominar e botar pro mundo, botar pra jogo a minha arte.

A gente está vivendo um momento que tá difícil de produzir, porque a gente concilia maternidade, trabalho, tudo. Não sei como eu concilio não. Eu trabalho quando eles dormem, às vezes trabalho com eles acordados. A Nalu e a Flor, é muito fácil de inserir no meu trabalho porque eu consigo montar o ateliê e elas ficam produzindo enquanto eu produzo também, elas gostam muito de pintar junto comigo. Se tem uma coisa que a Nalu ama é a gente sentar e pintar junto e nós fazemos desenhos, meus e dela, úteros, corações, símbolos de vênus, são as coisas que a gente mais desenha e depois a gente vai aquarelando, vai pintando, eles têm muita curiosidade com o meu material, é uma coisa meio… não sei qual é a palavra; não é uma parada proibida, eu deixo eles manusearem mas não é uma coisa que eles podem brincar em qualquer momento, então o momento em que eles mexem comigo, no meu material, é um momento muito prazeroso, para elas. Moreno ainda está numa idade muito difícil de deixar mexer. E aí, ano passado, depois da gente ter tido aí um período que não conseguia dar conta, a gente chegou a negar propostas de exposição, a gente resolveu

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lançar uma nova exposição, que foi Primavera Materna. E antes de a gente chegar nesse nome, à essa ideia, a gente quis chamar duas pessoas, que a gente curtia muito o trabalho, admirava, que foi a Sula e a Ana. E assim elas chegaram no coletivo, agregando com o trabalho delas que é muito bonito e nós lançamos essa segunda, que a gente tinha exposto em vários lugares com a Catártica, aí foi quando a gente lançou a Primavera Materna, escolhemos também o Delícias café até por conta da história que todo mundo tinha ali com ele e é isso. E, basicamente, temos essa coisa em comum, essa maternidade, esse diálogo com a feminilidade não estereotipada, com o feminino não estereotipado, e o feminismo né, que aparece o tempo todo nas obras. Talvez as obras que têm menos apelo feminista, como as da Sula, porque ela tem uma produção muito documental e autobiográfica. Ela trabalha muito como os acontecimentos da vida dela, as amenidades mesmo, como se a Sula tivesse vindo para o coletivo aplicar uma leveza à essa maternidade, que a acaba que a Catártica foi muito intensa, muito visceral, sangue, útero, muita lua, muito fogo e a Primavera veio um pouco mais amena com essa pegada do documental autobigráfico da Sula, e a Ana também veio com sangue nos olhos, bem na época das eleições, a gente focou muito no Ele não, e foi isso.

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Sula Freire: Eu não engravidei durante a faculdade, uma das perguntas era essa, né? Eu fiz toda a graduação, fiz o mestrado, o concurso porque eu achava que não tinha como viver assim. Trabalhei uma época com produção, cenografia e com indumentária, mas tive que virar muitas noites, era muito cansativo e o retorno financeiro era muito pequeno pelo tanto que a gente tinha que trabalhar e, aí, eu comecei a pensar que talvez não desse para eu viver assim o resto da minha vida. Então eu comecei a focar um pouco mais em pesquisa, isso já durante a graduação fiz um projeto de mestrado que foi resultante da minha pesquisa de iniciação científica. No mestrado, eu percebi que eu não queria ser professora de universidade e não gostava daquele universo tanto quanto eu imaginei que ia gostar e, nessa época, por conta disso tudo, eu acabei deixando a produção artística um pouco de lado mesmo e comecei a estudar mais sobre arte do que fazer arte, o que mudou mesmo quando eu virei mãe, de fato. Mas, antes disso, eu comecei a dar aula, virei professora, trabalhei pra caramba em várias escolas e, aí, eu me vi grávida dando 33 (trinta e três) tempos de aulas semanais, trabalhando de muito cedo até muito tarde todos os dias, sábado sim, sábado não. Aí eu percebi que talvez não desse para manter o ritmo depois de ter um neném. Inclusive, um dos lugares onde eu trabalhava meio que deixou isso claro, dizendo que, se eu não acompanhasse o ritmo de retorno, a gente teria que conversar. Isso me fez pensar que eu precisava encontrar um outro caminho. Eu comecei a procurar concurso público, estudei pra caramba, fiz um e não passei, depois eu fiz um outro, do Colégio Aplicação, passei e virei professora de Artes Visuais. Tive a minha filha nesse mesmo momento, tudo aconteceu junto. Quando eu tive a Vivian eu me via num lugar do qual eu não me reconhecia mais, eu não sabia mais quem eu era, eu era ela o tempo todo e isso foi muito cansativo. Tinham momentos em que eu olhava para a casa e era uma bagunça, era um caos, eu só sentia vontade de sentar no chão e chorar o tempo todo. E, aí, eu comecei a trabalhar muito cedo porque eu tive pouco tempo de licença maternidade, sofria muito, chegava no trabalho e chorava porque sentia falta dela, mas ao mesmo tempo era bom porque eu tinha um tempo longe e só meu. Então era muito conflituoso, eu sentia um nervoso muito grande, não sabia o que estava sentindo, quem era eu naquele momento, quem era ela, enfim. E ai, um dia, em vez de sentar no chão e chorar depois de chegar do trabalho, cansada, eu peguei um lápis e comecei a desenhar a bagunça de casa. E eu fui fazendo ed. 6

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isso e acabou que eu comecei a produzir muito sobre o meu cotidiano, sobre a minha relação com a Vivian, sobre o que eu estava sentindo sem perceber que era isso que eu estava fazendo. Acho que foi a partir dai que eu comecei a produzir mais e aí eu comecei integrando no coletivo, com a Gabriela. A Gabi me chamou pra fazer parte do coletivo, então eu entrei depois, como as meninas falaram, e foi muito bacana entrar porque eu conheci um monte de gente que estava no mesmo percurso ou em percursos diferentes, mas que, de alguma forma, tinham uma escuta para aquilo. E aí foi mais ou menos assim que aconteceu. Não, eu não me via como artista antes, até hoje eu tenho dificuldade em me ver como artista, engraçado isso, né? Acho que comecei a pensar mais em mim dessa maneira a partir desse momento, porque foi desenhando a minha bagunça, o meu caos naquele momento, do puerpério e até mesmo um pouco após, a Vivian já com uns 4, 5 meses, desenhando aquele caos todo que consegui me encontrar e que eu consegui me entender com eu mesma depois de muito tempo. Então, para mim, a produção permitiu com que eu me conectasse comigo mesma de novo. Até hoje eu tento muito manter esse lado vivo né, produzindo. Eu tenho um projeto pessoal, estou numa onda de fazer mulheres amamentando, a amamentação foi algo muito importante na minha vida, acho que mudou várias coisas, foi a parte que mais me transformou. Várias partes transformam né, mas amamentar foi realmente transformador. E claro que tem momentos em que a gente não produz nada ne, não dá tempo, porque eu não vivo da minha arte, eu dou aula. De pesquisar, de trabalhar, de dar aula, mas não da minha produção artística, então para mim ela entra meio que no campo do hobbie. Eu amo muito fazer meus desenhos e minhas pinturas, mas eu não vivo delas e eu tenho até uma dificuldade de vendê-las, porque as minhas são muito pessoais, como elas retratam o meu cotidiano eu não consigo vender. Várias pessoas já tentaram comprar minhas pinturas, mas eu não consigo vender, tenho uma dificuldade enorme. Então acho que elas fazem mesmo parte do meu processo, é como se fosse um diário de recordações e uma forma de encontrar beleza no caos. A Vivian participa sim do processo, sempre, até porque ela é o meu maior tema. Ela ta sempre por perto, vendo o que ta acontecendo, sempre levo ela em todas as exposições que acontecem. Todas as situações que eu posso colocar ela, levar e fazer com que ela participe, ela participa, então desde o momento

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em que eu to pintando, ela ta pintando do meu lado, na mesinha dela. Já sabe usar aquarela, já sabe qual papel que tem que usar, eu trago bastante ela para esse lugar. Em casa tem quadros que eu pinto e ela pinta, do chão até o teto em uma das paredes, então tem bastante produção da minha própria filha na minha parede e a ideia é que ela realmente se sinta à vontade para se expressar da maneira que ela deseja e que tenha essa oportunidade também. Pra mim foi algo muito importante na minha infância, durante meu desenvolvimento, foi o estímulo que meus pais me deram nessa área. Desde muito nova meus pais me incentivaram a desenhar e a pintar, e que é algo que eu sempre gostei apesar de ter demorado tanto tempo pra me dedicar assim de fato. Então eu procuro fazer o mesmo com a Vivian, deixo ela participar sempre, acho bem bacana e ela adora, sempre fala que vai fazer uma exposição com a mãe dela ou que ela vai fazer uma superexposição. O que eu quis dizer é que mesmo sempre gostando, sempre investindo nesse caminho, acho que a fase em que eu mais produzi foi a pós maternidade, a fase que produzi com mais continuidade e afinco, sempre pensando nisso. Foi quando eu me encontrei dentro do meu próprio trabalho também. E com relação a licença a maternidade, que eu não expliquei o que aconteceu, foi que eu passei no concurso e a Vivian já tinha nascido. Eu fiz a última prova do concurso a Vivian tinha 4 dias, então quando eu assumi o meu cargo ela já tinha uns 2 meses então eu não tive direito a licença de 6 meses porque pra você ter licença aos 6 meses você precisa dar entrada nos 2 meses de amamentação no início então entrava automaticamente nos 4 meses de licença. Mas no final das contas, o colégio Aplicação é um lugar muito bacana de se trabalhar, o meu setor é todo formado por mulheres, o setor de audiovisual, todo mundo se abraça muito, se ajuda muito. Então é um lugar onde eu posso me dedicar as minhas pesquisas, então ir pro CAP também foi bacana por conta disso. Realmente posso dizer que as coisas acabaram se encaminhando. Sobre a questão do feminismo, eu entro em acordo com a Ana, quando ela fala que é muito apelativo e me emociona muito porque acho que a gente ainda ta muito longe de um país bom pra se viver enquanto mãe. Porque eu acho que a gente vive uma desigualdade muito grande entre gêneros, em relação à responsabilidade mesmo. Vou dar alguns exemplos, eu fui ao lançamento do livro da Manuela D’avila, “Revolução de Laura”, foi lindo, foi emocionante. ed. 6

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E eu comprei o livro dela e li de um dia pro outro, até agora falando dele eu me emociono. Ela descreve situações e sentimentos que são muito reais e que estão muito reais para todas as mulheres mães, e ela tem bastante apoio do marido, eu também tenho apoio do meu companheiro, e fico pensando em quem não tem. E ainda tendo apoio é muito difícil. Para citar uma das situações ela cita a Michelle Bachelet que instituiu uma lei que proibiu hora extra, reuniões depois do horário útil, isso por inúmeras questões, para não ter que trabalhar a mais e não poder viver a família né. Eu achei isso tão incrível e fiquei me perguntando quando isso poderia acontecer aqui, acho que nunca né. Quantas vezes eu não me vi sem ter como trabalhar, tendo que levar a minha filha pro trabalho e sair de lá às 22h da noite, e a quantidade de gente que torce o nariz porque você levou o filho ou a filha, mas ao mesmo tempo você não pode faltar. Outro exemplo também, é quando ela fala que sempre perguntavam pra ela, isso acontece muito com a gente também né, onde tava a filha dela quando ela ia sozinha em algum lugar, e quando levava a Laura perguntavam porque ela não contratava uma babá, ou seja, nunca tá bom, é sempre um problema. Ser mãe não é uma coisa natural, mas nunca perguntaram pro deputado que está lá no parlamento onde é que está o filho dele, se o filho dele já tinha comido, o que estava acontecendo. Ninguém nunca pergunta pro homem onde é que está o filho. Só to falando sobre isso porque mexe muito comigo e imagino que mexe muito com todo mundo, com todas a mulheres. Uma última citação é a Jandira Feghali, que é a primeira mulher do meio político que tira licença a maternidade, até então todas as outras mulheres tiravam licença saúde. Não existia no congresso a ideia de licença a maternidade, olha que absurdo. E eu acho que o coletivo é uma forma da gente se unir e dizer que a gente existe, que a gente tem vontades e sentimentos. A temática do feminismo mexe muito comigo e acho que estamos longe de uma situação ideal. Fico muito feliz, e a cada pintura, e a cada relato, cada exposição, colocamos na internet, e sempre tem alguém que de alguma forma se relaciona com aquilo. A gente tem a sensação de reforçar uma rede que existe, ou deveria existir sempre. Estamos juntas.

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Entrevista Feminismo maternal, arte contemporânea e violência obstétrica. Entrevista com Roberta Barros.

Nesta entrevista, feita por e-mail, a artista conta um pouco de sua trajetória, seus projetos, os atravessamentos entre os papéis sociais que ocupa e exerce, bem como traz apontamentos muito interessantes sobre temas ligados à arte contemporânea, os feminismos e algumas questões caras às mães na atualidade, como as opressões do patriarcado, que se impõem em forma de violência de gênero, aborto e as vulnerabilidades e potências do corpo grávido.

Roberta Barros é uma artista visual, pesquisadora, escritora e mãe. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. É autora do livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (2016), desdobramento de sua tese de doutorado (PPGAV/EBA/UFRJ), homônima, pela qual recebeu o prêmio Gilberto Velho de melhor tese daquele ano. Participou do projeto “Arte, Mulher e Sociedade - residência artística em maternidade pública”, no Hospital da Mulher Heloneida Studart, durante o qual desenvolve trabalhos performáticos que abordam temas como violência obstétrica, violência institucional, violência contra a mulher e direitos reprodutivos. São três suas obras que abordam diretamente a temática da maternidade: Dar de si (2014), na qual, seminua, manipula e ordenha seus seios, estão cheios de leite devido à amamentação de sua filha. Não toque (2014) possui alto conteúdo político, tangenciando a denúncia, especialmente se a emparelharmos com a recepção que a obra teve por parte da comunidade médica. Nesta, a artista utiliza entre 100 e 150 luvas de procedimento, nas quais insere os nomes das pessoas com as quais conviveu no período da vivência na maternidade até o momento da intervenção. As luvas, infladas e amarradas, são dispostas no chão de maneira a formar um aglomerado que é espalhado e reorganizado diversas vezes enquanto ela caminha pelas

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rampas do espaço. Já em Tomar para si (2016), Roberta tricota um cordão umbilical grande o suficiente para criar com ele uma barriga de grávida, para, por fim, desfazer esta barriga, deixando para trás toda a linha. Na recepção da maternidade circula entre as mulheres e acompanhantes que esperam atendimento. RC: Você constitui um papel social bem específico: é mulher / mãe / artista. Como se dá o atravessamento destes papéis? Aproveita e conta um pouco pra gente a trajetória que te levou a dizer “eu sou artista” e se há predicados que acompanham esse nome. RB: Bom, na verdade eu acredito que me posiciono como uma pesquisadora e artista ou artista e pesquisadora ou como pesquisadora e artista. Durante a minha vida acadêmica, mestrado e doutorado, eu sempre fui muito criticada pelo meu tipo de texto, que era um texto mais ensaístico. Fui da linha de pesquisa de Linguagens Visuais do PPGAV, que é um curso prático teórico e já partia um pouco desse entendimento e dessa posição política, digamos assim, de que produção de saber não é apenas produção textual. Então, quando eu falo pesquisadora e artista é no sentido de afirmar a posição de que tanto textos meus, a produção de pesquisa acadêmica, as leituras tanto dos textos impressos escritos e publicados, como as palestras, como o trabalho de performance e o trabalho visual, fazem parte de uma construção de pensamento, de uma construção de argumentos e de política. Na verdade, essas duas palavras vêm juntas e a ideia toda dessa minha trajetória, que nem é tão longa, mas já tem um pouquinho de tempo, é justamente reforçar isso e reforçar igualmente que essas palavras a gente pode explorar de vários modos, bem como as interrelações entre elas: pesquisadora e artista. Ao mesmo tempo em que acho que elas não podem vir isoladas porque faço questão de reafirmar que sou mulher e branca e mãe e pesquisadora e artista, e esses montes de E - mulher E branca E de classe média E artista E mãe E pesquisadora - todos esses E na verdade configuram um modo de estar no mundo, um corpo encarnado que tem determinada geografia, determinada geração, um espaço e tempo, uma forma de circulação, uma determinada performatividade. Tem performance de gênero, uma performance política, tem performances de raça, tem uma série de performances que precisam ser afirmadas e reafirmadas e transformadas. Esses E são nesse sentido, se for o caso de a gente aprofundar um pouco essa questão e essa afirmação, esse ed. 6

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modo de produzir e de estar político, afirmando a corporeidade desse sujeito, essa pesquisadora que produz um determinado pensamento, muito na linha da argumentação da Susan Bordo1, quando ela fala “feminista enquanto outro”. Ela vai trazendo muito a questão de o que é que foi determinado na sociedade ocidental capitalista moderna e pós moderna como o que é saber e o que não é saber, quem pode produzir saber e quem não pode e o que é produção de saber e o que não é. Além da questão da produção de saber escrito, ainda tem uma questão de que tipo de escritura é essa: essa escritura de uma voz desencarnada, de um ser abstrato: a voz do filósofo. Na verdade essa voz do filósofo pressupõe um texto que não coloca, não problematiza o estar no mundo enquanto gênero, raça, geração e geografia, que são essas variáveis e questões todas que nos atravessam e são parte fundamental da nossa produção de saber, do nosso olhar no mundo e o que a gente escreve, que a gente produz de argumento. É um texto pequeno, um artigo traduzido, uma leitura excelente e fundamental para pensar o que agora está mais em voga, que é a questão do lugar de fala, mas que é a questão de que tipo de roupagem se dá para os textos e as imagens, e que roupagens são consideradas produção de saber ou não, e quais roupagens são consideradas arte, arte erudita, artesanato. As questões das fronteiras e desses lugares de quem fala e de quem vê, quem escuta, enfim. Também é importante dizer aqui que essa vontade consciente de falar e de me colocar explicitamente é na verdade a de alertar para esse local específico de mulher branca, classe média, brasileira, residente no Rio de Janeiro, na zona sul - e essas coisas são super importantes para dar o tom dessa voz e desse olhar pro mundo. E mãe, ok. E várias outras palavras e condições de performance desse eu, desse sujeito, que estão totalmente costuradas, como você diz aqui, se atravessando. Algumas coisas interessantes de falar é que essa vontade e essa noção da importância de colocar isso conscientemente não vem desde o início das minhas pesquisas em arte, que começaram lá em 2000, quando eu fiz um sanduíche da graduação lá nos Estados Unidos. A minha graduação era em publicidade e propaganda, então eu fiz uma matéria de história da arte, quando ouvi falar em arte feminista pela primeira vez, e até chegar à percepção da importância de colocar isso aberta e explicitamente no projeto de pesquisa, na minha fala e em toda minha produção demorou um 1

BORDO, Susan. The Feminist as Other.Susan Bordo - 1996 - Metaphilosophy

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lastro de tempo muito grande. Quando eu fiz o mestrado a minha proposição de projeto de pesquisa era outra, apesar de que depois os textos e os capítulos da minha dissertação têm tudo a ver com a produção de mulheres fotógrafas. Mas, num primeiro momento, esse tom de voz, essa escritura, não deixa transpassar explicitamente que se trata de um olhar feminista e só vai aparecer na verdade depois. Desde 2000, quando eu fiz esses primeiros estudos e fui apresentada a essas mulheres artistas feministas lá nos Estados Unidos, mas a vontade de falar sobre o feminismo explicitamente e entender isso com uma postura política super importante acontece em 2008, que é quando eu começo a fazer o processo de seleção do doutorado. Eu começo aí a ler vários textos específicos sobre arte e feminismo, artes e feminismos, e o meu projeto já é explicitamente sobre pensar a possibilidade de se falar em arte feminista no Brasil. Essa condição de mulher e artista e pesquisadora, ela demora realmente. Eu falo que demora a sair do armário, a entender a importância de falar disso explicitamente e isso ser o tempo inteiro colocado e reafirmado num ambiente que naquela altura, naquela época, era muito complicado e muito difícil, porque não tinha toda essa abertura. Aliás, nenhuma abertura para se falar sobre feminismos no Brasil. Pra você ter ideia, as leituras que eu tive disponíveis eram basicamente de pesquisadoras das áreas de história, de ciências sociais, de antropologia e de literatura. Agora, fora do Brasil as referências de arte e feminismo já eram as que eu estava lendo para me preparar pro projeto e me inscrever no processo de seleção. Já a condição de mãe, obviamente, também vai dar uma outra consciência da importância de colocar essa condição também de modo explícito nessa produção de saber. Se trata mais de uma preocupação em falar das políticas internas e das disputas internas aos próprios feminismos, ao campo do feminismo, e mais uma noção e consciência da importância de se pluralizar essa noção de feminismo e não falar de feminismo e sim de feminismos. RC: Em seu livro Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira, ao apresentar a performance Dar de si, há um momento em que você descreve “Há meses desencontrada do (meu) corpo, cujo contorno foi testado, esticado na transitoriedade potencialmente subversiva da gravidez e inflado para a amamentação (…)” (p. 221) e narra o reencontro com este corpo, então livre para tornar-se um “eu”. Tendo em vista a materialidade e a corporeidade de seus trabalhos, antes e depois da maternidade, como estes processos de desencontro e encontro com seu corpo corroboram sua narrativa artística? ed. 6

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RB: Sobre a questão dos encontros e desencontros do corpo, a questão da sexualidade, da corporeidade e da maternidade, no caso do Elogio ao toque, tem sim, e eu falo isso explicitamente no texto, que é uma vontade de falar de sexualidade do corpo da mulher gestante. É uma vontade explícita de dialogar de modo crítico com toda a historiografia da arte em que as figuras das mulheres mães são santificadas, beatizadas, purificadas no sentido ruim da palavra. Elas são torcidas e enquadradas no estereótipo, no lugar da fronteira do feminino na sociedade ocidental capitalista patriarcal. Mas uma coisa que está ali, que já está debatida, e é mais forte talvez nessa citação, é um diálogo muito mais forte com a noção de erotismo no Bataille. Na verdade, isso está bastante presente no terceiro capítulo do meu livro, mas agora usando aqui o seu conceito, a sua palavra, como tem muitos atravessamentos de muitas vontades minhas daquele momento, lá em 2013, de trazer um monte de conceitos que a gente mal falava, mal tinha referência aqui no Brasil dentro do campo dos feminismos. Então, a vontade era de falar da autoerotização do corpo da artista como estratégia explícita de produção de militância feminista na arte. Tem muitas coisas acontecendo no texto e na performance ao mesmo tempo. Se eu fosse aprofundar essa frase explicitamente falaria da questão de todo um padrão de beleza, e é daí que vem a frase, que é você engravidar e durante a gravidez o seu corpo se deformar desse corpo que deveria ser o corpo da mulher bela na sociedade contemporânea. Tem toda uma conversa aqui com a questão do belo, mas principalmente tem uma questão do erotismo de Bataille, que fala da pele, do abjeto e do erótico: como é esse encontro, essa extrapolação do seu próprio limite, do descontínuo pro contínuo. Nesse trecho as maiores questões são esse diálogo com a historiografia da arte, com todas as imagens e representações de corpos de gestantes e mulheres mães nessa história da arte ocidental, patriarcal, capitalista. Igualmente na produção da comunicação de massa, que é a minha área de gênese de pesquisa na publicidade e propaganda. A questão de falar, de me amigar, me relacionar, dialogar e celebrar um pouco, fazer um elogio às mulheres artistas da body art da década de 70 que fizeram, traçaram e potencializaram essa estratégia de autoerotização do próprio corpo como uma tomada desse corpo de mulher que sempre foi apropriado e objetificado por artistas homens, que delineavam representações desse corpo objeto para ser visto por outros homens. Era aquele debate bem específico da década de 70 e, obviamente, no Dar de si há um elogio a essas práticas que depois

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foram demonizadas, digamos assim, pelos próprios movimentos de disputas políticas dentro do feminismo, dos feminismos, da teoria de arte e da teoria de cinema. Mas o que não está talvez tão óbvio nessa frase é toda uma questão do erótico ligada ao conceitos do Bataille: abjeção, dor e esse corpo sobre o qual construímos todo o entendimento como algo descontínuo, que é toda uma questão foucaultiana de sujeição, criação do sujeito moderno. Tem aí uma vontade de conversar sobre essa extrapolação de limite quando eu falo “inflando, inchando, me desencontrando desse eu”, o “eu” aqui entre aspas é um eu, é uma brincadeira, um jogo de palavras com a noção de autonomia do eu, autonomia do corpo, descontinuidade do corpo e desse sujeito autônomo, essa ilusão, essa armadilha desse conceito. RC: Sobre o subtítulo de seu livro “como falar de arte feminista à brasileira”. Você acredita em um feminismo materno, ou uma maternidade feminista? Diante de todas as opressões vividas por nós e por nossos corpos, seus trabalhos pós maternidade tratariam da viabilidade do feminismo para mulheres mães? RB: Quanto a falar sobre feminismo materno ou maternidade feminista. Sim, claro. Mas não acho que talvez fosse feminismo materno. Acho que talvez a gente pudesse chamar de maternal, e aqui fica muito forte a questão das diferenças conceituais entre maternidade e maternagem. Coisas que já tenho mais ou menos escrito em artigos do ano passado, retrasado, mais ou menos. Eu apresentei a performance Não toque no Fazendo Gênero e escrevi sobre ela. É um momento em que eu falo do lugar da mãe no movimento feminista histórico na segunda onda, esse não lugar, essa falta de lugar. Mães não entram. Na verdade esse seria o slogan do feminismo ali na década de 70. Na verdade o próprio Dar de si já vem de uma situação de violência que sofro não por ser mulher apenas, mas por ser mulher gestante, então na verdade esses três trabalhos que acontecem depois, a partir de 2011, são trabalhos que têm totalmente a ver com as questẽes da violência institucional, pessoal, privada; violência sobre um corpo de uma mulher mãe, mulher gestante. Esses trabalhos todos têm a ver especificamente com violência, com a condição do corpo de mãe, com a condição do império do útero, o império da condição do feminino ligada à maternidade e ao útero. O Dar de si é isso: uma situação de violência de uma imposição de aleitamento por esse corpo de mulher mãe. O Não toque vem na verdade por conta de todo ed. 6

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um processo muito complicado, forte e grave de violências obstétricas pelas quais passei durante a minha primeira gravidez. Depois o Tomar para si vem de violências que eu passei na segunda gravidez. A condição da maternidade afetou profundamente. Todas as violências que vivi são o ponto de partida para essas experiências. Então quando você pergunta se esses trabalhos tratam da viabilidade do feminismo para a mulher mãe, na verdade são trabalhos que tem a ver com todas as violências que eu passei durante os meus dois períodos de gravidez, e é óbvio que a gente passa violência depois de ter parido duas crianças, mas esses são especificamente sobre esta experiência. E sim, na verdade a ideia, a pesquisa agora é completamente em cima das possibilidades de se construir maternidades feministas: condições de mulheres mães feministas: como é que é esse feminismo dentro dos feminismos e como é que são essas disputas. RC: Considerando o grau de entranhamento da violência obstétrica2, de forma estrutural, em nossa sociedade, penso que há ainda bem pouca reflexão e investigação a seu respeito. Em sua obra “Não toque”, (2014), encontramos um forte embate com este tipo de violência. Como se deu o processo? A violência obstétrica motivou o trabalho ou foi ressaltada por ele? Este mesmo trabalho foi resultado de uma vivência na maternidade Heloneida Studart. Tendo você mesma passado por duas experiências de parto, considerando que ao mesmo tempo em que você estava em processo de construção de uma obra, era também testemunha de uma história vivida por pares, pode contar sobre como foi ser mãe e artista durante a residência? RB: Quando eu apresentei a minha defesa da tese e apresentei o Dar de

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De acordo com a cartilha Violência obstétrica: você sabe o que é?, elaborada em 2013 pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em colaboração com a Associação Artemis e o Núcleo especializado de promoção e defesa dos direitos da mulher, “a violência obstétrica existe e caracteriza-se pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres”. Esta é a definição retirada das leis venezuelana e argentina, onde a violência obstétrica é tipificada. 208   |  revista da graduação eba/ufrj


si la no PPGAV, uma médica, a Dra. Ana Teresa Derraik, que teve contato com meu trabalho me convidou para fazer parte de um projeto que ainda não se sabia muito bem como seria. Ela tinha acabado de assumir há cerca de um ano a direção clínica do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti. Uma das missões que ela tinha se colocado, e sido chamada pela direção do hospital com esse intuito, era humanizar - um termo completamente complicado, mas é assim que se fala no meio de modo mais corriqueiro - o atendimento das gestantes. O hospital é especializado em atendimento a gestações de alto risco, então na verdade as situações ali já são limites, o estado de tensão já é uma constante, porque são todos casos muito graves. Então, a ideia toda era iniciar algum tipo de projeto que não tinha ainda nenhum formato, nenhuma roupagem, para dar conta de trazer artistas para aquele ambiente e que aquelas presenças, aquele projeto pudesse tecer formas de modificar os modos de atendimento ali do hospital. Falando especificamente da concepção e conceituação do trabalho, isso se deu num dia específico, mas todo o processo foi muito intenso porque eu fazia plantões semanais junto com uma equipe. Eu ficava vestida com a mesma roupa da equipe de cirurgiões. Acompanhava-os desde o início, desde a admissão até todo processo de encaminhamento para as salas de pré parto, depois de parto, e muitas vezes para as enfermarias ou até mesmo pra UTI se fosse o caso. Eram plantões muito intensos em que eu estava ali ao mesmo tempo sendo exposta, sendo testemunha e de certa forma compactuando com inúmeros tipos e intensidades diferentes de violência obstétrica, violência de gênero e violências institucionais contra mulheres. Era uma relação muito complexa porque a minha presença ali dependia, de certa forma, de um jogo de cumplicidade. Tem inúmeros casos muito complexos e muito interessantes de serem debatidos, mas para este trabalho dois momentos foram especificamente muito importantes. Eu acompanhava, às vezes, durante horas e horas a mesma mulher em trabalho de parto, depois, na sala de cirurgia ou na sala de parto vaginal. Eram experiências sempre muito intensas, porque como eu ficava o tempo inteiro do lado dessas mulheres eu não só ouvia, não só entendia e não só participava daqueles momentos de extrema dor e de muitas violências, mas também de muitas histórias por trás de cada caso daquelas gestações. Era tudo muito doloroso, mas algumas situações específicas contribuíram para a costura, pra idealização deste trabalho. Uma delas foi um trabalho de parto que eu fiquei durante muitas horas com a mãe ed. 6

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e percebi que ela estava sendo negligenciada. Os gritos dela estavam sendo tomados como frescura e ela estava sendo punida por isso, por externar a dor dela de forma mais alta, mais barulhenta. Eu realmente percebi que estavam monitorando muito pouco ela, aí chegou uma altura em que eu consegui fazer com que uma médica cirurgiã específica com quem me dava melhor descesse da sala de médicos para olhar essa mulher. Realmente se constatou que o feto estava em sofrimento e foi feito o parto com todas e mais algumas daquelas situações já relatadas milhões de vezes por militantes do parto humanizado: gritar com a parturiente, xingamentos, etc. E o bebê nasceu morto. Foi a experiência mais intensa da minha vida. Porque eu vi ele nascendo e eu vi que ele nao estava vivo, que não estava respirando. Ele foi socorrido direto para uma cápsula de emergência da UTI neonatal. Nesse momento houve um problema com o carrinho que veio, soltou o oxigênio, caiu o cilindro no chão, foi mobilizada uma equipe gigantesca de vários tipos de profissionais ali do hospital. Eu fiquei no meio porque estava com as pediatras e ouvi muitas coisas que essas pediatras falaram, inclusive sobre os procedimentos das cirurgiãs, confirmando mesmo todo um processo de negligência. Então o bebê foi ressuscitado ali, naquele momento. Mas antes disso acontecer elas colocaram o bebê, que parecia ter um palmo, era prematuro, estava muito pequeno, dentro de um saco plástico. Fiquei horrorizada com aquilo. Estava achando tudo muito violento, muito extremo, porque a situação exigia isso realmente. Colocaram ele dentro do saco e rasgaram, fizeram um furo no saco, colocaram ele inteiro ali dentro. Eu não estava entendendo o que era aquilo. Depois conseguiram estabelecer o cilindro de oxigênio, conseguiram passar um tubo nele e ele começou a respirar por um tubo dentro desse saco plastico. Só depois fui entender que essa saco plástico era porque ele precisava manter todas as mínimas vibrações, as mínimas energias de calor do corpo, senão ele não conseguiria voltar a respirar. Essa história de colocar dentro do saco plástico foi o ponto de partida pra eu pensar nas luvas, nas mãos. A questão do toque: Tem a questão do exame de toque que não foi feito nos períodos corretos, não foram feitos nessa parturiente pra entender se ela já estava com a dilatação adequada, pra ver se o bebê estava bem ou se estava em sofrimento. A questão do toque tem a ver também com uma bandeira dos movimentos contra a violência obstétrica da não intervenção de cirurgia,

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da não intervenção pelo corte do períneo3, da não intervenção em relação às manobras com o braço4 para forçar a saída do bebê da barriga quando ele está muito alto - coisa que eu sofri. Esse bebê milagrosamente sobreviveu e eu fiquei acompanhando ele na UTI dentro daquelas bolhas, daquelas câmaras, aquelas macas tão pequenas. A mãe ia visitar e ela não podia tocar o bebê. Aí vêm esses paradoxos, essas contradições: de um lado é toda uma luta para que esse corpo médico e esse corpo de enfermagem não toque, não ultrapasse o respeito desse limite, não toque nessa pele, não rasgue essa pele, não violente de forma física essa pele. E tem a questão de depois do momento, da mãe querer tocar o filho e ficar às vezes meses sem poder tocar no bebê a não ser pelo lado de fora, por aquelas luvas em que você enfia a mão na incubadora, pra poder tocar nesse bebê que está ali. É um toque sempre impedido, né? Tem sempre essa película, essa pele impedindo o toque mesmo direto da pele da mãe com a pele do bebê. O toque está o tempo inteiro evidenciando, sublinhando e realçando essas relações de violência, de sofrimento e de dor. Era uma palavra muito importante além de ser uma bandeira do próprio movimento contra a violência obstétrica. Outra situação de violência muito forte, que foi a única situação que me fez de fato chorar muito - eu já estava ficando muito anestesiada com tanta violência. Você não consegue chorar por todas as violências - e foi muito dramática pra mim. Uma menina estava parindo aos 13 anos e na época era a idade da minha afilhada sobrinha, ela era muito nova e o corpo de enfermagem e o corpo clínico das obstetras percebeu obviamente isso. Começou aí uma sucessão de violências que culminou com a hora em que ela foi realmente levada até a sala de parto e a mãe dela foi proibida de entrar,

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O corte do períneo, chamado de episiotomia, é uma incisão feita com um bisturi ou tesoura no períneo da mulher na fase expulsiva do trabalho de parto, quando o bebê começa a coroar. Apesar de não haver evidências científicas que corroborem com a prática e a OMS recomendar sua aplicação em apenas 10% dos nascimentos, ainda é praticada de forma rotineira e não seletiva no Brasil. O movimento da humanização do nascimento hoje conceitua a episiotomia como mutilação genital. 4 Roberta fala da Manobra de Kristeller, hoje reconhecida como danosa, proibida por lei no Estado do Rio de Janeiro (Lei 7191/2016) e contraindicada pelo Ministério da Saúde desde 2017, por incorrer em riscos graves como ruptura uterina, descolamento de placenta e hemorragia. ed. 6 I julho 2019 211


na verdade foi atrasada de entrar. Começaram a atrasar para que ela entrasse e aí a menina entrou sozinha. Eu também não entrei porque estava tentando conseguir com que essa mãe entrasse. Depois vi que elas estavam prendendo muito a mãe, então eu entrei. Aí as cenas foram horrorosas, de muita violência verbal, de muito xingamento, de muita gritaria com a menina de 13 anos, que estava muito bem, que estava segurando inacreditavelmente a quantidade de violência. Depois de bastante tempo o bebê nasceu, perguntaram pra ela qual seria o nome e ela falou: Alissya. Aí foi a pediatra que começou a zombar dela e falar coisas do tipo “ah, não, Alyssia, não. Vamos mudar esse nome. Imagina quando ela estiver na alfabetização? Ela não vai saber escrever esse nome. Por que não fica Alice, só? Ou por que não Aline?”. A menina então começou a chorar e dizer que não, que sempre pensou que ia ser Alissya. Que ia ter uma filha que ia se chamar Alyssia com y. Virou então uma conversa muito baseada na violência do humor, sabe? De desmerecer a escolha dela, de desempoderar essa menina-mulher-mãe no momento, talvez o único momento em que ela ia ter um poder de decisão na vida dela. Momento em que ela tinha eventualmente o poder que era decidir o nome da filha que ela pariu sozinha, praticamente, porque a mãe estava sendo impedida de entrar e ainda virou motivo chacota ali entre as médicas que questionavam como que a filha de uma mulher negra da periferia conseguiria aprender a ler e a escrever o próprio nome porque tinha um y ali e era Alyssia. Isso pra mim foi de uma violência muito forte, e eu realmente não consegui. Me exaltei com as próprias médicas e falei: “É Alyssia, e ela tá falando que é, e é fácil de escrever. Escreve aí e pronto. Isso não é um problema nosso”. Foi um dos poucos momentos em que tive uma indisposição forte com o corpo clínico durante o processo, porque as indisposições e problemáticas vieram depois da apresentação mesmo, da realização da performance lá no hospital. Então começa a vir um elemento importante para mim que era o nome. Comecei aí a perceber que em vários momentos, em vários partos, com equipes às vezes diferentes, acontecia essa mesma questão de o corpo clínico, principalmente as e os obstetras e anestesistas fazerem força para mudar, convencer as mães a mudarem os nomes que já tinham escolhido pros filhos, com comentários mais absurdos, mais preconceituosos, mais racistas, mais violentos possíveis. Então eu comecei, a partir desse momento, a colecionar todos os nomes de mães e de bebês que nasciam enquanto eu tava no plantão. Todos com os quais eu tinha uma vivência, né? Todos que eu acompanhava o trabalho de

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parto, acompanhava o parto ou ficava na sala de pré parto conversando e entendendo as histórias, entendendo o porquê desses nomes. Fiz uma lista muito muito grande, de muitos nomes, e esses nomes todos eu escrevi, alguns de próprio punho, em tirinhas de papel vermelho, que durante a performance eram ventilados com a minha própria boca - um processo que aquelas duas pediatras fizeram no bebê que nasceu morto, que eu comentei há pouco. Foi uma reunião de momentos muito fortes, muito violentos, muito dolorosos, muito dramáticos, muito corporais, de limite entre essa vida e a morte nesse processo da residência. Eu fazia a ventilação, assim como as pediatras fizeram a ventilação na boquinha pelo tubo naquele feto que estava totalmente dentro de um saco plástico. Ao mesmo tempo essas luvas não deixam de fazer uma relação com as incubadoras dele e de todos os outros bebês que ficam lá durante meses e meses e meses, até porque a UTI neonatal lá era fortíssima na época em termos de equipe, equipamentos e etc. Então a luva reúne essas experiências, do saco plástico, do bebê que quase morreu e que depois teve que ir pra incubadora e essa película, essa luva que impede o toque. Ao mesmo tempo tem a ver com as extrapolações, exacerbações dos toques, das intervenções violentas desse corpo clínico, desse corpo de enfermagem. Os papéis vermelhos eu ia colocando dentro das luvas, ia fazendo o mesmo processo de ventilação que foi feito para ressuscitar o bebê e dando nó, e essas mãos ficavam ali naquele chão da rampa que eu tantas vezes subi com mulheres de maca pra cima e pra baixo, que tantas vezes subi correndo, pra cima e pra baixo, fazendo ou com que um parente que estava sendo impedido de entrar pudesse entrar ou levar uma mãe pra ver uma filha na emergência. Uma rampa que eu subi e desci várias e várias vezes. No momento inicial de idealização essa lista seria uma lista com mães e bebês, muitas vezes avós ou pais, que também sofreram violência e não puderam entrar5, foram impedidos de entrar e sofreram outros tipos de violência verbal, etc. Então era uma grande lista de nomes de pessoas violentadas pela cor da sua pele, pela condição de seu corpo grávido, pela sua fala, pelos seus gritos, pelas suas reclamações. Era inicialmente essa coleção. Até o momento em que,

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A Lei Federal 11108/2005 garante a entrada e permanência de um acompanhante de livre escolha da parturiente durante todo período de trabalho de parto, parto e pós parto. A única ressalva é a de que a pessoa escolhida seja maior de idade. Não há restrições quanto à sexo, identidade de gênero ou grau de parentesco. ed. 6 I julho 2019 213


numa outra situação de horas e horas de pré parto e depois de parto de uma adolescente de 14 anos, me vi numa situação tão forte, de tanta violência. Uma das obstetras, que estava sozinha atendendo o parto - tinha algumas enfermeiras na sala, mas era a única obstetra - fez o corte, né? Fez a episio, o corte do períneo. Mesmo assim ela não conseguia fazer o parto ir adiante e precisou da ajuda de alguém para fazer essa manobra de empurrar com o braço o bebê. Aí ela me solicitou e eu compactuei com aquele momento todo de violência. Foi uma coisa dramática pra mim, que mudou completamente o trabalho no sentido de que simbolicamente a coleção de nomes não podia ser mais só a coleção de nomes das mães, dos fetos e dos familiares, porque na verdade estávamos todos nós ali numa sucessão de violências. A quantidade de cobranças, de metas e de questões de quantidade de atendimentos a bater às quais aquela equipe também estava submetida fazia com que todo o ambiente fosse muito violento e potencializasse as possibilidades de pessoas cometerem violência. Então eu ali me vi, depois de ter sido vítima de violência obstétrica nas minhas duas gestações, e de vários tipos de violência, também sendo agente de violência obstétrica. RC: Fazendo uma leitura cronológica, suas três obras que tocam na temática da maternidade tecem uma linha bastante interessante. “Dar de si” é uma performance solitária, ensimesmada e trata da liberação do seu corpo e sexualidade da qual falamos antes. “Não toque” tem um conteúdo político, tangenciando a denúncia, especialmente se a emparelhamos com a recepção que a obra teve por parte da comunidade médica. Já em “Tomar para si”, reconheço um forte caráter de empoderamento, apropriação do próprio corpo. É quase um levante. Esta reflexão procede? Se sim, esta linha conceitual foi proposital e concomitante ao processo? Ou algo que podemos compreender como reflexo de sua própria vivência de maternidade? RB: Achei muito interessante você trazer essa questão cronológica, porque na verdade a realização das performances não é cronológica. Elas foram idealizadas em outra ordem. A Dar de si primeiro, sim, foi onde que veio a questão da maternidade explicitamente no trabalho, mas Não toque e Tomar para si estão cronologicamente invertidas em relação a sua concepção. A Tomar para si foi uma performance concebida antes da Não toque, mas por uma questão de curadoria não aconteceu primeiro. A Não toque foi escolhida pelo grupo de curadores da época. Cronologicamente falando seria Dar de si,

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Tomar para si e Não toque, porque também não penso muito uma cronologia assim. O que acontece é que na minha segunda gravidez a minha filha tinha uma condição congênita a qual tudo indicava ser muito grave e que ela não viveria por mais de um ano. Esse momento foi um momento muito difícil, acho que foi o momento mais difícil da minha vida, da minha e do meu marido, porque a gente queria cogitar, a gente queria conversar, a gente queria pensar no caso de fazer um aborto e a gente não tinha interlocução, a gente não tinha com quem falar. Poucos médicos tinham capacitação, vontade e abertura para tratar a questão do aborto como se deve tratar, descriminalizando a questão e tendo uma rede de apoio, conversa e esclarecimento sobre isso. A gente teve que andar por muitos médicos, conversar com muitas pessoas até conseguir tomar a decisão. Mesmo assim não foi uma decisão 100% segura e apoiada, não era uma coisa que a gente podia falar, conversar e receber uma rede de apoio de família ou de médicos próximos. Tivemos uma dificuldade muito grande em relação a isso e foi um período horroroso da minha vida. Se eu já, sempre que alguém me perguntasse, desde a adolescência, se eu era a favor da descriminalização do aborto, eu dizia que sim, por uma questão óbvia, conceitual, feminista e etc, foi nesse momento que eu entendi que a questão da descriminalização do aborto é muito mais complexa, porque não basta descriminalizar o aborto se a gente não tiver todo um projeto para isso, toda uma rede de profissionais de várias áreas envolvidos. Esse momento foi muito forte, na minha segunda gravidez, que aconteceu em 2011. Lá na experiência da residência eu tive a infelicidade de estar no momento, de vivenciar alguns casos, alguns dramas muito fortes de situação de aborto. Para citar um apenas: uma mulher mãe de dois filhos, arrimo de família, responsável pelo sustento da própria mãe, dos filhos e de uma tia. Obviamente esses casos que a gente sabe, Brasil. Tinha sido abandonada pelo pai da criança, que não colaborava, não comparecia, não ajudava com dinheiro nem nada. A mãe dela ficava com os netos pra ela poder trabalhar e sustentar a casa. Ela estava grávida e no desespero resolveu recorrer a uma clínica clandestina, que parece que é ali mais ou menos perto, na região do hospital, tanto que o hospital recebia muitas mulheres em estado de emergência porque tinham recorrido a injeção de ácido. Nesse caso ela chegou lá praticamente morta. A equipe foi milagrosa, conseguiu operar um milagre, mas pra conseguir salvar a vida dela tiveram que fazer um procedimento de restringir a circulação de sangue para o tronco, para garantir que ela não tivesse nenhum tipo de dano ed. 6

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cerebral. No final das contas, do processo todo que demorou vários meses, ela perdeu as pernas, teve que amputar as pernas. Então essa família, que na verdade dependia dela para poder sobreviver, se sustentar, fica com esse drama. É uma coisa que não dá nem pra falar sem lembrar e ter vontade de chorar. Teve essa esta experiência, junto com outra de uma mãe que estava na enfermaria lá durante muito tempo. Tem muitas mães que estão com situações muito graves. Elas são internadas e ficam passando os últimos meses da gravidez lá no próprio hospital. Essa mãe estava num estado muito grave e eu passava sempre pra bater papo com ela e conversar com as mulheres que estavam internadas durante muito tempo. Conversar sobre os filhos, sobre os nomes dos filhos, se era menino, se não era menino, enfim, as histórias; e conversar, acolher e dialogar com aquelas mulheres. O mais engraçado, e triste, era que a maior parte das pessoas virava pra mim e falava “nossa, você é tão humana” e tem toda essa questão do parto humanizado, né? “Você é a médica mais humana daqui”, eu que nem médica sou. Eu tentava explicar pra elas isso, mas elas viam a minha roupa e diziam que eu era médica sim. Então eu ficava muito nessas enfermarias. Num dia em que eu estava conversando com essa gestante, que tricotava muito pro bebê dela, (a maior parte ficava muito no celular, na televisão, mas ela ficava muito tricotando. Ela era nova e super habilidosa) a gente viu o caso de uma mulher que chegou porque tinha tido, nesse caso, um aborto espontâneo. Ela também ia perder as pernas por conta de uma trombose. Foi um drama nesse dia tão forte que eu associei completamente a questão do tricô a isso, sabe? Obviamente tem a ver com as agulhas, porque de modo estereotipado, histórico e até teatral e cinematográfico, é muito usado, como um ícone, tanto o cabide como as agulhas de tricô. De fato durante muito tempo foram usados por mulheres em desespero para tentar provocar o próprio aborto. Muitas mulheres artistas usam o cabide como um símbolo, como um signo, um ícone para esse tema, pra essa denúncia. A agulha de tricô também funciona muito como um ícone para isso. No meu caso essa performance já tinha sido idealizada, já tinha sido proposta para ser a primeira a ser realizada lá no hospital e por uma questão de curadoria foi invertido. Mas eu sabia que eu gostaria e que eu conseguiria, que eu ia batalhar para realizar essa performance lá, o que na época era muito difícil porque o tema era sobre o aborto e eles acharam que era menos complicado falar sobre a questão da violência obstétrica, dos cortes de períneo, das violências verbais e da questão da humanização do que

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falar de aborto. Então sabendo disso eu já encorporei no Não toque as agulhas de tricô, que eu já tinha comprado pra fazer a performance do Tomar para si. Prendi meu cabelo com as agulhas, como se na verdade ela acontecesse depois. Então é uma performance que na linha cronológica da narrativa e das histórias, da produção de pensamento, veio primeiro, foi invertido por uma questão de curadoria ali do momento. RC: Obrigada, Roberta. Suas reflexões me impactaram muito, logo no começo de minha jornada enquanto pesquisadora das relações arte/ maternidade/feminismos. Acredito serem reflexões cruciais a serem engendradas de forma honesta, direta e elaborada, como o seu trabalho. Um privilégio poder ter esta conversa e abrir espaço para o desenrolar de temas que margeiam o desconhecimento e o tabu. Sigamos! RB: Todo um prazer meu trocar essas ideias contigo, ouvir suas opiniões. Muito obrigada pelo seu interesse, uma alegria! Roberta Calábria é doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes da UERJ, com a pesquisa “O corpo da mulher (não) é uma casa: representações da maternidade na arte contemporânea ocidental”. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e Bacharel em História da Arte pela UERJ. É também doula, educadora perinatal, consultora em amamentação. Ativista pela humanização do nascimento e contra a violência obstétrica desde 2010. Mãe do Miguel e do Vicente.

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Artigo “QUEREM O SEU COLO DE MADONA”: “QUEREM O SEU COLO DE MADONA”: Considerações CONSIDERAÇÕESsobre SOBREaArepresentação REPRESENTAÇÃOdo DOcorpo CORPOmaterno MATERNO

Joyce Delfim1

Resumo: O presente artigo desenvolve uma breve investigação da representação do corpo materno na história da arte, a partir da análise da representação de Virgem Maria como corpo assexual e das representações da “mãe feliz”, na arte francesa do século XVIII, enredadas à discussão sobre a construção social da maternidade na sociedade patriarcal. Apresenta ainda, como narrativas contemporâneas alternativas à maternidade, que versam sobre a autonomia do corpo feminino, os trabalhos Maternity 1, Maternity 2 e Maternity 3 (1997), de Nilima Sheikh, e a performance Tomar para si (2016), de Roberta Barros. Neste estudo, a noção de “corpo” é usada como eixo de análise das representações sobre a mulher, apoiado no entendimento do corpo feminino como principal terreno de exploração e resistência das mulheres.

Palavras-chave: Arte e feminismo; Representação da maternidade; Corpo e arte; Arte contemporânea.

1 Joyce Delfim é bacharel em História da Arte pela UERJ, com período sanduíche na Universidad de Jaén, Espanha. Investiga problemáticas relacionadas à representação do corpo feminino na arte. Integra o corpo editorial da revista Concinnitas, e atua como curadora independente. E-mail para contato: joycedelfim@gmail.com. 218   |  revista da graduação eba/ufrj


“Deus é mãe / E todas as ciências femininas / A poesia, as rimas / Querem o seu colo de madona” (Elza Soares)

I. Aprende-se a maternar A origem do mundo (Verônica Anunciação) (2016) (Figura 01), de Cristina Salgado, constitui-se a partir da imagem no caderno de anotações, um desenho de observação que a artista fez durante um parto. Cristina conta que durante a residência artística foi convidada de modo súbito a assistir um parto, convite que aceitou animada de início. Dentro da sala de parto, a artista se sentiu completamente deslocada, inconveniente, sentimento que expressa pela dureza do gancho sargento e pelos refletores, que Cristina posteriormente reconsidera como a luz do anjo da Anunciação. O sargento é um gancho utilizado para fixar materiais, ele impede o movimento; esse termo também evoca o significado relacionado ao posto militar que uma pessoa pode ocupar nas forças armadas. As duas definições levantadas aludem à ideia de violência que, combinada à temática do nascimento, possibilita discussões sobre a construção social da maternidade na sociedade patriarcal. O conjunto de imagens de Virgem Maria e as representações dominantes do corpo materno, produzidas ao longo da história da arte, manifestam um uso do corpo e um gestual que parecem articular, como que por essência, a condição da mulher e sua tarefa no trabalho reprodutivo2. Esse entendimento 2 Danièle Kergoat aponta o entendimento sobre o trabalho reprodutivo como o começo do movimento feminista da década de 60/70. Nesse momento, houve uma “tomada de consciência de uma opressão específica: tornou-se coletivamente ‘evidente’ que uma enorme massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mued. 6 I julho 2019 219


difunde-se nas expectativas sociais sobre as mulheres, através da ideologia patriarcal de que mulheres nascem já com o fim de realizar o trabalho reprodutivo; como se as instruções, o roteiro, a coreografia da manipulação de uma vassoura ou dos gestos maternos de ninar e cuidar estivessem codificados na mulher, em sua biologia ou essência. No entanto, sobre isso, diz Simone de Beauvoir:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. (BEAUVOIR, 1967, p. 9)

Em catálogo da exposição Nos limites do corpo, os curadores Tania Rivera e Luiz Sérgio de Oliveira (2016, p. 5) afirmam, sobre a posição social do corpo da mulher, que “[n]a gravidez e no parto acentua-se sua condição de dispositivo social: dentro e em torno dele giram mecanismos culturais diversos que vêm acolhê-lo, mas também domesticá-lo, assisti-lo e lhe atribuir limites, papéis e representações”. Em movimento de contestação a essa domesticação, artistas mulheres buscam construir uma narrativa alternativa para a maternidade, atravessada por teorias feministas e sociais. Dentro desse movimento, encontram-se os trabalhos criados a partir da residência artística no Hospital da Mulher Heloneida Studart, que resultou na exposição Nos limites do corpo, e as obras Maternity 1 (Figura 02), Maternity 2 (Figura 03) e Maternity 3 (Figura 04) (1997), da artista indiana Nilima Sheikh3. lheres; que esse trabalho era invisível; que era feito não para si, mas para os outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal” (KERGOAT, 2009, p. 68). 3 Outras produções que podem ser inseridas nesse movimento de contestação são o livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira e a performance Dar de si, ambos da artista e pesquisadora Roberta Barros.

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II. Querem o seu colo de madona O final do século XIX e o início do século XX são marcados pela primeira onda feminista, momento histórico de avanços na luta feminista através da conquista do sufrágio feminino, na Europa e nos Estados Unidos. Nesse contexto, em 1928, Oswald de Andrade escreve o “Manifesto Antropófago” e volta-se ao horizonte utópico do matriarcado de Pindorama – a realidade “sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias” (ANDRADE, 1928 apud BARROS, 2016, p. 55). A negação do sistema burguês patriarcal através da ode ao matriarcado, no entanto, não desponta de um pensamento feminista. Roberta Barros (2016, p. 55) demarca que a “mãe que interessa ao antropófago é a terra-mãe que teria acolhido amorosamente os viventes, os imigrados e os traficados”, em um processo de engessamento das pulsões femininas no desejo de dar à luz e de cuidar. Essa imagem buscada pelos antropofagistas pouco foge da já constituída Madona (representações da Virgem Maria), por repetir a percepção da pulsão materna como natural, da essência do sexo feminino, e reafirmar a mulhermãe dócil, afetuosa, que acolhe e cuida. Enquanto figura matriarcal ou Maria, esse corpo é assexual, apesar de reprodutor e genitor. A sexualidade feminina, na história da arte, foi permitida às representações de Vênus e da cortesã, em oposição às Marias – a mãe virginal. Ao longo da história da arte ocidental, é possível identificar três principais padrões de representação da mulher: a Virgem Maria, na tradição religiosa católica; as Vênus, na tradição Greco-romana; e a cortesã/prostituta, no modernismo4. Nos estudos do estatuto da imagem, Thierry De Duve e MarieJosé Mondzain discutem a Virgem Maria como aquela quem gesta a imagem. Jesus é a imagem de Deus, e Deus fecunda Maria pelo verbo, pela palavra. No entanto, Maria, ela própria imagem sem voz, desaparece na função de produtora da imagem, torna-se um ventre, um mero corpo.

4 Ver POLLOCK, Griselda. Tradução Azucena Galettini. Visión y diferencia: feminismo, feminidad e historias del arte. 1a ed. Buenos Aires: Fiordo, 2013. ed. 6

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Na iconografia cristã, o momento da concepção de Jesus é constantemente representado como um feixe de luz, como se percebe em A Anunciação (1425-26) (Figura 05) de Fra Angelico, uma das tábuas sobre o episódio da Anunciação de autoria do pintor. A pintura representa Maria recebendo o Espírito Santo – apresentado como pomba – por meio de um raio de luz, que emana das mãos de Deus. Maria, assim como o mensageiro São Gabriel, possui as mãos cruzadas no peito, em gesto de submissão ao destino divino. Na lateral esquerda da cena, estão representados Adão e Eva sendo expulsos do paraíso. A relação dos dois episódios, o ciclo de perda e salvação, coloca em confronto as duas mulheres: Eva, a pecadora, e Maria, a escolhida que não possui a mancha do pecado original. Os outros cinco painéis do retábulo tratam de outros momentos da vida de Maria. A mãe virginal é assexual, portanto, por ser um corpo que surge da ideia de corpo maternal cujos únicos desejos são gestar, parir e cuidar – longe de qualquer prazer sexual que possa ser associado a essas ações. Ademais, por ser um corpo virgem, imaculado, que não teve relações carnais, posto que a fecundação de Maria teria acontecido por meio do Espírito Santo5. Esse modelo de representação do corpo materno, na tradição cristã, tem sua origem no mito do retrato autêntico de Maria e do menino Jesus pintado por São Lucas6, retrato esse descrito como uma imagem que, para Hans Belting, “recordava imagens de culto das deusas mães” (2012, p. 82, tradução nossa). Essa correspondência entre a imagem da Virgem Maria e as imagens das deusas mães também fundamenta a crítica à ode ao matriarcado, de Oswald de Andrade7. 5 Aqui reitera-se o padrão dualista da carne em oposição ao espírito. 6 “A lenda de São Lucas como pintor da virgem data do século VI, provavelmente porque esse é o apóstolo que narra mais detalhes sobre Maria e o nascimento do menino, o que sugere uma comunicação muito direta, pois as lembranças mais entranhadas da Virgem são por ela evocadas para que Lucas as fixasse por escrito. Se a iconografia do apóstolo como pintor materializa essa proximidade é porque o artista é concebido como a criatura privilegiada que possui acesso especial aos desígnios divinos, e partilha com Ele os segredos da Criação. O artista partilha do mistério de um ventre fecundado por um Nome, cujo fruto a Virgem segura ao colo no quadro de Mabuse, a suprema criação de um Verbo: o próprio homem” (CESAR, 2002, p. 18). 7 Torna-se interessante pontuar, neste momento, que Donna Wilshire propõe uma reimaginação para a imagem da deusa mãe, como a imagem metafórica do 222   |  revista da graduação eba/ufrj


Com o Iluminismo, uma nova representação da mulher-mãe manifestouse na sociedade ocidental. A nova imagem, influenciada pelo princípio do secularismo, diferenciava-se da imagem devocional – de Maria – ao apresentar elementos que remetiam à alegria e ao prazer de ser mãe, valores também difundidos pela produção literária: Os prazeres da maternidade foram convertidos em um tema literário muito em moda, todos os seus aspectos foram eloquentemente ditos em prosa e poesia, desde a recompensa sensual da amamentação até o prazer inigualável de receber os afetos e beijos das crianças. (DUNCAN, 2001, p. 214, tradução nossa) No decorrer do século XVIII, uma mudança ideológica no conceito de família foi construída por efeito da cultura moderna da burguesia, que começava a se formar. Dentro do modo de produção burguês, havia a necessidade de elaborar a “casa” e a “família” como refúgios da vida pública. O membro unificador desse novo conceito de família foi a esposa-mãe, e os valores de cuidado com a casa, os filhos e o marido foram elaborados como inerentes à mulher.

Portanto, a difusão do novo padrão de representação da mulher-mãe, na produção literária e artística, estava vinculada à necessidade de construir o ideal da maternidade como o único papel emocionalmente gratificante para a mulher, sua verdadeira fonte de prazer. Para isso, artistas e escritores, daquele momento, recorreram à combinação da figura da mãe com a imagem de Vênus, como se nota na ode às mães, de André Sabatier (1961 apud DUNCAN, 2001, p. 200, tradução nossa), publicada em 1766 – “uma mãe carinhosa e zelosa que balança seu bebê – prova de seu fogo... É Vênus quem cativa e acaricia Cupido” – e, na gravura As delícias da maternidade (Figura 06), de Moreau, O Jovem, gravado por Helman, na qual uma mulher alegre brinca com seu filho, acompanhada de sua família, aos pés de uma estátua de Vênus com o Cupido. A aproximação entre maternidade e prazer foi uma associação entre “Marias” e “Vênus”. Outras figuras foram associadas ao novo conhecimento não-dualista. Segundo Wilshire (1997), a alegoria da deusa mãe possui características tidas tanto como masculinas, quanto como femininas. O entendimento da autora, apesar de retornar à ideia do corpo feminino ligado ao desejo de gestação, subverte-a ao pensar um corpo materno que não é “rebaixado” às condições do “feminino”. ed. 6 I julho 2019 223


modelo de mãe, para marcar um caráter genuíno aos desejos de cuidado. “As mulheres francesas foram persuadidas a imitar as felizes mães provincianas, mães selvagens primitivas ou mães da Antiguidade, todas as que criavam ou criaram seus próprios filhos” (DUNCAN, 2001, p. 214, tradução nossa).

III. Dar (a) e tomar a luz: processos de autonomia No início deste texto, dois elementos que compõem o trabalho A origem do mundo (Verônica Anunciação) foram mencionados. A aspereza do sargento foi referida como índice da construção da maternidade na sociedade patriarcal, agora, a luz dos refletores, a partir de sua artificialidade, servirá de metáfora para analisar as representações do momento do parto, por Nilima Sheikh, em Maternity 1, Maternity 2 e Maternity 3 e, a representação do processo de gestação e interrupção da gravidez, por Roberta Barros, em Tomar para si (Figura 07) (2016).

Enquanto a luz dos refletores remete ao procedimento cirúrgico da cesariana, Maternity 1, Maternity 2 e Maternity 3 mostram o parto vaginal. Nas três têmperas sobre papel de Nilima Sheikh, o corpo materno é apresentado no momento do nascimento – representação pouco usual na história da arte. As três mulheres de Sheikh estão em ação; elas estão parindo, ora sozinhas, tirando o recém-nascido com as mãos, ora acompanhadas de mais duas mulheres, que apoiam e oferecem cumplicidade. O bebê está saindo da vagina, é possível ver sua cabeça; em uma das têmperas, um fluido azul também parece sair da vagina – líquido amniótico, talvez. Vulva, bolsa amniótica estourada, a mulher que faz o próprio parto – representações carnais da maternidade, que versam sobre autonomia do corpo. Em convivência com mulheres pacientes do Hospital da Mulher Heloneida Studart8, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, Roberta Barros realizou a performance Tomar para si. No registro em vídeo da performance, Roberta aparece em uma sala de espera do hospital, ela veste uma blusa de tricô que possui uma bolsa/barriga costurada. A bolsa é murcha, está vazia 8

Hospital especializado no atendimento às gestantes e bebês de médio e alto risco.

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mas, ao longo da performance, vai se preenchendo com um cordão que é, primeiro, tricotado por Roberta e, adiante, enfiado para dentro da barriga. Roberta tece por bastante tempo, foram vinte horas e quarenta minutos, distribuídas em quatro dias, de performance. Durante essa espera, a fita de tricô – fita de DNA, cordão umbilical – às vezes é arrastada pelo chão do hospital, antes de entrar para a barriga. Passado um tempo de trabalho – gestar também é um trabalho – a barriga fica cheia. Roberta está, agora, em pé, entre dois blocos de cadeiras, em uma sala de espera. Ela corta a linha que usava para tecer o cordão com os dentes e enfia as duas agulhas de tricô na barriga. Depois das agulhas dentro, ela começa a desfiar todo o cordão para fora da barriga. Assim como Penélope, Roberta desmancha todo o trabalho feito, porém ela não mais espera. O fio se amontoa no chão, junto das agulhas que saíram da barriga em algum momento. Depois de toda fita desfiada, Roberta recolhe as duas agulhas do chão e as usa como prendedor para um coque que faz em seu cabelo. No Brasil, os debates feministas contemporâneos acerca dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher9 se articulam, sobretudo, em torno dos temas da violência obstétrica e da legalização do aborto. Um ponto importante para a análise do direito da mulher sobre seu próprio corpo é considerar que nas disputas relativas à legalização do aborto – ou à manutenção do aborto legal, como é o caso dos Estados Unidos – existe um argumento conservador que coloca os fetos e os pais em posição de maior direito sobre o corpo da mulher do que ela mesma. Nesses argumentos, as mulheres são vistas como meros corpos, incubadoras, enquanto o homem/pai é considerado um sujeito corporificado e o feto, um “super sujeito” – por ser algo que ainda nem se constituiu enquanto corpo (BORDO, 2003). Roberta Barros entende Tomar para si como uma ode pelo direito pleno 9 “[...] em defesa da autodeterminação reprodutiva das mulheres; pela desconstrução da maternidade como um dever ou como destino obrigatório, pelo poder de decidir ter ou não ter filhos, quando e com quem tê-los, pelo direito ao aborto legal e seguro, contra a homofobia/lesbofobia, por liberdade e pelo direito ao prazer sexual, contra a ditadura heteronormativa, os movimentos de mulheres forjaram o que, no final dos anos 80, se denominou direitos sexuais e direitos reprodutivos” (CAMPOS; OLIVEIRA, 2009, p. 13) ed. 6 I julho 2019 225


de escolha da mulher sobre sua reprodução, desde a concepção até o parto, ou o aborto planejado. O título se torna, então, um chamado de tomar seu próprio corpo para si. A artista também discute, na performance, a espera como lugar do feminino na sociedade e subverte-o ao apresentar uma espera que não é sofrida, dolorosa ou dramática, mas uma espera consciente, como escolha. Diferente da mulher que espera em Waiting (1972)10, de Faith Wilding, monólogo apresentado dentro do programa de performance da Womanhouse11, em Los Angeles. A mulher de Waiting narra, em um ritmo monótono, repetitivo – que lembra uma prece – sua existência, do nascimento até à morte, como um processo contínuo de espera por uma vida, enquanto ela trabalha na manutenção de outras vidas (e.g. de seu marido, de seu filho) – “[...] esperando por ele voltar para casa, para preencher meu tempo, esperando meu bebê vir, esperando minha barriga crescer, esperando meus seios encherem com leite, esperando pelas primeiras contrações, esperando as contrações acabarem [...]”.

Fig. 01: Cristina Salgado, A origem do mundo (Verônica Anunciação), 2016, refletores, sargento e caderno de anotações, dimensões variáveis. 10 Um registro da performance está disponível em <https://vimeo. com/36646228>. 11 Womanhouse foi um espaço de arte criado pelas alunas e professoras do Programa de Arte Feminista do California Institute of the Arts (CalArts), fundado por Judy Chicago e Miriam Schapiro, em 1971. 226   |  revista da graduação eba/ufrj


Fig. 02: Nilima Sheikh, Maternity 1, 1997, tĂŞmpera mixta sobre papel vasli, 18 x 15 cm. ed. 6

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Fig. 03: Nilima Sheikh, Maternity 2, 1997, têmpera mixta sobre papel vasli, 18 x 15 cm.

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Fig. 04: Nilima Sheikh, Maternity 3, 1997, tĂŞmpera mixta sobre papel vasli, 18 x 15 cm.

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Fig. 05: Fra Angelico, A Anunciação, 1425-1426, têmpera sobre tábua, 190,3 x 191,5 cm.

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Fig. 06: Isidore-Stanislas Helman, As DelĂ­cias da Maternidade, 1777, ĂĄgua-forte, 59 x 43.2 cm.

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Fig. 07: Roberta Barros, Tomar para si, 2016, performance realizada no Hospital da Mulher Heloneida Studart, duração da performance 20h40min.

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BORDO, S. Unbearable Weight: Feminism, Western Culture and the Body. California: University of California Press, 2003.

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CESAR, M. O ateliê do artista: tramas do intervalo. Dissertação (Mestrado em História e Crítica de Arte) – Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. CAMPOS, C; OLIVEIRA, G. (Orgs.) Saúde Reprodutiva das Mulheres: direitos, desafios e políticas públicas. Brasília: CFEMEA, IWHC, Fundação H.Boll, Fundação Ford, 2009. DUVE, T. Reinterpretar a modernidade. [2º semestre, 1998]. Rio de Janeiro: Revista do Mestrado em História da Arte EBA. Entrevista concedida a Glória Ferreira e Muriel Caron. DUNCAN, C. Madres felices y otras nuevas ideas en el arte francés del siglo XVIII. In CORDERO, K; SÁENZ, I. (Comps.) Crítica feminista en la teoría e historia del arte. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2001.

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HELMAN, I. As Delícias da Maternidade. 1777. Água-forte. 59 x 43.2 cm. Museu Carnavalet, Paris. Disponível em: <http://parismuseescollections. paris.fr/fr/musee-carnavalet/oeuvres/les-delices-de-la-maternite#infosprincipales>. Acesso em: 04 abr. 2019. SALGADO, C. A origem do mundo (Verônica Anunciação). 2016. Refletores, sargento e caderno de anotações. Dimensões variáveis. Acervo da artista.

SHEIK, N. Maternity 1. 1997. Têmpera mista sobre papel vasli. 18 x 15 cm. Disponível em: <http://www.chemouldprescottroad.com/artists-works/ nilima-home.html>. Acesso em: 04 abr. 2019. ______. Maternity 2. 1997. Têmpera mista sobre papel vasli. 18 x 15 cm. Disponível em: <http://www.gallerychemould.com/artists/nilima-home/ artist_work/nilma-sheikh-aw1926/>. Acesso em: 04 abr. 2019. ______. Maternity 3. 1997. Têmpera mista sobre papel vasli. 18 x 15 cm. Disponível em: <http://www.gallerychemould.com/artists/nilima-home/ artist_work/nilma-sheikh-aw1925/>. Acesso em: 04 abr. 2019.

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Artista de Capa | Felipe Barros

Dentro das minhas particularidades, atravessome pela falta de memória, das vezes que a mesma me faltou e me condicionou à lugares de escuridão, de não pertencimento, ruína e abismo. Depressão, ansiedade, o abuso do álcool e os remédios ansiolíticos foram o meu tapete voador para a falta de memória que enfrentei em alguns períodos, então, minhas cartografias passaram a transcrever esse lugar que chamo de ruína e abismo, o fogo é o elemento que uso de forma estética para corroer essas cartografias que se desenvolve no papel, o fogo faz os buracos, cortes, abre campos que minha memória insistiu em faltar, é um paradoxo entre os traços marcados e controlados e o descontrole provocados pelo ato de queimar. Este trabalho busca um diálogo com a cartografia sensível, a criação de uma cartografia do que não é de fato visualmente existente, mas que nos adentra por memórias e lembranças. O sentimento que se instala no corpo, suas marcas, suas causas, seus lugares, sua geografia de múltiplos sentimentos que brotam de forma subjetiva dentro de nós. No desenho busco dar expressão e forma para essas passagens que meu corpo registra, chamo de cartografias sensíveis esse estado que me coloco voltado para o desenho, onde cada desenho se faz de forma única na repetição de linhas, no encontro dessas linhas e na forma como essa “massa” se cria no papel, é orgânico, é compulsivo. Uso o desenho como uma linguagem de criação de mapas possíveis, como menciona Suely Rolnik sobre o cartógrafo: “Para ele não há nada em cima - céus da transcendência -, nem em baixo – brumas da essência. O que há em cima, em baixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer uma travessia: pontes de linguagens. Ve-se que linguagem, para o cartógrafo, não é um veículo de mensagem-e-salvação. Ela é, em si mesma, criação de mundos. Tapete voador... Veículo que promove a transcrição para novos mundos; novas formas de história.” Acredito nesse mundo de subjetividades que cada um de nós se torna, cada ser é um relicário dos seus afetos e desejos, trazendo em si um universo de marcas e possibilidades que podem transbordar para o papel, utilizando-o como um espaço revelador. ed. 6

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Artista de Capa | Maressa Andrioli Caderno Maternidades

Maressa Andrioli é uma artista fotógrafa que mostra o corpo feminino como espaço de liberdade, auto expressão e poesia. Focada em retratos de mulheres, a artista trabalha com fotografias e desenhos que trazem à tona temas relevantes quanto aos diferentes posicionamentos da mulher na sociedade. Suas imagens, traços e textos questionam as muitas censuras impostas ao feminino que, ao mesmo tempo que objetificam e sexualizam as mulheres, promovem sua repressão sexual. O que é uma mulher bonita? Que corpos merecem ser olhados? E de que forma? Como um ponto de resistência ao male gaze, seu trabalho busca enaltecer não apenas o corpo feminino, mas seus desejos, amores, prazeres, suas conquistas e os espaços que esse corpo ocupa. É uma arte que desafia os padrões de beleza e reivindica o poder do olhar de mulheres para mulheres, um olhar potente, sensível e sempre belo. Texto Joana Oliveira

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ed. 6

I

julho 2019

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