Revista Subversa Volume 6, nº2 - fevereiro 2017

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SUBVERSA ISSN 239-5817 Vol. 6 | n.º 02 FEVEREIRO de 2017

Ilustração ANA LADEIRAS GRASIELA FRAGOSO | PEDRO CHINELO | EBER S. CHAVES GIOVANA MACHADO | GABRIEL DE ATAIDE LIMA AURILENE SAMPAIO | FRANCIELI BORGES EMANOEL FERREIRA | TAYLANE CRUZ | LETÍCIA MADERE


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 6 | n.º 02

© originalmente publicado em 01 de março de 2017 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações ANA LADEIRAS

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME seis | NÚMERO 02

AURILENE SAMPAIO | FLOR QUE SE FEZ ROSA | 06 EBER S. CHAVES | DILÚVIO | 08 EMANOEL FERREIRA| COMPLÔ DAS ÉPOCAS TODAS CONTRA NÓS | 13 FRANCIELI BORGES | GRAFIAS | 15 GABRIEL DE ATAIDE LIMA | SUPER-MERCADO | 18 GIOVANA MACHADO | SOBRE A CONFIANÇA | 21 GRASIELA FRAGOSO| AZUL SOLIDÃO | 25 LETÍCIA MADERE| FULIGEM| 27 PEDRO CHINELO | DETALHES | 32 TAYLANE CRUZ | O BEBÊ DE ANTÔNIA | 35 [CONTEÚDO EXTRA] Raduan Nassar: Aquilo que persiste ainda está desistindo| 40 [CONTEÚDO EXTRA] “A literatura deve sempre incutir alguma desconfiança” | Entrevista com Rui Zink| 45

SOBRE Ana Ladeiras| 52

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EDITORIAL “Olha: também eu sou pastor de rebanhos e iguais às tuas as minhas ovelhas também são palavras” Ana Hatherly, 2003.

Bem-vindos novamente. Após um período de intensa reorganização e planejamento, abrimos hoje o volume 6 da Subversa e, com ele, uma nova etapa da revista. Retomamos também a recepção de textos, que se orientará a partir de algumas alterações nas diretrizes de envio. A linha editorial permanece abrindo espaço para autores se manifestarem e experimentarem a publicação em uma revista literária independente. Porém, com nova estrutura, pretendemos introduzir o diálogo com escritores e temas que têm ganhado relevo na produção contemporânea e no que diz respeito à travessia literária luso-brasileira. A ideia agora é aperfeiçoar as publicações, tanto as digitais como as impressas e expandir o projeto como um todo. Para isso, a revista conta com mais recursos de divulgação e de troca entre os vários elementos da rede literária. Estamos contando que o processo seja lento, já que, entre outras razões, estamos trabalhando em uma linha considerada, por vezes, na contracorrente de publicações. No segundo número, contamos com as telas da artista plástica portuguesa Ana Ladeiras, e uma entrevista exclusiva com o escritor Rui Zink, realizada durante o Correntes d´Escritas deste ano. Além disso, Zink, junto com os escritores Valter Hugo Mãe, Ignácio de Loyola Brandão e Alexandre Lobão dão dicas de leituras que, para eles, consistem em “livros correntes” entre Brasil e Portugal.1 Esperamos que a nova experiência de leitura da Subversa seja agradável e interessante para todos. As editoras.

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As indicações de leitura só estão disponíveis para assinantes.

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“Vidas Secas de Graciliano Ramos. É um livro ainda pouco conhecido por cá e se os portugueses tivessem a oportunidade de o ler, faria uma luz sobre o que é a língua e a literatura”.

| UM LIVRO QUE

Valter Hugo Mãe

“Jangada de Pedra (José Saramago). Porque tem uma parte da península que se deslocou e essa parte deu no Brasil”. Ignácio de Loyola Brandão

É UMA CORRENTE

entre Portugal e Brasil |

“Há dois romances de Inês Pedrosa que liga o Brasil a Portugal, o último é de 2016 Desamparo. Há cada vez mais, por exemplo: Longe de Manaus de Francisco José Viegas que também viaja entre as duas partes do Atlântico. E a poeta Matilde Campilho que escreveu Jóquei, o próprio sotaque do livro é entre Brasil e Portugal. E o Luiz Ruffato com Estive em Lisboa e Lembrei de você”. Rui Zink

“O livro de que me lembrei é Portugal-Brasil: A aventura do Descobrimento. Os autores são o brasileiro Jean Angelles e o português Pedro Silva, juntamente com o ilustrador Gleydson Caetano, também do Brasil. O livro conta uma história na época do descobrimento com dois pontos de vista: o de um índio brasileiro e o de um português que chegava ao Brasil”. Alexandre Lobão

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FLOR QUE SE FEZ ROSA AURILENE SAMPAIO | Itapipoca, CE.

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A entrega perfeita, dois corpos ligados a um único desejo, desejo carnal; O dia propicio, dois corações batendo num mesmo ritmo, frenético e intenso; A pureza se foi, os prazeres sentidos, cargas elétricas pulsando nas veias, músculos rígidos, delírios singulares, êxtase ébrio. A culpa, realidade sóbria, perfusão sombria. E se passaram os dias... Em um corpo instalou-se a culpa, e ele não sangrou; Os dias passaram... No corpo ficou a marca, pois ele não sangrou; Mais dias passaram... Já não há tempo para arrependimento, ele insistiu em não sangrar; Outros e muitos outros dias se foram... Já não mais deseja sangrar, uma vida se fez, nele uma flor cresceu. Um corpo que carrega outro, sem ajuda do corpo que a maculou; E muitos anos se foram... O amor instalou-se, a vida floriu e em rosa se fez; A rosa adolesceu, a vida caliçada padeceu. Amores sentidos, amores sofridos em dias, anos e vidas; Décadas passadas... Dois corpos que se unem em um reboliço de ancas, para depois ser um; Apenas um que brota e flori!

AURILENE SAMPAIO é formada em Letras pela UFC- Universidade Federal do Ceará, professora da rede estadual de ensino – SEDUC-CE, especialista em docência do ensino superior- SENAC, mãe, ouvinte e amiga da violoncelista Ariadna Sampaio, esposa, mulher, amante, namorada e parceira do poeta Mandu Holanda, madrasta e fã do filósofo Gabriel A. Holanda. Apaixona por linguagens e artes, nas noites de insônia lê e escreve nos dias de sono, lê, escreve, dá aula, cuida da vida, mas prefere dormir. Autora do conto A pedra lascada e do poema O Ser tão do sertão, ambos publicados na Revista Phillos. | AURILENE_LENE@YAHOO.COM.BR

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DILÚVIO EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

O ar saturado sobre a minha cabeça. Um vento além-túmulo rasgando minha pele seca pela longa estiagem. Há um som desabando sobre esta cidade, é o trovão; e me pergunto por quanto tempo meus tímpanos poderão resistir a isso. Lá nas alturas, até aonde meus olhos alcançam, conjuntos visíveis de minúsculas gotículas de água e cristais de gelo se misturam. Uma

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nuvem está se formando com minúsculas gotículas de água, tão minúsculas que permanecem suspensas no ar. É uma nuvem fina e delicada que oferece ao céu a aparência acinzentada. O milagre da natureza: pequenas gotas atingindo peso suficiente e se precipitando sobre o solo. Um milhão de gotículas de nuvem numa gota de chuva caindo sobre o meu crânio danificado. Pancadas de chuva atingem o meu corpo e deixam hematomas. Atingem meu coração e meus ombros doloridos. Lágrimas de um céu acinzentado se perdem na chuva que desmorona. Até onde consigo me lembrar, a chuva continua caindo; e cuido que essa chuva é o reflexo do estado do meu corpo, e foi pensando assim que deixei que ela caísse sobre mim. A água invade minha pele e estou tremendo como uma folha. Se eu conseguisse encarar esse chuva; se eu conseguisse me reconciliar com ela; eu inclinaria minha cabeça e a daria boas-vindas: - Ó nanica gota de chuva que cai sobre a minha cabeça, chame-me de tolo, mas ficarei aqui parado contemplando a sua ruína. Você deve ter desabado do céu; você deve ter se machucado no meu couro cabeludo; você precisar de um lugar melhor para cair, mas te peço que caia devagar. Rebenta mais uma vez a trovoada como havia sido anunciada – e dessa vez rebentou como nunca antes. O tempo fechou. O negrume cobre os céus; e as águas já sobem pelas pernas frígidas da morte, lavando os degraus, os sonhos, as calçadas e os guarda-chuvas que se contorcem pelas ruas. Acorda a cólera divina, e ela cairá sobre a humanidade. Eu, defronte ao meu inconsciente, observo e vivo a cautela necessária para lidar e me aprofundar nesta tempestade. A força das águas associada às forças celestes. Duas forças, dois elementos, ar e água em revolução; ou seja, mudanças à vista, quer eu queira ou não; quer eu me feche no meu entorno focando minha

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salvação, ou não. E, antes de me desunir e deslocar vagarosamente sobre o pedestal arrasado pela longa erosão, abraço a chuva violenta causando cheia repentina. Até onde consigo me lembrar, a chuva continuava caindo sobre o meu crânio danificado, reduzindo-o a migalhas. Quarenta dias e quarenta noites e Deus ainda não enxugou as suas lágrimas – e eu mal posso ouvir seu gemido através da chuva. Os homens perecem nas águas e enlouqueço ao contemplar o polvo gigante decepando seus corpos. Tentáculos bizarros movidos a óleo, sem dó e sem dor fazendo o seu trabalho. E não tardará até o dia em que as profundezas comerão as tripas dos senhores da arrogância. Eu fugi das águas diluvianas e me refugiei num mar isolado e raso que ocupava o fundo de um abismo. Nesse proto-mar as águas eram ternas, e as ondas anãs e raquíticas aguardavam à chegada do vento violento que ali nunca ventou. E na minha mente os ventos sopraram. Enxurradas, inundações e torrentes assolaram meus pensamentos. O dilúvio psicossomático explodiu em fúria. As águas caíram pelo abismo, subjugando aquele antiquíssimo proto-mar, estourando os seus limites em direção norte e sul e leste e oeste. Flutuei num novo mar de emoções por dias e noites. No mar de onde tudo nasce e para onde tudo retorna. Querido Deus, o que fiz? Disse a mim mesmo, enquanto contemplava a grande inundação se elevar até o céu; formando ondas que foram comparadas aos dragões das profundezas, que surgiam como súbitas irrupções do inconsciente – outras águas, de ordem psíquica, de uma inércia enganadora, impelidas pelas pulsões instintivas a atacar o espírito, e o ego dirigido pela razão. Eu, em minha jangada, flutuava sobre o mundo submerso. Por quarenta dias e quarenta noites fui açoitado pelas ondas e escarnecido pelo vento e a chuva. Jogado de um lado para o outro nas marés da

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decadência. O relâmpago acenava para mim, e queimava os corpos que boiavam. Lembro-me quando o meu barco tropeçou no vento e Deus o ergueu novamente. Mas eu mal pude ouvir sua voz triste sussurrando através da chuva. Rosto no vento; e ainda estou cavalgando a tempestade, cortando as ondas e brincando com a sorte. Estou pronto para submergir nas águas, mas está tudo afundando, enquanto flutuo. Sintome tão vivo. Se não tenho amor próprio, não entendo pelo que estou lutando. A verdade é triste, sem mentiras: estou amaldiçoado. Eu poderia suplicar por misericórdia, mas me pergunto o que poderia acontecer caso minha suplica fosse ouvida. - Ó Tempestade, ainda que você acabe com o meu corpo e molhe-o até a última gota, nunca tocará meu espírito. E vós, ó Nuvens Sombrias, mostrem-me o que seguram em suas mãos. Sobrevivo... Estou fazendo minha parte, agora é a vez de me retribuírem. Quarenta dias e quarenta noites. Não há mais lágrimas para o céu derramar. As nuvens secaram. Deus cessou seu pranto, mas eu mal pude ouvir seu lamento através da chuva. Tenho que tomar uma atitude agora, porque o tempo passa e não vai me esperar. Com dificuldades cheguei aqui. Vá com vento agora essa minha frustração! E podem vir as últimas ondas que por cima delas passarei. Fiz uma promessa a mim mesmo, de que duraria até envelhecer. Aqui estou eu, vomitado pelas ondas, no lugar onde a mãe Terra ergueu a sua mais alta escultura – o encontro entre o Céu e a Terra, a morada dos deuses e objetivo da ascensão humana. Aqui, descanso – certamente Deus tem sobre mim desígnios de misericórdia e chacota. E estando a salvo das águas, dancei e ri dos afogados. Ah, a sorte! Quem é esta autoridade desconhecida, esta potência inflexível e eterna que se deixou dobrar com as palavras deste pobre homem? Talvez, debaixo dessa palavra se deva entender a Providência. Enfim, um lugar onde possa repousar meus pés! As águas

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que dão à luz todos os seres e os alimentam, reabsorvem aquilo que formaram. Há muito tempo eu sinto a necessidade de me retirar da humanidade; de suprimir toda informação inútil e todo o trabalho imposto; de iluminar minha alma, fortalecer minha vontade, sustentar o meu ânimo. Estar aqui a salvo é mais do que um deslocamento físico, é uma insatisfação que me leva à busca e à descoberta de novos horizontes. No dia em que o céu tornou a ser azul, e as águas retornaram para o abismo, avistei, deslizando pelas águas, o navio da salvação, a nova arca da aliança entre Deus e a humanidade. Gentilmente, acenei para eles. - Capitão, lá fora, no despenhadeiro, há um homem que acena para o navio e parece dizer varias coisas. É um pedido de socorro! Como foi possível para um pobre diabo livrar-se do decreto divino da morte pela água? - Não, marujo; ele não está pedindo socorro, apenas acenando, se despedindo de nós; e parece nos desejar uma boa viagem. O navio seguiu o seu caminho; e como o Cristo, andou sobre as águas. As ondas abriram espaço para sua passagem, para depois se agitarem atrás dele – tábua na água, para onde a corrente levar ela vai. Eu permaneci em meu isolamento. Não era mais capaz de me relacionar com os outros; sentia temor em relação a eles. Não existia amor suficiente em meu próprio coração para que pudesse amar novamente a humanidade. Há uma tempestade silenciosa dentro de mim e um dia ela se sossegará.

EBER S. CHAVES é daqueles que acham que há uma certa glória em não ser compreendido. Baiano, natural de Itaquara/BA; reside em Vitória da Conquista/BA. Estudioso de psicanálise, história, religião e filosofia (mas sabe que a imaginação é mais importante que o conhecimento); e fã de música, poesia, literatura fantástica, cervejas especiais e feijoada.

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COMPLÔ DAS ÉPOCAS TODAS CONTRA NÓS

EMANOEL FERREIRA | Belo Horizonte, MG.

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a gente pensa matar o tempo quando matamos apenas as horas. e as horas vão morrendo, tão somente distraindo-nos, enquanto o tempo é que nos mata, silencioso, mas sorrindo. assim envelhecemos.

a existência é um complô das épocas todas contra nós.

EMANOEL FERREIRA é mineiro de BH, nascido em dezembro de 1991. Autor de “Já tomei uns tragos de poesia e prosa pra amaciar a tristeza” (Multifoco Editora, 2016). Costuma publicar textos como este em seu perfil no Facebook: \EmanoelFerreira. Escreve também no tumblr: emanoelferreira.tumblr.com | AUTOR.EMANOELFERREIRA@GMAIL.COM

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GRAFIAS

FRANCIELI BORGES | Porto Alegre, RS.

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. vou dormir pensando que desperdício é . dormir . acordo precisamente às sete, mas poderia ser às oito e o mundo continua . ali em tempo pra que eu passe um café, olhe pela janela . lance um plano de voo, esboce a primeira linha do parágrafo, as anotações . seguintes e o interfone toca, é o moço que quer arrumar o telhado . tiro do Word e envio um e-mail pra imobiliária alegando que queria saber . quando chove, embora fujam de mim tais conhecimentos . e que, bom, sosseguem com essa história . o livro já está aberto, penso que trabalhar lendo o que leio faz a vida parecer um abraço . e o intervalo entre questões práticas acorda a consciência . o que não é tão bom quanto trabalhar semi-adormecida, algo . como a continuação de um sonho e escrevo chateada, plagiando o JRTerron, . e o cérebro desligou, aí já sinto fome, penso em comida na panela de pressão . nessa estrutura da panela de pressão, em permanente ameaça . e agora já era mais duas horas, a janta termina . deito torcendo pra que haja um céu limpo enquanto me convenço

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. que é um desperdício dormir . o arquivo permaneceu aberto, eu deveria falar sobre o Perec . mas na frase final tinha café.escrever.chuva.campainha.chuva. . a dificuldade de escrever quando tudo cativa a atenção . tudo nos fala. . vou dormir pensando que desperdício é

FRANCIELI BORGES é curiosa com as letras e as manuseia por ofício e gosto. Aqui há citações quase diretas ao texto "Um mês", de Joca Reiners Terron, autor que lhe causa profunda impressão. | FRANCIELIDBORGES@GMAIL.COM

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SUPER-MERCADO

GABRIEL DE ATAIDE LIMA | Adamantina, SP.

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- para drummond diante de um mundo estranho ao poeta

Pessoas, pessoas e gentes, pessoas pessoas e compras e gente e movimento, um carrinho cheio de coisa, coisas e pessoas, pessoas comprando coisas, pessoas, pessoas e gentes, alguma gorjeta, o carrinho leva as coisas, pessoas, pessoas e coisas e gentes e sacolas e gente pagando para comprar detergente pessoas, pessoas e gentes, alguém cospe, menino, me dizem, pega, vai rápido, seja rápido embale rápido, seja um menino não um

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rabino porque as pessoas querem comprar detergente, pessoas, pessoas e gentes, pessoas e compras, pessoas exigentes: não amasse meu pai, não quebre o vinho (a caixa despencou sem minha permissão, que coisa triste). Não fique no caminho do carrinho. Pessoas, pessoas e gente. Pessoas comprando comprando coisas, pessoas correndo. Indo e voltando. Comprando e comprando. Pessoas indo e voltando.

GABRIEL DE ATAIDE LIMA (Adamantina, 1996) estuda e trabalha numa gráfica. É autor de diversos livros de poemas, como Quase Barroco-Novo, Fogo & Metal, Mithologÿa (poesia) e Às vezes: poesia. Seus poemas estão divulgados em seu blog, POEMAS E PENSAMENTOS MARGINAIS (https://gabrielkpoetamarginal.blogspot.com). Contribui com seus poemas em diversas revistas eletrônicas, como a Revista Subversa, a Revista Mallarmagens e a Revista Raimundo. É artísta plástico e teve sua apresentação de pinturas publicadas pela Revista Germina.

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SOBRE A CONFIANÇA GIOVANA MACHADO | Suzano, SP.

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Aos nove anos ela escrevia no caderno uma lista de suas melhores amigas. Aos doze ela achava que todas as pessoas que sorriam para ela eram boas. Aos dezessete jurava de pés juntos que jamais se deixaria enganar. Aos vinte e um perdeu um grande amigo para a morte. Aos vinte e três perdoava qualquer erro, aceitando qualquer desculpa, porque achava que amor e amizade era também saber perdoar. Aos vinte e nove chorava copiosamente maldizendo o universo. Aos trinta e três perdeu dois amigos para a vida. Aos trinta e cinco percebeu que amigo é quem divide momentos com você, em algum momento da sua vida. Aos quarenta tentava se convencer que estar só não é estar mal acompanhada, e afirmava que estar solteira não era opção, ao menos para ela. Aos quarenta e sete resolveu aumentar o número de amigos. Aos quarenta e oito percebeu que não, afinal ser seletivo é sinal de evolução. Mas, deixa eu te contar uma outra história que esta história me lembrou. Uma aranha vivia debaixo da prateleira do meu banheiro, eu sei porque toda vez que sentava para fazer xixi, enxergava suas longas e finas patas descansando numa teia sem graça. Não era dessas aranhas que fazem teias espetaculares, nem daquelas que matam seus parceiros após um ritual de dança e cópula. Era apenas uma aranha que vivia debaixo da prateleira de um banheiro, com uma teia funcional, em um espaço apropriado aos seus anseios de aranha. Com o tempo percebi que outra aranha chegou e alojou-se ali bem perto dela, uns três palmos de distância e me perguntei se aquilo era longe ou perto demais no achismo de uma aranha. Essa outra também era bem comum, mas claramente de outra espécie, tinha uma coloração mais esfumaçada e era mais corpulenta, de patas mais curtas e grossas. Uma era esbelta e dava longas pernadas elegantes, a outra era robusta e bruta, quando se deslocava pela teia, parecia que o fazia em pulos

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exatos. Na parte inferior da minha prateleira, havia um micromundo de personagens com oito olhos. Isso que conto para você é o relato de dias e dias a fio de observação de campo durante os meus xixis. E tive tempo suficiente para perceber o estilo de vida da aranha elegante e, mais tarde, da pequena bruta que chegou e lá se instalou. E posso afirmar que a aranha elegante não era boa com teias artísticas, mas tinha ali o que precisava. Já a aranha bruta tinha uma teia quase imperceptível, e ao chegar mais perto e focar bem a vista, pude ver que sua teia era mesmo um bom trabalho de alinhamentos e simetrias. Muito bem, pensei. Com o tempo, e em pouco tempo, cerca de uns dois dias, a aranha recém-chegada construiu um puxadinho à sua teia. E fiquei pensando se dois dias no achismo de uma aranha é muito tempo ou quase nada. E, claro que isso importa, porque se dois dias fosse pouco tempo para uma aranha, claramente a aranha elegante poderia se incomodar com a maneira rude e precipitada da aranha bruta e ali acabaria qualquer chance de coexistência e quem sabe de uma amizade duradoura. Uma amizade onde pudessem cumprimentar-se no começo do dia e dizer boa noite em suas línguas de aranhas, poderiam caçar juntas, de repente um trabalho em equipe, uma nova forma de convivência no mundo dos artrópodes, um romance impossível. A aranha não reagiu à aproximação, parecia não se importar e tocava a vida como mandavam seus instintos. No outro dia, vi que a aranha bruta não só tinha aumentado seus domínios, indo de encontro à outra, como já estava instalada no que antes era a teia da primeira aranha, agora era tudo uma coisa só, era uma só teia, uma só casa. Estrategicamente parada bem no meio da grande teia, parecia até ameaçadora de tão entumecida e petulante de orgulho de suas últimas conquistas. Já a aranha elegante estava onde sempre esteve, no canto da quina entre a prateleira e a parede, parada a observar com oito olhos e pensei sobre quais avisos seus instintos lhe enviavam

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nesse momento. Meu xixi acabou, a luz do banheiro se apagou, chega por hoje. Mais um xixi matinal e aquela luz bonita e fresca da manhã iluminava com ênfase minha prateleira, montando quase um palco ou um cenário de final de espetáculo, onde há luz no único personagem que sobreviveu na história. Analisando a cena do crime mais de perto, pude perceber que a aranha elegante jazia enrolada na teia de sua colega de oito olhos, já dura e sem seu suco vital, era um emaranhado de nada. Não sei se era covarde demais para enfrentar a invasão da outra ou se era otimista em pensar que ali teria uma companhia, quiçá uma amiga para dividir suas ânsias e ambições de aranha. O que eu sei é que foi convencida, engolida e sugada até a alma e hoje, toda desfeita, é pozinho do/no universo. Que barra.

GIOVANA MACHADO nasceu na cidade de Arujá, SP. Hoje, depois de morar em muitos lugares, está em Suzano, SP. Tem 37 anos, é professora da rede pública de São Paulo, graduanda em Pedagogia, pretende nunca mais parar de escrever, já que é assim que alimenta sua alma. Também fotografa por aí os detalhes que raramente se vê. | GIGIMACHADOS@GMAIL.COM

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AZUL SOLIDÃO GRASIELA FRAGOSO| Niterói, RJ.

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Tristeza deixa uma cor seca na alma. É uma mistura de cinzas da ingenuidade com azul solidão. Vi uma linda palheta de cores outro dia. Tinha vários tons de triste. Uns mais voltados para o azul, outros para o verde. Tudo de acordo com o gosto do que nos foi tirado. Hoje encontrei um novo tom. De longe parecia um oliva cheiroso. Só de longe. Ao manusear reconheci na têmpera o gosto seco. Aquela velha cor acinzentada. Toque acetinado. Bem composto. Azul solidão.

- A sinalética das cores

GRASIELA FRAGOSO é historiadora pelo Programa de Pós Graduação em História Social - PPGHIS - da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. Atualmente estuda Psicologia nas Faculdades Integradas Maria Thereza - FAMATH- Niterói. Dedica-se à Clínica Psicanalítica e à Poesia. Autora do blog Fina Têmpera |finatempera.wordpress.com.br | GRASIFRAGOSO@GMAIL.COM

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FULIGEM LETÍCIA MADERE

| Ouro Preto, MG.

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Ela contornava a Avenida Amazonas sentindo um batuque escavado no estômago. Não que aguentasse fome ou qualquer indelicadeza nos intestinos, era mesmo o tal do engulho que se hospedava na moça toda vez que ela saía por alguma rua da grande Beagá. E o pior é que podia até apelar pra um desses remédios anti-enjoo que a coisa usava do seu direito de não fazer efeito e escondia a reviração atrás do Santo Subconsciente. ─ Isso aí é somatização Lúcia... Teus exames não deram coisa alguma – disse o gaúcho, barba cor de cevada, clínico geral do Posto de Saúde do bairro –, mas o SUS não cobre atendimento psicológico por essas bandas. Posso te dar um encaminhamento para um hospital do centro... ─ Se eu tiver que pagar muito caro, vou ter que ficar enjoada mesmo. . ─ É de graça, tu só vai ter que pegar ônibus. A moça tomou posse do encaminhamento com data e assinatura em escrita farpada do doutor, e sabia que só porque era doutor já estava perdoado por Deus e a Virgem Santa pela feiura da letra. Guardou o papel dobrado no bolso da calça, saiu do consultório e lá ia pela avenida suportando o vai e vem nos cafundós do ventre, torcendo pro embolo não subir até a garganta e obrigá-la a tirar a sacola da bolsa. Sacola da mercearia do bairro que tinha carregado a água oxigenada 20 volumes pra descolorir umas mechas de cabelo, sacola branca daquelas que se acumulam nas esquinas empachadas com restos de não sei o que. Apertou o passo quando olhou a hora postiça na tela do smartphone recém-comprado com o salário de auxiliar de escritório lá na Pampulha – não era lançamento, foi o que coube. Postiça não pra moça que sabia navegar em touch screen, e fazia questão de

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pronunciar “tâch” bem certinho tal qual tinha ensinado a patroa versada em inglês; mas postiça pra mãe dela, batizada e criada em Ouro Preto, mãe que preferiu continuar levando o ante e o post meridiem no pulso. O ônibus apontava lá no funil do semáforo e cá no ponto se formava um segundo funil pra todo mundo entrar no veículo graúdo amontoado de gente. Lúcia ficou por último, mas respeitava a ordem de chegada porque não gostava nem um pouquinho de confusão. Tinha dito pra si mesma, em pensamento, que fecharia os olhos durante o trajeto pra não atiçar o enjoo com aquele passa-passa de paisagem na janela. E se fosse uma paisagem mais ou menos bonita, haveria de fazer o mesmo, porque duvidava e muito do estômago nessas circunstâncias. “Se só andando já se revira um tanto, quem dirá no ônibus? Melhor fechar os olhos e fazer de conta que não tá acontecendo nada” ─ pensava a moça. Chegando ao escritório eis que a patroa se assustou com a cor de Lúcia. ─ Menina, porque tão pálida? Por acaso passa mal? ─ É o enjoo que te contei outro dia, um que não acaba de jeito nenhum. Cheguei do médico agora, ele disse que é uma tal somatização e me mandou prum psicólogo. Será que sou louca Dona Carmem? A Carmen que sabia inglês, mas não era versada nas ciências da mente, fingiu que era só pra não perder a autoridade do seu posto e disse que se tratava de coisa séria, que era melhor a moça descansar por uns dias, quem sabe até visitar a mãe lá na cidade natal, não era longe mesmo. Sucedeu-se então que a Lúcia entrou em mais um ônibus, dessa vez intermunicipal, rumo a Ouro Preto. Segurava o enjoo com uma

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bala extra forte de eucalipto que a tia lá de Contagem mandou dizer que ajudava, que se não curasse ao menos trazia alívio, e duas horas depois ela avistava um nevoeiro branquinho, branquinho, “branco de doer as vistas” diria a mãe, um nevoeiro montanhês quase pronto pra se desabar num chuvisco franzino e deixar as ladeiras de pedra-sabão ainda mais ensaboadas. A moça desceu na rodoviária úmida, foi a pé até a Praça Tiradentes e de lá pegou o ônibus para um distrito do alto. A mãe esperava na rede da varanda, tinha na mão uma distração de agulha, devia ser ponto cruz. ─ Cê pegou chuvisco filha? ─ Ô lugar que chuvisca mãe, toda vez é isso. ─ Deita aí na rede filha. Me conta como vão as coisas. ─ Ah mãe, primeiro eu já vou logo dizendo que eu não tô grávida, mas arrumei um danado de um enjoo que não sei de onde vem. E sabe o que é estranho? Desde que eu desci lá na Igreja Mercê de cima é como se alguém tivesse me arrancado o enjoo com a mão. ─ É da fuligem filha, esse enjoo vem da fuligem. ─ Mas o que tem a ver enjoo com fuligem, mãe? ─ Tudo... Tudo a ver minha filha. Seu pai morreu foi de fuligem, depois que pediu o divórcio e inventou de ir morar lá em São Paulo. ─ Mãe, cê não tá falando coisa com coisa. Papai morreu de infarto. ─ Infarto provocado por fuligem. Cê precisa é arranjar emprego aqui mesmo, não tem problema ganhar só uns trocados não. Melhor do que ficar lá se adoecendo com fuligem. Aqui você tem o ar das

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montanhas, viu que já passou? ─ Preciso terminar o estágio, mãe. Lúcia almoçou sem a reviravolta, os estribilhos no ventre se calaram. Depois ladeirou por Ouro Preto aproveitando a calmaria do estômago, dava até pra sentir o cheiro das bugigangas de cerâmica sem enjoar. E se alguém perguntasse que doença tinha quando regressasse à capital, guardava resposta melhor do que a escrita na receita do doutor: “eu tenho é a doença da fuligem, mas é coisa fácil de sarar em Ouro Preto. Lá tem curandeiras anciãs, dá pra ver elas de tudo quanto é canto da cidade, aparecem até nas selfies dos turistas. Volto esse ano ainda”.

LETÍCIA MADERE é escritora por força do acaso e por convicção. Estudou quatro períodos de filosofia na Universidade Católica de Brasília e na metade do curso resolveu aventurar-se no mundo do empreendedorismo textual. Possui artigos publicados na Revista Glocal, na qual já dissertou sobre artes e existencialismo. Atualmente é fundadora e editora-chefe da Priori Conteúdos, uma miniagência de criação de textos institucionais e jornalísticos.

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DETALHES PEDRO CHINELO | Porto Alegre, RS.

Às 12 horas, 37 minutos e 57 segundos do dia 15 de março de 1998, um pássaro macho da espécie Cardinalis cardinalis morria após ter caído 20 metros até o chão. Havia caído na calçada de uma rua lateral vazia após ter batido – e quebrado a asa esquerda – em uma espécie de parede invisível, era na verdade o vidro de uma janela que

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havia se deslocado 15 centímetros antes de cair e atingir uma massa de 25 quilos instantes antes de esmagar o animal acelerando-o ao chão. Teve uma vida feliz, o pássaro. Foi feliz, digo, feliz dentro dos limites de felicidade de um pássaro macho que teve 9 anos e meio de vida. Se não por sua vida, foi feliz por morrer na liberdade de seu voo. Mal sabia ele, e de fato, uma ave não pensa, logo não sabe, que momentos antes acontecia uma cobertura de imprensa no andar térreo de um prédio próximo. Uma grande janela dava para a rua onde ele havia caído. Era uma pintura antiga que havia sido redescoberta após 250 anos de procura. O escavador-chefe e o arqueólogo responsáveis pelo grande achado discursavam. Um sobre a importância de tal pintura enquanto o outro, ao mesmo tempo, cuspia descrições detalhadas do local onde ela foi achada intercalando-as com piadas sem graça sobre o assunto. Crack! Todos se viram. Poucos sabem, mas, com os materiais e inclinações corretas (e aquele milagre básico), o som pode se estender muito mais que o normal, fazendo um estardalhaço maior. É basicamente o mesmo efeito que ocorre quando estamos tentando caminhar em silêncio pela casa à noite. E foi o que aconteceu com Fred. Este foi o apelido que um garoto de 8 anos deu ao pássaro atualmente falecido, quando o ganhou de presente de sua tia Helena, que voltava de viagem e estava tão ressentida por ter faltado ao aniversário do garoto que o fuzilou de presentes. Tais presentes foram, em ordem de compra, uma bola colorida, um carrinho de controle remoto, uma bicicleta irada, alguns livros que provavelmente seu sobrinho não iria ler, um pássaro vermelho e uma raquete com uma bolinha menor. Este último curiosamente foi o presente mais caro e o mais importante para nossa história. Acontece que Igor, o sobrinho que-não-lê, fica a maior parte de sua estadia em casa vendo tevê. Mas não como qualquer pessoa, e mais como qualquer criança de oito anos: Não a vê parado; por esses tempos, em

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uma troca rápida de canal, Igor se deparou com um jogo de tênis. Animado com os gritos e agitos dos jogadores, Igor movia sua cara raquete para lá e para cá, os imitando. Num desses movimentos exagerados de criança, o garoto perdeu o equilíbrio e bateu com a raquete na gaiola de seu pássaro vermelho, que estava na janela, fazendo-a cair. Os segundos que prosseguiram a queda inicial da gaiola foram surpreendentes. Em um piscar de olhos, a gaiola estava presa em um galho, com a portinhola aberta – esta tinha um sistema de trava bem simples e foi parcialmente aberta pela raquete do menino, a queda fez o resto. – E Fred já voava em batidas de asas desengonçadas, ainda se acostumando a brisa e à mudança brusca de cenário. Pena foi ele ter batido, 5 minutos depois, em um vidro mal colocado que caiu e seu dono nem ter notado sua ausência. Bem, ao menos as 29 pessoas que estavam presentes na exposição notaram sua presença e pensaram, ao menos por um segundo, sobre a grande improbabilidade das coisas ordinárias e extraordinárias que formam nossa vida cotidiana e sua influência em nossa própria personalidade, ou não.

PEDRO CHINELO é porto-alegrense, cursa o segundo ano do ensino médio e é a primeira vez que publica um texto. Tem 16 anos e, motivado por sua namorada, espera que leiam e apreciem seu trabalho, ao mesmo tempo em que aprende e se inspira com esta experiência. | PEDROCHINELO@HOTMAIL.COM

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O BEBÊ DE ANTÔNIA TAYLANE CRUZ| Aracaju, SE.

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Fui colocada aqui e tenho de ficar. Quando cheguei foi difícil, houve choro e rebeldia, afinal ser jogada aqui sabendo perfeitamente que a minha lucidez estava intacta foi desesperador. Esperneei, mordi, urrei. O que esperavam? Amarraram-me. Quanto mais apertado era o nó daquelas correntes brancas, mais destemida era a minha força. A agulha invadiu minha carne. Senti a dor de uma ilha explorada por piratas cruéis, tendo minhas flores sendo esmagadas e meus frutos sendo saqueados sem nenhuma consideração. Enquanto os líquidos venenosos escoavam pelas minhas veias, eu adormecia. Aos poucos fui caindo num sono gélido e lá fiquei hibernada. Depois daquela chegada tumultuada entendi que, para sobreviver aqui, precisaria construir um mundo novo. A morte nunca foi opção. Então esperei. Esperei o efeito daqueles líquidos no meu corpo passar. Aos poucos fui retomando o comando das minhas mãos, recuperando a leveza para respirar, e me reconheci intacta. Eu sempre me soube e sempre conservei a capacidade de controlar quem eu sou e isso me ajudou – e ainda ajuda – muito, mesmo sob o efeito de agressivos barbitúricos. No dia seguinte, eu já tinha o semblante sereno. A bruma que tinha antes nos olhos deu lugar a uma nuvem clarinha e eu já podia ver meu reflexo cínico no espelho. Cinismo é a minha marca de nascença. Comecei a sorrir. A enfermeira ruiva e gorda que me acompanha praticamente o tempo todo – minha família pagou o necessário para eu tê-la ao lado – me seguia com os olhos, sempre dizendo algo desagradável em relação a todo tipo de assunto e agindo como se eu não estivesse ali. Foi com ela que comecei a construir meu mundo aqui. Sorria para ela, falava palavras embrulhadas em mel como se fosse uma criança bajulando seu adulto. Ela, quando estava de bom humor, me pegava pela mão, esfregava meus dedos e dizia como se cantasse: “Um dedinho, dois dedinhos, três dedinhos” e assim até completar os cinco dedinhos da minha mão pálida. A enfermeira gorda parecia

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desfrutar daquele toque, ficava eufórica e vermelha de um jeito sensual e eu fingia gostar também, embora tivesse a pele morta para carícias. Precisava ser esperta naquele começo; um gesto falso e meus dias aqui seriam prolongados. Com o passar do tempo fui me aperfeiçoando. Nas sessões de cardiazol eu via folhas de palmeiras, sentia ventos frescos batendo no meu rosto. A maca era uma cama de seda, os corredores eram tobogãs de ouro. As enfermeiras, vestidas com aquelas roupas brancas, eram palmeiras selvagens. Vi coisas tenebrosas aqui e continuo vendo. Mas acho que hoje já não me espanto mais. Outro dia vi uma mocinha entrar, pouca coisa mais jovem do que eu, a cara espantada, os gestos artísticos. Erguia as mãos e, ao invés de dedos, possuía pincéis que subiam e desciam numa rapidez impressionante. Eu fui criada com refinamento, sempre culta e, como sei algo de pintura, reconheci que se tratava de uma pintora talentosa. Gritava como eu gritei quando cheguei aqui, mas, ao contrário de mim, não adormeceu com as agulhas e gritou e chorou por horas até se mijar e cagar toda. Uma excrescência que já não possuo. Semana passada, antes do horário do almoço, tivemos a refeição suspensa porque um velho anárquico, que se dizia bruxo, urinou nas panelas da cozinha e depois enfiou a cabeça no fogão. Os tufos brancos que possuía viraram cinzas. Vi a confusão acontecer sentada numa cadeira, ao lado da janela que dava para o jardim, bebendo chá. Alguém se aproximou e se indignou com a minha fleuma diante daquele pandemônio. Sorvi um gole do meu chá de camomila – um luxo pelo qual minha família também paga -, cruzei as pernas e disse apenas: “Ele pôs a cabeça no fogo porque quis”. A pessoa – não lembro de quem se tratava, às vezes é difícil lembrar a fisionomia das pessoas por aqui, os nomes então... não dá para lembrar tudo, e vamos considerar que eu acabara de voltar do meu choque de

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insulina matinal – me olhou com ódio, dizendo que eu devia ser um tipo muito perigoso de sociopata. Permaneci como estava, angustiada, pois meu chá começava a esfriar. Aí a tal pessoa convocou enfermeiros e fui parar no corredor de eletrochoque. Anestesiada pelo efeito da camomila, como as águas tranquilas de um rio, fui. Sem marulhas, desemboquei naquele que é o pior setor daqui. E foi lá que conheci Antônia. Depois das sessões “emergenciais”, colocam-nos todas juntas num quarto sem o menor conforto. Quando entrei, Antônia já estava lá, a barriga enorme parecendo uma lua – era a lua da minha ilha, pensei quando a vi. Tinha os olhos desencontrados, a boca rija, os cabelos escuros como folhas secas. Começou a gritar. Mais uma desgraçada!, resmunguei, até ver as outras gritando e distinguir a dor dos gritos. Os enfermeiros, pelas gretas da porta, ameaçavam dar injeção na bunda de todo mundo. Um silêncio pousou no quarto e só Antônia não parava de gritar. Estava mergulhada num rio caudaloso. Pensei: ou assumo o controle ou me faço de louca. Ainda em espasmos me arrastei até ela. Encaixei minhas pernas em cima daquela barriga enorme e usei toda a força que não me fora sugada pelas correntes de eletrochoque. Eu acreditei – e ainda acredito – que há sempre uma reserva de energia em nós e foi esta reserva que usei. Antônia gritava e eu já não pensava em nada, apenas dizia: “Esta criança vai nascer”. As gotas de suor choviam da minha testa na barriga dela e, em meio a sangue e fezes, a criança nasceu. Peguei o bebê no colo, os pequeninos dedos, a boca roxa, a cabeça de cera deformada. Abriu os olhos e, no primeiro vagido, eu senti a sua fome. Ainda agarrado à corda ensebada, coloquei-o sobre o peito de Antônia que jorrou um mel branco sem fim. Instantes depois me chamaram à sala da psiquiatra que, muito plácida, disse: “Foi muito corajoso o que você fez”. Agradeci o elogio – haveria de ser um elogio.

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À noite, ouvi que Antônia não resistiu aos excessos do parto. A criança fora levada para uma instituição até encontrarem uma família. Nesta mesma noite fui informada de que aumentariam meu tempo aqui. Fiquei traumatizada, disseram. Pacientemente espero. Aqui sentada bebo meu chá. Não sou burra de contar para ninguém, mas, pela primeira vez senti o efeito dos barbitúricos – antes néctar nas bordas da xícara que eu lambia com inócuo prazer. Uma loucura real arde na minha cabeça agora: os olhinhos da criança de Antônia se abrindo vivos diante de mim foram dois caquinhos de espelho.

TAYLANE CRUZ é natural de Aracaju, Sergipe. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, escreve contos desde a adolescência. Lançou seu primeiro livro de contos em 2015, intitulado “Aula de Dança e Outros Contos”. Já publicou contos em sites e fanzines literários. | TAYLANECRUX@GMAIL.COM

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[CONTEÚDO EXTRA] RADUAN NASSAR: AQUILO QUE PERSISTE AINDA ESTÁ DESISTINDO

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | Porto Alegre, RS.

‫آيات‬ Aya, palavra árabe que significa “sinal”

Por que desistir? Raduan Nassar disse ter desistido da literatura. Por quê? Ele trouxe tanta riqueza e repentinamente desaparece. Essa dúvida continua a atormentar. Será que desistir é apenas um gesto de covardia? Não haverá também as desistências que incitam à interrogação, à felicidade? Não exige coragem também o pai que impõe um limite ao filho para não ver este se destruir? Não será este profundo egoísmo resistente parte do motivo da ira por não se atingir o ideal? Podemos escutar um eco distante desse grito tenebroso e lancinante: quem se atreve a sentir esse peso? Quem o permite? Mais uma vez fica nas costas do velhote o mau humor pela tecnologia e o discurso saudosista de um tempo que jamais voltará. Assim se disse do Profeta que seria aquele que traria a paz pela última vez: “Livrem-se dos excessos!” Essa inconformidade, unida à pobreza de espírito de nossos contemporâneos. Talvez mesmo no Líbano, lugar

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onde os pais de Nassar nasceram essa esperança se perca sem sentido. Já no Brasil isso tudo se mistura de um modo quase natural, cuja natureza e cultura se cumprem em uma união mística e profunda, desferindo uma martelada às expectativas, desafiando um modo de viver tribal de nossos antepassados. Impossível viver assim. Isso me leva a pensar a duas tribos brasileiras: a tribo que escreve e a tribo que lê. Quem são eles? Por qual educação passaram? Para quê se escreve em um país que pouco ou nada lê? Para que serve a educação no Brasil? Estas questões que provavelmente nos fazem lembrar que uma colônia só respira se estiver em ordem com os desígnios da metrópole: “Sim, agora podemos sentar e comer”. Um desígnio como muitos que o personagem André, de Lavoura Arcaica, escuta de seu pai todas as noites. Uma voz ditosa, sagrada, condicionante a ponto de validar ou não outras tentativas de elaboração desse espaço comunicativo chamado mesa familiar. Não há espaço para a comunicação do incomunicável. A poesia enquanto fala não se posiciona: o lado da esquerda na árvore de André, o lado que germina na incompreensão e no puro sentimento; já o ramo da direita obedece. Dois princípios místicos, mas tão presentes na política brasileira. Ao que tudo indica este tema das pequenas ordens estruturais habita o percurso de Nassar pela literatura. As regras das línguas e da cultura podem ser desafiadas, mas nunca vencidas pelo esmero de um indivíduo. Este mesmo fato se aplica à venda de galinhas tal como empreendido por Nassar, um ato tão corriqueiro e comum como a criação literária poderia nos fazer pensar. Talvez mesmo a sequência de eventos que torna as elites gratas pelo uso da força policial para assim protegerem seus direitos. Este ato desproporcional e rapidamente silenciado

pelos

meios

de

comunicação,

acaba

passando

desapercebido das pessoas. A malha interna de um texto também é

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vizinha dos acontecimentos indeléveis na vida de um povo. Esse processo criativo é muito claro para Nassar. Esse mesmo processo une tanto os intelectuais a uma voz de sabedoria, ou de bom aconselhamento, em direção às pessoas de baixa instrução. Todos têm direito à verdade? Todos querem alcançala? Se pensarmos na gama de escritores que hoje erigem atividades tão diversas que vão do jornalismo até a stand up comedy fica claro que não há verdade alguma em jogo. Não é estranho em um copo de cólera que o protagonista fique com tanta raiva das formigas destruírem seu muro de maneira tão ordenada? Um trabalho banal e corriqueiro, tão preciso e em conjunto, com uma força motriz da insatisfação conjugal. Ali onde a literatura se personaliza ao invés de provocar pensamento. Deveria ela quebrar seus ideais apesar das consequências nefastas? Ou seu lugar preferencial é destinado aos que suportam por repetição a expressão de emoções ainda muito primitivas? É neste ponto que o trabalho do intelectual se desfaz, valendo tanto quanto ser preso e sentenciado à morte por uma milícia da Ísis na Síria ou mesmo acerca da inoperância dos acadêmicos ao dialogarem com uma bem possível governança islâmica em solo francês, como mostra a recente publicação de Michel Houellebecq. Não é menos incômodo pensarmos que o governo russo apoia o governo de Bashar al-Assad porque os rebeldes da Ísis foram incentivados pelos Estados Unidos a participarem da guerra contra o Ocidente. Lugares onde a economia transita, investida com sangue de vidas inocentes, mas mal localizadas. Assim Donald Trump os proíbe de entrar na nação escolhida por Deus. A história de conflitos pouco ou nada religiosos, mas antes movidos pela ideologia do capital, a única que parece não sofrer qualquer crítica nestas histórias atormentadas. Talvez para lá do capital internacional seja o interesse arruinado das pessoas pela rápida tomada de controle com poder e governança.

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Estas relações não param de trazer mais questões, incessantes e incontornáveis, pelo menos do ponto de vista de um limite. Poderíamos ter escolhido buscar o significado para nossa sociedade desses limites, olhando de frente para os limites do outro, porém, é justamente um ponto deixado de lado, abandonado a um projeto futuro, mas ainda segregacionista, afinal o favelado não conquistou seu direito. Um belo molde de como as elites periféricas olham para si mesmas: “Afinal, chegamos até aqui porque somos os melhores!” Só não escutamos aí o delírio de grandeza, os maniqueísmos crassos, nem as panfletagens ideológicas que nos fazem ainda acreditar ser possível um mundo em que as pessoas andem na mão única sem nem ao menos contradições internas. Parece ser um livro, “Livrão”, segundo Nassar em entrevista para o Instituto Moreira Salles, o que mais precisamos nos deter. Ler a vida, não como espectadores, mas como exploradores: “Nunca senti muito apego pelos livros”, nos diz Nassar. A literatura ganham um exército de burocratas teóricos, sensores e encasteladores das cores mais vibrantes, em detrimento da sensibilidade. Mundo da vida antes de tudo. O intelectual cansado como no conto “Aí pelas Três da Tarde”, chega a fantasia como a melhor resposta para sua sensação de solidão. Um conhecimento muito específico inibindo produções espontâneas. “Em literatura, quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias.” Simples assim. Nassar com seus 81 anos dá mostras de continuar em silêncio, pelo menos um silêncio prático, firme resultado de sua lida no mundo. Desiste mais uma vez por persistir, e sua lição é menos ruidosa para a vida que para muitos dos intelectuais empedernidos nos ídolos de barro de teorias estéticas excessivas importadas da Europa. Isso não é demérito, mas tão pouco não faz uma pessoa melhor que a outra. Desistir pode ser sinal de sabedoria, pois ainda deixa tempo para os

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cacos de coisas ousarem resistir. E isso tudo são apenas mais alguns sinais...

Referências NASSAR, Raduan. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. _____. Fazer, fazer, fazer - Entrevista com Raduan Nassar. Equipe do Instituto Moreira Salles, 1996. Disponível em: http://blogdoims.com.br/entrevista-comraduan-nassar-2/ Acesso: 20 dez. 2016.

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER é psicólogo clínico. Doutor em Letras pela PUCRS.

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[CONTEÚDO EXTRA] “A literatura deve sempre incutir alguma desconfiança” | Entrevista com Rui Zink Entrevistamos o escritor e professor universitário Rui Zink, após o lançamento de O livro sagrado da Factologia (Teodolito, 2017) dentro da programação do evento Correntes d’Escritas, realizado na cidade de Póvoa do Varzim entre os dias 21 e 25 de fevereiro de 2017. Zink deunos pista sobre o que é a Factologia, falou sobre o período de “febre coletiva pelo qual o mundo está a passar” e ainda, sobre o papel do escritor e da literatura. Por Tânia Ardito

SUB | A Factologia não é uma revolução, uma religião ou um movimento. Apenas diz que precisamos aceitar os fa(c)tos. Mas quais? Os verdadeiros ou os inventados? RUI ZINK |Ah, não posso revelar... É como um polícia a dizer “o criminoso é o mordomo” (rs). Mas por trás dos meus livros, há muitas vezes antepassados. Antepassados que eu sei que conheço quando começo o livro, antepassados que descubro que o eram ao chegar ao fim do livro ah e... O Jorge Luis Borges disse isso, que nós vamos descobrindo família. E antepassado do meu livro é, por exemplo, o livro Meia de Gato, do Kurt Vonnegut, em que há uma personagem que inventa uma religião que é o Bokononismo, que é uma religião um bocadinho burra. Portanto, o meu livro tem esse lado, que é uma sátira às seitas que estão muito na moda. As seitas que dizem que sabem... E neste caso, O Livro

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Sagrado da Factologia é, se calhar, o oposto daquilo que diz que é, tal como muitas seitas, pensam que são uma coisa, muitas dizem queremos a democracia e querem ao contrário, vamos tornar a América de novo grande e fazem ao contrário. Portanto entra nisso, não é um livro humorístico, mas é um livro que tem algum humor. E para mim a literatura deve sempre incutir alguma desconfiança. A literatura pergunta, não afirma. As seitas muitas vezes afirmam "nós temos razão", o escritor quando escreve um romance sabe sempre que só uma coisa é certa: que não tem razão.

SUB | Durante a sessão de lançamento, referiu que estamos vivendo uma espécie de febre ou loucura coletiva e que Trump seria o sinal dessa loucura. RUI ZINK | Ah pois, eu penso que nós hoje mais do que nunca, estamos confundido fé com razão. Em todas as épocas há isso. O princípio do partido político e da religião, que são muito parecidos, assenta numa crença de que nós estamos certos. Só uma pessoa muito estúpida escolhe o partido errado, nós temos sempre o partido certo. Mas há febre quando essa crença, essa fé que é uma força boa se torna um bocadinho perigosa e quando essa força se torna um bocadinho negativa. Neste caso, eu penso sempre nas pessoas apaixonadas que chegam ao pé de nós e dizem "encontrei o homem da minha vida” ou “a mulher da minha vida" e uns anos depois chega ao pé de nós e dizem "vamos nos separar", "esse homem destruiu a minha vida", "ela deu cabo de tudo", "foi a pior coisa que eu fiz" e nós, que estamos de fora, sempre olhamos com um sorriso um pouco triste. Porque nem achamos a pessoa tão extraordinária, no princípio era bom para você, mas não era assim a melhor do mundo e você diz "oi, viu, viu, ela (ele) não é fantástica?" E eu digo "bom se você diz", mas quando há a

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separação também não é um monstro, muitas vezes. Agora neste momento, neste início de século XXI, estamos passando por uma fase febril e não é a fase febril bonita da paixão, é a fase febril do divórcio litigioso, rs. Foi o que assistimos no Brasil com o impeachment, em que o mínimo que se pode dizer é que nenhuma das partes tinha razão, podia haver uma parte que tivesse razão, e uma pessoa diz "ah, esses que são os bons", mas depois foi um carnaval de horror, patético e que fez rir o mundo. E a eleição de Trump é um sintoma, como a eleição da Marine Le Pen em França. Como a ditadura Erdoğan. A Turquia foi durante esses anos todos um país relativamente aberto. Eu estive lá em 2011, no parlamento de escritores que foi lá. Istambul capital da cultura, era uma coisa relativamente aberta. E de repente, o mundo está ficando inesperado. O Brasil estava a bombar com uma força enorme nesses últimos 15 anos, o mundo estava a começar a respeitar o Brasil e, de repente, dá um tiro no pé. E esta situação é feia. E é feia, como mais uma vez o divórcio. Quando você e o seu marido tiverem uma discussão brutal, a única gente que fica a rir são os vizinhos e os inimigos (rs), ou seja no vosso caso a Argentina. (rs)

SUB | Ao final do Prólogo, encontramos uma série de coisas que seriam piores que um “escritor sem palavras”, entre elas, talvez a pior “um amanhã

sem

esperança”.

Acredita

que

estamos

perdendo

a

esperança? RUI ZINK | Eu penso que ainda não. Não até porque para perder a esperança é preciso ver o que vem aí. Se alguém aqui devia perder a esperança será o escritor deste livro (rs), que como é alto e pesa 104Kg vê um pouco mais longe. O dever do escritor é ver um pouco mais longe.

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Agora fala-se muito do escritor Stefan Zweig ... que se suicidou no Brasil e que ele perdeu a esperança. Ele era um judeu, culto, era um dos maiores do seu tempo. Ele viu o mundo dele morrer dentro dele. O mundo antigo, o mundo de cavalheiros, o mundo da gentileza. Ele sabia mesmo quando Hitler fosse vencido, esse mundo de gentileza não ia mais voltar. E portanto, quando ele se suicida, o Stefan Zweig... Suicida-se porque sabe que o mundo dele terminou e suicida-se porque está sem esperança. Ao contrário de muita gente, ao contrário de muitos judeus que, nos campos contra todas as chances, sobreviveram. E depois, quando saíram, reconstruíram suas vidas, casaram, tiveram filhos, fizeram vida. Emigraram para Israel, Portugal, Brasil, para muitos países. O Stefan teve essa falta de esperança. Portanto, eu espero que não. Não estamos vivendo um mundo sem esperança, estamos vivendo um mundo que está passando por uma febre. É uma situação de febre, um dia muda. E neste momento, ainda não há falta de esperança, há só o medo. E por isso é que candidatos do medo conseguem ganhar em tantos países. Há medo quando numa Turquia prendem mais de 30 mil acadêmicos, livreiros, editores, professores, jornalistas, a coisa está ficando má. E quando no Brasil, de repente, no movimento anti-Dilma se começa a dizer coisas; eu ouvi como "se pagamos esse salário às babás como é que uma pessoa vai fazer" é pensar mesmo que as babás são seres infra-humanos. E é um regresso a um passado que não devia. Quer dizer, o Brasil tem que crescer, o mundo tem que crescer e eu espero mesmo que seja uma febre e neste momento não estamos num período de falta de esperança, estamos num período em que o mundo está a abafar um pouco a esperança.

SUB | Estamos escrevendo histórias sobre o medo?

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RUI ZINK | Escrevi um há 4 anos e depois vieram muitos atrás. Um livro é sempre um exagero, quer dizer um livro é um bocadinho paranoia com uma moldura à volta. Quer dizer, eu não acredito em tudo o que está nos meus livros, espero que ninguém acredite. Mas a história tem de estar organizada de forma a emocionar o leitor. Mas é um mundo fechado, é sempre um exagero. Em Portugal, por exemplo, nós temos um contra-ciclo. Há menos medo nesse último ano. Temos neste momento um presidente solar, de direita, mas solar e um primeiroministro de esquerda, de esquerda, mas também solar. Ou seja, temos dois políticos na frente do país otimistas. O ano passado, tivemos uma coisa muito boa que nos deu um grande alto astral que foi a vitória no Euro. Foi a primeira vez que Portugal teve uma vitória internacional séria no futebol. Portugal ficava sempre em terceiro, quarto, nunca conseguia, nunca lá chegava. Durante anos, nós vivíamos um pouco por transfer. Eu torcia desde criança pelo time do Brasil até ao Sócrates, depois do Sócrates o Brasil continuou a ganhar, mas deixou de jogar bonito e bem. Mas o ano passado aconteceram coisas muito boas, Portugal está num bom momento que não dura para sempre, nada dura para sempre. Mas é um bom momento, é o presidente da ONU, é o Euro (futebol), é um governo que funciona, uma economia que sendo frágil, está muito melhor do que a maior parte dos nossos vizinhos e temos a perspetiva, ao contrário da França, de ter choques violentos por causa da religião, por causa do casamento gay, que nós tornamos legal muito antes da França… “Quem é o país atrasado aqui, oh?” E temos alguma confiança. Neste momento, acho até que há mais bebés a nascer em Portugal. E isso é bom. SUB | O senhor está presente nas redes sociais, principalmente o Facebook. Quase sempre faz uso da ironia e acaba às vezes sendo malinterpretado. Vale a pena correr o risco?

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RUI ZINK | Tenho que correr o risco, se eu tiver medo de ser malinterpretado então não devia fazer literatura. Porque há literatura quando um texto pode ser mal-interpretado. Um texto que só pode ser interpretado de uma maneira não é um texto literário. Se o texto tem alguma ambiguidade, o leitor não tem a certeza do que o texto diz, então há literatura. Para mim, esta definição é clara, lapidar. No meu caso, eu sou um artista. Quem me conhece sabe o que eu sou. Muita gente ou chega, vê pela primeira vez e muitas vezes tem a posição errada. Às vezes deixa triste. Faz um tempo, isso é uma coisa que aconteceu, uma mulher negra, afro-americana, foi presa por um polícia branco, foi presa em sua casa porque ela saia de um carro bom e caro. Estava numa zona da cidade boa e cara. E o polícia prendeu a mulher negra por prostituição e ela disse: “Não, este é o meu carro, esta é a minha casa” e ele “Ha, ha, como é que você pode, você é uma bandida, vem pra aqui vender os seus serviços, sua prostituta, má e não sei quantos”. E ela foi presa. Acontece que a senhora era mesmo diretora de um banco, o carro bom era dela e a casa boa era dela. E o meu comentário reproduziu essa notícia no Facebook e o meu comentário foi: “oh, vê-se logo que ela tem cor de criminosa”. O jogo é linguístico, porque nós usamos a expressão “cara de criminoso” e naquele caso, eu estava trocando cara por cor. Houve duas ou três pessoas que disseram logo: “seu racista” e eu respondi uma a uma dizendo: “Olhe peço desculpa, mas é ao contrário. Você não me conhece, mas eu estava precisamente denunciando”. Geralmente as pessoas compreenderam, pediram desculpas e foi uma situação embaraçosa. Agora, eu não devia ter feito aquele jogo, bom para certas pessoas, para quem o mundo é literal, sim eu devia estar calado, devia dizer coisas que só tivessem um sentido. Mas na verdade, para mim isto é tirar o sal da vida, para mim isso é um mundo cinzento, onde nós nunca dançamos com a língua, com as ideias, só somos autómatos. Esse mundo para mim, é um mundo fascista e eu uso a palavra com

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peso. O mundo sem humor é um mundo sem graça. A alegria é olharmos sempre para o mundo, ou seja, a malícia, a brincadeira, o jogo e o riso são, para mim, componentes fundamentais do mundo. A ironia e o risco de ser incompreendido faz parte e cá eu sou toda a arte que ao longo dos séculos correu esse risco. SUB |E para o senhor, qual o papel das revistas literárias on-line? RUI ZINK | É fundamental, sobretudo numa altura… o grande problema de qualquer revista é a distribuição, é o grande problema também do livro hoje em dia. E no caso das publicações on-line vem tornar mais barata a produção, vem tornar-nos cosmopolitas. Isto é, Subversa não é uma revista sediada em parte nenhuma, parte do Brasil porque foram as pessoas que a fizeram. Mas é uma revista de língua portuguesa que pode ser lida em todos os continentes e esse é o poder do on-line. E ao mesmo tempo supera o prolema da distribuição que é: a revista é levada por um carro para uma parte distante… e o on-line faz essa coisa bonita que é… resolve esse problema do centro e da periferia. O Brasil é um país gigante, Portugal mesmo sendo um país pequeno tem centro e periferia, tem Lisboa e depois tem o resto. O on-line, o mundo da internet vai tornar cada ponto do mundo num centro. Um moço pode estar numa das dez ilhas de Cabo Verde e de repente através do on-line a Subversa chega a ele exatamente ao mesmo tempo da pessoa que esta em Nova Iorque, ou em São Paulo, ou em Paris. Portanto, essa é a vantagem. O on-line parece que foi inventado para as revistas.

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Ana Ladeiras

Nasceu em Angola, vive e trabalha no Porto. Estudos na Escola Superior Artística Faculdade de Belas Artes do Porto.

e

na

Participa desde 1994 em várias exposições individuais e colectivas em Portugal, Luxemburgo, Bélgica. A sua pintura desmascara nas camuflagens, um grito suave de uma voz poética, onde as figuras se alongam em movimentos delirantes, criaturas quase vegetais que entrelaçam em traços líquidos, em pinceladas voláteis, universos imaginários..

ANA.LADEIRAS@GMAIL.COM

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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