Roberto Piva: vida poética

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ROBERTO PIVA

VIDA POÉTICA

RICARDO MATTOS



Roberto Piva: Vida Poética Ricardo Mendes Mattos ISBN: 978-85-913155-3-6 Criação: Flagrante Delito São Paulo 2015



Índice

1.

Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva.................................

01

2.

50 anos de rebelião poética em Roberto Piva ou poética anárquica, dionisíaca, blasfematória e criminosa..................................................................................

13

3.

Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas........

21

4.

A poética de Roberto Piva nos Manifestos de 1962............................................

33

5.

Roberto Piva na revista “Artes:” – o poeta do rock, o profeta do rock................

53

6.

Abra os olhos e diga Ah!: a política do corpo em chamas...................................

71

7.

Roberto Piva: “poeta homossexual-proletário”..................................................

83

8.

20 poemas com brócoli: o abandono da civilização.............................................

97

9.

A Quizumba de Roberto Piva..............................................................................

109

10. “Animais de Néon”: duas vias da poesia de Roberto Piva na década de 1980.....

123

11. Poesia e êxtase em Roberto Piva: eterno retorno da experiência mítica originária............................................................................................................

139

12. O selvagem em Roberto Piva: caso Paulinho Paiakan.........................................

155

13. Recepção da poesia de Roberto Piva de 1960 a 1990..........................................

161

14. Poesia da experiência vivida & a experiência vivida da poesia............................

175



Apresentação

Este livro reúne ensaios publicados e inéditos em torno da verve seminal da aventura poética de Roberto Piva: a fusão entre arte e vida. Em conjunto com minha tese de doutorado (Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos1) este livro reúne as reverberações de minha intensa vivência da poesia de Piva. A experiência do êxtase me levou a outras expressões da poesia mágica: nas rodas de jongo, nos desafios do calango e no ermo da mata, incorporo o mundo indômito que Piva me fez penetrar.

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Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).



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O leitor de Piva

Claudio Willer

No prefácio das obras completas de Gérard de Nerval pela coleção Pléiade, seu organizador, Claude Pichois, fez observações sobre a demora na percepção da dimensão do autor de Aurélia. Faltaram críticos, observou, como aqueles que teve Baudelaire. De fato, não há como separar a leitura da poesia, prosa poética e crítica de Baudelaire do modo como foi lido por Walter Benjamin, Edmund Wilson, Octavio Paz, Georges Bataille, Erich Auerbach e outros colossos da crítica moderna. Após décadas recebendo uma atenção restrita a leitores que compunham uma espécie de círculo iniciático, felizmente agora Roberto Piva é um poeta não apenas lido, porém estudado. “O século 21 me dará razão”, havia proclamado no título de um de seus manifestos de 1985. De fato, a partir de 2000, com as reedições de Paranóia, a publicação de Obras reunidas, de entrevistas e depoimentos, além dos documentários, mais a correlata difusão no meio digital, foi ganhando novos ensaios, dissertações e teses. Essa produção relativiza uma de suas idiossincrasias: verberava universidades – “professores universotários & sua / antropofagia vegetariana / apavorados peidam no escuro”, chegou a escrever em um poema de 1998 – e, mesmo dispondo-se a dar entrevistas para jornalistas, evitava os pesquisadores. Sua reação à notícia das teses e dissertações examinando sua obra era de desconfiança. Mantidas todas as críticas ao academicismo, aos formalismos, reducionismos e sectarismos em instituições de ensino, é forçoso reconhecer, contudo, que nossas boas universidades são plurais. Comportam de tudo, do melhor ao pior. Podem abrir-se para o inesperado, o original, o atípico. Por exemplo, na bibliografia piviana, uma tese como Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos de Ricardo Mendes Mattos, apresentada em junho de 2015 no Instituto de Psicologia da USP, e agora complementada, completada ou ampliada por esta série de ensaios. Qualificações como “original” e “atípico” cabem: afinal, uma tese sobre poesia na Psicologia da USP, sem invocar nenhum dos quadros de referência tipicamente curriculares – embora haja, na tese e nos ensaios, bastante psicologia, porém do tipo marginal, associada a uma espécie de insurreição anarco-psicanalítico-poética que propúnhamos, fundamentada em Freud, Sandor Ferenczi, Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Norman Brown – isso, além dos compêndios de psicopatologia sexual, a exemplo daqueles de Stekel, que Piva fruía como se fossem prosas poéticas. Mas o trabalho de Mattos também seria estranho se apresentado em cursos de Letras, pois, assim como estes ensaios, parece dispensar teorias literárias, embora ambos, tese e ensaios, sejam Literatura Comparada e tratem, de modo sistemático e consistente, daquilo que importa: a poesia. Sua principal contribuição é nos mostrar Piva como poeta leitor; como autor culto. Alguém que foi constituindo uma identidade e adquirindo uma voz ao desenvolver uma extraordinária capacidade de leitura, desencadeada pela identificação com autores que ia descobrindo, nos quais via expressadas sua própria inquietação e inconformismo. Da paixão pela leitura resultaram a varredura obsessiva de livrarias e as constantes recomendações de leituras e indicações de obras, das quais eu e outros amigos nos beneficiamos. Observei em outra ocasião que destacar o Piva leitor é importante em face desse aspecto preocupante da realidade brasileira: sermos um país com 70% de analfabetos funcionais, com índices tão baixos de leitura


ii de livros. Na mesma medida, é manifestação de inconformismo e recusa do “status quo” a resistência de Piva a ser fácil e discursivo. Navegou contra a correnteza ao apresentar-se como erudito – de uma erudição pouco curricular, nada acadêmica – e pontuar seus poemas com epígrafes, citações, menções e alusões a outros autores. Ensaios como estes ajudam a deixar para trás o tempo em que, citando Mattos, “Roberto Piva era tido por maluco”; a descartar a crítica fácil, com a qual já cruzamos tantas vezes: a leitura simplória do “eu sou uma alucinação na ponta dos teus olhos” que reduz sua poesia ao psicodelismo, à ingestão dessa ou daquela substância, aos porres desenfreados e outras peripécias de uma vida livre, a um amplo espectro da sintomatologia psiquiátrica, a uma contracultura ainda inexistente na época da publicação de Paranóia, Piazzas, Ode a Fernando Pessoa e dos primeiros manifestos, e da qual foi um lúcido precursor, como seria notado bem mais tarde. É claro que tudo isso – “vida experimental” como requisito para a “poesia experimental”, as provocações, o desregramento, sexual inclusive – é verdade. Atesta a coerência do poeta que declarou, enfaticamente: “O que não abro mão do surrealismo – que condiz com a minha vocação poética – é JAMAIS SEPARAR POESIA E VIDA.” O título deste livro, Vida poética, é primorosamente exato. Não é biografia; mas situa-se no pólo oposto do “recorte” preconizado em cursos de Letras, separando autor e obra, biografia e criação literária. O título de um dos capítulos poderia valer para o livro todo: “Vozes proibidas / vozes dos sexos e luxúrias”. Temos, aqui, ensaios legitimamente pivianos. O “close reading” praticado por Mattos replica um procedimento do próprio Piva. A leitura atenta e informada vai mostrando que o magma imagético sempre é significativo, que as alusões, menções e citações de outros autores são precisas, desde que examinadas pelo crítico sensível, atento e informado. Destituindo o chavão reacionário da qualificação como “irracional”, comprova que Piva pensava; que, desde os escritos iniciais, havia formulado uma poética, indissociável de uma visão de mundo; que reflexão e criação sempre caminharam juntas. Cito-o: “os Manifestos de 1962 fundamentam uma poética posta em ação em Paranóia, da mesma forma que materiais como Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992) ou poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase (1997), por exemplo, dialogam com Ciclones.” Isso, como aspectos da “complexidade do intertexto em Roberto Piva”. Ao longo da sua obra, a tentativa de superação de uma contradição profunda, entre palavra e corpo. Ao descobrir a declaração de Octavio Paz, a propósito de Luis Cernuda, de que “Para mim, a subversão poética é subversão corporal”, Piva a transformaria em lema, assim como adotou “a poesia se faz na cama, como o amor” de André Breton. Expressões do que já vinha fazendo, como poeta-pensador ou poeta-crítico, contribuindo para uma leitura melhor dos autores que escolheu como precursores: “Piva vivencia os versos alheios em sua visceral pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma experimentação na carne. Antes de textual é sexual.” Um dos resultados, como bem resume um ensaísta citado por Mattos, é “una primera lectura corporal y sexual del modernismo brasileño”. De fato, “Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da plena realização – sem grilhões e sem remorsos.” Por isso, quem quiser saber mais sobre o sentido dos girassóis e outras inflorescências na poesia de Mário, Allen Ginsberg e García Lorca, entre outros, que vá procurá-lo em Piva – e nas leituras empreendidas por Mattos.


iii A criminalização positiva da poesia – através da associação de poesia e crime, aqui examinada – é quase um corolário: “Ora, aqui temos uma relação indissociável entre poesia e crime. É poesia sobre crime, escrita por um delinquente, cuja força é de apologia ao crime, incitação à transgressão de qualquer ordem, lei ou convenção social. A poesia mesma é crime.” A poesia deve ser feita por todos, havia proclamado Lautréamont – mas, pode-se acrescentar agora, desde que esse “todos” tenha a organização e atuação de uma gangue. Outra das contribuições relevantes de Mattos é o tratamento dado à marginalia piviana, examinando textos que não estão nas Obras reunidas e no volume de entrevistas, a exemplo de suas contribuições regulares para os jornais Artes e Versus. É crítica que nos traz o poeta em sua integridade. No meu entender, a cronologia de publicações de livros de Piva pode ser enganadora: é, penso, muito mais função de oportunidades editoriais, de haver alguém – majoritariamente, mas não exclusivamente Massao Ohno – disposto a publicá-lo, do que de momentos ou surtos de criatividade. Piva foi poeta em tempo integral; sempre criou. É típica a efusão de prosa poética em sua entrevista sobre conjuntos brasileiros de rock para a Rolling Stone brasileira, assim como ele me visitar em algum momento da década de 1960, após a publicação de Piazzas, para mostrar-me manuscritos sobre um “Pajé Çaangaba”, precursor do subseqüente xamanismo. Ou então, alguns registros gravados de suas apresentações públicas, com belos poemas que jamais encontrariam a publicação e que, alguns, infelizmente, desapareceriam de vista. Roberto Bicelli relatou que houve um primeiro Abra os olhos e diga Ah!, manuscrito sem cópias que Piva simplesmente presenteou a um rapaz cuja família, ao ver aquilo, lhe deu o destino que julgou apropriado. Eu não fui o Eckermann, o Boswell, o Crabb Robinson2 de Piva – deveria tê-lo sido; deveria ter recolhido mais dos escritos que ele ia largando por aí – salvei alguns, a exemplo dos contundentes “O hino do futuro é paradisíaco”, que publiquei em Versus, e “Relatório para ninguém fingir que esqueceu”, que publiquei em Singular e Plural; e muito está salvo, como os Corações de Hot Dog e outros originais, no Instituto Moreira Salles. Piva, notoriamente, considerava-se poeta em primeira instância; queria ser lido e publicado. Como conciliar isso com seu aparente descaso e idiossincrasias? Uma boa interpretação está aqui, quando Mattos trata das suas mutações aparentes, desde o “homossexual-proletário” até o adepto da “direita sagrada”; da “fluidez nas questões políticas que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde, sempre inquieto. Uma “alma bailarina” experimentando novas possibilidades de vida sem temer as contradições.” Talvez também prevalecesse sobre a obra, seu conceito de livro, como meio de sedução e combate – de preferência, algo bem portátil, que ele pudesse retirar dos depósitos de editores para sair por aí, distribuindo aos jovens leitores em potencial que o agradassem. Seu modelo de publicação é representado por 20 poemas com Brócoli, livro minimalista, contrastando com as edições em um formato enorme que Massao Ohno fazia naquele período. Tanto é que reclamou do tamanho de Ciclones, livro mais extenso por haver acumulado material à espera de editores – é de 1997, mas com poemas que vinham sendo escritos desde 1982 –, como testemunhado por Sergio Cohn, que digitou os originais, em seu livro sobre Piva.

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Interlocutores de Goethe, Samuel Johnson e William Blake que publicaram suas conversações com eles.


iv Tudo isso, aspectos do movimento, do trânsito vertiginoso, para citar um dos títulos a seguir, entre “Poesia da experiência vivida & a experiência vivida da poesia”. Ambivalências típicas do bom leitor de Baudelaire, que Piva entendeu plenamente, como tão bem exposto aqui, nestes ensaios que, pelo valor não só como guias para a leitura do autor de Paranóia, mas da poesia de qualidade em geral, merecem a mais ampla difusão.




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Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva3

Mário de Andrade é o poeta pederasta – quando encarnado na vida poética de Roberto Piva. Lá está ele no Largo do Arouche paquerando colegiais que saem das escolas; ou nas lassidões do Cambuci, delirando na Alameda dos Beijos da Aventura. Na imaginação excitada de Roberto Piva, ambos poetas transam adolescentes numa bacanal no Parque do Ibirapuera e saem de mãos dadas noite afora. Juntos na poesia, juntos na orgia, juntos na pederastia. É uma relação erótica com o autor de Girassol da Madrugada. Uma relação escandalosa. No início dos anos ‘60 era comum uma retomada da fase heroica do modernismo. A verve de Paulicéia Desvairada pulula aqui e ali, numa vivência da cidade cravada em seus locais mais conhecidos. No entanto, ninguém ousava tocar nessa faceta homoerótica da poesia de Mário de Andrade - muito menos da maneira visceral como faz Roberto Piva. Daí o estarrecimento. Há dois motivos para o espanto. Por um lado, como aponta Eliane Robert de Moraes4, a tradição literária brasileira dava pouca vazão à expressão do erotismo tão presente nas conversas populares – o que vai ocorrer especialmente a partir dos modernistas de 22. Por outro lado, a questão da sexualidade em Mário de Andrade é uma polêmica. A mesma Eliane Moraes observa o conflito moral que fez o autor de Macunaíma retirar alguns trechos pornográficos na reedição do livro. Assim, apenas muito atualmente se fala na sexualidade do poeta, pairando aí um clima proibitivo que certamente era ainda mais forte no início dos anos ‘60. Daí o escândalo do poeta pederasta tal como aparece em Roberto Piva. Essa retomada enfrenta a repressão sexual de toda uma cultura justamente em um dos maiores autores nacionais. Dessa forma, Piva consegue levar adiante a incorporação literária da sacanagem popular, iniciada com os primeiros modernistas, com a ousadia que lhe é peculiar. É desta retomada homoerótica da poesia de Mário de Andrade que irei tratar. Para tanto, centrarei fogo nas primeiras publicações de Roberto Piva, nomeadamente os poemas San Paulo’s Improvisation (1961), Ode a Fernando Pessoa (1961) e No Parque Ibirapuera (1963). A estreia de Roberto Piva nas letras se dá na famosa Antologia dos Novíssimos (1961). Já neste momento se estabelece interessante diálogo com Mário de Andrade. Vejamos o trecho inicial do último poema: SAN PAULO’S IMPROVISATION “Ruas do meu São Paulo, A culpa do insofrido, Onde está?” MARIO DE ANDRADE De um bar qualquer Do Largo do Arouche assisto São Paulo passar dentro de mim Imerso na paisagem cinza-úmida pela “água-benta das garoas monótonas” 3 4

Publicado originalmente na Agulha: revista de cultura, edição n. 08, março de 2014. MORAES, Eliane Robert. Essa sacanagem. São Paulo, Ide, v. 1, pp. 75-79, 2005.


2 como disse Mário de Andrade. Do bar recorto no asfalto umedecido o olhar dos pederastas mariscando colegiais farfalhantes nas esquinas5. [...]

A cidade atravessa o poeta imerso em sua “paisagem cinza-úmida”. Um cinza que opera desde dentro, com a moral da “água-benta das garoas monótonas”. São características da poesia de Mário de Andrade que Roberto Piva incorpora: a toponímia do Largo do Arouche, a fusão entre poeta e cidade, e a crítica aos costumes conservadores. O poeta modernista empresta ainda os versos da epígrafe, onde se pergunta: onde está o “amor vivo”, o “amigo”, a “culpa do insofrido”, nas ruas de São Paulo?6 Essa busca do “amor vivo” colide com as convenções da cidade. É exatamente em Tristura, poema de Paulicéia Desvairada, que Mário de Andrade descreve o matrimônio do poeta com a cidade: a “água-benta” pode ser lida como símbolo de sua moral conservadora, tão repetitiva quando a garoa que representa São Paulo. Se o poeta busca um amor vivo, a cidade só lhe oferece a relação contratual do casamento – o amor encarcerado na moral patriarcal. Como filha, poeta e cidade tem a “Solitude das Plebes” – uma pobre monja com os cabelos cortados – aqui mais uma imagem de castração à sensualidade. A filha monja é mencionada ainda no poema A Caçada, em que o poeta se queixa do vento gelado da cidade que repeli “os poetas, os moços e os loucos”, reduzindo a vivência arlequinal da poesia a um ideal ilusório. Aí surge uma caçada, numa “deliciosa mania” do companheiro modernista: “- Abade Liszt da minha filha monja, / Na Cadilac mansa e glauca da ilusão, / passa o Oswald de Andrade / mariscando gênios entre a multidão!...”7. O músico abade, representando essa aliança da arte com a moral cristã, é contraposto ao companheiro modernista. É esse último verso que aparece parafraseado no poema de Roberto Piva. Talvez Oswald mariscasse “gênios” para uma renovação da arte nacional, encharcada pela água-benta. Mas em Piva, são pederastas paquerando colegiais. A renovação viria não pela genialidade, mas por um erotismo transgressor. Roberto Piva vê aí outra mania deliciosa. De quem seria? Mário de Andrade, em seu Prefácio Interessantíssimo, utiliza a seguinte imagem para abordar a desordem da lírica e seus influxos do inconsciente: Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos8.

Seria exagerado dizer que Piva mescla ambas passagens de Paulicéia Desvairada, numa junção do verso sobre Oswald mariscando gênios com a passagem de Mário observando

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PIVA, Roberto. San Paulo’s Iprovisation. Em: OHNO, Massao (org.) Antologia dos Novíssimos (Coleção dos Novíssimos, vol.09). São Paulo: Massao Ohno, 1961. pp. 97. 6 ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 283. 7 Ibidem, p. 44. 8 Ibidem, p. 21.


3 colegiais saindo de mãos dadas? No poema de Roberto Piva, estaria Mário de Andrade entre os pederastas mariscando colegiais? “Colegiais infantes” aqui, “colegiais farfalhantes” acolá – ambos os poetas parecem têlos observado bem. A imagem de Mário de Andrade os coloca de mãos dadas, num clima ao mesmo tempo ingênuo e malicioso. Já Piva ambienta a cena no Largo do Arouche, local conhecido pela frequentação de pederastas. No ano de publicação de Paulicéia Desvairada corria o boato sobre a “pederastia” de Mário de Andrade – como ele mesmo admitiu saber, em carta a Sergio Milliet. Se ainda hoje causam escândalo essas manias deliciosas de nosso venerando modernista, o que dizer do clima de 1960? Certamente as cartas de Mário de Andrade ainda não eram de conhecimento público; e Roberto Piva era tido por maluco – muito embora tenha antecipado em muitos anos a recente especulação em torno da biografia de Mário de Andrade.

Sexo e drogas no Cambuci À luz do dia, a cidade bate na cadência repetitiva de suas fábricas; na monotonia moral da burguesia; no metro beletrista de seus poetas. São as sempiternas mesmices convencionais, como pondera Mário de Andrade. A luz do dia e suas capturas pelo trabalho, escola e família. É a cidade sem asas, sem poesia, sem alegria. Em Ode a Fernando Pessoa (1961), Roberto Piva utiliza a mesma expressão das “sempiternas mesmices” e atualiza a crítica do modernista à cidade. São Paulo surge como o “convento do Brasil” e seu orgulho pela modernização crescente é ridicularizado: “Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?”9. Com tom ora satírico, ora cáustico, Roberto Piva rechaça as reconhecidas instituições de ensino (Faculdade de Direito do Largo São Francisco), as igrejas, o governo e até resistência dos comunistas. Mas a madrugada oferece outras luzes, como aquelas do poema Noturno, de Paulicéia Desvairada. Ali a cidade ganha asas: [...] Luzes do Cambuci pelas noites de crime... Calor!... E as nuvens baixas muito grossas, feitas de corpos de mariposas, Rumorejando na epiderme das árvores... Gingam os bondes como um fogo de artifício, Sapateando nos trilhos, Cuspindo um orifício na treva cor de cal... Num perfume de heliotrópios e de poças Gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan; E traz olheiras que escurecem almas... Fundiu esterlinas entre as unhas roxas Nos oscilantes de Ribeirão Preto... – Batat’assat’ô furnn!... [...] 9

PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 25.


4 Calor!... Os diabos andam no ar Corpos de nuas carregando... As lassitudes dos sempres imprevistos! E as almas acordando às mãos dos enlaçados! Idílios sob os plátanos!... E o ciume universal às fanfarras gloriosas De sáias cor de rosa e gravatas cor de rosa!... Balcões a cautela latejante, onde florem Iracemas para os encontros dos guerreiros brancos... Brancos? E que os cães latam nos jardins! Ninguem, ninguem, ninguem se importa! Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura! Mas eu... Estas minhas grades em girândolas de jasmins, Enquanto as travessas do Cambuci nos livres Da liberdade dos lábios entreabertos!... Arlequinal! Arlequinal! As nuvens baixas muito grossas, Feitas de corpos de mariposas, Rumorejando na epiderme das árvores... Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins, O estelário delira em carnagens de luz, E meu céu é todo um rojão de lagrimas!... 10 [...]

O poeta transpassado pelas sensações se multiplica nos versos simultâneos encharcados de cores, cheiros e visões. O clima é inebriante e o teor é altamente sexual. Um mulato cantarolando aqui, corpos de putas acolá e diabos numa fanfarra que inclui todos os sexos e relações (“saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!”). Todos embarcam nessa orgia, mas o poeta tem aí uma sensação ambígua de prazer e tristeza: a liberdade sexual do lugar contrasta com as grades que o aprisionam. Diante dos delírios carnais, o poeta experimenta a tristeza das lágrimas. É nessa teia de contradições que a sexualidade em Mário de Andrade fica explícita: o gozo ao lado do interdito. É um conflito sexual que não encontra correspondência em Roberto Piva. Na Ode a Fernando Pessoa, Piva retoma esse Mário de Andrade de Noturno. O poeta caminha com Álvaro de Campos e os tenebrosos vagabundos de São Paulo numa vida radicalmente subversiva. Bebedeiras, assaltos, violações e orgias. A loucura sensacionista de experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Caminham pelos becos e encruzilhadas do lado obscuro da cidade, recheado de putas e adolescentes que abandonaram o sono das famílias. É nesse contexto que Roberto Piva se dirige a Álvaro de Campos: “veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ‘as luzes do Cambuci pelas noites de crime’, onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio, Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo de Mário de Andrade (aí de nós se ele desperta!)”11. Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da plena realização – sem grilhões e sem remorsos. Frequenta os mesmos inferninhos da cidade, mas adiciona à sua vagabundagem um tom violento e mesmo criminoso. Se Mário de Andrade

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ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada, op. cit., p. 44-5. PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 23.


5 mostra certa frustração e pudor, Roberto Piva é só furor: viola a menina-moça. O poeta paranoico carrega em si toda o vigor dos piratas da Ode Marítima de Campos: “Ah, ser tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! [...] Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!”12 O entrelaçamento dos modernismos português e brasileiro via erotismo fica claro na seguinte imagem: Álvaro de Campos andaria “de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche”13. Na Ode, Roberto Piva novamente fala do sexo de Mário de Andrade, agora num tom provocativo: “(aí de nós se ele desperta!)”. Remete aos verso do autor de Lira Paulistana nos quais dizia que, quando morrer, “No Paissandu deixem meu sexo”14. Mas tudo o que Roberto Piva faz é acordar o sexo de Mário de Andrade. E não só o sexo. É um Mário de Andrade em meio a pederastas e maconheiros! No poema de abertura de Paranóia (1963), Roberto Piva tem a seguinte visão: “na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas”15. É no mínimo inusitado: Mário de Andrade em posição meditativa, recebendo uma iluminação num comboio de maconha! O contraste da santidade do lótus com a criminalidade do tráfico. E tudo em torno de Mário de Andrade! A princípio se pode pensar em exagero, impertinência ou mero absurdo – e quantos críticos não caem nesse lugar-comum? Mas, vejamos de novo os seguintes versos de Mário de Andrade no poema Noturno: “Num perfume de heliotrópios e de poças / Gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan; / E traz olheiras que escurecem almas...”. Heliotrópios, flordo-mal, Tusquestan?! Mário de Andrade delira tanto quanto Roberto Piva! Mas ambos com muita lucidez. Senão, vejamos. Desde as famosas viagens de Marco Polo, a região do Turquestão é associada à origem da utilização do cânhamo (cannabis). O autor de Flores do Mal, Charles Baudelaire, inicia seu Paraísos Artificiais exatamente com menção a Marco Polo, discutindo a utilização do cânhamo nesta região russa na qual camponeses ficavam com “crises de sonambulismo” ao utilizar a erva na alimentação16. Na apresentação escrita por Théophile Gautier sobre Baudelaire, exatamente nas edições de Flores do Mal a partir de 186817, fala-se dos paraísos de “perfumes” acessados por “êxtases olfativos” após exalar o olor de um “heliotrópio”. São os elementos do trecho de 12

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (Teresa Rita Lopes, org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117 13 PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, op. cit., p. 22. 14 ANDRADE, Mário de. Lira Paulistana, op. cit., p. 300 15 PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30. 16 Baudelaire, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Baudinière, 1860, (Collection Les chefs-d’oeuvre français). p. 14. 17 GAUTIER, Théophile. Charles Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Calmann Lévy Éditeur, 1896. p. 61. Passagem na íntegra: “Il en est de même pour les extases olfactives qui vous transportent en des paradis de parfums où des fleurs merveilleuses, balançant leurs urnes comme des encensoirs, vous envoient des senteurs d'aromates, des odeurs innomées d'une subtilité pénétrante, rappelant le souvenir de vies antérieures, de plages balsamiques et lointaines et d'amours primitives dans quelque O'Taïti du rêve. Il n'est pas besoin de chercher bien loin pour trouver dans la chambre un pot d'héliotrope ou de tubéreuse, un sachet de peau d'Espagne ou un châle de cachemire imprégné de patchouli négligemment jeté sur un fauteuil”.


6 Mário de Andrade! Além de uma referência clara à grande obra do poeta francês, seria a flordo-mal uma referência à cannabis sativa originária do Turquestão? Estas “olheiras” não seriam menção ao efeito do consumo de maconha, tal como as “crises de sonambulismo” de que nos fala Baudelaire? Não me parece estranho pensar no consumo dessa erva na região barra-pesada do Cambuci. Se podemos colocar em dúvida essa interpretação dos versos de Mário de Andrade, os versos de Piva são inequívocos. A imagem delirante de Piva se baseia em uma leitura ousada da própria poesia de Mário de Andrade. Convém repetir: uma leitura feita no início dos anos ‘60, sem o conhecimento das memórias de viagens e cartas em que Mário de Andrade relata suas experiências com alucinógenos. Mário de Andrade surge como um “lótus”, uma iluminação espiritual simbolizada nessa flor oriunda do mesmo Oriente que o Turquestão. E o poeta modernista tem essa iluminação deitado, olhando as estrelas, com a boca colada no ouvido de Roberto Piva, ao seu lado. Onde estariam os poetas deitados gozando essa intimidade?

No Parque Ibirapuera Nos gramados regulares do parque Ibirapuera Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha imaginação Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri para a banalidade dos móveis Teus versos rebentam na noite como um potente batuque fermentado na rua Lopes Chaves Por detrás de cada pedra Por detrás de cada homem Por detrás de cada sombra O vento traz-me o teu rosto Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna? É noite. E tudo é noite. É noite nos pára-lamas dos carros É noite nas pedras É noite nos teus poemas, Mário! Onde anda agora a tua voz? Onde exercitas os músculos da tua alma, agora? Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem como numa lagoa É impossível que não haja nenhum poema teu escondido e adormecido no fundo deste parque Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos Eu te imagino perguntando a eles: onde fica o pavilhão da Bahia? qual é o preço do amendoim? é você meu girassol? A noite é interminável e os barcos de aluguel fundem-se no olhar tranqüilo dos peixes


7 Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo seguir contigo de mãos dadas noite adiante Não só o desespero estrangula nossa impaciência Também nossos passos embebem as noite de calafrios Não pares nunca meu querido capitão-loucura Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores suspensa em teu ritmo.18

O poema é ambientado naquele parque inaugurado nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo. A história é conhecida: entusiasmo diante da industrialização da cidade; leitura de poesia modernista patriótica; monumentos históricos. São os “gramados regulares”. Roberto Piva parece criticar a institucionalização do movimento modernista e sua cooptação pelo Estado. Ao contrário dessa retomada oficial da tradição modernista, Piva encontra naquele parque outra relação com Mário de Andrade. São versos que rebentam na noite e estão imanentes em todos os movimentos do poeta na cidade. Uma encarnação poética que se dá distante dos holofotes, distante das comemorações diurnas. “É noite” – conclama Piva, mencionando versos de Mário de Andrade em Meditação sôbre o Tietê. Sob a ponte, contemplando o rio, Mário de Andrade associa a noite às paixões humanas, suas obscuridades, seus ímpetos inconscientes. Essa “noite insone e humana” finda com o susto da aurora, que transfigura o poema. Com a luz do dia se vê os “arranha-céus”, “trabalhos e fábricas”: “Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma / Humana corrupta da vida que muge e se aplaude”19. Roberto Piva retoma esse poeta noturno: o homem com suas paixões fluindo inconscientemente. Mais próximo do rio e do ambiente natural; distante da civilização e sua vida corrupta. É à noite que Roberto Piva imagina-se com o autor de Girassol da Madrugada paquerando adolescentes, com Mário de Andrade perguntando a um deles se seria seu girassol. Piva encontra um poema escondido de Mário de Andrade, anunciado já no início quando menciona o retrato do modernista sorrindo para a “banalidade dos móveis”:

SONETO (Dezembro de 1937) Aceitarás o amor como eu o encaro ?... ...Azul bem leve, um nimbo, suavemente Guarda-te a imagem, como um anteparo Contra estes móveis de banal presente. Tudo o que há de melhor e de mais raro Vive em teu corpo nu de adolescente, A perna assim jogada e o braço, o claro Olhar preso no meu, perdidamente. Não exijas mais nada. Não desejo

18

PIVA, Roberto. Paranóia. op. cit., pp. 64-5. ANDRADE, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 305. 19


8 Também mais nada, só te olhar, enquanto A realidade é simples, e isto apenas. Que grandeza... a evasão total do pejo Que nasce das imperfeições. O encanto Que nasce das adorações serenas20.

Seria um daqueles adolescentes o jovem amante de Mário de Andrade, que o próprio modernista nomeia como “girassol”? – se pergunta Piva. Com ou sem esse girassol, Mário de Andrade e Roberto Piva passam uma “noite interminável” com os garotos. Após a orgia, ambos poetas saem de mãos dadas noite afora. Roberto Piva, sem dúvida, aceita o amor do modernista como este o encara! É Piva de mãos dadas com a tradição modernista fortemente erótica. Em entrevista a Fábio Weintraub21, o poeta afirma: “...Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado homoerótico”, ressaltado no modernista sua “forte sensibilidade homossexual”. Piva cita os versos sobre “teu corpo nu de adolescente” para avalizar esta sua interpretação. Exatamente na análise do poema No Parque do Ibirapuera, o crítico argentino Mario Cámara afirma, num tom provocativo: La de Piva puede considerarse como una primera lectura corporal y sexual del modernismo brasileño. Y testimonia la búsqueda alternativas al discurso más técnico y, por lo tanto más mental, del concretismo, a la modernidad desarrollista que está emergiendo de los claustros de la Universidad de San Pablo, y a la poesía militante y “piadosa” de la izquierda literaria brasileña22

Duma certa perspectiva, a Paulicéia Desvairada faz uma crítica da cidade atrelando os aspectos político-econômicos, morais e estéticos. A moral conservadora é tão aprisionadora quanto a economia burguesa e o metro poético. As Enfibraturas do Ipiranga dão inúmeros exemplos de crítica à regularidade do metro em poesia, colocado no mesmo patamar que o trabalho assalariado e o matrimônio. O poeta bom moço, conservador na vida e na poesia, é aquele do poema com ênfase formal. O antípoda do desvairado caminhando ao ar livre na ruas mal afamadas da cidade, nas carnagens de luz e na maconha – na simultaneidade desordenada de versos livres. Em sua época, a crítica de Mário de Andrade certamente dirigia aos parnasianos. Mas, em plenos anos ‘50, ninguém menos que Sérgio Buarque de Holanda já falava do “latente parnasianismo” e pendor formalista de nossa poesia23. Antônio Cândido também denominou como “neoparnasianismo” a poesia formalista a partir da tal Geração 4524. É exatamente o movimento concretista e a Geração 45 que Roberto Piva irá criticar – já nos manifestos de 1962. O racionalismo e anti-lirismo de uns e a disciplina fabril e formal de outros.

20

ANDRADE, Mário. A costela do Grã Cão. Em: Poesias completas. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1987. pp. 320-1. 21 WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. pp. 124-135. 22 CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa (Argentina), n. 14, dezembro 2010, p. 35. 23 HOLLANDA, Sergio Buarque de. Retórica e Poesia. Em: O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1950/1996, pp. 165-9. 24 CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira – III. Modernismo. 5. ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1975. 374 p.


9 Ambos expressões da ideologia da modernização: seja na administração racional da poesia, ou na ingênua exaltação da modernização e da mercadoria. Ou seja, Roberto Piva atualiza a crítica modernista também no que diz respeito à poesia nacional. Exatamente essa atualização, distante da institucionalização estatal ou das escolinhas literárias, permite a Roberto Piva a radicalidade erótica e livre. Mais em termos de atualização, convém lembrar a opinião de Mário de Andrade sobre uma das contribuições do movimento modernista: “a atualização da inteligência artística brasileira”. Pois não apenas no erotismo Piva tem importância. O poeta atualiza a expressão poética brasileira, especialmente com dicções da poesia norte-americana. Como bem observou Claudio Willer25, o poema No Parque Ibirapuera mantém forte intertexto não apenas com Mário de Andrade, mas também com Garcia Lorca e Allen Ginsberg. Acrescento a importância de Álvaro de Campos, que em sua Saudação a Walt Whitman, conclama o “grande pederasta”: De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma. Quantas vezes eu beijo o teu retrato. Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus) Sentes isso, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente) E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá, Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito, Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma. Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso, Mas perante o universo a tua atitude era de mulher, E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo26

Como em Álvaro de Campos, Piva também traz essa imagem do “retrato” de Mário de Andrade em seu quarto – um símbolo forte de admiração juvenil. Mas Whitman era o poeta da fusão com todo o universo, aquele que se tornava os outros homens e penetrava em todos objetos. Seu próprio livro o trazia vivo e vibrante em cada página: “Camarada, isto não é um livro / quem toca neste livro, toca num homem [...] Eu salto de suas páginas em seus braços”27. É assim que Álvaro de Campos encarna Whitman e, como o faz Piva com Mário, caminha com ele de mãos dadas. É a poesia como força que flui para além do espaço e tempo, como queria Whitman, impregnando a tudo com sua vibração imanente: em cada pedra, em cada homem, etc – como surge em ambos poemas. Mas para além dessa imanência poética, Piva, como Campos, se pergunta também onde estará agora, mesclando a sensação da presença com a angústia da busca. Piva retoma a Mário de Andrade tal como Álvaro de Campos a Walt Whitman. Mas não só. Os fios das longas barbas do bardo foram vistos também em Um Supermercado da Califórnia. Ali Allen Ginsberg inicia o poema pensando em Whitman enquanto caminhava “olhando a lua cheia”. A partir daí também recompõe imagens nas quais encontra Whitman “lançando olhares para os garotos da mercearia”: “Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as

25

WILLER, Claudio. Roberto Piva e a poesia. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, n. 2, 2010. Disponível em: http://novaserie.revista.triplov.com/numero_02/claudio_willer/index.html 26 PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 149. 27 WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. (2ª ed.), 1860. Disponível em: whitmanarchive.org/published/LG/1860/ Data da consulta: 12/05/2008.


10 costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?”28. Os poetas provam tudo sem nunca passar pelo caixa e, quando o supermercado fecha, caminham juntos pela “noite”. Supermercado aqui, Parque acolá, o encontro de Piva com Mário de Andrade é um pilhagem de Ginsberg. Até detalhes da “lua”, da “noite”, da imaginação que recompõe os versos, da caminhada de mãos dadas, etc. Mas se Ginsberg, após todas essas imaginações, se sente “absurdo”, Piva não; se os dois poetas americanos ficam na paquera com os garotos angélicos, os brasileiros vão além. E os versos de Ginsberg, como bem sabia Roberto Piva, também são variações da seguinte passagem de Garcia Lorca, em sua Ode a Walt Whitman: “¿Qué ángel llevas oculto en la mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus anémonas manchadas?”29. Eis a complexidade do intertexto em Roberto Piva. Em primeiro lugar: Piva vivencia os versos alheios em sua visceral pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma experimentação na carne. Antes de textual é sexual. E essa relação transparece nos versos que, a um só tempo, fazem menção a Mário de Andrade (com o girassol), a Garcia Lorca (já que o girassol dialoga com a anêmona: outra flor com forte teor erótico e mágico) e a Allen Ginsberg (já que o girassol corresponde ao anjo). Nessa retomada erótica de Mário de Andrade, Roberto Piva atualiza a inteligência artística brasileira com versos surreais de Lorca e a beat de Ginsberg. Todos colocados numa espécie de genealogia da poesia homoerótica que irradia de Whitman e passa por Álvaro de Campos. Roberto Piva consegue mesclar uma escrita radicalmente delirante e espontânea com cuidadosos estudos dos poetas que menciona. Pois Roberto Piva era um leitor bem atento. A aproximação de Mário de Andrade com a pederastia e a drogadição não são meros exageros delirantes, mas fruto de análise bem criteriosa. Se o delírio poético e a transgressão radical são feições muito mencionadas para se referir à Piva, falta ainda dizer algo sobre sua argúcia crítica. Aqui chegados, concluímos uma parte da caminhada. Ainda resta fazer uma leitura atenta das semelhanças entre Macunaíma e Coxas: sex fiction & delírios. Tal leitura ampliaria o tema do erotismo para o debate sobre o “primitivismo”, numa pegada político-revolucionária que inclui outros heróis sem caráter. Eis o Mário de Andrade de Roberto Piva. Nem o bom moço dos cânones acadêmicos, nem o capturado pelo Estado das comemorações oficiais, nem arauto venerado nas escolinhas literárias. Poeta pederasta, vadiando nos inferninhos da cidade e experimentando drogas. É com esse que Roberto Piva caminha de mãos dadas.

28

GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 49. (Coleção LP&M Pocket, vol. 188). 29 LORCA, Frederico García. Poet in New York: a bilingual edition. Grove Press, 2008. p. 148.




13

50 anos de rebelião poética em Roberto Piva ou poética anárquica, dionisíaca, blasfematória e criminosa30

Poesia do ímpeto e do giro, Da vertigem e da explosão, Poesia dinâmica, sensacionista, silvando Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo, Em grandes rios de chama, em grandes vulcões de lume. (Fernando Pessoa/Álvaro de Campos). Por onde passa a alucinação poética de Roberto Piva devassa. Seu pulsar em fúria ejacula desordem. As convenções sociais se prostram definhadas. Os deveres suicidam-se aturdidos. As autoridades masturbam-se convulsionadas. Os relógios ventilam e olhares sedentos devaneiam em rodopios maravilhados. Reparei como a consciência se desequilibra no parapeito do Absurdo, enquanto a Razão amanhece jogada bêbada ao meio-fio. No ritmo violento de seus versos, vagabundos, putas e pederastas copulam sorridentes. A juventude se excita. As palavras pululam em vertigens. O corpo convulsiona inebriado pelo aroma libertino que exala de seus poemas. No quinquagésimo ano da estreia de Piva, com sua Ode a Fernando Pessoa (1961), este ensaio celebra a sua vida. Sua poética, qual meteoro incandescente desgovernado, ganha virilidade a cada ano, explode em gerações de novos poetas e transgressores nele inspirados, abre crateras no bom mocismo ainda predominante na poesia. A publicação individual de estreia de Roberto Piva foi impressa em longa tira de papel – similar à forma de Bomb, de Gregory Corso, incluída na “remessa beat” que ele recebia tão logo era publicada em San Francisco. O poema era distribuído nos bares da cidade de São Paulo, tendo sido escrito no mesmo ano de sua participação na Antologia dos Novíssimos (Massao Ohno, 1961). A Ode já abriga o germe da poesia piviana, com toda sua força subversiva e anárquica. Já aqui a poética da irresponsabilidade, das sensações em detrimento das obrigações. Apologia do ilegal. Poesia da orgia, cujo erotismo toma o poder de assalto. Blasfêmia, sarcasmo e ridicularização do mundo oficial. Poesia sustentada pela loucura e pelo delírio. Já aí estão as primeiras grandes influências poéticas do transgressor, especialmente de Pessoa-Álvaro de Campos, Walt Whitman, Allen Ginsberg e Mário de Andrade. Saudar a Fernando Pessoa-Álvaro de Campos, como este saudou a Walt Whitman, saudado também por Allen Ginsberg e Garcia Lorca. Escrever uma ode ao mestre nessa forma literária. É delinear uma linhagem poética. É inserir-se em uma genealogia literária de ruptura.

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Publicado originalmente no Projeto Editorial Banda Lusófona, em maio de 2011.


14 A ruptura se inicia com a versificação. Versos livres e longos. Ode a Fernando Pessoa à maneira das grandes odes de Álvaro Campos. Versos no ritmo voraz do pseudônimo que tomava o poeta lisboeta de assalto em acessos de possessão, de escrita febril, compulsiva e convulsiva. O virulento tremular da pena violenta, arrebentando em Pessoa um ente-de-letras incontrolável, impulsivo que destronava até seu próprio criador. Inventivas noites insones. Contínuas expressões de exaltação: “Ó”. Frequentes aparições do pronome de tratamento “tu” ou “ti”, de utilização literária e formal – escapando até uma expressão do português arcaico: “minh’alma”. Piva faz valer até dos constantes paralelismos nos inícios dos versos, ou no meio deles, com expressões iguais a de Campos em suas odes. Construção similar a “A passagem das horas”, “Ode marítima”, “Saudação a Walt Whitman”. Poesia de ruptura, com raízes bem conhecidas. Barbas longas e livres do velho Whitman, com o vento da liberdade a soprar em seu corpo nu deitado sobre folhas de relva. Verso criado em estado de transe, a livre associação de ideias em pensamento veloz, com ritmo definido pelo pulsar do corpo e na medida da respiração. Ouve-se também o Uivo e seus relatos entusiastas de situações subversivas, além de grande influência do Ginsberg de América. A oralidade da linguagem das ruas, as gírias, os impropérios, também marcam um vocabulário ultrajante com palavras libertas que vibram gesticulando malcriações. Ora, a forma de Ode contrasta bastante com as experimentações narrativas características do conjunto da obra de Piva. Os versos fragmentados, entremeados de glossolalias em Piazzas, e, principalmente, a prosa poética sucedida de poesias em Coxas que cria uma “meta-ruptura” na relação espaço-tempo no âmbito da narrativa moderna31.

Contra as responsabilidades pelas sensações No início do poema, Piva evoca o Campos da “vida triste passada em Lisboa”. O poeta decadente e pessimista, em seus despudorados balanços de vida, com todas suas vilezas e fracassos. São solilóquios loquazes em carne viva.... deixando as vísceras ali espalhadas no résdo-chão, em qualquer vão, para todos verem. Esse Campos dos longos exames de consciência, beirando a culpa e despertando amiúde a piedade, não é o poeta apropriado por Piva, mas sim o poeta sensacionista: “Ó Mestre da plenitude da Vida cavalgada em Emoções”. A afirmação da vida sedenta, o pulular de sensações amorfas e desregradas, desesperadas pela aventura de evadir-se e transbordar-se no mundo. O fluir ininterrupto em meio ao desconhecido. Daí a fúria contra as amarras que procuram atenuar seu voo. As convicções não devem durar mais que um estado de espírito. É a liberdade de vagar, sem ideias fixas: o vadiar descompromissado. Poesia do alto-mar. Em lugar das convicções temos inquietações mais ou menos indeterminadas. Confusão, inexatidão, incerteza: “Sempre essa inquietação sem propósito, sem nexo, sem con- /

31

WILLER, Cláudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. Em: Um estrangeiro na legião, Obras reunidas volume 1. (organizador Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 144-183.


15 [sequência] / Sempre, sempre, sempre / Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma”32. A mesma frase apropriada por Piva na Ode: “Sei que não há horizontes para a minha inquietação sem nexo”. A labilidade, a infindável busca pela intensidade das experiências. É a afirmação da vida contra toda forma de controle social. A sensação é antagonista da responsabilidade, deveres, obrigações e horários. Piva retoma este tema de diversas maneiras: “Alimentar o resto da vida com uma hora de loucura, mandar a merda todos os deveres”, ou mesmo em sua imagem de Campos como “o desengajado, o repentino, o livre”. O entregar-se às emoções de maneira ininterrupta, mergulhado na torrente das sensações difusas, traz uma vontade megalomaníaca de fundir-se a tudo e a todos. A vivência do excesso: “Em mim e em Ti todos os ritmos da alma humana, todos os risos, todos os olhares, / todos os passos, os crimes, as fugas, Todos os êxtases sentidos de uma vez, / Todas as vidas vividas num minuto Completo e Eterno, / Eu e Tu, Toda a Vida!”. A mesma busca desesperada observada em várias passagens de Campos, como por exemplo: “Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo”33. O elemento do excesso é a fúria. Em sua Ode Marítima, Campos leva ao extremo essa violência em sua adoração aos piratas. Aqui a fúria se traduz em transgressão, criminalidade, facetas bastantes características da poética delinquente de Piva, cuja erupção passa ao largo dos interditos e convenções sociais. O Álvaro de Campos de Piva é um “grande indisciplinador”, que fomenta a desobediência, cujo canto é de “libertação”: “Da Grande Vida de aventuras marítimas salpicada de crimes, / Da grande vida dos piratas, Césares do Mar Antigo”. A figura do pirata ilustra bem a figura de sujeitos selvagens que vivem matando, roubando, torturando, proliferando uma série de crueldades. Os Césares com quem Campos perdeu a “noção de moral” e “civilidade”: “Ah, os piratas! Os piratas” / A ânsia do ilegal unido ao feroz / A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis”34. Piva encarna bem essa faceta futurista de Campos: “Amor feito a força com toda Terra. / bacanal em espuma e fúria”. Em ambos a virulência de uma poética sensacionista, irresponsável, embriagada pela ferocidade selvagem e vomitando atrocidades.

Vozes proibidas / vozes dos sexos e luxúrias Se Piva caminha abraçado a Campos, este último também saúda e anda de “mãos dadas” com Whitman, esta “concubina fogosa do universo disperso”. É Campos quem se coloca na linhagem poética orgástica do autor de Folhas de Relva: “Pertenço a tua orgia báquica de sensações-em-liberdade”35. 32

Todas as citações da poesia de Álvaro de Campos são extraídas de: PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (edição Teresa Rita Lopes). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 312. 33 Ibidem, p. 177. 34 Ibidem, p. 120. 35 Idem, p. 148-9.


16 De passagem podemos comentar que o diálogo com Whitman também se dá a partir de Ginsberg. Em Supermercado da Califórnia, o poeta estadunidense encontra seu “mestre da coragem” entre as prateleiras do mercado e indaga: “Aonde vamos, Walt Whitman? As portas se fecharão em uma hora. Que caminhos aponta sua barba esta noite?”36. A relação de Ginsberg com Whitman, que remete a uma genealogia poética e de vida subversiva, é parafraseada por Piva: “Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta noite?”. Assim, a Ode é uma constante conversa com Whitman. Sua barba prefigura aqui e ali, enroscando os fios nas páginas. De Whitman, Piva compactua a poética como subversão do corpo, definição atribuída a Octávio Paz. É o corpo como turbilhão dos desejos, da sexualidade. Com Whitman, Ginsberg e Piva o homoerotismo alcança ares revolucionários. Veja as afirmações do poeta pederasta: “o coito anal derruba o capital” ou sua crença no “golpe de estado erótico”. A Ode está recheada de orgias e bacanais, alusões ao sexo como expressão da liberdade. Numa sociedade moralista e crivada pelo “Suicídio do Corpo” imposto pelo cristianismo, segundo o próprio Piva, a liberdade sexual é bastante fronteiriça do proibido, do criminoso: “Amar livremente mulheres, adolescentes, desobedecer integralmente uma ordem por cumprir, numa orgia insaciável e insaciada de todos os propósitos-Sombra”. O tom de Revolução Sexual que iria caracterizar a década de 1960 é aí antecipado. A expressão da homossexualidade também surge como transgressão: na “Carícia obscena que o rapazito de olheiras fez ao companheiro de classe e o professor não vê” ou mesmo no “amar os pederastas pelo simples prazer de traí-los depois” – aqui com possível alusão a Jean Genet. Poética erótica, imoral, na qual não há freios para o desejo que não cessa de não cessar. Poesia e Orgia. Whitman e sua fusão com as pessoas comuns, personagens urbanos.... suas gírias, gestos, ofícios. Os marginais parecem ser seus prediletos: “Por mim passam vozes proibidas, / Vozes dos sexos e luxúrias.... vozes veladas, e eu removo o véu, / Vozes indecentes esclarecidas e transformadas por mim”37. São putas, escravos, ladrões, deformados, desesperados e delinquentes juvenis.... com os quais o poeta mantém fortes vínculos: “Nenhum pivete é preso por roubo sem que eu o acompanhe, e seja julgado e / condenado”38. Este histórico encadeado à marginalidade, às figuras delinquentes, escoa na Ode: “Resumirei para Ti a minha história: / Venho aos trambolhões pelos séculos, / Encarno todos os fora da lei e todos os desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum louco sexual que eu / não acompanhe para ser julgado e condenado”. Piva leva a fusão da poesia com a marginalidade/criminalidade ao extremo. As famosas frases em entrevistas dão conta de que se a verdadeira poesia é transgressora, é fora da lei, também se liga a outras ações e personagens que constroem suas subjetividades em contínuo conflito com as convenções sociais. 36

GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (tradução, seleção e notas de Cláudio Willer). Porto Alegre: L&PM, 2006. p. 49. 37 WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008. p. 77. 38 Ibidem, p. 105.


17 O próprio Piva diz que gostaria de ser um “gangster”, mas, como não levava jeito para a coisa, passou a escrever poesia que é “uma forma de incentivar o gangsterismo”. De maneira mais direta comenta: “[há] um princípio básico para [se] entender a minha poesia, a palavra criminal. Uma poesia cuja transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a anarquia generalizada...”39. Chega a afirmar que o “Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia”! Na Ode, o poeta gangster vivencia e poetiza diversas situações subversivas, muitas vezes com aberta alusão a atos delinquentes. São crimes, fugas, assaltos, estupros, que lembram em muito a “ânsia do ilegal unido ao feroz” dos piratas de Campos. Veja os versos: “Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pela caixa”, “assaltaremos o Fasano” ou “onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio”. A atividade criminosa revela uma negação incondicional do mundo burguês, suas instituições sociais e moralidade castradora..... Afirma a vida pulsante, o desejo imediato, a liberdade individual que se impõem com violência e intensidade. Uma poética anárquica que cospe violentamente o fogo da desordem. Tal tom subversivo/criminoso tem ojeriza a qualquer forma de controle. Daí frases como “Põe-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser como um raio para vós!”. Já na Antologia dos Novíssimos Piva se colocava “contra os policiamentos interiores e exteriores”. É certo que a poética do urbano, que caracterizará a São Paulo em Paranóia é normalmente atribuída à influência de Mário de Andrade (Paulicéia Desvairada) e Garcia Lorca (Poeta em New York). Porém, estes dois últimos poetas, é sempre bom lembrar, fazem referências diretas a Whitman em sua poesia ao ar livre. Poesia arejada, impregnada dos burburinhos das grandes metrópoles. O estado de vida poético como a fusão da poesia e vida..... como uma existência sempre em movimento, no turbilhão urbano caótico.

São Paulo: “nada de asas, nada de poesia, nada de alegria!”. Mário de Andrade, presença frequente nos primeiros escritos de Piva. O Mário da Paulicéia Desvairada, que abre seu “guarda-chuva paradoxal” no Largo do Arouche e cria sinergia com os espaços e situações da cidade. Mário do insulto ao burguês, do conluio com poetas, moços e loucos que contrariam o puritanismo da cidade pragmática e triste: “nada de asas, nada de poesia, nada de alegria!”. A veia antropofágica de Piva no colorido das expressões populares, informais, de uma brasilidade que marcou o modernismo brasileiro: o “país alegremente Antropófago”; o “adolescente moreno empinando papagaios na América”, a batucada vinda do morro, enquanto ouvem bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo.... o maxixe na Bahia com seus becos e porres. Como bem lembra Ricardo Rizzo, trata-se de um “ritmo prosódico de um Macunaíma”40.

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MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. Em: O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Tranversais). p. 241 e 246. 40 Revista Agulha, n. 49, 2006.


18 Até hoje o poeta antropófago autografa seus livros com um carimbo do “gavião de penacho”, referência ao Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade – como se lê na entrevista à Marco Vasques41. A cidade de São Paulo de Piva – apropriada pela frase de Mário sempre citada: “as luzes do Cambuci pelas noites de crime” – é toda a vida que se move no subterrâneo, nos interstícios, distante do controle social. Justifica tudo o que foi dito aqui sobre a transgressão como víscera da poesia piviana. A nomeação dos locais, parques, praças, ruas da cidade segue uma trilha aberta pela Paulicéia Desvairada. Porém, seu tom mordaz e pungente revela que se poetiza o que se vive. A cidade do poeta/transgressor é permeada pelas vielas, bares, becos, subúrbios. Nela os “vagabundos tenebrosos” encontram-se, numa hemoptise de personagens transgressores: os “descabelados com gestos de bailarinos”; as meninas que abandonam o sono das famílias; os adolescentes iletrados nos parques, as putas, os bêbados e todos os desconhecidos. É o palco onde se encontram todas as pessoas indecentes: “Vamos percorrer as vielas do centro aos domingos quando toda a gente decente dorme, e só adolescentes bêbados e putas encontram-se na noite”. Se ainda hoje tais versos soam sublevadores, o que dirá na época em que foram escritos. É Willer quem relata o espanto e repúdio com que as primeiras poesias de Piva foram recebidas pela provinciana cidade de São Paulo, uma cidade moralista, fechada, regrada, puritana. O espanto intercalado ao silêncio da imprensa, pois era impensável uma literatura excitada pelo erotismo, transpirando palavrões. Havia pouco, o Uivo de Ginsberg foi recolhido das prateleiras, o gerente da livraria preso e a obra perseguida em longo processo judicial Na comemoração de seu quarto centenário, os paulistanos orgulhavam-se de seu Parque Industrial, de seu progresso, de seu futuro. É neste contexto que Piva constrói uma originalidade poética com grande toque de sarcasmo. Desfile de escárnios provocadores e chistosos. Todo o mundo oficial é francamente satirizado. O pai do racionalismo tecnicista tem sua célebre frase ridicularizada em cômica paródia: “Descartes tomando banho-maria, penso logo minto, na cidade futura, / [industrial / e inútil”. O humor elevado à categoria de sátira, goza das autoridades, instituições e situações convencionais. Trata-se mesmo do tom blasfematório que o próprio Piva atribui a sua poética. Veja o toque ultrajante: “Quero cuspir no olho do teu Governador”. Se a política oficial é agredida, a oposição aspirante ao poder também não tem melhor sorte: “São Paulo.... até seus comunistas são mais puritanos que os padres” As autoridades religiosas, representantes oficiais do cristianismo recebem também seu quinhão no ato de “...chutar os padres quando passarmos por eles nas ruas...”. Nem seus fiéis passam desapercebidos, na conclamação: “Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das manhãs de / setembro]” A universidade, instituição do saber oficial, com seu academicismo tão odiado pelo poeta, recebe uma imagem que denota o quanto reprime os desejos em prol de uma lógica racional onipotente: “Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloqüentes da masturbação /

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Revista Agulha, n. 69, 2009.


19 transferida!” Na mesma linha provocativa e cáustica, mas abusando do non-sense Piva escreverá no ano posterior: “Abaixo as Faculdades e que triunfem os maconheiros”42. A feição mordaz da poética verborrágica lembra em muito a maneira como Ginsberg critica a América em seu poema homônimo: “América.... quando você tirará sua roupa?”43. Na Ode, Piva lança mão do verso: “Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?”. Os “pardos burocratas”, os “mercadores” e demais representantes da ordem não cessam de serem ironizados. Em tom mais furioso o poeta martela a cidade em ruínas: “Ó cidade das sempiternas mesmices, quando te racharás ao meio?” O tom provocador é absolutamente libertário. Incentiva a sublevação por meio de comportamentos anárquicos, em uma atitude política que torna a Ode a Catedral da Desordem na contracultura brasileira. A poesia na qual primeiro jorrou a fonte transbordante de sublevações da jovial década de 1960. Uma poética do amor livre, da orgia, da liberdade sexual. Uma poética subversiva, vivenciada na desobediência sistemática das instituições sociais de controle. Uma rebelião poética furiosa, que estilhaça todas as formas de disciplina e domesticação. Uma poética dionisíaca, pagã, que faz delirar na embriaguez estética da afirmação da vida, da vida em sua diversidade. Poética ditirâmbica, do batuque irracional sentido no ritmo do corpo. Nietzsche colocava como primeira e última tarefa do filósofo “superar em si seu tempo, tornar-se atemporal”. Eis aqui uma poética extemporânea, um poeta póstumo, que desbravou uma vida experimental encarnada pelas gerações subsequentes de outros espíritos livres. Se cabe ao poeta chegar ao desconhecido de seu tempo, eis aqui um poeta vidente, visionário, que abre brechas na realidade e potencializa em cada um outras vidas a serem vividas.

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PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça. Em: Um estrangeiro na legião, Obras reunidas volume 1. (organizador Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1962/2005. p. 132-141. 43 Ibidem, p. 58.



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Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas 44

E se o estupro, o veneno, o incêndio e a punhalada, Não puderam bordar com seus curiosos planos A trama banal dos destinos humanos, É que nossa alma enfim não é bastante ousada. Baudelaire, Flores do Mal

Vede os bons e justos! Quem eles odeiam mais? Aquele que quebra suas tábuas de valores, o quebrador, o infrator: - mas este é o criador Nietzsche, Assim Falou Zaratustra 1. Roberto Piva é direto: a palavra criminal é um princípio básico para se entender sua poesia. Sua poética exala o crime. Por ela ferve um turbilhão assaltos, assassinatos, estupros, incêndios... ora com feições cruéis, em que cabeças são decepadas, em meio a flagelações.... ora como perversões sexuais, à exemplo do oblato com sexo arrancado.... ou mesmo em rituais com feições pagãs, no qual garotos são castrados. Seus personagens são vadios, delinquentes, assassinos, tendo poema dedicado a “todos os garotos rebeldes & depravados”45. Não é apenas a poesia que relata o crime, é poesia feita por criminoso! Em entrevista concedida a Floriano Martins, o poeta paulistano vocifera seu desejo de se dedicar ao crime, andando armado pela cidade de São Paulo, no final da década de 50. Prisão por incêndios, vandalismo e outras depredações. Em outra ocasião volta a afirmar: “Quando era adolescente, eu era um delinquente. Era uma pessoa que vivia absolutamente dedicada às festas, brigas, drogas, e foi muito natural perceber que era dali que se fazia a poesia”46. O poeta-delinquente é claro: sua poesia nasce do crime: “O problema é que eu não consegui ser gângster. Então acabei escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar o gangsterismo”47. Ora, aqui temos uma relação indissociável entre poesia e crime. É poesia sobre crime, escrita por um delinquente, cuja força é de apologia ao crime, incitação à transgressão de qualquer ordem, lei ou convenção social. A poesia mesma é crime. Não se trata de exagero, pois

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Publicado originalmente na Revista Zunai, no Portal de Poesia Ibero Americana e no Projeto Editorial Banda Lusófona, entre abril e maio de 2011. 45 PIVA, Roberto. 20 poemas com brócolis (vol. II, p. 104). Todas as citações da poesia de Piva são extraídas de suas obras reunidas, em três volumes, por Alcir Pécora, publicadas em 2005, 2006 e 2008 respectivamente, pela Editora Globo. Indico a obra, volume e o número da página. 46 COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. O agitador da transgressão. Entrevista concedida a Paulo Mohylovski, em maio de 1987. 47 MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. Em: O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Tranversais). p. 241-258.


22 o próprio Piva destaca: “Uma poesia cuja transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a anarquia generalizada”48. O poeta-bandido procura a desorganização da vida, a instituição da desordem, a abertura violenta de brechas na realidade pelas quais a afirmação da vida subversiva possa jorrar. Quais os sentidos do crime na poética de Piva? Com tal enigma tento aliciar o leitor para fazer-se cúmplice e percorrer o emaranhado de vielas e becos, onde viceja a vida transgressora na poética de Roberto Piva. Nesses subterrâneos encontraremos outros comparsas com os quais Piva foi iniciado na poética criminosa. Encontrando leitores tão audaciosos quanto o poeta, podemos ser até enquadrados no crime de formação de quadrilha!

2. Do delírio ao delito. A história da poesia moderna é a história do poeta contra a sociedade. Considerado louco, miserável, perigoso e criminoso, ele é o solitário desesperado que atenta contra toda ordem social. Piva rememora esta relação desde a consolidação da aliança da moral, da razão e da verdade, com os decadentes Sócrates e Platão, no triste advento da sociedade ocidental. Toda a força da tragédia, a vida como obra de arte na afirmação da existência como fenômeno estético, é substituída pela fraqueza da ética que domestica os instintos humanos mais espontâneos. O poeta como mestre da verdade, o louco possuído pelos deuses em seus delírios poéticos é excluído da República e o Delírio eliminado da teoria do conhecimento. Poetar é agora perigoso: o delírio é delito. A poética de Piva é crivada por esse corte, assim como pelo renascimento da tragédia e a hemoptise do espírito dionisíaco no mundo.

3. Poesia e possessão. O impacto da poética de Dante Aliguieri (1265-1321) foi tão grande em Piva que chegou a dizer: “Eu talvez não seja nada mais do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em completa desordem”49. O poeta punido com o desterro, em suas andanças entre os apaixonantes personagens do Inferno, encontra toda a sorte de criminosos: avaros, hereges, ladrões, assassinos, sodomitas, suicidas, falsários, traidores, bruxos, semeadores de discórdia, etc.. No olor estonteante, no suor das quentes fornalhas do Inferno sem esperança, estava Vanni Fucci, ladrão de Igrejas, que prediz em versos trágicos a derrota dos correligionários políticos de Dante. Ao falar sobre sua poética, o poeta-blasfemo versa: “O assassinato também pode ser a ordem do dia. A blasfêmia e o roubo. Veja o episódio Vanni Fucci no Inferno de Dante. Gíria da pesada de malandro medieval. Mimetismo. Para uma estética [ou literatura] da crueldade”50. Poesia, blasfêmia, roubo e vidência. Heresia e magia. Crime como manifestação política. Mimetismo. Piva se apropria do personagem: toma-o para si, assalta sua identidade. Se o poeta começa sua trajetória como louco possuído por deuses, aqui age como possuidor, usurpador de personagens.

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Idem. Idem. 50 PIVA, Roberto. O jogo gratuito da poesia (vol. III, p. 187). 49


23 Eis aqui a diferença crucial entre os poetas. Se Dante caminha por amor, rumo ao Paraíso, se apiedando dos personagens do Inferno, Piva encarna-os: se faz um deles. Se Dante conduziu Piva ao centro do turbilhão de criminosos, deixou-o lá, solitário e desesperado. Ele não continua a trajetória do florentino ao Purgatório e Paraíso. Sua Beatriz foi esfaqueada num beco escuro. Piva faz poesia para o crime, não sobre ele. Nesse movimento, o próprio poeta faz-se criminoso. É com Villon que ele faz conluio.

4. Vilanias de Villon. François Villon (1431-1463?): primeiro poeta maldito. Órfão entregue aos cuidados eclesiásticos, filho de prostituta. Rasgou com seu punhal as vísceras dos poetas-bobosda-corte e marionetes dos mecenas. Perdeu todas as proteções eclesiásticas e régias, em virtude de seu modo de vida transgressor, traduzido em uma poesia satírica. A partir daí Villon não mais vende sua arte ao mecenas: bate sua carteira! Posso vê-lo, ferido nos lábios pela adaga do inimigo, vagabundeando errante nas tabernas, prostíbulos, a procura de uma trapaça qualquer que lhe renda algum trocado. Envolvendo-se em brigas, como aquela na qual matou um sacerdote. Manipulava a pena com tanta habilidade como seu punhal, praticando a poesia e o crime com a mesma vivacidade. Ao poeta a prisão, a tortura, o desterro, a condenação à forca. Poesia como sinônimo de perigo social. Suas baladas ridicularizam as autoridades civis e religiosas, com tanto sarcasmo quanto descrevem cenas eróticas com sugestivas devassidões. Poesia aqui tem ares de um crime dos mais audaciosos e refinados. Mas as Baladas do bandido ainda são devotas, com pedidos de perdão a Deus e demais rebanhices cristãs – mesmo considerando a época em que foram escritas, sem qualquer anacronismo. Perto da poesia de Piva, as Baladas de Villon são arrependimentos em confessionário. O crime em Piva é essencialmente blasfemo. É no fervor da carne orgiástica que Piva prefere inscrever sua delinquência. É uma poética erótica. Crime, poesia e erotismo: elementos bolinados pelo sádico Marquês.

5. Poesia e apologia ao crime. Coxas pode ser lido como um diálogo com Marquês de Sade (1740-1814). Ou melhor: uma orgia com Sade. Nele, a transgressão é indissociável da livre expressão sexual. Liberdade total dos instintos mais selvagens, culminando em crueldades exibidas sem quaisquer freios. A tribo “Osso & Liberdade”, com suas “blasfêmias eróticas heroicas & assassinas”, é uma experiência contemporânea da Sociedade dos Amigos do Crime, criada pelo Marquês. Se o verbo poético de Piva delira em seu homoerotismo marginal, o Marquês de Sade se presta a fundamentadas argumentações filosóficas entre uma suruba e outra. Para ele as irrefreáveis leis da Natureza imprimem no ser humano o império dos desejos, a efervescência de instintos incontroláveis. Fazendo tudo o que deseja, gozando todas as paixões, o homem não faz senão responder à sua natureza mais essencial. Quaisquer leis ou convenções sociais contrárias a tais desejos não respondem à natureza humana e não devem ser obedecidas. Daí o crime ser uma designação que os “tolos” utilizam para repreender as ações humanas que mais aproximam o homem de seu destino selvagem. Em verdadeiros manifestos políticos distribuídos aos cidadãos republicanos, assim como no estatuto da Sociedade dos Amigos do Crime, Sade defende uma vida coletiva sem leis e sem regulação pela moral cristã.


24 Se Dante descreve e classifica os crimes em três categorias (contra Deus, o próximo e contra si mesmo), Sade se utiliza dessa mesma classificação para legitimar um a um, com astutas e audaciosas citações filosóficas, históricas e antropológicas. Clara apologia ao crime, incitação mesmo do ato delituoso, defendendo a liberdade de sodomia, adultério, incesto, roubo, suicídio e assassínio. Tal visão é marcada pelo extremo desprezo pela vida humana, especialmente pela prepotência do homem em ser o senhor do Universo, quando não passa de um elemento bastante dispensável diante da força da Natureza. Essa crítica severa ao antropocentrismo e toda a tradição humanista influenciou Piva, também por intermédio de Lautreamont e Nietzsche, como veremos adiante. A entrega a todas as volúpias e deleites, a livre expressão de todos os atos sem quaisquer ideias de “leis” ou “crimes”, encontra ressonância em toda poética de Piva, bem como em alguns posicionamentos políticos: “A única forma de salvar o planeta é a selvagização de novo”51. Neste estado selvagem, pode apostar que o erotismo como transgressão ocupa lugar central, tal como em sua ideia de “golpe de estado erótico”, protagonizado por todos poetas, loucos, foras da lei, drogados e rebeldes. Distante do antropocentrismo, da moral cristã e das leis sociais, sua poética junta sexualidade e violência como cerne da relação humana que busca exprimir toda sua vitalidade: “minha poesia sempre consistiu num verdadeiro ATO SEXUAL, isto é, numa AGRESSÃO cujo propósito é a mais íntima das uniões”52.

6. Crime como obra de arte. Ainda em Coxas o poeta-selvagem cita a célebre publicação do comedor de ópio Thomas de Quincey (1785-1859): O assassinato considerado como uma das belas-artes (1827). O grande deambulador vagabundo observa que os registros da imprensa sobre homicídios revelam a enorme criatividade dos assassinos, comparada a de grandes pintores e poetas. Com características de seguidores de Sade, havia um clube de aristocratas dedicados ao prazer do crime. Reunidos se extasiavam em narrar os crimes que cometeram, com suas circunstâncias e premeditações, gerando grande efusão quando os mais originais eram considerados como obra de arte. Se poesia e vida são parte de um mesmo ato subversivo de amor e liberdade, aqui a beleza do crime prescinde da poesia. O próprio delito é belo. A poesia como crime mostra seu avesso: o crime é poético.

7. O criminoso no centro da criação poética na rebelião romântica. Na aurora do romantismo, o impulso antiautoritário vocifera sua fúria na peça Os Salteadores, escrita pelo jovem Schiller (1759-1805), então com 18 anos. O delinquente juvenil Karl Moor, misto de ladrão e herói a lá Robin Hood, exalta a liberdade individual contra as convenções sociais. Encenada em 1782, a peça foi um marco da rebelião romântica, arrancando gritos selvagens da plateia, precipitando desmaios e intenso furor. Seu autor foi punido com prisão e proibição de escrever.

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COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva. Entrevista concedida a Ademir Assunção, em abril de 1991. 52 PIVA, Roberto. Piazzas (vol. I, p. 129).


25 Aqui há uma ruptura da qual Piva é visceralmente continuador. O repúdio ao classicismo com a figura do artista de gabinete que cultua a virtude moral nos marcos de uma cultura conservadora. Uma arte cerebral, impregnada dos bons costumes e do bom senso, limitada no equilíbrio e harmonia da presunçosa razão. É o poeta que não caiu na vida, o brocha, a favor do instinto de morte, submetido aos leões de chácara da cultura e frequentador do chá das cinco, que tanto Piva satiriza. A eles o poeta-bruxo responde com agressividade: precisamos de poetas perseguidos pela polícia! Com o romantismo, o poeta deixa de se ajoelhar à ordem estabelecida, comprazendose com o elemento perturbador, que cinde, fragmenta, desconcerta. O desajustado, o louco, o selvagem passam a ocupar o centro da atividade artística. Em detrimento do bem comum sob qualquer bandeira coletivista, surge a erupção violenta dos desejos individuais. A rebelião romântica foi criada pelo sujeito subversivo. A desobediência incentivada, a ilegalidade exaltada foram marcos de uma poética com feições libertárias. Não era já o crime no centro da criação poética?

8. Corpo elétrico possuído por todos os fora da lei. O jovem pederasta gingando seu corpo ágil em meio à multidão citadina. A fusão com todos os desvalidos, rejeitados e criminosos. Ao final da perambulação, deita suas barbas longas nas folhas de relva, dissolvido na natureza, com seu corpo elétrico entregue ao amor com qualquer desconhecido. Whitman (1819-1892) e sua cumplicidade com os marginais: “Nenhum pivete é preso por roubo sem que eu o acompanhe, e seja julgado e / condenado”53. A poesia aberta às vozes proibidas, como receptáculo de toda sorte de sujeitos que a sociedade se esforça por esconder e eliminar. Esta mesma cumplicidade se torna aguda em Piva: “Resumirei para Ti a minha história: / Venho aos trambolhões pelos séculos, / Encarno todos os fora da lei e todos os desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum louco sexual que eu / não acompanhe para ser julgado e condenado”54. Percebam: trata-se de Piva em sua primeira publicação individual, uma longa tira de papel distribuída nos bares de São Paulo, intitulada Ode a Fernando Pessoa (1961). Aqui, antes de manifestações similares da arte e criminalidade/marginalidade, característica da década de 1960, o poeta já tem delineadas as linhas orientadoras de sua poética de desorientação. Além de Whitman, a Ode embarca Piva no cruel convés dos piratas de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa (1888-1935). Sua cópula criminal, na batida violenta de espuma e fúria, esparrama saques, estupros, violações e demais atrocidades. O poeta-pirata desbravou com estes césares do mar, os recônditos do “ilegal unido ao feroz”.

9. Poesia roubada: criação como apropriação indébita. Os Cantos de Maldoror e a “santidade do crime”. O horror de perversidades e depravações como expressão do ódio inveterado à humanidade e sua moral. A poética criminosa que atrela criação, loucura e maldade de maneira inaudita. É possuído por Isidore Ducasse (1846-1870) que Piva escreve esta atrocidade: “as

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WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008. p. 105. 54 PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa (vol. I, p. 24)


26 nuvens coçavam os bigodes enquanto masturbavas colérico sobre o / cadáver ainda quente de tua filha menor”55. O criminoso como dotado de um “poder superior” se traduz pela monstruosa metamorfose de todos elementos rumo ao caos. A mesma metamorfose se opera em várias direções, coabitando o mesmo núcleo: o crime que subverte a ordem, ao lado da loucura que se apossa do poeta, vinculada à subversão da própria linguagem. Lautreamont expande a afirmação da poética do crime como subversão do real pela poesia. O crime é criação com o roubo, o plágio, a perversa paródia de textos e frases de outros autores. A criação poética é crime autoral. São deliberados furtos de textos, inversão de enunciados e mesmo falsificação de passagens consagradas, criando um sentido novo: metamorfoseado e inusitado. O estudo da intertextualidade em Piva é um grande enigma, entrevisto por diversos estudiosos (vide Cláudio Willer e Marcelo Antonio Milaré Veronese, por exemplo). Vários versos são apropriados de outros autores, com acréscimos de sentidos ou mesmo expansão de criações, como a passagem acima de Whitman-Piva. Não seria novamente o crime como motor da criação poética que move Piva, grandemente influenciado por este Anjo Negro que revolucionou a criação poética? Ou o poeta ladrão encarna com tanta vivacidade o que lê, transforma com tanto vigor a letra em sangue, que já não se sabe bem quem é seu verdadeiro autor? Ou seria, por fim, como Lautreamont: sinal da derrocada da autoria individual, o assassinato do autor?

10. Vidência do grande criminoso: tempo dos assassinos. O grande vagabundo do Oriente, aventureiro do paradoxo, caminhando em andrajos no meio de mendigos, entre abissais porres de absinto. O multiplicador do desconhecido, em seu elemento mais natural: o escândalo – como aquele em que recebe tiro de Verlaine, em uma de suas discussões amorosas. Há poucos poetas como Rimbaud (1854-1891) que conseguiram criar uma poesia tão original e sistematizá-la em método/sistema tão explícito. Em sua famosa passagem sobre o desregramento de todos os sentidos, muito referenciada por Piva, acrescenta: o poeta “se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o supremo Sábio!”. Estes são os toques do inferno que Piva perseguiu em toda sua criação: “O poeta é o violador da língua, das leis, dos comportamentos estereotipados. É o grande doente e cheio de saúde ao mesmo tempo, anunciador de tempestades, ladrão de fogo celeste e aliado dos deuses, bandidos, bandido, bruxo, bêbado, drogado pelo ‘espírito santo’, companheiro de farras do Satã, onipotente, eterno adolescente, macho/fêmea, vidente e grande desequilibrado”56. Sua alquimia do verbo, a sagração da desordem de seu espírito, era já a disseminação da desordem no espírito de seu tempo. Era já o tempo dos assassinos.

11. Poética pagã: ave de rapina que semeia discórdia. O jovem Piva precipitado no abismo. Estupefato e febril. Esta é sua descrição da leitura de Genealogia da Moral. A tresvaloração de 55

PIVA, Roberto. Paranóia (vol. I, p. 48) COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. A quizumba poética de Roberto Piva. Entrevista concedida a Pepe Escobar, em outubro de 1983. 56


27 todos os valores, enxergando com desconfiança tudo o que se considerava bom e enobrecendo instintos dantes tidos como malditos. Piva foi acometido por um profundo impacto: os duros golpes da filosofia do martelo consolidaram no abrasado poeta sua força e intensidade. Sua vontade de poder, o paganismo para além do bem e do mal, sua poética do prazer no destruir. Aqui também a infração no centro da criação, o assassinato necessário para o nascimento do novo: “Viver é... ser continuamente assassino?”, indaga Nietzsche. A perspectiva histórica de Nietzsche (1844-1900) a tudo vira do avesso. O bem-estar, a igualdade, o bem comum e grande parte do que é tido como “bom” passa a ser visto como vergonhoso e desprezível: é a moral do escravo, da negação da vida, que reduz o homem ao ser domesticado e civilizado. Em detrimento da moral do escravo, Nietzsche afirma a moral do senhor: o guerreiro, ativo, audacioso e violento. Seu símbolo é a ave de rapina, que vadia selvagem, rebelde, livre e nômade. Por onde passava deixava seus rastros vorazes de “assassínios, incêndios, violações e torturas”. Mergulhada na aventura, esta estirpe de homens nobres gozava a vida em terrível intensidade e volúpia, dedicando-se a festas e danças, venerando os deuses pagãos que fortaleciam sua liberdade. É a “violência de artistas”: o ato espontâneo de criação furiosa advinda desse instinto de liberdade. Diante do infrator, os operadores da lei se mostram tacanhos: “Raramente os advogados de um criminoso são artistas o bastante para reverter a seu favor o belo horror do seu ato”57. Certa feita, Piva perguntou ao filósofo e amigo Vicente Ferreira da Silva sobre quais os resquícios atuais do mundo pagão, dada nossa dificuldade em sequer olhar de soslaio para esse universo. Vicente respondeu: o erotismo e o carnaval, ao que Piva acrescentou: no candomblé (vide filme Assombração Urbana, direção de Valesca Dios). Hoje podemos sem dúvida colocar na lista a poética pagã de Piva: “Molha a alma no sangue da rebelião / volta a adorar os deuses semeadores de discórdias”58.

12. Metralhadora em estado de graça. Breton mune a metralhadora: “O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for possível, contra a multidão”59. Piva dispara: “Eu sou uma metralhadora em / estado de graça”60. Se não é o medo da loucura que fará o surrealista hastear a meio-pau a bandeira da imaginação – Artaud que o diga! – não é o medo da prisão que o fará hastear a bandeira da agressividade a meio-pau. Roberto Piva respondeu à altura a incitação surrealista da intensidade da vida sob a forma da violência. Sua bandeira não mais tremulou no mastro, mas extrapolouo, vadeando solta pelo ar tal como aquele papagaio empinado pelo adolescente moreno e antropofágico.

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NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. (tradução Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 1886/2005. p. 66. 58 PIVA, Roberto. Coxas – sex fiction & delírios (vol. II, p. 67). 59 BRETON, André. Segundo Manifesto do Surrealismo (1930). Em: BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (tradução Sergio Pachá). Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 155. 60 PIVA, Roberto. Ciclones (vol. III, p. 75).


28 Mas, parafraseando o Segundo Manifesto Surrealista, Piva também escreve: “em matéria de revolta eu não preciso de antepassados”61. É assim que a poesia criminal de Piva só pode ser entendida como uma revolta pessoal não vinculada a qualquer movimento coletivo, seja artístico ou político. Mas há estilhaços da explosão surrealista na furiosa poesia de Piva, similar ao que ocorreu na geração de “franco-atiradores” do surrealismo português, tal como denominada por Antonio José Forte. Veja a poesia criminal que arde nos dedos queimados de Herberto Helder: poesia contra todos: abriu ele fogo contra o surrealismo?

13. Poética da transgressão: elogio à lei? A presença de Bataille (1897-1962) na poesia de Piva remete à transgressão, à poesia fora da lei. Essa feição de subversão inerente à poesia exala o suor efervescente da liberdade, do desfilar sarcástico do elemento caótico. Liberdade e desordem que dependem, paradoxalmente, da lei e da ordem. O avesso do interdito. O par necessário da proibição: a violação. A existência da lei se justifica pelo prazer da transgressão. Em outras palavras, a lei é apenas um artifício malicioso arquitetado pelo crime para amplificar seu gozo. O crime mais violento, o assassínio e a morte, tudo o que põe a vida em perigo, traz consigo o prazer mais intenso. A vida é tão mais intensa quanto mais rigorosa é a lei que transgrede. É assim que, para Bataille, o “sabor criminal” tem seu prazer alcançado somente no contraste com a virtude, o Bem. Pois este último, com sua moral, lógica e formalismo, não abarca o humano. A aventura humana não prescinde do crime, do irracional, do imoral. Aí está o cerne da poesia: o transe originado do arrebatamento das paixões irresponsáveis. A vivência do crime/transgressão alimenta o jogo da vida como luta e contraste. Se a lei impõe o limite, o crime em Piva é esse movimento de gozar do (com o) limite. Não a vida ilimitada, o que não seria possível, mas levar a vida no limite mesmo do impossível.

14. Tesão pelo crime. Órfão aos cuidados do Estado, rifado em reformatórios e crivado pelas torturas de diversas prisões. O Diário de um Ladrão remonta os vazios da fome, a face indigesta da miséria, o vadiar a esmo do mendigo em andrajos. Piedade? Compaixão? Jean Genet (1910-1986) não as tem para nós. Sua carreira na bandidagem é seu caminho para a perfeição moral, a santidade. Suas peripécias no roubo, na prostituição ou no tráfico, são seus sinais de grandeza. São magia. São poesia. A vivência no mundo do crime por puro tesão. Pois o crime alcança a ignomínia e a turbulência de sentimentos somente similar ao estado que o amor precipita os homens. O erotismo e a vibração trazidos pelo perigo, o gozo que advém audácia, a excitação dos corpos brutais e selvagens dos criminosos. A estes “faustos da abjeção” Genet ofereceu tudo o que tinha de mais precioso: sua homossexualidade e traição. A poética do crime que nos deixa espreitar é criação de um mundo, uma moral e uma estética apartada do “mundo de vocês” – como Genet se refere. Aquilo que a sociedade despreza é motivo de orgulho. Uma moral inversa, ébria de abjeção. Todos os sinais de sordidez, os atos

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COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. Autobiografia, publicada em 1985.


29 mais ignóbeis e monstruosos são signos de vigor moral naquele mundo que “fede a suor, esperma e sangue”62. Genet, grande criminoso e vítima de criminosos, toda uma vida e arte que alcançam no crime sua força de criação. Aqui o crime se equivale a uma “espécie de obra de arte ativa”. O gosto pela pederastia e traição, já presente na Ode; o tesão pelos garotos dos subúrbios, seja os roqueiros que o poeta revelou quando era promotor de shows, seja os jovens alunos que aliciava em sua época de professor nas periferias da cidade, passando pelos seus famosos relatos da sauna gay que frequentava. Como Jean Genet, Piva também não se entregava apenas à poética do crime, mas ao próprio criminoso.

15. Hipsters com cabeça de anjo. Piva e sua transa com a Geração Beat. Perigoso coquetel: juventude, poesia, erotismo e delinquência. A crítica burra aos beats como “iletrados”: sinal de medo. A puritana sociedade norte-americana cagava nas calças em pensar na virulência desse modo de vida transgressor, tachando rapidamente a beat como sinônimo de delinquência juvenil. Ledo engano. Tal associação apenas incentivou mais a juventude ávida da grande aventura, do gozo sem limites, estampado nas vestimentas e comportamentos. O hino desta geração, o grande Uivo, versa as extremas situações sublevadoras: as detenções por porte de drogas; as internações manicomiais; a cabeça estilhaçada no pilar do metrô ao colocar a cabeça para fora do vagão, triste fim de William Cannastra, o mesmo que se gabava de ter mordido um policial na orelha; entre tantas outras. Herói da Beat, Neal Cassady, ninfomaníaco tremulando por sexo a quinhentos por hora. Gaba-se de roubar o primeiro carro aos 14 anos e ter acumulado mais de 500 com pouco mais de 20 anos. A brincadeira de Guilherme Tell, com qual William Burroughs matou sua companheira. A própria expressão beat, atribuída ao delinquente e traficante Herbert Huncke. A poética beat tecida com os fios fortes do crime. Veja Gregory Corso, delinquente criado em orfanatos. Menino de rua que entrou em cana por roubo. Na prisão identificou seu modo de ser com a poesia, decidindo ser poeta. O mesmo Corso que, ministrando oficinas na Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, na Naropa University, criada por Ginsberg, levava os estudantes para “conseguir grana” e comprar drogas. O “aprendizado” da poesia indissociável do crime.

16. Crime e criação. Crime e poesia em Piva: diversidade de sentidos. Poesia sobre o crime, para o crime e pelo crime. O próprio crime e o criminoso como poéticos. A criação poética como crime autoral: assassinato do autor. A espontaneidade criadora levada à intensidade no perigo, na contravenção. Resta ainda dizer algo sobre o crime e a poesia. Vadiar pelos sentidos do crime na poesia de Piva é trilhar alguns caminhos e desconhecer outros tantos. Nesse jogo gratuito daquilo que se revela e do que se oculta, a face do enigma permanece fabulosa, embora com outros traços. Encarar estupefato a esfinge. É disso que se trata. Ser devorado pelo monstruoso leão e alimentar em suas entranhas a beleza do Mistério. 62

GENET, JEAN. Diário de um ladrão. (tradução Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda). Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1949/2005). p. 16.


30 Aos viajantes vagabundos, alguns enigmas. Que relação há entre as investidas de Piva e as figuras anti heróicas do modernismo brasileiro, especialmente sua fornicação com Macunaíma e as “luzes do Cambuci pelas noites de crime”? O que dizer da década de 1960, que teve na criminalidade/marginalidade seu espaço transgressor de experimentação e criação de uma arte que espancou furiosamente os valores burgueses e a primazia do mercado? Pense nas figuras subversivas do Cinema Novo com seu elogio ao banditismo no cerne da formação cultural brasileira. O tremor da terra em transe ou a transa de Deus e o Diabo na terra do sol. Ou mesmo os anjos do cinema da Boca do Lixo, ambiente que Piva frequentou e sobre o qual escreveu, com seu elogio ao sexo, crime e malandragem. Já no final de 60 vemos, como exemplo, o “Bandido da luz vermelha” (Rogério Sganzerla, 1968) e o polêmico “Matou a família e foi ao cinema” (Júlio Bressane, 1969). Isto para não dizer dos mais recentes bandidos no cinema: Lúcio Flávio (1977) ou Madame Satã (2002). Nas artes plásticas o marginal e anárquico Hélio Oiticica alia de maneira explícita o heroísmo à bandidagem em sua “Homenagem a Cara de Cavalo” (1966). Na defesa da violência como revolta, jamais como opressão, grita: “O crime é a busca desesperada da felicidade autêntica, em contraposição aos falsos valores sociais”. No teatro, pense em “Dois perdidos numa noite suja” (1966), de Plínio Marcos, ou no polêmico “O Balcão” (1969), com a presença do próprio Jean Genet acompanhando os trabalhos de Ruth Escobar. A presença da malandragem na música brasileira é sacanagem. Tal como o ambiente de libertação do jazz norte-americano (penso em sua relação com os beats), o samba e suas ramificações dão conta de traços de criminalidade inerentes à nossa tradição musical. Veja, por exemplo, os audaciosos versos de Wilson Batista (Lenço no Pescoço, 1933): “Meu chapéu de lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio”. Bezerra da Silva, as homenagens ao malandro por Chico Buarque, na música e no teatro, e por aí em diante. Até no âmbito da luta política: veja a proliferação das guerrilhas de esquerda durante essa década. A gênese do próprio Comando Vermelho tributário dos manuais de guerrilha urbana. Na poesia, literatura, cinema, teatro, música e artes plásticas, especialmente na década de 1960, crime e criação artística são cúmplices inveterados. Se Piva não teve um papel pioneiro nessa cumplicidade, pelo menos participou ativamente do processo. Seria a década de 60 o ápice da “criminalização” da arte ou da estetização do crime? Qual papel teria tido a poética de Piva nesse contexto? E o que podemos dizer do momento atual, em que Piva via a massificação da criminalidade em torno dos valores burgueses? Se Piva não foi marginal, mas marginalizado, tendo sua poética criminalizada pela sociedade de então, fez dessa criminalização o combustível de sua criação poética. Mas sua poética do crime não possui apenas esse lado reativo, de contra-golpe: “Delinquência sagrada dos que vivem situações-limite / É do Caos, da Anarquia Social que nasce a luz enlouquecedora


31 da Poesia / Criar novas religiões, novas formas físicas, novos anti-sistemas políticos, novas formas de vida / Ir à deriva no rio da Existência”63. Não apenas o crime como criação artística, mas como invenção de novas formas de vida. PS: Alcir Pécora entende que a poesia de Piva precisa de mais estudo e menos torcida, mesmo tendo o próprio poeta incentivado o leitor a verter em sangue sua poesia, além de entender que uma pesquisa acadêmica mataria sua virulência. Dilacerar a pena no próprio corpo e escrever com a tintura do sangue ainda fresco das experiências pessoais subversivas, como fazia Sade, talvez seja um caminho.

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PIVA, Roberto. Manifesto da selva mais próxima (vol. II, p. 149).



33

A poética de Roberto Piva nos Manifestos de 196264

Roberto Piva experimenta uma vida poética radical. Seja pela insurreição constante contra toda e qualquer autoridade, seja afirmação da vida subversiva encharcada de sexo, drogas e crimes, é essa poética o vórtice seminal de sua criação. É essa poética transgressora que encantou jovens gerações de novos poetas e foi responsável pela boa recepção da poesia de Roberto Piva: seja pelos chamados “poetas marginais” da década de 1970; seja pelos rebeldes & malditos em torno da editora L&PM, nos anos ´80; seja pelos selvagens da Revista Azougue, na década de 1990. Em diversos momentos de sua produção literária, o próprio Roberto Piva se debruçou sobre sua poética. Materiais como Postfácio de Piazzas (1964), A Política Poética (1979), Posfácio de 20 poemas com brócoli (1981), ou manifestos da década de 1980 (“Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio”, 1983) e 1990 (“poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase”, 1997) são grandes exemplos. É uma poética cravada na fusão entre arte e vida que irradia especialmente para os aspectos eróticos, políticos e místicos. Em todos eles, os volteios de uma verve criativa enraizada numa constante re-criação do fazer poético. Re-criação esta advinda de uma leitura crítica do contexto histórico e atenta ao papel do poeta na sociedade contemporânea. Daí ser a poética subversiva dos temas mais contagiantes em Roberto Piva. O marginal Chacal, por exemplo, comenta o entusiasmo de sua geração pelo “comportamento transgressor” de Piva65. É o mesmo aspecto ressaltado na apresentação da Antologia Poética de 1985, em que Roberto Piva é considerado “o mais indômito, o mais rebelde e um dos mais inspirados poetas brasileiros das últimas décadas”66. Neste mesmo ano, Bonvicino diz que Piva veio para “reinaugurar a utopia da própria poesia. Da poesia libertadora, que sai do papel para ter existência real no dia-a-dia humano”67. Além da recepção criativa por gerações de poetas mais jovens, elementos da poética de Roberto Piva também serão dos mais estudados em pesquisas científicas, a exemplo de Carlos Felipe Moisés68, em seu Vida Experimental, e da recente pesquisa de Fabrício Clemente69, intitulada “Estilhaços de visões”. Os manifestos nomeados “Os que viram a carcaça” são os primeiros registros desta poética. Eis o convite: percorrer os Manifestos de 1962 no contexto do primeiro esboço da poética de Roberto Piva. Para tanto, utilizarei as próprias referências que o poeta evoca em

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Publicado originalmente no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, 13. ed., jun. 2015, pp. 139-177. 65 COHN, Sergio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007. p. 102. 66 L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 1985. 67 BONVICINO, Régis. O boêmio Piva não tem papas na língua. Folha de São Paulo, 02.06.1985. 68 MOISÉS, Carlos Felipe. Vida experimental. Em: ______. O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001. pp. 301-320. 69 CLEMENTE, Fabrício Carlos. Estilhaços de visões: poesia e poética em Roberto Piva e Claudio Willer. Dissertação de Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.


34 intertextos mais ou menos explícitos. Discuto, ainda, a experiência do poeta com o “manifesto” como gênero literário, bem como seus ecos coletivos – pois se fala no plural (“nós”). 1. Bílis, bules & bolas O Teatro de Arena era um dos pontos de encontro da juventude paulistana no início da década de 1960. Havia um espaço no teatro para debate de ideias, recitação de poemas e demais manifestações culturais. O jovem Piva toma a palavra. Esbraveja extasiado Bílis, Bules & Bolas, sob aplausos. O manifesto forma um conjunto com textos de março de 1962 que foram rodados nos antigos mimeógrafos e distribuídos em bares e outros locais. Eram “Os que viram a carcaça”, publicados primeiramente na Antologia do poeta organizada pela L&PM, em 1985.

Bílis, bules & bolas Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento. A Vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência. A Vida explode sempre no mais além. Abaixo as Faculdades e que triunfem os maconheiros. É preciso não ter medo de deixar irromper a nossa Alma Fecal. Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito da juventude. Abaixo a Segurança Pública, quem precisa disso? Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a Liberdade70.

O manifesto traz a visão de mundo de um grupo. Não trata apenas de questões artísticas, mas eminentemente políticas. A dissolução e o desregramento contra a consciência. Em dois importantes balanços de sua poesia, os posfácios de Piazzas e 20 poemas com brócoli, Piva irá utilizar a expressão “desregramento” sob influência da famosa passagem de Arthur Rimbaud. É a vidência a partir do êxtase; a sagração da desordem do espírito despido de “consciência” e disperso em forças estrangeiras. Na Carta do Vidente, Rimbaud elabora sua própria poética em texto sobre “futuro da poesia”. Da audácia de seus 16 anos, o poeta francês começa por fazer uma distinção básica: a poesia composta de versos que “ritmam a Ação”, como entre os gregos; e uma poesia ornamental, como mero jogo literário de “funcionários”. Ou seja, uma poesia cultivada na vida e outra como entretenimento cerebral. Rimbaud crava sua poética na vida, pois ser poeta é, acima de tudo, “conhecer” e “cultivar” a própria “alma”. No empenho de “fazer a alma monstruosa”, o poeta lança mão da vidência como atributo daquele que leva uma vida experimental e maldita: Digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente. O Poeta se faz vidente através de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências. Indizível tortura onde ele precisa de toda fé, de toda força sobrehumana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o supremo Sábio!71

70

PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 137. 71 RIMBAUD, Arthur. Carta dita do Vidente. Em: _____. Rimbaud por ele mesmo. (Daniel Fresnot, trad.). São Paulo: Martin Claret, 1871/s.d. p. 109.


35 O poeta-vidente se lança a uma experimentação de todas as forças da vida em seu próprio corpo, não temendo o “sofrimento” e a “tortura”. O poeta se presta à loucura, à doença, ao crime; é chamando para si a esfera do Mal que conquista a sabedoria. É o poeta maldito. A partir da experiência do desregramento, o poeta consegue mudar a vida de sua época, pois “o poeta definiria a quantidade de desconhecido nascendo em seu tempo na alma universal”. Essa importância do poeta o coloca como espécie de arauto dos novos modos de vida, uma vez que “a poesia não mais ritmará a ação; ela estará na frente”72. Em outras palavras, o poeta-vidente se arrisca a experimentar novas possibilidades de viver até então desconhecidas e, exatamente esta experiência, o coloca numa posição subversiva em relação aos seus contemporâneos, mas também à frente de seu tempo. O poeta vive e vê além da moral de sua época. Daí a vidência. A via política da maldição é ousada. No manifesto de Roberto Piva, o desregramento e a dissolução são contrapostos à “consciência” – numa época imersa na política de esquerda baseada no conceito de “consciência de classe” e congêneres. Estar consciente das contradições econômicas e políticas do modo de produção capitalista e agir a favor de uma revolução social era o pensamento em prática. Inclusive aquele de Boal, Guarnieri, Eduardo Alves da Costa e os jovens comunistas do Teatro de Arena. Num momento em que todos apregoavam a consciência de classe via razão crítica e compromisso coletivo, falar em conhecimento pelo delírio e o desregramento de todos os sentidos? A vida não está na consciência. “A vida explode sempre no mais além”. Aqui se retoma novamente a Rimbaud, mas não só ele. É frase similar àquela que encerra o Manifesto Surrealista de 1924: “A existência está além” – L’existence est alleurs73. A partir dela, Breton e companhia travam sua batalha contra a captura do real pelo naturalismo racionalista. O além da vida, seu outro lado, não é fora da vida, mas uma outra possibilidade de viver: a imaginação, o sonho, o suspiro desconcertante do sagrado. É a vida em estado poético, na fusão do real e do imaginário, a verter surrealidades. É a vida como devir do maravilhoso. Daí a rebeldia furiosa. Repudia-se o mundo frio da consciência atolada na razão e na moral que já não vê a eclosão do sagrado: o além, o indefinido, o amorfo, o caótico (ou a “dissolução” e o “desregramento”). Toda associação livre de experiências que não cabe na lógica do princípio de realidade. Mas a frase de Breton se refere à Rimbaud e sua Temporada no Inferno. Ali a “Virgem Louca” narra sua relação com o “Esposo Infernal”: “Ele era quase uma criança... Suas delicadezas misteriosas me tinham seduzido. Esqueci qualquer dever humano para segui-lo. Que vida! A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo. Vou onde ele vai, é preciso”74. O “Esposo Infernal”, este “Demônio”, queria “evadir da realidade” e “mudar a vida” – aí o lema do surrealismo, junto ao transformar a sociedade de Karl Marx. A Viúva fala que está morta para o mundo. Deve-se entender bem essa morte: é esquecer todo dever humano, as leis e costumes do “mundo real”, para viver além. Viver além das convenções conhecidas de sua época, fugir da ditadura desta única possibilidade de realidade e mudar a vida. Daí o inferno, a morte para o mundo. É a morte do cidadão membro da comunidade e todos seus papéis sociais e obrigações

72

Ibidem, p. 113. BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (Sergio Pachá, trad.) Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 64. 74 RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno. 2. ed. (Paulo Hecker Filho, trad.). Porto Alegre: LP&M, 1873/2007. p. 51. 73


36 morais. Com a morte desse sujeito social surge a mudança da vida. É a morte com feições iniciáticas, pois pare o novo homem e o novo mundo. É assim que o “Esposo Infernal” evade da realidade para viver como seus ancestrais: em rituais arcaicos de incisões no corpo e do sangue sorvido. É assim que evade do mundo com sua moral e berra como um louco nas ruas, desfila “delírios grotescos” e anda com a “aura do crime”. Os esquerdistas de plantão dirão: esteticismo! Escapismo! Estão cobertos de razão. Razão: quem se importa com ela? O quebra-quebra dos surrealistas nas organizações revolucionárias dão a medida da dificuldade de conciliar os desregramentos de Rimbaud com a revolução inspirada em Marx. Mas essa é outra questão... O manifesto segue-se com um sarro às instituições oficiais de ensino e suas respeitáveis profissões. “Contra” elas o “espírito da juventude”. A aposta no não-oficial, no ilegal, no subversivo, simbolizados pelos “maconheiros”, é forma de expressar as angústias da juventude pressionada pelos controles da educação e do trabalho. Refuta-se não apenas diversas profissões – em passagem que também lembra Rimbaud75 – mas a categoria econômico-política do operariado: o agente da revolução social. Outra força política rechaçada é aquela dos “estudantes” – com reconhecida mobilização revolucionária. Roberto Piva aposta na Juventude, mas não aquela universitária ou ligada às instituições políticas – sejam partidos ou movimentos sociais. Se fica clara a influência de Rimbaud e do surrealismo, deixar fluir a Alma Fecal retoma a dissidência de Antonin Artaud. Aquele mesmo que rompeu com o surrealismo oficial após adesão deste ao Partido Comunista. Aquele mesmo que, na própria opinião de Breton, levou a aventura surrealista às últimas consequências. A alma fecal e a poesia fecal são temas de carta escrita por Artaud no manicômio de Rodez, datada de 6 de outubro de 1945. Trata-se de correspondência com Henri Parisot, sobre os preparativos para a publicação de Viajem ao país dos Tarahumaras, em que Artaud fala de sua experiência corporal e mágica que denomina “poesia fecal”:

Sou poeta ou ator não por escrever ou declamar poesias, mas por vivê-las. Quando recito um poema não é para ser aplaudido, mas para sentir os corpos de homens e mulheres, disse corpos, agitarem-se e girarem em uníssono com o meu, transformarem-se como se transforma da obtusa contemplação do buda sentado com pernas cruzadas e sexo livre, à alma, isto é, à materialização corporal e real de um ser integral de poesia [...] Este século não compreende a poesia fecal, o intestino miserável, aquilo que, Madame Morte, desde o século dos séculos sonda as colunas da morte, sua coluna anal da morte, no excremento de uma sobrevivência abolida, cadáver também de seus eus abolidos, e que pelo crime de não ter podido ser um ser, tem que cair para se sondar melhor o ser, neste abismo da matéria imunda e, aliás, tão gentilmente imunda onde o cadáver da Madame Morte, da madame uterina fecal, madame ânus [...] O corpo diz, enterrado de ser: a alma cai, fecal como um excremento, e se amontoa em seu excremento. [...] Eu sou cu, disse o homem da vida para significar o que está no fundo de sua morte, que o prateado do espelho de sua alma é um abismo atravessado por ele. [...] Viver 75

“Padres, professores, advogados enganam-se me entregando à justiça. Nunca fui deste povo, nunca fui cristão; sou da espécie que cantava no suplício; não conheço as leis; não tenho senso moral; sou um bruto”. Uma Temporada no inferno, op. cit., p. 31.


37 é eternamente sobreviver remoendo seu eu de excremento, sem nenhum medo de sua alma fecal, esta força faminta de sepultamento 76.

Eis o “abismo da fecalidade” de Artaud. O último trecho conclama a se viver sem medo da “alma fecal”, passagem parafraseada por Roberto Piva em Bílis, Bules & Bolas. O que vem a ser essa “alma fecal”? Em primeiro lugar: ser poeta é viver poesia. Senti-la contagiar os corpos e liberar toda a energia sexual e mágica. Essa poesia corporal é interditada pela sociedade e morta. É a poesia sexual descartada como excremento, defecada pela alma; o devir do corpo em morte rejeitado pelos séculos a fio. A rejeição do corpo o torna matéria imunda do excremento, a alma fecal; a rejeição da poesia vivida sexualmente a torna poesia fecal; e a rejeição do poeta o torna louco trancafiado em manicômio. A poesia corporal lida com essa matéria rejeitada: poesia fecal. O poeta se lança nessa matéria imunda, nos devires do corpo, e daí sonda melhor a vida. A passagem pela morte é via mágica de renascer para nova vida. Artaud aceita o peso do corpo, o peso de seu devir em morte, mas não o peso do medo. Daí a passagem: “sem nenhum medo de sua alma fecal”. Ou seja, deixando eclodir toda a potência do corpo, toda a potência sexual da poesia. Roberto Piva e seus amigos experimentam essa poesia vivida como contágio sexual dos corpos. Sem o medo das pulações do corpo, sem medo da repressão social, sem medo da maldição ao poeta. Por fim, a palavra de (des)ordem: “Abaixo a Segurança Pública” denota um traço forte de anarquia. Ou seja, ao refutar as bases políticas da revolução social colocam-se as coisas sob modo anárquico. Anárquico, não anarquista. Desorganizados e livres. Aqui a tacada final. Desorganizados: sem participar da instituição do partido, do movimento social, do movimento artístico. Combate-se, assim, outra base importante dos partidários da luta de classes: a organização popular. Se o caminho marxista da consciência de classe e organização popular é criticado, o objetivo moderno da Liberdade é mantido. Alguma semelhança com o lema surrealista: “Amor, Poesia e Liberdade”? Alguma semelhança com a identificação entre poesia e orgia (ou entre gozo e vidência), que forma o ponto seminal da poética de Roberto Piva em Piazzas e sua poesia como “Libertação Psicológica & Total”? Chama atenção no texto sua composição plagiária a partir de colagens. Cada frase se abre a presença de intertextos, num verso ventilado por outras leituras. É característica marcante não apenas dos Manifestos de 1962, mas de toda produção poética de Roberto Piva: radicalmente vivida e abertamente erudita. Exatamente por fincar raízes radicais na poesia como forma de viver, manifesta-se uma visão de mundo e um modo de ser. Um modo de ser dissidente no âmbito do contexto político da época, em especial com relação às formas mais comuns de enfrentamento dos dilemas do contexto histórico. A partir da leitura crítica da realidade, se aposta no delírio; a partir da crítica à consciência, se aposta no desregramento; a partir da crítica às instituições políticas, se aposta na desorganização deliciosa.

76

ARTAUD, Antonin. Lettres de Rodez. Em: Oeuvres completes, v. IX. Paris: Gallimard, 1945/1979. p. 161163.


38 2. As “bordadeiras de poesia” & os dilemas da “geração 60”.

Minotauro dos minutos Os pontos cardeais dos nossos elementos são: a traição, a não-compreensão da utilidade das vidraças, a violência montanha-russa do Totem, o rompimento com os labirintos e nervuras do penico estreito da Lógica, contra o vosso êxtase açucarado, vós como os cães sentis necessidade do infinito, nós o curto-circuito, a escuridão e o choque somos contra a mensagem lírica do Mimo, contra as lantejoulas pelos caracóis, contra a vagina pelo ânus, contra os espectros pelos fantasmas, contra as escadas pelas ferrovias, contra Eliot pelo Marquês de Sade, contra a polenta pelo ragu, nós estamos perfeitamente esquizofrênicos, paranoicamente cientes de que devemos nos afastar da Bandeira das Treze Listas cujos representantes são as bordadeiras de poesia que estão espalhadas por toda a cidade77.

Minotauro dos minutos traz a imagem mítica do monstro associado ao tempo que escorre. A um tempo que escorre e nos assalta, nos devora, naqueles penicos estreitos da Lógica. Nos devora nas responsabilidades, no trabalho, na família. As instituições de sequestro que linearizam um tempo a ser destinado à conservação da ordem estabelecida. Trata-se de um manifesto que enfoca a questão artístico-literária, em especial a crítica ao contexto literário da época e suas “bordadeiras de poesia”. “Os pontos cardeais dos nossos elementos...” retoma famosa frase do Manifesto Futurista de 1909: “A coragem, a audácia e a rebelião são os elementos essenciais de nossa poesia”78. Os futuristas e seu ímpeto furioso de destruição das velhas instituições. Mas os pontos cardeais dos paulistanos destroem de início o vínculo a um projeto estético comum: a traição. Colocam de cara um elemento imoral, também presente na Ode: “amar os pederastas pelo simples prazer de traí-los depois”. Mas é também um elemento cardeal na moral de criminosos como Jean Genet: “A traição, o roubo e a homossexualidade são os assuntos essenciais deste livro”79. Em seu Diário de um ladrão, o poeta e bandido enaltece a traição como valor fundamental na vida do crime, pois concretiza a autonomia de cada ladrão e sua insubmissão a qualquer moral coletiva. Em Genet a traição vem atrelada ao amor: “A traição é bela se nos faz cantar. ‘Trair os ladrões não seria somente reencontrar-me no mundo moral’, pensava eu, ‘mas ainda reencontrar-me na pederastia”80. A traição é o ponto da liberdade de amar a partir da transgressão da moral que se impõe ao amor – “trair significando romper as leis do amor”81. Como ponto cardeal de um grupo, a traição enfoca a insubmissão individual e a criação de um modo de vida particular. Novamente aqui o manifesto repudia a organização coletiva em nome do individualismo, mas agora associado a uma característica de ladrões. É no bando de criminosos que o grupo encontra o exemplo para sua deliciosa desorganização.

77

PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 135. MARINETTI, Fillippo Tommaso. Manifesto futurista (1909). Em: BERNARDINI, Aurora Fornoni (org.). O futurismo italiano: manifestos. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 32. 79 GENET, Jean. Diário de um ladrão. (Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1949/2005. p. 151. 80 Ibidem, p. 26. 81 Ibidem, p. 133. 78


39 Se trai e se quebram vidraças, atitude tipicamente subversiva de esculhambação. Mas também se quebram as redomas de vidro que encarceram as pessoas e suas ideias. Se quebram vidraças para ventilar os espaços. A “violência montanha-russa do Totem” pode ser uma primeira menção ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade: “Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em Totem”82. Aqui Roberto Piva e comparsas se propõem ao movimento violento do Totem que destrói o instituído e flui na criação. É também uma aproximação do grupo à “revolução caraíba”. Romper o tabu, o patriarcado, a exploração burguesa, a hierarquia familiar, o valor do trabalho e demais apanágios da civilização, a favor do totem, do matriarcado, do ócio, da liberdade sexual – similar às comunidades tribais que viviam em Pindorama antes da colonização europeia. A vida rompe com as especulações metafísicas e peripécias da lógica: “Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós” – diz o mesmo manifesto de Oswald. É o próximo elemento de Minotauro dos Minutos: “o rompimento com os labirintos e nervuras do penico estreito da Lógica”. Muito embora a formulação de Roberto Piva caiba bem no contexto de crítica à lógica pelo movimento antropofágico, os termos trazem semelhanças com os manifestos de Antonin Artaud do período surrealista, como a “Carta aos Reitores das Universidades Europeias” – publicada no terceiro número de 1925 da revista La Révolution Surréaliste:

Senhores Reitores, Na estreita cisterna que os Srs. chamam de ‘Pensamento’, os raios espirituais apodrecem como palha. Chega de jogos da linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu [...] Em nome da vossa própria lógica, voz dizemos: a vida fede, Senhores. Olhem para seus rostos, considerem seus produtos. Pelo crivo dos vossos diplomas passa uma juventude abatida, perdida83.

A universidade, a ciência e sua lógica contra o Espírito, a juventude – passagem similar ao “espírito da juventude” do manifesto Bílis, Bules & Bolas. A estreita cisterna (citerne étroite) do pensamento que não alcança o labirinto do espírito e suas nervuras. Roberto Piva utiliza as mesmas palavras com significado similar: romper com os volteios falsificadores e superficiais da vida coberta de razão. O voraz Rimbaud mata a questão em uma frase: “É a visão dos números. Vamos ao Espírito”84.

82

ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico. Em: ______. A utopia antropofágica: antropofagia ao alcance de todos (vol. 6, Obras Completas). São Paulo: Globo livros, 1928/1990. p. 48. 83 ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 2728. 84 RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno, op. cit., p. 25.


40 A partir daí, Piva lança mão de expediente comum aos manifestos Dada de Tzara e ao Manifesto Antropófago de Oswald: contra algo por outro. São séries de oposições que demarcam claramente o famoso “nós contra eles”. É uma ruptura intransigente com a tradição, que se faz valer mais da sátira e da cólera que da precisão. Se por um lado tal procedimento acaba por criar uma dicotomia insuperável, refletindo o maniqueísmo presente naqueles tempos; por outro, ressalta a necessidade desesperada de distanciar-se de valores estabelecidos como via de acesso a novas formas de vida e expressão. É nessa ruptura temporal (contra a tradição do passado) e espacial (contra os modos de vida convencionais do presente) que o manifesto beira aspirações vanguardistas – daí seu diálogo com manifestos das vanguardas do início do século XX. Contra o “vosso êxtase açucarado” talvez seja menção ao Manifesto Futurista quando critica a literatura de exaltação da “imobilidade pesarosa, êxtase e sono” em favor da “ação agressiva.... o salto mortal, o soco e tapa”85. Essa arte das obras encarceradas pelos muros da contemplação – no extremo oposto da poesia vivida em Artaud ou do lema surrealista de “praticar a poesia”. O êxtase açucarado caía muito bem para parte da produção da poesia brasileira da época, especialmente a metafísica epifânica dos rilkeanos. Bem diferente do êxtase dionisíaco, por exemplo, cravado na dissolução do eu, no terror, no violento, no grotesco. A imagem dos cães com sede do infinito vai nesta mesma linha – em diálogo com Lautreamont. Infinito como abstração, como aspiração metafísica de iluminação contrária a elementos terrenos e finitos: “curto-circuito, a escuridão e o choque”. No primeiro Canto de Maldoror, o clarão da lua assiste cães furiosos que rompem suas correntes e caminham enlouquecidos pelos campos. Exaustos, na soleira da morte, passam a uivar em desespero contra tudo: “contra a lua, contra as montanhas... contra o ar frio... contra o silêncio da noite”86. E voltam a correr tomados pela raiva, espalhando o medo em todos outros animais. Ao fim, “...os cães, exaustos de correr aqui e ali, quase mortos, a língua de fora, precipitam-se uns sobre os outros, sem saber o que fazem, e se estraçalham em mil pedaços, com uma rapidez incrível”87. É então que Lautreamont apresenta a seguinte passagem: Um dia, com os olhos vidrados, minha mãe me disse: “Quando estiveres em tua cama, e ouvires os uivos dos cães no campo, esconde-te sob teu cobertor, não aches graça no que fazem: eles têm a sede insaciável do infinito, como tu, como eu, como o resto dos humanos de rosto pálido e comprido. Até mesmo permito que fiques diante da janela para contemplar esse espetáculo, que é bastante sublime”. Desde então, eu respeito o pedido da morta. Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito... Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta... acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau88.

85

MARINETTI, Fillippo Tommaso. Manifesto futurista, op. cit, p. 32. LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 81. 87 Ibidem, p. 82. 88 Ibidem, p. 82-3. 86


41 Há o contraste dos cães famintos e furiosos da primeira passagem em relação àqueles com sede do infinito em sublime espetáculo. Uma das interpretações desta passagem é pensála como crítica ao humanismo – bem ao modo de Ducasse. Os lobos selvagens se matam mutuamente tamanha selvageria que os incita, passam a ser vistos idealmente com uma sede abstrata do infinito? A negação das necessidades viscerais pelos anseios sublimes. Lautreamont não deixa dúvida: a passagem se conclui com a recusa da filiação humana, da sede do infinito, pela filiação animal e selvagem, aliada a fúria das tempestades ou crueldade dos predadores. Esfacela o ideal sublime pelo apetite carnal mais imediato. Nesses desejos selvagens o lado obscuro do homem. A escuridão, o curto-circuito e o choque. O texto se segue contra a “mensagem lírica do Mimo”. É improvável que Roberto Piva se refira ao Mimo como gênero marginal que se desenvolveu na Grécia e em Roma. A popularidade do Mimo estava vinculada a extrema licenciosidade e sarcasmo de apresentações teatrais que ressaltavam os gestos grosseiros do corpo. Não é o tipo da coisa que Piva repudiava. Minha hipótese é que o poeta mencionava o Mimo num sentido mais vulgar: a poesia oficial como seccional de pequeno-burgueses “mimados”. Mas a dissidente Dada Céline Arnauld também utiliza a expressão “mensagem lírica do Mimo” – no poema Periscópio, publicado na Revista 391, n. 14, novembro de 1920. Periscópio A espada está atolada no lodo tatuado no monte da toupeira casa feita às cegas com a ajuda do violino após o solstício a morte dos cantores das moitas e dos molhos catedrais secas pelas canções Vi e compreendi o erro de toda uma doutrina a mensagem lírica do mimo e a noite se prolonga alegre e eternal nos olhos dos pássaros viajantes Quando as bebidas dos cabarés passam com suas lanternas pela floresta os pássaros roubaram os pedaços de luz e os ocultaram em seus ninhos Indigestão de estrelas intoxicação lunar e festa começa sob o campanário que atravessa o relâmpago em surdina Todos os ninhos eram inflamados e nos olhos se morria o último raio da espontaneidade Enlouquecidos gafanhotos peregrinos se colocavam aos três na borda do crescimento da lua descendo pela simpatia sobre os seios de Argine Ah o mimo falou à espada atolada nas palavras do solstício risonho que vem nascer O basílisco tombou fulminado por seu próprio olhar 89

O poema acompanha os destinos do movimento Dada. Os pássaros viajantes (Dadas de Zurique) a beber nos cabarés parecem se assemelhar aos cantores que secam as catedrais. É imagem que pode ser interpretada como a insurreição Dada em seu emprenho satírico de destruir os ídolos venerados da modernidade (suas “catedrais”). Arnauld vê nesses cantos, contudo, o erro de uma doutrina, a tal “mensagem lírica do mimo”. O lirismo alegre e eternal, na opinião da poeta, ainda encontra eco nas criações Dada. E o poema prossegue com os Dadas de Zurique roubando pedaços de luz e guardando em seu ninho. Esses pedaços de luz trouxeram uma “intoxicação lunar” e acabaram por queimar os ninhos (como a famosa figura da Fênix egípcia). Assim morria o “último raio da espontaneidade”, espontaneidade que era a fonte da insurreição Dada – vide o lugar do espontâneo nos manifestos de Tzara. Essa vontade de eternidade, de iluminação (luz) e elementos celestes (lua), parece ter destruído a espontaneidade do movimento. Daí ser o “mimo” o protagonista quem fala do brasílico (a 89

ARNAULD, Céline. Périscope. 391, n. 14, novembro de 1920. p. 6. Disponível em: http://sdrc.lib.uiowa.edu/dada/391/14/index.htm. Acesso em: 12 març. 2010.


42 serpente mágica) que morre fulminado pelo seu próprio olhar. Morta a espontaneidade, morre o espírito do movimento, ficando apenas a instituição – entendida como a organização regional dos dadaístas no pós-guerra, assim como a instituição poética da lírica mimada. Roberto Piva lança mão tanto da violenta espontaneidade Dada, quanto da crítica de Arnauld à poesia metafísica e seus versos empolados (a “mensagem lírica do mimo”). Aqui é fundamental ressaltar: Piva traz para seu manifesto Arnauld e Artaud, figuras extremamente escandalosas que tiveram a proeza de causar alvoroço em movimentos por si só desorientadores como Dada e Surrealismo. A menção a estes heréticos é sinal bem evidente de que se prefere quebrar vidraças, fazer escândalos e criar dissoluções que construir algo organizado. E os opostos continuam: ora criticando o verso floreado, formal, todo enfeitadinho de lantejoulas, ora com provocação homoerótica: contra vagina pelo ânus. Contra as escadas que levam ao alto, à ascese vertical; pelas ferrovias que conduzem a viagem a outras partes da terra – como a vagabundagem beat. A oposição também toma forma de personalidades: contra Eliot por Sade. Provavelmente o declarado anglo-catolicismo de Eliot esteja em oposição à libertinagem criminosa do devasso francês. A seguir, a loucura: “perfeitamente esquizofrênicos, paranoicamente cientes”. Piva cria uma tensão nos termos, ao qualificar com expressões contrastantes signos da loucura. A esquizofrenia, cravada na cisão e no corte, qualificada como perfeita? A paranoia, normalmente entendida como deturpação do real, como ciente? Nesta época Piva estava criando sua grande obra, Paranóia: poesia sob o signo da loucura e da vidência, do delírio e da crítica. É a loucura em Rimbaud ou Dali – com seu método paranoico-crítico – como uma experiência mais aguda da realidade. Por fim, há importante vinculação da bandeira do Estado de São Paulo às “bordadeiras de poesia”. Com este termo, Roberto Piva desenvolve forte crítica ao contexto literário da época. Inicialmente, parece se referir a poetas do mundo oficial, representantes do Estado. Certamente menção ao constitucionalista Guilherme de Almeida, consagrado com poemas de exaltação do Estado, inclusive aquele lido nas então recentes comemorações do quarto centenário da cidade. O termo satírico “bordadeiras” é um sarro – similar àquele de Oswald ao poeta parnasiano ou de Tzara ao futurista. Mas o “bordado” é figura da crítica de Piva a duas outras características do contexto literário da época: a bordadeira associada ao “chá das cinco”, aos longos bordados e condolências trocados nas “igrejinhas” de poesia daquele período. Mas também o bordado como um trabalho manual que remete a uma maneira formal de trabalhar o poema como uma mercadoria na fábrica – tal era a proposta dos concretistas90. É nessa conotação mais ampla que a expressão surge no manifesto As Fronteiras e Dimensões do Grito, escrito por Claudio Willer em seu Anotações para um Apocalipse (1964). Ao mencionar poetas “a serviço da mediocridade conformista”, Willer nomeia:

90

Os detalhes da crítica de Roberto Piva ao Concretismo como produto da ideologia desenvolvimentista urbano-industrial podem ser visto em: VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. Manifestos do poeta Roberto Piva. Fólio – Revista de Vitória da Conquista, vol 5, n. 1, jan./jun. 2013, pp. 81-105.


43 ... esta fauna de ‘poetas jovens’, de ‘Neo-Rilkeanos’, de frequentadores de salões e participantes de recitais em nigth-clubs, de autênticas bordadeiras de poesia, de travestidos de ‘angústia’ e ‘rebeldia’, de bajuladores de cronistas sociais, representantes da imprensa mundana e todos aqueles que lhes possam oferecer possibilidades de promoção, de sucesso, de satisfação de um narcisismo menor, deste mesmo tipo de promoção e popularidade que constitui a aspiração máxima e a base de toda a atividade dos poetas cívicos e patrióticos à la [Paulo] Bonfim & [Guilherme de] Almeida e, disfarçada por um verbalismo teórico inconsequente, de grupos como o Praxismo e o Concretismo91.

A expressão “bordadeiras de poesia” retrata poetas conformistas em busca de popularidade, incluindo os representantes da poesia oficial patriótica – os mesmos que Roberto Piva atrela à bandeira paulista. No próprio Anotações para um Apocalipse, Roberto Piva escreve a Introdução, na qual especifica, ele próprio, quem poderiam ser as tais “bordadeiras”: “Tôda poesia oficial brasileira, todo êste acêrvo pernicioso-futil de neo-parnasianos, concretistas, marxistas de salão, rilkeanos-lacrimonosos, representa um desejo insaciável de autoridade, de impotência mística, de resignação artificial & patológica diante de uma Sociedade patriarcal & opressora”92. Eis a resignação a autoridades e as convenções poéticas como cerne das principais vertentes da criação poética da época. É sob esta mesma denominação (“Poesia Oficial Brasileira”) que Roberto Piva, no Postfácio de Piazzas, irá criticar os poetas subservientes ao Estado e às instituições da ordem, quando distingue esse “estilo oficial” da “espontaneidade criadora” – numa longa citação de Octávio Paz em seu ensaio Poesia, sociedade e Estado. Em síntese, Minotauro dos Minutos recoloca um modo de vida no centro da criação artística, mas agora criticando a poesia oficial brasileira e suas “bordadeiras de poesia”. É rechaçada, ainda, a poesia metafísica e sua “sede de infinito”, com seu lirismo mimado e versos enfeitados com lantejoulas. O tom permanece sarrista e raivoso, trazendo dissidências de movimentos estéticos como fortalecimento da ruptura com qualquer forma de organização coletiva. Sustenta-se uma tensão entre o tom programático afirmativo e impossibilidade de movimento organizado. O manifesto se inspira em movimentos de vanguardas, ao mesmo tempo em que critica a possibilidade de vanguarda. No entanto, a escrita na terceira pessoa do plural dá ensejo para se pensar na feição grupal dos manifestos. Ainda mais porque a recusa as escolas literárias da época é característica do que alguns poetas e críticos consideram ser a “geração 60” ou “geração dos Novíssimos”, da qual Roberto Piva faria parte. O coletivo formado por Roberto Piva, Claudio Willer, Antonio Fernando de Franceschi, Décio Bar, dentre outros, seria espécie de subgrupo pertencente a tal “geração” – opinião reforçada pela participação destes poetas no “Grupo Surrealista de São Paulo”, junto a Sergio Lima, com atividade marcante nos anos de 1963 e 1964. Assim, os Manifestos de 1962, embora redigidos e assinados exclusivamente por Roberto Piva, trariam as

91

WILLER, Claudio. As fronteiras e dimensões do grito. Em: ______. Dias Circulares. São Paulo: Massao Ohno, 1964/1976. p. 104. 92 PIVA, Roberto. Introdução. Em: WILLER, Claudio. Dias circulares. São Paulo: Massao Ohno, 1964/1976. p. 75.


44 opiniões estéticas e políticas desse grupo em gestação. O que dizem aqueles que defendem a existência da “geração 60”? Álvaro Alves de Faria e Carlos Felipe Moisés, poetas e amigos de Roberto Piva neste período, são os principais teóricos da tal “Geração 60”93. Os dois poetas organizaram uma antologia dessa geração adotando como critério o fato de terem sido todos poetas jovens que publicaram na mesma cidade de São Paulo do início dos anos 1960. O foco no conceito de geração advém de Pedro Lyra, crítico que caracteriza uma tal “Geração-60” exatamente por critérios de data e local de nascimento, salientando a vivência coletiva nas mesmas condições históricas como plano de fundo sobre o qual se desenrola a vivência individual. A diferença é que para este último a tal geração seria “a primeira geração verdadeiramente nacional da poesia brasileira...”94, tendo representantes espalhados por quase todo o país. Além dessa dispersão geográfica, Pedro Lyra qualifica a geração pelo sincretismo, pela variedade dos estilos e tendências95. Também Álvaro e Carlos são enfáticos ao afirmar que com o termo geração não designam um movimento organizado em torno de um programa em comum, mas as ressonâncias entre criações poéticas que partilhavam o mesmo contexto paulistano e, em partes, terem sido publicados pelo mesmo editor (Massao Ohno). O fato é que diversos poetas deste período concordam com a existência da Geração 60 ou Geração dos Novíssimos. Antonio Fernando Franceschi, por exemplo, é enfático em falar em características de “nossa geração”96, assim como Claudio Willer menciona a importância de Massao Ohno com a “ousadia de criar uma geração literária”, da qual faria parte97. Carlos Felipe Moisés, no entanto, tende a criticar a Antologia dos Novíssimos exatamente por não possuir um critério claro de inclusão dos poetas e deixar de lado diversos escritores da época. Massao Ohno não tinha a pretensão de criar uma geração literária, tampouco reunir todos os novos poetas paulistanos daquele período. Na entrevista à revista Visão, publicada a 11 de novembro de 1960 (Lugar ao sol para os novos), Massao destaca que selecionava as publicações da coleção privilegiando os autores que “denunciem engajamento no panorama brasileiro, que tomem posição em face da realidade brasileira, e, na medida do possível, explorem as possibilidades nacionais não só no campo da poesia como no da prosa – o que representa uma característica sadia dos movimentos de juventude da atualidade”98. A pretensão do editor é política, não meramente literária. Não o interessava organizar uma geração literária, mas contribuir com a organização política da juventude. Porém, a importância de seu trabalho editorial no lançamento de jovens poetas reunidos sob a pecha de Novíssimos, contribuiu para se pensar em geração literária. Mas nem todos concordam com a existência de tal geração. Roberto Piva (sempre ele!) discorda fervorosamente de ter participado de qualquer geração. E vai além. Na entrevista 93

FARIA, Álvaro Alves de ; MOISÉS, Carlos Felipe. Antologia poética da geração 60. São Paulo: Nankin, 2000. 94 LYRA, Pedro. Sincretismo: a poesia da geração-60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 96. 95 É interessante notar que Roberto Piva não é mencionado como integrante dessa geração, embora se adéque ao “enquadramento” histórico definido pelo autor: nascido entre 1935-55 e estreado entre 195575. 96 COHN, Sergio. Altero todo um ser pois que me movo. Em: ______. Azougue 10 anos. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 35. 97 WILLER, Claudio. Teve a ousadia de criar uma geração literária. O Estado de São Paulo, 15 de junho, de 2010. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,teve-a-ousadia-de-criar-uma-geracaoliteraria-imp-,566617. Acesso em: 20 nov. 2011. 98 Lugar ao sol para os novos. Revista Visão, vol. 17, n. 20, 11 de novembro de 1960.


45 concedida exatamente a Álvaro Alves de Faria, pela rádio Jovem Pan, na ocasião do lançamento do livro 20 poemas com brócolis, quando perguntado sobre a atualidade da geração de 60 de poetas paulistanos, Piva afirma: “Eu não acredito em geração, Álvaro” e chega a qualificar como “burrificação” esta necessidade da mídia e da crítica de sempre rotular o poeta como integrante de um movimento99. É sabido quanto o poeta satirizou as “vanguardinhas de colégio de freiras” as escolinhas literárias e demais agremiações em torno dos chás das cinco. Paradoxalmente, esta controvérsia dá um ponto aos teóricos da geração 60. Ou seja, de tão heterogêneos e plurais discordam até sobre a existência ou não de tal geração. Roberto Piva não pertence a nenhuma geração literária, como afirma. Willer e Franceschi, pertencem. Com ou sem “geração”, houve um grupo de jovens poetas ousados que frequentaram os mesmos bares, livrarias e bibliotecas; fizeram leituras coletivas em ambientes públicos e tiveram um editor em comum. Essas vivências reverberaram em cada um deles e potencializaram suas criações poéticas fortemente particulares. Os Manifestos de 1962 trazem esse traço: denotam aspirações coletivas pela redação no plural (“nós”), ao mesmo tempo em que carregam as marcas indeléveis da poesia e poética bastante particulares de Roberto Piva. 3. Gabinetismo versus poesia fecal A máquina de matar o tempo Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes. Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros, os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorroidas e todos que detestam os sonhos incolores da poesia das Arcadas. Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo as borboletas douradas. Olhai o cintilante conteúdo das latrinas100.

A “alma imortal dos gabinetes” é novamente crítica à poesia de gabinete, expressão muito usada na época: poesia no escritório, com o rabo afundado no acento em frente à estante coberta de livros. Poesia cerebral, sem sangue, sem riscos. Imortal, sem perecimento, sem vida. Poesia de gente séria, careta, cafona. Aqui também há continuidades em relação ao Manifesto Pau-Brasil de Oswald: “Contra o gabinetismo, a prática culta da vida”101. Mas há outros comparsas que detestavam a seriedade: “[o Times Magazine] Está sempre me falando de responsabilidades. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de cinema são sérios. Todo mundo é sério menos eu”102. São versos do poema América, de Allen Ginsberg. E no lugar de toda gente séria, Roberto Piva enumera uma corja bem humorada de personagens avessos ao mundo oficial. Todos os que detestam a poesia da Arcadas – referência aos poetas formados no Largo São Francisco, como Paulo Bomfim. É a poesia enfeitada de “sonhos incolores”, de “lacinhos” e das “borboletas douradas” – e voam tais borboletas em versos de Casemiro de Abreu ou Olavo Bilac. Com outras expressões, Roberto Piva retoma a tal 99

FARIA, Álvaro Alves de. Entrevista de Roberto Piva para a Jovem Pan. 1981. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4HOD3dNCCK4. Acesso em: 10 jan. 2013. 100 PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 139. 101 ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Em: ______. A utopia antropofágica: antropofagia ao alcance de todos (vol. 6, Obras Completas). São Paulo: Globo livros, 1924/1990. p. 42. 102 GINSBERG, Allen. Kaddish e outros poemas. Em: ______. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1961/2005. p. 59.


46 “mensagem lírica do mimo”, opondo à sua ternura, a violência; e às borboletas douradas, o fecal: o conteúdo das latrinas. Piva retoma o tema do fecal, mas agora na cintilação do excremento. Piva era leitor de Swift à época e com certeza havia lido os comentários de Norman Brown sobre a importância dos excrementos em sua obra. Para Brown, a visão excremental de Swift expunha a expressão de um corpo instintivo e selvagem que usava a própria “merda” como “instrumento mágico para auto-expressão e agressão”103. O autor de Vida contra morte aponta que esta expressão corporal do excremento é o oposto de toda sublimação: a expressão mais espiritualizada e embelezada. A sublimação, fonte de toda a cultura, cria um desvio à satisfação mais imediata do desejo sexual, direcionando o instinto às formas socialmente permitidas de satisfação – como a arte. O conteúdo cintilante das latrinas pode ser referência a uma poesia visceral e agressiva, direta e sexual, no extremo oposto da poesia empolada criticada no manifesto. Esta mesma experiência surge no Postfácio de Piazzas: “Contra a inibição de consciência da Poesia Oficial Brasileira a serviço do instinto de morte (repressão), minha poesia sempre constituiu num verdadeiro ATO SEXUAL”104. Como “ATO SEXUAL” a poesia de Roberto Piva se recusa às sublimações abstratas e crava sua verve na carne.

4. Desordem

A catedral da desordem A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras moribundas: “Como são lindos os olhos deste idiota”. Só a desordem nos une. Ceticamente, Barbaramente, Sexualmente. A nossa Catedral está impregnada do grande espetáculo do Desastre. Nós nos manifestamos contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela motocicleta, contra o licor pela maconha, contra o tênis pelo box, contra a rádio patrulha pela Dama das Camélias, contra Valéry por D. H. Lawrence, contra as cegonhas pelos gambás, contra o futuro pelo presente, contra o poço pela fossa, contra Eliot pelo Marquês de Sade, contra a bomba de gás dos funcionários públicos pelos chicletes dos eunucos e suas concubinas, contra Hegel por Antonin Artaud, contra o violão pela bateria, contra as responsabilidades pelas sensações, contra as trajetórias nos negócios pelas faces pálidas e visões noturnas, contra Mondrian por Di Chirico, contra a mecânica pelo Sonho, contra as libélulas pelos caranguejos, contra os ovos cartesianos pelo óleo de Rícino, contra o filho natural pelo bastardo, contra o governo por uma convenção de cozinheiros, contra os arcanjos pelos querubins homossexuais, contra a invasão de borboletas pela invasão de gafanhotos, contra a mente pelo corpo, contra o Jardim Europa pela Praça da República, contra o céu pela terra, contra Virgílio por Catulo, contra a lógica pela Magia, contra as magnólias pelos girassóis, contra o cordeiro pelo lobo, contra o regulamento pela Compulsão, contra os postes pelos luminosos, contra Cristo por Barrabás, contra os professores pelos pajés, contra o 103

BROWN, Norman O. Vida contra morte: o sentido psicanalítico da história. (Nathanael C. Caixeiro, trad.). Petrópolis: Vozes, 1959/1972. p. 225. 104 PIVA, Roberto. Piazzas. São Paulo: Kairós, 1964/1980. p. 55.


47 meio-dia pela meia-noite, contra a religião pelo sexo, contra Tchaikovsky por Carl Orff, contra tudo por Lautreamont105.

Há um clima de batalha. Batalha iniciada pelo incendiário. Depois vem a menção à frase inicial do Manifesto Antropofágico: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”106. Mais que intertexto, Piva parece expor um contraponto. Coloca a desordem no lugar da antropofagia, como um valor mais fundamental. Uma desordem que nos une pelo ceticismo, pela descrença, pela falta de ilusão. Não nos une a partir da captura do real pelo pensamento sociológico, econômico ou filosófico, mas por uma via selvagem mais visceral (barbárie) e erótica. Em outras palavras, a desordem nos une não na perspectiva douta e europeia com sua política-econômica e filosofia, mas pela via corporal e sexual. Ironicamente, Piva utiliza a expressão “bárbaro”, do Manifesto Pau Brasil de 1924, mas não os “bárbaros, crédulos”, mas os céticos (ou incrédulos). Piva radicaliza ainda mais a antropofagia. E a radicaliza pela visão de Pindorama não como matriarcado pacífico do comunismo primitivo, mas como estado anárquico de guerra – sem a ilusão conciliatória das contradições. E logo a seguir vem menção ao Manifesto Dada de Tzara, com sua premente necessidade de dissolução de tudo: Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores, produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. Cada página deve explodir, seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela forma como está impressa. Eis um mundo vacilante que foge, noivo dos guizos da escala infernal, eis do outro lado: os homens novos. Rudes, saltantes, cavalgantes de soluços. Eis um mundo mutilado e os medicastros literários precisando de aperfeiçoamento. Eu lhes asseguro: não existe começo e nós não trememos, nós não somos sentimentais. Nós rasgamos, qual vento furioso, a roupa branca das nuvens e das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a decomposição107.

Aí o elogio de uma arte violenta e desorganizadora – não aquela arte produzida para as massas, com cafunés sentimentais nos representantes da ordem estabelecida. Uma expressão artística que cria novos homens. São estes homens que desmoralizam o mundo e, tirando dele essa roupagem moral, retomam uma roda fecunda de criação. Criação originada pela destruição: “o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a decomposição”. De certa forma, Roberto Piva retoma a crítica ao sentimentalismo e lirismo em poesia, também sob feições Dada. Ao pedantismo sentimental, Roberto Piva, como Tzara, contrapõe imagens agressivas; às aspirações celestes e pacíficas, esparramam as chamas do incêndio (tal como Nero) e o “espetáculo do desastre”. A partir daí Piva retoma a série de oposições. Muitas são vivenciais, simples e unívocas: “contra o futuro pelo presente”, “contra as responsabilidades pelas sensações”, “contra a mecânica pelo Sonho”, “contra o filho natural pelo bastardo”, “contra a mente pelo corpo”, 105

PIVA, Roberto. Os que viram a carcaça, op. cit., p. 141. ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico, op. cit., p. 47. 107 TZARA, Tristan. Manifeste dada 1918. Em: ______. Sept manifestes Dada; lampisteries. Paris: Pauvert, 1918/1979. p. 26. 106


48 “contra o céu pela terra”, “contra a lógica pela Magia” (dá-lhe Oswald), “contra o regulamento pela compulsão”, “contra os professores pelos pajés”, “contra Cristo por Barrabás”, “contra a religião pelo sexo”. Compõem um modo de vida, expresso de maneira instantânea e sintética. Outras oposições são sarcásticas e gozosas. Dão seu recado e fazem rir: “contra a bomba de gás dos funcionários públicos pelos chicletes dos eunucos e suas concubinas”, “contra o governo por uma convenção de cozinheiros”. Por fim, há oposições que se movem no campo artístico: “contra Valery por D. H. Lawrence”, “contra Eliot pelo Marquês de Sade”, “contra Mondrian por Di Chirico”, “contra Virgílio por Catulo”, “contra Tchaikovsky por Carl Orff”. Tais contrapontos denotam uma aplicação das oposições vivenciais à esfera artística: contra as formas geométricas de Mondrian, pelas paisagens oníricas de Di Chirico; ou contra o pudor anglicano de Eliot pela devassidão pagã de Sade; e assim por diante. Com figuras como Sade e D.H. Lawrence, Roberto Piva parece salientar uma experiência erótica arraigada no corpo aberto às forças naturais mais tenebrosas. Tal pendor às paixões desregradas encontra ressonância no desfecho do manifesto: “contra tudo por Lautreamont”. Lautreamont: grande crítico do humanismo por uma radical desmoralização de todas as instituições sociais; desmoralização na forma mais visceral, recheada de perversões sexuais e devires selvagens em metamorfoses do homem com animais. É esse furor bárbaro e sexual que os Manifestos de Roberto Piva encarnam, junto à vontade de atear fogo nas instituições morais, escolas literárias e pretensões metafísicas; de quebrar as vidraças das convicções políticas revolucionárias, por uma efervescência anárquica da desordem e do desastre. 5. “Os que viram a carcaça” O título geral dos manifestos é “Os que viram a carcaça”. Pode ser uma alusão ao trecho final do Manifesto Surrealista de 1924: “Já não tremes, carcaça”108. Breton parodiava a bravata de Henri de La Tour D’Auvergne, visconde de Turenne (1611-1675), dos mais importantes militares da história da França: “Tremes, carcaça, mas tremeria mais se soubesse onde te levarei”. A frase remete à reprimenda do guerreiro ao corpo que treme diante do perigo, retomando sua intrepidez e destemor. Em Breton, a frase se encaixa na “guerra de independência”, na qual o surrealismo seria o “raio invisível” que permitiria vencer os adversários. A guerra por estados de distração, momentos de irrupção da imaginação, flutuações da atenção que permitiriam aquele ponto do espírito em que o tal “mundo real” e o sonho cessariam de contradizer-se: o advento da surrealidade. Os que viram a carcaça seriam guerreiros intrépidos dessa batalha da loucura sagrada contra a redução do “real” ao pensamento lógico e à consciência moral. Mas há também um poema de Baudelaire, em Flores do Mal, intitulado “Charogne” (Carcaça - ou “carniça” em algumas traduções). Era um belo verão em que Baudelaire e sua amante viram uma carcaça em decomposição numa curva do caminho. A carcaça é associada à morte e à mulher, mas no sentido daquilo que morre para fazer algo novo nascer. Daí escorrerem larvas do ventre da carcaça como uma flor desabrochando ou como um corpo se multiplicando. O poeta pede à amada que se assemelhe à carcaça: a mutação da vida em morte e renovação.

108

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo, op. cit., p. 64.


49 As interpretações podem ser diversas: carcaça como signo de um tempo que morre e pare de suas entranhas a renovação; ou a carcaça como o corpo em mutação de um iniciado que atravessa a morte ritual e sente o fluxo da vida no seu criar e destruir. De qualquer forma, a carcaça é símbolo da morte e renascimento. Não só Baudelaire e sua amante viram a carcaça. Antonin Artaud, na mesma carta em que formula a poesia fecal, dá como exemplo exatamente este poema de Baudelaire. Também Lautreamont menciona “Charogne” em seus Poemas, como exemplo da associação do amor com a morte, numa poesia cravada no mal. Lautreamont chega mesmo a tornar carcaça um adjetivo, pois denomina como “carcaças” dois trechos de Alfred Musset que muito o impressionaram na época de seus estudos colegiais – o trecho de Rolla em que o pelicano oferece a seus filhotes o sangue do peito aberto; e a desgraça do camponês que chega à sua casa e a encontra incendiada com sua esposa morta109. Sabe-se o quanto carcaças similares povoam os Cantos de Maldoror. A impressionante polissemia intertextual da expressão “carcaça” não impede uma conotação mais simples: a carcaça como signo de um momento histórico que se decompõe. Seja qual for o sentido da expressão no título dos manifestos de 1962, Roberto Piva e seus amigos parecem ter visto a “carcaça”: seja aquela de um contexto que finda, mas ainda deixa exalar seu cheiro putrefato; seja na companhia de Baudelaire e sua amante, na de Artaud e sua poesia fecal ou na batalha surrealista contra a ditadura lógica do real; seja, com certeza, na perturbação antihumanista de Lautreamont.

6. Os manifestos no conjunto da obra de Roberto Piva Roberto Piva foi grande criador de manifestos. Como vimos, também foi grande leitor de manifestos. O poeta faz uso desse gênero de escrita de forma apaixonante. Linguagem solta, verborrágica, tiradas engraçadas, paródias e um tom delirante. Feições comuns em sua poesia. Muitos falam que seus manifestos são poesia ou “prosa poética”. Piva não. O poeta faz uma distinção nítida entre manifesto e poema. Em entrevista feita em 2005, Ricardo Lima pergunta exatamente sobre o lugar dos manifestos em sua produção poética e se poderiam ser considerados poemas. Piva é direto: “Não os considero poemas, era uma outra maneira de me expressar, eram manifestos mesmo”110. Assim, se tomarmos como exemplos materiais que o próprio poeta nomeia como “manifestos”, materiais que se multiplicaram em grande número na década de 1980, veremos algumas diferenças em relação aos poemas. A primeira e mais fundamental é que nos manifestos Roberto Piva se dedica a uma leitura crítica da realidade, com especial acento às questões políticas, delineando posicionamentos que, em seu caso de uma poesia vivida, redunda em uma reflexão sobre sua poética. Daí um linguajar mais referencial e menos imagético; daí um tom mais ácido que extático. Em sua poesia a partir da década de 1980, centrada nas técnicas arcaicas do êxtase, há uma distinção clara entre poema e manifesto. Em linhas gerais, os poemas remetem a experiências mágicas vivenciadas pelo poeta, ao passo que manifestos como Manifesto utópicoecológico em defesa da poesia & do delírio (1983) se debruçam sobre as questões ecológicas na 109

LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror, op, cit., p. 284. LIMA, Ricardo. Poeta em pele de tigre. (Entrevista) 2005. Disponível em: http://www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1htm Acesso em: 16 set. 2006. 110


50 sociedade contemporânea ou, em textos como Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992), reflexões sobre o desenvolvimento de sua poética nesse contexto. De qualquer forma, há uma complementação importante entre a criação de poemas e a redação de manifestos, como peças indissociáveis de sua vida poética. Neste sentido, os Manifestos de 1962 fundamentam uma poética posta em ação em Paranóia, da mesma forma que materiais como Manifesto da Poesia Xamânica & Bio-Alquímica (1992) ou poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase (1997), por exemplo, dialogam com Ciclones. Esta complementariedade é tão intensa que Roberto Piva chega a compor um texto “meio poema meio manifesto”111:

A bengala alienígena de Artaud O mamute sem pátria O professor membrana O pica-pau pica tora O orgônio letal da sociedade industrial O presidente stanilista chefe de quadrilha O fantasma de Stalin de Jean-Paul Sartre Budapesteanos 50-séc. XX: Secretário-geral do PC húngaro manda cavar o solo para construir o metrô de Budapeste. Subsolo muito duro. Então, não eram os técnicos marxistas que estavam errados, mas o subsolo de Budapeste que era contra-revolucionário. Brasil 2004-séc. XXI: Programa Fome Zero: contrariando o governo, o IBGE provou que os mais pobres nem sempre são os mais mal-nutridos & os obesos são mais numerosos entre os mais pobres. O governo se apressou em desmentir o IBGE. Taí: não são os padrecos Assessores que estão errados, mas o IBGE & os gordos que são contra-revolucionários Conclusão de Sartre: O marxismo é uma violência idealista às coisas O bucho do mangusto O furor uterino da Pomba A Lazanha emplumada O bofetão on the road As ancas do navio O carcará sem fio meio poema meio manifesto Templo ZU LAI Rodovia Raposo Tavares 2004

111

PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno. Em: PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno – obras reunidas volume III (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2008. p. 138-9.


51 O poema se inicia e conclui com versos começados por artigos, versos estes interrompidos por texto numa linguagem mais cotidiana, sobre a crítica de Roberto Piva ao governo Lula e ao marxismo. Tudo acontece como se o poeta tivesse iniciado a redação de versos que desencadearam um comentário sobre a política atual. Assim, Roberto Piva incorpora esse comentário no texto, na condição de manifesto, e continua o fluxo de associações que dispararam a redação. É um exercício leal de escrita automática que não descarta os comentários mais cotidianos que, às vezes, invadem uma associação. Nesse poema/manifesto ficam claras as distinções de tema e linguagem entre ambos, assim como seu profundo entrosamento na vida poética de Roberto Piva.



53

Roberto Piva na revista Artes: - o poeta do rock, o profeta do rock...112

Era uma tarde de 1966 quando dois jovens desciam a rua Augusta, desfilando gestos soltos à moda dos italianos. Um deles, sujeito bem alto, falava com entusiasmo de sua teoria sobre o ar comestível, para o entusiasmo do segundo, baixinho, que apontou para o número 2192 daquela rua. Pela varanda do primeiro andar do pequeno edifício desce uma inusitada escada de cordas, pela qual o pequeno Roberto Piva e o grandalhão Roberto Bicelli sobem ao excêntrico ateliê decorado ao estilo japonês. Na subida já se sentia o cheiro de terebintina e eram recebidos por Wesley Duke Lee nos momentos de criação de sua série Zona. Chapado de ácido, o artista plástico pintou Piva no óleo sobre tela intitulado “A Zona: O Fantasma (Roberto Piva)” (1966). Naquele mesmo número da rua Augusta, os Robertos fizeram uma parada na badalada loja de discos Hi-fi, para garimparem algum disco de rock. Roberto Piva era grande entusiasta da nascente música pop e frequentador daquela rua por onde se viam bandos de jovens alucinados, enlevados pelas distorções das guitarras elétricas. Na mesma época da “Passeata da Música Popular Brasileira”, famosa manifestação contra a guitarra elétrica, o poeta cosmopolita estava antenado a todas experimentações contemporâneas. Inclusive as alucinógenas. No final dos anos 1960, os poetas Roberto Piva e Roberto Bicelli também eram vistos na Serra da Cantareira, em meio a seções de LSD. De calça jeans norte-americana e cocar indígena, Piva se travestia em cacique eletrônico, mesclando música contemporânea com rituais ancestrais em torno do êxtase. As publicações de Roberto Piva na revista Artes:, no início da década de 1970, são importantes veredas para se adentrar em sua vida poética do período. Nas páginas da edição 24, por exemplo, o poeta escreve sobre a criação artística do amigo Wesley Duke Lee, na ocasião do lançamento de sua exposição “Iconografia Botânica” na Galeria Ralph Camargo. No mesmo número da revista, exalta a efervescência do ambiente do rock nos shows realizados no Teatro Vereda: o Ligasom. Na edição seguinte, já de 1971, Roberto Piva faz as vezes de entrevistador e conversa com o poeta e amigo Claudio Willer no ensejo do lançamento da tradução de Cantos de Maldoror, em comemoração ao centenário de Lautreamont. Neste mesmo número 25 da revista há, ainda, um texto sobre Jimi Hendrix, além de uma entrevista com inúmeros jovens integrantes dos grupos pop paulistanos. Roberto Piva está impossível! Avança como um misto de crítico de arte, entrevistador, agitador cultural e poeta. São faces até então desconhecidas do poeta que se expressam com exuberância: como entrevistador, mostra-se um profundo conhecedor do tema abordado, com questões certeiras e instigantes; como crítico de arte consegue a proeza de casar sua vivência visceral do rock e das artes plásticas, com boa dose de lucidez, sempre salientando a crítica ao cotidiano careta e apontando as novas possibilidades de vida que a arte cria. Versa também sobre uma variedade de matérias, como a literatura, artes plásticas e música. Por fim, seus ensaios em prosa demonstram uma escrita fluida e delirante, comunicativa e desconcertante, revelando tanta ousadia na escrita em prosa quanto sua já conhecida potência nos poemas.

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Publicado originalmente em Linguagens – Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, vol. 9, n. 1, p. 12-31, jan./abr. 2015.


54 Suas participações na Artes: incluem o poema “Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?”. É um poema importante por diversos motivos. Primeiramente por ser das raras criações do poeta publicadas neste período. Também por trazer experimentações formais na linguagem poética que seriam tônicas de produções posteriores, especialmente em seu livro Quizumba (1983). O tom fortemente biográfico traz toda a efervescência do contexto rock’n roll vivenciado pelo poeta. E, por fim, traz diálogos pioneiros com a poética de Michael McClure, com o qual Piva se correspondia. Eis o convite: enveredar pelas colaborações de Roberto Piva na revista Artes: durante os anos de 1970 a 1973, com especial acento à proeminência do poeta na nascente cena da música pop paulistana.

O Ligasom As colaborações de Roberto Piva na revista “Artes:” começam com o texto “Ligasom”113, escrito apaixonadamente por um entusiasta dos shows rock’in roll paulistano. Ouvindo Led Zeppelin na vitrola, o poeta descreve uma noite de apresentações dos “conjuntos mais porta de hospício & mais alucinados”: Made in Brazil, Hot Rock, Distorção Neurótica, Brazões, LSE, Plataforma 7 e outros. A loucura daquelas noites tem tons poéticos: “Alucinação simples dizia Rimbaud & tudo seria uma consequência desta alucinação em seus desdobramentos de flor”. É a mesma metáfora da alucinação poética que Roberto Piva utiliza no Póstfácio de Piazzas (1964) como centro de seu fazer poético. Exalta-se a percepção delirante da realidade como a fenda por onde jorram novas cores e experiências místicas; o delírio que torna sagrada a desordem do espírito. O sarcasmo do poeta está muito bem afiado, como na passagem em que faz piada daqueles contrários à onda do rock: “os organizadores mumificados, o famoso: isto-não-dá-péno-Brasil & outras solteironas do sistema nervoso central”; ou na crítica aos frequentadores da Barão de Itapetininga em “esquinas onde a esquizofrenia doméstica faz o seu discurso”. Essa sátira um tanto jocosa, mas também ácida, mantém o tom dos famosos “Manifestos” de Roberto Piva de 1962 – em extrema sintonia com o Ultimatum, de Álvaro de Campos114. Ao contrário desses moralistas, Piva via naquela atmosfera alucinada e seus jogos de luzes o momento em que “o espírito dos deuses pairava na superfície dos Chakras”. É esse clima místico e corporal que o poeta destaca: “O Ligasom mais que noite de som poderia ter sido uma verdadeira festa de Dionisus & mesmo o nascimento do nôvo mito...”. Veremos quanto essa analogia das festas de rock com manifestações pagãs, especialmente com a orgia dionisíaca, ocupa importante lugar na experiência do poeta. Por ora, basta ressaltar que Roberto Piva vivia nessas apresentações uma experiência ritual e mítica. Uma experiência na qual o místico e o artístico não estão apartados, nem estão fragmentadas as diversas manifestações artísticas como entidades estanques (música, dança, literatura, etc.). É a própria vida uma obra de arte em autogestação, como queria Nietzsche e como experimentava Piva. Mas em se tratando de música, Piva põe na roda ninguém menos que John Cage, na epígrafe do texto: “Coisas que acontecem em momentos diferentes certamente também são 113

PIVA, Roberto. Ligasom. Revista Artes:, São Paulo, Ano V, n. 24, , p. 8, 1970. PESSOA, Fernando (Álvaro de Campos). Ultimatum. Portugal Futurista, n. 1, Lisboa, 1917 (edição facsímile, Lisboa, Editora Contexto, 1981). 114


55 ligadas”. Essa ligação de coisas aparentemente distantes, como a relação de rituais arcaicos a um deus pagão com a música eletrônica contemporânea, passa a se fundir num lapso do tempo para o intemporal: um tempo mítico e reversível, numa espécie de caos originário no qual há forte correspondência entre todas as coisas. O final do texto retoma a exaltação da loucura: “Creio que a mensagem do Ligasom foi: muito amor, êxtases & não deixe para amanhã a loucura que você pode fazer hoje”. Percebe-se logo que os diálogos intertextuais, as imagens, as tiradas e o ritmo são da verve poética de Roberto Piva. É ainda sob o signo da loucura que Roberto Piva assina a matéria “O embalo é o sinal”115. Além de crítico e entusiasta, o poeta ataca de entrevistador. Neste mesmo número 25, do início de 1971, o poeta publica um ensaio sobre a morte de Jimi Hendrix e entrevista Claudio Willer. É interessante notar a sintonia das matérias de Roberto Piva tanto quanto a diversidade de assuntos que versa. Na entrevista a Willer, por exemplo, se discute as interfaces da poética de Lautreamont e Rimbaud exatamente no tema da loucura, tema que surge no texto Ligasom e se mantém frequente nos demais. Vejamos o início do texto “O embalo é o sinal”: Eu acredito que o Teatro Vereda está sofrendo um ataque epilético. Ninguém sabe o que vai acontecer. Os “consertos” de música Pop que se realizam no Vereda são um sintoma de epilepsia dos mais saudáveis & restauradores. Epilepsia versus esquizofrenia, esta última sendo a verdadeira racionalização burguesa criadora de gordura na alma. Epilepsia para mim é = intuição imediata do élan vital. Intuição. Isto tudo na livre atmosfera do convívio com o pessoal quente da música Pop em São Paulo: suas esperanças, frustrações, desejos, ansiedades. Eu poderia escrever um tratado sôbre o problema dos conjuntos de música Pop em São Paulo, mas vou me limitar a uma visão panorâmica, deixando o papo cair também para os representantes de alguns conjuntos. Podemos compreender então, os grandes tam-tams de nossa África interior & colher um pouco de sabedoria eletrônica capaz de nos levar ao transe coletivo. A música Pop é um dos meios de comunicação mais poderosos atualmente. Capaz mesmo de arrancar dos gonzos os mais rígidos representantes do bom comportamento. Uma verdadeira declaração de guerra a êste tipo de gente, para que êles aprendam a “dôce alegria” de que falava Blake. Tôdas essas pessoas rígidas estão sendo muito mal-amadas. Elas deveriam ouvir um pouco mais de música, sentir a beleza & o prazer carnal com uma nova sensibilidade & decorar o verso de André Breton: O QUE EU CONHEÇO DE MAIS BELO É A VERTIGEM. São Paulo não pode parar. Os “consertos” Pop em São Paulo & no mundo também não. O embalo é um sinal ascendente. Estamos numa verdadeira reunião tribal para aprender uma nova mensagem.

Novamente os devires da loucura dão o tom da efervescência da juventude roqueira. Nesta feita, contudo, o poeta contrapõe a “epilepsia” do corpo convulso à esquizofrenia. Durante esta década, Roberto Piva utiliza a imagem da “esquizofrenia” por influência da peça Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do Teatro Oficina – como, por exemplo, em seu poema A Política Poética116, quando fala em “deslobotomizar – desesquizofrenizar”. Na peça, no instante denominado Aula de Esquizofrenia, apresentam-se repolhos como cérebros submetidos à lobotomia – prática médica comum até meados do século para o tratamento de 115 116

PIVA, Roberto. O embalo é o sinal. Revista Artes:, São Paulo, Ano VI, n. 25, p. 8, 1971. PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, São Paulo, n. 4, março, p. 76, 1979.


56 desajustados nomeados como “esquizofrênicos”. Sob o signo da esquizofrenia estava todo o discurso médico e a intervenção violenta que tentava corrigir qualquer diferença. É certo que a peça seria apresentada apenas em fevereiro de 1972, portanto, depois do texto de Piva publicado. Porém, a amizade entre Piva e Zé Celso permite pressupor que ambos conversaram sobre o assunto ou até que o poeta tenha participado dos ensaios anteriores à apresentação. Esta empreitada normatizadora da esquizofrenia é contraposta à epilepsia, numa apropriação bem particular de Roberto Piva, pois revela a leitura do filósofo francês Henri Bergson, para o qual a intuição era uma das expressões do élan vital. Talvez seja com tal intuição que Roberto Piva toma ares de estudioso que seria capaz de escrever um “tratado” sobre os grupos de rock paulistano. Basta lembrar que neste período o poeta era estudante universitário de sociologia e estudos sociais, o que talvez explique esse seu entusiasmo por escrever um “tratado”. Em sua “visão panorâmica” ressalta a potência contagiosa da música pop em desconsertar o bom comportamento e conduzir ao transe. Roberto Piva parece salientar o êxtase como epicentro das festas em torno do rock. A partir de expressões como “tam-tams de nossa África interior” ou “reunião tribal”, o poeta reveste os shows de rock com feições ancestrais. É um ponto seminal da experiência do poeta: durante toda a década os traços arcaicos vão invadindo a experiência contemporânea num tempo mítico que mescla passado e futuro. O ápice dessas associações é Coxas: sex-fiction & delírios (1979), obra em torno de uma tribo urbana de jovens suburbanos e roqueiros que praticavam orgias rituais de androginização. O estado gerado pela música pop é aquele da “doce alegria” de Blake, estado que os arautos do bom comportamento deveriam aprender. Que estado é este? No poema Infant Joy (Alegria Infantil), de Canções de Inocência, o poeta inglês tematiza de forma muito simples a infância: uma criança com apenas dois dias que não tem nome, mas esbanja alegria. O riso constante da criança leva seu interlocutor a chamá-la simplesmente de “Doce Alegria”: “Sweet joy, but two days old; Sweet joy I call thee;” (“Doce alegria, mas de dois dias / Doce alegria, te chamo:”)117. É este renascimento para o estado infantil calcado na simples alegria que Roberto Piva experimenta nesses rituais. Além de Blake, Roberto Piva sugere aos conservadores decorarem um verso de André Breton, do poema Il y aura (Haverá), escrito no ano de 1943. Vejamos um trecho: “Diante de mim a rota hipnótica com uma mulher / sombriamente alegre / Além disso, a moral vai mudar muito / o grande interdito será levantado / uma libélula correrá para me ouvir em 1950 / nesta encruzilhada / o que conheço de mais belo é a vertigem”118. Sabe-se lá da libélula de 1950, mas certamente Piva o ouviu naquele ano de 1971. Breton parece aludir a um estado que considera “hipnótico” durante o amor e diante de mulher sombriamente alegre. Esta experiência amorosa vem associada à suspensão do grande interdito, aquele referente ao sexo. O poeta coloca no porvir (1950) o entendimento de seu verso que se conclui com a exaltação da vertigem, talvez aquele mesmo estado decorrente do sexo despido de interdito. A interdição da vertigem amorosa bem cabe a estas tais “pessoas rígidas” e “muito 117

BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 46. 118 Do original: “Devant moi la route hypnotique avec une femme / sombrement hereuse / D'ailleurs les moeurs vont beaucoup changer / Le grand interdit sera levé / Une libellule on courra pour m'entendre en 1950 / A cet embranchement / Ce que j'ai connu de plus beau c’est le vertige”. BRETON, André. Oeuvres complètes (Volume 3). Paris: Gallimard, 1999. p. 28.


57 mal-amadas” da passagem de Piva. A elas o poeta sugere a entrega amorosa e a vivência da alegria inocente da criança em Blake, e os giros da vertigem em Breton. Não é demais repetir: com Blake e Breton, Roberto Piva escreve novamente com as mesmas referências que compõem o cerne de sua poética. Em seguida, a matéria apresenta uma entrevista feita por Roberto Piva com diversos jovens integrantes das bandas pop. No centro da conversa está a problemática do reconhecimento da música pop e as dificuldades enfrentadas pelos jovens para mantê-la viva. Neste mesmo período, além de crítico e entusiasta, Roberto Piva se tornava importante organizador de shows de rock. O lema era “uma tarde é suficiente para ficar louco: Pop Som”, um verso de seu livro Piazzas (1964).

Agitador cultural e organizador de shows de rock Roberto Piva conhecia a cidade inteira, desde técnicos de som a pessoas ligadas a diretoria de museus; de garotos escondidos em garagens suburbanas a editores de revistas. Os shows aconteciam em diversos lugares frequentados por Piva, como o Teatro Oficina, o Colégio Equipe, a Faculdade Getúlio Vargas e mesmo a Escola de Sociologia e Política em que estudava. Os mais famosos foram aqueles organizados no Museu de Arte de São Paulo (MASP), pois o auditório estava lotado com mais de mil pessoas. No decorrer das apresentações, além das bandas já conhecidas do cenário underground, como a Made In Brazil e Distorção Neurótica, foram surgindo novas bandas. Roberto Piva frequentava muito os subúrbios, seja devido à sua atividade como professor em escolas públicas, seja para a divulgação das apresentações. E ali conheceu e deu oportunidade a bandas novas, como o Spectral Zoo e o Zarphus. O poeta não era mero aglutinador de bandas, nem tinha semelhanças quaisquer com um empresário, mas grande amigo de seus integrantes. Convivia com os jovens, trocava ideias e fazia as vezes de espécie de liderança. Chegou a ser chamado “guru” por alguns jovens e parecia manter forte amizade com muitos deles. O ambiente do rock também era bastante inovador. Os jovens experimentavam ali novas formas de vida, com a invenção de jeitos de se vestir, de falar, de se relacionar. Era também ambiente devasso, com grande experimentação sexual, inclusive orgias coletivas. Piva excitava-se, sobretudo, com essas possibilidades eróticas. Roberto Bicelli lembra de um caso interessante: Ruth Escobar perguntou a Roberto Piva num dos shows como conseguia mobilizar tanta gente jovem, ao que ouviu entre sorrisos: “já transei com metade das pessoas daqui e hoje pretendo transar com a outra metade”119. Piva tornou-se um grande agitador cultural da juventude underground. Numa época em que se colocava em discussão a própria existência de uma música pop, Roberto Piva não apenas apostou todas as fichas em sua potência como foi seu profeta.

119

HUNGRIA, Camila; D’ELIA, Renata. Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. p. 112.


58 Profeta do rock Em “A cidade sob o relâmpago”120, texto de 1971, Roberto Piva alça voos proféticos e extremamente lúcidos sobre a importância desse movimento artístico para a juventude. Aqui aquele alucinado organizador de shows alcança a passagem para a vidência: A música pop é internacional assim como a eletricidade. O suco instilado no cérebro pelo envolvimento eletrônico, provocou em todo o mundo novas vibrações cósmicas. Todo o detrito da velha consciência bidimensional, escorre pelo esgôto da raison, forma arrivista da caretice francêsa espalhada pelos quatro cantos do mundo. Isto fêz com que o ser humano limitasse a sua vida, sua aventura, para estar seguro de si. Afastar-se da maravilhosa loucura do universo (ou poliverso?) e negar o infinito que mora em nós. Estamos em plena corrente cósmica, novamente. Os astros indicam que o barco de nossa aventura mudou vertiginosamente de rumo. E que o dono do barco é Dionísio, deus da embriaguês, do amor e da morte, o deus do jôgo. E o formador informe, o próprio jôgo do mundo. A música pop além de música é um comportamento, uma filosofia, um estilo de vida. Numa noite mágica, Luiz e Jair, do Spectral Zoo, me disseram: “Tem muita gente aí morrendo de fome só para não cortar o cabelo”. Mas o quê significa o cabelo? O quê tem de mais cortá-lo? Perguntam em côro os magnatas da caretice. O cabelo comprido, as roupas coloridas, os colares, representam as modificações de nosso corpo, como resposta ao ambiente eletrônico. São complementações dêsse ambiente. Isto para não falar do simbolismo mágico-erótico que os cabelos compridos representam. Mudando de rumo: O eterno retôrno de certos insight. Estou num pasto na Cantareira & escrevo enquanto as árvore estão sendo envolvidas pelo pólen lilás do crepúsculo & os morcêgos passam a 180 quilômetros por hora. A natureza flutua e rodopia ao som de Grand Funk & eu penso na epopeia do homem, da caverna à lua. Lembro de Tino & Franklin, baixista do Distorção Neurótica o primeiro, baterista do Made in Brazil o segundo. “Faces queimadas de amor & violência, onde o desejo ainda vai cantar” “Grande árvore da magia, daí sombra & paz a todos os baixistas & bateristas do Mundo!”. Dizia eu: a música pop é o prenúncio do apocalipse ilimitado da nova saúde. O homem vai embarcar na exigência dionisíaca: vêr tôdas as coisas enfeitiçadas, livres dos rótulos, mais sôltas que os símbolos, em suma: o que Nietzsche chamou “o reino do milagre”. Estamos no mundo para curtir. Tudo indica que a vida vai vencer esta parada. Uma tarde de inverno paulista, daquelas de céu azul sem nuvem, sol & roupas de lã, basta para religarmos à festa do mundo. Estamos em férias perpétuas, a luta pela via é premissa de nossa respiração. Nós somos um cosmo: turbulentos, sensuais & oráculos do furação ROBERTO PIVA.

Contemplando um crepúsculo na Cantareira, ouvindo a banda Grand Funk Railroad & escrevendo com o caderninho na mão. A natureza rodopia com o som eletrônico. Sinergia das vibrações cósmicas arcaicas com a eletricidade contemporânea; da música pop com o espírito dionisíaco. A relação da música pop com o a vertiginosa mudança de rumo da cultura atualiza a famosa aposta do jovem Nietzsche: o reaparecimento do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo, a partir da música de Richard Wagner121. O filósofo entendia o nascimento da 120

PIVA, Roberto. A cidade sob o relâmpago. Revista Artes:, São Paulo, Ano VI, n. 28, p. 7, 1971. NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (J. Guinsburg, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1872/1992. 179 p. 121


59 tragédia grega a partir do embate entre Dionísio e Apolo. As orgias asiáticas dionisíacas invadiam o solo grego com o cortejo embriagado, urrando em festa, dançando extasiado. Ali eram suspensas as regras sociais, as divisões em classes e todos curtiam a mesma volúpia, cantando, dançando e bebendo com toda licença sexual. Em Dionísio, o homem celebrava sua unidade com a natureza a partir do despedaçamento de sua individualidade. O indivíduo como limite e medida, com toda sua civilidade e moral, evadia de si em devires animais e vegetais. Irrompe o selvagem onde antes havia o civilizado. O homem dissolvido no mundo enfeitiçado pela magia dionisíaca. Essa força dionisíaca invadiu a Grécia apolínea, terra da arte da beleza e da exaltação da forma. Ali as duas divindades travaram seu combate: o selvagem e o civilizado; o divino e a beleza; a verdade e a aparência; o ilimitado da desmedida e o limite do indivíduo. Esse combate é o parto da tragédia grega. Ali a força instintiva de Dionísio surge com a bela roupagem artística de Apolo. E o culto as belas formas da aparência serve agora como símbolo da verdade dionisíaca, da natureza como devir encantado. Para Nietzsche, é o espírito da música que torna o espectador grego capaz de ver se abrir o reino do milagre dionisíaco. Nas palavras do filósofo: Ao espectador é feita, portanto, a exigência dionisíaca de que a ele tudo se represente sob encantamento, de que ele sempre veja mais do que o símbolo, de que o mundo inteiro visível da cena e da orquestra seja o reino do milagre. Onde, todavia, está o poder que o transporta à disposição de crer em milagre, por meio do qual ele vê tudo sob encantamento? Trata-se da música122.

A tragédia grega padeceu com o surgimento do homem teórico, racional e moral. A união do belo-bom-justo-verdadeiro que tornou o homem blindado ao contágio do êxtase. Aquele que dançava fora de si no cortejo dionisíaco agora está sentado passivamente em um auditório, ouvindo a música de forma crítica e cerebral. Voltemos a Piva. O tal “reino do milagre” que menciona no texto é este mesmo da passagem de Nietzsche transcrita acima: enlevado pela música a pessoa experimenta os movimentos de um mundo todo encantado. Em outra passagem, Nietzsche lança mão de As Bacas para exemplificar esse encantamento: mulheres amamentando lobos e tirando mel de pedras, num encantamento que é a própria reconciliação do homem em devires nas forças da natureza. O poeta celebra a música pop como a força que lança o homem de volta a essas correntes cósmicas, ao mundo encantado de Dionísio. Lançar-se ao êxtase da música, ao livre jogo do amor. Sentir corporalmente toda experiência do mundo, sem a intromissão da razão que rotula, classifica e bloqueia a vivência espontânea. É uma arte irradiada na vida, como um modo de ser, muito distinta da neutralidade da arte burguesa posta como distração e entretenimento. O ato de “negar do infinito que mora em nós” são estas correntes da razão que nos trancafiam em estreitas cavernas. O verso lembra a famosa passagem de Blake: ao abrirmos as portas da percepção veremos que tudo é infinito123. Essas portas que dão nome à banda The

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NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca de mundo. Em: NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca de mundo e outros textos de juventude. (Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza, trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1870/2005. p. 31. 123 BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 46.


60 Doors, mencionada por Roberto Piva adiante. Esta percepção do infinito aberta pelo “aperfeiçoamento do prazer sexual”. Piva carrega a tinta contra os caretas, os cerebrais, os moralistas. Nas entrelinhas, Piva deixa claro a relação da música pop com o reaparecimento do espírito dionisíaco como grande mudança histórica, atualizando a proposta de Nietzsche. Mas, pera aí. A música pop em Piva vem sempre atrelada à eletricidade: a “sabedoria eletrônica”. Hoje parece enfadonha essa relação, mas deve-se lembrar que nesta época se fazia passeatas contra a guitarra elétrica na música brasileira. A ênfase de Piva no “ambiente eletrônico” se atrela às modificações corporais dessa vibração, capaz de nos lançar às correntes cósmicas. Houve um poeta que exaltou a eletricidade como grande metáfora poética. Em Walt Whitman, o poeta do “corpo elétrico” (body electric), a eletricidade era uma bela analogia do fluxo constante das forças do universo que atravessavam os corpos. Na eletricidade, os limites sociais e individuais explodiam e davam espaço à fusão (merge) das pessoas. O corpo elétrico é o corpo difuso nos outros corpos, nas paisagens naturais, nas cores, no epicentro da vida. O toque e o sexo são os maiores símbolos dessa fusão elétrica dos corpos. E, assim, lançado ao fluxo do universo, o poeta é ele mesmo o cosmos, uma espécie de microssomo da potência da vida cósmica. Daí o conhecido cartão de visitas do poeta: “Walt Whitman, americano, um bronco, um cosmos, / Agitado corpulento e sensual . . . . comendo e bebendo e procriando”124. Roberto Piva finaliza com este intertexto, mas na terceira pessoa: os corpos elétricos dos roqueiros no curto-circuito de um novo momento histórico.

Entrevista à revista Rolling Stone A proeminência de Roberto Piva como agitador cultural lhe rendeu a famosa entrevista à revista Rolling Stone, concedida a ninguém menos que Ezequiel Neves125. Nela Roberto Piva é apresentado como pessoa explosiva e de grande vibração na aglutinação da juventude. Sua proeminência junto aos mais jovens lhe rendem o apanágio de “superíndio branco, um cacique”, mencionando ainda sua trajetória poética com a publicação de Paranóia e Piazzas. A entrevista transcorre sobre os shows organizados por Piva desde o final do ano de 1970 (como era feita sua divulgação, em que locais ocorriam e como eram escolhidas as bandas). Novamente o poeta deixa claro o profundo relacionamento que tinha com os jovens músicos das bandas. Conhece cada músico, sua trajetória e visão de mundo. É também um momento em que o poeta traz muitos elementos sobre sua formação cultural, seja com o que denomina “marginais italianos” (como Giordano Bruno, Tomaso Campella, Giambatista Vico e Cecco Angiolieri) seja com o rock dos anos 50 (especialmente Elvis Presley). Na música pop de então, Piva salienta a figura de Jim Morrison associada à poesia de Walt Whitman, ambos com uma “visão angélica e, ao mesmo tempo, selvagem do amor”. E centra sua visão de mundo relacionada à eclosão de “rituais sagrados”, mencionando a influência de Freud, Artaud, Jerry Rubin, Norman Brown e Paul Goodman.

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WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. (tradução Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 1855/2008. p. 77. 125 NEVES, Ezequiel. Roberto Piva: um paulistano desvairado. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1972/2009. pp. 18-27.


61 Como em seus ensaios na revista Artes:, Roberto Piva concebe aquele momento de efervescência da música jovem como uma manifestação do sagrado, mas de um sagrado arcaico em uma convivência tribal. São várias as reminiscências ao universo tribal e arcaico como referência para falar dos jovens e seus rituais festivos na música. É essa verve do sagrado selvagem que une a sua trajetória em poesia com aquela na música, uma vez que nos rituais arcaicos não havia distinção entre poesia, música, dança, artes plásticas, etc. É a palavra cantada. É assim que quando indagado sobre como começou sua relação com os conjuntos de rock, o poeta responde que foi mais um “mergulho nas minhas próprias águas”, ou seja, em sua vida poética. A imagem do mergulho nas próprias águas, agora na maré da música pop, o traz os versos finais da seguinte passagem da Ode Triunfal (1915), de Álvaro de Campos: Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, Que emprega palavrões como palavras usuais, Cujos filhos roubam às portas das mercearias E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão. Maravilhosamente gente humana que vive como os cães Que está abaixo de todos os sistemas morais, Para quem nenhuma religião foi feita, Nenhuma arte criada, Nenhuma política destinada para eles! Como eu vos amo a todos, porque sois assim, Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus, Inatingíveis por todos os progressos, Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!126

É uma associação ilustrativa para se pensar o envolvimento de Piva com aquela rapaziada. Álvaro de Campos discorre sobre a escória: suas gírias, seus atos delinquentes, seus itinerários marginais, enfim, seu modo de vida subversivo que passa ao largo dos controles morais e institucionais da sociedade e seu progresso. Campos celebra seu amor por esta fauna maravilhosa caminha sob o signo da imoralidade e deixa se mergulhar no “fundo do mar da vida”. Ao trazer esta passagem na entrevista, Roberto Piva extravasa uma relação similar com os garotos suburbanos que compunham o ambiente underground do rock. Não são poucos os textos em que o poeta exaltaria a vida nas periferias, as ações imorais e os atos delinquentes de jovens marginais. Novamente é no livro Coxas (1979) que surgem esses jovens em meio a orgias ou assassinatos. Jovens que têm em Macunaíma o ancestral mítico encarnado na vida selvagem e sem caráter moral, pois, abraçado ao “cacique Fernando Pessoa” – para usar expressões de Piva – o poeta encerra a entrevista com caudalosa prosa poética, em uma primeira menção à fuga da civilização pela vivência “primitiva”: O que estamos precisando agora é de uma música que ressuscite todos os nossos pesadelos, um grupo com a noção perfeita da cloaca primitiva, que varra da consciência nossos sonhos medíocres, que nos liberte dessa última hipnose chamada civilização. Um conjunto e uma música que sejam o 126

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (edição Teresa Rita Lopes). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 83-84.


62 entrechoque de aços implacáveis, gritos nas cavernas da alma, gigante soluçante, anão em chamas, pedaço de sol na tribo, som perfurando a crosta dos sentidos, uivo de paz, guerra de amor no veludo da goela. TamanduáFlutuante seria o nome ideal para este conjunto que faria nascer a Hora Cósmica, o Gavião Amarelo & o Lince da Montanha Sonora. O tempo está claro como uma gota d’água127.

Aqui uma primeira menção do que viria a ser o ponto nevrálgico da poética de Piva a partir de 1980: poesia de linha de fuga da civilização ocidental e sua história, pela experiência arcaica do êxtase. Neste momento, contudo, o poeta profetiza um grupo de rock com estas feições arcaicas (“cloaca primitiva”, “gritos nas cavernas da alma”) e tribais que libertaria a juventude a hipnose do processo civilizatório. O tom profético arrepia. E a profecia se confirma. Tamanduás flutuantes passeariam entre os orgasmos coletivos da tribo Osso & Liberdade, de Coxas. E a década de 1980 conheceu o poeta bruxo que assombrou toda a civilização urbano-industrial com estrondoso grito selvagem – na Hora Cósmica do Gavião.

O mundo é uma eterna festa num ciclo cósmico infinito A série de participações de Roberto Piva na revista Artes: se finaliza com um poema. Ele é importantíssimo não apenas por ser um dos raros registros poéticos de Piva neste período, mas por trazer suas vivências desta época ligadas a uma entusiástica visão de mundo. Tudo isso encorpado por experimentações na força de criação e na distribuição do verso. Ali estão suas visões, vivências, leituras, músicas, amizades e amores. Vejamos. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver? Estou no Chivas da Haddock Lôbo / são 3 horas da tarde / quinta-feira / fevereiro / 1972 / tomo um Milk Shake enquanto espero um Anjo entre as mesinhas & as árvores que cercam este pedaço de mundo batido pelo vento paulista & o sol universal / as fôlhas arrastando atrás de si o sonho dos duendes & eu estou com vontade de ouvir Changelling do Doors na voz de trovão-machucado de Jim Morrison da última fase & gostaria de ver Baudelaire aparecer por aqui / com os cabelos compridos pintados de verde & sua tartaruguinha prêsa numa coleira de cachorro / recitando les jornaux intimes / principalmente “j’ai trouvé la definition du Beau, de mon Beau. C’est quelque chose d’um peu vague, laissant carrière à la conjecture” / não separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito & o ser humano seria o Anjo Universal cheio de amôr como eu estou agora. Dois garotos conversam sôbre alguma coisa bem louca na mesa em frente & um deles gostaria de viajar num disco voador / tripulado por estranhas aranhas elétricas / olhando a lua cheia. Às vêzes quando entro num supermercado eu me sinto absurdo & percebo as caixas coloridas / os pêssegos / as batatas / olhando para mim com seus olhos doces e interrogativos / como se quisessem ensinar alguma coisa bem terrível para minha consciência tranquila de ser humano. Lembro de uma poesia de T. S. Eliot em que ele diz: “Não sei muita coisa acêrca de deuses: mas creio que o rio / É um poderoso deus castanho-taciturno, indômito e intratável...” 127

Neves, Ezequiel. Roberto Piva: um paulistano desvairado, op. cit., p. 27.


63 Isto me faz pensar que existem muitos deuses & que a verdade nunca pendeu do braço do Absoluto & estamos vivendo ou morrendo nesta bola colorida chamada terra. Quem já ouviu Live de Johnny Winter num dia de muita alegria? Quantos amigos você fêz hoje? O que você sonhou esta noite? Você já viu o pôr-do-sol em Eldorado ou na Riviera paulista? Você está amando? As flores pensam / os músculos são invadidos pelo músculo elétrico / eu me sinto muito feliz / meu coração zumbe / eu percebo as estrêlas lilases na tarde vermelha / minha mente está sendo povoada pelos meus amores / a música desce até meu estômago / até a última gôta de alegria / meus pulmões são jovens & perfeitos / um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida pelo vento / os telefones do mundo começam transmitir mensagens eróticas / as janelas explodem em sinfonia o mundo é um maravilhoso lugar para se nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu acredito como Whitman no corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos / eu tenho muitas verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado nos teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches / ostras / latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny Winter numa tarde de sol de fevereiro em São Paulo! Pequenos monges hippies de olhos azuis como laranjas transam agora na Haddock Lôbo esperando cair a noite com seu vestido de mistério. A locomotiva do escorpião vai levando meu amigo Ivan para que cômetas? Onde estará você sonhando agora / enquanto as nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver? Um sol hippy azula minha cabeça sou sacudido pela visão da Eternidade. Estranhas galáxias brilham nos olhos do garôto da mesa em frente & ele quer falar de uma praia cheia de mistério onde ursos & pinguins sentariam ao redor do fôgo perto de sua barraca azul & fariam juntos uma oração à alma do mundo / perdidos / longe / numa ilha de fumaça coroada pelo arco-íris! O centro da carne & três mil vivas à Mick Jagger que tem jôgo de cintura & três mil vivas à Roberto Bicelli que descolou isso & três mil vivas ao meu amigo Sérgio Mamberti que é um gênio & tem uma alma linda nos olhos & três mil vivas aos meus novos amigos Pablo, Berin, Paulo, Paulinho, Margareth, Marcia, Cecília, Victor, Leli, Vova, Antônio que acreditam nas cores nos vulcões na natureza tremendo de felicidade. Os deuses começam ficar alucinados às seis horas da tarde quando o sol se dispõe a guiá-los nos sonhos & criar na nossa imaginação a loucura da lembrança a saudade da pirataria dos mares de antigamente onde Fernando Pessoa foi buscar a sua Odisséia & soprou sôbre nossas cabeças o furacão de sua Ode Marítima. A POESIA É UM PRINCÍPIO MUSCULAR (Michael McClure)128.

Roberto Piva inicia o poema num tom de diário, expondo o local e a data em que escreve. É com os pés cravados em sua realidade que o poeta é tomado pela enxurrada de associações livres. Misturam-se aí sensações daquele instante, imaginações sobre o que conversavam as pessoas da mesa em frente e delírios de Baudelaire levando sua tartaruga para passear na coleira. As associações prosseguem com a vontade de ouvir uma música, a lembrança de um poema intercalada com uma reflexão mística. Os amigos chegam e começam a beber e conversar. O poema extravasa as novas amizades numa transbordante alegria associada a um comentário do amigo Bicelli sobre o jeito de Mick Jagger dançar. Roberto Piva dá a dica sobre esta forma de criação poética: “não separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / numa visão psicodélica dos paraísos artificiais

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PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?. Revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, p. 3, 1972.


64 & o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito & o ser humano seria o Anjo Universal cheio de amôr como eu estou agora”. Note-se: fusão do sonho e da realidade, das efusões imaginárias mergulhadas no princípio do prazer com a percepção sensorial da realidade. É uma dinâmica parecida com aquela compreensão de Piva sobre a criatividade de Wesley Duke Lee. A percepção da realidade indissociável do fluxo imaginário – como ocorre com todos nós, com mais ou menos intensidade. Piva deixa claros exemplos dessa percepção delirante da realidade: o vento sopra balançando as folhas numa sensação associada ao delírio, pois arrasta “atrás de si os sonhos dos duendes”. Eis o fluxo: o vento – delírio – vontade de ouvir uma música. Ou a imagem dos dois garotos conversando na mesa em frente, percepção à qual o poeta acrescenta “& um deles gostaria de viajar num disco voador / tripulado por estranhas aranhas elétricas....”. Os garotos geram um delírio extraterrestre que gera uma lembrança da sensação de quando está no supermercado. É uma associação mais que livre. Piva acrescenta que tal fusão do sonho e da “realidade” é uma “visão psicodélica” associada ao consumo de substâncias como aquelas descritas por Baudelaire em “Paraísos Artificiais” (haxixe e ópio). Mais que isso: o estado onírico na vigília conduziria ao próprio paraíso: um êxtase e plena alegria do mundo como “eterna festa num ciclo cósmico infinito” com um ser humano transbordando amor. Essa forma de criação pelo fluxo veloz da atividade consciente assaltada pelo imaginário exige versos poéticos que escorrem no papel sem interrupção, apenas separados por barras ( / ). A versificação ganha, assim, o formato do texto corrido da prosa, sem perder separação em versos. É uma força de composição que Piva iria experimentar na década seguinte, em Quizumba (1983). Ali também a fluência de sensações, lembranças, músicas, amizades e leituras, é sobreposta em associações das mais inusitadas. A menção a Charles Baudelaire também é indicativa dessa forma de criação. O texto é extraído de Fusées (Foguetes) que junto com Mon Cœur mis à nu (Meu coração posto nu) formam espécies de diários íntimos (jornaux intimes) do poeta francês. Nestes diários há textos fragmentados, inacabados, escritos em rompantes abruptos entre 1855 e 1862. O próprio Baudelaire escreve sobre esta proposta: escrever dia a dia, não importa onde ou como, seguindo a inspiração do instante, “desde que a inspiração seja viva”. Mas não são os instantâneos da vida pública moderna, como aqueles dos quadros parisienses. São diários íntimos em que o poeta discorre livremente sobre os mais variados assuntos, incluindo o modo de ser do dândi mesclado a reflexões filosófico-teológicas, em meio a desabafos contra a política ou a religião; aí juntamse híbridos de crítica literária com memórias da infância, ou passagens biográficas sobre suas obras intercaladas por notas para não se esquecer de algo. É um diário pessoal em que se diz tudo sem censura. Há o elogio à loucura, à volúpia e ao amor natural pelo crime (amour naturel du crime) – temas frequentes na poesia de Piva. A passagem transcrita por Piva é o trecho de número XVI de Foguetes: “Eu encontrei a definição do Belo, do meu Belo. É qualquer coisa de ardente e triste, qualquer coisa um pouco vaga, dando corda à conjectura”129. Baudelaire persegue sua definição em um exemplo concreto, o rosto de uma mulher, algo ao mesmo tempo triste e voluptuoso. Esta “confusa” forma do belo expressar-se leva o poeta francês a toma-la como mistério: “[um rosto de mulher] tem uma idéia de melancolia, de lassidão, mesmo de saciedade, – ou uma idéia contrária, qual seja um ardor, um desejo de viver, associados a uma amargura recorrente, como aquela da 129

BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes: fusées, mon coeur mis à nu, carnet. Paris: Librairie José Corti, 1949. p. 18.


65 privação ou do desespero. O mistério, o lamento são também características do Belo”130. Mais adiante, Baudelaire aponta que o Belo acompanha a Alegria apenas como ornamento mais vulgar, pois “a Melancolia é, por assim dizer, o companheiro ilustre, ao ponto de não conceber nenhum tipo de Beleza onde não haja Desgraça”131. Eis a definição do belo em Baudelaire. A beleza melancólica e desgraçada do poeta decadente parece contraposta na forma engraçada com que surge no poema: com cabelos verdes levando uma tartaruga para passear. Exceto a semelhança na forma de criação, não há traços evidentes desse teor de beleza no poema. Ao contrário, Roberto Piva exala grande otimismo e alegria – muito longe da melancolia do dândi. É um poema de extração estadunidense – a começar pelo milk-shake. O primeiro poeta norte-americano a aparecer é Jim Morrison – aquele mesmo que Roberto Piva coloca ao lado de Whitman na expressão do amor angelical e selvagem, na entrevista à Rolling Stone. Na mesa de um bar, grávido de desejos, o poeta queria ouvir “The Changeling” (O Mutante), do The Doors (1971132). Sob o urro inicial do “Solte-se” (Get Loose), a composição canta o Mutante que pede para o vermos mudar; uma metamorfose em que ele se torna nós próprios e com isso nos torna também mutantes: “Eu sou o ar que você respira / O alimento que você come / Os amigos que você cumprimenta / Na rua movimentada [...] Me veja mudar, você”. É o poeta caminhando à deriva e se fundindo nos corpos que encontra. É a temática do poeta mesclando-se nos outros, nas coisas, no mundo – inclusive no leitor. E imerso nesse fluxo do universo, o poeta muda e faz tudo ganhar essa metamorfose: não apenas ele torna-se nós que o lemos, mas nesse movimento nos tornamos outros. É a temática típica de Walt Whitman. É sobretudo a grande alegria de Whitman que o poema exala – muito longe da bela melancolia do dândi. É dos poemas mais afirmativos de Piva, mais otimistas. Nada de crítica ou de imagens destrutivas. É o poema mais a la Whitman de Piva. O bardo americano ama o mundo como fluxo perpétuo do diverso, com todos problemas e alegrias, com todo bem e todo mal, uma vez que não há nada para se julgar ou corrigir, mas vivenciar todas essas sensações com felicidade e prazer. Com seu tom de oralidade, Whitman tem como característica dirigir perguntas aos leitores, estabelecer um franco diálogo ou incitá-los a sentir o prazer com as relações: Pensar em quanto prazer existe! Você sente prazer quando olha pro céu? Sente prazer com poemas? Você se diverte na cidade? ou metido em negócios? ou armando uma indicação e eleição? ou com sua mulher e a família?”133

É esse o “sangue elétrico” que atravessa Piva e o faz dizer: “eu me sinto muito feliz / meu coração zumbe [...] meus pulmões são jovens e perfeitos [...] o mundo é um maravilhoso lugar para se nascer”. Nada do “batalhão de novos idiotas” nas maternidades ou da mente do poeta rachada de encontro a uma calota, com sua alma desconjuntada (imagens fortemente destrutivas que se acumulam em Paranóia). É um dionisíaco “Sim” à vida em toda sua variedade. A sequência do poema menciona explicitamente Whitman com sua vivência do corpo e seus 130

Ibidem, p. 21. Ibidem, p. 22. 132 The Doors. L.A. Woman. Elektra Records, 1971. 1 disco. 133 WHITMAN, Walt. Folhas de Relva, op. cit., p. 153. 131


66 apetites. Mas as interrogativas já o traziam: “Quantos amigos você fêz hoje? O que você sonhou esta noite? Você já viu o pôr-do-sol em Eldorado ou na Riviera paulista? Você está amando?”. São interrogações de Walt provocando para viver as coisas boas da vida. O poeta questiona com entusiasmo, sem julgamento moral ou agressividade, incitando o leitor para viver intensamente. Esse entusiasmo de Whitman sempre vem acompanhado de Ginsberg – aquele mesmo que encontra o poeta de “Folhas de Relva” em um Supermercado na Califórnia. Piva também tem suas iluminações nesse mesmo lugar, entre as batatas. Um sanduíche aqui, um girassol acolá e as interrogações de Ginsberg são mencionadas: “Que correnteza nos levará à deriva hoje?”, similar à “Aonde vamos, Walt Whitman? [...] Que caminhos aponta tua barba esta noite?”, verso de Um Supermercado da Califórnia134 – já presente na Ode a Fernando Pessoa de Roberto Piva (“Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta noite?”) ou em Paranóia, referindo-se a Mário de Andrade (“Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?”135). De certa forma, Piva retoma a tríade Whitman-Álvaro de Campos-Ginsberg de sua Ode a Fernando Pessoa (1961). Esta última interrogação se repete do intertexto de Ginsberg, assim como a seguinte, retomando Campos: “Onde estará você sonhando agora / enquanto as nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?” – símile de “Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus) / Sentes isto, sei que o sentes” da Saudação a Walt Whitman de Campos136, também já presente em Ode (“Onde estás sentindo agora?”137) e Paranóia (“Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?”138). Mas aqui nada do tédio do poeta lisboeta, nada da melancolia do dândi francês, nada da crítica à cidade de São Paulo pelo seu moralismo; mas sempre intenso prazer e entusiasmo. Sempre o sorriso aberto emoldurado por longas barbas do bardo cosmos. O poeta de 1972 revisita muitas de suas referências do início da década anterior vestindo-as com cores mais quentes e empolgadas. Até T.S. Eliot – aquele mesmo rechaçado nos Manifestos de Roberto Piva de 1962 – vem compor o elenco estadunidense com seu místico Quatro Quartetos. Ao início do poema transcrito por Roberto Piva segue-se a captura do rio selvagem com a construção de uma ponte, momento de secularização em que “o deus castanho é quase esquecido”139. No entanto, em épocas de cheia, a vazante do deus indomável transborda com fúria e rememora sua força. Essa força da divindade, para Eliot, está presente “nos quartos das crianças, nos quintais de abril, no aroma das uvas sobre a mesa outonal, no halo dos lampiões de inverno”. É assim que a presença fulgurante do deus-rio é permanente, a exemplo do verso que conclui o poema: “O rio está dentro de nós, o mar está a toda nossa volta”140. Certamente este deus indômito está presente também naquela mesa de bar na rua Haddock Lobo, de onde Roberto Piva escreve. Certamente o rio flui em suas associações e na maré vazante de seus versos. Em suas águas, Roberto Piva experimenta a proliferação de deuses 134

GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1956/2005. pp. 19-65 (Coleção LP&M Pocket, vol. 188). p. 49. 135 PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 64. 136 PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 149. 137 PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 20. 138 PIVA, Roberto. Paranóia, op. cit., p. 64. 139 ELIOT, T.S. Quatro quartetos. (Gualter Cunha, trad.) Lisboa: Relógio D’água, 1944/2004. p. 57. 140 Ibidem, p. 57.


67 num mundo que vibra forças encantadas. São estes rios indômitos que trespassam as ruas da cidade, como aquela em que o poeta vê o nascimento de deuses pagãos nos rostos dos garotos. Por um lado, o poema pulsa aquela mesma Grande Vida cavalgada em sensações, do início de sua produção poética. Por outro, incorpora as forças dessa juventude roqueira com o qual flertou durante este período. Mas agora, além de Whitman-Campos-Ginsberg, Roberto Piva lança mão de Michael McClure, este outro grande poeta do rock por sua influência no The Doors ou por composições como Mercedes Benz, consagrada na voz de Janis Joplin. “A POESIA É UM PRINCÍPIO MUSCULAR” – em caixa alta, bem ao modo do poeta americano. A frase é característica de McClure e aparece em diversos momentos de sua criação. Em uma divulgação de recital do ano de 1960, por exemplo, o poeta apresenta texto que se inicia da seguinte forma: “A Poesia é um princípio muscular e uma revolução para o corpoespírito e intelecto e o ouvido”141. O poeta prossegue dizendo que imagens e melodias no poema não são suficientes, mas sua potência sensível – com em uma experiência religiosa ou um toque amoroso. McClure experimenta a poesia em sua fisicalidade, como urro de leões ou sussurro de amantes. Importa sua potência de vibrar a carne e retesar o músculo. Esse corpo aberto ao devir poético é grávido de sinergias: “O toque de veludo na ponta dos dedos pode se tornar um grito quando o tempo está parado”. É uma poesia corporal como extensão da voz do poeta; uma poesia considerada um organismo vivo e pulsante capaz de proliferar as sensações que o próprio poeta nela inscreveu com seu punho. São as bases da poesia na biologia, pois poeta, poema e leitor são tomados por organismos em crescimento natural e, inclusive, em combate comum ambiente que entrave este processo. Daí sua feição política anárquica, a partir da rejeição de qualquer norma social ou lei discursiva: “Não há leis, mas vivemos em mutação e qualquer sistema é um toque de morte”. Daí o final do texto: “Acredito na LIBERDADE, BELEZA, AUTONOMIA” Ao trazer essa verve corporal do verso de McClure, Roberto Piva encerra o poema como um convite para se reverberar na carne sua potência. Mas também revela a relação do poeta paulistano com o estadunidense, pois em meados desta década Roberto Piva recebe, autografado, a edição de 1975 do “Jaguar Skies”. A frase inicial do livro é exatamente esta: Poesia é um princípio muscular. No entanto, como o poema de Piva data de fevereiro de 1972, o poeta tinha acesso a materiais ainda antes de sua grande repercussão pública nos EUA. A aura do rock colocara Roberto Piva novamente na proa das produções musicais e literárias mundiais, continuando sua característica cosmopolita e pioneira. Assim, o poema é emblemático das vivências de Roberto Piva deste momento. No corte biográfico fundamental em sua poesia, ressalta as convivências do poeta, os locais que frequentava, suas amizades e a exaltação da vida num otimismo contagiante. No plano de sua formação cultural, revela suas influências literárias e musicais, com acento a sua antena que capta todas as novidades. Na experimentação poética, o poema traz o disparo de versos velozes separados por traços que marquem seu ritmo sem perder seu pique – experiência que seria repetida em Quizumba (1983). No que diz respeito ao processo criativo, Roberto Piva vivencia a percepção delirante da realidade com os assaltos do imaginário e suas associações livres, de inspiração surrealista. Também a fusão entre arte e vida, ou criação a partir da experiência

141

MCCLURE, Michael. Poetry is a muscular principle and a revolution for the body-spirit and intellect and ear. 1965. Disponível em: http://library.brown.edu/find/Record/dc1304011886265627. Acesso em: 4 set. 2013.


68 vivida, coloca o poema em sintonia com surrealistas e, inclusive, sua retomada visceral pela geração beat. Por fim, o poema é emblemático das vivências de Roberto Piva no cenário do rock paulistano e de sua proeminência como agitador cultural, crítico de artes, poeta e profeta.




71

Abra os olhos e diga Ah!: a política do corpo em chamas

Publicado poucos meses após o golpe militar de 1964, Piazzas traz a audaciosa denúncia de torturas sofridas por jovens, além de associar o Estado brasileiro e suas instituições policiais ao fascismo e ao nazismo. Após Piazzas, Roberto Piva fica mais de uma década sem lançar livros, acompanhando a interrupção das atividades de seu editor e amigo, Massao Ohno, visado pela ditadura. Combina bem com a vida poética de Roberto Piva a afirmação de Alcir Pécora sobre sua produção em “surtos poéticos”. A partir dessa chave, Piva teria criado suas obras em intervalos regulares de 12 anos – aquele do começo da década de 1960, outro de meados de 1970 ao começo da década seguinte e um último momento a partir do final dos anos 90142. Contudo, a metáfora dos “surtos” valoriza demais os rompantes afetivos do poeta e negligencia as injunções do contexto histórico em que sua obra foi produzida. Após Piazzas, por exemplo, Roberto Piva não mais publica livros em virtude da censura, e tão logo Massao Ohno reinicia sua atividade editorial, o poeta lança seu Abra os olhos e diga ah!. Sua obra Ciclones, publicada em 1997, tinha já uma versão pronta em 1991, que não veio a público por falta de interesse editorial. Sergio Cohn, que acompanhou de perto a preparação de Ciclones, observa que o poeta tinha amplo material, acumulado após anos de escrita, decidindo por publicar em um único livro, pois “sabia da dificuldade que poderia haver em ter outro convite para publicar seus textos”143. Poderíamos citar, ainda, o inédito Corações Hotdog (que reúne poemas das décadas de 1970 e 1980) e foi recusado pela editora Brasiliense após convite prévio, por preconceito em relação a seu conteúdo licencioso. Ou ainda, Animais de Néon, obra que Roberto Piva dá como pronta em sua publicação na revista argentina Cerdos & Peces (1989), mas que permanece inédita. Assim, a produção contínua do poeta nem sempre encontrou meios de diálogo com seu público, seja por censura da direita militar ou por moralismo da esquerda. Porém, eis mais uma transgressão disparada pela poesia de Roberto Piva: se desencadeia “surtos” nos críticos, talvez possa levar os loucos a fazerem boa crítica. Se, como destaca Alcir Pécora, a poesia de Roberto Piva tem muitos torcedores e poucos críticos, pode tornar críticos seus torcedores do mesmo modo como arranca surtos dos críticos.

1. Potência erótica

eu sou o jet set do amor maldito DENTRO DA NOITE & SUAS CÓLICAS ILUMINADAS os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão DISPOSIÇÃO DE IR À DERIVA NOS DADOS DO AMOR espinafre pela manhã & queijo em pasta 142

PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 09. 143 COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 59.


72 almas-esportivas com flores entre os dentes minha laranja se abrindo como uma porta TUA VOZ É ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar a parede do mundo ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA144

Abra os olhos e diga Ah! canta o amor por garotos. Amor sob o signo do mal. Os poemas amealham imagens da potência do amor em vibrar na verve da vida. A erótica, nesse primeiro lampejo, encarna a intensidade do corpo. O uso frequente dos pronomes “teu” e “meu” revela o amante presente, numa relação a dois. Nessa intimidade, o poeta exalta, no poema de abertura, “OS OLHOS DO MEU AMANTE”, repetidas vezes, tocando seu corpo com delicadeza visceral: “eu te respiro nas tripas”. A fusão do sexo é caldeirão que ferve a vida, pois, após o amor, “tudo começa / a anoitecer / cheio de energia”. O amor é o movimento da vida. A partir do amor, tudo anoitece cheio de energia, ou a noite lateja suas “cólicas iluminadas”. A partir do amor se pode afirmar: “ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA”. O poeta se inscreve como jet set, cujo amor maldito faz decolar. Pois o movimento do amor é lançar ao devir: à deriva nos dados do amor. Os dados como símbolo do acaso, a entrega amorosa tomada por deriva e a urgência de se deixar levar sem controle. As imagens do que parece ser a refeição de uma manhã após o amor, com espinafre e queijo em pasta, conferem um ar de banquete, cuja gula compõe a luxúria. As “almas-esportivas com flores entre os dentes” apresentam um imaginário olímpico, com os membros musculosos, apimentados com a insinuante flor nos dentes. É nessa atmosfera libertina que a laranja do poeta se abre, como porta, e os amantes rasgam a parede do mundo. Esse teor agressivo e subversivo do amor coloca os amantes na ebulição da vida.

2. Amor Maldito Mas o amor é maldito também por ser amoral: por ser atravessado por outras forças distintas dos bons costumes. Mal dito pela moral conservadora. É sob o signo do mal que o amor permite viver numa veia instintiva e corporal, no avesso da humanidade e da moral. O primeiro poema traz os amantes como “novos animais de rapina” e o próprio poeta se apresentaria dessa forma anos mais tarde: Eu Roberto Piva Animal de Rapina (1983). “Animal de rapina” é termo frequente na poesia de Roberto Piva desse período, numa apropriação muito particular da noção de Friedrich Nietzsche. O que seria esse “animal de rapina”? Das diversas aparições desse conceito na filosofia nietzschiana se pode dizer que a expressão simboliza o homem anterior ao estágio comunitário

144

PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1976/2006. p. 27.


73 – ou a experiência de um estado selvagem. Antes do civil, a selva. O monstruoso fluxo dos impulsos selvagens, para além do bem e do mal. O homem como devir da vida natural. Ali onde tudo exala a força, a ação, o impulso, a necessidade. O sentido predatório do homem ávido de presa, intenso no prazer de destruir. Mas também intenso na inocência e alegria de criar. Nesses animais de rapina, Nietzsche vê os “mais involuntários e inconscientes artistas”145. O animal de rapina está também na raiz de toda moral cristã. Agora não como exaltação, mas como temor. Trata-se de uma moral criada a partir do medo ou de um afeto reativo de negação. Amansar o animal de rapina que existe em cada ser, torná-lo manso, inofensivo, obediente: eis o animal de rebanho. Para Nietzsche, muito do que a moral do rebanho considera força do mal, advém desse temor ao vigor do animal de rapina. Assim, identificado a si e seus amantes como animais de rapina, Roberto Piva exalta a vida visceral dos instintos, além de se colocar como antípoda da moral cristã dominante. Em Abra os olhos e diga Ah!, Roberto Piva lança mão de figura não menos cruel: Lautreamont. A epígrafe da obra remete ao famoso trecho de Cantos de Maldoror dedicado à pederastia. Eu sempre experimentei uma atração infame pela juventude pálida dos colégios, e pelas crianças estioladas das fábricas! Minhas palavras não são reminiscências de um sonho, e eu teria muitas lembranças a desfiar, se me houvesse sido imposta a obrigação de fazer passar diante de vossos olhos os acontecimentos que poderiam confirmar, como seu testemunho, a veracidade da minha dolorosa afirmação. A justiça humana ainda não me pegou em flagrante delito, apesar de incontestável habilidade de seus agentes. Até mesmo assassinei (não faz muito tempo!) um pederasta que não se prestava suficientemente a minha paixão; joguei seu cadáver em um poço abandonado, e não há provas decisivas contra mim. Por que estremeceis de medo adolescentes que me ledes? Acreditais que eu queira fazer o mesmo convosco? Vós vos mostrais soberanamente injusto... Tendes razão: desconfiais de mim, principalmente se fordes belo146.

A primeira frase da passagem é exatamente aquela da epígrafe de Abra os Olhos e Diga Ah!. Nela, o amor por garotos é maldito não apenas pela reprovação social, mas por se comprazer com as paixões inconsequentes. É essa a intensidade da vida que passa ao largo da “humanidade”, como quer Latreamont. São estas as feições do homem entregue aos instintos animais, como quer Nietzsche. Se o animal de rapina convoca a intensidade do devir contra a obrigação do dever, Roberto Piva encarna o anticristo; se a “atração infame” por garotos é parte da empreitada de Maldoror pela destruição da família, Roberto Piva incorpora essa força em sua afronta à “humanidade”. É esse amor maldito que se experimenta.

3. Poema na cama O amor pederástico surge como mote do vínculo do amor e do mal, ponto seminal do modo de vida do poeta. Da mesma forma, o ato sexual é similar ao próprio ato de criação

145

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. (Paulo César de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1887/2009. p. 69. 146 LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 232-233.


74 poética. Desde o Postfacio de Piazzas (1964) Roberto Piva assemelha sua poesia ao “ATO SEXUAL” ou à “orgia”. O ato da escrita enleva o poeta aos influxos das sensações e fluxos do inconsciente, tanto quanto o ato sexual. Em ambos, está-se entregue a forças instintivas e associações delirantes, a despeito da consciência e da moral vigente; em ambos, as dicotomias entre euoutro, passado-presente-futuro, ser-expressão se desvão, numa espécie de caos originário que guarda o sentido profundo da orgia. Se em Piazzas o poeta dialoga com passagens de Breton (seja àquela da poesia como orgia, ou a afirmação de que as palavras fazem amor) e formula o que nomeia como “proposição” de sua poética, em Abra os Olhos e Diga Ah! a coisa aparece crua, com o poeta literalmente escrevendo após o amor, com seu amante dormindo ao lado: “(MEU AMOR DORME & SE COÇA EM SONHOS SE DEBATE & GEME SE DEBATE & GEME SE DEBATE & GEME”. Contudo, mais do que semelhança, Roberto Piva traz nessa obra um contraponto em relação às ideias do arauto do surrealismo oficial. Vejamos.

(A EPOPÉIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM OS LENÇÓIS DESARRUMADOS FEITO UM CAMPO DE BATALHA) é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas vertigens onde você meu amor se enrosca em meu coração de veludo verde & as delícias de continentes alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do amor sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas gosto de gostar & a tv da alma amanhece bêbada & tenta dizer alguma coisa147

Numa primeira olhada, a intensidade do amor maldito parece similar aos poemas anteriores. A partir do amor a vida ganha vibração e o poeta nasce para a madrugada (da mesma forma que tudo começava a “anoitecer cheio de energia” ou que a noite contraia suas “cólicas iluminadas”). O amante, antes respirado em suas tripas, agora se enrosca no coração do poeta, em simbiose similar. O amante com a voz eterna num, e o rosto de pérolas noutro. Porém, a vereda do amor na deriva da vida agora leva a rumo certo: “às tempestades PLANETÁRIAS & suas cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas”. O amor que lança ao devir, também devém. É maldito não somente pelas delícias selvagens que experimenta, mas, não sendo amparado por qualquer instituição social (como o matrimônio), é também mais volátil e fugaz. É o amor maldito como êxtase: maravilhoso e terrível. Daí a tristeza e as lágrimas acompanharem os tambores do amor.

147

PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!, op. cit., p. 35.


75 Um parêntese: Sergio Cohn, amigo de Roberto Piva e grande conhecedor da poesia de Michael McClure, apontou as semelhanças entre os versos dos dois poetas. Na época de composição de Abra os olhos e diga Ah!, ambos se correspondiam e o poeta paulistano recebera, inclusive, a obra Jaguar Skies (1973) autografada. Vejamos um poema desta obra: BEGINNING WHIT LINES BY ROBERT DUNCAN for Joanna “WERE YOUR ANSWERING LOVE but stuff of passing dream I’d dissolve my soul in sleeping surfaces” and smile AND SMILE AND SMILE in song that is a pouring Nile of bubbling slumberous grins and elfin mumbles on the pillow of delight; I’d break from unconsciousness with laugh, facing my mortality, and then fall back again to snooze into fatality and dream of mouse-eared people dancing round a golden steeple while my shoulder touched your hand148.

Uma característica dessa obra de McClure é a presença de versos iniciais em caixa alta, mesmo procedimento utilizado para ressaltar algumas passagens no interior do poema. Muitos dos poemas de Abra os olhos e diga Ah! fazem uso desse mesmo expediente, como na passagem acima, em que a caixa alta ressalta versos apropriados de André Breton, de forma similar aos versos de McClure ao mencionar Robert Duncan. O ritmo de alguns versos repetidos também assemelha ambos os poetas: os versos de Piva “GEME SE DEBATE & GEME SE DEBATE” são similares aos “AND SMILE / AND SMILE” de McClure. Contudo, enquanto o poeta estadunidense tende a centralizar o poema na página, o brasileiro utiliza o recuo tradicional à esquerda. Enquanto o primeiro tende a versos curtos, o ritmo do segundo se sustenta em versos longos, embora ambos utilizem frequentes quebras de uma mesma frase dividida em versos distintos.

148

McCLURE, Michael. Jaguar skies. New York: New Directions Books, 1975. pp. 49. Em tradução literal: “INÍCIO COM VERSOS DE ROBERT DUNCAN / para Joanna / “ERA SUA RESPOSTA AMOR / mas o material do sonho passando Eu / dissolveria minha alma em superfícies de sonho” / e sorriso / E SORRISO /E SORRISO / na canção que é uma enchente do Nilo / borbulhando risos sonolentos / e murmúrios de elfos / no travesseiro do prazer; / Eu / quebraria a partir da inconsciência / com o riso, / encarando minha mortalidade, / e / então cairia de novo / na soneca dentro da fatalidade / com gente rato-orelhas num sonho / dançando ao redor de uma torre de ouro / enquanto meu ombro / toca sua mão.


76 Além do aspecto formal, o tema de McClure também comparece em Piva: poemas escritos após o amor, com os amantes emaranhados na cama; numa sequência de êxtase amoroso, adormecimento dos amantes e imersão no mundo dos sonhos. Mas não apenas McClure e Piva fazem poesia após o amor:

Sur la route de San Romano La poésie se fait dans un lit comme l’amour Ses draps défaits sont l’aurore des choses La poésie se fait dans les bois […] L’acte d’amour et l’acte de poésie Sont incompatibles Avec la lecture du journal à haute voix […] La chambre aux prestiges Non messieurs ce n’est pas la huitième Chambre Ni les vapeurs de la chambree un dimanche soir […] L’étreinte poetique comme l’étreinte de chair Tant qu’elle dure Défend toute échappée sur la misère du monde 149

O verso inicial do poema foi mencionado por Roberto Piva na Introdução a Anotações para um Apocalipse (1964), do amigo Claudio Willer. Naquele contexto, o poeta salienta a identificação do ato do amor com a poesia, em detrimento da poesia cerebral e idealizada, típica da época. Em sua Rota, André Breton toma o amor, como a poesia, em um sentido mais geral. O poema segue com a poesia feita nos “bosques”, em meio a elementos da natureza – possivelmente alusão à sua caminhada na mencionada estrada. Seja porque o amor lança à “aurora das coisas”, numa espécie de viajem cósmica, seja porque é incompatível com a realidade corriqueira (leitura de jornal) ou com os acampamentos de batalha, é, como a poesia, um refúgio à miséria do mundo. Ou seja, por alçar a prazeres, delírios e viagens cósmicas, torna o poeta um fugitivo do mundo, amparado em seu abraço. A epopeia do amor de Roberto Piva é referencial: transfigura uma experiência vivida, repleta de feições do amante e seus gestos. Não é o amor em sentido geral ou abstrato, mas uma experiência sexual em particular. O amor em Roberto Piva tem feições selvagens e esbanja agressividade (“garoto triste a orgia te espera / com cactos de veludo”). Faz re-nascer para a

149

BRETON, André. Sur la route de San Romano. Em: ______. Oeuvres Complètes, vol. III. Paris: Gallimard, 1948/1988. pp. 421. Em tradução literal: Na Rota de San Romano: “A poesia se faz na cama como o amor / Seus lençóis desarrumados são a aurora das coisas / A poesia se faz nos bosques [...] O ato do amor e o ato da poesia / São incompatíveis / Com a leitura do jornal em voz alta [...] O quarto aos delírios / Não senhores, não é a oitava Carta / Nem os vapores do quarto de campanha num domingo a tarde / O abraço poético como o abraço da carne / Enquanto durar / Protege todo fugitivo da miséria do mundo”


77 madrugada e seus prazeres. Mas é cacto de veludo: prazerosa e espinhenta; feri e acaricia; traz gozo e dor. O amor maldito é pederástico. Descreve-se um encontro com garoto feito anjo, no poema intitulado Ganimedes 76. Adriano e Antinous vem em seguida para compor o imaginário greco-romano da pederastia. Os versos trazem gestos do sexo em carne viva: “morda meu coração na esquina”, “assim que você espreguiçar eu estarei / sangrando” ou “gemido de garoto ferido”. Roberto Piva faz questão de marcar outra diferença importante. Em sua paródia do verso de Breton, os lençóis desarrumados não conduzem à criação do cosmos (“aurora das coisas”), mas são um “campo de batalha”. Não o cosmos, mas a guerra. Logo a guerra recusada por Breton, pois descarta os vapores do quarto de campanha ou do acampamento militar. Roberto Piva, ao salientar a batalha, conduz a um confronto com Breton. Pois a epopeia do amor em Roberto Piva, e sua poesia, não protegem contra a miséria do mundo, mas, ao contrário encarnam as contradições de seu tempo. Caminho de San Romano, escrito durante a Segunda Guerra, é refúgio contra o mundo; Abra os Olhos e Diga Ah!, escrito durante a ditadura militar, é campo de batalha.

4. política do corpo em chamas

(O SEXO DA MEIA-LUA LANÇA SUA NOTA METÁLICA & SEUS GATOS SELVAGENS) onde dançamos com gorilas tântricos cérebros eletrônicos fazendo xixi na cama vermelha GRITOS MARAVILHOSOS NA JANELA política do esquecimento sistemático ESTAMOS NA MERDA GENTIL rosto de beterraba & sexo em ruínas espelho bilíngue minhas esporas & olhos sorridentes TODOS CHORAM AO MESMO TEMPO NO BRONZE DA TIRANIA & COMEM SUAS MENINAS o vento da vida os braços dependurados maxilares estourados ao amanhecer TOTEM KAPITALISTA TOTEM KAPITALISTA TOTEM KAPITALISTA150

Temos falado no amor em estado de guerra. Sensação de uma confusão pela efusão das paixões. Este poema traz os contrastes nos versos, onde se intercala passagens amorosas com

150

PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!, op. cit., p. 31.


78 faces do contexto político (“GRITOS MARAVILHOSOS NA JANELA política do esquecimento sistemático”). A cena política brasileira é satirizada numa paródia da famosa passagem do hino nacional. É a merda gentil. O choro no bronze da tirania. O sexo em ruínas. Violência gratuita, sem qualquer criação. É o TOTEM KAPITALISTA. Interessante notar como o livro começa com o verso da “VISÃO ANTROPOLÓGICA DO CANTO DA JANELA”. A noção de totem para se refletir à economia-política é interessante. Guarda semelhanças com a virada antropológica de Bataille e demais integrantes do Collège de Sociologie de Paris. As noções de Totem ou Tabu são centrais na antropologia ocidental – e na psicanálise – para os estudos dos povos considerados como “primitivos”. A virada está em fazer uso dessas noções para problematizar a realidade de países ocidentais desenvolvidos (não “primitivos”) – tal como a tradição modernista da antropofagia. Piva faz essa virada que contrasta com a velha forma de compreender o capitalismo como modo de produção da vida social, via marxismos. E o TOTEM KAPITALISTA é esse: repressão sexual, necessidade de tirania (e de tiranos) e policiamentos. As passagens são várias: “Mickey Mouse deve ser agente / da CIA / câncer policial do mundo & seus velhos / Totens”. Policiamento militar, rondas noturnas, policiamento moral cristão, policiamento via entretenimento. Vigiar e punir. A este poder disciplinar que se espalha por toda a sociedade não há como fugir. Não há como se esquivar, se exilar: “você pede direito de asilo / você mergulha direto no front”. Sempre se está na linha de fogo. Que fazer? A aposta piviana são linhas de fuga: os porões da vida, os espaços livres da disciplina dos corpo, as estradas e os subterrâneos urbanos. Espaços flutuantes e movediços percorridos pelas veredas do amor. São vários os versos que trazem o amor atrelado a imagens de deslocamento: “eu me preparo para estas cidades sem limites”; “quero teu coração prontinho pra zarpar”. Se o desejo de zarpar anuncia linhas de fuga dos policiamentos externos, o corpo no amor prenuncia experimentações também fluidas. Abra os Olhos e Diga Ah! celebra o devir.

5. Porões da vida

(O MUNDO MUDA A COR DA JABUTICABA MUDA TEU CU MUDA O CHAPÉU DO VIZINHO MUDA TEU SEXO MUDA O ÍNDIO MUDA HOLDERLIN MUDOU HEGEL MUDOU TECNÓPOLIS MUDA & MUDAMOS CADA DIA MAIS PARA O PORÃO DA VIDA COMO RIMBAUD ARTAUD MACUNAÍMA ROSA LUXEMBURGO) o dragão corre na corveta caraíba as coxas têm febre eu nem planta nem fantasma o verdadeiro veneno MODESTA CRIATURA CIDADÃO DE UM MUNDO EM CHAMAS eu faço esta advertência: A PERFEITA MÚSICA ESTÁ NO AÇO canteiros folhudos cheios de silêncio espaço cósmico samba-canção do nada


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A busca por espaços onde verter a vida subversiva. A busca por mudanças – tão urgentes dentro do contexto político da época. Para Piva estas mudanças levavam ao “porão da vida”. Rimbaud e a África: recusa do mundo ocidental e a busca da sabedoria primeira entre as culturas tradicionais. Artaud entre os Tarahumaras: mesma ruptura com o modo de vida europeu que redunda nas andanças do corpo em cataclismo, rumo aos rituais xamânicos. Macunaíma e a vida preguiçosa na mata, entre brincadeiras, perversões sexuais e magias, sem responsabilidades ou caráter (nacional ou moral). Piva antecipa aqui a ruptura com a civilização ocidental atrelada a busca por rituais arcaicos. Está a bombordo da corveta caraíba, na proa do movimento antropofágico de Oswald de Andrade. A busca por espaços movediços coincide com a aposta em rituais arcaicos – logo eles encobertos pela moderna secularização do mundo. Com a expressão “eu nem planta nem fantasma”, Roberto Piva faz a crítica ao homem moderno via filosofia nietzschiana – como, aliás, já fizera no Póstfacio de Piazzas151. Zaratustra desce a montanha após anos de reclusão e encontra um ermitão, considerado o mais sábio entre os homens. O sacerdote se dedica a cantos e a orações, além de se alimentar apenas de raízes. Zaratustra o chama de “híbrido de planta e de fantasma”152 – um símbolo da vida ascética. É uma metáfora do homem que nega a vida, seja ele um religioso, um artista ou um filósofo. A imagem da planta se relaciona com a técnica ascética do jejum ou da alimentação vegetariana. Para Nietzsche, é a vontade de nada a partir do corpo, privando-o de alimentação e devotando-o ao definhamento. O corpo é negado por uma vida além da Terra, um além da vida: são o “fantasma” e suas “esperanças ultraterrenas”. São criações abstratas que legitimam a negação do instante em prol do distante; a negação da terra pela eternidade. Uma das expressões dessa negação da vida presente, para Nietzsche, eram as utopias políticas, como o comunismo. A sociedade sem luta de classes é símile da paz inerte da eternidade. Se, desde sua primeira publicação individual (Ode a Fernando Pessoa), Piva era grande crítico do comunismo pelo seu conservadorismo, em Abra os Olhos e Diga Ah! o poeta simpatiza com movimentos de esquerda e com algumas personalidades revolucionárias. O poema traz Rosa Luxemburgo ao lado de Artaud e Rimbaud, que o poeta tinha como suas principais influências. Se a aposta do poeta eram os porões da vida, deles não se descarta a possibilidade revolucionária da esquerda. Em outras palavras: Roberto Piva, o consagrado anticomunista das últimas décadas, está, nesse momento, enamorado das teorias revolucionárias de extração marxista. Na organização de suas Obras Reunidas, Roberto Piva substituí o nome de Rosa Luxemburgo por Dino Campana – o poeta italiano conhecido por seus surtos deambulatórios e vida subversiva (que bem compõe o elenco de linha de fuga da civilização, ao lado de Rimbaud e Artaud). Com isso, exclui as alternativas revolucionárias por apostas anárquicas e individualistas.

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“Assim a constatação de que Nietzsche estava certo & lúcido ao afirmar que o homem moderno é uma mistura híbrida de planta & fantasma...”. PIVA, Roberto. Piazzas, p. 55. 152 NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra, op. cit, p. 36.


80 6. “A POLÍTICA DO CORPO EM CHAMAS”: centralidade do corpo na política contemporânea A ênfase na política do corpo é dos temas mais excitantes em Abra os Olhos e diga Ah!, especialmente se tomarmos o furor contemporâneo pelo “corpo”. Não se trata de uma novidade no interior da poesia de Roberto Piva. Basta lembrar que a primeira formulação mais consistente de sua poética, definia poesia “como a orgia mais fascinante ao alcance do homem” – apropriação bem particular da passagem de Breton que pudemos analisar. No mesmo Postfácio de Piazzas, fica claro que tal poética deriva de uma crítica ao cristianismo como “escola do Suicídio do Corpo”. É contra todo o contexto de repressão às expressões corporais que Roberto Piva destaca sua poesia como “ATO SEXUAL”. O potencial erótico e subversivo da poesia está relacionado à livre expressão do corpo e à tal “Libertação Psicológica & Total”153. Escrito no mesmo mês de agosto de 1964 e em extrema sintonia com o texto de Piva, o manifesto As fronteiras e dimensões do grito, de Claudio Willer154, cita as fontes dos dois poetas, em suas ênfases no corpo: a aposta de Norman Brown na “ressurreição do corpo”. O autor de Life Against Death – obra que Piva conhecera em 1962, a partir do amigo Wesley Duke Lee – destaca o grande desafio contemporâneo na experiência corporal, especialmente na descoberta de suas possibilidades sexuais. Trata-se de um embate contra toda a negação da vida e da morte, como expressão de um além da vida que recusa seu devir – passagem crítica ao cristianismo em que Brown deixa nítida a inspiração em Nietzsche. Por outro lado, é exatamente na discussão do tema da “ressurreição do corpo” que Octavio Paz chega a uma definição de poesia bastante cara a Roberto Piva. Diz o poeta mexicano: “O século XIX foi a época da grande humilhação do corpo (...) Mas a rebelião contemporânea, a ressurreição dos corpos, deslocou o trabalho como valor central de nossa civilização”155. Tal como Norman Brown – e também Piva e Willer – Paz destaca o movimento romântico como vórtice do ressurgimento do corpo. Porém, aponta autores do que nomeia como “barroco espanhol” (Góngora e Quevedo) como figuras importantes na metaforização do corpo em fogo: “O desejo transfigura o corpo em chama e a chama se converte em ouro....”156. Essa poética de ressurreição do corpo em chamas passa pela rebelião romântica, o barroco espanhol e chega à poesia contemporânea, em poetas como Cernuda: Cernuda foi uma das figuras espanholas que me interessou mais, justamente porque me pareceu, desde o princípio, um escritor perigoso, um escritor no qual os valores poéticos não se podiam dissociar da subversão. Para mim a subversão poética é subversão corporal. Em Cernuda, o corpo, finalmente, se põe a falar em língua espanhola e se põe a falar e diz palavras escandalosas 157.

A frase “subversão poética é subversão corporal” foi repetida por Roberto Piva para se referir à sua poética, tão transgressora e fogosa como aquela de Cernuda. Em Abra os olhos e diga Ah!, Roberto Piva dá continuidade à sua poética como ato sexual e como ressurreição do

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PIVA, Roberto. Piazzas, op. cit, p. 55. WILLER, Claudio. As fronteiras e dimensões do grito. Em: ______. Dias Circulares. São Paulo: Massao Ohno, 1964/1976 155 PAZ, Octavio; RIOS, Julián. Solo a dos vozes. (Olga Savary, trad.). São Paulo: Roswitha Kempf, 1972/1987. p. 20. 156 Ibidem, p. 24. 157 Ibidem, p. 32. 154


81 corpo, porém com outros contornos. Há também aqui a transfiguração do corpo em chamas – como observa Paz em relação ao barroco espanhol. Tal como em Coxas, nesta obra Roberto Piva denuncia a centralidade do corpo na política contemporânea – conforme também salienta Otávio Paz. O corpo em chamas é aquele que arde no desejo dos amantes, numa afirmação da vida em sua potência erótica, mas também o corpo cravejado de balas pela repressão violenta do Estado militar. É o mesmo poeta que finaliza o Posfácio de Piazzas com a exaltação de Marquês de Sade: “Liberdade Sexual Absoluta em suas mais extremadas variações levando em conta a solução de Marquês de Sade para quem a Justiça é a Santidade de Todas as Paixões” 158. Diferente de Paz e Brown, ambos críticos ferrenhos da obra de Sade, Roberto Piva afirma o devir em sua pluralidade de expressões, para além do bem e do mal. A política do corpo em chamas destaca o prazer do algoz na tortura de sua vítima, como desejo sexual tão forte quanto aquele dos amantes. Daí um mesmo verso aproximar cenas de amor com atos de tortura; daí diversas passagens de Coxas em que todos queriam “nadar em sangue” ou todos “partilhavam da turbulência do Grande Terror”159. Roberto Piva assemelha o contexto da Ditadura Brasileira ao Grande Terror francês experimentado pelo Marquês de Sade. E mais: observa o quanto esse clima violento contagia os jovens – pois dele “partilhavam”. O contexto de guerra como aquele em que afloram os instintos mais viscerais e violentos – como no sexo. No amor e na guerra, o homem é posto nu com todos seus instintos em carne viva. Como Sade, Bataille e Burroughs, Roberto Piva afirma o potencial erótico sem julgamento moral e bons mocismos, numa genuína expressão do corpo como campo de batalha. No contexto atual de apologia ao “corpo”, cada vez mais capturado pelas teorias científicas e soluções mercadológicas, a vida poética de Roberto Piva pode bem ser inspiração, com a intensidade de um corpo em devir, um corpo como campo de batalha, atento aos agentes disciplinadores, mas com força para pulsar sua veia subversiva.

158 159

PIVA, Roberto. Piazzas, op. cit, p. 55. Idem.



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Roberto Piva: “poeta homossexual-proletário”160

“Sou comunista” – apresentava-se Roberto Piva, antes de ler um poema dedicado “aos presos políticos do Brasil. Contra a tortura, pelas liberdades democráticas”161. Eram os recitais de 1977, organizados por Claudio Willer e Ruth Escobar em homenagem a poetas ligados ao comunismo, como Pablo Neruda, ou vítimas de Estados Totalitários, como Federico García Lorca. Tais atividades políticas foram pioneiras nas manifestações para a redemocratização do país. Roberto Piva participava ativamente dos recitais, das passeatas e de alguns meios da esquerda, como a Libelu (Liberdade e Luta) – grupo trotskista atuante no movimento estudantil e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Em sua atuação no movimento gay, Roberto Piva podia ser visto como ativista em uma mesa de debates sobre as “minorias”, na Universidade de São Paulo. Os poemas publicados nesse período apresentam um Roberto Piva muito diferente daquele das últimas décadas, com cortantes bravatas anticomunistas e críticas ao movimento homossexual. Certamente o poeta não quis ser lembrado por esse momento de sua produção, pois não inclui nenhum desses poemas em suas Obras reunidas e chega mesmo a alterar materiais que explicitassem essa relação com a esquerda. É o caso de um poema do livro Abra os Olhos e Diga Ah! (1976), em que o nome da revolucionária Rosa Luxemburgo, como consta na primeira edição do livro e mesmo na antologia publicada pela editora L&PM (1985), é substituído pelo do poeta italiano Dino Campana. Os poemas em que se apresentava como “homossexual” também não foram incorporados à sua obra com maior repercussão pública. Suas duras críticas ao comunismo e aos movimentos de luta por direitos sociais acabaram lhe rendendo a pecha de reacionário ou conservador, como se houvesse se eximido da atuação política durante o período da ditadura militar. Daí a importância de apresentar a poesia engajada de Roberto Piva em sintonia com a crítica de esquerda e o nascente movimento homossexual nesse importante momento da vida política brasileira. Para tanto, centrarei fogo nas publicações do poeta no jornal revolucionário Versus e no órgão gay Lampião da Esquina, nos anos de 1978 e 1979, respectivamente.

Um estrangeiro na legião O ano de 1977 viu pulular as primeiras passeatas na cidade de São Paulo após o AI-5 de 1968. Em uníssono, o coro dos manifestantes entoava palavras de ordem pelo fim da ditadura. Mas havia uma voz dissonante esbravejando frases escandalosas: “Esse pessoal acha que conhece o operário e sabe o que ele quer! Sabe nada! Eu trepo com operário e eles não estão nem aí para essa discussão toda!”162. Era Roberto Piva, frequentador de uma sauna na periferia da cidade onde transava com garotos por ele considerados “proletários”. Se os marxistas de plantão mantinham um vínculo com o operariado por meio do teórico pertencimento a uma 160

Artigo originalmente publicado em O Guari: revista eletrônica de literatura, em janeiro de 2015. PIVA, Roberto. O hino do futuro é paradisíaco. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 23, julho/agosto, 1978, p. 36. 162 PERES JUNIOR, Marrey. Longa vida à rebeldia! Uma homenagem a Roberto Piva. Disponível em: http://pga.com.br/atolivreportal/?p=38. Data da consulta: 20/02/2011. 161


84 classe social, o poeta tinha vivência bem mais corporal. Não por meio da abstração dos sujeitos da história e sua consciência de classe, mas por penetração erótica sentida na carne. Não no palanque, mas na cama! Não no chão de fábrica, mas na sauna! Para Roberto Piva não há fronteira entre o erótico e o político. Justamente numa dessas passeatas de 1977 se fez o primeiro registro audiovisual do poeta, arremessando frases inusitadas: “Eu tô sentindo que realmente a população foi lobotomizada. Foi arrancada uma parte do cérebro da população e eles estão tentando repor esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da palavra – e da palavra poética, que funda e ao mesmo tempo transforma o real”163. É inusitada, pois o lugar comum era a conclamação pelos direitos civis e políticos por meio do reestabelecimento do Estado Democrático de Direito. Daí o estranhamento da imagem delirante da lobotomia. Provavelmente, o poeta a retira do espetáculo Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do Teatro Oficina de que gostava muito especialmente. No momento intitulado Aula de Esquizofrenia são exibidos cérebros submetidos à lobotomia, prática cirúrgica comum no tratamento da esquizofrenia até meados do século. Uma imagem que faz jus às intervenções violentas contra os “desajustados” em nome da medicina, além de traduzir bem o momento brasileiro calcado em torturas físicas. O enfretamento dessa realidade repressora não é pela via partidária ou por meio das instituições políticas oficiais. Roberto Piva acredita na “palavra poética”. A potência revolucionária da poesia é exaltada, num tom muito próximo daquele de Martin Heidegger164, em seu famoso ensaio sobre Friedrich Hölderlin, por exemplo. A palavra poética, para o filósofo alemão, funda o real à medida que nomeia e atribui sentido ao que existe. Essa nomeação ocorre sempre no interior de um contexto histórico que passa a fazer sentido exatamente a partir de sua fundação poética. Assim, no limite, a palavra poética funda a própria história do homem. Não uma história instaurada de uma vez por todas, pronta e acabada, mas, ao contrário, uma história reinventada a cada momento em que é nomeada. A palavra poética para Heidegger tem o poder de fundar um começo – a cada momento. Roberto Piva acredita nessa possibilidade fundadora da palavra poética e sua potência de (re)começar a história. Nessas passeatas uma questão fica muito clara: Roberto Piva participava das manifestações pela redemocratização, mas como dissidência. Fazia-se presente como rebelde, ora destruindo convicções consensuais, ora criando novas possibilidades de compreensão e atuação. Participava não como militante de partido ou movimento, mas como poeta instaurando o potencial transformador da poesia. Qual a produção poética de Roberto Piva durante este período? Que novas possibilidades de vida sua palavra poética funda?

Meditações de Emergência Os recitais políticos de Claudio Willer e Ruth Escobar deram o que falar. Sua força mobilizadora atraiu simpatias da esquerda e logo foram classificados como subversivos pelo Estado. Baixou a repressão. O delegado Romeu Tuma chegou a proibir a realização de uma dessas leituras de poesia. O jornal Versus, de Marcos Faerman, interessou-se pelo fato e o 163

Assombração Urbana – Roberto Piva. Produção de Valesca Dios. São Paulo: SP filmes / TV Cultura, 2004. (55 min.). 164 HEIDEGGER, Martin. A linguagem na poesia – uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl. Em: A caminho da Linguagem. (Marcia Sá Cavalcante Schuback, trad.) 4. Ed. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco, 2008. pp. 27-70.


85 noticiou. O amor pela poesia trouxe grande afinidade entre ambos, que redundou na contribuição de Willer como responsável por sua seção de poesia. Por seu intermédio, Roberto Piva contribuiu regularmente com o jornal Versus durante quase todo o ano de 1978. Vejamos seus poemas. O MISSISSIPI NO AMAZONAS filmado em tecnocolor A cidade & sua estrutura de navio japonês qualquer coisa como bambú & cheiro de sangue no ar de São Paulo antes de ir prá Moóca dar aula até o saco virar de cansaço & gostaria de ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes proletários se dependurarem nos cipós do Ocidente & aterrorizarem nos salões de banquetes como Tarzans enquanto o Burguês-Inseto recolhe as asas & faz cocô branco de susto-Impotência & úlceras pépticas na cristalização de química imperfeita-purgatório-fêmea & bicha de boite & até que os atores criem vergonha & re-apresentem Gracias Señor antes do circo pegar fogo sem o torcicolo culposo de uma certa esquerda que adora chorar na sopa pobre sua emoção masoquista chamada realismo-socialista (invenção dos anos de caduquice de Gorki) & por isso mesmo eu sou pela revolição do nosso quotidiano em profundidade sem a larva telenovela cagando problemas de pequeno-burguês nos nossos olhos & corações AMAR É BOM SEXO É BOM TRANSFORMAR O MUNDO É BOM nada mais saco que a lógica irracional-formal codificadora da febre amarela chamada CRISE consumismo de grilos de pessoas de energia que ninguém de alma bailarina aguenta tem saco ou curte esse tipo de polícia superficial hippie que se apossou em nível ideológico & corporal do país165.

É um poema característico da atuação política de Piva. O poeta se apresenta como professor secundarista das escolas públicas da periferia da cidade. Um trabalhador que utiliza o transporte público e se queixa do extremo cansaço. O tom biográfico ainda deixa entrever as relações de Roberto Piva no período, seja com o amigo Zé Celso e a influência das criações do Teatro Oficina, seja pela presença do cinema (no subtítulo do poema), pois tinha como amigos os cineastas Jairo Ferreira e Julio Bressane ligados ao melhor cinema de invenção do período – conhecido como “cinema marginal”. Mas é principalmente um poeta entusiasta pela juventude com a qual convivia: a “tribo maravilhosa de adolescentes proletários”. Essa mesma tribo surge como mote de seu livro Coxas sex fiction & delírios (1979), composto neste período. Oriundos dos subúrbios da cidade, esses jovens aparecem num tom heroico, em contraste com o cansaço do professor ou com a atmosfera violenta da cidade. Com o termo “proletário” Piva introduz um recorte de classe e, portanto, uma captura conceitual bem típica dos marxismos. Esses adolescentes surgem numa figura ao mesmo tempo erótica e selvagem, o Tarzan, cuja força aterrorizadora é contraposta à classe social antagônica: a burguesia e sua impotência. Não se trata apenas da utilização das expressões “proletário” e “burguês”, mas de um conflito social que atribui aos garotos a condição ativa e viril de transformar o Ocidente, enquanto aos burgueses é reservado o medo de quem quer conservar a realidade como está. É uma luta de classes, a partir de uma visão dialética da história?

165

PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 20, abril/maio, p. 30, 1978.


86 O burguês é um híbrido de inseto medroso, câncer ulceroso e “bicha de boite”. Em contraste à atividade dos adolescentes, o burguês é associado à fêmea com sua postura passiva, além de estar associado às amenas figuras do purgatório – como diria Piva sobre esta parte da Divina Comédia, de Dante Alighieri, parte preterida em relação ao Inferno com suas figuras potentes e maravilhosas. O adjetivo “fêmea” denotaria certa misoginia do poeta? Não se pode afirmar, mas com certeza há uma crítica ferrenha as tais “bichas de boite”, aquele público homossexual frequentador de casas noturnas que o poeta vincula à burguesia. A imagem dos garotos ativos e burgueses passivos é a um só tempo política e erótica. Responde ao espectro político e à posição na cama. Como signo da ação política revoltada, Piva coloca a criação Gracias, Señor, do Teatro Oficina, proibida pela censura durante sua temporada paulista de 1972. A atuação provocativa e licenciosa tira o tal “espectador” de seu papel passivo e o incita (e excita) a uma ação combativa e corporal. É esta forma de atuação política que o poeta vivencia, em contraposição ao “torcicolo culposo” de uma esquerda choraminga e masoquista. A imagem é ácida e muito bem humorada. Torcicolo como símbolo de um corpo travado, mas também com dificuldade de olhar para os lados e ampliar os horizontes. É um corpo travado pela moral: a culpa e a piedade de quem se compraz com a pobreza alheia. Roberto Piva talvez esteja salientando a atração cristã pelos espoliados como impulso de negação da vida – como se vê nas críticas de Nietzsche ao comunismo como rebento do cristianismo. Uma vez mais Roberto Piva faz uma crítica política usando termos ligados à sexualidade: a “emoção masoquista”. Para um leitor de autores da psicanálise, como Roberto Piva, o masoquismo pode ser entendido como aquele laço entre a energia sexual e a agressividade voltado passivamente para dentro. É um sujeito novamente ligado à passividade que se autoflagela moralmente – e tem com isso prazer. A crítica de Piva à esta tal “esquerda” passa pelo seu excesso de moralismo que atrofia o corpo. E está ligada ao realismo-socialista e a Máximo Gorki – o mesmo autor da bravata “Exterminem os homossexuais, e o fascismo desaparecerá”. O escritor russo foi consagrado após a Revolução de 1917 por obras encomendadas pelo Estado para a formação ideológica do país socialista. É um símbolo forte da arte manipulada por interesses partidários e estatais, subjugada a mero instrumento de formação política. É o símbolo do poeta obrigado a escrever o que determinava o Partido Comunista. Não se pretendia exterminar apenas os homossexuais, mas qualquer espontaneidade criativa. É a esse comunismo obediente à moral e ao partido que Piva rejeita. Mas o que o poeta propõe? A “re-volição” do cotidiano – aqui uma vontade de mudança que diverge da “revolução”. Essa “re-volição” quer transformar o mundo na mesma medida em que quer amar e transar. O elemento do amor sexual parece ser a via de transformação social - diferente da revolução, restrita aos aspectos da economia-política. Além do realismo-socialista, Roberto Piva rechaça a telenovela como proliferadora de valores pequeno-burgueses e manipuladora dos comportamentos. O poeta, considerado um dos precursores do que se veio a chamar “contra-cultura”, critica frontalmente a “polícia hippie” que teria se apossado do país. Veremos como tal crítica faz parte de uma postura fortemente anti-imperialista de Roberto Piva, postura que talvez esteja relacionada ao título do poema: as águas do grande rio estadunidense desaguando no rio brasileiro. Não bastassem essas tensões com a esquerda e os hippies, Roberto Piva lança mão de um toque nietzschiano, evidente na expressão “alma bailarina”. A presença de Nietzsche é fundamental por dois motivos. Primeiro porque é um filósofo muito crítico ao comunismo e, por


87 isso, execrado pela esquerda. Segundo porque a crítica ao moralismo da esquerda e sua negação do corpo acompanha as ideias deste Anticristo. A imagem da dança é abundante e bastante aberta na obra deste filósofo e poeta. Seu Zaratustra andava como bailarino e a dança aparece ora como o exercício do livre pensar do filósofo ou como qualificativo de sua própria filosofia, ora como o próprio devir da vida num fluxo vário sem qualquer finalidade. Dionísio figura também como um deus que sabe dançar, especialmente quanto encarnado corporalmente nas almas bailarinas das bacantes em êxtase. Pode-se dizer que a “alma bailarina” de que fala Piva se refere à possibilidade de fluir na vida e nos pensamentos com força e flexibilidade; com a leveza de variar os ritmos e se enlevar com impulsos diversos. O movimento bailarino é o extremo oposto daquela fixação moral do mundo dotado de uma finalidade como, por exemplo, o determinismo dialético de uma revolução como superação dos antagonismos. A alma bailarina é o avesso do torcicolo culposo, pois é a ação de um corpo em gozo em uma orgia para além do bem e do mal. É essa possibilidade de dançar através de várias perspectivas e paixões, típicas do politeísmo, que o poeta contrapõe à ditadura da conduta única do Moneyteísmo: As desgraças do Moneyteísmo para o Eg o coração é um meio meu coração frágil pássaro de vidro a roda do coração enroscou nas veias & eu me transformo em boomerang meu amor ferido anjo diante de vocês distribuindo panfletos & baixaremos todos na Tumba Eterna mesmo que no alto de Santana São Paulo cidade & periferia cacarejem na solidão das fábricas & o rio Tiête seja uma veia do corpo do meu amor uma ducha na aurora de sorriso de chumbo & os liberais são fascistas em férias (obrigado pela imagem Nando Ramos) que agora não tem nada a perder mas em 64 tinham & apelaram & foram hipnotizados por Plínio Salgado que foi guindado ao posto de ratazana cinzenta no Ministério da Educação ? engendrou a Moral & Cívica (Civismo rima com Fascismo) Deus Pátria & Família redivivos para contrariar os rabos loucos dos adolescentes prontos para o “sacrifício do mel” de que falava o alucinado Nietzsche NÃO TENHA PIEDADE ALGUMA digo eu & amem a pessoa amada até oxidarem os planetas & leiam Apollinaire bebendo uma cervejinha gelada num caneco gelado & Fourier deveria andar de boca em boca em forma de beijo postal sem que nossas minas de urânio (oh beijo de urânio!) sejam debulhadas meus olhos desaparecem nas manhãs de inverno quando a gravitação deixa de existir para um tênue sol se insinuar entre as páginas de Raymond Lulle principalmente o Libre del amic e L’ Amat carregado de elétrica prosa de magia amorosa boa para esses tempos de hippilândia made in New York City Que passa New York ? assim como os babosos bichos bichanas & cocotas fortalecedores das circulações moneytárias do Sistema Capitalista Periférico AH AH AH na dose certa na cara certa na dimensão certa de vossas covardias166.

O início do poema traz um imaginário do amor ferido repleto de simbologia mística, largamente utilizada pelo poeta em seu livro Piazzas (1964). Roberto Piva toma a palavra da periferia de São Paulo, do “alto de Santana”, ressaltando sempre esse vínculo com o subúrbio. 166

PIVA, Roberto. As desgraças do Moneyteísmo. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 21, maio/junho, 1978. p. 31.


88 Intercala versos de amor a um garoto com o contexto da cidade de São Paulo, cidade associada à “Tumba” e à “solidão das fábricas”. O rio Tietê se funde nas veias do amante, numa imagem do contexto sendo incorporado nos gestos das pessoas, como no “sorriso de chumbo” – aqui mais uma imagem da situação violenta daquele tempo. Roberto Piva passa a criticar os liberais e sua participação no golpe militar. O fascismo da direita é associado aos ideais integralistas de Plínio Salgado, materializados na disciplina de “Educação Moral e Cívica” – obrigatória a partir de 1969. É o culto à Deus, Pátria e Família como tripé do conservadorismo moral que pretende adestrar os jovens. Roberto Piva contrapõe a este fascismo moral os “os rabos loucos dos adolescentes” prontos ao “sacrifício do mel”. No trecho inicial do derradeiro livro de Zaratustra, intitulado exatamente “Sacrifício do Mel”167, o sacrifício é feito para retirar os humanos da negra angústia e alçá-los às felicidades da afirmação da potência da vida no “reino milenar de Zaratustra”. Roberto Piva associa esse vitalismo ao apetite sexual dos adolescentes e sua força para amar sem qualquer piedade. Essas recomendações do poeta surgem num tom mais panfletário e assumem uma feição hedonista, como na cerveja gelada bebida durante uma leitura do poeta francês Guillaume Apollinaire. A aposta de Roberto Piva em uma transformação social por meio do amor sexual torna fundamental a presença do profeta francês Charles Fourier. O erotismo da imagem também é importante, pois Fourier e sua obra seriam disseminados na forma de beijo – uma linguagem corporal e sexual. Qual a importância de Fourier nas ideias de Roberto Piva? A mudança social proposta pelo pensador francês coloca em primeiro plano a questão da Paixão168. Os sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas estariam pautados no controle repressivo das paixões, consideradas como um mal a ser extirpado. A partir desse denominador comum, Fourier faz a crítica da captura dos prazeres sexuais na monotonia matrimonial da família burguesa, ou na hierarquização da produção econômica. Assim, sua utopia revolucionária coloca os prazeres sensuais como fundamentais para o desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, estando indissociáveis da autogestão econômica. Ou seja, ao lado da organização da produção pela via associativa e igualitária, sua utopia sugere a criação de corporações amorosas que salientem inclusive a esfera pública e festiva do amor nas orgias. Essa experiência do potencial transformador das paixões sexuais é similar à “revolição” proposta por Roberto Piva. Esses beijos de urânio enlevam o poeta para aquele momento em que a “gravitação deixa de existir”. É o amor em êxtase, associado à “magia amorosa” do poeta, místico e alquimista catalão Raimundo Lúlio (1232-1315). Se a referência a Fourier destaca o potencial transformador do sexo, a presença de Lúlio enfatiza essa relação mística com o amor. São esses traços que o poeta experimenta em detrimento do modismo da “hippilândia made in New York”. Novamente o tom anti-imperialista atrela parte dos homossexuais à burguesia, sob as denominações pejorativas de “bichanas” e “cocotas”. Aqui as tais “bichas de boite” parecem atreladas não apenas à burguesia, mas aos modismos da ideologia capitalista estadunidense. São “bichanas” que fortalecem o “Sistema Capitalista Periférico” com a importação de 167

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Mário da Silva, trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1883-85/2010. 381 p. 168 FOURIER, Charles. Ouevres Complètes, Tomo I, Théorie des Quatre Mouvements. Paris: Librairie Sociétaire, 1846. 336 p.


89 mercadorias e ideias sem qualquer crítica. O poeta se ri dessa atitude conformista qualificada como covarde. Aqui o trocadilho do termo “moneyteísmo”: não sugere apenas a veneração do dinheiro como um deus, mas também atrela o capitalismo ao monoteísmo como tentativa de impor um único modo de vida. É uma expressão aberta que contém, a um só tempo, as críticas de Roberto Piva ao capital e ao cristianismo. O texto “Desgraças do Moneyteísmo” inicia uma seção intitulada “Meditações de Emergência”, que Roberto Piva manteria no jornal Versus e na revista Singular & Plural. Na edição seguinte, de julho de 1978, surge o seguinte poema:

mortikultura O adolescente que se liberta de 2.000 anos de superego bíblico-cristão & cai na vida já é alguma coisa mas falta muito para dar a porrada no alvo certo no inimigo exato & nietzsche tinha razão ao dizer que os homens não acreditam mais em deus mas se comportam como se acreditassem & o futebol & a tv globo estão aí para não deixar nietzsche mentir & esvaziar os bagos na sublimação morta da perda de tempo a morte em vida adolescentes adultos crianças morrendo num canto escuro da casa em meio aos cheiros familiares & se dispersando em pequenas coisas ridículas & se drogando no vazio da negação do CORPO até cagar pedra & perder o tesão de viver é preciso sòmente admitir morrer entre os braços da pessoa amada (“qualquer maneira de amar vale a pena”) morrer em pleno êxtase-orgasmo estrelas escorrendo da boca vermelha aberta para os cometas do sexo oh manhã das manhãs molhadas com amêndoas verdes renascer para esta opulência eu sou sua beleza eu sou seu rei Davi deus adolescente da luz da manhã chovendo cravos vermelhos rumo à LIBERTAÇÃO. P.S . Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H. Marcuse) neste sentido os homossexuais espanhóis tem razão “El coito anal derruba el capital”. Senão derruba não deixa de ser uma sugestão para ajudar a derrubada169.

A juventude permanece como a preocupação do poema, exaltando os garotos que se liberam do “superego” cristão e caem na vida. Num tom discursivo, Roberto Piva critica o que considera uma cultura do instinto de morte, a mortikultura – ressaltando o “k” ligado ao “kapitalismo”. É uma cultura calcada exatamente no superego cristão, incubado no claustro privado da família nuclear burguesa. Ali a TV, agora nomeada com uma emissora, novamente ocupa lugar de alienação na veiculação dos valores burgueses e cristãos. Também o futebol se presta a este serviço, numa alusão reincidente nesses poemas de Piva da Versus – a exemplo de passagem na qual este esporte é visto como “militarização do corpo”170. A mortikultura é a “negação do CORPO” e a perda do tesão pela vida. Expressões como “superego”, “sublimação morta”, “energia sexual” e “sexualidade infantil” não deixam dúvida 169

PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 22, junho/julho, 1978, p. 36. 170 PIVA, Roberto. Poema do caos externo. Versus – jornal de política, cultura e idéias, n. 19, março/abril, 1978, p. 37.


90 quanto à referência psicanalítica dessas ideias. A menção a Hebert Marcuse ganha importância exatamente por esse cruzamento da teoria psicanalítica das pulsões com as aspirações revolucionárias de inspiração marxista. A menção a Nietzsche em sua crítica à moral cristã compõe esse quadro analítico, bastante representativo das referências de Roberto Piva para pensar as contradições de seu contexto histórico. A morte em vida se dá pela captura do corpo e seu potencial erótico. A moralidade de costumes é colocada como uma primeira forma de captura e se desenvolve na crítica de Nietzsche ao cristianismo171. Em linhas gerais, o filósofo alemão associa o cristianismo à negação da vida terrena em prol de ideais ou ídolos prostrados num porvir abstrato. É a negação do corpo e de todo o devir por uma vontade de nada, ou seja, uma quietude inerte sem vida. Rejeita-se o devir pelo dever, a partir da submissão a um tal “deus” que representa toda a ordenação moral do mundo. Friedrich Nietzsche observa quanto, mesmo após a “morte de Deus”, suas sombras ainda se fazem sentir em todo ideal ascético da religião, da ciência, da arte e outras expressões da vida. Essa ordem moral do mundo é associada ao “superego” psicanalítico, que pode ser entendido, resumidamente, como a instância psíquica que opera as convenções sociais e suas repressões desde o interior do sujeito. A partir dessa inserção na cultura o sujeito passa a ser atravessado pelas convenções na satisfação imediata de seus impulsos. Os impulsos sexuais mais suscetíveis à repressão e impedidos de uma descarga imediata vão encontrando espécies de objetos substitutivos, especialmente em atividades produtivas, em um processo que se denomina “sublimação”. É um movimento em que o impulso corporal do sexo, por exemplo, se torna mais abstrato, mais “sublime”, mais “dessexualizado”. É a negação da vida corporal similar àquela de Nietzsche. Roberto Piva considera que nesta cultura do instinto de morte (mortikultura), as possibilidades de descarga das pulsões sexuais se dão em atividades de entretenimento que alimentam ainda mais esse ciclo de moralidade: a “sublimação morta”. A potência do corpo e o apetite sexual vão se atrofiando e tornam a vida sem tesão. Herbert Marcuse, em seu clássico Eros e a Civilização, procura exatamente desenvolver a teoria freudiana das pulsões em um plano político-revolucionário de superação da sociedade capitalista repressiva. Este ousado frankfurtiano partia de uma crítica ao trabalho alienado como forma de captura da energia sexual do indivíduo e atrofia de seu potencial erótico – como aponta Roberto Piva em sua nota ao final do texto. No entanto, diferente de Freud, Marcuse acreditava no trabalho alienado como condicionado historicamente. Assim, o grau de desenvolvimento das forças produtivas com sua automação liberaria o trabalhador a investir seus instintos vitais em atividades distintas da alienação do trabalho capitalista. Daí a aposta do filósofo em atividades nas quais o princípio da produtividade é substituído pelo princípio do prazer. Marcuse enfatiza sobretudo a “fantasia” e a “imaginação”, a exemplo da poetização da vida em Novalis ou da proposta de praticar a poesia no surrealismo. São atividades ligadas ao prazer e ao jogo, devir sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da esfera estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao contrário do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse busca respaldo mítico no mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo modo de vida. Aí vem a parte que mais nos interessa. Ouçamos Marcuse: “A tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas 171

NIETZSCHE, Friedrich W. O Anticristo: maldição ao cristianismo. Em: NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. (Paulo César de Souza, trad.) São Paulo: Companhia das Letras, 1888/2007. pp. 07-81.


91 por um Eros mais pleno”172. Ou seja, na homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família e sua restrição à procriação. Este sexo produtivo é símbolo da captura da atividade sexual pelo princípio de utilidade social, deixando o prazer restrito ao lazer (como espécie de parceiro da canalização das energias sexuais para o trabalho). Marcuse considera a exploração dos prazeres do corpo para além da procriação como uma “ressexualização do corpo” ou “uma ressurgência da sexualidade polimórfica pré-genital e num declínio da supremacia genital”. E o filósofo prossegue destacando o potencial transformador desse corpo, que levaria a uma “desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e patriarcal”173. Em outras palavras, a experiência de prazer do corpo, para além da ditadura genital e matrimonial, é parte de uma liberação dos instintos vitais que Marcuse considera, em última instância, uma “transformação social” mais profunda. Não precisa dizer que, nos anos de 1950, essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva sexual e erótica. É essa uma possibilidade de articulação das ideias de Eros e a Civilização com o lema homossexual, como sugere Roberto Piva. É certo que a “ressexualização” do corpo não é sinônimo de homossexualismo. Mais o coito anal, mesmo quando em relações denominadas heterossexuais, é uma das formas de experimentação dos prazeres do corpo para além de uma finalidade útil. É “neste sentido”, como ressalta Piva no texto, que se pode pensar no quanto a vida sexual contribui para a transformação social ou a tal “derrubada” do capital. É nesse tom político, artístico e mítico que o poeta aposta em todas as formas de amor, com especial acento aos contornos místicos do “amor-êxtase”. É por esse amor experimentado em todas as suas possibilidades que se vale lutar e morrer. É por essa vivência amorosa que se chega à “LIBERTAÇÃO”. É interessante notar como Roberto Piva se inspira no movimento homossexual espanhol para desenvolver suas ideais sobre essa re-volição sexual. O poeta não estava atento apenas às discussões da esquerda, mas também àquela parte da esquerda ligada e este movimento específico. E mais, Roberto Piva se apoia naquela parte do movimento homossexual que, diferentes das tendências norte-americanas e mesmo brasileiras daquele período, entendia a revolução sexual como indissociável da superação da sociedade burguesa. O manifesto da Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC) de janeiro de 1978, por exemplo, coloca como primeiro objetivo: “La revolución sexual em el marco de la revolución social que rompa las actuales estructuras económicas Y sociopolíticas...”174. Em suma, Roberto Piva parece desenvolver à sua maneira diversas das propostas de Charles Fourier e Hebert Marcuse – mas também Wilhelm Reich e Norman Brown. É nesse desenvolvimento da psicanálise em diálogo com a economia-política, da questão do trabalho atrelado à vida sexual, que Piva adentra em diversos de seus textos do período. É por ai que

172

MARCUSE, Hebert. Eros e a civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 5. ed. (Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1955/1972. p. 155. 173 Ibidem, p. p. 177. 174 Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC). Madrid, Orientaciones – revista de homossexualidade, pp. 141-146. Disponível em: http://issuu.com/triangulo/docs/orientaciones2. Data da Consulta: 10/11/2012.


92 continuará a caminhar, mesmo quando romper com uma orientação próxima dos socialismos – como na imagem do “golpe de estado erótico”175. Pois bem. Aqui chegados talvez seja sugestiva uma pequena digressão. Surpreende quanto as ideias de Roberto Piva crítico ao comunismo são similares às suas ideias de quando era mais abertamente anticomunista. Vejamos. A produção poética de Roberto Piva no início dos anos 1960 movia-se por um ímpeto imoral e erótico que o distanciavam das várias expressões do moralismo provinciano da cidade: “São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil? Até teus comunistas são mais puritanos do que padres”176. Essa mesma associação do comunismo com a moral cristã era tema das conversas de Roberto Piva com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, em 1962 – ambos muito influenciados pelas críticas de Nietzsche à compaixão com os pobres e o messianismo comunista como expressão da moralidade cristã. É essa “piedade” que surge como sentimento moral que une, novamente, cristãos e comunistas, em poema de Paranóia (1963): “as senhoras católicas são piedosas / os comunistas são piedosos / os comerciantes são piedosos / só eu não sou piedoso”177. Aqui a tensão: a crítica ao moralismo daquela parte da esquerda “que adora chorar na sopa pobre sua emoção masoquista” permanece em bases similares. Ou seja, Roberto Piva mantém uma coerência em sua crítica a algumas expressões da esquerda. O fato de publicar em órgão revolucionário não o priva de retomar essas ideias. O poeta participa das discussões da esquerda, mas sempre como voz dissidente, sempre com a rebeldia que lhe é peculiar. Não é tanto um poeta comunista, mas um poeta em estado de guerra com o comunismo, sustentando sempre uma tensão revoltada. Mas não é só. Se dermos uma olhada no registro maior de sua poética no início dos anos 1960, o postfácio de Piazzas (1964), veremos o quanto sua visão de mundo permanece com igual coerência. Este texto audacioso vincula o estado militarista brasileiro ao fascismo e denuncia torturas como o “Pau-de-Arara & o choque elétrico” em plena vigência do golpe militar! Nele, Roberto Piva faz uma análise da realidade baseada exatamente em Nietzsche e Freud, com enfoque no corpo e na sexualidade. É o “cristianismo como escola do Suicídio do Corpo”, em uma articulação das ideias de Freud sobre o deus cristão como projeção da figura do Pai (que se estende a toda ordem autoritária) e a crítica de Nietzsche sobre o cristianismo como desprezador do corpo e da vida, criando “homens mais consumidos de ressentimento, auto-flageladores & submissos”178. É a mesma base dos textos que acabamos de ver, coincidindo até algumas expressões. Como em 1978, o texto de 1964 contrapõe à cultura do “instinto de morte (repressão)” uma via poética e erótica como forma de “Libertação”: “Poesia como instrumento de Libertação Psicológica& Total”, poesia entendida como “verdadeiro ATO SEXUAL”179. Pode-se ainda dizer que a crítica ao realismo-socialista de Máximo Gorki lembra a menção do postfácio a Octavio 175

PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. pp. 82-87. 176 PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 24. 177 PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 41. 178 PIVA, Roberto. Piazzas. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1964/2005. p. 128. 179 Ibidem, p. 129.


93 Paz quando contrapõe o “estilo oficial” atrelado ao Estado e à “espontaneidade criadora”. Também as manifestações da direita integralista em sua veneração a Deus, Pátria e Família encontram eco na crítica de 1964 ao movimento católico conservador “Tradição, Família e Propriedade” e suas passeatas pela castidade. Enfim, Roberto Piva participou ativamente do processo de denúncia do totalitarismo da ditadura brasileira, assim como das manifestações pela redemocratização do país. No entanto, sempre com sua força subversiva e rebelde, erótica e escandalosa – força que sustenta desde o início dos anos 1960. As colaborações de Roberto Piva no Versus finalizam com o sugestivo texto “Anticomunismo não enche barriga”180. O poeta ambienta uma narrativa delirante em torno do “anticomunismo” como um prato servido numa cidade do interior, espécie de símbolo da atitude fascista disseminada em diversas instituições sociais. É um título bastante irônico tendo em vista a trajetória posterior de Roberto Piva: anticomunista e sempre de barriga vazia. Mas em suas participações no movimento homossexual no período, o poeta era conhecido como “proletário” e entusiasta dos feitos das guerrilhas comunistas. Vejamos.

“Poeta homossexual-proletário” No dia 8 de fevereiro de 1979, na Universidade de São Paulo, foi organizada uma semana de discussões sobre as chamadas “minorias”. A mesa de debates sobre o movimento homossexual era composta por Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan e Roberto Piva, dentre outros. Uma reportagem sobre o evento foi publicada no jornal Lampião da Esquina, pioneiro na reflexão sobre as questões sexuais e políticas a partir da perspectiva homoerótica. Lá pelas tantas, o encontro debatia o posicionamento do movimento gay no maniqueísmo político da época, apontando a discriminação dos homossexuais pela direita conservadora e pela esquerda moralista. Roberto Piva, apresentado como “poeta homossexual-proletário”, toma a palavra para dizer que nos países do “bloco socialista” – como Cuba, Moçambique e Leste Europeu – há grande “liberdade sexual”181. O poeta proletário acreditava na liberdade sexual nos países comunistas! Eis um traço pouco conhecido de Roberto Piva. Como um dos “representantes” dos “homossexuais” e como “proletário”, o poeta tem exaustivamente divulgado seu livro Coxas no mesmo órgão182, considerado pelo jornal como “o melhor exemplo da nossa poesia” – grifo meu. O próprio poeta assina uma resenha sobre o recém-lançado livro de Fernando Gabeira, “O que é isso, companheiro?”183. Na edição de novembro, escreve como entusiasta do comunismo e como professor – “recomendei para os meus alunos”. Piva fala de quanto a leitura rememorou suas próprias vivências do período. A exemplo do famoso sequestro do embaixador americano que o fez ligar para os amigos e dizer “em breve estaremos no poder...”. Ou das passeatas na

180

PIVA, Roberto. Anticomunismo não enche barriga. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 23, julho/agosto, 1978, p. 28. 181 DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP. Jornal Lampião da Esquina, Ano 1, n. 10, março de 1979, p. 09 182 Jornal Lampião da Esquina,. Ano 2, n. 15, agosto de 1979, p. 17. 183 PIVA, Roberto. “Remake” com Gabeira. Jornal Lampião da Esquina, Ano 2, n. 18, novembro de 1979, p. 16.


94 Rua Maria Antônia em 1968, entremeadas com “as bacanais com os secundaristas nos apartamentos da cidade”. É uma faceta de Piva que correspondia bem ao rótulo “poeta homossexual-proletário”. A participação em debates como representante dessa “minoria”, o enamoramento explícito com os feitos mais radicais das guerrilhas revolucionárias e a divulgação de sua poesia como o melhor exemplo de uma literatura homossexual. É a sombra de Roberto Piva. Em seu livro Coxas, o personagem Pólen fazia amor com Luizinho, um adolescente vestido com uma camiseta com o punho fechado socialista no peito. Luizinho é morto por guarda que atira de um helicóptero do Citibank – num símbolo da participação estadunidense na ditadura brasileira e na matança dos comunistas. Pólen fica desnorteado, pois: “Luizinho era uma sombra no seu coração anarquista”. Pólen, como Piva, poliniza e polemiza, traz as sementes de uma nova vida encharcada de rebeldia. Pólen traz também o nome da revista inaugural do romantismo alemão, com todo seu ímpeto revoltado. Como este personagem, Roberto Piva flertou com o comunismo e assistiu sua morte, como uma sombra no coração anarquista. Foi justamente o fim da utopia revolucionária que levou Pólen à questão: “Por onde é preciso começar”. Neste mesmo ano de 1979, quando foram escritos os versos de 20 poemas com brócoli, Roberto Piva rompe com todas suas esperanças ligadas à atuação política em meios da esquerda e participações no movimento gay: “eu abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras / combinações”184. Não é à toa que é o livro da anarquia como um modo de vida. Durante a década de 1980, Roberto Piva se lançou nessa anarquia que pode ser acompanhada a partir de algumas publicações nas revistas Artes: e Cerdos & Peces. Também é a década da ecologia na experiência poética de Roberto Piva: seus manifestos publicados no Boletim Arte e Pensamento Ecológico e na seção “sindicato da natureza” que mantinha na revista Chiclete com Banana permitem acompanhar essa atuação política. Mas é em um material pouco estudado de Roberto Piva que podemos observar as críticas ao movimento gay e ao comunismo. No dia 21 de fevereiro de 1994, Roberto Piva recebe em seu apartamento o historiador Claudio Roberto da Silva, que estudava o movimento homossexual a partir da narrativa de histórias de vida de alguns ativistas. Entre eles, o poeta foi escolhido pelas suas colaborações no Lampião da Esquina e, durante algumas horas, falou sem parar sobre sua história de vida. Neste material ficam claras as críticas de Roberto Piva ao termo “homossexual” e aos movimentos de luta pelos direitos. O alvo é a “questão de identidade” – para usar sua expressão. O poeta destaca que a “identidade” acaba por formar guetos gays, não permitindo a experiência sexual como alteridade. Para ele, a “invenção do modelo gay caracterizou o estilo americano da homossexualidade”, eficiente para formar um mercado consumidor e advogar uma pretensa “liberdade sexual, concedida pelo poder”185. Vê-se como a crítica à identidade também tem reflexos no campo político. Roberto Piva rejeitava a postura subserviente de solicitar autorização do estado, via direitos civis, para o exercício livre da sexualidade – a tal “liberdade 184

PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115. 185 SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho – história oral de vida política e homossexualidade no Brasil contemporâneo. 674 f. Dissertação de Mestrado em História Social, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. p. 301.


95 sexual, concedida pelo poder”. Como total rebelde e insubordinado a qualquer forma de autoridade, o poeta acreditava que a experimentação sexual deve ser batalhada pela pessoa e por ela conquistada – não consentida como regra imposta por força alheia. Além disso, o poeta considera a libido como algo flutuante e aberta a diversas expressões. Nesse sentido: “‘homossexualidade’ é um termo médico forjado em 1869 para dividir o corpo das pessoas. A medicina poderia assim exercer seu poder nefasto e o desejo seria o único qualificativo viável para a manifestação de tesão”186. Em outras palavras, Roberto Piva observa na “homossexualidade” um discurso médico que procura fixar, categorizar e controlar a sexualidade dessas pessoas. Em suma, “gay” e “homossexual” seriam expressões de uma “identidade” que trancafia o potencial subversivo da sexualidade nas peias do mercado, da medicina e do Estado. No depoimento do amigo Sergio Cohn187 podemos ver a angústia de Roberto Piva ao ser convidado para uma homenagem na passeata do Orgulho Gay. O poeta achava absurdo, por exemplo, as reivindicações pelo casamento gay, entendidas por ele como forma de reprodução do matrimônio patriarcal e repressor. Roberto Piva declinou do convite. É interessante notar o quanto Roberto Piva antecipa algumas das questões atualmente presentes nos movimentos ligados à diversidade sexual: dentre elas exatamente o atual questionamento queer às políticas identitárias. Nessa mesma narrativa de 1994 estão todas as principais críticas de Roberto Piva ao comunismo: moralista como o cristianismo, totalitário como o fascismo; ou retrógrado como uma “natureza morta”. E acrescenta quanto a pederastia é rejeitada pelos comunistas e quão “perseguido” foi pelos intelectuais de esquerda. Chega a atribuir suas dificuldades financeiras a essa perseguição. É um momento em que Roberto Piva se declara de direita: “Sou um cara ligado na direita sagrada. Não acredito em nenhum político da direita no Brasil”188. Sua direita sagrada incluiria Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, Julius Evola, Dante Alighieri e D. H. Lawrence, personalidades que estariam ligadas à eclosão do sagrado em uma perspectiva aristocrática. A rejeição dos políticos de direita mantém o ímpeto rebelde e contestador que o acompanhou em toda sua trajetória. É essa fluidez nas questões políticas que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde, sempre inquieto. Uma “alma bailarina” experimentando novas possibilidades de vida sem temer as contradições. É aquele garoto que em 1957 fundou o Movimento Niilista, com Jorge Mautner e João Quartim de Moraes, influenciado por personagens de Fiódor Dostoiévsky, por uma leitura muito radical da “revolução violenta” de Mikhail Bakunin ou do “niilismo ativo” de Nietzsche, sem esquecer a revolta de Albert Camus. Ou aquele poeta entusiasta do rock’n’roll como reaparição do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo de 1970, que iria se formar em sociologia e desenvolver ligações com as ideias comunistas no final da década. Aquele poeta da anarquia e da ecologia da década de 1980, que se admite ligado à “direita” em 1990. É este mesmo poeta que a partir dos anos 2000 irá repetir sua opção pela “anarco-monarquia, desde 1957”!

186

Ibidem, p. 326. COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 61. 188 SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho, op. cit., p. 321. 187



97

20 poemas com brócoli: o abandono da civilização

20 poemas anuncia uma grande virada na poesia de Roberto Piva. O “poeta homossexual-proletário” da década de 1970, com suas esperanças em torno da reabertura democrática, joga tudo pro alto e cai na estrada. A aposta é abandonar a civilização e fluir à deriva no rio da vida. No fôlego pederástico de Abra os olhos, os 20 poemas cantam o amor maldito por garotos. O acento no contexto cruel de meados da década de 70 dá lugar a traços de metapoesia, raros na produção poética de Piva. O ativismo em meios da esquerda dá lugar à anarquia. Escrito em momento turbulento da vida do poeta, a obra encarna as tensões e incertezas de um contexto histórico, mescladas a estórias amorosas. O fim da ditadura militar, entremeada com o fim de um caso amoroso, leva o poeta a trilhar as veredas do desejo, sem utopia de portos seguros nos quais repousar. A epígrafe do livro anuncia as delícias dos caminhos que trilharemos – e suas angústias. É L’alleluiah!: a carne dilacerada pelo gozo, vazando o vazio terrível. Lá onde a mais aguda agonia e a mais intensa alegria deixam de se contradizer. É o catecismo de Diane, abrindo as portas da volúpia para além da moral, para além das ilusões do amor. A disposição insana para viver a luxúria no jogo do prazer e do sofrimento. O deleite no fogo da paixão sem medo de queimarse. Mas, é preciso nudez: despir-se de todas as morais e de todas as obrigações. É preciso a entrega total e gratuita: a ingenuidade da criança. “Je te demande la pureté de l’enfer – ou, si tu préfères, de l’enfant (Eu te peço a pureza do inferno – ou, se preferir, da infância). Piva abre o livro com esta frase de Diane, no final de Aleluia, que continua da seguinte forma: “ela [a pureza do inferno ou da criança] não fará promessa em troca e nem te exigirá obrigação. Você ouvirá, vindo de si mesmo, uma voz que te guia em seu destino: é a voz do desejo e não a dos seres desejados”189. Não se prender ao objeto do desejo, ao ser desejado, à pessoa finita que se apresenta: sua particularidade limitada, demasiado humana, com suas promessas de um amor ilusório que traria só prazer e felicidade. Mas ouvir a voz do desejo e sua potência de nos abrir aos fluxos do ilimitado: “Que seria a vida de um voluptuoso senão aberta a todos os ventos, aberta desde o início ao vazio do desejo?”190. Essa é a nudez obscena: a alegria inocente da criança. Pois a entrega ao desejo nos arranca dos limites habituais. E nos arranca a partir do dilaceramento do eu, do despedaçamento do ser finito que somos. Dilacerar, despedaçar, destruir. Só se alcança essa potência da vida através desse sacrifício. É a morte. É o vazio, a angústia, o desespero. É gozar o infinito, ali onde a mais exuberante vida é indissociável da morte – onde os gemidos de prazer são acompanhados pelos gritos de desespero. Nesta epígrafe se coloca o erotismo no centro da poesia, mas não aquele do prazer fácil. É erotismo mágico; sem promessas. Estamos na vibração ilimitada da carne, ali por onde passam forças mais potentes que as humanas.

189

BATAILLE, Georges. L’alleluiah – catéchisme de dianus. Em: Le coupable - suivie de L’Alleluiah. Paris: Gallimard, 1944. p. 208. 190 Ibidem, p. 206.


98 Mas não apenas o sexo alça o poeta ao infinito: o êxtase também advém da vivência de poemas. O primeiro poema dá o recado. Gregos de Homero no chapéu de palha. Chamada para um diálogo poético, contextualizado em leituras vividas. Uma cena de amor, depois o sono, permanecendo poesia feita na cama. O poeta e o “garoto negro”. “Este é o banquete do poeta sempre querendo penetrar no caroço da verdade”. Penetração no garoto revela uma verdade que se espraia na cama dos amantes. E o garoto, mencionado sempre como “você”, “tranca o planeta”. No amor, na poesia, na verdade, o planeta paralisado. Em suspenso. Abre-se a brecha.

II Baudelaire sangrou na ponte negra do Sena. molécula procurando a brecha do universo & suas trezentas flores. assim é a lucidez o swing das Fleurs du Mal. completa tortura roendo a realidade & l'immense gouffre. todas as paixões / convulsões no espelho. Baudelaire & ses fatigues rumo à pálida estrela.

É muito forte a presença de Charles Baudelaire na poesia de Piva – seja diretamente ou por tabela, dada a influência deste primeiro maldito na poesia de Rimbaud, Lautreamont, Artaud e entre os surrealistas. Mas 20 poemas é a obra em que Baudelaire comparece com mais importância. Roberto Piva se extasia nas flores do mal do poeta francês. O poeta que sangra, o poeta em completa tortura. A fatiga, o cansaço. Abismos. Morte. O Mal. Na tortura, a volúpia: “Volupté, torture des âmes!”. É a dor como num parto. A contorção do gozo. Na prece de um pagão, o poeta canta os prazeres no sofrimento. Estão sob o signo da morte. O poeta adverte: “Mas minha tortura era atroz e deliciosa”. Não são raros os momentos em que a tortura vem junto à calentura, esse delírio febril que conduz os amantes como anjos na miragem. Ali na paisagem azul, no paraíso dos sonhos. Sim, da volúpia desabrocha a flor. A tortura da luxúria traz a lucidez. A flor, a luz, o sagrado. Dos abismos da morte voa o renascido. Iniciado nas trevas, no mal. E o poeta traz suas flores. Flores que roem a realidade, que abrem brechas no universo, por onde escorrem epifanias. Roberto Piva faz um poema como leitura de Baudelaire. Poema sobre poema: expediente incomum em Piva, mas abundante em 20 poemas. Da iniciação no mal, na volúpia, no amor. A tortura, o abismo, a lucidez, a flor: são temas de Baudelaire. E em ambos os poetas há essa viagem iniciática, tratada pelo francês em sua “aurora espiritual”: Dos Céus Espirituais o azul inacessível, Para o homem que padece e sonha em paroxismo, Se entreabre e se aprofunda em fascinante abismo. Assim, graciosa Deusa, lúcida e sensível,


99 Sobre os despojos fumegantes das orgias Tua imagem mais clara, mais rósea, mais cheia Ante meus olhos pasmos sem cessar volteia 191.

Orgia e seus abismos: a plenitude e lucidez de quem se lança. O poema de Piva menciona em especial dois poemas de Baudelaire.

A música A música me arrasta às vezes como o mar! No encalço de um astro, Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar, Iço a vela ao mastro; O peito para frente e os pulmões enfunados Tal qual uma tela, Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados Que a noite me vela; Sinto que em mim ecoam todas as paixões De um navio aflito; O vento, a tempestade e suas convulsões No abismo infinito Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero De meu desespero!192

No êxtase disparado pela música se alça a pálida estrela. A vibração de todas as paixões e o sofrimento: convulsão. É o instante em que se rói a realidade e se abre o “imenso abismo” (l'immense gouffre). No abismo está o grande espelho que reflete os desesperos. Da mesma forma que a lucidez advém da tortura, o abismo do desespero é via de acesso ao vasto éter da estrela. Piva menciona, ainda, “ses fatigues”: a fadiga e o cansaço daquele que está a fumar um cachimbo. Em Pipe, o poeta está magoado, fatigado, pitando seu cachimbo, um cachimbo da abissínia que traz calma ao coração e cura ao espírito. Droga, música, amor: êxtase, através dos abismos. E o poeta extático penetra no caroço da verdade! E é preciso cortar a superfície para chegar ao caroço. É preciso morder a fruta. Assim, a realidade superficial jorra o suco do mágico. Piva ainda irá evocar os “expressionistas alemães”, Georg Trakl e Gottfried Benn, em outro poema. O tema é similar: a desordem da vida e “poemas que abrem brechas na realidade”. Ao abandonar as esperanças em seu contexto histórico, a realidade cotidiana dá lugar à

191

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. (Ivan Junqueira, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1857/2006. p. 217. 192 Ibidem, p. 279.


100 experiência estética com poemas: é a vivência de leituras que faz a realidade ruir e permite viver o êxtase, como superação da condição histórica específica. Gregos no chapéu de palha. Cachimbo de Baudelaire. A desordem dos expressionistas. É a vida poética que enleva os amantes. A mesma cama, o mesmo êxtase. Aqui se sangra, mas não há maxilares estourados ao amanhecer. Permanecem as cenas de sexo a dois, presentes em Abra os olhos e diga Ah!, mas os amantes não estão no meio da merda gentil, nem são baleados por helicópteros. O contexto político sanguinário presente em Abra os olhos e diga Ah! e Coxas parece dar lugar aos amantes envolvidos por brechas na realidade. Brechas que interrompem o fluxo político profano e permitem alçar voos cósmicos. A linguagem mais metafórica e mística lembra muito Piazzas. A forte presença de Baudelaire, Rimbaud e Trakl realça este clima: o poeta busca a vidência (caroço da verdade) a partir do êxtase amoroso. O terceiro poema começa com um vento estrangeiro “vindo do Jaraguá cortando a cidade em dois pedaços”. Este vento interiorano, lá de onde se vê a cidade pequena, embaixo. Um vento que fende, corta, fere. Que abre novas possibilidades. E não mais gorilas tântricos ou trogloditas da ditadura cercam a cena de amor, mas sim “poemas-leopardo deslizando entre tuas coxas”. Sexo poemático. Pode imaginar Roberto Piva acariciando as coxas do amante com poemas? Mas não eram quaisquer poemas, eram poemas de McClure. O que escorria pelas coxas do amante era o rugido selvagem de um animal de rapina. Para comentar a poesia de McClure, Roberto Piva se debruça sobre a escritura: “telefone mudo da voz estrangulada / no décimo degrau. grau zero / da escritura”. São raros os momentos em que gasta tinta dos poemas com questões literárias. É mais comum a poesia vivida encarnada na experiência, não colocada em questão. Mas é o que o poeta faz. E deixa seus rastros. O grau zero da escritura, título de famoso ensaio de Roland Barthes – escrito nos últimos anos de 1940. O crítico literário perfazia no ensaio a própria história da escritura. Sem me deter em todos os meandros do texto, pulo direto ao momento do surgimento da “Literatura” como objeto de conhecimento. É o momento em que a forma literária passa a ser um problema: começa sua tragédia. Passam a manuseá-la, a experimentá-la, a tortura-la. Houve quem assassinasse a escritura. Barthes nomeia o assassino: Mallarmé. Da escritura se faz o vazio, o silêncio. O escritor prescinde da Literatura: a degola. O passo seguinte era cantar o sacrifício. É a dança da ausência. O grau zero da escritura como o momento em que o poeta se coloca na liberdade da ausência de julgamentos. Lugar neutro, pois não capturado pelo já conhecido. Lugar de solidão. Um novo nascimento após o sacrifício. O sonho de um escritor sem literatura e sua parafernália normativa. Os versos de Piva cantam o assassínio, a mudez, o grau zero da escritura. Havia um homem com pata de leão, em meio a pessoas falando uma linguagem estranha. Foi o sonho de Michael McClure que deu origem à linguagem selvagem, encenada na peça The Feast! (1960). Urros que ora pareciam rugidos de animais, ora vocalização de crianças. Posteriormente, em 1962, quando praticava ioga kundalini, passou a experimentar uma “bola de silêncio” dentro de si, em que havia um “turbilhão de poemas” – poemas em “linguagem selvagem” que compuseram a obra Ghost Tantras (1964). Vieram do silêncio ou do sonho, mas seu urro foi estrondoso: Ghraaaaaaahrr!. E McClure estava lá, em frente a jaula dos leões, trocando rosnares. O poeta-leão e o leão poeta, rugindo simultaneamente na mesma intensidade e estabelecendo uma comunicação selvagem para além de qualquer palavra. Eram os “poemas-leões”:


101 As máquinas são tolas demais quando nos tornamos poemas-leões que se movem & respiram QUANDO NOS GRUUUUUUUUUUUUUUUR193

São poemas dessa natureza que roçaram as coxas do amante de Piva. Piva urra de forma selvagem nas coxas do amante. Está possuído pelo instinto mamífero. Seu urro celebra, a um só tempo, a virulência da poesia vivida no sexo e sua morte como convenção literária abstrata. Celebra o silêncio da literatura assassinada e os rugidos da vida poética. Poeta sem Literatura – mas não sem orgia. A seu modo, o poeta faz as vezes de crítico literário, ao associar a linguagem selvagem de McClure com o contexto de poesia sem literatura: como se os gritos indômitos do poeta beat surgissem no vazio da página em branco de Mallarmé. Há vários poemas em que há reflexos dessa mudança na criação de Piva: das preocupações eminentemente políticas de seu contexto, para uma vivência por dentro da poesia. Permanece o entrelaçamento do sexo com o amante e menções com feições críticas sobre assuntos literários. No poema VI, por exemplo: “o pajé dançava com a casca do / gambá / você brincava com meu caralho / Macunaíma & Alice no país da / Cobra Grande. / mesma estrutura narra-ação & / barroco elétrico pinçando / estilhaços de visões”194. Novamente o amante associado a Macunaíma & Alice, assim como o caralho do poeta ligado à Cobra Grande. O sexo mesclado ao literário. A seguir, um comentário crítico sobre a semelhança entre as obras Macunaíma (Mário de Andrade), Alice no País das Maravilhas (Lewis Carrol) e Cobra Grande Norato (Raul Bopp). Ficaria horas falando das semelhanças e diferenças dessas obras, ambas mágicas com seus personagens perfazendo caminhos de iniciação. Mais adiante, o poeta parece contemplar o sol que “caía na marmita do adolescente da lavanderia”. Dialoga então com Murilo Mendes, imaginando como o poeta veria a cena. É outra passagem emblemática: na observação de um ato cotidiano, Roberto Piva solicita o anteparo da literatura para tomar contato com a realidade. Sua experiência está encharcada da presença de personagens, poetas e elucubrações literárias. E garotos, com toda a pungência transgressora da juventude:

IX corra como se você fosse o ÚNICO de Max Stirner. Sem Deus Nem Senhor. rubi dos muros cobertos de musgo & caranguejos. nenhuma luz. a esquina sangra. múmia surda em chamas ladeira abaixo. o mundo virou do avesso.

193

MCCLURE, Michael. A nova visão – de Blake aos Beats. (Daniel Bueno, Luiza Leite & Sergio Cohn, trad.) Rio de Janeiro: Azougue, 1982/2005. p, 218. 194 PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli, op. cit., p. 101.


102 (dedicado a todos os garotos rebeldes & depravados)

Depravados, rebeldes, anárquicos e individualistas. Correm como o Único: destroçando todas as autoridades e instituições, na busca libertária do gozo pessoal. Correm deixando o rastro de todas leis, morais, religiões e utopias populares (como o comunismo) destruídas pelo poder individual de criar artisticamente sua própria existência. Nos corpos dos garotos passeiam a epifania e a anarquia. A presença do pronome “você”, sempre em cenas de sexo com o poeta. Mas são sempre presenças epifânicas, com o poder do amante: “você tranca o planeta”, “você carrega a paisagem”, “& você põe fogo no bar / maneira brejeira de agradecer / o misto-quente”. É presença poderosa e transgressora. Entre o anárquico e o sagrado há uma relação íntima. Em ambos, a suspensão de todos os costumes e a irrupção da desordem. Escreveria um tratado sobre o crime na poesia de Piva, passando pelo crime como experiência da potência da vida, em Sade, e o crime como certificado de acesso ao sagrado – para os adamitas do “Livre-Espírito” – ou sua importância na poesia sagrada de Jules Monnerot. Transgredido, o mundo vira do avesso e clama por recriação constante.

XII

“ci riguardava come suol da sera guardare uno altro sotto nuova luna” Dante, Inferno, canto XV, “I sodomiti”

adolescentes violetas na porta do cinema Bar Jeca esquina da São João/ Ipiranga. revoada de revoltados. maravilhosos. jamais capitular. pijamas, família, tv doméstica: a ordem Kareta se representa a si mesma. corpo doce-delicado-quente na manhã alaranjada. o planeta entra na órbita do coração.

Num Bar, rodeado de adolescentes revoltados. Bem à moda de Piva, ressaltando sua força política e erótica. O mundo gira no coração. Contra a ordem Kareta, atrelada ao corpo prostrado na poltrona; ao desejo blindado pelo mercado. Os adolescentes são um inferno. Lá no sétimo círculo, Dante passa por um bando de almas sodomitas. No fogo ardente, ergue-se densa névoa. Chama a atenção do poeta o olhar dos sodomitas: Eis que de almas um bando, que avançava, Vimos, e cada qual, mais perto, então,


103 Lançava a nós o olhar, e o olhar forçava, como quem busca ver na escuridão, à lua nova, e fixa atentamente, tal sobre a agulha um velho remendão195.

O trecho, presente na epígrafe do poema de Piva, traz a metáfora dos sodomitas que olham o mundo com dificuldade, franzindo a testa para tentar ver na escuridão – como um velho sapateiro para fincar a agulha em pequeno buraco. Numa primeira olhada, Piva ambienta o poema no clima devasso dos sodomitas no inferno. O Inferno dantesco adentrado por uma fresta do Bar Jeca. Faz jus à associação dos adolescentes da sauna com os círculos infernais. A sauna, o calor, a névoa, o sexo. É o inferno – com todas suas delícias. Se em 20 poemas a realidade é vista pela brecha da experiência poemática, aqui a realidade penetra na obra de Dante, numa similar fusão entre o lido e o vivido. Pode haver mais. Os versos que Piva menciona tem a seguinte tradução literal: “[cada alma do bando de sodomitas] se envolvia como se faz ao crepúsculo / olhando o outro sob a lua nova”. Piva tem em Dante um bruxo. Os sodomitas procuravam ver no escuro, ao crepúsculo. Sob a lua nova, ainda por cima. São símbolos místicos muito ricos. A orgia era ritual. O lado escuro da lua: onde o fogo do desejo está envolto em névoas. Em Piazzas é exatamente esse instante do crepúsculo (a tarde) que abre a manifestação do sagrado – um crepúsculo bem ao modo de Baudelaire e Trakl196. O outro lado da vida (o mistério, o desconhecido) visto apenas por sodomitas em orgia: a mesma iluminação mágica a partir do sexo: o caroço da verdade. Se pudermos viajar um pouco mais – quem me acompanha? –, vemos que Dante encontra ali seu mestre da juventude, Brunetto Latini. Autor de o Tesouro, o mestre é bastante associado a heresias medievais que tinham na orgia ritual a expressão do sagrado. Mais adiante, no diálogo com Dante, Latini chega a mencionar que grandes poetas também figuram como sodomitas. A mim, Brunetto e Piva têm muito em comum: mestres, sodomitas, místicos, poetas. Recortando esta passagem em epígrafe, o poeta parece chamar atenção a esta faceta de sua poética, indissociável do elemento transgressor do sexo como vivência mística. Dante é retomado no posfácio do livro. Para Roberto Piva, 20 poemas estava associada a uma descoberta excitante: uma sauna gay na periferia da cidade. Assim, as “pequenas estufas de vapor para duas pessoas” revelavam uma “imagem paradisíaca” dos círculos infernais. O paraíso no Inferno. E Piva complementa: “Mas os garotos do subúrbio são anjos...”. Anjos demoníacos, paraísos infernais. A sodomia como presença concomitante do inferno e paraíso. É assim que o livro se encerra com a saída do Inferno, nos últimos versos desse livro da Divina Comédia. Numa tradução literal: “subimos, ele em primeiro e eu em segundo / quando vi a coisa mais bela / a porta do céu, por uma fresta redonda / e saímos para rever estrelas”. A travessia infernal do amor alça para a visão celestial de estrelas sublimes, salpicadas de anjos suburbanos. Em poema posterior, o mesmo ambiente mágico do medievo herético vem atrelado a visão dos adolescentes como “garotos-filósofos de Platão”. Contudo, em vez de presença potente, tais garotos trazem buquês que agonizam. Neste XI poema com brócoli surge um 195

ALIGHIERI, Dante. Divina Comedia. (Cristiano Martins, trad.). São Paulo/Belo Hrizonte: Edusp/Itatiaia, 1979, p. 230. 196 vide: MATTOS, Ricardo Mendes. Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos. 250 fl. Tese (Doutorado em Psicologia da Arte), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. p. 50 e seguintes.


104 elemento novo nesse amor efebo. A violência do poeta com o amante, violência proveniente do fim da relação: “quero ver você sangrar no skate das ilusões perdidas”197. Esse amor místico que desconcerta e vira a cabeça de Piva. Os instintos mais agressivos do amor. O desabafo, ainda no calor do amor, naquela vontade de matar o amante. XIV

para o Carlinhos vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas coxas imberbes & brancas. vou dilapidar a riqueza de tua adolescência. vou queimar teus olhos com ferro em brasa. vou incinerar teu coração de carne & de tuas cinzas vou fabricar a substância enlouquecida das cartas de amor. (música de Bach ao fundo)

É um poema de arrepiar! Se falta ar para comentar (precisa?), vou mudar o rumo da prosa e falar sobre o ritmo. No Pósfacio do livro, Piva comenta a influência de Pierre Reverdy sob o ritmo. É uma influência que vem de longa data, desde a produção de Piazzas. Vejamos um poema deste escritor que tanto influenciou os surrealistas: LUMIÈRE Midi La glace brille Le soleil à la main Une femme regarde ses yeux Et son chagrin Le mur d’en face est dépoli Les rides que le vent fait aux rideaux du lit Ce qui tremble On peut regarder dans la chamber Et l’image s’évanouit Un nuage passé La pluie

LUZ Meio-dia O gelo brilha O sol à mão Uma mulher olha teus olhos 197

PIVA, Roberto. 20 poemas com brócolis, op. cit., p. 106.


105 E sua aflição A parede em frente é fosca As rugas ao vento na cortina da cama O que treme Se pode olhar no quarto E a imagem desaparece Uma nuvem passa A chuva

Piva experimenta essa mesma disposição espacial do poema na página. Versos de tamanhos irregulares são dispostos com recuos distintos, ora em escadas de forma a acelerar a leitura, ora no contrapé, retardando o fluxo. Esta espacialidade cria o ritmo, pois determina a velocidade da leitura. Em ambos os poemas, alguns versos são entrecortados, às vezes mudando o sentido da frase, outras vezes enfatizando expressões (como em “teus olhos”). Reverdy trabalha bem as rimas (o que torna seus poemas difíceis de traduzir), comuns entre as palavras terminais dos versos ou no interior de cada verso. Piva utiliza pouco este procedimento. O que chama atenção em Piva é o uso da pontuação, especialmente o ponto final. É a grande característica formal de 20 poemas: “mão esquerda. / veloz. veloz. veloz.”. Com essa técnica, o poeta imprime um ritmo vário e entrecortado no verso, às vezes reforçando a mesma nota musical, como ocorre no jazz. Retomemos o fio da meada. O poema dilacerado do fim do amor vira a cabeça de Piva e o livro parece ganhar novos ares, novos ambientes. A obra também muda de direção e deixa entrever uma grande virada na poesia de Piva. O poema seguinte tematiza a cidade. A cidade vista do alto, de certa distância. Vertigens, cabeças decepadas. Últimos centauros, últimos amores. Há um tom de distanciamento e despedida. Em seguida: XVI abandonar tudo. conhecer praias. amores novos. poesia em cascatas floridas com aranhas azuladas nas samambaias. todo trabalhador é escravo. toda autoridade é cômica. fazer da anarquia um método & modo de vida. estradas. bocas perfumadas. cervejas tomadas. nos acampamentos. Sonhar Alto.

Ai o marco. Toda a poesia de Piva até sua morte persegue este sonho. Mas, primeiro, mandar tudo a merda. Tocar o foda-se. Cair na estrada, conhecer praias e amores. Estradas e acampamentos. Abandonar – este verbo com importância seminal na poesia de Piva durante a década de 1980. Numa primeira aproximação, o poeta abandona a vida urbana. Assim, afirma a Pepe Escobar, em 1983: “Eu estou abandonando São Paulo, que está presente em todos meus livros,


106 exatamente para não tropeçar mais nessa decadência”198; ou para o amigo Carlos Von Schmidt: “...estou abandonando o mundo urbano cada vez mais, por uma postura virgiliana, das Bucólicas, das Georgias, numa visão voltada para o mar, para o mato e para a vida rural”199. É exatamente o novo rumo que 20 poemas toma. O ambiente mencionado nos poemas finais é inequívoco: uma “pequena cidade do interior donde você brota como Amor-Perfeito”, no poema XVII, ou a “rua sem calçamento” do poema posterior, com garotos como “deuses pagãos galopando ditirambos”. Assim, o abandono da cidade de São Paulo faz o poeta penetrar espaços rurais recheados de presenças epifânicas. É mesmo uma boa aproximação com a poesia de Virgílio: não apenas com um paganismo pungente nas expressões da natureza, mas também com um tom pederástico comum entre os romanos200. Mas Roberto Piva abandonava sobretudo a civilização: “O século XXI me dará razão, por abandonar na linguagem & na ação a sociedade cristã oriental & ocidental...”. O manifesto O século XXI me dará razão, publicado em primeira mão na antologia da L&PM, e posteriormente na revista Chiclete com Banana, amealha as razões desse abandono, jogando merda no ventilador com todas as questões ecológicas, econômicas e artísticas das civilizações modernas. Aquele que faz da anarquia um modo de vida, passa a ser lido a partir desse viés, como fica claro na apresentação do poeta na antologia da L&PM de 1985: o poeta é apresentado como “o mais indômito, o mais rebelde e um dos mais inspirados poetas brasileiros das últimas décadas”, com o toque libertário de levar “uma existência de permanente insurreição contra todas as Ordens”. Durante essa década, Roberto Piva faria amplo uso do termo anarquia para se referir à sua poesia e modo de vida. Os poemas da própria antologia, que reúnem aquilo que Roberto Piva escolheu como mais potente em sua poesia até então, são “criações... dedicadas à Anarquia”.

XX vocês estão cegos graças ao temor olhares mortos sugando-me o sangue não serei vossa sobremesa nesta curta temporada no inferno eu quero que seus rostos cantem eu quero que seus corações explodam em línguas de fogo meu silêncio é um galope de búfalos meu amor cometa nômade de riso indomável façam seus orifícios cantarem o hino à estrela da manhã torres & cabanas onde foi flechado o arco-íris eu abandonei o passado a esperança a memória o vazio da década de 70 198

ESCOBAR, Pepe. A quizumba poética de Roberto Piva. Em: COHN, Sergio. Roberto Piva. (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 1983/2009. p. 40 199 VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. 200 No poema “O chute do mandril da meia-noite”, dedicado a Zé Celso e escrito em 2007, Roberto Piva versa sobre o Império Romano e cita um tal garoto que Virgílio teria ganhado de Octávio Augusto.


107 sou um navio lançado ao alto-mar das futuras combinações

O mesmo tom ácido do manifesto O século XXI me dará razão, com a crítica aos cidadãos civilizados (“vocês”). Crítica entremeada com exortações (“eu quero”, “façam”,etc), comuns na poesia de Roberto Piva do período: “Eu quero que vocês gozem exemplarmente”201. Agora, contudo, a flexão do verbo muda (“abandonei”) e o que parecia um projeto de fuga da civilização é um canto de desterrado. A menção à temporada no inferno e o tema da fuga levam a pensar num diálogo com Rimbaud. Após sua temporada no inferno, o poeta vidente anuncia sua evasão do ocidente, suas práticas e seus saberes. O fim da temporada é um adeus à Europa rumo às praias virgens e à sabedoria ancestral dos “primitivos”. O tema da fuga está presente em Iluminuras, enfaticamente no poema “Partida”. É por estar de saco cheio (farto) que o poeta decide “partir para afetos e rumores novos” – frase que inspira Piva nos versos em que fala em “amores novos”. Rimbaud foi para a África. Sua vida poética esparramou passos e nenhum verso. A fuga de Roberto Piva de sua temporada no inferno, contudo, inaugura um momento muito criativo de sua produção poética: no alto-mar das futuras combinações, mergulha em rituais arcaicos do êxtase, nas matas do interior do Estado de São Paulo. Entre rituais de candomblé, catimbó, jurema, cogumelos e garotos dourados em praias paradisíacas, Roberto Piva acumula poemas que viriam a compor parte de seu livro Ciclones. No final da década de 1980, Roberto Piva seria iniciado no xamanismo por Carminha Levy – que participara de cursos ministrados por Michael Harner. O poema inédito Jornada Xamânica, de 1989, marca o momento em que Roberto Piva irá se utilizar da expressão xamanismo como ponto seminal de sua poesia. Nos rituais arcaicos do êxtase, o poeta encontra a potência da vida, para além da civilização ocidental e sua história.

201

PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita – revista mensal de literatura, n. 33, 1983, p. 17.



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A Quizumba de Roberto Piva

No final da década de 1970, o poeta Roberto Piva participa ativamente do nascente movimento pela diversidade sexual, além de meios ligados à esquerda revolucionária – a exemplo de suas publicações no aguerrido “Versus – jornal de política, cultura e idéias” ou seu diálogo com a Libelu (Liberdade e Luta), grupo trotskista vinculado à Organização Socialista Internacionalista. Tais esperanças políticas em torno do processo de redemocratização do país cessam em 1979, quando o poeta escreve o seguinte trecho de seu 20 poemas com brócoli: “eu abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras / combinações”202. O poeta experimenta profunda crise. Copos se quebram na cozinha de seu apartamento, no que considerou manifestação de sete demônios a atormentar sua vida. Esse momento de grande conturbação anunciava tempestades e, com elas, a grande fertilidade da terra. Se o posfácio de 20 poemas foi escrito no último dia do ano de 1980, em 04 de janeiro de 1981 o poeta se manda para Águas de Lindóia, no interior de São Paulo. Passagem só de ida. Durante os meses de janeiro e fevereiro, nesta cidade, o poeta transborda a confusão de sua vida em versos velozes em debandada, naquilo que chamaria de Quizumba: um grande caos criativo. Quizumba é enxurrada de versos a mesclar elementos dos mais diversos: embaralha o tempo, ao fundir lembranças da infância, com fatos da juventude e encontros recentes; desfila recordações pessoais entrecortadas por leituras feitas sob efeito de anfetaminas; jorra frases em diversos idiomas e neologismos saltados da trombada entre línguas; apresenta cenas de amor entre poeiras de acostamentos, em meio a fatos históricos se projetando ao fundo. É o “Vulcão-memória” – como se lê em um poema. Um vulcão em erupção. Neste magma, cuja metáfora fora utilizada pelo próprio Roberto Piva como verve seminal de sua poética, pretendo enveredar. Nessa deriva, apresento o livro Quizumba como experiência de escrita automática, recheada da imagética futurista, com suas palavras em liberdade e encontros entre realidades distintas. Trata-se da obra de Roberto Piva mais afeita à noção de “historiografia do inconsciente”, noção que o próprio poeta sugere para a compreensão de sua criação. Contudo, a crise pessoal do poeta é encarnação da crise de um momento histórico específico, pautada no colapso da modernidade.

1. “Vulcão-Memória” Eis o poema de abertura da obra: 1. Chovia na merda do teu coração antenas de tv lambuzadas de veneno / caminhões despencando dos eucaliptos / doze picadas de sal de anfeta na manhã embolorada da alma / você assava pulmão de abutre / partia pra Pensão Estrada / eu vi a amora gotejante do Sol depois do primeiro Purple Haze / fazia calor na Cantareira / garotas apodreciam / guinchos dentro do mato anunciavam Alguma Coisa / 202

PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115.


110 Hendrix & movimento submarino / Algas / flores no Cio de Metal / Gulash & Cristais / garotos na Rural Wyllis tocando bongô pra Lua / olho-laser estocando minhas células servicais / flores canoras nos canteiros de borrachudos / total motores / eixo desmanchado em partículas de poeira pulverizadas em Sonho / Morte do pêssego pródigo / só nós dois no coração da canção / desenhos animados em câmera lenta no cartaz do ônibus / punhais das sessões Zig-Zags / festa pagã do troca-troca religião da infância / Hotel na plataforma espacial do largo do Paissandu / plantando quiabos nos jardins da praça Clóvis / misturando as mídias / Plátanos via satélite com folhas de amianto / Coaxando na TV programa Antunes Filho em 63 / Ode Marítima em ritmo de Spansule / Jorge de Lima no Vulcão-Memória / bombordo do Bateau Ivre / Kelene Geral congelado na alquimia / Carnaval de Genghis Khan / vinho branco / hora da lasanha com perfume / Wesley inventando o bicho que quebrou o pescoço / nos quintais tudo bem do Planeta / vou por aí o chão de estrelas onde a borboleta caga assassinato nuclear / Foi assim o fim sem fim do Serafim Ponte Grande? / sem maiores / pra lá de Bagdá & da quadra de basquete / no azul daquela serra onde nasceu Iracema & Oswald Spengler / decadência do tango argentino visto na televisão ocidental / ócio & tal / Cobra Norato graças a Deus era tarado / esporte do fim do mundo / Cruz Credo como diria Pedro II / Você ia à deriva no rio do meu amor cabeludo / mostrando as coxas na estação como um garoto canalha / baganas aos sóis da constelação / nos meus braços você foi deus & puta203.

Quizumba é associação incontrolável de imagens, ideias, sensações e lembranças. Associação mais que livre, na vida transvestida em versos. Tudo ali é choque insólito de realidades distantes. Um conluio de contrastes. Sob determinado ângulo, Quizumba é o texto mais autobiográfico do poeta: o fluxo da escrita permite captar seus delírios tanto quanto suas recordações do troca-troca da infância; suas leituras de Álvaro de Campos na juventude, chapado de anfetamina; o primeiro encontro com Wesley Duke Lee, no momento dos estudos da obra “bicho que quebrou o pescoço”; o teleteatro de Antunes Filho ou a memória de quando tomou seu primeiro ácido lisérgico. Sua vida em estado poético encarna leituras e músicas, teatro e artes plásticas, numa miscelânea em que está a bombordo do barco bêbado de Rimbaud; ou pensando em Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, em meio a afirmação sobre o forte erotismo de Raul Bopp. Nesse lago azul da memória, nascem juntos Iracema e Oswald Spengler, num carnaval do imperador mongol Gengis Cão, seguido de supostos ditos de Pedro II. Para o processo criativo de Quizumba, vale bem a seguinte formulação de Roberto Piva: A minha poesia não tem meio caminho. É uma vivência profunda dos acontecimentos, da experiência vivida, transportada para a poesia. Mas isso se dá através daquilo que Walter Benjamin chamava de ‘historiografia do inconsciente’, que é como ele definiu o surrealismo. Quer dizer, toda experiência vem da infância, de relatos, de filmes, da cultura, da natureza. E tudo isso transforma-se num magma, como diz o Pasolini. Vem aquela coisa abrupta do fundo do vulcão, aquela lava incandescente, e se solidifica em poesia204.

203

PIVA, Roberto. Quizumba. São Paulo: Global, 1983. p. 10. MONTEIRO, Danilo; CESARINO, Pedro; COHN, Sergio. O renascimento do maravilhoso. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2007/2009. pp. 162-185. 204


111

Tomemos os primeiros versos. As “antenas de tv lambuzadas de veneno” retomam a frequente crítica do poeta a esse meio de comunicação. No poema Mortikultura, por exemplo, o poeta associa a TV à cultura de morte, mencionando “adolescentes adultos crianças morrendo num canto escuro da casa em meio aos cheiros familiares & se dispersando em pequenas coisas ridículas”205. Em Mississipi no Amazonas, o tema tem tratamento semelhante: “a larva telenovela cagando problemas de pequeno-burguês nos nossos olhos & corações”206. É o veneno do conservadorismo moral a modelar os comportamentos e prostrar o corpo na poltrona; é o meio de comunicação a serviço da mercantilização da vida e da massificação dos modos de ser. É este veneno que lambuza as antenas de TV. Tal verso é seguido pela crítica de Roberto Piva ao desmatamento originado pela indústria papeleira, a partir da derrubada de mata nativa para plantio do eucalipto. As toras do vegetal são transportadas em extensos caminhões, que surgem na imagem despencando das altas árvores de eucalipto. Na época de fabulação de Quizumba, Roberto Piva era ativista ligado ao Movimento Arte e Pensamento Ecológico – pioneiro no debate das questões ambientais no Brasil. Durante aquela década, o poeta participaria de inúmeras passeatas contra desmatamento da Juréia, além de manter importante coluna de debates ecológicos – “Sindicato da Natureza” – na revista Chiclete com Banana. A feição violenta e apocalíptica da imagem reflete bem as preocupações ambientais do poeta. A seguir, numa manhã entediada, o poeta descreve o uso de anfetaminas, droga cujo ritmo é associado mais adiante à “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos. O pronome “você” anuncia a interlocução do poeta com um amante, num teor homoerótico característico da produção de Roberto Piva. Tal como o próprio poeta recluso no interior do Estado, seu amante também parte para a “Pensão Estrada” – partida talvez relacionada com a depressiva “manhã embolorada da alma”. A crítica aos meios de comunicação de massa e à degradação ambiental, seguida de lembranças amorosas é emendada à memória de quando o poeta experimentou seu primeiro ácido lisérgico. Era 1969. Piva toma uma stone do LSD 25, purple haze, e se manda com amigos para a Serra da Cantareira. Nas palavras do próprio poeta: “...quando bateu o ácido, olhei para o sol e vi como se fosse uma grande tangerina gotejando amor para o universo. (...) E, depois... ouvi Jimi Hendrix na casa de um amigo e percebi que era um músico que tentou musicar o movimento das plantas submarinas, a dança das algas”207. Neste relato está a “amora gotejante do Sol”, agora como tangerina, e “Hendrix & movimento submarino / Algas”. E assim ocorre em todos os versos de Quizumba. Incandescente, o Vulcão-Memória escorre as imprevisíveis combinações do inconsciente, em genuíno exercício de escrita automática. Nela se mesclam diferentes momentos da vida do poeta, mas também se encontram distintas culturas e diversos momentos históricos.

205

PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 22, junho/julho, 1978, p. 36. 206 PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 20, abril/maio, p. 30, 1978. 207 VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. p. 66-7.


112 Nesse primeiro lampejo, Quizumba reflete um processo criativo a partir das volições do caos operando desde dentro, no intempestivo fluxo do pensamento. A escrita automática, como forma de criação poética inspirada na associação livre de ideais proposta por Freud, é marca registrada do surrealismo. Certamente Roberto Piva lança mão dessa forma de criação – utilizada já no Poema Automático, escrito com o amigo Claudio Willer, cujo título alude à escrita automática. O caos de Quizumba certamente se inspira no surrealismo. Mas não só nele.

2. “Ritmo de Spansule” Vejamos um poema raro de Roberto Piva, publicado no ano de 1972, na Revista “Artes:”

Estou no Chivas da Haddock Lôbo / são 3 horas da tarde / quinta-feira / fevereiro / 1972 / tomo um milk Shake enquanto espero um Anjo entre as mesinhas & as árvores que cercam este pedaço de mundo batido pelo vento paulista & o sol universal / as fôlhas arrastando atrás de si o sonho dos duendes & eu estou com vontade de ouvir Changelling do Doors na voz de trovão-machucado de Jim Morrison da última fase & gostaria de ver Baudelaire aparecer por aqui / com os cabelos compridos pintados de verde & sua tartaruguinha prêsa numa coleira de cachorro / recitando les jornaux intimes / principalmente “j’ai trouvé la definition du Beau, de mon Beau. C’est quelque chose d’um peu vague, laissant carrière à la conjecture” / não separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito208

O poema se inicia como uma anotação em diário pessoal: com detalhes do local e data. Tal referencialidade é logo assaltada pela percepção delirante da realidade. Como na escrita automática, não há separação entre “o sonho & a realidade-limitadora”. O vento bate e as folhas de uma árvore arrastam os sonhos de duendes. O poeta parece mesclar sensações do instante com rompantes delirantes, entremeados com o desejo de ouvir uma música ou a lembrança de uma passagem de Charles Baudelaire. É emblemática a presença do poeta francês nessa outra quizumba de Roberto Piva. A começar pela menção à obra Os Paraísos Artificiais, na qual Charles Baudelaire relata suas experiências com o haxixe e o ópio. Roberto Piva, contudo, nomeia a experiências com essas substâncias como “visão psicodélica”, visão presente em Quizumba. Trata-se de uma forma de fusão entre o sonho e a “realidade”, na qual o estado onírico penetra a vigília e conduz ao próprio paraíso: o êxtase da plena alegria do mundo como “eterna festa num ciclo cósmico infinito”. Além desse estado delirante, às vezes estimulado pela ingestão de substâncias, Charles Baudelaire também comparece com um trecho extraído de Fusées (Foguetes). Esta obra, junto com Mon Cœur mis à nu (Meu coração posto nu), forma espécies de diários íntimos (jornaux intimes) do poeta francês. Nestes diários, há textos fragmentados e inacabados, escritos em rompantes abruptos entre 1855 e 1862. O próprio Baudelaire relata a proposta: escrever dia a dia, não importa onde ou como, seguindo a inspiração do instante, “desde que a inspiração seja 208

PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?. revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, p. 3, 1972.


113 viva”. Mas não são os instantâneos da vida pública moderna, como nos famosos quadros parisienses. São diários íntimos em que o poeta discorre livremente sobre os mais variados assuntos, incluindo o modo de ser do dândi, mesclado a reflexões filosófico-teológicas, em meio a desabafos contra a política ou a religião; aí juntam-se híbridos de crítica literária com memórias da infância, ou passagens biográficas sobre suas obras intercaladas por notas para não se esquecer de algo. É um diário pessoal em que se diz tudo, sem censura. É um processo de escrita em tudo semelhante àquele de Quizumba. Sua presença neste poema de 1972 revela o quanto Roberto Piva o experimentava já desde essa época. Assim como em 1983 se associa “Iracema & Oswald Spengler”, a partir do azul que colore a serra, em 1972 se associa Jim Morrison à definição do belo em Baudelaire. A passagem mencionada no poema é aquela do trecho de número XVI dos Foguetes: “Eu encontrei a definição do Belo, do meu Belo. É qualquer coisa de ardente e triste, qualquer coisa um pouco vaga, dando corda à conjectura”209. Baudelaire se demora na relação entre a Beleza e a Melancolia (seu “companheiro ilustre”). Essa mesma beleza melancólica, Roberto Piva percebe em Morrison. Mas não apenas no horizonte da criação poética o poema de 1972 mantém um paralelo com Quizumba. Em ambos poemas, os versos se sucedem com grande velocidade, expressa formalmente com o recurso tracejado (“/”). Assim, sobrepõem-se um verso a outro sem qualquer pausa, acompanhando o ritmo da escrita automática. Não há como não lembrar da forma de redação de On the Road, em que Jack Kerouac, chapado de anfetamina, escrevia suas aventuras biográficas sem parar, em grande rolo de papel que não interrompia o rápido fluxo dos dedos na máquina de escrever.

3. “Cio de Metal” A associação livre do pensamento opera no fluxo do inconsciente, encadeando misteriosamente realidades das mais inusitadas, em estranha causalidade do desejo. Sob o ponto de vista imagético, a composição de Quizumba pode bem ser entendida na esteira surrealista. No Manifesto do Surrealismo de 1924, André Breton empresta passagem de Pierre Reverdy para expressar, “do ponto de vista poético”, os assaltos oníricos do desejo na vigília: “A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas”210. O trecho, publicado por Pierre Reverdy originalmente em sua revista Nort-Sud, em março de 1918, segue conclamando a “realidade poética” como encontro de realidades mais longínquas. Imagens como “Hotel na plataforma espacial do largo do Paissandu” ou “Plátanos via satélite com folhas de amianto” parecem regidas por esses insólitos encontros. Certamente, os surrealistas inspiraram-se na famosa passagem de Lautreamont: “o encontro fortuito sob uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e um guarda-chuva!”211. Como grande leitor de Lautreamont, Roberto Piva também tinha essas influências em mente, mesmo que inconscientemente.

209

BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes: fusées, mon coeur mis à nu, carnet. Paris: Librairie José Corti, 1949. p. 18 210 BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. (Sergio Pachá, trad.) Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 35 211 LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror. 2. ed. (Claudio Willer, trad.). São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 252.


114 Mas Roberto Piva convida outra vanguarda para ver suas imagens. No verso inicial do segundo poema, lemos: “Filippo Tommaso Marinetti era uma rã no aeroplano / todo alumínio de Zung Tumb”. É parodia da passagem inicial do Manifesto Técnico da Literatura Futurista, publicado por Marinetti em 11 de maio de 1912. Foi exatamente em um aeroplano, sentado no tanque de gasolina, que o italiano sentiu a necessidade furiosa de arrebentar com a velha sintaxe e criar suas palavras em liberdade. O ritmo sobreposto, veloz e frenético de Quizumba bem lembra a formulação do poeta italiano: “A poesia deve ser uma sequência ininterrupta de imagens novas....”212. Imagens estas que procuram abarcar todas as volições da vida, a partir da associação de movimentos mais estranhos da matéria. Criticando as analogias mais simples e corriqueiras, Marinetti propõe um “estilo analógico” capaz de abranger associações mais vastas: “A analogia nada mais é do que o amor profundo que liga as coisas distantes, aparentemente diferentes e hostis. Somente por meio de analogias vastíssimas pode um estilo orquestral, a um mesmo tempo policromo, polifônico e polimorfo, abraçar a vida da matéria”213. Um ritmo rápido, pautado na sequência de imagens em choque, esparramadas a partir de uma analogia inusitada: é uma boa descrição de Quizumba. E mais: Marinetti sugere “...orquestrar imagens dispondo-as de acordo com um MAXIMUM DE DESORDEM”214, a partir da união de palavras em seu nascimento ilógico ou em uma “IMAGINAÇÃO SEM FIOS”215. Não é uma boa pedida para se aproximar de Quizumba? As imagens de Roberto Piva utilizam também outros artifícios do Manifesto Técnico. Por exemplo, a imagem formada por dois substantivos unidos por analogia e aproximados com hífen. O Manifesto traz alguns exemplos (mulher-baía, multidão-ressaca, etc.). Quizumba traz inúmeras imagens nessa configuração: “Punk-torrada”, “coração-travesti”, “heróisescaravelhos”, “Baudelaire-Maxixe”, “Orixá-Samambaia”, “garoto-morcego” e por aí vai. A exaltação futurista das tecnologias traz diversos termos técnico-científicos acoplados às imagens, neste mesmo ímpeto de ligar coisas distantes. Muitas imagens em Quizumba utilizam este expediente: “flores no Cio de Metal”, “olho-laser”, “partículas de poeira pulverizadas em Sonho”, “punhais das sessões zig-zags”, “Hotel na plataforma espacial do Largo do Paissandu”, “Plátanos via satélite com folhas de amianto”, “assassinato nuclear”, “pétalas radioativas”, “polias polissêmicas”, “veludo dos motores azeitados”, “ilhas de Marajó ectoplásmicas”, etc. São imagens formadas a partir de termos oriundos da matemática, mecânica, química, física e astronomia. São as palavras em liberdade numa apropriação de Roberto Piva com toda sua velocidade, analogia, desordem e ilógica. No entanto, após a menção a Marinetti que vimos anteriormente, Piva traz uma sequência de versos em que se enfatiza o sujeito lírico (“minha morte gula do céu azul / meu amor buldogue de pólvora”). Isto é importante porque o Manifesto Técnico critica frontalmente o lirismo e se propõe a “DESTRUIR O ‘EU’ NA LITERATURA”216. Com uma poética pessoal, que transborda lirismo e vivências biográficas, Roberto Piva marca essa diferença com relação às pretensões do futurismo italiano.

212

MARINETTI, F.T. “Manifesto Técnico” da literatura futurista. EM: BERNARDINI, Aurora Fornoni (org.). O futurismo italiano – manifestos. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 83. 213 Ibidem, p. 82. 214 Ibidem, p. 84 215 Ibidem, p. 86. 216 Ibidem, 84.


115 Com suas imagens a ligar coisas distantes, muitas vezes unidas por hífen e referidas a termos científicos, a verve imagética de Quizumba é nitidamente futurista. Se considerarmos a velocidade dos versos dispostos em desordem, poderemos ampliar ainda mais a influência das palavras em liberdade nesta obra de Roberto Piva.

4. Vox Voluptas Outra experiência de Roberto Piva em Quizumba é a mescla de diversos idiomas – outro eco da polifonia futurista mencionada por Marinetti. Os exemplos aqui também abundam, tais como: “rosas-chá da belle époque / (...) bacio del fanciullo elétrico (...) Mailove”. Em versos bem próximos, Piva traz expressões do francês, italiano e inglês – este último na versão aportuguesada. Belle époque é expressão proposital que associa o poema a um período considerado bastante cosmopolita, recheado de inovações tecnológicas e artísticas que modificaram substancialmente a vida social. O “beijo da criança” elétrico e o “mailove” aponta uma apropriação erótica das expressões. Esse mesmo ar cosmopolita, polifônico e erótico está presente na poesia de Roberto Piva desde sua obra Piazzas: “uma tarde de inverno / sobre um grave pátio / onde garòfani milk-shake & Claude / obcecado com anjos”217. A nomeação do cravo em italiano mesclado com a bebida norte-americana e um amigo francês. Em Piazzas, como em Quizumba, a miscelânea de idiomas é reflexo do tom onírico que mistura realidades distintas. Em ambos, a soberania do princípio do prazer, presente no universo onírico, afirma-se como atmosfera erótica. Quizumba, contudo, aprofunda a experiência. Além de caos na vida pessoal, na versificação e na composição de imagens, Quizumba é também confusão linguística, em que o alto latim e a gíria mais baixa se encontram:

Jorge de Lima + William Blake + Tom Jobim. Dante observa Papè Satan, papè Satan aleppe / Stradivus cordis meus / formavulva falastros / ripus Nicomedis / fla-flu Kricotomba / cantus Servilius / Baudelaire-Maxixe / Fontana efó luzes pardoin / farofa extravivax vox voluptas / moqueca / cachimbando cullus puer / Monte Branco belladona / Montagu / Pasolinipanqueca / formas tuas in natura / pour toi / Plebiscito Bakunin sin nombre ni substancia / tus pecados / dans le salon de danse / Mon grosse Lewis Carroll / suchiando le bambine / na calçada / na porta do hospício / eu você nós dois aqui neste bagaço à beira-mar / Curiango / tiger / milhafres / sai de baixo218.

Veja como o título do poema reúne um poeta brasileiro com um inglês, além do músico brasileiro – todos observados pelo poeta florentino. Somados pelo sinal matemático – como desejava Marinetti. No poema, a quizumba é completa. Há neologismos como “formavulva falastros”, utilizando novas combinações do nosso idioma. Há fusões do português com o latim que criam encontros inusitados com invenção de palavras, a exemplo de “farofa extraivax vox voluptas”. Há encadeamento de frases em francês, espanhol e italiano. Há, por fim, menções ao poeta francês associado a expressão popular brasileira, além de cineasta italiano, escritor inglês, político russo, de diferentes épocas. 217 218

PIVA, Roberto. Piazzas. São Paulo: Kairós, 1964/1980. (Coleção A Ciência da Abelha). p. 23. PIVA, Roberto, Quizumba, op. cit., p. 23.


116 Na época de composição de Quizumba, Roberto Piva preparava um estudo sobre o imperador romano Nero, aprofundando leituras em latim e italiano moderno. Talvez estes versos tragam essa atmosfera de leituras do poeta, imerso em materiais das mais diversas línguas. Contudo, leitor de James Joyce, tendo inclusive citado seu Fennigans Wake em epígrafe de poema de Coxas (1979), Roberto Piva pode ter suas invenções influenciadas por este outro grande desordeiro das línguas. O fluxo ininterrupto da escrita de Joyce, a forte presença mitológica de diversas culturas e o tom onírico podem facilitar as semelhanças entre Fennigans Wake e Quizumba. Há também a predileção de Roberto Piva pelas expressões do futurismo russo como outra possível influência. Manifestos como A Palavra como Tal (1913) de Vielímir Khliébnikov e Aleksiei Krutchônikh, levam as propostas do futurismo italiano às últimas consequências, com a invenção de novas palavras para exprimir uma nova maneira de sentir o mundo. Mas é principalmente – e inusitadamente – ao observador do título, Dante Alighieri, que Roberto Piva se refere. O verso inicial “Papè satan, papè Satan aleppe” é uma passagem controversa do início do Canto VII do Inferno – uma frase irada dita por Pluto. O significado obscuro da passagem dá pano pra manga. Sem um sentido preciso, em virtude da utilização de palavras ininteligíveis (exceto Satan), especula-se muito. Pode ser uma expressão de raiva e insulto de Pluto utilizando espécie de gíria. Podem ter sido palavras inventadas por Dante a partir de línguas perdidas ou, ainda, uma adaptação da francesa “Paix, paix, Satan, allez, paix!” (algo como “Satã, nos deixe em paz”) – que o poeta florentino teria ouvido em sua visita à Paris. Por fim, Dante pode ter usado uma invocação mágica à Satanás, dita em linguagem hermética. Mas do que pensar a criação de Dante, nos cabe pensar a apropriação que Piva faz da frase. Para o poeta, a expressão significava uma associação que Dante fazia entre o papa e o diabo. O que importa no texto, no entanto, é o quanto a expressão do florentino dispara a experimentação linguística de Piva. Seja como for, não deixa de ser curioso que para compreender a fusão linguística do poema recorramos às influências de um poeta medieval florentino, um poeta modernista irlandês e um movimento de vanguarda russo.

5. Liquidificador poético simultâneo Em poema publicado no ano de 1979, na Revista Singular & Plural, denominado A política poética, Roberto Piva nomeia da seguinte maneira sua forma de criação: “liquidificador poético simultâneo Reverdy + Fourier + Oswald + Soffici + Cravan + personagens do sítio do Picapau Amarelo + Peret + Murilo Mendes + Artaud + Gregório de Matos + Raul Bopp....”219. Liquidificador é uma boa denominação, pois, ao mesmo tempo em que mistura todos os ingredientes num caos indiferenciado, os torna fluídos a escorrer informes. Em outro poema do mesmo período, o poeta fala em “liquidificador antropofágico”220.

219 220

PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, n. 4, 1979, p. 76. PIVA, Roberto. Relatório pra ninguém fingir que esqueceu. Singular & Plural, n. 1, 1978, p. 87.


117 Essa dentição selvagem do poeta, cujo tom arcaico contrasta com o eletrodoméstico contemporâneo, está muito presente em Quizumba – como se vê no título do poema transcrito acima. Na noite de 29 de dezembro de 1977 – na ocasião do lançamento de Antes que eu me esqueça, de Roberto Bicelli, no Teatro Célia Helena –, Roberto Piva lê uma série de poemas registrados em um curta-metragem de Jairo Ferreira. É a primeira vez que o tal liquidificador entra em ação. Nestes poemas inéditos, temos traços importantes de Quizumba. Neles, Visconde de Sabugosa aparece como “bicha rabugenta”, em meio a seu “caso intempestivo” com um “garotão de 14 anos”. Essa sátira envolvendo “personagens do Sítio do Picapau Amarelo”, inusitado ingrediente no liquidificador do poeta, conta ainda com a seguinte passagem: “Pedrinho ficando vidrado num poeta bem depravado que exibia o cacete diante de uma floricultura onde um cão esquimó, uma codorna e um ratão do banhado repartiam geleias rotativas”. O tom licencioso e irreverente de outros trechos, recheados de gírias populares, bem lembra O Santeiro do Mangue, obra em que Oswald de Andrade lança mão de poesia também desbocada e gozoza, humorística e crítica. Por fim, as peripécias de tal “Serelepe-Açu” nas margens do “Kapitalismo Exótico” têm o tom rapsódico de Macunaíma, na ilha mítica de Jorge de Lima – em mais uma liquefação presente nessa recitação de 1977. Essas mesmas características estão presentes em Quizumba, obra de Piva em que sua relação com as diversas faces do modernismo brasileiro fica mais explícita. O nome do livro, Quizumba, figura no início da obra como em um dicionário popular. Ali, Roberto Piva define a expressão (“conflito em que se envolvem numerosas pessoas”) e destaca inúmeros sinônimos, “quase todos eles brasileiros e populares” (tais como “arruaça”, “arranca-rabo”, “banzeiro”, “fuzuê”, etc). Trata-se de estudo sobre as expressões populares como forte legado modernista. Da mesma forma, a epígrafe do livro traz passagens de Jorge de Lima e Guimaraens Rosa, além de outras tantas referências no decorrer do livro. Qual a retomada de Roberto Piva do modernismo brasileiro? O “liquidificador antropofágico” presente em Quizumba é explícito: permite a devoração de diversas épocas e culturas num prato apimentado à moda da casa. Essa afirmação dionisíaca de todas as referências estrangeiras, contudo, não guarda qualquer zelo pela coisa nossa. Em outras palavras, Roberto Piva utiliza procedimento inspirado na antropofagia oswaldiana, mas desprovido de qualquer preocupação modernista com a nacionalidade e as expressões genuinamente brasileiras. Ao contrário, Roberto Piva não finca raízes em qualquer pátria, preferindo o fluxo multinacional sem quaisquer fronteiras. Um similar tratamento da tradição modernista pode ser observado na menção a outro antropófago. No poema Batuque I, Roberto Piva cunha a expressão “Raul ‘be’ Bopp”, como já havia feito, aliás, em relação à obra de Mário de Andrade em Coxas, com o termo “Macunaímapop”. O antropófago é assaltado por rasgos da prosódia da poesia beat norte-americana que, por sua vez, traz a musicalidade do jazz Bebop – que tanto influenciou o modo de vida e a dicção beat. Roberto Piva toma a tradição modernista sempre em sintonia com manifestações artísticas contemporâneas – como a música pop e o Bebop. Macunaíma com o pop aqui, Raul Bopp com o Bebop acolá e o poeta novamente está longe de se deter a um projeto moderno de busca das especificidades brasileiras. Antes, conflagra um momento histórico do país penetrado pela cultura globalizada.


118 6. Anarquia, pederastia e crime Enquanto o projeto moderno pressupunha o desenvolvimento social e econômico conduzido pelo Estado de Direitos a contemplar todos seus cidadãos, Roberto Piva denuncia, já desde a Ode à Fernando Pessoa (1961), a falácia da apologia ao progresso. No lugar de um projeto coletivo de cunho universalista, o poeta aposta em figuras marginais envolvidas em atividades ilegais. “Rimbaud Diadorim Billy the Kid” é verso que, novamente, traz esse encontro transnacional, mas agora com o ingrediente subversivo mais picante. O jagunço sertanejo, o pistoleiro justiceiro e o poeta francês – acrescentado ao bando talvez por suas atividades ilegais ligadas ao tráfico de armas. Em ambos a aura do crime, a força da juventude e o teor erótico. A apologia da criminalidade é tônica constante de Quizumba. Há versos como: “Jorginho Jane Birkin / 16 anos & 3 de crime / tártaros na pradaria / anarquistas de Bonnot esperando a guilhotina”. Ou poemas inteiros dedicados à temática da criminalidade juvenil, como “Eu daria tudo pra não fazer nada”, no qual se narra a trajetória de “Lulu mandacaru”, ambientada no árido nordestino e seu clima de violência. Lulu incorpora diversas expressões: é “adorado como um novo Nero da caatinga”; “serviu como lavador de pratos no restaurante Giovanni sabendo agora ser Buda pela manhã trapezista à tarde & batedor de carteiras ao anoitecer”. A um só tempo imperador, delinquente, trabalhador, angelical e artista... A menção ao bando Bonnot é fundamental. Jules Bonnot (1876-1912) é um lendário anarquista francês conhecido exatamente pela série de ações criminosas na França entre 19111913, ao lado de comparsas que conheceu nos encontros em torno da Revista L’Anarchie. O bando Bonnot desenvolvia assaltos como ações políticas anarquistas, dentro da experiência do crime como modo de vida. Os chamados anarcoilegalistas não submetiam suas ações revolucionárias aos marcos legais e morais da sociedade burguesa – o que os distingue dos anarquistas “legalistas”, como aqueles ligados ao sindicalismo. As peripécias do Bando Bonnot tiveram fim com o conhecido cerco à Bonnot e seu assassinato em 27 de abril de 1912. Um ano depois 03 integrantes da gangue foram guilhotinados. O verso de Roberto Piva explicita sua exaltação do crime como atividade política de revolta contra a sociedade ocidental burguesa. Se a exaltação de um modo de vida guerreiro incorpora ilegalistas, imperadores (como os tártaros de Genguis Kahn) e jovens delinquentes, também traz mafiosos: “Big Jim Colosimo / metranca do Saber”. James “Big Jim” Colosimo (1877-1920) migrou da Itália para os EUA aos 10 anos, intercalando a atividade de engraxate com a de batedor de carteiras. Aos 18 anos trabalhava como varredor de ruas, ao mesmo tempo em que se torna cafetão. Logo, ganhou popularidade nas redes de prostituição e passou a atuar junto a vereadores cobrando pequenas taxas de proteção em negócios ilegais. “Diamond Jim”, como também era conhecido, fundou, em 1910, um café frequentado por ricos e famosos. Ganhou dinheiro ainda com o tráfico de bebidas após a lei seca e foi assassinado em 1920, em circunstâncias obscuras. Roberto Piva associa Colosimo ao “Saber”: a sabedoria da marginalidade e do crime, cujo signo é uma metralhadora. Para completar a lista, Roberto Piva convida a fúria dos piratas, como “Long John Silver”, personagem de “A Ilha do Tesouro” (1883), de Robert Louis Stevenson. Este personagem clássico trouxe muito do imaginário ligado, a partir de então, à pirataria, como o tom brutal de um ser robusto coxeando. Piva também menciona um tal “garoto da pirataria com muitos cometas nos braços”. O imaginário de liberdade dos piratas mediante uma vida criminosa e aventureira integra bem o elenco subversivo de Piva.


119 Por fim, há o jogo entre a intensidade da transgressão e a do sexo. A agressividade desenfreada, em que se perde a cabeça e se ganha o corpo todo em gozo. Há encruzilhada urbana: “cruzamento das avenidas Assassinato & 69”; há veredas sertanejas: “Riobaldo & Diadorim: heróis-escaravelhos / com quantos punhais construiremos o quarteirão da paixão?” Ao abandonar tudo em 1979, ano em que foram escritos os versos de 20 poemas com brócoli, Roberto Piva também desejou: “fazer da anarquia um método & modo de vida”. Assim, o vínculo entre a anarquia, o crime, os garotos delinquentes e o futurismo, presente em Quizumba, será frequente na produção daquele período. Em Eu, Roberto Piva, animal de rapina (1983), por exemplo, o poeta se apresenta como marginal: “duro, drogado, homossexual perseguido por todas as religiões & políticas”, criticando o contexto repressivo: “Onde os corpos dos garotos são a última faísca de religiosidade pagã. Deuses do Subúrbio. Garotos da Febem cujo crime foi lesar uma sociedade criminosa. Já Walter Benjamin sacava que "em Kafka, a beleza aflora apenas nos lugares mais secretos: por exemplo, nos acusados”. A este elogio erótico dos garotos delinquentes se segue uma definição do fazer poético: “Poesia=Rajadas Futuristas rumo à Anarquia Geral”221. Em Queima, supermercado, queima (1985), dedicado aos “garotos da febem”, Roberto Piva delira sobre a situação de jovens criminosos encarcerados, concluindo com os versos: “corações em tumulto estrelas futuristas do / cometa da anarquia”222. Eis os ingredientes picantes da poesia de Roberto Piva neste período: anarquia, crime e futurismo. Eis Quizumba.

7. Historiografia do Inconsciente Se Roberto Piva sugere a noção de “historiografia do inconsciente” para a compreensão de sua poesia, Quizumba é o exemplo mais emblemático. Com esta noção, Walter Benjamin reflete o encontro entre os pensamentos de Freud e Karl Marx, como prática comum entre os frankfurtianos. Amplia-se o entendimento do sujeito histórico, cuja “consciência” ganha profundidade com o universo inconsciente. Daí o apreço de Benjamin, como Marcuse, à prática poética surrealista, que atrela exatamente o fluxo imaginário do inconsciente com um processo revolucionário de extração marxista. Roberto Piva, sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pela Faculdade Farias Brito, conhecia bem o pensamento político dos freudo-marxistas e lera, já no começo da década de 1960, obras de Hebert Marcuse, Norman Brown e Reich. Walter Benjamin recorre ao inconsciente como palco privilegiado de manifestação das contradições da modernidade, em detrimento da consciência, assaltada pela mercadoria e assombrada pelo conformismo. Nos labirintos do inconsciente, do sonho e da memória, Benjamin vê florescer uma temporalidade não linear que embaralha passado e futuro em um agora instantâneo. Daí seu apreço pela historiografia do inconsciente.

221

PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita – revista mensal de literatura, n.33, p. 17, 1983. 222 PIVA, Roberto. Queima supermercado, queima. Em: Cohn, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. p. 75.


120 Como escrita inconsciente e temporalidade reversível, o Vulcão-Memória de Roberto Piva pode ter sido, inclusive, inspirado na noção do filósofo. De fato, a imersão no universo inconsciente se traveste em elementos da memória, cuja agoridade atualiza e recria um passado a luz do instante em que se manifesta. Neste sentido, como ação individual e coletiva, dum tempo do agora e do passado, numa mescla de culturas, a “historiografia do inconsciente” presente em Quizumba permite perceber de forma vívida as tensões da modernidade, naquele início da década de 1980. Contudo, embora os surrealistas ofereçam farto material inconsciente recheado de tensões sociais, Walter Benjamin faz a crítica à imersão no sonho despida de um despertar histórico. A historiografia do inconsciente, ao revelar as contradições da modernidade, dispara um despertar histórico exatamente por esgarçar as tensões daquele contexto histórico. A Quizumba de Roberto Piva poderia nos conduzir da imersão no inconsciente ao despertar crítico?

8. Quizumba “pós-moderna” A crise presente em Quizumba não é somente pessoal e não revela apenas o abandono da esperança do poeta. Quizumba registra o colapso da modernidade e a deriva do mundo. Sociólogo ligado aos movimentos ecológico e pela diversidade sexual, Roberto Piva participa de recitais e passeatas pela redemocratização do país, além da mencionada frequentação de meios revolucionários. A crise que desencadeia Quizumba é aquela do fim das utopias e consolidação do capitalismo com feições neoliberais. A quizumba é global. Os versos velozes de Roberto Piva, atravessando diversas culturas em combinações multinacionais, é um incrível paralelo da rapidez dos fluxos financeiros no mundo globalizado. A ebulição tecnológica de suas imagens futuristas, com laser e satélites, mantém estranha relação com a terceira revolução industrial. A crítica de Roberto Piva a modelação das subjetividades pelos meios de comunicação de massa e a degradação ambiental movida por empresas multinacionais, reflete um contexto de crítica à indústria de massa e início das preocupações ambientalistas. Há semelhanças, inclusive, entre sua aposta no caos e na deriva e a falta de rumo do mundo com o colapso da modernidade – pois a crise dos valores modernos põe fim a qualquer referência firme na qual fincar raízes. Por fim, até sua postura anárquica desmorona os Estados Nacionais de maneira similar aos apologistas do Estado mínimo. Se Quizumba é a obra de Roberto Piva com diálogo mais acentuado com o modernismo brasileiro, é também a obra com traços do que alguns pensadores daquele período denominaram como “pós-modernidade”. A expressão foi consagrada por Jean-François Lyotard, no clássico A condição pósmoderna (1979), para descrever o fim das meta-narrativas modernas e a proliferação de formas fragmentárias de atribuição de sentido à realidade. No período de publicação de Quizumba se multiplicaram estudos críticos sobre o “pósmoderno”, dentre eles o famoso “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, de Fredrick Jameson.


121 Para Jameson, um dos traços básicos da “cultura pós-moderna” é o “pastiche”: criação artística que reúne diversas manifestações do passado, de forma fragmentária. Essa reprodução do passado reflete a relação contemporânea com a temporalidade, qual seja, a ausência de continuidade histórica que amealha o passado em meros “fragmentos de presentes perpétuos”. É esta “amnésia histórica”, para Jameson, “um sintoma alarmante e patológico de uma sociedade que se tornou incapaz de se relacionar com o tempo e a história”223. Ou seja, tratase da vivência de um instante eterno isolado do passado (ou da construção histórica) e desolado em relação ao futuro. Daí ser uma vivência pautada na descontinuidade e fragmentação “que não consegue encadear-se em uma sequência coerente”224. Quizumba é atravessada pelo encontro de realidades distantes espacialmente, mas também temporalmente. O tal “trecho Belém-Brasília da Teogonia”, por exemplo, projeta um espaço geográfico brasileiro no interior da obra clássica grega. Exemplos assim abundam na obra. Tal procedimento de criação é facilmente assimilável ao “pastiche” de Jameson, como reflexo de um mundo em estilhaços a amealhar imagens de diferentes culturas e momentos históricos de forma fragmentada. Uma crítica das expressões da poesia brasileira contemporânea como Iumna Simon225 observa exatamente a frequência do uso de intertextos descontextualizados como marca da poesia contemporânea, especialmente em uma retomada da tradição modernista brasileira. Trata-se da “retradicionalização frívola”, caracterizada por uma retomada da tradição do modernismo literário brasileiro de maneira acrítica, meramente funcional, pairando de forma abstrata e atemporal para um poeta que usa o passado como forma de fugir do próprio presente. Tal expediente, caracterizaria a produção poética brasileira a partir da década de 1980, com acento especial aos poetas influenciados por Haroldo de Campos – que, em 1984, fará aposta no “pluralismo das poéticas possíveis”, de uma poesia pós-utópica da agoridade. Neste mesmo contexto, Quizumba antecipa esta tendência pós-utópica dos concretistas, muito embora sem seu pendor programático de movimento literário. E mais: tanto Piva quanto Haroldo de Campos, com a historiografia do inconsciente ou a agoridade, fazem menções a filosofia histórica de Walter Benjamin. É de se pensar esta retomada da tradição benjaminiana: seria ela “frívola” ou onírica? Representaria ela um despertar histórico?

223

JAMESON, F. Pós-modernidade e sociedade de consumo. (Vinicius Dantas, trad.). Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 12, jul. 1985. p. 21 224 Ibidem, p. 22 225 SIMON, Iumna Maria. Condenados à tradição. Revista Piauí, n. 61, out. 2011, p. 82-86.



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“Animais de Néon”: duas vias da poesia de Roberto Piva na década de 1980

Duas vias se abrem na poesia de Roberto Piva durante a década de 1980. A experiência mágica nas matas do interior de São Paulo, em torno das manifestações arcaicas do êxtase; e a vivência transgressora nas ruas da cidade, em torno dos garotos delinquentes. A primeira via foi publicada como parte de Ciclones (1997); a segunda permanece dispersa. No final dos anos 1970, Roberto Piva anuncia um novo momento de sua vida poética: “eu abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras / combinações”226. Certamente se referia às esperanças de sua atuação política em órgãos ligados à esquerda e ao nascente movimento homossexual. Se o prefácio de 20 poemas com brócolis foi assinado no último dia do ano de 1980, a 4 de janeiro do ano seguinte o poeta já estava fora da cidade de São Paulo, passando uma temporada em Águas de Lindóia – onde escreveria Quizumba (1983). O alto-mar das futuras combinações o levou a experiências mágicas nas matas da Jureia, ao catimbó em meio a garotos dourados na Ilha Comprida, às viagens com cogumelo ou vinho de jurema na Serra da Cantareira ou em Juquitiba, ou aos banquetes pagãos em Jarinu. Em meados da década, Roberto Piva foi iniciado no xamanismo e encontrou no êxtase seus devires selvagens em plantas, animais e astros. Esta verve xamânica da poesia de Roberto Piva reverberou em excelente crítica, como nas visões de José Juva227. Mas o selvagem não estava só na floresta, e o erotismo sagrado pulula também nos corpos de garotos suburbanos. É assim que entre os devires em seu animal xamânico (gavião) há também as derivas nos animais de rapina do centro da cidade. Poemas como Belle leçon aux enfants perdus (1980), Eu Roberto Piva animal de rapina (1983) ou Fragmentos Anárquicos (1987), dentre outros, tematizam exatamente o ambiente urbano e toda sua fauna subversiva. Mas é principalmente na lendária revista argentina Cerdos & Peces que essa via ganha corpo. O poema Animales Miserables (1989) é apresentado como parte de certo livro a ser publicado: “Animais de Néon”. Sabe-se que tal livro não veio a público e sequer temos indícios para confirmar sua existência. A partir dessa sugestão de livro é possível recompor materiais publicados naquela década que tematizavam exatamente o selvático no ambiente urbano. Esses textos têm como eixo a experiência erótica e anárquica com garotos criminosos.

Poesia e pederastia A vida poética de Roberto Piva é atravessada de ponta a ponta pela presença erótica de garotos. Já em sua estreia, na famosa Antologia dos Novíssimos, o poeta aparece em meio a pederastas, mariscando colegiais num bar do Largo do Arouche. Na Ode a Fernando Pessoa (1961) os pederastas surgem como amantes, em meio a insinuações de amor livre com adolescentes. Paranóia está repleta de anjos e são mencionados também os amigos pederastas sem nenhuma piedade. Piazzas (1964) transforma o singelo robô de Isaac Asimov em “Robot 226

PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: ___. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006p. 115. 227 SILVA JUNIOR, José Juvino. Deixe a visão chegar: a poética xamânica de Roberto Piva. 2011. 113 fl. Dissertação (Mestrado em Letras e Teoria da Literatura), Universidade Federal de Pernambuco, Recife.


124 Pederasta”. Em obras como Abra os olhos e diga Ah! (1976) e 20 poemas com brócoli (1981) a experiência sexual homoerótica toma o eixo central, bem como Coxas fabula um clube de orgias composto por garotos da periferia da cidade. Assim se dá até o último poema de Roberto Piva de que temos notícia, apresentado por ele como parte integrante de outro livro que permanece inédito (Poemas Mitraicos e Conexão Exu). É “Gato de Vidro”, cujo início é: “o adolescente cantor de rock / pé de sapo / desmunheca desde cedo / com seu sex appeal de menino pelicano”228. O interesse de Roberto Piva pelos garotos está relacionado à explosão subversiva da juventude. É um poeta que convivia com adolescentes envolvidos com a criminalidade. Durante o período da ditadura militar brasileira, Roberto Piva foi bastante audacioso nas denúncias contra as torturas que os jovens sofriam no Recolhimento Provisório de Menores (RPM), numa associação clara do Estado militar brasileiro com o fascismo. Essa mesma denúncia é feita no ano de 1978, no texto “Ano XV do capitalismo selvagem”. Dentre as barbáries, temos: “Barbárie no 8: garoto travesti de 15 anos, office-boy durante o dia, estuprado & morto a pauladas na Vila Brasilândia por policiais. Pasolini, desperta! O trópico enlouqueceu!”229. A menção ao poeta e cineasta italiano é importante. Pier Paolo Pasolini havia filmado, em 1975, seu Salò o le 120 giornate di Sodoma, num diálogo com a obra homônima do Marquês de Sade. Entretanto, Pasolini ambienta as orgias e crueldades com os jovens na República de Salò em 1944, durante o regime fascista italiano. É uma forma de denunciar quanto a violência totalitária está estreitamente relacionada ao prazer sexual dos algozes que tornam o outro objeto de destruição. Em Coxas: sex fiction & delírios, Roberto Piva utiliza exatamente este procedimento, em diálogo com Pasolini e Marquês de Sade: Apavoramento n. 2 Quinze adolescentes de ambos os sexos foram chicoteados na bunda por batalhões da TFP que os insultavam enquanto trezentos rapazes & moças de seita imperialista Hare Krishna cortavam rodelas de cebola & colavam em seus olhos230.

Em Roberto Piva as feições fascistas se encontram nas crueldades movidas por instituições religiosas. São as autoridades puritanas, exatamente aquelas que abraçam ideais para afastarem as sensações corporais mais pungentes, que se entregam ao prazer das torturas. O poeta também coloca como central a experiência erótica da juventude, mas não procurando reprimi-la. Em seu poema intitulado A política poética, Roberto Piva escreve: “eu sou por uma poesia que fale... dos pivetes maravilhosos que se viram nas avenidas Ipiranga & São João”231. São os garotos que vivem na aura criminosa e são vistos pelo poeta como “maravilhosos”. Se Roberto Piva denuncia a repressão violenta que procura cercear o potencial corporal e erótico dos garotos, que política poética seria esta?

228

GLOBO LIVROS. Entrevista com Roberto Piva 2008. Disponível em: http://www.globolivros.globo.com/downloads/pdf/Pivafala.pdf. Acesso em: 04 nov. 2011. 229 PIVA, Roberto. Ano XV do capitalismo selvagem. Singular & Plural, São Paulo, n. 2, janeiro, 1979, p. 73. 230 PIVA, Roberto. Coxas: sex-fiction & delírios. São Paulo: Feira de Poesia, 1979. 231 PIVA, Roberto. A política poética. Singular & Plural, São Paulo, n. 4, março, 1979, p. 76.


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Belle leçon aux enfants perdus L’homme est donc bien fol... Villon garoto amante este musgo te devora esta sede de omoplatas e cazzos mais doidos que a capoeira dos deuses olhaqui! o tambor gira 2 vezes e lambe as coxas que se vão para a Freguesia do Ó às 18:30 /4/80 vida é isso! apaixonar-se e escolher senão o tempo passa e você não avança Mate a mãe Mate o pai Mate a sombra deles todos232

O poema gira em torno do “garoto amante” associado à sede de sexo. Sede de cazzo (“caralho”), cuja loucura remete à “capoeira dos deuses”. Em poucos versos Roberto Piva compõe toda a cena erótica que se repetiu em sua vida e obra poéticas: centralidade do sexo pederástico ligado às manifestações do sagrado. A partir daí o poema assume um ar de aconselhamento, num tom muito próximo ao coloquial. Roberto Piva menciona o local da periferia da cidade onde o garoto iria (Freguesia do Ó), a hora e data, reforçando o teor de realidade da conversa descrita. O tambor que gira parece se referir ao depósito de balas de um revólver, com suas várias culatras que se movem após cada disparo, para dispor a próxima munição na agulha. Tal tambor giraria duas vezes. Aí a tal “lição” do conselheiro, num tom de ensinamento: viver é se apaixonar – e escolher entre a paixão ou as tradições familiares. Ou seja, vive-se esse amor subversivo ou se obedece aos deveres sociais. Daí a exortação a matar pai e mãe – número que coincide com as vezes que o tambor do revólver giraria. Uma morte que opera também no plano simbólico das sombras, ou seja, livrar-se da influência da educação patriarcal e a interiorização das convenções sociais. O parricídio pode ser estendido, nessa acepção, dos pais à pátria, ao patrão e ao padre – figuras que representam a obrigação à ordem. Aqui todos os elementos que veremos repetidos nessa via da poética de Roberto Piva: garoto, sexo, crime, sagrado. E o poeta é aquele mais velho que corrompe o menor e o aconselha, num diálogo com o poema homônimo do francês François Villon (1431-1463?) – associado, desde Piazzas, aos garotos subversivos.

232

PIVA, Roberto. Belle leçon aux enfants perdus. Em: HUNGRIA, Camila; D’ELIA, Renata. Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 1980/2011. p. 197.


126 Bela lição aos pivetes perdidos233 Belos garotos, vocês perderam a mais Bela rosa de vosso chapéu; Clérigos perto pegam como cola, Se vocês forem a Montpipeau Ou a Rueil, salvem a pele: Pois, ao se distrair nestes dois lugares Arriscando uma segunda jogada, Colin de Cayeux se perdeu Não é um jogo de três moedinhas, Em que vai o corpo, e talvez a alma. Quem perde, nada tem senão remorsos E se não morre tem vergonha e difamação; E quem ganha não tem a mulher A Rainha Dido de Cartago. O homem é então muito louco e infame Se, por tão pouco, arrisca tal ganho Que cada um me escute! Se diz, e com toda verdade, Que o barril se bebe todo, No fogo o inverno, no bosque o verão: Se tens dinheiro, não o guarde, Mas o gaste de qualquer jeito Quem ficará com vossa herança? Mal ganho não traz outro proveito

Villon encarna o poeta bandido. Em suas baladas, encharcadas de gírias e de um tom sarcástico, desfilam afrontas aos padres e às famílias em contraste com toda exaltação da vida subversiva. O poeta foi abandonado pela família após a morte do pai e confiado a um capelão. Em sua juventude, Villon trazia na adaga as vísceras frescas de um padre morto por ele em uma briga de bar. O poeta era um ladrão profissional e possível integrante da tenebrosa confraria de criminosos Coquillard ou Cavalheiros do Punhal. Trata-se de um bando sobre o qual se especula o desenvolvimento de atividades ilegais relacionadas à sodomia, especialmente à prostituição masculina. Villon foi preso após assaltar com sua quadrilha os tesouros de um colégio. Por intervenção de seu protetor, o poeta se safa da condenação de morte e é expulso da cidade, levando uma vida errante, fugindo de problemas com a lei e vadiando sabe-se lá onde. Em sua “lição”, Villon fala num francês medieval, recheado de gírias e ditos populares. Seu tom é de um malandro mais velho que aconselha acólitos – como o de Piva. Villon dá um toque aos meninos perdidos, espécie de trombadinhas da época, que fiquem espertos com os 233

Tradução livre do original: Belle leçon aux enfants perdus. Beaulx enfans, vous perdez la plus / Belle rose de vo chapeau; / Mes clers pres prenans comme glus, / Se vous allez a Montpipeau / Ou a Rueil, gardez la peau: / Car, pour s’esbatre em ces deux lieux, / Cuidant que vaulsist le rappeau / Le perdit Colin de Cayeux. // Ce n’est pas ung jeu de trois mailles, / Ou va corps, et peut estre l’ame. / Qui pert, riens n’y sont repentailles / Qu’on n’en meure a honte et diffame; / Et qui gaigne n’a pas a femme / Dido la royne de Cartage. / L’homme est donc bien fol et infame / Qui, pour si peu, couche tel gage. // Qu’ung chascun encore m’escoute! / On dit, et il est verité, / Que charterie se boit toute, / Au feu l’yver, au bois l’esté: / S’argent avez, il n’este enté, / Mais le despendez tost et viste. / Qui en voyez vous herité? / Jamais mal acquest ne prouffite. VILLON, François. Testamento. (Afonso Felix de Sousa, trad.) Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987. p. 143-4.


127 clérigos. Pede cuidado quando forem surrupiar em Montpipeau e Rueil, locais em que os menores iam praticar seus delitos, pois ali Collin de Cayeux foi preso – grande arrombador e integrante do bando de Villon na ocasião do roubo do colégio. Villon usa sua balada para aconselhar marginais. Na segunda estrofe há uma lição àqueles que arriscam seu corpo e alma, ficando sujeitos à difamação – numa provável referência aos garotos que se prostituíam. Pois não se pode ter ao mesmo tempo o amante e o dinheiro – numa alusão à rainha Dido, fundadora de Cartago, cujo drama era sempre perder o amante e ficar com a riqueza, num sofrimento que a levou ao suicídio. Ou seja, Villon parece dizer para não se preocupar tanto com a riqueza, um ganho desprezível diante das delícias do amor. Aí vem a passagem da epígrafe de Piva: o homem é louco e infame se se deixar pagar por tão pouco (por dinheiro) diante da grandeza do amor. A dicção de conselho, com exclamativa e tudo, é similar à de Piva. O recado é parecido. Diz o francês: entregue-se à vida, gaste tudo, beba tudo, não deixe nada para depois. Diz Piva: apaixone-se e entregue-se, mate a tradição, a honra, a responsabilidade. Nas figuras da família ou do dinheiro, ambos poetas sugerem a vida na maré alta do amor, em detrimento do status social. Eis a bela lição aos garotos. Se a presença de Villon deixa claro o ímpeto criminoso de Roberto Piva, a lição ao “garoto amante” explicita uma estreita relação entre educação e sexo. Nesta época, o poeta era professor do ensino médio, em escolas públicas e particulares. Fora expulso de algumas delas por um comportamento pouco convencional: convidava seus alunos para visitarem seu apartamento e mantinha com eles relações das mais íntimas. Se como amante tomava ares de professor, como professor se tornava amante. Como entre os adolescentes de seu sex fiction Coxas (1979), experimentava relações sexuais entre homens como forma de vivenciar o “Eros Grego”. Que erótica é esta? Em seu “Eros adolescente: a pederastia na Grécia Antiga”, Félix Buffière (1980) oferece um panorama da importância das relações entre homens adultos e adolescentes na educação grega. Tais relações eram símbolo do amor mais verdadeiro que rendia culto à coragem, à beleza e ao saber234. A homossexualidade, no entanto, não era aceita com menos preconceito que nos dias atuais, na opinião do autor, reservando o prestígio à pederastia pela formação cultural dos jovens. Para Mircea Eliade, referindo-se às diversas manifestações religiosas da Grécia arcaica, as “relações homossexuais entre instrutores e noviços” eram práticas disseminadas não apenas entre os gregos, mas em “numerosas sociedades primitivas”235. Assim, essas relações pederásticas deitam raízes bem profundas na história ocidental, seja no âmbito da iniciação mística ou da educação do cidadão da polis. É interessante notar que a pederastia entre os gregos coincide com a centralidade da poesia na educação. É mais interessante ainda pensar que a mesma moral que dissociou a relação entre mestre e aprendiz do teor erótico, também apartou corpo e alma, e a educação da poesia. Na relação entre Sócrates e Platão estão os germes de uma filosofia moral que expulsa o corpo da educação, o delírio do conhecimento e o poeta da república. É essa ordenação moral do mundo que se prolifera com o cristianismo e reserva ao poeta o lugar do desterro, ao sexo o repúdio e à pederastia o crime. É assim que um poeta criminoso, delirante 234

BUFFIÈRE, Félix. Eros adolescent: La pédérastie dans La Grèce antique. Paris: Les Belles Lettres, 1980. 703 p. 235 ELIADE, Mircea. Iniciation, rites, sociétés secretes: naissances mystiques. Paris: Gallimard, 1959. p. 238.


128 e pederasta como Roberto Piva enfrenta contradições milenares e repressões morais bastante arraigadas na cultura ocidental. A convite da Editora Brasiliense, que havia publicado alguns de seus poemas homoeróticos na revista Caderneta de Poesia (1978), Roberto Piva organiza materiais escritos entre 1974 até aquele ano de 1982. Era Corações de Hot-Dog, livro de inéditos que começa agora a ser estudado236. Para ira do poeta, a obra foi recusada e o convite declinado, possivelmente pelo forte preconceito em relação a seu conteúdo erótico. Um dos poemas que compunham o livro foi publicado em 1985, na revista Ímã:

Queima, supermercado, queima para os garotos da febem eles estavam estirados na grama recobertos de samambaias eles estavam lá no meio do tambor do dia com exus adolescentes cantando em suas orelhas & sexos em semiereção confundidos com caules ternos eles se abriam ao sol com olhos semicerrados & sangue acorrentado eles repartiam as facas da luz lascas de tesão fios de náilon do orvalho & ninhos de andorinha corações em tumulto estrelas futuristas do cometa da anarquia237

Garotos da Febem estirados na grama num devir vegetal, com seus sexos confundidos com os caules ou se abrindo ao sol como flores. Um banho de sol com “exus adolescentes”, esse orixá da traquinagem e também da crueldade, representado sempre com o falo ereto. A vegetação que cresce ao redor e cobre o corpo dá uma sensação de tempo fluindo, comum nos garotos encarcerados; um tempo natural que flui enquanto estamos parados. Uma sensação de morte, reforçada pela “semiereção”, os olhos “semicerrados” e o “sangue acorrentado”. É uma vida pela metade como num banho de sol no pátio da prisão, repartindo a pouca luz que entra e o pouco de tesão que surge. O garoto, o crime, o sexo, o sagrado – eis aqui novamente esses elementos. Mas o poema inclui uma fusão dos jovens com a vegetação, num contraste entre um fluxo natural e outro fluxo semi-morto na prisão. Essas fusões dos garotos com vegetais, animais e manifestações religiosas arcaicas são importantes na poesia de Piva – como veremos. Mas o criminoso, aqui, é também associado, no tumulto do coração, ao futurismo e à anarquia. Que ligação seria esta? No poema “Alguma coisa em Saturno que não conheço”, de Quizumba, escrito nesta mesma época, há uma ligação similar: “Filippo Tommaso Marinetti era uma rã no aeroplano / todo alumínio de Zung Tumb / minha morte gula do céu azul / meu amor buldogue de pólvora [...] Jorginho Jane Birkin / 16 anos & 3 de crime / tártaros na pradaria / anarquistas de Bonnot 236 Refiro-me ao doutorado em andamento de Ibriela Bianca Berlanda. 237

PIVA, Roberto. Queima supermercado, queima. Em: Cohn, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. p. 75.


129 esperando a guilhotina [...] cabelos cacheados do Exu Erva-Doce”238. A referência ao aeroplano remete ao famoso Manifesto Técnico da Literatura Futurista que sugere o encontro de imagens contrastantes, dispostas em “Desordem”. É a feição anárquica, como o furor futurista de destruição das tradições linguísticas. Mas Roberto Piva, leitor de Mafarka, o futurista239, provavelmente associava os garotos da Febem a este personagem ícone dos futuristas. Mafarka e sua virilidade guerreira que deixa atrás de si o rastro de crimes e estupros; que atrela essa virilidade a uma insaciável sede sexual, ostentando seu priapismo com um falo de mais de dez metros de comprimento; que entre uma batalha e outra faz uma parada para amar dois jovens, Habibi e Luba, num homoerotismo levado até o extremo da misoginia. Exatamente o gosto pelo atroz e grotesco em termos de sexualidade faria o livro de Marinnetti enfrentar um processo judicial sob acusação de atentado ao pudor. As estrelas futuristas de Roberto Piva certamente têm esse ímpeto guerreiro, criminoso e sexual. Já a relação entre o crime e a anarquia remontam à juventude de Roberto Piva e a formação do Movimento Niilista, junto a Jorge Mautner e João Quartim de Moraes, em 1958. Como leitor de Mikhail Bakunin, Piva radicaliza suas ideias sobre a “revolução violenta”, que defendiam a legitimidade de atos violentos diante da tirania dos agentes repressores. Este mesmo Bakunin serviu de referência ao movimento niilista russo, inspirando Fiódor Dostoiévski em seu personagem Nicolai Stavroguin, de Os demônios: niilista brutal e perverso sexual que defendia o crime como algo necessário e até prazeroso. O mesmo Stravroguin surge ao lado de Mafarka no rol dos “heróis modernos” elencados por Piva em seu Fragmentos Anárquicos. A associação do futurismo e dos garotos criminosos ao bando de Bonnot é inequívoca. Jules Bonnot (1876-1912) é um lendário anarquista francês conhecido exatamente pela série de ações criminosas na França entre 1911-1913, ao lado de comparsas que conheceu nos encontros em torno da revista L’Anarchie. O bando Bonnot desenvolvia assaltos como ações políticas anarquistas, dentro da experiência do crime como modo de vida. Os chamados anarcoilegalistas não submetiam suas ações revolucionárias aos marcos legais e morais da sociedade burguesa – diferente dos anarquistas “legalistas”, como aqueles ligados ao sindicalismo. As peripécias do bando tiveram fim com o conhecido cerco à Bonnot e seu assassinato em 27 de abril de 1912. Um ano depois, três integrantes da gangue foram guilhotinados. Como esses criminosos que denunciavam com ações as repressões do estado burguês, os garotos da Febem assumem ares revolucionários. Mas a aposta de Roberto Piva neste potencial criativo não se restringe ao campo político. Em seu Manifesto em defesa da poesia & do delírio, o poeta reivindica, “em nome da saúde mental das novas gerações”: “2 - Distribuir obras dos poetas brasileiros entre os garotos (as) da Febem, únicos (as) capazes de transformar a violência & angústia de suas almas em música das esferas”240. Enquanto a delinquência juvenil é vista como perigo social e o jovem como alguém que se deve trancafiar para castigar e normatizar nas casas de correção, Roberto Piva enfatiza quanto exatamente a angústia e a violência poderiam ser canalizadas para uma criação poética de qualidade.

238

PIVA, Roberto. Quizumba. Em:____. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1983/2006, p. 123. 239 MARINETTI, Filippo Tommaso. Mafarka, le futuriste - roman africain. Paris: E. Sansot & cie,1909. 306p. 240 PIVA, Roberto. Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio. Boletim Arte e Pensamento Ecológico, São Paulo, n. 18, abril 1983, p. 06.


130 Aqui se fecha um ciclo: o poeta criminoso quer tornar o criminoso um poeta. E houve um criminoso que se tornou grande poeta, e influenciará bastante as produções de Roberto Piva neste período.

Eu Roberto Piva Animal de Rapina — Je parle dans le vide e dans le noir Jean Genet Eu vivo num rio de imagens, sou o cordeiro do Raio Laser da Poesia. Minha vida de duro, drogado, homossexual perseguido por todas as religiões políticas & maior parte da inteligentzia brasileira, minhas paixões desordenadas fazem de mim um íntimo da Poesia. Se a poesia é o pão dos desterrados do mundo burguês-proletário, ela é meu alimento cotidiano. Vivemos numa Idade-Nédia sem fogueiras. Medievo da escrotidão, não da escuridão. Onde os corpos dos garotos são a última faísca de religiosidade pagã. Deuses do Subúrbio. Garotos da Febem cujo crime foi lesar uma sociedade criminosa. Já Walter Benjamin sacava que "em Kafka, a beleza aflora apenas nos lugares mais secretos: por exemplo, nos acusados." Só lido com a beleza alucinada dos marginais. Trombadinhas com dedos de neon & veludo. Coxas nas tardes de vinho & rosas. Bocas enlouquecidas. Garotos com olhos de Romy Schneider boiando ao nível do gin. Preso muitas vezes apenas por estar vivo, conheci nas galeras da triagem o mistério rebelde destes anos da periferia. Se os bandidos, diz Jean Genet, os cruéis, representam a força contra a qual vocês lutam, nós queremos ser esta força do mal. Nós seremos esta matéria que resiste e sem a qual não existiriam artistas. A poesia, como em Lou Reed, é o alimento lisérgico dos garotos criminosos. Poesia=Rajadas Futuristas rumo à Anarquia Geral [...] Quero o cometa da Anarquia passando rápido em direção às pradarias sexuais241.

Publicado na edição de número 33 de 1983, da Escrita – Revista Mensal de Literatura, o texto apresenta o poeta como desterrado, duro, drogado, homossexual, perseguido e presidiário. É desse caldo criminoso que surge sua intimidade com a poesia – e também com os corpos dos garotos. Eles surgem novamente como divindades, atrelados às manifestações pagãs; como dotados de uma “beleza alucinada”; ou como devoradores da poesia lisérgica. Poesia esta que novamente traz a dobradinha futurismo e anarquia. Mas nos deteremos em outras influências. A presença do criminoso e poeta francês Jean Genet é fundamental. Ele também cheio de tesão pelos criminosos e pelo crime. Ele também fazendo elogio à crueldade, ao mal e ao potencial viril do crime contra a moral cotidiana. Ele também um criminoso inveterado que conviveu com toda sorte de bandidos e sofreu toda sorte de torturas nas prisões. A começar pela epígrafe, o texto de Piva estabelece diálogo com L’Enfant criminal. A estória do texto é interessante. Jean Genet foi convidado a escrevê-lo pelo programa “Carta 241

PIVA, Roberto. Eu Roberto Piva animal de rapina. Escrita – revista mensal de literatura, São Paulo, n. 33, 1983, p. 17.


131 Branca”, da Rádiodifusão francesa, que se vangloriava por deixar os interlocutores falarem sobre tudo, sem censura. O poeta redigiu o material como “ladrão” e “pederasta”, endereçando-o a seus amigos da bandidagem, com o intuito de fazê-los entender pela sociedade. Como se não bastasse, propõe ao programa realizar questões e debates com um juiz, um diretor de penitenciária e um psiquiatra. O texto é recusado. As autoridades sequer respondem ao convite. A carta não era tão branca assim... e o texto é negro. Em meio a recordações biográficas de suas passagens por casas de correção, Genet relata suas crueldades e torturas. O poeta enfatiza quanto a experiência terrível é buscada pelos jovens delinquentes como símbolo de sua força, de sua virilidade, de seu heroísmo. Nas casas de correção se alimenta o furor dos jovens pelo Mal: a audácia da insurreição contra todas as convenções sociais e a busca de uma vida cheia de perigos e aventuras. Há lirismo no crime, há heroísmo no crime. O crime é poético. Genet ressalta como a sociedade francesa exalta na literatura e nas artes esse ar glorioso do crime. Toda arte fermenta na beleza romântica do transgressor, do revoltado, daquele que frui na torrente das emoções. Nas palavras do poeta pederasta: “O talento de vossos poetas tem glorificado o criminal que na vida vocês detestam”242. Admira-se o criminoso na arte e o rejeita na carne. Mas o dramaturgo é claro: “Estou do lado do crime” e ao lado da poética do ato criminoso em sua luta romântica contra toda força moral da sociedade. E conclui de forma provocativa: “Eu não tenho ilusões. Eu falo no vazio e no escuro, contudo, mesmo que apenas para mim, quero ainda insultar os insultadores”243. Trazendo esta frase para sua epígrafe, Roberto Piva fala também não apenas sobre o criminoso, mas como um criminoso – ao menos como cúmplice. O poeta brasileiro quer “ser esta força do Mal” associada ao artista – como em Genet. Assim, em torno do ato criminoso dos garotos e do artista gira toda uma poética. Uma poética feita por criminoso e endereçada aos garotos criminosos. Uma poesia como força do mal que constrói novas formas de vida a partir da anarquia geral e da desordem dos valores morais convencionais. Roberto Piva identifica-se como “animal de rapina” num teor selvagem e predatório, mas também relacionado ao roubo como forma de vida. Essa associação do criminoso às paixões desordenadas e à forma de animais também é elemento importante. No mais, a produção poética de Piva durante esse período abusa do uso da noção de “animal de rapina”, numa apropriação bem particular dessa expressão importante na filosofia de Friedrich Nietzsche. O criminoso como animal de rapina coloca em primeiro plano a imagem dos garotos com elementos selvagens, em devires animais que os fazem fluir os instintos mais “naturais” – distintos dos deveres dos homens civilizados. A poesia xamânica de Roberto Piva descreve garotos incorporando jaguar ou divindades pagãs, num erotismo epifânico, muito similar a esta sua criação urbana. Fragmentos Anárquicos – publicado na edição de número 63, de abril/junho de 1987 da revista “Artes:” – traz o cruzamento das ideias de Roberto Piva sobre a anarquia e a ecologia, além de aprofundar a questão da pederastia em poetas latinos como Catulo, Virgílio e Horácio. Vejamos um dos fragmentos:

242

GENET, Jean. L’enfant criminel. Em: ___. Ouvres Complètes, V. Paris: Gallimard, 1949/1979. p. 390. Ibidem, p. 393. Do original: “Je n’ai guère d’illusions. Je parle dans le vide et dans le noir, cependant fût-ce pour moi seul, je veux encore insulter les insulteurs”. 243


132 9. Roberto Bicelli quer ver frango ciscando na Avenida São João. Flavinho (16 anos) quer rolo de sucuri no tanque da Sé. Eu quero o Jardim Europa invadido por onças. Tribos de garotos nus dançando em torno da fogueira-Tatuapé. O Brasil precisa de bacantes244.

Desde o “Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio”, Roberto Piva enfatiza a imagem da onça no ambiente urbano. O manifesto, aliás, é material preciosíssimo para se pensar a ecologia do poeta, pois amplia as intervenções ambientais para a cidade, entendendo que especialmente ali a relação dos seres vivos com seu meio ambiente deteriora todo impulso vital. A ideia da onça no Jardim Europa retoma a leitura de Roberto Piva do ecologista catalão Ramón Margalef i López, especialmente quando aponta que todo ecossistema está deteriorado na ausência dos grandes predadores. A onça e os animais de rapina representariam essa potência temida e afastada pela moral cristã. Como em Nietzsche, a proliferação do animal domesticado (o civilizado) faz a vida perder em força. Assim, podem-se associar os garotos criminosos e a própria poesia de Piva a esta retomada de uma vontade de potência para além do bem e do mal. Está por ser escrita uma afinidade dessas ideias de Piva sobre o selvagem com alguns textos do amigo e filósofo Vicente Ferreira da Silva – com o qual o poeta teve importante formação no início dos anos 60. Pois o filósofo aponta, já em 1954, que o ímpeto de retorno às origens naturais do homem era indício do ocaso do humanismo: é a vontade do selvagem em nós, de tudo aquilo que não é feito pelo homem – diferente da visão idílica da natureza como mera contemplação de plantas e animais. Não há como não relacionar essa experiência do selvático, com forte teor corporal e pagão, com as ideias de Piva – especialmente se observarmos que o filósofo publica no mesmo número da revista Diálogo, artigo sobre a religiosidade dos povos arcaicos em extrema sintonia com o xamanismo de Roberto Piva. São exatamente os garotos nesse devir selvagem que surgem na periferia (Tatuapé) em tribo, dançando nus em torno da fogueira. É como outra manifestação desse selvático da onça, mas agora numa espécie de ritual tribal dos garotos. E os garotos são associados às “bacantes”, as servidoras de Dionísio – este deus selvagem e andrógino, com viris chifres de bode, coberto de cachos de uva e peles de animais. Deus da fertilidade, do vinho, da orgia. Este Deus que em As Bacas, de Eurípedes, retira as mulheres de suas obrigações rotineiras e as incita à orgia nas matas vizinhas. Descabeladas, amamentando lobos e fazendo sair leite da terra num simples roçar dos dedos, estas bacantes viviam uma reconciliação com as forças da natureza – de acordo com Nietzsche245. Porém, Penteu, o governante da cidade, fica furioso com este deus que cria a desordem e decide ir até as montanhas para sondar o que acontece. Assim, o déspota é vítima de sua própria mãe: tomada pela loucura dionisíaca, dilacera o corpo do filho e arremessa seus pedaços ao vento. É essa fúria orgiástica e criminosa, daquele que incorpora um deus pagão em seu delírio, que Roberto Piva quer ver. É essa fúria que encontra nos garotos. Neste mesmo ano de 1986, Roberto Piva é entrevistado por Floriano Martins, num episódio curioso. Piva perdeu as perguntas e, como não havia cópia, retomou-as de memória 244

PIVA, Roberto. Fragmentos Anárquicos. Revista Artes:, São Paulo, Ano XXII, n. 63, abril-junho 1987, p. 08. 245 NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (J. Guinsburg, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1872/1992. 179 p.


133 escrevendo as respostas em seguida. Floriano Martins considerou uma “auto-entrevista”246. O material criado nesta ocasião serviu como base do manifesto: “O erotismo dará o golpe de estado”247, publicado na revista argentina Cerdos & Peces, que tinha interesse especial na criação de Piva: Não creio no anarquismo, creio na anarquia. Desordem total, sabotagem em regra, insurreição absoluta. Como disse Léo Ferré, a anarquia é a crítica desesperada, o desespero da solidão. Creio também, como Nietzsche, na reaparição gradual do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo. Apesar da caretice generalizada desta década de 1980, creio na grande explosão de Dionísio, deus do vinho, deus das bacanais. Aqui em São Paulo, a polícia fechou uma sauna gay de garotos do subúrbio, e chamou os pais dos adolescentes para humilhá-los e depois libertá-los. Foi só a sauna reabrir e ali estavam outra vez os garotos desafiando a autoridade policial, paternal e moral. Nada pode controlar o desejo. William Blake dizia que um desejo que se deixa reprimir não é um desejo suficientemente forte. No Brasil, neste momento, vemos a Igreja Católica estender suas teias venenosas de moral castradora sobre a nação. Mas Cristo é Dionísio de ressaca. Debaixo dessa cruz dormem com um olho aberto todos os deuses pagãos. O golpe de estado erótico há de se suceder. O golpe darão os poetas, que são os que exploram o verdadeiro ventre do pântano. Podem ser também os outsiders, os loucos, os adolescentes rebeldes, os bruxos, os amantes fora da lei, os anárquicos (não os anarquistas), os drogados, os desordenados, os visionários.

É um texto recheado de citações que abrem diversas chaves de reflexão: a vivência da anarquia segundo o poeta e músico Léo Ferré; a noção de reaparecimento do espírito dionisíaco em Nietzsche; e a identificação do poeta com o pássaro e o bárbaro dos poemas de Aime Cesaire248. O manifesto também prossegue com uma crítica à constituição da sociedade policial, articulada às noções de Pasolini sobre a universalização dos valores da classe média. Roberto Piva também desenvolve importante noção sobre uma nova feição do Estado, inclusive aquele defendido pela esquerda e por parte do movimento ecológico, com uma atuação que passa da repressão escancarada para uma sutil normalização da subjetividade. Fiquemos com o ponto nevrálgico do texto: o golpe de estado via erotismo, erotismo levado a cabo pela escória. É um mote que o poeta desenvolve desde o final da década de 1970, tendo como referências o profeta francês Charles Fourier (1772-1837) e autores que fazem uma interface do marxismo com a psicanálise – especialmente W. Reich e H. Marcuse. Roberto Piva acredita que a captura do corpo numa sociedade burguesa não deve se restringir às questões da economia-política ou à alienação do trabalho. Para Piva é o sexo o motor da história. Logo, abre-se o flanco para se criticar o prazer tornado utilidade social: a atividade criativa cerceada pelo trabalho assalariado; o prazer erótico engessado na família

246

MARTINS, Floriano. Roberto Piva no miolo do furacão. Agulha revista de cultura. n. 53, 2006. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag53piva.htm. Acesso em: 17 fev. 2009. 247 PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987a/2009. pp. 82-87. 248 Os versos surgiram na entrevista de Floriano Martins: “Salut oiseaux qui ouvrez à coups de bec le ventre vrai du marais et la poitrine de chef du couchant” (Salve pássaros que abrem a bicadas o verdadeiro ventre do pântano e o peito do chefe do poente) – do poema A hurler; e o bárbaro que “joga aos cães a carne cabeluda de vossos peitos” (jeter aux chiens la chair velue de vos poitrines) – do poema Barbare. CÉSAIRE, Aimé. Soleil cou coupe. In: Aimé Césaire, the Collected Poetry. University California Press, 1983. p. 222 e 212.


134 patriarcal; a expressão política subjugada pelo Estado. Essa maneira de entender a sociedade civilizada a partir da moral que reprime a paixão é tributária de Charles Fourier, que forma linda imagem em poema de Roberto Piva: “Fourier deveria andar de boca em boca em forma de beijo postal”249. De maneira geral, Fourier coloca a “Paixão” como ponto seminal não apenas da vida humana, mas de todo o movimento universal que abrange a vida orgânica e material250. Daí sua ideia de que os sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas têm por base tomar as Paixões como sinônimo de um mal a ser extirpado, adquirindo uma feição extremamente “repressiva” – como se vê nas instituições contratuais do trabalho e da família. Assim, o cerne da “Nova Ordem” proposta por Fourier é dar livre curso às paixões em vez de reprimi-las, entendendo que o desenvolvimento das paixões colocaria novamente o homem em harmonia com as forças do universo. Na prática de seu Falastério, isso significa a gradual extinção da família e do trabalho por corporações pautadas no desenvolvimento das paixões e prazeres, com acento especial à “liberdade amorosa” de homens e mulheres. Ou seja, Fourier já colocava a “paixão” ou o “desejo” no centro de uma transformação social. É bem similar à ideia de Piva sobre o golpe de estado via experiência sexual. Em outro poema do mesmo período, denominado Mortikultura, o poeta traz a seguinte nota: P.S . Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H. Marcuse) neste sentido os homossexuais espanhóis têm razão “El coito anal derruba el capital”. Senão derruba não deixa de ser uma sugestão para ajudar a derrubada251.

O lema de que o “coito anal derruba o capital” era corrente na Libelu (Liberdade e Luta), movimento trotskista ligado à Organização Socialista Internacionalista, cujo espaço cultural era frequentado por Roberto Piva e Claudio Willer no final dos anos 70. Roberto Piva articula esta ideia com o mencionado livro de Hebert Marcuse, no qual o autor parte exatamente da civilização como empreitada de repressão dos instintos sexuais – muito similar a Fourier. Se também quer chegar a uma sociedade sem repressão, Marcuse parte do pressuposto otimista daquela década de 1950 de que o grau de desenvolvimento das forças produtivas com sua automação liberaria o trabalhador a investir seus instintos vitais em atividades distintas da produtividade do trabalho alienado. Daí a posta do filósofo em atividades nas quais o princípio da produtividade é substituído pelo prazer. Marcuse enfatiza sobretudo o prazer, o jogo, a imaginação, num devir sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da esfera estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao contrário do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse busca respaldo mítico no mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo modo de vida. Aí vem a parte que mais nos interessa: “A tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Tal 249

PIVA, Roberto. As desgraças do Moneyteísmo. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, São Paulo, n. 2, maio/junho, 1978, p. 31. 250 FOURIER, Charles. Ouevres Complètes, Tomo I, Théorie des Quatre Mouvements. Paris: Librairie Sociétaire, 1846. 336 p. 251 PIVA, Roberto. Mortikultura. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, São Paulo, n. 22, 1978, p. 36.


135 como Narciso, protesta contra a ordem repressiva da sexualidade procriadora”252. Ou seja, na homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família e sua restrição à procriação. O sexo produtivo é a captura da atividade sexual pelo princípio de utilidade social, ou seja, o prazer restrito ao lazer como parceiro da canalização das energias sexuais para o trabalho. Marcuse considera a exploração dos prazeres do corpo para além da procriação como uma “ressexualização do corpo” ou “numa ressurgência da sexualidade polimórfica pré-genital e num declínio da supremacia genital. Todo o corpo se converteria em objeto de catexe, uma coisa a ser desfrutada um instrumento de prazer. Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e patriarcal”253. Em outras palavras, a experiência de prazer do corpo, para além da ditadura genital e matrimonial, é parte de uma liberação dos instintos vitais que Marcuse considera, em última instância, uma “transformação social” mais profunda. Não precisa dizer que, nos anos de 1950, essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva sexual e erótica. É “neste sentido”, como ressalta Roberto Piva, que o “coito anal derruba o capital”. É este mesmo conjunto de ideias que aparece no golpe de estado erótico. Porém, aí Roberto Piva faz uma importante inversão: o golpe de estado é dado pela escória. Como bem lembra Claudio Willer (2005), o poeta torna o lúmpen o agente revolucionário. No pensamento de Karl Marx, o lumpemproletariado ora surge como “peso morto do exército industrial de reserva” por sua desprezível posição como força de trabalho, ora como a escória degradada da sociedade que se prestava a toda sorte de manipulações políticas quando recrutada. É famosa a descrição de Marx sobre a corja de vagabundos, sob a pecha da tal “massa indefinida e desintegrada... que os franceses chama la bohème”254. É a famosa boemia. Retomando o texto de Piva, são exatamente figuras da escória que dariam o golpe de estado erótico. A transformação social viria não pela inserção no mundo do trabalho, mas exatamente por estarem fora dele e experimentarem novos prazeres e novas formas de vida. Dentre eles estão os “adolescentes rebeldes”, como aqueles do início do texto. Os garotos suburbanos que se prostituíam em saunas parecem materializar a “insubordinação absoluta” da anarquia e a orgia do espírito dionisíaco. São heróis que desafiam a “autoridade policial, paternal e moral”, vinculados ao desejo forte do profeta Willian Blake: “2. Energia é a única vida, e provém do Corpo [...] 3. Energia é Deleite Eterno. Quem refreia o desejo assim o faz porque o seu é fraco o suficiente para ser refreado; e o refreador, ou razão, usurpa-lhe o lugar & governa o inapetente”255. É essa vida potente que vibra nos corpos dos garotos que dá ensejo à formulação do golpe de estado erótico. E os garotos surgem no final do texto, prefigurando o futuro:

252

MARCUSE, Hebert. Eros e a civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 5. ed. (Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1955/1972. p. 155. 253 Ibidem, p. 177. 254 MARX, Karl. O 18 brumário e cartas a Kugelmann. (Leandro Konder, trad.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1885/1969. p. 70. 255 BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno; O livro de Thel. (José Antônio Arantes, trad.) 4ªed. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 18.


136 Talvez o futuro seja garotos suburbanos com corpos pintados e máscaras de folhas, esparramando um saudável terror com suas garras de leopardo envenenadas. Entrarão depois em cena os acadêmicos da morte, imitações supersônicas e agentes biológicos da inanição. Tudo debaixo de um sol luminoso de néon. E ao final: uma procissão saturniana roxa fará sua aparição no cortejo dos entediados com nervos feitos de imagens televisivas e bactérias infecciosas256.

É um devir selvagem dos garotos espalhando o terror, similar à tal onça no Jardim Europa. A imagem dos garotos suburbanos encarna as experiências de Roberto Piva em relação à anarquia, à ecologia, às manifestações arcaicas do êxtase e ao erotismo. São garotos-animais que caminham sob um “sol luminoso de néon”. Na edição número 19 da revista argentina Cerdos & Peces, publicada em outubro de 1989, Roberto Piva é apresentado como “el mayor poeta brasileño de la actualidad”. É de um livro de Piva, intitulado “Animales de Néon” que se retirou o seguinte poema: Animales Miserables Ni el cerdo, ni la rata, ni la cucaracha, belos hermanos hambrientos de hambre, desesperados de sentido, babeados de miedo. No, miserables son las hormigas que arrastran el futuro sobre sus hombros, y las abejas atascadas em uma pesadilla social y todo lo que ordeña, domina, utiliza y, por sobre todos, el hombre enorme que sostiene el mundo sobre sus hombros, sonriendo com dignidade, com su cara de idiota que sólo la nada observa; y el pequeno que va amontonando piedritos sobre la estúpida mole de miles de siglos y que sube y baja los pisos contando el mismo aburrido chiste hace miles de años. Miserables todos estos rieles y escaleras y calles y ascensores y barcos que matan a millones de hombres sin que nunca nadie llegue a ninguna parte y ni siquiera pueda volver. Miserables estos ojos que ya no vem más que lo que se les ordena, estas manos que tocan lo que ya saben. Pero no los muchachos que arrastran sus navajas por las calles, ni las muchachas que salen a vender bien caro su sexo, ni nadie que ando por ahi sin saber por qué diablos anda257.

Os devires selvagens começam pelo próprio poeta como “animal de rapina” para depois tornar os garotos selvagens com garras de leopardo. Agora, é toda a rede social tomada por figuras animais. O trabalho e a obediência das formigas e das abelhas é relacionado ao trabalho do homem. Tanto aqueles que acumulam com monotonia suas pequenas mentiras por séculos, como aqueles messiânicos que pretendem carregar o futuro da humanidade nos ombros. Alguma semelhança com o trabalhador assalariado e o revolucionário socialista? Esses homens miseráveis assemelham-se a máquinas que matam por fazerem aquilo que estava programado por ordem de outrem, sem ver além do ordenado, sem experimentar nada além do já sabido. A esses animais miseráveis, Roberto Piva contrapõe os garotos e garotas ligados ao crime ou à prostituição, que se arrastam pelas ruas. Seriam esses os Animais de Néon? Aqueles

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PIVA, Roberto. O erotismo dará o golpe de estado. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. p. 87. 257 PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, Buenos Aires, n. 19, outubro de 1989, p. 27.


137 mesmos garotos selvagens com garras de leopardo ao sol de néon? Aqueles tribais dançando como bacantes em torno da fogueira? Como imagem irradiadora da sexualidade, criminalidade, anarquia e sagrado, estes animais de néon estariam no extremo opostos desses animais miseráveis, demasiado domesticados, demasiado civilizados. São animais de rapina, predadores que avançam com sua vontade de potência sem qualquer pudor nas matas, ou com suas navalhas na rapina citadina. Sob o signo do néon: à luz dos luminosos das ruas enquanto caminham incautos na madrugada; mais iluminados também pela aura pagã que os envolve. Talvez néon também faça alusão àqueles garotos do futuro, que forjam novas formas de vida pela via subversiva.



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Poesia e êxtase em Roberto Piva: eterno retorno da experiência mítica originária258

Desde o início de sua criação poética, o paulistano Roberto Piva identifica poesia e vida. Ora suas leituras se transformam em vivências concretas, como forma de verter em vida os versos: realizar os poemas, ora os próprios poetas irrompem nas cenas urbanas como presença física no imaginário de Piva – pululando Mário de Andrade na solidão de um comboio de maconha ou encontrando Lorca num hospital da Lapa. A encarnação da poesia leva Piva a afirmar sua “indiferenciação” com os vis personagens de Dante: “Eu talvez não seja nada mais do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em completa desordem”259. Possessão da potência poética? Encarnação da letra na vida? Piva parafraseia Nietzsche em seu grande poema filosófico, Zaratustra, quando propunha tornar sangue a leitura. Ou seja, realizar o poema, tornar presença a representação, estar possesso das figuras literárias ou verter no sangue os versos é uma forma de vivenciar a poesia. Mas a relação entre poesia e vida não para por aí. Além da poesia tornada vida há a vida tornada poesia. É assim que Piva atrela toda sua criação poética a experiências vividas. É poesia inscrita primeiro no corpo e depois escrita em versos. Nesta perspectiva, Piva acredita no fim da poesia como literatura, experimentando-a como devir da vida. E desde suas primeiras publicações, no início dos anos 1960, moveu-se por um imaginário visceralmente vivido em suas andanças pela metrópole paulistana. Contudo, a partir da década de 1990 há uma nova formulação de sua criação poética, com um rearranjo das relações entre poesia e vida. Trata-se da afirmação de que poesia é o êxtase xamânico. Sua obra Ciclones (1997) marca essa mudança. Focarei este momento final da poética de Roberto Piva, mas a partir de um encontro no momento inicial de sua criação poética. Pois sua poesia foi bastante influenciada pela convivência com o amigo Vicente Ferreira da Silva – considerado o filósofo mais original do Brasil, por Oswald de Andrade. As recordações de Piva sobre essa amizade, do início dos anos 1960, acompanharão toda a sua trajetória. Em diversas entrevistas, o poeta menciona suas afinidades com o filósofo na perspectiva pagã e anti-humanista da vida, na crítica ao cristianismo e comunismo, e nas brechas para a reaparição do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo. Piva estudou com Ferreira da Silva, durante um ano, o clássico Ser e Tempo, de Martin Heidegger, além de descobrir com ele os estudos de Mircea Eliade. Na casa do filósofo paulistano, Roberto Piva também conheceu e conversou com o português Eudoro de Sousa, sobre a fascinação de ambos por Fernando Pessoa. De certa forma, Roberto Piva encarna as potências míticas originárias tal como presentes nos estudos de Vicente Ferreira da Silva, Eudoro de Sousa e Mircea Eliade. Por essas vias discutirei a vivência de Roberto Piva com a “poesia xamânica” ou “poesia extática”, além de delinear alguns de seus traços seminais.

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Publicado originalmente na Revista dEsEnrEdos, ano VII, número 23, Teresina/Piauí, maio de 2015. MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). p. 241-242 259


140 1. Experiência xamânica com as palavras: relato das vivências extáticas Em entrevista a Ademir Assunção, concedida em 1991, Roberto Piva faz alusão a seu livro Ciclones – publicado apenas em 1997 – como “uma experiência xamânica com palavras”. Perguntado sobre como é essa experiência, o poeta responde: “Uma experiência de volta às origens da poesia. Os primeiros poetas foram xamãs, foram profetas, faziam poesias que relatavam os seus relacionamentos com espíritos tutelares, com os totens, com as forças incontroláveis da orgia dionisíaca”260. E, mais adiante, acrescenta: “os poetas épicos foram grandes xamãs, foram pessoas que incorporavam espíritos, que eram possessos de uma força maior que eles”. A poesia xamânica é feita por poetas que incorporavam forças míticas e relataram suas aventuras extáticas por meio da poesia. Piva faz jus a suas leituras de Mircea Eliade, especialmente Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase – que o poeta lera já em 1961. Após abrangente abordagem sobre as diversas expressões do xamanismo no mundo arcaico, Eliade (1968) pondera que no êxtase xamânico estão as raízes da poesia: as narrativas das aventuras extáticas do xamã dariam origem à épica, ao passo que o arrebatamento lírico teria sua fonte na “euforia pré-extática”. Piva crava a origem da poesia em rituais ancestrais, mas como narração posterior à experiência espiritual. O filósofo Eudoro de Sousa salienta que a poesia surge como relato externo à cena mítica primordial, em uma narrativa que congela em palavras seu fluxo visceral. A expressão verbal acaba por permitir ao intelecto se debruçar sobre o mito no sentido de decifrá-lo. O mito entendido como relato ou narração, não como a expressão da sensibilidade de quem viveu o êxtase, acaba por redundar em mito-logia – ou seja, em interpretação do mito pelo Logos. Nesse contexto, a poesia antecede a captura do vivido pelo pensado que está na aurora da filosofia ocidental. Assim, a poesia mata o mito. Ora, como Eudoro de Sousa entende o mítico e, mais especialmente, qual seria a expressão mítica que não o relato verbal (oral ou escrito)? Para o filósofo, o mítico ocorre dentro de um “drama ritual” no qual pulsam deuseshomem-mundo, numa unidade primordial. O êxtase possui seu fluir apenas no ambiente cultual. O mito é a presença dos deuses no homem e no mundo. Assim, sua expressão é vivenciada. Foquemos esta expressão. Eudoro de Sousa é enfático: “Mito é vida da sensibilidade; e a alegoria [decifração], sua morte”261. Mito é mistério que se expressa no corpo, como acontecimento pleno de sentido – sem necessidade de entendimento. O devir do mito no homem é “expressão corporal”262. É o homem como sensibilidade, como corpo possesso por deus – uma experiência que não provém da “subjetividade” humana, pois “a expressão corporal do rito tem sua objetividade no deus que

260

ASSUNÇÃO, Ademir. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva. (Entrevista). In: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1991/2009. p. 98. 261 SOUSA, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1988. p. 48. 262 Ibidem, p. 69.


141 se expressa de dentro do homem para o mundo”263. Dessa expressão advém gestos, cantos, danças, pois a experiência mítica se expressa “pela muda linguagem do gesto hierático”264. Por aí se entende como a linguagem verbal mata a experiência mítica originária, pois impõe um elemento extrínseco à sua expressão corporal que pretende dizer a verdade sobre o mito a partir de conceitos. Nas palavras do filósofo: “A mais perigosa [expressão] para a vida do mítico que está no mito e em todos os mitos é a linguagem verbal, falada ou escrita, na exata medida em que, muito mais do que as outras, se ressente de um compromisso da sensibilidade com a inteligibilidade, assumido por esta, em vantagem sua, em desvantagem da sensibilidade”265. O mito como “linguagem da narração”, como “gênero de literatura oral ou escrita” expressa coisa diferente da experiência mítica. Essa renovação da Filosofia da Mitologia, operada por Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva (como veremos mais adiante), traz ideias muito similares às de Piva. Para ambos o foco é a experiência corporal concreta, a importância do vivido pela sensibilidade, em detrimento da interpretação, da atividade cerebral do intelecto e sua comitiva de conceitos. É nessa linha que Piva266, em depoimento publicado no mesmo ano do surgimento de Ciclones, modifica substancialmente a relação entre poesia e xamanismo: “Poesia=xamanismo=técnicas arcaicas do êxtase”. A poesia não mais como o relato mítico da viagem extática do xamã, como experiência com as palavras, mas ela própria se identifica com o drama ritual originário. A poesia é o êxtase, e acrescenta: “Há quem disseca os versos, mas não conhece o êxtase, que é a alma dos versos”. Aqui deixando clara a opção pelo vivido em detrimento do pensado. O que seria o êxtase?

2. Poesia extática: o estar-fora-de-si Uma das possibilidades interpretativas da poesia=êxtase foi suscitada por Monteiro, Cesarino e Cohn. Ao ouvirem a afirmação de Piva (“A poesia é o êxtase”), indagam: “Então a poesia não é a técnica do êxtase, mas o êxtase em si?”267. Ao que o poeta responde afirmativamente. Ou seja, outra possibilidade seria pensar nos cantos do xamã como poesia cantada que desencadeia o êxtase. A poesia, assim, não seria posterior à viagem extática, mas, ao contrário, seu detonador. Mas a resposta de Piva é indubitável. Logo, o que significaria a expressão “poesia=êxtase”? Comecemos pelo êxtase. Para Eliade268, a principal referência de Piva no xamanismo, o êxtase está ligado à alma do xamã que se desprende de seu corpo, possibilitando suas viagens por vários espaços cósmicos, relação com espíritos tutelares, incorporação de animais, etc. De

263

Idem. SOUSA, Eudoro de. Mitologia I: mistério e surgimento do mundo. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1988. p. 97. 265 SOUSA, Eudoro de. Mitologia II, op. cit., p. 59. 266 PIVA, Roberto. poesia = xamanismo = técnicas arcaicas do êxtase. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1997/2009. 267 MONTEIRO, Danilo; CESARINO, Pedro; COHN, Sergio. O renascimento do maravilhoso. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2007/2009. p. 173. 268 ELIADE, Mircea. Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase. 2 ed. Paris: Payot, 1968. 264


142 certa maneira, o êxtase proporciona ao xamã ultrapassar a “condição humana profana” rumo a uma condição espiritual de acesso ao sagrado. De acordo com Eudoro de Sousa269, no entanto, essa visão do êxtase reflete uma perspectiva platônica, pois cinde corpo e alma. O termo grego “ek-stasis” significa “estar fora”, o que na experiência mítica se entende como “estar-fora-de-si”. Mas o “si” da equação, para Eudoro, não é o “corpo”, mas o sujeito social, a personalidade ou a própria condição humana: “Em êxtase só entra quem consiga quebrar essa crosta imobilizante, que, decerto, não é o corpo, mas a personalidade, ou antes, a personagem cujo papel se representa em outro drama, ritualizado pelo rito da vida quotidiana, da vida presa ao ‘aqui e agora’”270. No fundo, tanto Eliade como Eudoro entendem o êxtase como um processo similar: o estar fora de si, no sentido de evadir da condição humana cotidiana para um outro modo de ser que permite o devir do homem na força dos deuses, nos elementos “naturais” e nos espaços “cósmicos”. Estando fora de si, o homem pode estar disperso em todos os elementos. O devir no lugar do dever. Aqui se esclarece um ponto importante da criação poética de Roberto Piva. Há o momento do êxtase, no xamanismo ou dionisismo, que Piva identifica à “poesia”; e a narrativa ou transmutação verbal da vivência, como a experiência xamânica com as palavras: o poema. É isso que Roberto Piva diz a Weintraub sobre a vivência visceral dionisíaca “na origem do poema”, pois o poema é considerado “arremate literário” posterior271. Mas voltemos ao êxtase. Se o êxtase é estar-fora-de-si enquanto humano, o que se entende aí por humano? E, ainda, qual o devir do ser-homem fora da condição humana?

3. Poesia e anti-humanismo Comecemos por pensar no humano. Nesta sua última fase da poesia extática, Piva menciona várias vezes sua crítica ao antropocentrismo, concomitante ao entendimento da poesia para além do humano. Em entrevista a Miguel de Almeida, por exemplo, o poeta afirma que “a verdadeira poesia é epifânica”, ligada ao ritmo dionisíaco do candomblé e outras manifestações pagãs, acrescentando: “As realidades paralelas são maiores e mais misteriosas que a realidade humana [...] O antropocentrismo subsiste ainda apenas nesse túmulo caiado por fora que é a Igreja Católica e nos partidos de esquerda [....] Os tambores do irracional, graças aos deuses, governam o mundo”272. Tendo como referência a integração deuses-homens-mundo, típica da cena mítica originária, o processo de hominização se opera na divisão desses elementos. O que era integrado surge como cindido, a fluidez se torna fixação e o originário, cronológico. O ser homem poroso, aberto às forças naturais, aparece como enclausurado, impermeável. A exterioridade da ação no frenesi da sensibilidade torna-se interioridade da consciência no solilóquio da intelecção. A cena mítica originária no centro do sentido da realidade dá lugar ao humano como centro do 269

SOUSA, Eudoro de. Mitologia II, op. cit., p. 77. Ibidem, p. 78. 271 WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. 272 ALMEIDA, Miguel. Epifanias do erotismo sagrado. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1993/2009. p. 109. 270


143 Universo. O homem, demasiado humano, transforma o outro em objeto, surgindo a noção de natureza e deuses, como projeções da subjetividade humana. O eterno retorno do mito originário, palco da ação dos deuses no homem e no mundo, torna-se história como palco das realizações humanas. Observemos melhor esse processo e os impactos dessas mudanças. É o filósofo Vicente Ferreira da Silva quem leva a postura anti-humanista às últimas consequências. Retirando-se da cena mítica primordial, o ser-homem dá início a um antropocentrismo subjetivista, um processo de hominização de todas as expressões do ser. A constituição do humano se dá concomitante à consolidação do cristianismo, reduzindo as forças míticas hierofânicas dos deuses pagãos à manifestação humana. O humano em si como medida de todas as coisas, cindido de toda expressão que lhe é externa. A cisão começa no próprio ser-homem. Como coadjuvante no drama ritual dos deuses, na origem mítica do mundo, ele encarnava as vibrações divinas em sua sensibilidade, de maneira totalmente exterior (gestos, dança, canto). A esse corpo em devir, o humanismo opõe uma alma imutável. À proliferação das sensações objetivas, a subjetividade impõe uma “matriz invisívelespiritual”273. A relação com as coisas é transferida do corpo para a intelecção – tal como alerta Eudoro na relação racional com o mítico. Assim, o homem interior buscou se construir como alma para “além das imagens sensíveis do homem” ou “além da figura perceptivo-sensorial”274. Eis o advento da alma, apartada do corpo. Porém, só se pode pensar um sujeito cindido quando este é colocado em oposição ao que lhe é externo: a clássica ideia de “sujeito-objeto”. Vicente Ferreira da Silva ressalta quanto essa “objetividade” é também abstrata, pois, em última análise, tudo que é exterior ao homem acaba por tornar-se a projeção de sua subjetividade. A subjetivação do objetivo é também a objetivação do subjetivo. O exterior ao homem é negado em sua diversidade à medida que se reduz a uma “interioridade objetivada” pela consciência humana: “A exterioridade do mundo é simplesmente uma cisão ou duplicação do igual, da consciência, ou melhor, da nossa consciência que se objectiva e se distingue de si mesma”275. O humano é a negação da alteridade do mundo externo e sua independência em relação ao homem. O fora como uma extensão do dentro é forma de dominar forças intempestivas e imprevisíveis por uma ideia de estabilidade e previsibilidade. Essa captura do exterior como projeção do humano se deu na construção do conceito de natureza. Ao contrário do que se pensa à primeira vista, trata-se de uma noção bastante recente. À medida que a consciência humana se constitui enquanto centro, todo o externo é despojado de vida, como “natureza”: algo reduzido a categorias e conceitos físicos, totalmente dominado pela consciência. Logo, esse mundo dessacralizado, posto pela cisão sujeito-objeto, está no cerne de sua captura científica como pura fisicalidade e, por conseguinte, como suscetível à manipulação humana: a coisificação do mundo como mera mecanicidade. Daí a natureza manipulável e utilitária, cujos efeitos na degradação do meio-ambiente conhecemos bem.

273

SILVA, Vicente Ferreira da. A natureza do simbolismo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1962/2002. p. 460. 274 SILVA, Vicente Ferreira da. Raça e mito. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1959/2002. p. 431. 275 SILVA, Vicente Ferreira da. O ‘Ser’ In-Fusivo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1956/2002. p. 392.


144 Quão diferente é essa noção de natureza se comparada com o mundo epifânico de outrora, palco das forças pagãs incontroláveis e dispersas. Sua fluidez sagrada ganha agora uma “localização espácio-temporal, fixa e unívoca” em puros “esquemas espaciais e geométricos”276. Pensemos agora no divino. Expulsando o sagrado das coisas, o homem chama para si a totalidade do sagrado – monopoliza o divino. É um Deus apenas para o homem. Não apenas um Deus do homem, é também um Deus humanizado. Em outras palavras, essa identificação de Deus com o homem interior, não apenas torna o homem central na criação – à imagem e semelhança de Deus – mas torna deus imagem e semelhança do homem: um “Deus-homem”, como afirma Vicente Ferreira da Silva. Isto significa que é um deus na medida do humano cristão, também uma divindade meramente interior e sem materialidade, como pura alma que paira inerte na eternidade. O filósofo compara este último com a potência pagã do “extra-humano”, os valores míticos como “modelos de virtude heroico-divinos”. Deuses cuja presença terrível se vivenciava em todo o mundo, distantes do Deus cristão encarcerado em um “reino de Deus” prometido no além mundo. Essa retomada dos traços principais do processo de hominização, bastante pretensiosa por sinal, talvez tenha auxiliado a compreender as afirmações do início deste subcapítulo. Tendo como referência a tríade da cena mítica primordial (deus-mundo-homem), a antropogênese se operou na fixação do fluxo, localização do disperso, enfim, na humanização do mundo e dos deuses. Outrossim, Vicente Ferreira da Silva sempre pensa a constituição do humano como negação do mundo pagão da experiência mítica originária. Daí advém a vivência, central tanto para o filósofo como para Roberto Piva, de que a expressão da vida em sua potência depende de uma superação da condição humana. Tal como o poeta vociferava contra o antropocentrismo pelas realidades não-humanas do planeta, o filósofo não é menos direto: “Por isso, a tarefa teúrgica do pensamento tem, como exigência primordial, uma superação do princípio ocludente do hominismo e consequente formação de uma sabedoria do não-humano, do trans-humano ou do meta-humano”277. Para Vicente, assim como para Piva, esta sabedoria advém do homem fora-de-si (êxtase), na negação da condição humana pela experiência mítica do culto arcaico. Ao negar o humano como centro do universo, todo o processo civilizatório, a cidade como espaço do humano e a própria “história” humana ficam sob tensão. Daí se entende as afirmações constantes de Piva sobre seu “plano de fuga da civilização”. Esse anti-humanismo radical será visto como: fuga espacial, com a crítica ao ambiente urbano; e temporal, com a negação da temporalidade linear por um tempo mítico de eterno retorno à origem.

4. Linhas de fuga da cidade-sucata Roberto Piva já foi considerado um poeta da cidade, tendo seu Paranóia (1963) sido comparado por várias vezes com a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade. E certamente 276

SILVA, Vicente Ferreira da. A natureza do simbolismo. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1962/2002. p. 459. 277 SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1955/2002. p. 383.


145 Piva buscou a força de sua poesia nas vivências subversivas do ambiente urbano. Os diálogos intertextuais de Paranóia, além da Paulicéia de Mário de Andrade, trazem Nova York cantada por Walt Whitman, García Lorca, Allen Ginsberg; a Paris de Baudelaire e Apollinaire; e a Londres das Iluminações de Rimbaud. Porém, enquanto se celebrava o IV centenário da cidade de São Paulo, em meio ao entusiasmo pelo progresso industrial, Piva vivia outra cidade. Em Ode a Fernando Pessoa (1961), substitui-se a visão entusiasta daquele período por afiada sátira da moral provinciana da cidade e sua crença no progresso: “Sabes que há mais vida num beco da Bahia ou num morro carioca do que em / toda São Paulo // São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil?”; ou “Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?”278. Em contrapartida, aposta nas vadiagens por entre os subterrâneos da cidade, na companhia de “tenebrosos vagabundos” que cometem toda série de ilegalidades. É o avesso da cidade ordenada. Tal postura se intensifica em Paranóia. O locus louco do poeta fendido, tomado por alucinações, delírios e narcóticos é o avesso da sobriedade citadina. A cidade erotizada, como palco aberto de todos os prazeres, não condiz com a visão utilitária do corpo adestrado para o trabalho. E os paralelos são inúmeros: a amizade como fonte de sociabilidade libertária distante da captura pela instituição de controle da família; a vadiagem pelos becos, submundos, periferias, como avesso dos espaços oficiais controlados; a noite e suas obscuridades contra o dia e suas luzes; e por aí em diante. Tudo isso no frenesi de uma linguagem poética em versos longos e quebradiços, com imagens sobrepostas na velocidade e fragmentação da cidade. Dessa perspectiva, Piva vivencia São Paulo como uma anticidade, pois é o ambiente urbano assaltado por forças pagãs e mágicas. É uma cidade habitada por vibrações pagãs e cósmicas, a rigor mais próximas do universo “natural”. O poeta caminha na contramão da própria constituição das cidades como espaço humano, em contraposição às incontroláveis forças da natureza. A organização do espaço em vias que controlam os fluxos no marasmo do trajeto ou o enclausuramento dos cidadãos em habitações seguras. A cidade é o espaço do humano. Símbolo de sujeitos apartados da natureza que constroem sua civilização e humanismo, com todas as implicações dantes discutidas. Assim, Piva foi poeta contra a cidade: inicialmente contra ela escancarando suas tensões em suas próprias estranhas; e, depois, transferindo suas experiências mágico-pagãs da cidade para o ambiente “natural”. É essa fuga do urbano que coincide com o período da poesia xamânica. Já no documentário Heróis da Decadensia [sic], de Tadeu Jungle279, Piva menciona Lewis Mumford para falar que o “espaço da cidade é o espaço da polícia”, conclamando os locais não policiados. E as críticas vão se multiplicando: a cidade cimentada que solapa a presença dos elementos naturais fundamentais ao xamanismo, a “metrópole como necrópole”, a cidade como uma “enorme caixa-registradora”, etc. A fuga do ambiente urbano é a fuga do humano. Em outras palavras, Piva busca a incorporação de outras forças diferentes do humanismo. É por esse motivo que, paradoxalmente, quando passa a escrever fora da cidade de São Paulo, começa a assinar todos 278

PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 24-25. 279 HERÓIS da decadensia. Direção de Tadeu Jungle e Walter Silveira. São Paulo, 1987.


146 seus poemas com os nomes das cidades em que vivenciava seu ritual xamânico (Ilha Comprida, Jarinu, Mairiporã, etc.). A saída da cidade-sucata não é a perda de uma espacialidade física da poesia. Piva buscava um espaço que não fosse controlado pelo humano, mas sim pela irradiação de hierofanias, tão características de sua poética xamânica. Vicente Ferreira da Silva, em ensaio intitulado Fé nas Origens, discute exatamente os significados de uma “volta à natureza”, como contestação do processo civilizatório. Critica os que buscam na natureza a representação humanista de ambiente bucólico, na proximidade das plantas e animais, com a visão ingênua de uma nostalgia do paraíso perdido. Vicente rechaça essa posição de levar o humano para a natureza, acompanhado do utilitarismo que degrada o meio ambiente. Para o filósofo pagão, o retorno à natureza marca uma modificação fundamental na experiência religiosa: o eterno retorno do “panteísmo naturalístico”. Ou seja, o ser-homem integrado com o mundo e os deuses, na mesma pulsação hierofânica dos povos ditos “primitivos”. É, enfim, a busca do ser-homem para além do humano: A selva ou o elemento selvático não devem ser entendidos aqui como um estar-aí físico e perceptivo de plantas, fontes e animais, mas é mais do que isso: é uma presença envolvente, omnicompreensiva e tangível do não-feitopelo-homem; é a selva em nós e a adoração desse aspecto quase sempre encoberto por uma personalidade ou máscara fictícia e que constitui essa possibilidade a qual podemos retornar280.

Ferreira da Silva vê nesse impulso de volta às origens o contato com o selvagem em nós, distante do humanismo da sociedade e da civilização. É interessante notar que ele vivencia esse retorno às origens míticas como a “congratulação que provoca o louvor poético do mundo e das coisas”281. Ou seja, associa essa experiência com uma forma de fazer poesia que não se compraz com o humano, mas exalta as realidades não-humanas. Já se pode antever onde quero chegar. Piva também propõe a volta às origens da poesia na experiência mítica arcaica do xamanismo, vivenciando uma poesia que lida com as “realidades não-humanas do planeta”, que se concretiza na ida para o ambiente natural como vivência de hierofanias, e, ainda por cima, menciona que “a única forma de salvar o planeta é a selvagização de novo”282. Seria exagerado supervalorizar a influência da convivência com Vicente no futuro da poesia de Piva? Tal influência é ainda maior se observamos que no mesmo número da revista Diálogo em que foi publicado o ensaio Fé nas Origens, também está A experiência do divino nos povos aurorais, como veremos a seguir. Pois bem, a bravata de Piva, repetida por diversas vezes, é a seguinte: Tudo aquilo que vocês chamam de história não é senão o nosso plano de fuga da civilização de vocês. Vão pro diabo que os carregue. Eu vou pra praia283 280

SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1955/2002. p. 386. 281 Idem. 282 ASSUNÇÃO, Ademir. A poesia selvagem e de possessão de Roberto Piva, op. cit., p. 100. 283 PIVA, Roberto. Cinema em pânico. Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1986/2009. p. 73.


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Aqui o retorno às origens é um plano de fuga daquilo que a civilização chama de história. E é a ela que nos voltaremos.

5. Origem: tempo mítico do eterno retorno A busca pela experiência de uma poesia como êxtase nos conduziu para as realidades não humanas, materializadas espacialmente no ambiente “natural” em contraposição à cidade. Agora discutiremos um recorte temporal a partir da contraposição entre “história” e “transhistória”. Em seu ensaio intitulado História e Meta-história, Vicente Ferreira da Silva inicia suas reflexões conceituando história: “O domínio de uma pretensa autonomia da acção humana seria o da história, compreendida como o campo de realização dos projectos e desígnios da humanidade”284. A história estaria ligada à antropogênese e à constituição do humano como centro no qual se desenrola toda existência. Contraposta a essa pretensão antropocêntrica, Vicente coloca uma “Matriz mítica instituidora” de todo o ser, inclusive do humano. Trata-se do “domínio trans-histórico e transcendente dos poderes teogónicos”285. Diante desse fluir sempre renovado das forças numinosas, a história como temporalização linear representa a domesticação do fluxo em uma sequência engessada de causalidade: passado-presente-futuro. É nesse processo de uniformização do tempo que se insere a história humana. Se, de um lado, o pensamento humanista propala uma história como palco das ações do homem em uma temporalidade fixada cronologicamente, por outro lado a experiência mítica propaga uma trans-história como palco das hierofanias divinas na atemporalidade do fluxo originário. Partindo dessa experiência originária, o passado e o futuro perdem qualquer ligação casual, o que permite a Eudoro, por exemplo, dizer que a perspectiva de uma trans-história implica na vivência no presente do passado mítico: “E se falo em verdade ‘trans-hitórica da história’, é porque julgo que o nosso presente é, de algum modo, presença daquele passado...”286. O que chamamos de “trans-histórico” não ocorre fora do horizonte da história humana. O histórico e o transhistórico não são estanques, como se um anulasse o outro. Ao contrário, este último representa a força dos deuses míticos e sua proeminência diante da criatura finita e suas ações. O histórico do homem é apenas um pequeno lapso no fluxo trans-histórico dos deuses. Assim, Eliade fala em uma “trans-história na história”, ou seja, as irrupções desse fluxo originário do fenômeno religioso na temporalidade da história humana287. É o mesmo Eliade quem demonstra como a Índia carece de uma tal “consciência histórica”, já que sua vivência do tempo originário é tão intensa que se torna um caso extremo 284

SILVA, Vicente Ferreira da. História e meta-história. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1959/2002. p. 436. 285 Ibidem, p. 438. 286 SOUSA, Eudoro de. Mitologia I, op. cit., p. 86. 287 ELIADE, Mircea. Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase, op. cit., p. 12.


148 da escolha pelo sagrado/transcendente e a recusa aos condicionamentos do que chamamos de “história do homem”288. Esse tipo de recusa nos auxilia a compreender a afirmação de Piva. A experiência do êxtase como ir além do humano é reviver a trans-história na história, posto que é o homem contemporâneo vivendo em seu corpo essas forças originárias. Assim, o tal “plano de fuga” do que a civilização chama de história é a negação da ação humana histórica em prol de uma volta às origens epifânicas e atemporais. É, em suma, a negação da história humana pela vivência de experiências arcaicas e atuais (ou atuantes). É um retorno às origens. Como seria essa experiência de origem nos povos arcaicos, referências do xamanismo de Piva?

6. A experiência mítica originária dos povos aurorais Toda poesia extática de Piva reconduz à experiência xamânica dos povos arcaicos, especialmente em sua relação com o sagrado. É interessante notar que Piva acredita que a descoberta da cultura xamânica será a grande característica do século XXI. Seu caminho parece ser da crise do antropocentrismo à (re)vivência da experiência arcaica. Daí o paradoxo do futuro do homem ser colocado em seu passado mais remoto – em mais uma demonstração de uma temporalidade de eterno retorno. O mesmo paradoxo permeia o ensaio de Vicente Ferreira da Silva, A experiência do divino nos povos aurorais (1955) – sua poética denominação ao que outros entendem como “primitivo” ou “arcaico”. Também para o filósofo vivemos o ocaso do humanismo e o fechamento de um ciclo histórico, o que significa uma nova abertura para a fascinação divina. O filósofo inicia assim seu ensaio: Chamamos povos aurorais ou originários àqueles que viveram e ainda vivem o mito como a única e absoluta forma de realidade. Nesta fase da história não se recortou ainda uma natureza, como sistema legal de factos físicos, diante de uma esfera sobrenatural e imaterial, refúgio dos valores sagrados. Para essa espécie de consciência não existe uma dualidade entre o humano e o divino, abrangendo as forças numinosas todo o âmbito das manifestações fenomênicas. Não existindo ainda, portanto, uma experiência da natureza que, como um anteparo, possa proteger ou resguardar a consciência da gravitação candente da experiência religiosa, todas as manifestações da vida transmitem a exuberância da lei mítica289.

Veja que a ênfase do filósofo recai sobre uma experiência mítica originária em que o homem encontra-se fundido com o mundo, ambos expressando a manifestação numinosa dos deuses. O vegetal, o animal, a vida dos astros, tal como depois designaríamos, formavam um todo expressivo, palco de um “processo fluido e difuso”. Difuso, pois não há uma localização espacial dos elementos. Em outra ocasião, Ferreira da Silva tomará o exemplo da Lua vivenciada como emanação de forças cósmicas ligadas ao lado noturno da vida, esparsas em todo impulso vital. Ou seja, não era um astro fixado astronomicamente em determinado ponto do céu: não sendo regida pelo princípio de identidade e substância, a Lua fluía no homem e em todos os elementos.

288

ELIADE, Mircea. Méphistophélès et l’androgyne. Paris: Gallimard, 1962. (Collection Idées). p. 139. SILVA, Vicente Ferreira da. A experiência do divino nos povos aurorais. Em: ______. Dialéctica das consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1955/2002. p. 362. 289


149 Essa mesma fluidez permitia aos homens fundirem-se nas demais manifestações míticas. O homem também sem o claustro da substância e identidade possuía um corpo poroso, aberto às forças numinosas – como na incorporação de um vegetal ou animal. Trata-se de uma “unidade indivisa” que multiplicava o “poder encantatório-totémico do animal” em “homenscangurus”, “homens-répteis”290. Aqui o homem em devir-animal ou vegetal vivencia a potência mítica como abertura às diversas possibilidades de ser. Registra também um momento em que não há cisão ou hierarquia entre homem e o mundo, apenas o fluir disperso dos seres em uma pulsação amorfa. Falar aqui em união deus-homem-mundo é ainda antropocêntrico, pois não se pode integrar o que não é cindido. Se essa experiência mítica originária implica em um ser-homem diluído nas forças epifânicas, também as fragmentações impostas ao homem no processo de hominização se volatizam. É Paulo Borges quem enfatiza: “Proximidade e presença do divino que faz imediatamente do homem a forma e a linguagem da sua expressão, na unitária integralidade das suas energias e faculdades, sem qualquer distinção e oposição entre corpo e espírito, sensível e inteligível291. Esse homem expressivo em si, vale ressaltar, exterioriza-se sem distinção entre o “pensar, dizer e fazer”. É um corpo poroso e íntegro. Por fim, essa experiência teofânica era originária no sentido de estar ligada à Origem. Não havendo uma localização temporal dos fenômenos de acordo com uma escala linear, cada epifania iniciava o homem. Em outras palavras, o mítico suspendia todas as representações humanas e fazia ascender uma nova possibilidade de ser-homem para além das condições profanas que lhe garantiam a sobrevivência. É exatamente o êxtase como esse mergulho nas novas possibilidades do ser que permite intuir um último sentido à expressão “poesia=êxtase”.

7. Devir de novas possibilidades de ser Como êxtase, a poesia se afasta do sentido restrito à expressão literária, colocando-a no centro da experiência mítica. Sem lograr equivaler a vivência poética de Piva com a filosofia especulativa heideggeriana de Vicente, há incríveis semelhanças entre ambas. Pensemos no ser-homem na presença do divino. Homem e deuses sem o claustro da identidade e substância, diluídos e se interpenetrando com todo o mundo. Essa abertura do Ser (Deus, Mito) ao ente finito, como fascinação, como o pôr-se em obra da própria origem do mundo, é o que Vicente Ferreira da Silva considera Poesia, em sentido amplo – como “Poesia em si”, ou “como vida transcendente das potências divinas”292. Trata-se da poesia como mito, como presença fulgurante dos deuses no rito. Aqui, Deus é devir. É o conjunto de suas manifestações epifânicas. Na cena mítica originária, o homem se livra de ser ente finito e se abre para o devir das potências míticas. Em outras palavras, todas as representações do homem sobre si, mundo, Deus, não o acompanham nessa viagem. Assim, a experiência epifânica é terrível. A criação a partir do estar-fora-de-si suspende o humano habitual e coloca em risco sua própria existência.

290

Ibidem, p. 367. BORGES, Paulo A. E. Imaginário e mitologia. Em: ARAÚJO, Alberto Felipe; BAPTISTA, Fernando Paulo (Coords.). Variações sobre o imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 49. 292 SILVA, Vicente Ferreira da. A fé nas origens, op. cit., p. 375. 291


150 Mas estando fora-de-si e fluindo nos seres, o ser-homem acessa as realidades além do homem, tendo, momentaneamente, o poder mesmo de criar novas possibilidades de ser além do já determinado. A viagem extática do xamã é o devir-homem no fluido do ser. Daí seu fluir nas plantas, animais, astros, etc. Pode-se tocar o sol e fazer surgir o dia ou trazer um arco-íris no pescoço. Poesia é epifania. Abre-se novo campo de possibilidades de ser. O poeta entra em contato com as forças de criação das próprias coisas e ele mesmo, ser-homem, entra em variação, devir. A poesia epifânica abre novas veredas para o devir humano, expressando a vida como vontade de potência, como força que expande a vida para além de seus limites conhecidos. Agora, se chegamos até aqui a partir do pressuposto de que a poesia=êxtase é anterior à palavra, devemos a ela retornar. Pois se a epifania faz variar o ser homem por meio da sensibilidade, de suas paixões, a palavra sofre também uma variação. É certo que a epifania é erótica, se expressa no corpo e põe a dançar e cantar. Viver mais que a pensar. No entanto, também se expressa na palavra, palavra que Heidegger, por exemplo, coloca como cerne da poesia, em seu sentido estrito, que instaura a realidade293. A instaura à medida que descobre um novo sentido à vida, um sentido que funda um povo e surge como um começo ou origem a partir da relação do homem com os deuses294. Heidegger é claro: “A poesia é a instauração do ser com a palavra”295. Ou seja, o poeta nomeia os deuses e as coisas pela primeira vez, as revela como existentes e assim passam a existir. O re-velar deve ser tomado em duas acepções: de pôr a descoberto, mas também de velar novamente, pois a palavra no mesmo momento em que nomeia, encerra um conteúdo e o abre como mistério. A palavra de que falo não é o vocabulário habitual, da linguagem restrita à funcionalidade da comunicação. É preciso que encontremos uma palavra instauradora, nos mesmos contornos das expressões do ser na cena mítica original. Uma palavra que dance, cante, enfim, que seja corpo. Uma palavra ela mesma como epifania, como presença do devir do mito no mundo.

8. Da potência do nome A narrativa mítica ou relato verbal ficou em segundo plano, mais como aquilo que mata o mito que uma forma de (re)vivê-lo. É o próprio Piva, quando conclui que a poesia é corpo, que é “anterior às palavras”, quem se pergunta: “Porque escrever?”.

293

HEIDEGGER, Martin. Origen de la obra de arte. Em: ______. Arte y poesia. 2. ed. (Samuel Ramos, trad.). México: FCE, 1952/2006. 294 A influência do texto de Heidegger e sua palavra fundadora se faz sentir no primeiro registro audiovisual de Roberto Piva, durante uma passeata pela redemocratização do país, em 1977, quando afirma: “Eu tô sentindo que realmente a população foi lobotomizada. Foi arrancada uma parte do cérebro da população e eles estão tentando repor esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da palavra – e da palavra poética, que funda e ao mesmo tempo transforma o real”. Vide filme Assombração Urbana. 295 HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. Em: ______. Arte y poesia. 2. ed. (Samuel Ramos, trad.). México: FCE, 1937/2006.


151 Vimos no início do texto que a vivência de Piva como leitor era muito distinta da leitura como entretenimento ou volteios intelectuais, como muito se pratica atualmente. Ler é (re)viver o vivido subjacente ao escrito. É detonar a experiência originária. E aqui pareço ter me equivocado com a aproximação da poesia como experiência originária da qual advém o poema como narrativa mítica. Sem o querer, como humano demasiado humano, estabeleci ali um vínculo linear de causa e efeito: vivência do poeta em êxtase, como experiência anterior (causa); e o poema vindo posteriormente como consequência (efeito). Abdicando de uma causalidade típica da temporalidade linear (primeiro poesia, depois poema) por um tempo de eterno retorno, a coisa muda de figura. Muda porque o tempo da experiência mítica como tempo de origem, como re-criação da fusão primordial homem-deusnatureza, é o presente da presença, sem a linearidade passado-presente-futuro como sucessão cronológica. Logo, o devir da poesia atravessa uma temporalidade na qual importa o florescer do êxtase, como estar-fora-de-si e suspender o tempo. É certo que o poema pode matar o mito, especialmente nessas letras frias dispostas nos papéis; especialmente quando dá ensejo à interpretação operada pela inteligibilidade. Mas e quando vivido pela sensibilidade e imaginação do leitor? Poderia o poema ser o detonador da epifania? Se Piva conclama o leitor a sentir o êxtase e não dissecar o verso, se solicita a verter em sangue e não acumular saber, se, em uma palavra, convoca a sensibilidade e imaginação, não a decifração, não seria essa exatamente sua proposta ao escrever? Aqui o poema longe de ser o fim da experiência mítica, pode ser o começo de seu eterno retorno. Ciclones (1997) tem o título inspirado nos versos do poeta visionário Malcolm de Chazal: “A volúpia / Está / no centro / do Ciclone / dos sentidos” (“La volupté / Est / Au centre / Du Cyclone / Des sens”). E Chazal ainda comparece na epígrafe de um poema com a seguinte passagem: “Em minha obra as palavras são simples trampolins, de onde corpos espirituais e místicos sobem e recaem em saltos”296. Trata-se de trecho das cartas trocadas entre Chazal e o místico-surrealista Sarane Alexandrian, em que tal ideia é retomada: “Pois as palavras para mim são uma forma de trampolins para o invisível”297. A potência da palavra é a de transportar os seres a espaços distintos (de cima a baixo, do visível ao invisível). É a palavra mágica da tradição iniciática: uma vez entoada tem o poder de concretizar instantaneamente a força que evoca. É a palavra vivida no corpo, como surge na poética de Roberto Piva. Essa poesia como magia está longe de ser um produto humano, ou seja, literatura. Defrontar-nos com o poema como literatura, com a postura moderna de decifração, é perdê-lo como epifania. Se o poeta propõe a crítica ao mundo utilitário e dessacralizado em prol de sua vivência mítica, como a experiência dos povos aurorais, o leitor pode seguir o mesmo caminho. A palavra cantada surge como presença e não representação, como entre os povos aurorais. Em sua viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud – de cuja leitura Piva sentiu pela primeira vez a força do xamanismo – comenta uma situação surpreendente. Não se podia 296

CHAZAL, Malcolm de. Ma révolution: lettre à Alexandrian. Paris: Le Temps Quíl Fait, 1983. p. 65. Do original: “Les mots ne sont dans mon ouvre que de simples tremplins, d’oú montent et retombent em boudissant des corps spirituels et mystiques”; e, a seguir: “Car les mots, n’étant pour moi qu’une forme de tremplins vers l’invisible”. 297 Ibidem, p. 60.


152 pronunciar o nome da divindade desse povo, Ciguri, pois a nomeação era o próprio deus presente. Artaud ficou estarrecido com as feições de terror em um índio ao ouvi-lo falar “Ciguri”, pois o nome trazia em seu corpo o “sentido do sagrado”298. Ao refletir sobre o contexto arcaico no qual se originou a poesia de Hesíodo, Torrano descreve a experiência numinosa da linguagem. Ao cantar o poema, o poeta tinha o poder de tornar presentes, audíveis e visíveis os deuses, tal como parece ter ocorrido ao índio tarahumara interlocutor de Artaud. Nas palavras de Torrano: “Este poder da força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria coisa”299. E ao ouvir essa palavra cantada, o homem arcaico tinha uma experiência mítica originária, com as características que temos aqui apresentado: Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes 300.

Parece esse nume-nome que surge a Piva como leitor, como vimos no início deste texto. A palavra como presença, fazendo encontrar poetas e personagens em suas andanças, realizando poemas (tornando-os reais) sendo, ele próprio, um personagem que entorna da página para transformar o cotidiano. Aqui a poesia é magia, não meramente literatura. Daí a ênfase dos poetas que praticam a poesia étnica ou xamânica na performance, como forma de trazer a totalidade da presença do poeta-xamã, em um “poema-como-performance (o poema em ação)”301. Trata-se, em suma, de re-criar a cena mítica originária do xamã, com seus gestos, vozes, danças e toda expressão corporal. Assim, se a volta às origens da poesia propõe o êxtase e a experiência numinosa, não parece ser apenas ao poeta. O leitor poderá também retornar às origens da poesia em que ler/ouvir o relato mítico é vivê-lo. A leitura transforma-se em mais uma expressão no conjunto das epifanias que permitem ao homem incorporar as forças dos deuses como diversas possibilidades de devir.

Considerações finais A poesia extática é acessar realidades não humanas por meio da epifania ritual encarnada. É, portanto, suspensão do humano, sua história, sua civilização, seu espaço citadino,

298

ARTAUD, Antonin. Les Tarahumaras. Em: ______. Ouvres Complètes, vol. IX. Paris: Gallimard, 1971.p. 14. 299 TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. Em: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. (estudo e tradução Jaa Torrano). São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 17. 300 Ibidem, p. 19. 301 ROTHENBERG, Jerome. Pré-Face para um simpósio sobre Etnopoética. Em: ______. Etnopoesia do milênio (Sergio Cohn, org.; Luci Collin, trad.). Rio de Janeiro: Azougue, 1975/2006. p. 93.


153 seu subjetivismo. É devir novas possibilidades de ser, além do homem. Neste contexto, o além do homem é necessariamente superação do humanismo. Floriano Martins, um dos principais comentadores de Piva, tem razão ao observar que ainda falta “uma leitura crítica dessa poesia”. Quando afirma que Piva é tomado por um “humanismo radical”302, por exemplo, permito-me dizer exatamente o contrário. Roberto Piva encarna, antes, um anti-humanismo radical. Carlos Felipe Moisés, amigo e autor de um importante texto sobre Piva, Vida Experimental, acerta em cheio quando atrela sua poética à vida, àquela vida em plenitude das orgias dionisíacas. No entanto, sua reflexão coloca essa “verdadeira vida” sempre como um “projeto”, uma “utopia”303. Ora, a plenitude da vida dionisíaca em Piva é extremamente tópica, vivida em eterno retorno no instante. O além humano de Piva não é o humano do além (uma utopia a ser vivida coletivamente no futuro). Ao conhecimento também é feito o convite de explorar novas possibilidades de experiência da obra poética de Piva. E o saber, quando vivenciado, também não permite uma dicotomia corpo-alma (viver-pensar). Assim, pode o conhecimento surgir, como para Nietzsche, qual potência que expande a vida para além dos limites conhecidos.

Coda

poema: expressão estática da experiência extática

das sensações inscritas no corpo aos sentidos escritos no verso a vivência do nume & a potência do nome

302

MARTINS, Floriano. Surrealismo e América Latina. Em: ______. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). p. 45. 303 MOISÉS, Carlos Felipe. Vida experimental. Em: ______. O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo. São Paulo: Escrituras, 2001.



155

O selvagem em Roberto Piva: caso Paulinho Paiakan

Os relatos são chocantes. No final da tarde de 31 de maio de 1992, Paulinho Paiakan – um cacique caiapó – e sua mulher, Irekran, estupram e torturam a estudante Silvia Letícia, na presença da filha mais velha do casal, com cinco anos de idade. Seio dilacerado a mordidas feitas por Irekran, que penetrava sua mão na boceta da menina e espalhava o sangue em seu próprio corpo e no corpo de seu marido. A imprensa e os ecologistas aguardavam o premiado Paiakan na Eco-92, como um cidadão condecorado pela defesa dos direitos humanos e ambientais. A distância entre o índio idealizado e o fato consumado causava estupefação. No mesmo ano, Roberto Piva escreve um poema intitulado “Paulinho Paiakan”. Nele, o poeta exalta a potência de forças naturais, presentes em manifestações sagradas da tradição mística. O Paiakan de Piva não é o bom selvagem, vestido com o ideal de pureza e inocência, nem tampouco o militante político dos direitos, como cidadão exemplar. Essas roupagens civilizacionais não se encaixam no selvagem visto pelo poeta: o índio nu, com o corpo aberto as furiosas vibrações cósmicas:

Paulinho Paiakan304 A hora do lobo está próxima Garotos entregam-se ao Pesadelo Reis elementais do Sul dançam na névoa Laroiê Exu criador de todas as coisas selvagens & livres Fogo sagrado de Xangô queima a paisagem humanista A grande roda solar girou novamente Com você, Paiakan, o índio deixou de ser platônico Nesta época de ovelhas A ave de rapina aguarda no deserto Os belos matizes da Violência Monte Alegre do Sul, 1992

Piva recorre a tradição pagã para exaltar Paiakan. O poema se inicia com a proximidade da “hora do lobo”, animal totêmico que rege a chegada da madrugada, com toda sua aura sombria. É o momento em que as energias mais obscuras do homem se libertam, com toda sua vibração incontrolável. É o avesso da Luz do dia e a captura dos instintos pelo cotidiano regulado, pelas instituições sociais e pela pretensa clareza do conhecimento. A noite é a entrega ao lado mais visceral e selvagem do humano – bem retratado na figura do homem que se faz lobo (lobisomem). Essa vivência selvagem também tem lugar no sonho, reflexo da ponta mais imprevisível do homem - que alguns denominam inconsciente. 304

Poema escrito em 1992, publicado originalmente na Revista Azougue em 1996. O texto consultado está publicado em HUNGRIA, Camila; D’ELIA, Renata. Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.


156 Mas esse contato com nosso lobo não se dá de forma harmoniosa, mas terrível. Não apenas sonho, mas pesadelo. É a Hora do Lobo (1968), de Igmar Bergman, filme no qual o pintor Johan é tomado por loucuras repentinas, como naquela em que mata, abruptamente, um garoto e lança seu corpo ao mar. Atordoado, o personagem passa as noites em claro, dormindo apenas ao romper da aurora. Em uma dessas noites, afirma: Ouça o silêncio...Houve um tempo em que as noites eram para se dormir profundamente, sem sonhos. Dormir e acordar sem medo (...) Fiquemos acordados até a aurora, todas as noites. Mas esta hora é a pior. Você conhece seu nome? Os antigos a chamavam de ‘a hora do lobo’. É a hora em que a maioria das pessoas morrem... e a maioria nasce. Nesta hora, os pesadelos nos invadem. E quando acordamos, ficamos assustados 305.

É desse pesadelo que Roberto Piva fala no verso seguinte: “Garotos entregam-se ao Pesadelo”. Muito já foi dito sobre a importância da juventude da poesia de Piva – nos anjos de Paranoia (1963), na tribo adolescente de Coxas (1979), ou no garoto iniciado de Ciclones (1997) e Estranhos Sinais de Saturno (2008). Garotos e seu erotismo sagrado, sua inconsequência. Entregues ao Pesadelo: a hora do lobo como o encontro terrível com nossos instintos mais viscerais, bastante excitados no ímpeto juvenil de todas as idades. O poema prossegue com a evocação de forças místicas: “Reis elementais do Sul dançam na névoa”. Aqui os reis que regem os fenômenos da natureza na tradição mágica. Aqueles ligados ao Sul trazem o fogo, que simboliza mudanças rápidas, assustadoras, tomadas por paixões turbulentas. A sexualidade ligada ao fogo e sua intempestividade, associada geralmente à Juventude. E lá vem “Laroiê Exu criador de todas / as coisas selvagens & livres”. A menção aos orixás em Piva é bastante comum, especialmente a partir de Quizumba (1983). Sabe-se que participava de rituais do candomblé, sendo amigo de Marco Antônio de Ossaim, a quem dedica um poema. Exu como orixá errante, sem paradeiro, como acesso aos outros orixás, com suas oferendas sangrentas. A força de Exu naqueles seres comunicativos, amigos, extrovertidos e também cruéis, impulsivos. Exu representado sempre com falo ereto, símbolo da fertilidade – conforme menciona Piva em entrevista306. Exú das confusões, das discórdias. Piva coloca o orixá como criador das coisas selvagens e livres, em clara aproximação ao índio. O próximo evocado é Xangô, com o acréscimo de seu “fogo sangrado” que queima a “paisagem humanista”. É interessante essa contraposição de Xangô ao humanismo, já que é o orixá ligado à Justiça. Fogo do orixá simboliza seu caráter viril, atrevido e violento, com o qual fazia justiça cruel aos malfeitores. Xangô representa o poder de fazer justiça, mas certamente muito distinta da justiça cristã e seu aparato jurídico. Piva entendia o candomblé, e as formas pagãs de maneira geral, como religiões que colocavam os deuses em primeiro lugar, não os humanos307. Ou seja, importa a manifestação dos deuses por meio dos humanos, não estes últimos. Um tapa na cara dos humanistas ecológicos que certamente colocam Letícia no lugar da vítima – com toda sua piedade aos “injustiçados” – e Paiakan no lugar do algoz criminoso que 305

A hora do lobo. Direção: Igmar Bergman. 1968. Entrevista com Roberto Piva. Globolivros.2 008. Disponível em: http://www.globolivros.globo.com/downloads/pdf/Pivafala.pdfData da consulta: 04/11/2011. 307 Assombração Urbana – Roberto Piva. Produção de Valesca Dios. São Paulo: SP filmes / TV Cultura, 2004. (55 min.). 306


157 deve ser punido exemplarmente (com grande misericórdia, é claro!). O bem e o mal tão afeitos ao maniqueísmo monoteísta. Mas o mundo pagão não conhece essa dicotomia e sua justiça certamente não favorece o mais fraco. Com a menção a Xangô queimando o humanismo, Piva pode ter querido ressaltar uma moral pagã contra a moral cristã humanista. Uma moral em que é exaltada a força, a virilidade, a vontade de potência, em detrimento do elogio ao mais fraco, ao inofensivo, ou àquele que teme a força – como se verá a seguir. Por fim, surge a “grande roda solar”, que Paiakan teria feito girar novamente. A roda solar simboliza a mudança das estações, a renovação, a vida nova. Na tradição do misticismo nórdico, cada mudança de estação era festejada em sabbats, rituais pagãos em que se celebra a força da natureza - em meio a orgias, ingestão de alucinógenos, dança, canto e sacrifícios. Curiosamente, Paiakan aparece apenas ao final do poema, após todas as evocações. O cacique simboliza essas forças, as encarna. É tomado pelos instintos selvagens da hora do lobo que ele e sua mulher agem, com toda a entrega da juventude. Paiakan possuído pelo fogo de Djin ou Xangô, com sua virilidade e intempestividade, com o falo ereto de Exu. Piva parece ver na irrupção dessas forças um elemento ritual, quando afirma que Paiakan fez girar novamente a “grande roda solar”. O ato atroz que faz variar a visão sobre o selvagem. É bem sabido que Paiakan e sua mulher buscavam ter um filho homem para suceder o pai na liderança dos caiapós. No entanto, tiveram três filhas e um problema de saúde os fez perder o filho homem, problema que redundou em uma cirurgia de colação das trompas de Irekran – o casal chegou a processar o médico pelo procedimento. O relato de Letícia é incisivo: a mulher do cacique penetrou a mão em seu ventre como que para arrancá-lo, lambuzando de sangue a si e a seu marido; depois passou a mordê-la por todo o corpo, em canibalismo que a deixou com seios dilacerados. Ritual de canibalismo com fins de fertilidade? Está claro: num automóvel, fora do contexto tribal, com fins bastante individuais de um índio milionário que fugiu dirigindo seu avião particular. Cuidemos em falar em ritual nessas circunstâncias tão aculturadas. Mas se pese a antropofagia evidente para a fertilidade de um futuro cacique, do qual poderia se esperar o saber de uma pessoa que ensina o idioma branco na tribo caiapó (como fazia Letícia). Piva, como o filósofo dionisíaco Vicente Ferreira da Silva, entendia a antropofagia em sentido bruto, não apenas um procedimento artístico ou cultural. É o próprio Piva quem pondera: : “Para ele [Vicente], [a antropofagia] era devorar o outro, era comer o outro, comer, matar e comer. Ele achava que isso era fundamental porque ele era um filósofo dionisíaco, filósofo do delírio. Como as Bacantes, tem que chegar lá e arrancar, matar os Penteus e devorar”308. O fato é que Piva vê em Paiakan a quebra com uma visão idílica do selvagem, pois com ele “o índio deixou de ser platônico”. A mudança aí simbolizada é de paradigma sobre o selvagem. A imagem ideal do índio que povoa a moral do rebanho se liga ao ideal de pureza e inocência, de um ser inofensivo pronto à catequese – desde Pero Vaz Caminha. Em vertente política se fala mesmo em uma harmonia da vida regida por um comunismo primitivo. Ou seja, o índio despido de seu espírito guerreiro, voraz, violento; de sua relação com a natureza que

308

MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001.


158 inclui suas forças predatórias; de sua real organização social ligada ao exercício de poder, ao reinado. O índio despido, enfim, de todo elemento selvagem. O selvagem de Piva é o feiticeiro, o xamã, o bruxo. É aquele que encarna as energias naturais, às vezes terríveis, imprevisíveis e violentas. Essa relação com forças que pulsam no seu sangue. Não uma ação mediada pela consciência humanista, mas a possessão imediata por vibrações estrangeiras – para além do bem e do mal. É nesse contexto que Piva evoca Nietzsche: “Nesta época de ovelhas / A ave de rapina aguarda no deserto”. A oposição entre animal de rapina e ovelhas é originária de Nietzsche, especialmente da primeira dissertação de sua Genealogia da Moral. Trata-se de uma noção tão importante para Piva, que chegou a publicar, em 1983, um texto intitulado “Eu Roberto Piva, animal de Rapina”. Em Nietzsche, o conceito remete ao impulso guerreiro que está nos primórdios de toda estirpe nobre: sua plenitude de força, prazer no destruir, virilidade, violência para com o inimigo – deixando um rastro de “assassínios, incêndios, violações e torturas”309. Para o filósofo dionisíaco, os nobres mantêm entre si relações de respeito, lealdade e amizade, mas, quando diante de inimigos, são abominados pela sua fúria. O rebanho seria uma metáfora da moral cristã e sua exaltação dos mansos, humildes, misericordiosos. Estes últimos temem exatamente a expressão de força viril, tomando a ave de rapina como símbolo do mal. Nessa referência a ave de rapina fica compreensível o verso que encerra o poema: “Os belos matizes da Violência”. Essa relação entre beleza e violência daria pano pra manga. O próprio Piva já mencionou Thomas De Quincey e sua obra O assassinato como uma das belas artes; além da presença constante do Marquês de Sade e Lautreamont. Se tomarmos a relação da violência com a manifestação do sagrado, como o faz René Girard, iríamos ainda mais longe. O belo aqui está distante do sentido clássico de harmonia, perfeição, pureza. Quando são belos os matizes da Violência, com Piva a beleza deixa de ser platônica – no equilíbrio do belo, bom e justo. Lembrando que o poeta foi expulso da República justamente por uma relação com os deuses que não supunha apenas o bom. Aqui é importante reiterar que a violência, crueldade, brutalidade, terror e congêneres são elementos extremamente repudiados por uma moral de rebanho. Não é nesse registro que opera o poema. Aí a violência é tanto bela quanto sagrada. É a justiça de Xangô, que não tem dicotomia com o exercício de crueldades. É a força do lobo, dos reis elementais do sul, de Exu que exercem a ira divina por meio dos corpos. Para ficar com o universo de Piva, basta dizer suas referências: bacante em êxtase que esquarteja o próprio filho, Penteu; sacerdotes eunucos de Cibele que se castram, com afiada porcelana, em ritos de iniciação; e daí em diante. O sangue é espírito, é via de acesso ao sagrado. E a experiência sagrada não é harmonia, equilíbrio, serenidade e responsabilidade, como querem as ovelhas. É também terrível. E Piva soube compreender. Os humanistas entenderam que Paiakan praticava um crime contra o humano, com requintes de crueldade, e que devia pagar pelo que fez – (alguém duvida que seja uma visão cristã e etnocêntrica?). Piva, ao contrário, compreendeu a experiência mágica, ritual, de possessão. A vivência do selvagem sem reduzi-la a moral ocidental. Não se trata de apologia ao mal, mas de relação com o diverso, de alteridade – por estranho que isso possa soar.

309

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. (Paulo César de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1887/2009. p. 29.


159 De sorte que a poesia selvagem de Piva coloca em movimento justamente essas forças viscerais do corpo possuído por seus instintos mais intempestivos – além do humano. Em Paiakan, Piva viu exatamente isso: a beleza da ave de rapina que faz modificar nossa visão de mundo a partir de um ato violento.



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Recepção da poesia de Roberto Piva de 1960 a 1990310.

O ano de 2000 selou a consagração da poesia de Roberto Piva com a reedição de sua obra Paranóia (1963), pelo Instituto Moreira Salles. Logo viria a organização de suas obras reunidas e a aceitação da ideia de que sua poesia precisou de décadas para ser realmente lida. De fato, tomando como exemplo o espaço midiático e a proliferação de entrevistas na edição de 2000, há um contraste evidente com o silêncio em torno de Paranóia em 1963. Contudo, o silêncio da crítica na década de 1960 esteve lado a lado com o sonoro contágio de Paranóia em meios avançados da criação artística. Da mesma forma, na década de 1970, sua poesia escorreu clandestinamente nos meios jovens da contra-cultura, com acento na influência sobre a geração da chamada “poesia marginal”. Ainda nesta década, Roberto Piva foi lido pelos meios políticos da esquerda e considerado exemplo emblemático da literatura homoerótica pelos movimentos de luta pela diversidade sexual. Durante a década de 1980, os manifestos do poeta deram o que falar no nascente movimento ambientalista brasileiro, além da importante recepção por mais uma jovem geração de escritores vinculados à editora L&PM. Nesta, o poeta foi considerado “o mais indômito, o mais rebelde e um dos mais inspirados poetas brasileiros das últimas décadas”311, exaltação similar à da revista argentina Cerdos & Peces que o considerou “o maior poeta brasileiro da atualidade”312. Por fim, ainda antes de 2000, os meados de 1990 viram o furor dos jovens transgressores da revista Azougue em torno de Piva, em mais uma ressonância de sua poesia e modo de vida em gerações de novos poetas. Dessa forma, pode-se afirmar que a poesia de Roberto Piva contou com forte recepção em seu contexto de produção, inclusive com constante contágio entre gerações de jovens poetas que reverberaram toda sua verve subversiva. Eis o intento deste estudo: acompanhar a recepção da poesia de Roberto Piva no arco temporal das décadas de 1960 a 1990.

1. O poeta surrealista subversivo A primeira recepção do que viria a ser Paranóia foi desconcertante. Ainda antes de sua publicação, o artista plástico Wesley Duke Lee, recém chegado de uma temporada em Paris, leu os manuscritos da obra e saiu alucinado fotografando aquela nova cidade que se descortinava nos delírios de Roberto Piva. A estudiosa do artista plástico, Cacilda Teixeira da Costa, narra da seguinte forma a produção das fotos: [Wesley] Passou sete meses percorrendo ruas, praças, becos, parques de diversão e o mundo homossexual de São Paulo em companhia do poeta [Roberto Piva], à procura de imagens. O que tentava encontrar era a imagem de um grito de Piva, a expressão visual do desespero do poeta com quem mergulhou no mundo-tabu da pederastia, aspecto da sexualidade que nunca havia enfrentado, mas que sempre o assustava 313.

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Publicado originalmente na Nau Literária: crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, vol. 11, n. 02, jul/dez 2015. 311 L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1985. 312 PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, n.19, 1989, p. 27. 313 COSTA, Cacilda Teixeira da. Wesley Duke Lee: um salmão na corrente taciturna. São Paulo: Alameda Edusp, 2005. p. 56-58.


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Veja como Paranóia transfigura em Wesley uma outra experiência da cidade: seja a erotização de seus locais mais conhecidos, seja pela descoberta de novos espaços subversivos. Assim, a primeira recepção da obra levou à criação, criação que inclusive é parte importante do livro publicado com o ensaio fotográfico do artista. Após o lançamento de Paranóia, Roberto Piva foi procurado por Sergio Lima – autor de Amore, publicado no mesmo período pela editora de Massao Ohno. Sergio Lima retornara de uma temporada de participação no surrealismo francês, ao lado de André Breton, e tinha o objetivo de formar uma sucursal do movimento no Brasil. Roberto Piva e seus amigos, por sua vez, acompanhavam instantaneamente as publicações francesas e tinham amplo conhecimento das obras e autores ligados ao surrealismo. Desse encontro, derivado da leitura de Paranóia, surgiu o “Grupo Surrealista de São Paulo”, naquele mês de junho de 1963. Além de Sérgio Lima, Roberto Piva e Cláudio Willer, do grupo inicial participaram Antonio Fernando de Franceschi, Décio Bar, Roberto Rugiero, Regastein Rocha, Guilherme Faria e Ralph Camargo. Encontravam-se semanalmente num bar e realizavam leituras coletivas ou jogos surrealistas – como o cadáver esquix, em que os participantes escreviam versos sucessivamente ao acaso, resultando em combinações das mais inusitadas. Havia também pequenos delitos como pegar uma bebida de um mercado e sair sem pagar: atos considerados surrealistas por excelência. Havia também atentados. Na tarde de 28 de setembro de 1963, o grupo fulminou alguns “necrológios”, explosiva invenção de Cláudio Willer. Era a abertura da sétima edição da Bienal de São Paulo e foram distribuídos panfletos que comunicavam o “passamento” de artistas com os quais o grupo divergia. As atividades do grupo foram intensas e duraram alguns meses. No início de 1964, o grupo estava dissolvido. Por quê? Para Piva não havia grupo surrealista: eles saíam, bebiam e liam como sempre fizeram. Para Sérgio Lima, no entanto, a dispersão se deu por divergência: o grupo trazia outras discussões relacionadas à geração beat ou manifestações contemporâneas que estavam, em sua opinião, distantes da “perspectiva surrealista” e de sua “atuação específica”314. Claramente, Sérgio Lima queria um grupo que discutisse especificamente o surrealismo de forma sistemática, proposta muito distante da turma anárquica e dispersiva de Roberto Piva e cia. Mas essa já é uma outra história. A contrapartida dessa calorosa recepção de Paranóia por Wesley Duke Lee e Sergio Lima foi a frígida reação da crítica que, simplesmente, silenciou – numa época em que se dava grande destaque aos novos poetas. O silêncio pode ser visto como espanto, pois a verborragia e audácia do livro criaram grande ruptura com a produção literária brasileira até aquele momento. Mas também calou-se por preconceito. Thomaz Souto Corrêa, jornalista ligado à crítica literária do período, é direto: jamais dariam espaço na imprensa para um livro lançado no meio dos vagabundos do Teatro Oficina, por um rapaz homossexual315. Mas se o silêncio preponderou nos meios públicos de comunicação, no ambiente privado muito se cochichou. Ali se falou pelos cotovelos, no velho ti-ti-ti do chá das cinco. Durante um jantar, Emy, esposa de Paulo Bonfim, comenta com Willer quão estarrecida ficou com a linguagem baixa do livro que insultaria o

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LIMA, Sergio. Notas acerca do movimento surrealista no Brasil (da década de 20 aos dias de hoje). 2002. Disponível em: http://www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html . Acesso em: 04 jul 2010. 315 HUNGRIA, Camila; D’ELIA, Renata. Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. 255 p.


163 linguajar poético: “Willer, você é inteligente, como é que você admite uma coisa dessas, esses palavrões na poesia?”316. A subversão na vida e na poesia dificultaram a recepção pelos meios conservadores. Porém, se a crítica literária brasileira se calou, os ecos de Paranóia foram ouvidos na explosiva revista venezuelana El techo de la ballena, pelas mãos de Juan Calzadilla, e nada menos que a revista oficial do surrealismo francês La brèche: action surréaliste. Fiquemos com o texto “O surrealismo em São Paulo”, publicado na edição de novembro de 1965 desta última. Considerando que “as correntes artísticas e intelectuais mantêm estreita relação com as estruturas econômicas e sociais”317, o texto apresenta uma contextualização política do Brasil, de Vargas ao golpe militar. Posteriormente, dedica-se a dados da aventura surrealista no país, com acento às estadias de Benjamin Péret em São Paulo e Rio de Janeiro, bem como a interlocução entre Murilo Mendes e Francis Picabia. Contudo, salvo estes “casos isolados”, aponta-se a predominância de um “academicismo” flagrante nos meios artísticos brasileiros, do qual decorre uma “sabotagem intelectual” ao surrealismo, movida por “organismos oficiais, historiadores e críticos de arte”318. Tal conjuntura faz com que o surrealismo seja reivindicado por “espíritos mais subversivos”. Dentre eles, o texto destaca Roberto Piva (com Paranóia) Sergio Lima (com Amore) e Claudio Willer (com Anotações para um Apocalipse) como “a primeira vez que o Brasil dispõe de obras em que os autores reclamam abertamente pelo surrealismo”. Assim, as três obras são resenhadas brevemente, a exemplo de Paranóia: Paranóia é o primeiro livro de poesia delirante publicado no Brasil. Piva, cuja formação intelectual é profundamente marcada pela cultura italiana, inspira-se nos grandes clássicos da decadência, de onde provém a exuberância de imagens própria dos povos latinos. Freud e Lautreamont têm para ele grande importância. Enfim, a mais moderna literatura beat norte-americana lhe transmitiu a fascinação dos neons e a alucinação pela metrópole metálica evocada pelas fotografias de São Paulo inseridas e seu livro 319.

O texto ainda afirma o “silêncio” da crítica literária e mesmo uma suspeita retirada destas obras das vitrines das livrarias. Por fim, fala de certa tentativa de organização de poetas e pintores em “grupo”, muito embora tal atividade seja dificultada pelo contexto ditatorial. A curta aventura do Grupo Surrealista de São Paulo parece ser essa tentativa de organização grupal, feita por poetas que abertamente reivindicaram pelo surrealismo no Brasil. Daí Roberto Piva ser um dos únicos poetas brasileiros a constar no Dicionário Geral do Surrealismo, publicado na França em 1982. Daí a recepção da poesia de Piva estar muito associada nesta década de 1960 ao seu viés surrealista, especialmente aquele da poesia como um modo de vida subversivo. Daí ser uma poesia que encontrará caminhos alternativos de divulgação, distantes da grande mídia e dos órgãos literários de maior repercussão pública.

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Ibidem, p. 60. La Brèche: action surréaliste. n. 8, novembro de 1965. Disponível em: http://melusine.univparis3.fr/LaBreche/La_Breche_8.htm. Acesso em: 09 jan 2011. p. 126. 318 Ibidem, p. 127. 319 Idem. 317


164 2. De poeta “marginal” a “poeta homossexual-proletário” Após a publicação de Piazzas, de Roberto Piva, e Anotações para um Apocalipse, de Claudio Willer, em 1964, Massao Ohno interrompe o grande ciclo de lançamento de novos poetas. O próprio editor menciona quão visado estava sendo pela censura e temia represálias. Não é por menos, ambas as obras denunciam de forma audaz as práticas de torturas em instituições governamentais nos primeiros descalabros da ditadura brasileira. Deriva desse clima de censura um recesso nas publicações literárias que explica este primeiro grande intervalo na publicação de Piva – cujo próximo livro sairia apenas em 1976. Aliás, aceita-se com muita facilidade a ideia de que Roberto Piva produzia por “surtos” – como afirma Alcir Pécora320. Tal ideia negligencia as intempéries do contexto político e literário da época, que se impunham aos intempestivos surtos do poeta. Veremos quanto a produção de Roberto Piva foi constante e ininterrupta. Contudo, a comunicação com o grande público não dependia da vontade do poeta, mas do sistema literário que, como na época de ditadura, não oferecia oportunidades de publicação a criações extremamente subversivas. No início da década de 1970, a produção poética de Roberto Piva encontra público nos meios ligados à juventude roqueira. Em seus textos publicados na revista Artes:, o poeta faz as vezes de crítico literário, entrevistador e agitador cultural, versando também sobre uma variedade de matérias (artes plásticas, música e literatura). Como profeta do rock, redigiu materiais de afirmação de suma importância histórica para a juventude, em um contexto em que ainda se questionava a legitimidade artística da música pop no Brasil. Como poeta, publica o importante poema “Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?”. Vejamos um trecho do poema:

(...) um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida pelo vento / os telefones do mundo começam transmitir mensagens eróticas / as janelas explodem em sinfonia o mundo é um maravilhoso lugar para se nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu acredito como Whitman no corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos / eu tenho muitas verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado nos teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches / ostras / latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny Winter numa tarde de sol de fevereiro em São Paulo!321

O poema retrata o entusiasmo diante da cena musical jovem, com fortes rompantes beats e diálogos com Walt Whitman e Allen Ginsberg. Este último comparece implícito em “sandwiches” e girassóis, e explicitamente na interrogação: “Que correnteza nos levará à deriva hoje?”, similar à “Aonde vamos, Walt Whitman? [...] Que caminhos aponta tua barba esta noite?”, verso de Um Supermercado da Califórnia322. O mesmo intertexto já estava presente na Ode a Fernando Pessoa de Roberto Piva (“Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta noite?”323 ou em Paranóia, referindo-se a Mário de Andrade (“Que novo 320

PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2006. p. 9. 321 PIVA, Roberto. Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?. Revista Artes:, São Paulo, Ano VII, n. 35, 1972, p. 3. 322 GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1956/2005. p. 49. 323 PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 21.


165 pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?”324. A proximidade com a contracultura beat fica evidente também no final do poema, em menções pioneiras à poesia corporal de Michael McClure – com o qual se corresponderia nesta mesma década. De forma clandestina e underground, Roberto Piva atinge grande penetração nos meios jovens ligados à contracultura, como entre os leitores de fanzines alternativos – como a revista Patata – na qual o poeta colabora no ano de 1973. Por essas vias subterrâneas, a poesia de Roberto Piva encontrou grande recepção entre os jovens subversivos do que se convencionou denominar como “poesia marginal”. Com poemas de seu livro Paranóia, o poeta paira como presença estranha na antologia 26 poetas hoje (1976), cujo material foi selecionado por Heloisa Buarque de Holanda, Chico Alvim e Cacaso. Isto porque Roberto Piva não compunha o grande movimento artístico em torno da Nuvem Cigana, tampouco comparece com materiais daquela década de 1970. É obscuro o motivo da participação de Piva na antologia. Da perspectiva política, o argumento de Heloisa é de que tais poetas constituem vozes dissonantes no contexto repressivo da ditadura – como “filhos da ditadura” ou “geração AI5”325. Não é o caso de Roberto Piva, poeta pertencente aos Novíssimos de 1960, cuja produção de Paranóia responde a um contexto histórico anterior à ditadura – muito embora também denuncie a seu modo os policiamentos morais e afirme a via transgressora. Sob o aspecto literário, não há qualquer confluência da dicção poética de Paranóia com seus volteios surreais, com aquela busca de poetas marginais por um coloquialismo típico do modernismo brasileiro – especialmente o instantaneísmo oswaldiano. Assim, não havendo diálogo de movimento artístico, literário e político, qual o motivo da participação de Roberto Piva na antologia? Chacal é certeiro: “Piva era o único que trazia um comportamento transgressor”326. É na poesia como modo de vida subversivo que tais poéticas se identificam. O que Roberto Piva chamou de poesia experimental amalgamada à vida experimental, ou aquilo que Heloisa Buarque de Hollanda coloca como ponto comum entre os “marginais”: a “elaboração literária da matéria vivenciada”327. A opinião de Franchetti é emblemática: Roberto Piva foi assimilado à “poesia marginal” por não se enquadrar em nenhuma das correntes literárias da década de 1960 (“concretos”, “poesia politicamente comprometida” ou o “beletrismo neoparnasioano”)328. Por contraditório que pareça, a inclusão entre os “marginais” foi forma de tirá-lo da marginalização. Piva recusa o rótulo, mas reconhece a importância da boa recepção entre poetas jovens da geração seguinte que tinham uma vida poética potente. E lá estava Roberto Piva no Parque Lage, no dia 14 de julho de 1976, para o lançamento da antologia. O vídeo “Noite Acesa”, de Luiz Alphonsus (1976), dá movimento ao que foi aquela

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PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. 325 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Posfácio. Em: ______. 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. p. 261. 326 COHN, Sergio. Nuvem Cigana: poesia e delírio no Rio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007. p. 102. 327 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Apresentação. Em: ______. 26 poetas hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1975/2007. p. 11. 328 FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia: Ateliê editorial, 2007. p. 286.


166 noite329. Uma juventude alucinada ao som de guitarras distorcidas e uma névoa de fumaça de estranhos cigarros. No vídeo, Piva faz uma aparição chistosa: nitidamente inebriado, sobe ao palco atrapalhado procurando onde havia deixado os poemas para sua leitura. O fato é que o rótulo de Piva como poeta marginal se impõe a partir de meados de 1970, e permanece em alguns meios até hoje – a julgar pela divulgação do evento “Epivanias”, em que Gabriel Fabri apresenta o poeta como “um dos mais expressivos nomes da poesia marginal no Brasil”330. Quanto à recusa da designação, a questão de Piva não é com os poetas marginais, mas com a crítica literária. Piva leva uma vida que pode bem ser compreendida como marginal. Mas o poeta salienta quão marginalizado foi – referindo ao boicote da crítica. Assim, afirma que não é poeta “marginal”, mas “marginalizado”: “Eu não me marginalizei. Fui marginalizado”331. De novo em vórtice paradoxal, a relação entre Roberto Piva e o movimento carioca aponta como Piva foi “marginalizado” entre os marginais. Salta aos olhos, por exemplo, o espaço da poesia de Piva na “Escrita Revista Mensal de Literatura”, em comparação aos marginais. No número 11 da revista, de abril de 1976, publica-se o poema “O coração absoluto em canteiros & navalhas”, de Roberto Piva em parceria com Henrique Carneiro. O poema consta na seção de “Novos: poemas”, ou seja, na parte da revista dedicada a novos poetas! Roberto Piva é apresentado como “paulista de Brotas” – talvez porque a linha editorial quisesse ressaltar seu incentivo a criações do interior do Estado. Esta posição marginal de Roberto Piva contrasta com o grande destaque dado à vinda dos poetas marginais cariocas na capa da edição de abril de 1977: “A vez dos marginais”. Na longa entrevista, Roberto Piva sequer é mencionado. O poeta não tem vez entre os marginais. O fato é que o grande furor em torno dos marginais reacendeu o mercado editorial e Massao Ohno retomou sua atividade a pleno vapor. O número de publicações foi tão grande que convidou Claudio Willer para organizar um lançamento coletivo que, insuflado com os ventos da juventude açoitada pela repressão militar, tomou o vulto da Feira de Poesia – evento com grande significado político nas manifestações pela redemocratização do país. Na Feira, Roberto Piva lança seu Abra os Olhos e Diga Ah!, obra que reflete uma forte guinada política em sua criação poética. A expressão “política do corpo em chamas”332 aponta o centro da política contemporânea no corpo, seja aquele crivado de balas pela repressão ou ardendo nas chamas do amor, em resistência erótica à sociedade disciplinar. A repercussão da Feira de Poesia foi tão grande que Claudio Willer continuou seu ímpeto na organização de recitais, juntamente com Ruth Escobar, sobre poetas revolucionários (como Pablo Neruda) ou vítimas de estados totalitários (como Garcia Lorca). Nesses recitais, Roberto Piva lia poema dedicado “aos presos políticos do Brasil. Contra a tortura, pelas liberdades

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ALPHONSUS, Luiz. Noite Acesa. 1976. Super-8. FABRI, Gabriel. Evento promove imersão ao imaginário de Roberto Piva. Em Cartaz, n. 72, outubro de 2013, pp. 55. 331 A voz da transgressão. Entrevista concedida à Revista Época. 2005. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG72087-6011-389,00.html. Acesso em: 16 out 2006. 332 PIVA, Roberto. Abra os olhos e diga Ah!. Em: ______. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1976/2006. p. 28. 330


167 democráticas”333. Em diálogo (dissidente, por sinal) com meios ligados à esquerda, o poeta encontra público entre os cidadãos em luta por direitos sociais. A convite de Willer, editor de sua seção de poesia, Roberto Piva contribui no revolucionário “Versus – jornal de política, cultura e idéias”, durante o ano de 1978 – e depois, em continuidade a sua coluna Meditações de Emergência, à revista Singular & Plural. Em suas páginas, Roberto Piva produz poemas com temas e vocabulário típicos da esquerda, ao que o próprio Claudio Willer denominou como “poesia social”. Em “O Mississipi no Amazonas”, por exemplo:

(...) gostaria de ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes proletários se dependurarem nos cipós do Ocidente & aterrorizarem nos salões de banquetes como Tarzans enquanto o Burguês-Inseto recolhe as asas & faz cocô branco de sustoImpotência & úlceras pépticas na cristalização de química imperfeita-purgatório-fêmea & bicha de boite334.

Com o termo “proletário”, Piva introduz expressão conceitual típica dos marxismos. Esses adolescentes surgem como força ativa da transformação social – numa figura ao mesmo tempo erótica e selvagem, o Tarzan – em contradição com a burguesia como classe social conservadora (simbolizada pelo público homossexual frequentador de casas noturnas especializadas). A atividade de uns e a passividade de outros responde ao espectro político e à posição na cama, em uma junção entre o erótico e o político. Com as expressões “proletário” e “burguês” figurando uma luta de classes, estaria Roberto Piva lançando mão de uma visão dialética da história? Além do público da Versus, a poesia de Roberto Piva teve grande penetração nos meios revolucionários jovens, especialmente na Libelu (Liberdade e Luta) – grupo trotskista atuante no movimento estudantil e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Ali, Roberto Piva era poeta reconhecido e considerado ativista da área cultural. Dessa recepção na Libelu derivou a publicação da segunda edição de Piazzas, em 1981, pela Kairós – editora do movimento, com coleções voltadas ao pensamento socialista (em especial de Trotsky). Naquele mesmo ano de 1978, o poeta teve ainda poemas publicados no número inaugural da Caderneta de Poesia, da combativa editora Brasiliense – número em “homenagem aos movimentos de libertação nacional dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique”. Porém, foi no interior do movimento de luta pelos direitos sexuais que Roberto Piva teve maior repercussão. No órgão gay Lampião da Esquina, a obra recém publicada do poeta (Coxas, 1979) é divulgada insistentemente nas edições do jornal como “o melhor exemplo da nossa poesia”335. Não é para menos, Coxas começa com a descrição de sexo entre garotos no Alto do Copan: “O adolescente ajoelhou-se abriu a braguilha da calça de Pólen & começou a chupar”336. 333

PIVA, Roberto. O hino do futuro é paradisíaco. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 23, julho/agosto, 1978, p. 36. 334 PIVA, Roberto. O Mississipi no Amazonas. Versus – um jornal de política, cultura e idéias, n. 20, abril/maio, p. 30, 1978b. 335 Jornal Lampião da Esquina. Ano 2, n. 15, agosto de 1979, p. 17. 336 PIVA, Roberto. Coxas: sex fiction & delírios. São Paulo: Feira de Poesia, 1979.


168 A obra recebe ainda resenha de Glauco Mattoso337, salientando o tom homoerótico do poeta maldito ligado à contracultura. Com o próprio Glauco Mattoso, além de João Silvério Trevisan, Roberto Piva participou de uma mesa de debates sobre o movimento gay – no dia 8 de fevereiro de 1979, na Universidade de São Paulo, na semana das chamadas “minorias”. Roberto Piva é apresentado como “poeta homossexual-proletário” e toma a palavra para dizer que nos países do “bloco socialista” – como Cuba, Moçambique e Leste Europeu - há grande “liberdade sexual”338. O poeta roqueiro que inicia a década divulgando suas produções em meios juvenis de música pop, passa a ser vinculado ao movimento da poesia marginal e finda o período flertando com os meios de esquerda como “poeta homossexual-proletário”.

3. “O maior poeta brasileiro da atualidade” A atividade política de Roberto Piva teve ainda ressonâncias no nascente ativismo ambientalista brasileiro, em torno do Movimento Arte e Pensamento Ecológico. Fortemente marcado pela interface entre ecologia e estética – como as performances impactantes de Miguel Abellá –, o movimento publicou em seu boletim diversos manifestos de Roberto Piva, desde 1983. Materiais como “Manifesto da selva mais próxima” ou “Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio” dão conta dessa pegada que atrela o ecológico ao poético e ao selvático. Este último é iniciado da seguinte maneira: “Eu defendo o direito de todo ser Humano ao Pão & à Poesia. Estamos sendo destruídos em nosso núcleo biológico, nosso espaço vital & dos animais está reduzido a proporções ínfimas”339. No vórtice de sua poética se emaranham a esfera estética e uma utopia enfatizada em termos ecológicos. Outro desses manifestos, o fulgurante “O século XXI me dará razão (se tudo não explodir antes)”, foi publicado ineditamente na principal recepção da poesia de Roberto Piva durante a década de 1980: o ambiente beat e anárquico da editora L&PM. Em meio à Coleção Rebeldes & Malditos (que trouxe autores como Baudelaire, Rimbaud e Artaud), ou a “Alma Beat” (com Kerouac, Ginsberg, Corso e cia.), Eduardo Bueno (Peninha) convida alguns “malucos” para lançar uma coleção de rebeldes à moda da casa: os “livros marginais” que compuseram a Coleção Olho da Rua340. Nesta coleção, Roberto Piva tem sua primeira antologia de poemas publicada de forma entusiasmada por mais uma nova geração de grandes poetas, tradutores e editores. O Roberto Piva dessa metade da década de 1980 é aquele mesmo que abandonou todas as esperanças revolucionárias da década de 1970: “eu abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras / combinações”341. No mesmo 20 poemas com brócoli, o poeta aponta onde sua deriva em altomar o levou: “fazer da anarquia um método & modo de vida”342. Os poemas da antologia são 337

MATTOSO, Glauco. O poeta das coxas. Jornal Lampião da Esquina, Ano II, n. 16, setembro 1979, p. 17. DANTAS, Eduardo. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP. Jornal Lampião da Esquina, Ano 1, n. 10, março de 1979, p. 09. 339 PIVA, Roberto. Manifesto utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio. Boletim Arte e Pensamento Ecológico, n. 18, março 1983, pp. 12-13. p. 12. 340 L&PM. Era uma vez... uma editora. 2011. Disponível em: http://www.lpm-blog.com.br/?tag=colecaoolho-da-rua. Acesso em: 22 dez 2012. 341 PIVA, Roberto. 20 poemas com brócoli. Em: ______. Mala na mão & asas pretas – obras reunidas volume II (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1981/2006. p. 115. 342 Ibidem, p. 111. 338


169 também dedicados à “Anarquia” e contam com a inspirada apresentação dos editores, intitulada “O profeta da desordem”343. Nela, Roberto Piva surge como personagem anárquico (em “permanente insurreição contra todas as Ordens”), subversivo (“prisões, com o desemprego permanente, LSD e cogumelos sagrados, jazz & rock, paixão, delírios e garotos”) e levando uma vida experimental com sua poética “maldita, conturbada”. Pela primeira vez, Roberto Piva tem reconhecidas as rupturas de sua linguagem poética dentro do contexto literário nacional: “Na verdade antes dele ninguém ousava escrever poesia dessa forma no Brasil. Ninguém rompera tão radicalmente com a escritura acadêmica e cerebral”. Por fim, de maneira triunfante, Roberto Piva é aclamado como “o mais indômito, o mais rebelde e um dos mais inspirados poetas brasileiros das últimas décadas”. Falta ainda a valorização da importância axial dessa antologia no reconhecimento da poesia de Roberto Piva. Seja pela reunião de materiais feita pelo próprio poeta, seja pela crítica consistente que apresenta, a antologia é dos principais cartões de visita de Roberto Piva. Sua publicação proliferou a poesia de Piva pelos meios libertários e abriu novas picadas para sua poética selvagem. Com a resenha de Régis Bonvicino (“O boêmio Piva não tem papas na língua”, 1985) já há uma crítica ao equívoco da inclusão de Piva na “Poesia Marginal”, além da afirmação de seu viés “beat/surrealista” com inserção exaltada no interior da literatura nacional: “...parece dizer que veio para reinaugurar a utopia da própria poesia. Da poesia libertadora, que sai do papel para ter existência real no dia-a-dia humano”344. Com a entrevista a Carlos von Schmidt345 há comentários fundamentais de Piva sobre toda sua obra poética. Com a aproximação de Floriano Martins, abrem-se as brechas para o papel de Piva no interior das manifestações surrealistas na América Latina. E foi exatamente um poeta latino-americano quem ajudou a disseminar poesia de Roberto Piva em outros países do continente. No exemplar autografado a Nestor Perlongher, Piva escreve: “Para o Nestor, com o abraço anárquico & antológico do Roberto Piva. Irmão em Universo”. O adjetivo antológico diz um pouco sobre a importância da publicação para o poeta. O virulento anarquista argentino também daria grande importância à poesia de Piva, em especial no tratamento transgressor da sexualidade. Perlongher vivia no Brasil desde 1982 e dava aqui prosseguimento à sua aguerrida militância nos movimentos homossexuais, com sua pesquisa sobre os michês. Por intermédio desse poeta e de outros mais, a antologia levaria a poesia de Piva para publicações alternativas argentinas, como o caso da mitológica revista Cerdos & Peces. Além do manifesto anárquico e libertino O Erotismo dará o golpe de estado (1987), ou da entrevista O agitador da transgressão (1987), basta dizer que Roberto Piva é apresentado na revista argentina como “el mayor poeta brasileño de la actualidad”!346 No mesmo período da Cerdos & Peces, Roberto Piva também ganha grande projeção nacional em suas contribuições na Revista Chiclete com Banana – ao lado do mesmo Angeli com o qual publicara na Revista Patata. Angeli e Toninho Mendes seriam outros artistas jovens

343

L&PM. O profeta da desordem. Em: PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1985. BONVICINO, Régis. O boêmio Piva não tem papas na língua. Folha de São Paulo, 02.06.1985. 345 VON SCHMIDT, Carlos. Amor, loucura, drogas (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1985/2009. pp. 54-69. 346 PIVA, Roberto. Animales Miserables. Cerdos & Peces, n.19, 1989, p. 27. 344


170 influenciados por Piva, uma vez que consideravam a presença do poeta como “um verniz intelectual à revista”347. Em sua estreia na revista, na edição 15, republica-se, como editorial, o manifesto “O século XXI me dará razão (se tudo não explodir antes)”. A perspectiva ecológica é marcante, inclusive no título da seção (“Sindicato da Natureza”), assumindo mesmo feições panfletárias. Na edição de número 19, de 1989, o texto de Roberto Piva começa da seguinte maneira: “Temos de ter sempre presente na memória: Na fase avançada da produção em massa, uma sociedade produz a sua própria destruição”348. O poeta está irreconhecível: adota uma linguagem discursiva (sem imagens ou cores) e um tom programático, com receituários do comportamento ecologicamente correto. Ainda na década de 1980, pode-se mencionar a participação de Roberto Piva no filme Heróis da decadensia (1987), do jovem cineasta Tadeu Jungle. O poeta surge bebendo cerveja na Serra da Cantareira, falando em orgias e LSD, além de esbravejar blasfêmias contra o cristianismo. Tais cenas são entrecortadas com falas de Dom Paulo Evaristo Arms, reforçando a presença do poeta “herói” como o próprio anticristo. Neste mesmo ano de 1987, Roberto Piva publica seus primeiros poemas xamânicos (“VII cantos xamânicos”) em mais uma boa recepção de sua poesia em veículos ousados: o jornal Verve, editado no Rio de Janeiro por Claudia Roquette-Pinto. É um período em que a poesia de Piva também encontra ressonâncias em poetas como Rodrigo Garcia Lopes, com o qual mantém relações amistosas a partir do interesse de ambos em poetas beat estadunidenses. Assim, durante a década de 1980, a poesia de Roberto Piva expande suas fronteiras para todo o país (com a L&PM ou Chiclete com Banana) e mesmo para a América Latina. A recepção de sua poesia ganha um tom crítico de reconhecimento da produção do poeta no âmbito da literatura nacional. Por influência dos próprios temas de sua poesia, Roberto Piva passa a ser vinculado à Ecologia e à Anarquia.

4. O xamã Após a boa maré de 1980, a recepção da poesia de Roberto Piva entra em refluxo no início dos anos 1990. Desde 1982, o poeta acumulava poemas de suas experiências mágicas nas matas do interior do Estado de São Paulo. Nas entrevistas concedidas a Ademir Assunção e Miguel de Almeida, em 1991 e 1993, respectivamente, o poeta menciona a existência de um livro pronto, Ciclones, que aguardava oportunidade de publicação. No dia 21 de fevereiro de 1994, Roberto Piva recebe o pesquisador Claudio Roberto da Silva em seu apartamento. O historiador desenvolvia um estudo sobre a atuação política do movimento homossexual, a partir da narrativa de histórias de vida de alguns ativistas. Entre eles, o poeta foi escolhido por suas colaborações no Lampião da Esquina. Roberto Piva desabafa:

Prefiro viver os poemas do que escrevê-los... porque dá muito trabalho. Eu não sei escrever à máquina e preciso chamar alguém que fica três horas para bater os poemas.

347

HUNGRIA, Camila; D’ELIA, Renata. Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. p. 159. 348 PIVA, Roberto. Sindicato da Natureza. Chiclete com Banana, n. 19, julho 1989, p. 26.


171 Tenho uma máquina quebrada e não tenho dinheiro para mandar consertar, assim ficam elas por elas. Estou com dois livros parados por causa desses problemas...349

A poesia de Roberto Piva, porém, constava em breve antologia do anarquista Edson Passetti, em Das fumeries ao narcotráfico350, como exemplos de expressões artísticas sob efeito de alucinógenos. Este mesmo livro foi lido por jovens rebeldes como Sergio Cohn, que correu a cidade à procura de Paranóia. Numa noite de setembro de 1993, os jovens poetas criadores da revista Azougue encontram pessoalmente com Roberto Piva, iniciando com ele profunda amizade. Nos vários depoimentos de Sergio Cohn, especialmente no livro Roberto Piva, publicado na coleção Ciranda de Poesia351, pode-se observar a importância do autor de Paranóia na formação dessa nova geração de poetas e editores. Nas longas tardes que passavam juntos, Roberto Piva lia e traduzia simultaneamente uma variedade de poetas franceses e italianos, além de comentar detalhadamente obras como Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Sergio Cohn chega a comparar essas tardes com uma formação superior, uma “escola”. E o mestre Roberto Piva lia e comentava os poemas de Cohn, Danilo Monteiro e cia., chegando mesmo a mencionar seu entusiasmo em organizar uma antologia da poesia jovem, com o nome emprestado de Pasolini: “A Voz Violenta da Novíssima Poesia Brasileira”352. As relações entre este encontro com Roberto Piva e a revista Azougue já foi tema de pesquisa científica353. Foi a principal recepção da poesia desse xamã durante a década de 1990. No ano de 1996, a revista traz um especial com Roberto Piva com ampla antologia e materiais inéditos – como o “Manifesto da poesia xamânica & bio-alquímica”. Foi por intermédio dessa publicação que Roberto Piva finalmente encontrou editora para sua obra Ciclones, a partir de seu impacto em outro importante poeta contemporâneo, Fabio Weintraub. Os meandros da organização do material para o livro são elucidativos. Sergio Cohn os digitou com Roberto Piva e participou mesmo da seleção de materiais e concepção do livro. A constatação foi drástica: o amplo material – que havia crescido muito desde a primeira menção à obra então concluída, na entrevista de 1991 a Ademir Assunção – daria para três livros distintos. No entanto, temendo não haver outra oportunidade de publicação, Roberto Piva decide uni-los no mesmo livro. Aos toques do tambor mágico e cercado por jovens criativos, o poeta se afirma como xamã, seja na performance na Funarte (1996), ainda antes da publicação de Ciclones, seja nos recitais para a divulgação do livro. As participações de Roberto Piva na Poesia Sempre – revista semestral de poesia, em meados de 1997, selam o reconhecimento de sua poesia.

349

SILVA, Claudio Roberto da. Reinventando o sonho – história oral de vida política e homossexualidade no Brasil contemporâneo. 1998. 674fs. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. p. 319-320. 350 PASSETTI, Edson. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo: EDUC, 1991. 154 p. 351 COHN, Sergio. Roberto Piva. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. 81 p. (Coleção Ciranda da Poesia). 352 COHN, Sergio. O capitão loucura. Folha de São Paulo, 1996. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2006201008.htm. Acesso em: 03 fev 2013. 353 BERLANDA, Ibriela Bianca. A revista Azougue e o poeta Roberto Piva: o saque e a dádiva. 2011. 284 fs. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.


172 Ao final desta mesma década, Roberto Piva escreveria textos no lançamento do livro do amigo Zé Celso (Zé Celso – Primeiro Ato, 1998) ou de Glauco Mattoso (na orelha de Geléia Rococó – sonetos barrocos, 1999). São os momentos que antecedem o estouro em torno da reedição de Paranóia, em 2000, cujos efeitos ainda se fazer sentir na multiplicação de pesquisas científicas, ensaios críticos, documentários cinematográficos, materiais inéditos e depoimentos disseminados na internet. Em síntese, o breve sobrevoo na recepção da obra poética de Roberto Piva observou o acento da década de 1960 em sua relação com a aventura surrealista. Na década de 1970 foi ressaltada sua retomada pela juventude da contracultura, especialmente pela “poesia marginal” carioca. Os contornos políticos mais evidenciados em sua produção poética redundaram na recepção por meios revolucionários e de luta por direitos sociais no final de 1970 (especialmente nos movimentos gay e ecológico). Na década de 1980, a poesia de Piva irradiou para diversas direções, com acento na antologia da editora L&PM e nas revistas Chiclete com Banana e Cerdos & Peces. Após breve refluxo, os meados da década de 1990 viram o impacto da poesia de Roberto Piva em mais uma nova geração de poetas (azougueiros), além da afirmação de sua poesia xamânica.




175

Poesia da experiência vivida & a experiência vivida da poesia

Já foi dito que a tal intertextualidade é um procedimento abundantemente utilizado pelo poeta Roberto Piva – em epígrafes, citações, alusões, etc. Seus poemas estão recheados de figuras encarnadas, sejam de poetas, filósofos ou místicos. O presente ensaio versa sobre essa faceta da criação poética de Piva, aventando a possibilidade de não ser um recurso de criação literária, mas um modo de vivenciar a poesia. Não um encontro frio e fortuito de letras escritas, mas um toque inscrito nos corpos. Paranóia (1963), livro de estreia de Piva, é um verdadeiro passeio pela cidade de São Paulo, acompanhado por seus amigos, “os tenebrosos vagabundos”, presentes desde Ode a Fernando Pessoa (1961). Além desses amigos, no entanto, surgem em suas andanças poetas de diversas épocas que saltam das páginas para a vivência concreta. Marcelo Veronese354, por exemplo, destaca dezenas de intertextos com Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Allen Ginsberg, Pablo Neruda, Murilo Mendes e Jorge de Lima. No entanto, o intertexto de Piva frequentemente vai além da relação com apenas um autor. São referências cruzadas, com a vivência de imagens a partir da fusão de poéticas de épocas distintas. Vejamos a bela imagem de Paranóia, em que se encontram Ginsberg e Apollinaire: Piva: “... costureiros arrancavam os ovários dos manequins”355. Apollinaire: “Este comerciante tinha cortado algumas cabeças / De manequins vestidos como um dia me vestirei”356. Ginsberg: “Ó, mãe / adeus / [...] com seus olhos de ovários arrancados”357. Vê-se que Piva vivencia uma imagem em suas alucinações de 1961 que quase funde os manequins de Apollinaire com os olhos paranoicos da mãe de Ginsberg – olhos de ovários arrancados. Óbvio que não se trata de procedimento simples. Pouco importa aqui se Piva quis sacanear, fazer um jogo com versos. Ou se as imagens operaram suas associações em nível inconsciente. Quando observamos que Piva viu em suas alucinações os costureiros que arrancavam os ovários dos manequins, os viu a partir dos olhos paranoicos de Naomi (mãe de Ginsberg, a quem dedica o longo poema), e a partir das experiências de Apollinaire na graça da rua industrial. Falamos então em um procedimento estético de criação, ou em uma vivência concreta da realidade, fundida às imagens que saltam das frias páginas e são vistas nas andanças do poeta pela cidade?

354

VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. A intertextualidade na primeira poesia de Roberto Piva. 252 fl. Dissertação (mestrado) – Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – Campinas, 2009. 355 PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30. 356 APOLLINAIRE, Guillaume. Àlcoois e outros poemas. (Daniel Fresnot, trad.) São Paulo: Martin Claret, 1913/2005. p. 79. Do original: “Ce commerçant venait de couper quelques têtes / De mannequins vêtus comme il faut qu'on se vête”. 357 GINSBERG, Allen. Kaddish e outros poemas. Em: GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 1961/2005. p. 103.


176 Outras imagens cruzadas surgem. É sabido o quanto o poeta Walt Whitman influenciou a poesia moderna. O bronco abria seu corpo para a multidão, se fundia às pessoas, animais, cores, situações – perdendo os contornos precisos de um Eu que agora era palco dissolvido nos outros. Há diversos intertextos de Piva com Whitman em Ode a Fernando Pessoa, ali incluindo outro poeta bastante influenciado por Whitman, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos – como observei em outra oportunidade358. Mas o poeta cosmos não era referência apenas de Piva. Em Nova York, Garcia Lorca (1929-30) escreve uma série de poemas em que os pelos da barba de Whitman são encontrados aqui e ali entre seus versos. Em sua “Ode a Walt Whitman”, Lorca escreve sobre o poeta americano: Que anjo leva oculto na bochecha? Que voz perfeita dirá a verdade do trigo? Quem, o sonho terrível de tuas anêmonas manchadas?359 Em Ginsberg, Whitman aparece em um supermercado da Califórnia lançando olhares aos garotos da mercearia: Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?360 Piva, referindo-se a Mário de Andrade, o imagina dialogando com os “adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos”, no Parque do Ibirapuera: Eu te imagino perguntando a eles: onde fica o pavilhão da Bahia? qual é o preço do amendoim? é você meu girassol?361 Os versos de Piva dialogam mais exatamente com os de Ginsberg. Mais do que brincadeira entre versos, Piva coloca sua poesia na esteira de Mário de Andrade, da mesma forma que Ginsberg a Whitman. O elo parece ser a sexualidade ou a pansexualidade forte nos dois poetas norte-americanos, enrustida em Mário e escancarada em Piva. Mas ao colocar-se nessa linhagem poética de Mário, inclui também Whitman (que influencia também a Mário, Ginsberg e o próprio Lorca). Poderíamos divagar ainda bastante: o anjo presente em Lorca, e replicado em Ginsberg, é transformado em girassol em Piva, seja por ser signo da pederastia de Mário de Andrade, seja pela importância da flor na poesia de Ginsberg – que, por sua vez, dialoga com as anêmonas de Lorca (outro vegetal que simboliza o sagrado em tradições místicas). Há um jogo entre trigobanana-amendoim, especialmente a questão dos 5 milhões de porcos que Lorca fala serem consumidos diariamente em Nova York. A relação entre as margens do Rio Hudson, o Supermercado na Califórnia e o Parque do Ibirapuera, daria pano pra maga.

358

MATTOS, Ricardo Mendes. 50 anos de rebelião poética em Roberto Piva. Banda Lusófona, 2011. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLrobertopiva03.htm 359 tradução livre do original: “¿Qué ángel llevas oculto en la mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus anémonas manchadas?” 360 Em tradução de Claudio Willer do original: “I heard you asking questions of each: Who killed the pork chops? What price bananas? Are you my Angel?”. 361 PIVA, Roberto. Paranóia, op. cit., p. 65.


177 Whitman retratado por Lorca, que é parafraseado por Ginsberg, que é parafraseado por Piva. É uma orgia, não frio “diálogo intertextual”. Agora, mais do que dissecar os versos, expediente tão desprezado por Piva, cabe saber o que se cria com esse procedimento. É óbvio que a menção a um ou outro poeta remete a uma afinidade entre as vidas poéticas – no caso apreciado, especialmente da homossexualidade. Explicita a relação entre poetas que se inscrevem, às vezes, na ordem de pertencimento a uma genealogia poética. Não puramente uma filiação a esta ou aquela escola literária – o que era repugnante para Piva, que sempre criticou as “vanguardinhas de colégio de freira”. Mas, exatamente uma dica de atualização, ou re-criação a partir de diálogos vividos-poéticos. No tão estudado diálogo intertextual com Mário de Andrade, por exemplo, fica clara uma proposta de diálogo com o modernismo brasileiro, o que permite a Willer falar que Paranóia “moderniza nosso modernismo”362 com a rebelião surrealista; ou enfoca aspectos da obra de Mário (sexualidade) e de Oswald (primitivismo e antropofagia) de maneira distinta da apropriação desses autores feita pelos concretistas (conforme enfatiza Cámara363). Por outro lado, o diálogo intertextual pode ser avaliado como um procedimento da própria criação literária – como uma forma técnica na composição de versos. Nessa perspectiva, a intertextualidade não implica em mera reprodução de conteúdo, mas o amplia, conferindo sentidos inusitados ou novos à relação estabelecida – como parece ser a opinião de Veronese. No entanto, uma proposta mais ousada, já mencionada em texto sobre crime e poesia em Piva364, parece ser aquela influenciada por Lautréamont – em seus poemas com inversões de orações e preceitos morais, especialmente de Pascal, mudando-lhes completamente o sentido. O intertexto surge ali enquanto “criação poética como crime autoral”. Ou seja, criação por plágio, crime autoral, de forma deliberada, com o intuito de assassinar o autor. Poesia feita por todos, como uma força que atravessa os corpos, sem reproduzir o Ego/Eu (autor). Como a virulência pagã dos deuses como forças estrangeiras que atravessam os corpos, justamente para despedaçar os suspiros do ego convalescente. Essa vivência pagã e anti-moderna, antihumanista, cabe bem aos dois poetas. Neste mesmo texto, no entanto, fizemos pequena menção à outra possibilidade. Quando Piva ressalta em entrevista a Floriano Martins sobre a influência de Dante em sua criação, não fala de Dante enquanto poeta, ou menciona processos estilísticos ou literários. Fala que ele, Piva, era um personagem de Dante que “saltou fora da obra para deixar a realidade em completa desordem”365. Aqui não há mera menção a personagens do Inferno, mas uma espécie de possessão real da figura literária. Como o exemplo de Ginsberg que, em poema que homenageia Whitman, vê Lorca em um supermercado na Califórnia, o mesmo Lorca que Piva encontrou em um hospital da Lapa, ou que espera seu dentista na Praça da República. Novamente, não é qualquer procedimento literário de Lorca, mas o próprio poeta que surge como presença (viva) - não representação (literária). 362

WILLER, Claudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 153. 363 CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa (Argentina), n. 14, dezembro 2010, pp. 25-37. 364 MATTOS, Ricardo Mendes. Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heroicas & assassinas. Zunái Revista de Poesia & Debates, ano VI, edição XXIII, setembro de 2011. Disponível em: http://www.revistazunai.com/ensaios/ricardo_mendes_mattos_robertopiva.htm 365 MARTINS, Floriano. Roberto Piva: o banquete do poeta. In: MARTINS, Floriano. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras, 2001.


178 Piva é inequívoco: “Existem dois tipos de leitores: um que acumula, enciclopedicamente, conhecimento na cabeça, e isso não serve para nada. E o outro, que transforma aquilo que lê em seu sangue. Eu sou um leitor desse segundo exemplo. Tudo aquilo que li transformei em minha vida” – em entrevista a Paulo Mohylovski366. Aqui também um intertexto com Zaratrusta367. Ou seja, Piva como leitor transformava em vida o que lia, em uma fusão do que se lê e vive. Transformar em sangue é alcançar o espírito de quem escreve. Dessas últimas reflexões podemos falar que em Piva não há mais intertextualidade, mais intervivências. O poeta não celebra apenas o “poder da própria literatura”, como quer Pécora: “É literatura embebida em literatura, que respira literatura, que fala o tempo todo de literatura”368. Para Piva vivenciamos o fim da poesia enquanto literatura. Trata-se de poesia que corre no sangue: poesia vivida. Veja o que o próprio poeta fala, em entrevista a Carlos Roque: “O importante não é a literatura em si, uma vez que a literatura é importante apenas enquanto serve a vida e expande esse conceito de vida até o limite de seu absurdo369”. Não o poder da literatura, mas o poder da vida! Muito se fala sobre síntese entre vida e poesia (de extração romântica, surrealista, beat, etc.). É a vivência visceral do que alguns chamam de “real” com o que outros chamam de “imaginário”. Síntese do real e literal. Um poema vivido não é diferente de um local “real” em que o autor passava. Ambos são intensamente vivenciados pelo poeta. Os comerciantes que arrancam as cabeças dos manequins, os olhos de ovários arrancados da mãe de Ginsberg ou om os manequins com os ovários arrancados de Piva são todos tão “reais” (ou tão “imaginados”) como quaisquer desses que vemos nas vitrines, fazendo careta para a eternidade. Mas essa síntese normalmente se refere à vida do poeta que comparece em sua poesia – a poesia experimental com vida experimental de Piva. Ou seja, a vida poetizada: escrever sobre o que se vive. No entanto, a síntese também inclui a poesia vivida: viver o que se lê. É aí que se pode pensar a intertextualidade em Piva, como forma de vivenciar a criação de outrem. Como o “the other I am", de Whitman, ou o “Je est un autre”, de Rimbaud. Aqui a vida se verte em versos tanto quanto os versos vertem vida.

366

MOHYLOVSKI, Paulo. O agitador da transgressão. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1987/2009. p. 92. 367 NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Mário da Silva, trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1883-85/2010. p. 66. 368 PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005. p. 14. 369 ROQUE, Carlos. O mascate da paixão (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 1986/2009. p. 78.



Ricardo Mendes Mattos é poeta, autor de Acaso Subversivo (2012), Derivas Etílicas & Sacos Sarcásticos (2012) – com o poeta amazonense Kissinger Cândido de Barros – e Espraiar (2014). Possui o título de doutor em Psicologia da Arte pela Universidade de São Paulo, com a tese Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos & delírios místicos (2015). Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br




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