Revista Gávea - 1ª Edição

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Revista de História da Arte e Arquitetura

GÁVEA 1 A lb e rtin a M . C arvalho

Ambigüidade: o enigma de Volpi

E lizabeth C arbone Baez

A academia e seus modelos

Lídia V age

Iberê Camargo: pulsão e estrutura

M aria C ristina B u rlam aq u i

Lygia Clark: a dissolução do objeto

V anda M angia K labin

A questão das idéias construtivas no Brasil: o Momento Concretista

Isabel Rocha

Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no século XIX

A n n a M aria M .d eC a rv a lh o

A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim

G eorges Duby

O nascimento do prazer da arte

Joseph R ykw erk

A nefasta influência dos arquitetos Boullée e Durand sobre a arquitetura moderna

R osalind K raus

A escultura no campo ampliado

H u b e rt D am isch

Oito teses a favor (ou contra) uma semiologia da pintura


GAVEA EDITOR RESPONSÁ VEL Carlos Zilio CONSELHO EDITORIAL Candace Lessa Gustavo Meyer Jorge Czajkowski (professor de Arquitetura no Brasil) Margarida de Souza Neves {diretora Dept. de História) Maria Cristina Burlamaqui Reynaldo Roels Júnior Ricardo Benzaquem de Araújo (professor Dept. História) Ronaldo Brito (professor de Arte Moderna) Vanda Mangia Klabin Wilson Coutinho (professor de Estética) REVISÃO TIPOGRÁFICA Claudia Maria Brum Arruda EDITOR DE A R T E Diter Stein A R T E FINAL Luiz‘C.R. Henriques

GÁVEA — revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História e Coordenação de Cursos de Extensão O projeto gráfico utilizado por GÁVEA foi baseado na revista OCTOBER

Agradecimento especial à Professora Anna Maria Thompson, diretora do CCE/PUC,pelo seu apoio e incentivo

Apoio Cultural Bittencourt S.A.


1 A lb e r tin a M . C arv a lh o

Ambigüidade: o enigma de Volpi

E liz a b e th C arb o n e B aez

A academia e seus modelos

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Lídia V a g e

Iberê Camargo: pulsão e estrutura

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M a r ia C ris tin a B u rla m a q u i

Lygia Clark: a dissolução do objeto

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V a n d a M a n g ia K lab in

A questão das idéias construtivas no Brasil: o Momento Concretista

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Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no século X IX

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A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim

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G e o rg e s D u b y

0 nascimento do prazer da arte

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J o s e p h R y k w erk

A nefasta influência dos arquitetos Boullée e Durand sobre a arquitetura moderna

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R o sa lin d K ra u s

A escultura no campo ampliado

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H u b e r t D a m is c h

Oito teses a favor (ou contra) uma semiologia da pintura

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Isab el R o ch a

A n n a M a ria M o n te iro d e C a rv a lh o

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ALBERTINA M. CARVALHO Graduação em Educação Artística e Artes Plásticas e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil ANNA MARIA MONTEIRO DE CARVALHO Graduação em Letras e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil ELIZABETH CARBONE BAEZ Graduação em Museologia e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil ISABEL ROCHA Graduação em Arquitetura e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil LÍDIA VAGC Graduação em Ciências Políticas e Sociais e Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil MARIA CRISTINA BURLAMAQUI Graduação em Jornalismo e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil VANDA MANGIA KLABIN Graduação em Ciências Políticas e Sociais e Especialização em História da Arte e A r­ quitetura no Brasil


Gávea

MARGARIDA DE SOUZA NEVES Diretora do Departamento de História

Para os que vivem na cidade do Rio de Janeiro, GÁVEA é o nome de uma de suas an­ tigas “ freguezias de fora” , hoje transformada em um destes raros bairros onde ainda é possível conviver com o verde e enxergar algumas das pedras do Maciço da Carioca. Para os que entendem das antigas artes da navegação, GÁVEAé o nome de uma es­ pécie de plataforma encontrada a certa altura do mastro principal das caravelas, de onde os marujos, com os olhos postos no horizonte, esperavam avistar alguma terra por desbravar. A partir de hoje, GÁVEA é também o nome de uma revista. A REVISTA GÁVEA representa mais uma iniciativa do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, que nos seus ainda poucos anos de existência vem dando provas de sua maturidade, consistência e — por que não reconhecê-lo? — de sua tenacidade. Academicamente vinculado ao Departamento de História da PUC/RJ, o Curso de Especialização vem desenvolvendo esforços no sentido de constituir-se num lugar de reflexão e produção crítica sobre a Arte Brasileira, tendo como eixo principal a indisso­ ciável relação entre o ensino e a pesquisa. As exposições sobre a obra de Goeldi e sobre a modernidade de Guignard. bem como ós catálogos-livros que acompanharam ambas as ex­ posições, já nos deram provas da qualidade da produção de sua equipe docente e discente, produção esta que agora encontra na REVISTA GÁVEA uma maior sistematização e uma difusão mais ampla. Ao adotar como seu o nome do bairro onde — precariamente ainda — se instala com a intenção de desvendar estas terras novas de nossa produção cultural, a Revista recupera e politiza o duplo sentido da palavra GÁVEA. Acreditamos que a REVISTA GÁVEA al­ cançará seu objetivo e poderá constituir-se numa das formas de tornar realidade o que para nós são esperanças.


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Apresentação

CARLOS ZIUO

Existe uma defasagem entre a produção e a reflexão sobre a arte e a arquitetura brasileiras. Tentativas isoladas, ao longo dos anos, conseguiram clarear alguns aspectos; no entanto, permaneceram esporádicas e externas ao conjunto do sistema cultural. Su­ perar esta situação, vencer o auto-didatismo, implica em colocar a análise desta produção no único local capaz de dar-lhe sistematização e eficácia: a universidade. A reflexão é necessariamente um todo, e a decantada interdisciplinaridade só pode ser compreendida sob o prisma da universidade vista como um organismo vivo. A recusa em pensar a His­ tória da Arte e da Arquitetura na universidade brasileira é a negação da visualidade, gerando uma universidade, por assim dizer, cega. O trabalho de demarcar um campo próprio do saber requer o questionamento do que já foi produzido e a busca de definição de objetivos teóricos precisos. A História da Arte e da Arquitetura tal qual se apresenta no Brasil é uma História incapaz de produzir co­ nhecimento, formada que é pela sacralização de informações empíricas. Torna-se, portanto, necessária a desarticulação desta construção fetichizada e a cons­ tituição de conceitos adequados para o tratamento da História da Arte e da Arquitetura, quer dizer, afirmar uma proposição epistemológica específica, diversa da empiria tradi­ cional e das armadilhas ideológicas. Estabelecidas as bases que impedem a instrumen­ talização do pensamento sobre arte e arquitetura, as possibilidades interdisciplinares aber­ tas são ilimitadas, principalmente em relação à História, onde este conhecimento pos­ sibilita uma apreensão privilegiada do universo simbólico de uma época. Após as exposições e os livros sobre Goeldi (1981) e Guignard (1983), o Curso de Es­ pecialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil busca, através de GÁVEA, am­ pliar a divulgação de suas pesquisas. A revista será um local onde as dificuldades, os con­ flitos e as conquistas da postura teórica do curso deverão emergir. Esta publicação veiculará textos de professores, colaboradores e traduções, mas fundamentalmente estará voltada para a produção dos alunos, de forma que a prática e a teoria na universidade não estejam dissociadas. A existência da revista deve-se ao empenho de seu corpo editorial — professores, alunos e ex-alunos — e à visão social e cultural de pessoas que viabiliza­ ram financeiramente o projeto. GÁVEA se propõe descortinar outros horizontes. Olhar atentamente às mudanças, analista das nuanças, aberta a perceber sinais reveladores. Na sensível solidão da gávea, a prática contemplativa. Uma inteligência própria do olhar para pensar o real neste exer­ cício. Quantas terras ainda por avistar...



Ambigüidade: o enigma de Volpi

ALBERTINA M. CARVALHO

A obra de Volpi é o produto de uma praxis em que suas questões constitutivas estão visíveis, porque o artista não as elimina nem as torna invisíveis, mas torna-as um amál­ gama, um produto que não esconde a sua constituição. É uma obra caracterizada pela ten­ são gerada numa relação ambígua que permanece e não pela eliminação das antinomias mais, pela visão critica que supera a fusão, soma ou acúmulo do evocionismo. Essa con­ tradição aparente e consciente na sua obra gera uma tensão que é a sua própria ambi­ guidade fazendo-se presente. E é nessa tensão que sua obra revela uma visão de mundo dialética e elaboradamente marcada pela constante ambiguidade traduzida em termos plás­ ticos. Ambiguidade esta resultante da apreensão do espírito da modernidade e de sua prática de artesão e operário da pintura. Volpi não tenta resolvê-la, mas a cultiva e a põe plenamente em sua pintura como característica de sua obra, como num jogo (o que todo dia faz) em que todas (e ambas) as possibilidades estão sempre presentes e que novo jogo sempre poderá “ ser jogado” . Não se trata para Volpi de eliminar as contradições (ou ten­ sões) mas sim de incorporá-las, de tomá-las presentes e visiveis, de fazer com elas e não apesar delas. Disso resulta uma obra rica, aberta, inquieta. Revela-se assim, em Volpi, a compreensão da modernidade, não pela eliminação da contradição, mas pela incorporação dessa modernidade ao seu espirito de artesão sem que se estabeleça aí a negação de um ou de outro (artesão e modernidade). Não tenta resolver tal contradição, mas trabalhar com ela, fazê-la presente como possibilidades que não se excluem, que se combinam e se com­ pletam. Minha arte consiste em linha, forma e cor. Antes, na natureza era um problema de luz. Da natureza é a luz. Não é o assunto que interessa... — Minha arte é linha, forma e cor, não tem nada a ver com natureza. E uma coisa criativa. Bom, daí tem a construção. Não é que bola qualquer coisa. Tem uma cons­ trução... — A construção se repete sempre. Aí modifica a cor e toda a estruturação. E um problema de cor. — Mas a forma serve para tudo, para repetir outro anel de cores. ” Nestas declarações que Alfredo Volpi deixa transparecer que duas grandes etapas se distinguem no desenvolvimento de sua trajetória artística. Na primeira, os momentos de interpretação da realidade: impressionismo — até a década de 40, mas que não serão con­ siderados nesta análise. Na segunda etapa, os momentos do construtivismo, que podem assim ser pensados:o de um construtivismo estático: momento de observação e elaboração do mundo, embate do vir a ser teórico (de esquematizar e geometrizar); o de convivência


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com o concretismo: momento de enxugar, extrair e clarear os momentos da modernidade (de construir através de uma redução estrutural); o de um construtivismo lírico, dinâmico e de efeitos cinéticos, momento em que Volpi se põe no mundo de maneira livre, solta, apresentando as questões da sua pintura de forma amadurecida; questionando, resolvendo e requestionando a pintura (de-construir, se permitindo todas as possibilidades de orga­ nização plástica). E é principalmente como artista construtivo (assim permanece até hoje) que Volpi revela toda a sua importância como um dos pintores de maior relevância para a pintura brasileira, tanto pela originalidade e independência de sua obra marcadamente nacional,' como também por seu entendimento da modernidade podendo ser considerado interna­ cionalmente como um dos grandes coloristas da pintura ocidental. Na sua disciplina construtiva Volpi possui um repertório de formas (bandeirinhas, mastros, velas, arcos, fachadas, etc.) que são retiradas da sua realidade social e cultural e que são tratadas como formas plásticas, mas só o fato de optar por estas formas e não por outras completamente abstratas demonstra uma demarcação de terreno, referências de sua realidade, de seu lugar no mundo, uma posição de nacionalidade e raízes culturais das quais não quer se abstrair, revelando sua identidade cultural brasileira. No plano ico­ nográfico, é nessa ambigüidade de elementos (formas plásticas como fato estético, porém, alusivas a uma realidade, que se encontra a questão nacional-popular, questão reafirmada pela cor) que Volpi constrói sua visão crítica da questão do nacionalismo-modernismo como a outra possibilidade da arte brasileira. Volpi percorrendo os caminhos da modernidade manterá diálogo com a História. Existem dois grandes momentos de ruptura na história da arte ocidental recente: um, o renascimento e. o segundo, a modernidade. O primeiro momento é caracterizado pela procura da profundidade na representação de um espaço real (construir esse espaço do plano para dentro). Aqui se enquadra Giotto na procura do espaço e da profundidade onde já se percebe em sua obra um espaço atmos­ férico e a procura da profundidade. E Ucello que representa num momento à frente a radicalização da perspectiva. No segundo momento, a modernidade, há a procura do plano (e construir o espaço do plano para fora). Há na modernidade uma inversão no tratamento desses elementos per­ ceptíveis: procura da profundidade e procura do plano. Na obra de Volpi se encontra esse momento: uma profundidade que não é representacional mas que se direciona para o plano criando uma tensão do espaço. E é nesse momento de tensão que Volpi e Giotto se encon­ tram em direcionamentos opostos: um buscando a profundidade e o outro o plano. Como diria Volpi. em entrevista à autora: “ O interessante em Giotto é que ele se liberta do bizantino". A questão do ritmo e da profundidade pode ser encontrada em Volpi com os mastros de bandeirinhas e das velas (por exemplo), e Ucello com as lanças e mastros. O expediente dos mastros listrados em Volpi, sugeridos em primeiro plano pela cor, se destacam criando uma ilusão de profundidade ao mesmo tempo que atrai essa profundidade para o plano criando assim ritmo e tensão do espaço. Ucello utilizou o expediente das lanças para criar também ritmo e direcionar a perspectiva; onde o ritmo das lanças garante o movimento no primeiro plano e o destaca contra um plano perspectivado que é colocado como um cenário. Outra característica da obra de Volpi, capaz de exprimir sua concepção de mundo moderno, está na relação simetria/assimetria. Remetendo-nos à problemática da simetria na modernidade a partir das concepções de Francastel, expostas in “ Aspectos Sociais da


COMPOSIÇÃ 0 EM O G IV A , Volpi, 1980, têmpera sobre tela, 136 x 68 cm

M ASTRO S E BANDEIROLAS, Volpi, 1966, têmpera sobre tela, 72,5 x 145 cm

Simetria do Século XV ao Século X X ” , nelas encontramos o seguinte: “ Só nossa época descobriu a possibilidade estética das tensões e daS forças em mo­ vimento, fora das simetrias e do equilíbrio” . E mais adiante: “ É bem verdade que, durante quatro séculos, a partir da Renascença, foi em função de uma concepção estética do Universo que a Arte se elaborou, conferindo um valor especial à simetria, enquanto que atualmente ela se desenvolve em função de uma concepção dinâmica das forças em mo­ vimento e recorre logicamente de preferência a soluções que fazem operar o ritmo e a lateralidade” . Volpi ao se apoiar nas tensões e na dinâmica das forças em movimento, com a ob­ jetividade de seu espírito, vai pôr em constante confronto a simetria e a lateralidade onde ambas se manifestam numa sensação enigmática que advém dessa nova ambigüidade. Na maioria de suas telas percebe-se uma construção simétrica perceptível numa série de combinações, por exemplo: — por divisão de tela na horizontal ou vertical ou diagonal, — pela correspondência de cor, — por conjunto de elementos pares ou ímpares em formas e/ou cores que se correspondem, — pela correspondência de duplos (pares ou ímpares em !formas iguais e/ou cores iguais).


FACH ADA AZU L E TERRA COM BAND EIRINH AS. Volpi, 1959, têmpera sobre tela, 155 x 102'cm

Porém ao trabalhar a construção simétrica, nesse mesmo esquema, mesmo tempo, vai se constituindo a assimetria: — pela construção de lados diferentes na divisão simétrica (em relação a um eixo), pelo deslocamento da cor simétrica de uma forma para outra, deslocando uma série de elementos em relação ao conjunto simétrico, pela inversão de posição da forma que vem se repetindo simetricamente, por uma forma jogada solta na composição, por uma ou várias formas contrastantes colocadas lateralmente na compo­ sição simétrica, pela transformação dos elementos pares em impares organizando-os, deslocados em relação ao eixo da construção, trocando ou deslocados um dos elementos isolados (como um contraponto). Consequentemente à essa relação vai se produzir um sistema aberto, não estabilizado, unificado pelo ritmo desenvolvido e onde o contraponto vai implicar numa regularização. Mesmo nas composições mais tipicamente assimétricas (aquelas do período sob a influên­ cia do concretismo) essa relação se mantém no par dentro do ímpar. Essas manipulações na composição ocasionam uma sensação de estranhamento ao olhar, porque enigmática, que acompanhando o ritmo de repente encontra uma variação não esperada, suscitando um questionamento. Tomando como exemplo de análise a série “ composição em ogiva” , percebe-se mais uma vez a riqueza da expressão modernista do autor. E necessário que se faça uma leitura dentro do próprio campo do artista, ou seja, no uso da linguagem plástica, que permita


Ambiguidade: o enigma de Volpi

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revelar as questões de caráter exclusivamente visuais que o artista apresenta, precisando o desvelamento de seu pensamento visual. A distinção começa de início pela identificação do tema da composição. O arco ogival que aí aparece refaz em forma ampliada o corte interno de uma bandeirinha, forma esta (parte inferior da bandeirinha) que abrange toda a tela, e é confirmada pelos cortes laterais que desenham suas pontas. E uma forma (bandeirinha) maior que domina a superfície e que contém outras formas menores iguais que a constituem (bandeirinhas e/ou triângulos gerados por elas num efeito positivo-negativo destacados pela cor) ou, melhor dizendo, várias formas (bandeirinhas) contidas numa outra maior dominante. Na ogiva resultante tratada por uma cor sempre mais escura e que se repete nas la­ terais obtém-se um fundo que é ao mesmo tempo um grande triângulo em negativo e uma profundidade (fundo acentuado pelas linhas oblíquas que convergem para uma linha ver­ tical ao centro formando ângulos) mas que Volpi atrai para o plano, pela repetição de cores que se encontram nesse plano. Assim os planos se aproximam pelo uso da mesma cor (dentro e fora) e que por suas qualidades se destacam. Efeito semelhante irá ocorrer no uso de uma cor, que contrasta ou seja destaca, valorizando os triângulos distribuídos por toda a composição; é pela cor que esses triângulos ressaltam e se transformam em positivos, unificando os planos e mantendo as formas (bandeirinhas e triângulos) e o olhar em sus­ pensão. Estabelece-se aí uma tensão manifestada pelos efeitos dicotômicos gerados pela cor, onde ora se valoriza um dos duplos, ora o outro numa apreensão global da ambigüidade no olhar, criando no observador um certo deslocamento e estranhamento desse olhar. Essas dicotomias resumem-se assim num jogo de efeitos, identificáveis em: positivo-negativo (por exemplo: triângulo/bandeirinha), — dentro-fora, — par-ímpar (por exemplo: valo­ rização de duas bandeirinhas de mesma cor no mesmo plano e de uma terceira bandeirinha também de mesma cor na profundidade (ogiva), — simetria-assimetria (por exemplo: no uso das cores, da mesma forma que o anterior). E, assim sucessivamente, numa inversão constante, interagindo dentro de modelos de composição que constantemente se repetem, Volpi cria, recria, numa pesquisa contínua, que permite novas possibilidades de configuração. Onde, como em Albers, segundo Baltcock “ a menor das variações em qualquer das cores resulta em nova pintura radicalmente diferente da anterior quanto ao sentir” . A textura obtida pela têmpera, usada de forma abstrata (como elemento plástico em si), portanto, emancipada da sua função de criar mimese, torna-se profundamente sig­ nificativa no contexto da obra. Resulta, assim, outras ambigüidades: — técnica antiga (têmpera) expressa numa linguagem moderna; — textura como elemento plástico em si, de efeito translúcido (onde o pigmento não se dilui, só se mistura), que resulta numa trans­ parência de branco (que aqui não é cor) eque homogeneiza toda a tela, porém remete à ambiência, á luz, à parede caiada, ao afresco e ao passado. Assim, lançando mão de uma técnica tradicional numa postura moderna, ele une uma possibilidade de expressão plástica pura a cor e a textura, permitindo um jogo de for­ mas e massas, obtendo uma densidade expressiva, por uma economia de meios, numa in­ tensidade colorística. Sendo a textura o elemento estável e permanente em toda obra ela adquire dinamicidade no gesto (marca do pincel), que sublinha, define e/ou desenha a forma. Em certos quadros, somente a direção e a medida da pincelada, desenhando as formas dentro de uma só cor, garantem a visibilidade dessas formas e estruturam toda a superfície do quadro.


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GÁVEA

Dos elementos constitutivos de suas telas, está na cor a qualidade extraordinária de sua obra. Volpi sendo um colorista por excelência, tem a sutileza de não deixar que sua cor signifique sozinha (como por exemplo, podemos ler a obra de Albers a partir de sua problemática, a cor), porém, é ela que estrutura todo o seu trabalho. Sendo uma cor es­ trutural, adquire o estatuto da cor abstrata (livre e pura) revelando outra ambiguidade na obra de Volpi: é uma cor carregada de profunda significação do mundo real sem que isso implique no realismo da cor. Não é um “ simulacro das cores da natureza ” , como diria Merleau-Ponty. Em Volpi, a cor adquire seu significado pela interação que mantém com a forma e a textura. E é nessa organicidade que se pode afirmar, como Willys de Castro, que “ Volpi pinta Volpis” . Para Volpi, como em Matisse, o assunto (tema) da pintura não importa para o ato de pintar. O assunto faz-se pretexto para a pintura. A cor adquire autonomia porém ficando livre de sua função conteudística ela não se toma abstrata, revelando-se uma cor quali­ tativa que se expressa como uma cor local, cor luz, cor anedótica, cor que remete a uma ambiência e a uma certa atmosfera; cor afetiva que reporta á sensação do mundo (como em Guignard): de um “ mundo” marcadamente brasileiro e popular nos verde-amarelo. verde-rosa, azul-rosa ou nas cores terrosas lado a lado, nos mastros, nas bandeirinhas. nas fachadas. Cores que associadas à cor matissiana vão revelar o puro prazer da pintura e o lirismo de uma poética figurativista. Dos pintores brasileiros. Volpi é o que mais se aproxima de Matisse e o que melhor absorveu a transgressão da cor matissiana. Sua cor também passa por uma compreensão especial de Albers. Ao pensar a cor, suas relações e sua expressão, Volpi vai utilizar como Matisse cores puras e complementares sem passagem e que se articulam, especialmente o verde, ver­ melho, azul. amarelo assim como o preto e o branco (cores que Matisse emancipou). E como Albers, a procura das passagens de cor sem que as cores percam sua determinação, às vezes tão próximas que coloca no limite essas passagens, de tal modo que uma não sig­ nifica sem a outra. Assim se movimentando nessas duas posturas ele vai achatar o plano e/ou as contrapondo, criar profundidade sem lançar mão de dêgradé. Então, pela ação de relações cromáticas nas oposições: figura-fundo. positivo-negativo. dentro-fora. cheio-vazio. par-impar. cor obliqua-cor contraponto, ele cria cinetismo. ritmo, movimento; cria também forma (positiva-negativa) valorizando a figura do fundo. Efeitos estes que vão se manifestar em três categorias mais amplas: equilibriodesequilíbrio, simetria-lateralidade, profundidade-bidimensionalidade. Organizando o espaço de suas telas a partir de uma construção bidimensional pela ação de ortogonais, ele opõe linhas obliquas, formando ângulos e mais raramente linhas curvas, o que quebra por principio a rigidez e permite induzir a uma certa profundidade. Porém é com o uso da cor que Volpi realmente obtém profundidade. Abandonando procedimentos tradicionais como o dêgradé e a diminuição de formas ele vai deixar que a relação forma-cor construa sua profundidade. Usando cores em chapa (que aproximam planos), cores quentes e frias, cores que avançam e retrocedem, opondo cores contrastan tes (primárias e complementares) a uma gama de cores mais suaves, esmaecidas e/ou opacas, ele vai destacar plano e profundidade. Um dos enigmas de sua ambiguidade reside especialmente em que Volpi dentro do plano bidimensional, pela trajetória, distribuição e dimensão da cor, cria profundidade. E pela mesma cor. traz para a frente a profundidade. Desta maneira, tanto procura fugir do plano como alcançar o plano, se situando num momento de tensão do espaço, pela atraçãc exercida ao olhar pelas dicotomias em ação.


A academia e seus modelos

E L IZ A B E T H C A R B O N E B A E Z

' 'The simple society bred simple people. V.S. Naipaul. The Loss of El Dorado Não se trata de nenhuma novidade que a pintura acadêmica brasileira teve como principal influência a pintura oficial francesa, conhecida como “ pompier” . No entanto, sente-se ainda a necessidade de sistematizar esse estudo. A fim de que o trabalho não fique restrito a simples identificação de modelos, toma-se necessário fazer uma relação dessa forma de representação plástica com o processo histórico, assim como verificar até que ponto essa representação foi institucionalizada e incentivada a se perpetuar por ir ao en­ contro das necessidades de afirmação de um sistema social e político em formação. O tipo de representação proposto pelo neoclassicismo e deformado pelo academismo encontrou no Brasil um campo fértil para se enraizar e desenvolver uma vez que seu universo simbólico supria os anseios políticos, sociais e culturais da classe dominante. Consequentemente, era a única forma de representação ensinada e divulgada no Brasil no século XIX. O neoclassicismo vai usar, a grosso modo, o mesmo sistema de representação dos ob­ jetos no espaço do Renascimento, quando o homem passa a ser o centro do universo. O ar­ tista terá o poder de controlar o espaço a partir de leis científicas, a natureza emancipa-se da ordem divina. Não será, porém, uma simples imitação mas uma volta ao passado em busca de novos valores para expressar uma outra visão do Cosmos. O neoclassicismo recolocou em ques­ tão os princípios da arte, ou seja, colocou inteiro o problema do Renascimento, ampliando a compreensão dos tempos Modernos e dando condições para que, mais tarde, surgisse uma nova maneira de captar, perceber e ler o mundo. O universo plástico da arte neoclássica vai representar a reforma moral contida no ideal da Revolução de 1789. A verdadeira moral se encontrava na Antiguidade Grega na medida em que representava um mundo idealizado, construído a partir de seus próprios padrões, sem ajuda divina, suficientemente rígido e severo para se tornar aceito num mundo ávido por reformas. Um mundo controlado pelo homem e guiado pela razão, cuja ética ou padrões morais deveríam ser modificados pelo homem a partir de um trabalho sério e disciplinado. O ideal revolucionário do neoclassicismo, que era autêntico e correspondia a uma realidade, vai cedendo terreno e finalmente será substituído pelo realismo napoleônico.


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Dai para a codificação sumária do universo renascentista será um passo. Ao ser transplantado para o Brasil, o neoclassicismo perde em essência e significado para transformar-se num processo de afirmação de prestígio e poder; foi implantado a par­ tir da Missão Artística Francesa e alguns artistas que a compunham traziam em si o es­ pirito que dominou essa forma de expressão artística. Não conseguiram, entretanto, trans­ mitir muito mais além da técnica e das normas impostas e adotadas pelo neoclassicismo. Assim fala Wilson Coutinho sobre Debret em recente trabalho em que trata da relação en­ tre Arte/lnstituição: “ Debret é então um homem oco, mas objetivo. Cúmplice do mito da Razão de sua geração bonapartista, ele constrói uma obra que é trabalho da técnica e de um saber objetivado: o da classificação racional, evidente, que será disposta em séries, à maneira de uma taxiodermia do século que o educou, o XVIII. “ (1) 0 Transplante de Uma Estética Oficial Durante todo o século XIX e grande parte do XX, a arte brasileira permaneceu presa a determinados padrões. A partir de meados do século XIX o padrão-modelo será ine­ vitavelmente a pintura acadêmica francesa que sucedeu o neoclassicismo — pintura que usará a representação de forma teatral para criar a ilusão e a tradição como meio de evitar questionamentos e mudanças. O artista acadêmico estava vinculado a um sistema de arte que. ao mesmo tempo que lhe proporcionava sucesso e meios para progredir, cerceava sua imaginação, fixando regras e impondo um padrão de gosto, favorecendo enfim a implan­ tação de uma estética oficial. Além dos salões oficiais, era quase nula a atividade artística no Brasil. Os pintores que ganhavam prêmios de viagem eram enviados a Paris ou a Roma para se aperfeiçoarem com os artistas consagrados pelas instituições oficiais, os chamados “ pompiers“ . W .A. Bouguereau. J.L. Gérôme, E.J.H. Vernet, L. Cogniet, A. Cabanel, T. Couture, J.L.E. Meissonier estavam entre aqueles que recebiam o reconhecimento oficial. Esse reco­ nhecimento. contudo, não coincide com os artistas hoje considerados os grandes mestres do século XIX. Os bolsistas da Academia Imperial de Belas Artes seguiam para os ateliês de alguns desses pintores com instruções rígidas e especificas que limitavam e empobreciam a criação artística: copiavam seus mestres mesmo quando se inspiravam em temas nacio­ nais. Os principais temas explorados pela pintura oficial francesa eram os episódios da his­ tória clássica e da mitologia, os fatos da história nacional com fundo moral ou episódios gloriosos, assuntos nobres e religiosos, retratos e, por fim. paisagens e natureza -morta. Com o declínio do neoclassicismo e o surgimento do realismo outros temas passaram a in­ corporar a iconografia acadêmica: o estilo anedótico, temas da vida moderna, costumes religiosos e o orientalismo, de preferência contendo verdades e qualidades eternas. A reação ao realismo social de Coubert é marcante da parte oficial e do público. Os pintores âcadêmicos vão utilizar essa temática apelando, porém, para os subterfúgios da metáfora e do simbolismo, diferentemente do verdadeiro realismo proposto por Coubert, que não idealizou nem tirou a pintura de um mundo em processo de transformação. Aliás, o orien­ talismo surgirá como espécie de saída honrosa para com o problema da manutenção do tradicionalismo. Como bem observou James Harding ao analisar a pintura “ pompier” , (2) o universo oriental não estava contaminado pelo realismo social nem seu cenário modi­ ficado pelas transformações urbanas; a indumentária estava acima da moda e a forma de


Vitor Meireles, B A TA IJ1A D O SG U ARARAPES, รณleo/tela, 491 x 919 cm (MNBA).

E.J.H. Vernet, PRISE D E SM A LAH , รณleo/tela, 489 x 2139 cm.


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vida continuava tradicional. Todos esses temas são bastante familiares à pintura acadêmica brasileira e foram am­ plamente explorados ao longo do século XIX. De todos, o orientalismo foi o que sofreu maior simplificação: no transplante, tiram-se partes do todo, ao invés de cenas completas são reproduzidas muitas vezes apenas figuras, fora do contexto, como se constata na pin­ tura francesa. Outra forma de trabalhar com o orientalismo foi integrá-lo a temas tradi­ cionais. como ocorre com o Davi e Abisag de Pedro Américo: um tema bíblico serve as­ sim de pretexto para reproduzir ambiente e atmosfera orientais, que tanto fascinavam a imaginação dos pintores franceses. Nota-se os mesmos cânones de gosto, cromatismo e organização pictóricos, a mesma expressão e tendência ao anedótico e ao misterioso que predominavam na primeira fase do orientalismo francês, inspirado nos relatos de viajantes. Bastante representativas são as cenas históricas pintadas por Vitor Meireles e Pedro Américo, nitidamente inspiradas em Meissonier e Vernet (este último foi mestre de Pedro Américo). O “ academismo-romântico” na Batalha dos Guararapes de Meireles e no O Grito do Ipiranga e Batalha do A vai de Pedro Américo é enfatizado pelo convencionalismo da composição: os personagens são distribuídos em espécie de semi-círculos, destacando ao centro a cena principal. O colorido é artificial e o gestual maneirista; o dramatismo leva à idealização de um ato patriótico, uma vitória nacional. E interessante notar que aqui, como na França, essas cenas eram retratadas, após minuciosa pesquisa, em telas mo­ numentais. Algumas pintadas por Vernet eram tão grandes que era necessário remover o chão para poder acomodá-las. O sistema de seleção de bolsas, a bolsa propriamente dita e a forma de sua avaliação perpetuou assim a colonização artística. Mesmo o consagrado Almeida Jr.. que teve o grande mérito de introduzir a temática nacionalista, continuou fiel aos cânones acadê­ micos. tanto na idealização da forma quanto na manutenção de uma composição tradi­ cional. Ao cotejar as Academias francesa e brasileira, encontramos inúmeras semelhanças de organização e funcionamento. Pode-se mesmo afirmar que a Academia no Brasil é uma “ cópia autêntica” da francesa, exercendo sobre os pintores uma espécie de ditadura es­ tética. Esse academismo produziu entre nós incontáveis “ pompiers” durante o século XIX. incapazes de se libertar do tradicionalismo acadêmico. O Sistema Colonial e o Desenvolvimento do Processo Artístico Nas colônias — portuguesas ou espanholas — não houve nunca arte verdadeiramente independente dos modelos oficiais da metrópole, tampouco existiam condições de absorção de modelos independentes ou de vanguarda. E possível, por exemplo, estabelecer algumas comparações entre as formas de expressão artística desenvolvidas em Cuba e no Brasil durante o século XIX. Com uma ressalva — em Cuba, os artistas estrangeiros (franceses, ingleses, americanos e espanhóis) não eram convidados oficialmente — entre eles havia refugiados políticos, aventureiros de passagem ou comerciantes. Na primeira metade do século verifica-se na pintura cubana uma tendência a retratar o característico, o cotidiano, a cidade, de forma bastante semelhante, não apenas aos viajantes estrangeiros que para aqui vieram (Rugendas, Ender, entre outros), como aos próprios Debret e Taunay, no que diz respeito à documentação de usos e costumes e paisagens. Paralelamente desenvolve-se em Cuba (como no Brasil) uma escola que cultiva a beleza formal de influência neoclássica, “ davidiana” , que em meados do século vai cedendo lugar ao academismo franco-italiano e a uma tendência paisagística, idealista,


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sentimental e romântica. No grupo neoclássico identificamos — além de Debret — Vitor Meireles, Araújo Porto Alegre, Pedro Américo, entre outros; no segundo grupo, Insley Pacheco, Hipólito Caron, Batista da Costa, Xelles Jr. Ao relacionar formas de colonização e suas consequências nas manifestações artís­ ticas é possível também tomar como referencial a colonização inglesa na América do Nor­ te e a colonização portuguesa no Brasil. Com isto levantaríamos as diferentes possibili­ dades de absorção da Academia no seu transplante da Europa para os Estados Unidos e para o Brasil. A influência européia (inglesa e francesa) também foi marcante nos Estados Unidos. Em determinada ocasião. Gérôme contou 90 alunos americanos em seu ateliê. Contudo, o gosto pela pintura histórica, pelos temas heróicos, não impediu que se desenvolvesse, paralelamente, um outro tipo de manifestação artística que expressava a descoberta dos amplos espaços da natureza, a luminosidade local, e que eventualmente ia além da mera cópia da natureza. Segundo John Wilmerding, a arte americana de meados do século pas­ sado manifesta o otimismo e expansionismo jacksoniano que se alia, assim, á crença americana na beleza transcendental da natureza. Já nos anos 60, as tempestades apocalíp­ ticas e as cenas de crepúsculo, visual e tematicamente diferentes, porém conceituai e es­ truturalmente relacionadas, falam de um modo indireto dos anos de turbulência da guerra civil e do conseqüente sentimento de perda. Nos anos 70 e depois a serenidade do luminismo se rende a um novo realismo, a estrutura luminista abre espaço ao impressionismo. (3) A diversidade da atuação da Academia nos Estados Unidos e no Brasil estaria vin­ culada. portanto, a contrastes suficientemente significativos, permitindo afirmar que diferentes formas de colonização repercutem de modo diverso nas produções artísticas. Os objetivos e o espírito de ambas as colonizações, a religião, os sistemas político e social e o nível de instrução e alfabetização dos colonizadores (4) são alguns dos fatores que teriam favorecido o desenvolvimento de uma pintura mais criativa nos Estados Unidos. O Brasil do século XIX ainda sofria as consequências de uma colonização que não permitia autonomia econômica, não incentivava a iniciativa e a criatividade individuais, supervalorizava o que vinha de fora e era extremamente parcial a mudanças. Ao tratar das diferenças entre as colonizações portuguesa e inglesa, no Brasil e na América do Norte, respectivamente, Yianna Moog descreve os mazombos (descendentes de portugueses que constituíam a elite brasileira do século passado) como “ europeus extraviados” no Brasil. “ Em princípio do século passado, o mazombo era espiritualmente português, e vivia zan­ gado com o Brasil, por não ser o Brasil a cópia exata de Portugal. Em fins do século, como as simpatias de Portugal se tivessem volvido para a França, vivia zangado com o Brasil porque a cultura brasileira não era a projeção exata da cultura francesa... cultura só a França a tinha... sem uma viagem a Paris não se completava nenhuma formação cultural digna desse nom e...” (5) Até o início do século XIX era total o desinteresse da Metrópole pelo desenvolvi­ mento artístico da colônia. Sobre esse desinteresse, vale lembrar que está estreitamente ligado aos objetivos da colonização portuguesa. Ao europeu interessava o comércio; vinha para especular, para realizar um negócio e o Brasil se constituirá numa espécie de “ feitoria comercial . O interesse oficial pelas formas de expressão artísticas só será realmente des­ pertado com a vinda da Corte e a decorrente necessidade de tentar elevar o inível cultural da colônia, agora sede do Reino. Foi, portanto, depois de 1808, sobretudo com a chegada da Missão Artística Fran­ cesa, que teve início o empenho da autoridade constituída em patrocinar as artes. A partir dai a França (por motivos óbvios) e a Itália serão os principais pontos de referência cul-


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tural. Essa influência será agora exercida diretamente através de artistas importados pelo Estado e das bolsas de estudo concedidas aos alunos mais aplicados da Academia. Esta fun­ cionará como instrumento de permanência de um modelo dado e como um mecanismo de preservação. Os artistas acadêmicos desse período, talvez por serem “ simple people", produtos de um meio artistico simples, sem maiores tradições ou raízes, serão os perpetuadores da estrutura vigente. Daí a implantação de um sistema de arte ligado ao me­ cenato do Estado e à institucionalização do saber. A rigidez do conceito de arte implantado pela Missão Francesa encontrou respaldo para se expandir e solidificar numa estrutura política centralizadora e conservadora. Dela resulta uma produção artística praticamente limitada a reproduzir formas desvinculadas da realidade social e despida das características do seu meio. Por outro lado, a formação humanistica apreendida na Europa pela sociedade brasileira erudita contribuía para a sedimentação dessa forma de expressão. Para Craig Owens, as disciplinas humanísticas, em particular a história da arte, trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia da cul­ tura européia ocidental. (6) A limitação á criação artística deu-se desde o início e se estendeu até mesmo aos artis­ tas estrangeiros convidados a implantar o ensino artístico no Brasil. Foi o caso, por exem­ plo, do “ Pano de boca do teatro da Corte por ocasião da coroação de D. Pedro V , enco­ mendado a Debret. A necessidade de privilegiar o erudito vindo de fora, e a apropriação de uma forma de representação estranha ao contexto cultural brasileiro ficam evidentes nas palavras do próprio Debret. Em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, relata: “ Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, cujo bosquejo representava a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial sentado em um trono coberto por rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao primeiro-ministro José Bonifácio que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas. Relação da Produção A rtística com o Meio Sócio-Cultural O século XVIII, que terminou com uma revolução, começou com um dilema — político, filosófico e artistico — que provoca uma renovação na estrutura social, intelec­ tual e cultural na Europa. Esta renovação estava ligada ao Iluminismo e preconizava o Racionalismo como a fonte do verdadeiro saber. A burguesia emerge e vai desenvolver novos padrões e valores culturais que terão papel decisivo na produção artística. Em es­ tudo sobre a sociedade burguesa, J. Habermas (7) afirma que no século XVI11 os espaços culturais foram ampliados e tomados públicos (museus, teatros, salas de leitura e de con­ certos e salões da Academia) e a obra de arte é finalmente aberta à discussão. Ao passar para o domínio público, ela assume necessariamente a forma de mercadoria, tomando-se sujeita á discussão e à crítica. Se antes a obra de arte não era questionada, agora está sub­ metida ao julgamento público — à opinião pública que, através do mercado, apropria-se dos objetos em discussão. Prova inequívoca desta nova e nada ortodoxa situação é a recusa por Courbet da Légion d'Fionneur, em 1870: “ Meus sentimentos como artista se opõem a isso simplesmente porque eu estaria aceitando uma recompensa que me é conferida pela mão do Estado. O Estado é incompetente em matéria de Arte. Quando ele se incumbe de distribuir recompensas, ele se intromete no campo do gosto do público. Sua intenção é totalmente desmoralizadora. fatal para a arte que ele confina dentro das convenções ofi­ ciais e que condena à mais terrível mediocridade; a única coisa sensata a fazer seria absterse. O dia em que o Estado decidir nos dar liberdade, nos terá feito um grande favor. Tenho


N .A . Taunay, RUA DES. JO S Ê E M 1816, óleo/tela, 46 x 57 cm(MNBA).

50 anos e sempre vivi livre; deixe-me viver em liberdade até o fim de meus dias. ” (8) Quando se configura o sistema de arte brasileiro, no início do século XIX, a França já possuía evidentemente um sistema cultural complexo e uma sólida tradição artística. Após mais de 300 anos de colonização portuguesa, o Brasil atravessará um longo período sob o regime monárquico (1822 a 1889), sendo que, durante quase 50 anos, esteve no poder o Imperador Pedro II, cuja influência no desenvolvimento da arte e da cultura foi marcante. Um aspecto importante, pois, a ser levado em consideração é a personalidade de D. Pedro II e o que ela simbolizava. Considerado um monarca instruído e culto, tinha a aura da erudição e exercia o mecenato não apenas no Brasil (patrocinando de seu próprio bolso o estudo, aqui e na Europa, de vários artistas, entre pintores, escultores e músicos) mas também na Europa (contribuindo pessoalmente para a construção de um teatro em Bayreuth, na Bavária, destinado à obra de Wagner). Homem de hábitos simples, porém com pretensões intelectuais, protótipo do pai bondoso, digno do respeito e da obediência de seus protegidos, são algumas das características desse homem que durante tantos anos representou o poder. O Brasil era constituído de uma sociedade cultural e artisticamente pouco complexa, cuja elite intelectual, seduzida pela cultura européia, não podia perceber até que ponto era problemático para essa cultura criar raízes e se desenvolver livremente numa sociedade ainda em crescimento. A importação maciça e impensada de modelos atravessou todo o século XIX. Até o início do XX inexistiam condições para que estes fossem explorados,


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absorvidos e transformados de forma original. Somadas a interferência oficial e a influência da figura arquetípica de D. Pedro II às condições sociais, culturais e políticas da época, ficará ainda mais evidente a dificuldade de nossos artistas em se rebelar contra a ordem vigente; ou transgredir as regras do jogo e libertar a pintura como, por exemplo, fez Manet; ou mesmo reinterpretar o neoclassicismo e procurar fazer uma pintura original. As reações contra o academismo, que restringia o trabalho ao interior dos ateliês, in­ centivava temas bíblicos, históricos e mitológicos e usava a paisagem apenas como um complemento aos temas maiores, foram poucas e isoladas. A primeira delas veio de um grupo liderado por George Grimm que reuniu em tomo de si alguns jovens pintores dá Academia que queriam trabalhar ao ar livre. Dentre eles destaca-se João Baptista Castagneto que, com suas pequenas “ manchas” , pinceladas rápidas e curtas, revela uma preocupação em captar as pequenas nuances da luz, as transformações efêmeras do mar, enfim, uma sensibilidade pictórica que põe a descoberto um universo ainda desconhecido e não explorado pela maioria dos pintores de sua época. Também Eliseu Visconti reagiu à arte oficial ao procurar no impressionismo uma nova forma de expressão artística. Absor­ veu bem a técnica impressionista e deixou, ao contrário de Castagneto, vários seguidores. Não houve, entretanto, renovação profunda e todos continuaram a fazer pintura impres­ sionista século XX adentro. A pintura do próprio Visconti se transformou apenas até cer­ to ponto: quando finalmente consegue captar a luminosidade e cor locais (principalmente na fase final de Teresópolis), estamos já nas décadas de 30-40 e essa pintura pode ser tran­ quilamente considerada acadêmica face às radicais transformações ocorridas nas lin­ guagens e no próprio sistema da arte.

NOTAS

(1) COUTINHO. Wilson. “ Da Ordem da Sombra” . Revista do MA M. Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, 1983. p. 101. (2) HARDING, James. A rtistes Pompiers. French Academic A rt in the 19th Century. London, Academy Editions, 1979. (3) WILMERDING, John. Catálogo da exposição “ American Light — The Luminist Movement” . Washington, National Gallery, 1980. (4) Os primeiros povoadores das colônias inglesas na América eram alfabetizados o suficiente para ler a Bíblia contribuindo, assim, para dar melhores condições ao indivíduo para mais tarde assimilar, incor­ porar e criar progresso e civilização. (5) MOOG, Viana. Bandeirantes e Pioneiros. Rio de Janeiro, O Globo, 1956. pp. 152-153. (6) OWENS, Craig. “ Representation, Appropriation and Power” . A rt in America. Marion (Ohio), 1982. p. 10. (7) HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. (8) Citado por James Harding, op. cit. acima nota n? 2, pp. 13-14.



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*4Nunca dei nome às coisas, porque isto não existe em pintura ’’ (IC) Este ensaio não visa abordar linearmente o percurso do artista mas tecer uma leitura a partir de um corte temporal, tendo por referência o período posterior à fase dos “ Carretéis” (1959), determinante no amadurecimento da obra de Iberê Camargo e que o leva ao reconhecimento crítico em 1961 na VI Bienal de São Paulo, quando obtém o prêmio de melhor pintor nacional. A trajetória do artista, segura, consciente e lúcida, é a de um pin­ tor que sai lentamente da Figuração e identifica-se com a Abstração. A ação de pintar transfere-se dos modelos que reproduziam uma realidade exterior à pintura — paisagens, naturezas-mortas, arquitetura urbana, retratos — que já se caracterizavam pela ausência de perspectiva e pela intensa expressão com contornos acentuados, para a simplificação das formas, que alteram as grandes linhas do quadro, onde os objetos representados e as pin­ celadas começam a se destacar e assumem significação própria. Assim começa uma fase de cromatismo mais vibrante e materialidade pastosa na qual os carretéis, objetos marcantes na infância de IC, se transformam em símbolos de suas emoções, assinalando portanto o início da abstração. A importância e a postura de sua pintura, o modo como articula a pulsão (pincelada) e a estrutura (organização) da tela» possuem relevância equivalente, na História da Arte brasileira, às de Francis Bacon ou Willen de Kooning no plano internacional. Isso porque as obras desses artistas, entre outros, não se colocam como simples rupturas mas estão en­ gajadas num projeto cultural cujas fronteiras são as da própria arte moderna. A pintura de IC, como a dos pintores citados, contém simultaneamente o singular e a linguagem inter­ nacional, e é esse um dado que confere à pintura seu estatuto próprio. Aqui, no Brasil, ela se concretiza com dificuldade pois além da “ trama social” IC luta e ultrapassa os limites das dificuldades materiais e dos códigos visuais arcaicos presos ainda à “Semana de 22” . Alguns críticos consideram a pintura de Iberê como gestual ou informal. A propósito da “ pintura gestual” , chamam a atenção as observações de Jean-Luc Chalumeau (1). Referindo-se a Pierre Soulages (afirmando que não importa definir suas obras como “ abstracionismo lírico” ou “ expressionismo abstrato” ) declarou: “ neste caso, as categorias efêmeras da crítica de arte são secundárias. De todo modo, se perto dele o gesto que leva a (1) Chalumeau, Jean-Luc — “Lectures de l'A r t" (Reflexion esthétique et création plastique en France aujourdhuf). Ed. Chène/Hachette. Paris, 1981.


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pintura sobre a tela tornar-se aparente, será um contra-senso a qualificar de gestual . A pintura gestual pura não olha o que ela faz (grifo nosso) e Soulages controla, ao contrário, meticulosamente. cada instante de acabamento da obra, donde ele assume a responsa­ bilidade do menor detalhe m aterial". O que estamos procurando indicar é que qualquer classificação sumária da obra de IC não é determinante para a sua compreensão. E sobretudo que ler a obra não é somente decifrar teoricamente seus signos, pois eles não são redutiveis a mensagens somatizadas —nossa ação exigirá uma adesão mais profunda, a que Chalumeau chama emoção. Produzir uma pintura contemporânea, impregnada de questões organizadas intelec­ tual e emocionalmente e que conferem ao quadro seu significado, não é um dado psico­ lógico. É. isto sim. um esforço do sujeito perante a tela vazia e que pretende transcender os limites do simples olhar. A consciência passa a ser a existência da própria pintura como corpo/carne, como um mundo que ali, no espaço da tela, é refletido mas também reflete. Para assim entendê-la é preciso “olhá-la vendo". Não vamos nos prender aos primeiros sintomas da “ desintegração da forma", resul­ tado de um complexo encadeamento de seu percurso criador. Buscamos captar sua abs­ tração como uma estrutura criada mediante o poder de um ato imaginário. Ou seja, Iberê Camargo persegue na forma, no imaginário, no simbólico, um a “ coerência nova": o estar presente na concretude da matéria. Esse exercício que nem sempre opera de modo objetivo na pintura, está na sua obra dialeticamente como causa e conseqüência gerando de fato, pois na concretude o símbolo engendra sempre um novo campo simbólico e assim por diante. ' ‘O artista deixa de ser livre quando afoga a voz de sua intuição para servir a uma ideologia que não é a da arte ’’(IC) Em arte, não se trata de inventar formas e sim de captar forças. Por isso, a rigor, nenhuma arte é figurativa — segundo Klee, a fórmula não é traduzir o visível, mas tornar visível. A força está em estreita relação com a sensação: é necessário que uma força se exerça sobre um corpo, sobre um local, porque ai há sensação. A dinâmica da abstração de Iberê está justamente nas linhas de força que energizam suas formas — ora elas se aglu­ tinam em núcleos, ora explodem. A redefinição de sua linguagem pictórica, como indi­ camos. se dá com a série dos “ Carretéis", quando passa a efetuar a “ tradução" do real pelo emprego de um sinal, compreendendo portanto a relação de significação entre um ob­ jeto e um símbolo, identificando-os em conjuntos diferentes. A base da imaginação criadora — a Abstração em sentido estrito — implica na facul­ dade simbolizante que permite a formação do conceito, da idéia, distinta do objeto con­ creto que toma-se apenas o exemplo, a referência, o lado do avesso. A técnica que passa a utilizar não se limita mais à simples colocação das camadas de cores. Ao contrário são as sucessivas camadas de impasto, pinceladas e espatuladas violen­ tas e mescladas, as texturas e os sulcos que produzem a obra. A substituição da antiga or­ dem é um processo que amadurece vagarosamente e exige do artista uma luta consigo mesmo, experiência que se reverte integralmente para a tela. Dessa maneira, a abstração de IC é uma massa permeada de substâncias que perseguem esquemas de pensamento, ora imaginários ora figurativos. Com esses esquemas ele organiza as matérias, confunde as formas e a Forma, trabalha a ambiguidade dos signos, articula as linhas de força, acelera e desacelera o ritmo dos gestos, enfim, deixa visível o percurso da identidade de sua lin­


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guagem e alcança manifestar-se enquanto sujeito na tela. O esforço é para unir regiões, or­ ganizar um espaço aparentemente solto, estruturar os limites das possibilidades,,, fazer e refazer num continuo. Fazer emergir o que estava ausente, criar a imagem de “ pintura pela pintura” . Em um grande número de obras, a superfície apresenta-se como “ cavada” em sulcos de onde podem surgir formas que, por vezes, sofrem contornos; onde a linha é um limite vazio, o contorno do nada — onde ela é pura esimplesmente — ou, inversa­ mente, onde as formas possuem contornos e se interpenetram pelo “ fundo” . . ...“ Agora é verdade que o indivíduo trabalhando numa abstração ele se torna mais formal no sentido daqueles valores plásticos, a gente é menos enganado pelo que vê... por­ que na verdade o quadro desde o início ele se planta, ele se coloca, e todas as mudanças que depois acontecem, ele já mantinha um rumo que ele foi antes” . (2) Iberê insiste em deixar claro que, quando trabalha em abstração, vivência os “ limites da plástica simbólica” . Não procura o “ elo” com o real empírico, objetiva sua obra como se os signos fossem “ modelos” , “ fontes” , “ condutores de energia” , que muitas vezes surgem como criações deformadas e chegam ao nosso olhar como “cubos” , “ pirâmides” , “ setas” , “figuras” , “ cruz” , “ chis” , “ mãos” , entre inúmeras outras espécies. A pintura deve carregar o impacto do olhar e, para que sejamos capazes de usufruí-la, somos obri­ gados a romper com o cotidiano do olho e nos lançarmos na imagem, no exame e cons­ tatação do que existe lá, naquele espaço infinito — a tela aberta a diversas, e até contra­ ditórias possibilidades. Ê um trabalho do logos e também do sensível. Não existe men­ sagem em su? abstração, nem busca refletir algum tipo de natureza íntima que possa estar contida nas coisas; suas imagens (que, em alguns casos, possuem breves estudos e em outros são pintadas diretamente sobre a tela) se dispõem segundo o critério da criação. Não há um referencial direto ao social, ao metafísico ou ao lingüístico, embora existam elementos cuja leitura implique uma relação com muitas outras áreas do conhecimento além da história da arte. Gilles Deleuze (3) diz que Bacon faz a pintura do grito porque coloca visível o grito. Estendemos essa afirmação a Iberê Camargo. Ele torna visível não só o grito, mas igual­ mente o desespero, a luta, 0 medo e o místico. Mais recentemente, nas telas de 83/84, evidencia a própria questão da identidade pessoal através da mão, do sangue, da semelhan­ ça fisionômica — sinais que denunciam a equação da sua pintura, processo no qual é cons­ ciente: “ Agora eu, a minha vida, a minha pintura é do desespero, porque é a única posição de um brasileiro, de um sul-americano, eu acho. Não pode construir, não tem meios e não tem formação, só tem a dignidade” (4). A reflexão não diz respeito apenas ao “ aspecto regional” , diz respeito principalmente à posição do homem atual na sociedade contem­ porânea — a ansiedade, a angústia, o jogo das probabilidades incertas são situações de fato presentes na pintura, estão vivas nessa região que é o quadro. A aparente “ desorganização” da tela, que nos leva a um recondicionamento do olhar, habituado à horizoritalidade das formas, deve nos reconduzir a uma “ transmutação ótica” para alcançarmos a desestatização que marca essa espécie de visualidade abstrata. Nela os signos não refletem de modo direto as coisas e sim opiniões, saberes, idéias, e todo nosso percurso é o de reconhecer seus significados, que não coincidem necessariamente com a linguagem verbal. Assim, mesmo quando na obra de IC se esboça a figura ou o

(2) Retirado dos Depoimentos de IC em 23/08/83 e 20/09/83. (3) Deleuze, Gilles — "Peindre le C ri" — in Critique, maio/1981, n? 408. (4) op. cit. (2).


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modelo, trata-se na verdade de uma operação do imaginário. Na sua produção, ali onde muitos identificam uma figura, outros vêem uma mancha; não é este instrumento o parâmetro definidor da abstração do pintor e sim a relação entre a pulsào e a estrutura, a organização dos limites, e até os não-limites da tela. Compreendemos essa relação como a disposição entre os micro elementos e o todo; a pulsào e sua lógica interna são uma cons­ trução organizada, e o pintor detém o controle das correspondências entre o micro e o macro da pintura. A pulsào é simultaneamente pincelada e forma, agindo como uma só substância. Ao conjunto, ao macro, chamamos estrutura — não estaremos mais diante do que inicialmente nomeamos “ desorganização” mas perante a coesão do cosmos pictórico. As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas pela percepção vigente. A positividade de Iberê extrapola o grande domínio técnico que sua obra exige e revela: ela não pretende o “ belo” , porém contém o belo, ou melhor, guarda em si "o belo e afera". Fera inevitável, ineludivel, que lhe dá a compulsão do pin­ tar e produz o outro do belo. Em sua produção estão presentes todas as cores, aplicadas em multi-direções, criando algumas vezes dificuldades para se encontrar a cor pura pois não há uniformidade no fundo — uma cor se derrama, se emaranha por outra e, não raro, não vemos a passagem. O preto, sempre muito atuante, contradiz o princípio físico e se apresenta como a presença de todas as cores. Existem “ pontos luminosos” em todos seus trabalhos de linha abstrata. Correspondem a segmentos localizáveis no conjunto e são os que ao primeiro olhar se des­ tacam por sua fulguração — são os “ graus” mais claros da pintura que se sobressaem no preto agindo no equilíbrio cromático. Em alguns quadros esses pontos luminosos alcan­ çam seu limite fora da tela: as formas completam-se na mente do espectador. Fora, e não dentro daquele espaço. Nos últimos trabalhos, além da presença dos signos, constatamos a introdução freqüente da sua auto-imagem. Essa manobra, que a tradição denominou “ auto-retrato” , com Iberê assume a forma de pensamento; para pensar a pintura não é mais possível estar à margem dela; deve-se estar dentro dela, atestando uma visão total e absoluta. Por isto, o artista se coloca de frente, de perfil, como duas silhuetas que se entreolham, no branco e no preto, no positivo e no negativo, como ícones autobiográficos. O pintor se vê como o redimido que sofre, transfigurado pelo trágico, mas que tem como tarefa inesgotável a pin­ tura. Daí, em tantas telas, a presença da mão, o agente da pintura, o instrumento do seu pensar. Em alguns quadros ele ainda segura o pincel — a mão como o condutor do ima­ ginário. Cabe a nós perceber que, depois da fotografia, não há sentido o auto-retrato des­ critivo; ser fiel a si mesmo não é uma questão de reproduzir a própria imagem enquanto mimese. A contemporaneidade impõe ao artista essa “ representação” como um problema a ser resolvido. Os significantes estão lá, dependerá de nós captar seu “ ego pictórico” através de uma leitura que nos permita absorver a colocação do pintor consigo mesmo na tela. Poeticamente ficam do seu corpo na tela o movimento, o gesto, a presença da paixão, os limites, a garra do traço, a luz no ponto certo, a força do inquieto... e não haveria outra colocação senão aquela, outras formas senão aquelas, outra tensão senão aquela. Trechos dos Depoimentos de IC em 23/08/83 e 20/09/83 (RJ) LV: A década de 40 foi marcada na Europa e nos EUA pela abstração. Em 1951 a Bienal de SP apresenta parte da visão plástica internacional. Que influências estes eventos tiveram para você chegar na década de 60 aos “ Carretéis” ? Se é que tiveram.


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IC: Esses acontecimentos... eu sinto certa dificuldade, porque sou uma pessoa muito solitária na minha caminhada, jamais me filiei a um grupo, segui uma escola ou tendência, continuei tirando as coisas de dentro de mim mesmo. Estes fatos todos aconteceram, tomei conhecimento, mas as Bienais de SP eu não as acompanhei, não freqüentei, a não ser, eu acho, quando recebi um prêmio. Eu não saio, minha vida é muito “encapsulada” , de forma que isso que tu estás me perguntando pode ser porque influências existem, é claro, a gente vive dentro de um contexto, todos nós somos participantes do momento em que as coisas acontecem. Mas não conscientemente eu vou me filiar por uma questão ideológica, não vou assumir porque estou convencido de que a abstração ou figuração é o caminho, é a modernidade, a contemporaneidade, eu jamais tomei esta posição. As coisas aconteceram por uma decorrência lógica do meu trabalho, como agora, por exemplo, eu pintei umas figuras e então se diz: “ é uma contradição” , antes fazia abstração e agora sai com figuras... eu não vejo contradição nenhuma, porque estas coisas do sujeito se con­ dicionar, isso é muito escolástico. Quando a gente sente profundamente a vida, ou o que a vida nos prova, porque acho que a coisa mais importante mesmo é viver, é o que acontece na tua vida e como tua vida se extrai, se restringe — todos acontecimentos da vida vão determinar tua expressão. Então, quando o sujeito “ morde o pó da terra” , quando o in­ divíduo vive profundamente e sente a precariedade de tudo e a fugacidade do momento e põe em discussão a própria eternidade, o próprio legado que tu vais deixar na tua geração, para este país, para este mundo, mas mesmo isso é transitório! O que é eterno aqui? En­ tão, quando a gente tem uma noção disso, sentida como vivência, aí eu já não posso mais respeitar os limites, não posso mais dizer que pertenço aos vermelhos, aos amarelos, aos pretos... é a vida, compreende? O que acontece em mim, acontece, e se justifica pelo fato de acontecer. LV: Tomando as críticas que saíram nos jornais na década de 60, você tem um des­ locamento na coluna que te obriga a ficar mais parado, mais detido no atelier... aí você chega aos “ Carretéis” , que digamos, foi o “ veículo” para a abstração. Acho que isto foi um dado importante sim, mas acho que a abstração devia estar dentro de você, porque tal­ vez outro artista continuaria fazendo os “ Carretéis” e não chegaria onde você chegou. IC: Realmente nesta época que tive este acidente me interiorizei mais pelas circuns­ tâncias, o fato de não poder andar, carregar peso, o cavalete, tive dificuldade física e isso me obrigou a uma vida mais de atelier, mas isso vem confirmar o que te disse antes — a vida determina o caminho que tu vais seguir, são os acontecimentos que impõem a tua conduta e as tuas respostas. Eu fui me interiorizando... L V: Então a abstração tem muito mais a ver com teu processo interior? IC: E, tirando de dentro. As coisas estão muito mais mergulhadas em si mesmo, não é? E claro que o artista mergulha no mundo, mas o mundo está dentro dele evidentemen­ te, mas ele mergulha nas coisas mais íntimas. L V: Como pintar a dor, o grito, a cor, a emoção, a razão, a idéia que são abstrações? IC: Ah! eu nunca pensei em pintar estes nomes que tu estás dando, estes títulos, es­ tes poemas que tu estás inventando. Eu nunca dei nomes às coisas porque isto não existe em pintura. Ela pode ser um grito, e acho que ela é um grito, mas não dizer... que re­ presenta um grito, ela é um grito. L V: Em que medida De Chirico e Lhote influenciaram tua formação? IC: O importante é tu teres contato com o que é autêntico. São pintores, sabes. O Lhote era uma pessoa muito teórica, um sujeito muito lúcido, o outro era uma perso­ nalidade. Termos contato com pessoas que realmente têm densidade, que realmente são e que sabem ver, sabem dizer, sabem pensar é muito importante, não é? Porque justamente


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o problema do Brasil é a solidão intelectual, não encontrar uma pessoa que diga. que faça uma referência ao teu trabalho, que pese, que te oriente — esta referência leva a uma reflexão do teu trabalho. Porque o sujeito pode dizer coisas, mas quem disse não tem peso para dizer aquilo. Esta densidade cultural que eu acho que existe na Europa, que acho que nós não temos. Nós somos de uma pobreza impressionante. Acho que todo contato com um artista moderno importante, como Guignard, quer dizer, um homem autêntico, que viveu as coisas, a sua arte. um artista de verdade. Acho que o que é autêntico sempre nos enriqueceu, contribuiu. Por isso. às vezes um poeta que fale sobre teu trabalho tem sen­ tido. porque ele tem intuição, porque ele também é mãe, ele sabe os problemas da ges­ tação. ele conhece. O criador sabe, então pode através do que sabe ajuizar. Eu sempre tive muito medo, porque sempre digo que um dia não saberei mais o que é pintura, mais nada, porque me afastei tanto. sabe?... Agora eu, a minha vida. a minha pintura é do desespero eu acho. Ele não pode construir, não tem meios, não tem formação, só tem a dignidade. O latino-americano é o homem que tem que pintar a morte porque outro caminho não há, eu não vejo. O sujeito vai entrar por essa área que falávamos, coitado, não conhece nada. Não sabemos fazer nada. nem papel higiênico... então, o artista não tem meios, não tem como trabalhar, é um país miserável. LV: Iberê, como foi seu processo na Europa no sentido do olhar, do treinamento da mão? IC: Ah! eu olhava muito, centímetro por centímetro como era a relação do quadro, como ele tinha sido feito, como um marceneiro que chega numa marcenaria como apren­ diz e procura ver como o sujeito faz os encaixes, como aquilo está resolvido no sentido de como as coisas são feitas. A parte artesanal sempre me interessou muito para aprender. Mas o que uma pessoa pode fazer senão se debruçar sobre as múmias e prescrutá-las? Por­ que toda história é assim, toda descoberta... você chega e lê nas pedras o que o tempo trabalhou, palavras, pedaços de palavras e tu tens que recompor o pensamento e é assim que se aprende. LV: Naquela ocasião na Europa, quem você admirava, a gente tem sempre alguém com quem se identifica. IC: Bom. naturalmente é um choque violento, não é? Quando desembarquei em Por­ tugal. fui correndo ao Museu das Janelas Verdes porque tinham me dito que lá existia um Raphael e aí eu sai correndo... eu nunca tinha visto, Inumca tinha tocado, quer dizer, aquela coisa que é você ver pela primeira vez; então, essa emoção toda... quando você chega diante daquela montanha de arte, o sujeito fica louco, não é? Eu nunca tinha visto nada... aquele impacto assim arrasador... o cara tem vontade de sair para a rua e dizer “ eu não sou pintor, sou dono de um cartório” , inventar uma coisa assim porque não dá. Eu passei pelos ateliês porque não dava, não havia tempo; juntei o que pude para encher o saco como aqueles famintos que, quando chegam, começam a encher o saco. Mas aquele saco por maior que fosse, era pequeno, porque a montanha de ouro está lá, o que poderia trazer é esta consciência, compreende? Isto que estou falando é o resultado de uma cons­ ciência adquirida da nossa diferença, por isso eu digo que o único caminho é o desespero. LV: Além da visualidade adquirida, em termos de vivência, quais foram as marcantes na tua obra? IV: A vida quando você vai vivendo, respondendo a tudo isso, o mar está calmo, o horizonte tranqüilo, não há nada, nem sinal de tempestade... mas um dia acontece, então ai acontece a tempestade... um negócio que você nunca imaginou... então você vai perder todos esses respeitos, todos esses compromissos que você tem, porque você sem querer ' tem compromissos com a estética... e vai, sem querer, vai se engajando num contexto his-


S IN A L , Iberê Camargo, 1984, óleo sobre tela, 25 x 35 cm

tórico... o sujeito está muito bem enquanto ele estiver respondendo comportadinho ao sis­ tema. Não há nada de sagrado “ chê” , não há sagrado a não ser teu desespero, tua dor profunda, todo teu ser que sofre. LV: Existe alguma relação entre as suas naturezas-mortas e as de Morandi? IC: Bom é possível que houvesse influência porque é claro que sempre o pintor da metrópole vai influir no pintor do outro mundo. Mesmo que eu veja que há um paralelis­ mo, sempre vai aparecer você na história como sendo influenciado por outro. LV: Mas você acredita nisso? IC: Mas a história registra assim, porque quem escreve a história é o vencedor, é o rico, é ele quem escreve a história. Agora sei que fui muito influenciado por Utrillo, que agora não me diz nada. Recebi influência de outros pintores, me debati de todas as ma­ neiras. Foi uma luta tão dramática a de me encontrar. L V: Van Gogh, você se identifica com aquela pincelada dele? IC: Não, eu não... falei nele porque acho que é um passional, nesse sentido eu me identifico com todos esses indivíduos que realmente pintaram com alma e isso eu acho im­ portante. LV: E o tachismo Iberê? Você falou na mancha e eu me lembrei do tachismo. IC: Pois é... mas eu nunca fiz assim uma pintura desordenada, sem saber o que estou fazendo. O tachismo pega mais o gesto, não é? LV: Você já trabalhou direto na tela?


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IC: Trabalhei muito; às vezes eu esboço antes com o carvão, mas não necessariamen­ te. Esse filme que foi feito, eu trabalhei diretamente na tela a partir de uma figura. Esse painel que vai ser exposto (refere-se ao trabalho exposto em 09/83 no Centro Empresarial Rio — Coletiva “ 3/4 Grandes Formatos”) eu desenhei antes, mas depois me afastei tanto do desenho que é como se não tivesse desenhado, ficou apenas para dizer que agora é essa massa aqui... porque eu sempre refaçoe redesenho tudo, então... esse painel foi documen­ tado por um fotógrafo, tinha desenhos até bonitos, mas depois tudo sumiu. L V: As coisas que você escreve têm alguma relação com a sua pintura? IC: Bom. porque tu sabes... tudo é um problema de forma, de linguagem... escrevo cartas, gosto de literatura, escrevo para mim, gosto de escrever sem pretensão. No pintar, no desenhar, sempre achei que a pintura na verdade são três traços, é geralmente muito simples. São três palavras aquilo tudo, e na literatura também. L V: Outra coisa que tenho pensado em cima de seu trabalho, das figuras que estão vindo... é como se pudesse dividi-lo em vários espaços, onde as regiões tivessem uma leitura, que também está articulada com o todo. Por exemplo, lembras da mão que tu fizeste num dos últimos painéis, aquilo já é um quadro. IC: Aquela mão. tu sabes, foi um sinal de trânsito em Porto Alegre — é uma mão vermelha de pare. sinal de trânsito de noite, o fundo é escuro. Mas eu acho que o ponto de partida de um pintor é sempre um alçapão, quer dizer, alguma coisa que serve para atrair; o indivíduo pensa que está desenhando aquela mão pelo fato de ter visto aquela mão no crepúsculo, que ele viu no sinal, enfim... mas eu acho que aquilo é uma ilusão, é um pretexto, no fundo acho que aquela mão tem uma simbologia muito maior, não é uma mera mão de trânsito. É uma mão que vai, que deve ter uma ligação com seus ancestrais, com a sua vida, não sei... deve ser uma coisa muito profunda. Aquilo foi apenas o detonador de uma outra coisa que aparece com aquela forma. LV: .E os dados? Os cubos? Os olhos? IC: Eu também não sei porque, sou um homem que jamais brinca com o azar, com a sorte... aconteceu aquilo. Eu espero que acabe... que eu chegue ao fim dessa estrada. Um dia acaba... surgem outras coisas. É sempre assim... e tem que necessariamente viver aquilo porque não pode pular, não pode anular aquele espaço de tempo que está, o marco que vai mudar as coisas. Não sei, o que sinto em mim é muita vitalidade, posso estar en­ ganado. com muita possibilidade de fazer coisas mas o meio é muito restrito, tudo muito complicado pela falta de material para o sujeito se expandir mais. Eu tinha vontade de fazer gravura com vários impressores mas não tem, tudo é “ choco” , mole, morto. Então fico eu sozinho na minha loucura... LV: Iberê, quando você está fazendo um trabalho como esse, a cor... como é essa cor? IC: Nossa! Como é que eu vou saber como é essa cor. A cor é uma lingaugem do sub­ consciente, é uma coisa que vem, que está, não é uma cor escolhida, um mostruário, isso acontece... LV: Isso quer dizer que você vai usando uma cor e depois vai sentindo a que tem que colocar ao lado? IC: Ah, é, vou sentindo que uma cor exige outra, isso é um processo automático, é o inconsciente que vai vendo isso ou a experiência qúe a gente tem com a coisa, se você fosse pensar: “ agora eu coloquei uma cor, vou pensar qual é a cor que eu vou pôr” ... isso é uma frase... L V: O que importa é o diálogo do Iberê artista com sua própria obra, seu compromis­ so com ela, porque é isso que vai ficar aí na história da arte do Brasil. Atualmente como você está vendo esse diálogo com sua obra?


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IC: Eu acho que esse monólogo... eu às vezes me sinto preso, é o que consigo por para fora. Sempre espero também que aconteçam novas coisas... na tela. Mas há um momento, não sei, parece que as coisas têm um tempo de duração, as coisas permanecem como ob­ sessão e eu pergunto quando esse pesadelo, essa obsessão vão acabar, quando terei outra obsessão; eu não sei... então fica aquela margem... aquela coisa... porque no fundo parece que o indivíduo sempre repõe o mundo outra vez.


ESP A ÇO M O D IJIA DO NP 4 1958, tinta industrial/madeira, 50,5 x 50,7, col. JoãoSatamini.


Lygia Clark: a dissolução do objeto

M A R I A C R IS T IN A B U R L A M A Q U I

A singularidade da trajetória da obra de Lygia Clark está na dissolução do Objtto como forma de abolir a distância entre arte e vida. Por isto a importância de Lygia Clark tem sido constante, a ponto de acompanhar toda a história da escultura contemporânea no Brasil. É fundamental, portanto, que se abra espaço para a releitura da trajetória Neoconcreta da artista, mesmo 25 anos depois do Manifesto Neoconcreto, já que o dinamismo de suas formas pressupõe uma ação de forças que se converte numa sucessão de rupturas no campo da arte. Plano, Espaço e Tempo A pressuposição imediata é o “ passado" construtivo (1) de Lygia Clark, ou seja, a questão do Cubismo e seu rompimento com o espaço perspectivado renascentista. A disassociação dos elementos pictóricos e a inteligibilidade do Plano já estavam conquistadas no momento em que ela adere, nos anos 50, a uma linguagem abstrato-geométrica, com a participação no Grupo Frente no Rio de Janeiro (1954), no Concretismo e depois no Movimento Neoconcreto. É evidente que a abstração geométrica tem suas bases no Cubismo. O que queremos demonstrar não é a simples compreensão na sua obra do Cubismo, pois isto está subenten­ dido pela linguagem construtiva, mas como ela vai trabalhar o Cubismo como um pro­ blema. Problema do plano, espaço e tempo. É esta questão da pintura a questão inicial de Lygia Clark e que aparece até mesmo nos Bichos (1959). A artista não teve uma formação acadêmica. Começa a aprender “ coisas” com Burle Marx (1947), depois em Paris tem aulas com Léger, Szenes e Dobrinsky. Voltando ao Brasil, em 1952, se filia ao movimento Concreto Brasileiro em 1954. Seus primeiros temas são escadas, sobre as quais tece a seguinte consideração: “ O espaço das escadas era incrível porque nunca se sabia se estava subindo ou descendo. Ali estava o cerne do Bicho” (2). A Obra de Parede Partindo da noção de que o espaço não é algo que éxista em si mesmo, Lygia Clark vai procurar nas suas primeiras telas concretas o rompimento com o espaço pictórico tradi-


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cional. Espaço pictórico tradicional sim. pois Lygia Clark usava tela, moldura e tinta, resolvendo a pintura no quadro convencional. No entanto, isto não a satisfaz e logo busca formular um vocabulário para exprimir um novo espaço, pintando a moldura da cor da tela. A preocupação era a “de arrebentar o núcleo do quadro (tela), levando a cor desta para a moldura, a própria espessura da moldura já começava a entrar também como elemento plástico” (3). Nestas primeiras tentativas, joga em algumas telas a cor até um determinado ponto da moldura de acordo com a própria composição do quadro. A pintura começa a se fundir com o suporte. Moldura e tela se confundem, uma invadindo a outra, quando Lygia Clark pinta a moldura da cor da tela. Depois, ao pintar partes da tela até a moldura, o espaço passa a se organizar de maneira cromática, chegando mesmo a ampliar o espaço pictórico, saindo da moldura. Não é uma pintura fechada nela mesma, a superfície se expande igualmente sobre a tela. separando um espaço, se reunindo nele, e se sustentando como um todo. É bom lembrar que. dentro do movimento concreto, estas tentativas de Lygia Clark estavam já bem distantes dos postulados racionalistas. Mondriam deixa assim de ser pen­ sado como uma estrutura fechada em si mesma, recordando que estas formas geométricas já haviam inspirado a Calder e seus móbiles, que fazem flutuar no espaço as formas co­ loridas de Mondrian.

Esta análise intuitiva, própria de Lygia Clark e do Neoconcretismo, abandona o rigor formal do construtivismo. chegando através das linhas oblíquas e formas ortogonais à desarticulação do quadro e ao rompimento com a moldura. É uma tentativa de abolir a dis­ tância entre o espaço da tela e o espaço real. E é aí que Lygia Clark dá o salto qualitativo, não só em sua obra como dentro da linguagem construtiva. Quando, nas obras Neoconcretas. ela extrapola a moldura, não há um lado por onde abordar, a abordagem se dá por todos os lados: o espaço da pintura não se resume nele mesmo. Com a ausência de linhas verticais. Lygia Clark nega os limites da moldura e a verdade passa a ser o próprio espaço que se está formando à nossa frente. É a critica à contemplação. Max Bense. em sua Pequena Estética, dizia “coordenar um esquema finito de repar­ tição de probabilidade de seus elementos materiais ou signos, então a moldura do objeto artístico fixa de certa maneira este esquema finito” (4). Max Bense usa o sentido da mol­ dura como margem que “ fixa não só a finitude do objeto artístico, mas também o ta­ manho, o formato e a intensidade" (5). Pressupõe a pré-ordenação ou seja uma decisão' sobre o objeto estético. Ao atravessar a moldura, Lygia Clark cria o objeto no espaço real. cria o espaçomodernidade. Pois. a “função da moldura de quadros relaciona-se também com a psi­ cologia de figura e fundo” , segundo Arheim (6) em que o quadro como superfície limitada é a figura, que colocada sobre a parede se torna fundo. O rompimento da moldura realiza também o encontro com a arquitetura, pois ela tem o mesmo problema da janela, resolvido na arquitetura moderna com as paredes que se tornam grades de planos horizontais e vidros (vide Mies Van de Roh). A idéia de Mondrian de que o espaço virtual, de coordenação abstrata, passasse da idéia à ordem real, e a de Malevitch de que o fundo da tela não é o lugar do pensamento ar­ tístico mas o seu modo. afirmam que não é mais o objeto o que importa e sim o projeto. O lugar efetivo do pensamento será o espaço público. É o desejo de Lygia Clark, “eu sempre proçurei um espaço que não fosse mecânico, esse espaço em que fecha o olho e lê meca­ nicamente o quadro através de pequenas fórmulas. Eu queria um espaço orgânico, em que se pudesse entrar dentro do quadro” . (7) Desde o inicio, a linha era uma de suas preocupações: a linha entre a rela e a moldura,


PLANOS EM SUPERFÍCIE MODUIADA. n? 6 série B 2? versão, 1958. tinta industrial/madeira, 1,06 x 28,9.

ESPAÇO MODULADO. n? 4 série B 2? versão. 1959,85,5 x 29. col. Gal. Bonino.

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linha não gráfica, que aparece nas “ junções de portas e caixilhos, janelas e materiais que compõem o assoalho” passando a chamar “ linha orgânica” pois era real, existia em si mes­ ma, organizando o espaço, “ era a linha-espaço, fato que eu viria perceber mais tarde (8). Nessa época dedica-se a experiências para aplicação na arquitetura. A sua pintura en­ tão seria uma porta, assim como em Le Corbusier, na tentativa de solucionar racional mente a vida, o objeto-quadro se transforma em objeto-casa, uma nova estruturação do es­ paço habitado. Lygia Clark quer se inserir desse modo no real que é a arquitetura. No en­ tanto. prosseguindo as pesquisas sobre o que chama de linha orgânica , ela \ai buscar em Albers um apoio para sua recusa da forma seriada concretista, uma \ez que Albers rejeita a matematização da cor e do espaço. A Experiência Fenomenológica Ao retornar à questão da forma significativa, a artista rejeita tanto o conceito tra­ dicional do quadro quanto a temática concretista, tentando enfocar o quadro como um todo orgânico. Desde o início procura desenvolver um trabalho com um sentido mais or­ gânico. fugindo aos preceitos ortodoxos de Max Bill. O espaço concreto era tão-somente um espaço fragmentado em que a leitura do olho era feita ponto a ponto — já Lygia Clark pretendia que o espectador e o quadro, por assim dizer, se interpenetrassem. A obra é aceita como uma experiência estética na qual o olho não é apenas um instrumento; é um olho que percebe e ordena o mundo. As metáforas em Lygia Clark são da ordem do corpo. Ao invés de estruturar partes, formando unidades de tipo concreto, geometrizada euclidianamente, utiliza-se da dinâ­ mica da forma. É aí que a força criativa de LC encontra Merleau-Ponty e sua Fenomenologia da Percepção. Para ela o importante será o corpo, a experiência da “ carne” . Quando descobre a linha orgânica passa a investigar a origem de sua significação num es­ forço de chegar a uma linha não mais geométrica e sim com uma ligação corporal. Em Merleau-Ponty a obra de arte contém uma nova percepção da experiência do cor­ po. O paradoxo, a ambigüidade, o enigma e o mistério não são eliminados e sim reinterpretados, decifrados pela experiência fenomenológica. A obra de Lygia Clark inicia ai o processo crítico da linguagem construtiva, utilizando-se da filosofia do corpo para refazer o espaço. E um espaço em muitos aspectos paradoxal porque não há um exercício da forma e sim um espaço que parte do Eu, vivenciado por dentro, sem o invólucro exterior, eli­ minando o sujeito contemplativo e pretendendo fazer ressurgir o sujeito participante-domundo. Merleau-Ponty submete à análise a Gestalttheorie e opõe a ela uma filosofia da forma. Nela a obra de arte é vista como experiência fundamental da carne. É no próprio embate com a Gestalt que os Neoconcretos colocam a decisão de eliminar figura x fundo. O tema é a Ambigüidade, porque vem da experiência do corpo, da volta às “ coisas mesmas” , um “ exercício de liberdade” , uma percepção movida pela sensação em oposição ao dogmatismo e ao objetivismo concretistas. Já com o rompimento da moldura Lygia Clark colocava uma ambigüidade de direção: a obliqüidade das linhas lançavam a pintura para fora e ali encontravam o espectador.Quando ela toma a linha orgânica, que vem do seu corpo, está “ emprestando o seu corpo ao mundo , transformando o mundo em pintura, deixando de ser apenas um operador perceptivo para perseguir uma união e uma passagem do visível e do móvel. A busca não


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tem uni caráter unicamente experimental, considera o momento existencial como o momento decisivo da experiência. Ela propõe assim uma nova visão da problemática cons­ trutiva onde a transcendência será a especificidade do objeto artístico. Superfície modulada As possibilidades de estruturação perspectivistas, redutíveis ao Plano, na obra de Josef Albers, vão dar subsídios à artista para realizar as Superfícies Moduladas. Apesar das afinidades com a Gestalt, a pintura de Albers não tinha efeito apenas ótico — é uma per­ cepção inteligente, sem racionalidade mecânica. Os quadrados em Albers se revezam, agindo, criando relações diferentes: o espectador deve construir relações também; Albers quebra a estaticidade da superfície através do jogo dos planos. O encontro com Albers vai marcar a percepção espacial em Lygia Clark que será dis­ secada até os Bichos. Daí em diante ela passa a usar a linha-espaço de maneira a construir os planos e a delimitar a própria cor. Considera, porém, o sentido de espaço em Albers diferente, pois “ Albers ainda construía sobre o fundo, ao passo que a minha maior preocupação era reconstruir toda a superfície para que o espaço externo não só as interpenetrações, como também passasse a agir sobre elas diretamente. (...) O caráter expressional-orgânico passou a existir novamente, pois o que queria expressar era o espaço mes­ mo e não compor dentro dele” (9). Usa assim a linha orgânica como uma linha exterior, independente das junções do quadro e o espaço, criando o próprio tempo da obra. A pin­ tura se fazendo e se refazendo como o mundo. Já não se trata de fazer pintura, mas da pin­ tura fazer-se. As Superfícies Moduladas (1956-1958) querem “ mostrar através” , o espaço expres­ sivo de uma relação positivo/negativo. E querem ainda pensar a questão do tempo Vivido em contraste com o fundo mecânico das obras seriadas do Concretismo: o espectador e a forma seriada se colocam distantes um do outro, sendo a leitura imediata. O pressuposto de Lygia Clark é o tempo Vivido, trabalhando o tempo virtual e deixando ao espectador a leitura da obra. A obra se apresenta outra a cada leitura, havendo pois a recriação constan­ te da obra de arte. No encontro com a linha orgânica, Lygia começa a pensar o conceito de participação do espectador, que vai se efetivar nos Bichos. O que se inscreve aí ela vai chamar de linha-tempo e que seria a questão limite do Cubismo, a 4? dimensão. As quatro dimensões para Malevitch são as 4 formas da ma­ nifestação da consciência. E a 4? seria exatamente a Intuição. Para Malevitch o artista deveria reunir todos os aspectos do conhecimento e da visão para obter a 4? dimensão que é a Realidade. Malevitch coloca o Intuitivo na arte: Lygia Clark faz suas experiências de maneira crítica, mas intuitiva, descobrindo, estudando e redescobrindo incessantemente as questões da linguagem pictórica ou escultórica. Partindo da experiência concretista e seu tempo mecânico, Lygia Clark na Superfície Modulada (1956) ao contrário de Albers que constrói com a linha, constrói formas; a superfície é só o suporte “ para expressar o tempo-espaço” . A linha-tempo preta sobe e desce incessantemente. Está evidente a li­ gação com a Gestalt quando a linha interrompida no Ovo (1958) deveria ser completada pelo olho e não é. Um círculo de madeira preta (cor limite não-cor) e a linha branca que o acompanha quase até completá-lo. E a fisionomia do círculo. Casulos e Bichos Lygia Clark sai da dimensão da tela e se lança no espaço com os Casulos. Estes seriam


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relevos porque a superfície não é determinada pelas formas; não seriam escultura porque não há propriamente volume e massa e fogem também da bidimensionalidade da pintura. Vêm diretamente dos Contra Relevos de Tatlin e têm o sentido malevitchiano de saltar para o espaço. No periodo de 1912 a 1930, sobretudo, os artistas realizam experiências cubistas visando sair da superfície para o espaço. Efetivam no objeto as proposições cubistas, fa­ cetando os volumes em ritmos fragmentados, transportando os planos da pintura para a escultura. Tatlin. em especial, realiza com formas geométricas uma articulação orgânica e funcional. Lygia Clark nos Casulos segue essa tendência, questiona o dentro e fora. quer o olhar do espectador criando incessantemente um espaço topològico, proveniente das ex­ periências com a Fita de Moebius, famoso exemplo de geometria não-euclidiana. Em 1959. com os Bichos, I.ygia Clark dá outro “ salto qualitativo” através da par­ ticipação do espectador na obra. É o fim da contemplação e da reverência diante da obra de arte. Com a noção fenomenológica do homem, a interação do fora e do dentro, do antes e do depois, é a arte voltada para a existência imediata do Homem. As obras se tornam organismos vivos, tanto que ela os denomina Bichos. Tratam-se de placas unidas com dobradiças que juntam dois planos e duas partes dobradas que não mexem. O caráter orgânico é flagrante: as dobradiças seriam a espinha dorsal e derivam das pesquisas com a linha orgânica. Para ela, o Bicho é um quadro cubista que caiu (10). Quando diz isto o faz porque ali existe uma superfície cubista tensionada; articulação de planos e não de volume. Devemos, pois, observar o tamanho das peças, basicamente manipuláveis. Não poderíam ter a dimensão da Minimal A rt, evidentemente. Essa dimensão subjetiva da obra, irredutível à objetividade do mundo, propicia as condições para acabar com a base. pressuposto da escultura clássica. Porque a Base remete justamente ao problema da Representação e o trabalho artístico agora visa acontecer no mundo: não está mais fora dele, não tem uma dimensão ilusionista. É o que leva Max Bense a chamá-los kntre-Objetos. Quando a artista liquida a moldura já estava em luta com a representação e a contemplação. Os Bichos tomam a questão da experiência artística como uma experiência do Outro. O espectador, através do gesto, do tátil, em construção e desconstrução. é convocado à participação, à recriação da obra. O Bicho, “ como a visão do pintor é um nascimento con­ tinuado". Há ai o paradoxo de, sendo arte construtiva, questionarem a presença positiva da arte no mundo. A função-arte (Caminhando) acaba passando muito mais por um Existencialismo. Nada é menos positivo do que o existencialismo. O de Merleàu-Ponty, en­ tretanto, não tem o sentido sartreano pois recusa a concepção dramática do homem, sobretudo enraiza “ o sujeito-pensamento no seu corpo, no seu passado, num mundo cul­ tural onde o pensamento de cada um pode ser tomado e compreendido pelos outros” (11). Coloca-se, portanto, radicalmente a expressão. Nesta obra de força expressiva, orgânica, com dinamismo espacial, encontram-se o dentro e o fora, o côncavo e o convexo, interioridade e exterioridade, o reto e o oblíquo, o reto e o curvo. A questão não é decifrá-los e sim experimentá-los, tem a intencionalidade de “ eu posso e não eu quero” . É uma si­ tuação limite. A dinâmica das placas pressupõe cada parte no espaço. E este remete ao imediato do nosso corpo. Aqui não há a problemática da escultura tradicional: volume e massa saem do plano cubista e nesta tensão ambígua aparece pela primeira vez a tridimensionalidade, o pen­ samento do Plano. O Bicho constrói um volume mas deriva da questão do plano. A arte é vista como prática a envolver participações gestuais e ativas do espectador, um “ exercício de liberdade". Em Lygia Clark o que se move não é o espectador ao redor da obra, como


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acontece em Archipenko, Lipchitz, Laurens e Gabo, que só fizeram passar o Cubismo para o volume, permanecendo estáticos. Os Bichos vêm diretamente de Tatlin, com alguma coisa da “Constructed Head” , de Gabo (1917), principalmente onde os planos formam círculos; só que em L.C. há um eixo central e um plano circular que gira em tomo do eixo vertical, com dobradiças. Como em Gabo, estas obras são feitas de lâminas de aço em for­ mas matematizadas, cristalizadas numa tradição construtivista (material industrial), mas procuram uma comunicação mais autêntica com o corpo humano, que vê é é visto, toca e é tocado. Como Laurens, Lipchitz, Archipenko, Gabo e Prevsner a trajetória de Lygia se faz muito por ali. pela “ planar dimention” , em que a concepção do quadro como plano plástico elimina a distinção entre pintura e escultura. Só que L. Clark avança a questão: o seu objeto se move. Seria, então, o não-objeto? Aqueles artistas tentaram realizar plasticamente a decomposição da pintura, conseguindo romper a concepção tradicional da relação entre as formas plásticas e o espaço. Não conseguiram, porém, renovar á estrutura BICHO. 1959. alumínio, 32 x 1.07.


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da forma plástica e se limitaram quase a uma imitação da forma pictórica. Da estrutura de aço inoxidável elástica e deformável passamos aos Trepantes, sem charneira, que ela chama de “ antes e depois” — e finalmente Obras M oles, distanciando-se então com­ pletamente da concretude da tradição construtiva pelo material, a borracha. Caminhando. Fragmento do Tempo Captado Lygia Clark chega ao Caminhando através da Fita de Moebius e das pesquisas com o espaço não-euclidiano, o dentro e o fora, o direito e o avesso. Já nas primeiras experiências com a linha orgânica, conseguiu estendê-la para fora da tela e chegou aos Bichos (do­ bradiças), aos Trepantes e às Obras Moles. Caminhando é a experiência de um tempo sem limite e de um espaço continuo. É o espaço topológico, “ em que as distâncias não são medidas abstratas e inatingíveis nas relações, situações em função deste Eu exterior e o Eu interior” (12). Após certas Vivên­ cias em campo de forças, de impulsos, de motivações, de atração e repulsão, deslancha-se a poesia do ato e do momento. Cada Caminhando é uma realidade que se revela na totalidade no tempo da expressão. Ele enfatiza o gesto efêmero e a função-arte é questionada no momento em que perde o valor de mercadoria. O Caminhando é um “ faça você mesmo” , com uma tira de papel e tesoura. Aproxima o sujeito do objeto, corpo-a-corpo existencial, tematiza o vir-a-ser. Nos Bichos — o gesto No Caminhando — o ato E a questão da Intuição de Malevitch; a obra aparecendo em sua singularidade. Lygia Clark considera 0 Caminhando um ato imanente realizado pelo participante, com todas as responsabilidades que se ligam a uma ação individual, permitindo a escolha, o imprevisivel e a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto.


Lygia Clark: a dissolução do objeto

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“Caminhando no espaço, ela rói, no entanto, o espaço prosaico e o partes extra partes” (13). É a aproximação máxima entre sujeito e objeto. Para Merleau-Ponty seria útil recolocar o problema da percepção no presente da neurologia e, particularmente, da psicologia e da filosofia. Esta abordagem se aplica bem a Lygia Clark. Após o período artístico, em busca da dissolução do objeto, ela caminha para as Vivências, colocando o corpo humano como um instrumento de expressividade e, depois para uma interiorização, agindo como terapeuta. Isto, porém, escapa aos limites de nosso estudo. Lygia Clark e o Movimento Neoconcreto vão rediscutir, em nosso ambiente cultural, o projeto da modernidade, apreendendo sua problemática de maneira diversa ao do caráter anedótico que dominava a quase totalidade dos artistas brasileiros desde os anos 20. Com os Casulos, os Bichos, as Obras Moles e Caminhando, ela coloca o Movimento Neocon­ creto na vanguarda internacional. Avançando no processo de inovação e emancipação da arte, ela acaba chegando a um nível de radicalismo que culmina com o abandono da arte, após liquidar as categorias de escultura, pintura e relevo. Um impasse real dentro da problemática da cultura moderna.

N O TA S BIBLIOGRÁFICAS (1) Inicia-se na pintura figurativa, após conhecer Mário Pedrosa. Por sua influência, insere-se na lin­ guagem abstrato-geométrica (entr. Paulo Mendes Campos. nov./84). (2) COUTINHO. Wilson “ A radical Lygia Clark". Jornal do Brasil, Cad. B. p. 1, 1980. (3) CLARK. Lygia “ Lygia Clark e o espaço concreto expressiònal” . Suplemento Dominical do Jornal do Brasil 7.02.59 (depoimento a Edelweiss Sarmento). (4) BENSE. Max — Pequena Estética Ed. Perspectiva, S.P. 1975 pp. 67 (teórico matemático da Esc. de Ulm e um dos orientadores do concretismo. (5) Ibidem pp. 67 (6) ARHEIM. Rudolf — Arte e Percepção visual, uma psicologia da visão criadora Nova versáo — Ed. Univ. S.P. 1980. (7) Depoimento Op. Cit. (8) Ibidem (9) Depoimento Op. Cit. (10) PEDROSA. Mário — Significação de Lygia Clark. JB. 23.10.60. Ò l ) BRUNCH. Jean Louis — “ O existencialismo de Merleau-Ponty” , Suplemento Dominical JB, pp. 1. (12) PUIG, interpretando a Psicologia de Espaço de Abrahan A. Molles, diz “ Yo ampliado, de carapazones dei yo" que traduzimos por'Eu-exterior e eu-interior. Carapazones significa casca de ovo, concha de caramujo, op. cit. pp 125 Intangibles por inatingiveis. (13) M. Ponty. 1963 pp- 92.


JJJDITH L A U A N D , “ Dinamização de elementos ortogonaisJ\ 1955, esmalte s/eucatex, 61,5 x 61,5 cm. Col. do Artista.


A questão das idéias construtivas no Brasil: o Momento Concretista

V A N D A M A N G I A K L A B IN

O universo de análise é investigar as condições da inserção das idéias construtivas no Brasil, a validade de suas propostas e a eficácia de sua atuação, tendo em vista a dinâmica que as teorias construtivas vão imprimir em nosso meio de arte e as possibilidades que geram para o trabalho artistico como parte ou não de um projeto nacional. O grupo concreto paulista será o ponto de partida. Não apenas representa o primeiro momento de penetração de uma nova linguagem estética, que possibilitou a abertura de um espaço para a arte contemporânea no Brasil, como uma reflexão sobre a relação entre a atividade artística e as relações de produção. Na trajetória que a arte concreta paulista vai percorrer em sua produção teórica e em sua prática artística, serão incorporados os pos­ tulados da vanguarda construtiva européia que, de um modo geral, investem contra as atitudes metafísicas e irracionalistas que permeavam a atividade artística para afirmar a ar­ te como uma prática racional e positiva. Os artistas construtivos procuram formular um repertório para a linguagem plástica de modo que a arte passa a ser não apenas uma diretriz teórica, como um modelo para a sociedade. O construtivismo inaugura a questão de arte abstrata, porém retira da arte o seu caráter de pura fruição estética para colocá-la no campo de produção. A questão central construtiva não reduz-se à ordem estética, a nível da dis­ cussão da própria linguagem da arte como não figurativa, com ênfase na abstração e na geometrização das formas. Existe também a proposta de uma efetiva participação da arte na construção de uma nova sociedade. As transformações técnicas ocorridas na sociedade capitalista criam uma nova si­ tuação para o objeto estético, diferentes possibilidades para a sua inserção no processo social. Era necessário, pois, um outro posicionamento da arte diante das transformações que vinham sendo operadas não só no campo estético como no plano econômico. A sociedade moderna dará uma outra dimensão à atividade artística, criando uma crescente articulação com os novos meios de produção. O programa bauhausiano incluirá não só o projeto de uma nova organização estética da sociedade — herança do movimento De Stijl — como também o da sua construção política e ideológica, segundo uma visão progressista e uma crença na positividade da tecnologia: canalizar a arte para uma finalidade utilitária, estetizar o campo social e reformar a sociedade. Dada a necessidade de integrar os recursos científicos e tecnológicos ao processo de concepção das formas, o trabalho artístico adquiria também um caráter objetivo. O artista dominaria um saber que teria uma aplicação prática. Seria agora um produtor especiali­ zado de formas que serviríam ao campo industrial, intervindo ativamente no processo de


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produção. O percurso das tendências construtivas na arte se dá no sentido de resgatar a ar­ te do terreno da metafísica para o concreto. Era um projeto utópico, otimista: delegar á ar­ te o poder de transformar as instâncias sociais para construir uma nova realidade. O grupo concreto Apesar de certos indícios anteriores da penetração construtiva no Brasil, a forma­ lização desta linha de pensamento só ocorre na década de 1950 — período marcado pela in­ ternacionalização das artes através de mecanismos institucionais recentemente criados — como museus e bienais — e também pelo surto de industrialização ocorrido no pós-guerra, que levará a uma identificação maior da arte com a tecnologia. As correntes estéticas modernas passaram a ser veiculadas mais rapidamente no campo cultural brasileiro após a seqüência de inaugurações dos Museus de Arte de São Paulo (1947), do Museu de Arte Moderna de São Paulo (1948), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1949) e da Bienal de São Paulo (1951), instituições que praticamente estru­ turaram o nosso incipiente sistema de arte. A Bienal marca o período de internaciona­ lização da arte no Brasil. Ela será a porta pela qual vão entrar as correntes estéticas con­ temporâneas. com uma enorme repercussão no panorama das nossas artes visuais. Mário Pedrosa deixou registrado: “ Antes de tudo, a Bienal de São Paulo veio ampliar os hori­ zontes da arte brasileira. Criada literalmente nos moldes da Bienal de Veneza, seu pri­ meiro resultado foi romper o círculo fechado em que se desenrolavam as atividades artís­ ticas no Brasil, tirando-as de seu isolacionismo provinciano, ao facilitar aos artistas e ao público brasileiro o contato direto com o que se fazia de mais novo e mais audacioso no mundo” . (1) As contribuições decisivas para a arte brasileira serão o abstracionismo lírico e o concretismo, que colocarão novas questões para os diversos artistas que trabalhavam uma pintura de linguagem figurativa ou permaneciam ligados a uma estética de cunho nacionalista. Em 1950. a mostra individual de Max Bill no Museu de Arte de São Paulo constituise um ponto de referência básico para a emergência da arte concreta entre nós. No ano seguinte, a representação suíça terá um lugar de destaque na I Bienal de São Paulo. Max Bill ganha o primeiro prêmio internacional de escultura com a sua “ Unidade Tripartida” , obra que provocará grande impacto em alguns artistas que percorriam os caminhos cons­ trutivos. No plano nacional, Ivan Serpa ganha o prêmio de pintura com um quadro con­ creto e Abraham Palatnik recebe menção especial pelo seu trabalho, desenvolvido no cam ­ po da luz e do movimento, chamado “ aparelhos cinecromáticos” . Sobre este aspecto Ferreira Gullar comenta: “ Ao adotar a denominação de arte con­ creta, Max Bill procurava delimitar o seu campo de experiências em contradição com as manifestações ecléticas da arte abstrata às quais faltava, no seu entender, não apenas a necessária objetividade crítica, reclamada por Mondrian e pela Bauhaus, como uma orien­ tação e um objetivo. Na Bauhaus aprendera a despojar as formas de toda e qualquer aderência subjetiva e descobri-la diretamente nas qualidades imediatas dos materiais. Aprendera a lidar com as cores como fatos da percepção, focos de energia que agem no campo visual dinamizando as áreas, criando ações e reações entre si. Era este o vocabulário puro,.recentemente descoberto, que deveria servir de base para uma nova linguagem es­ tética” . E mais adiante: “ Esta preocupação de criar uma nova linguagem estética como expressão de uma nova atividade artística vai ser elaborada a partir de uma estrutura fun­ damental, cujo suporte seria a matemática, que passou a desempenhar na arte concreta o papel equivalente ao da verdadeira realidade” . (2)


A questão das idéias construtivas no Brasil: o M omento Concretista

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Max Bill assume a direção da Escola Superior da Forma, em Ulm, dando prosse­ guimento aos ensinamentos da Bauhaus e estabelecendo como projeto básico a integração da arte na sociedade contemporânea. Suas formulações teóricas terão importância decisiva para o desenvolvimento da arte concreta. As idéias centrais desta escola vão encontrar um solo fértil na América Latina, onde alguns países optarão por uma tendência construtiva, sobretudo a Argentina e o Brasil. Podemos destacar, também, no planp interno, a presença de teorias gestaltistas a res­ peito do campo ótico e da percepção visual. A tese defendida por Mário Pedrosa na Facul­ dade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, cujo texto: “ Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte” terá grande influência sobre vários artistas brasileiros ao colocar a questão do caráter próprio da forma; ou seja, o conteúdo de uma forma não se encontra na associação com as formas da natureza. Waldemar Cordeiro, um dos principais lideres do grupo concreto paulista, acrescenta a este respeito: “ O interesse pela gestalt — tantas vezes mal compreendido e mal empregado — tem por base a indagação sobre a ra­ cionalidade da forma, tanto comum como artística, indistintamente, sem diferenciações idealísticas. A racionalidade da obra de arte é o fundamento de sua objetividade, e é nesta objetividade que se realiza o conteúdo histórico-cultural; segue-se que a obra de arte não só pode e deve ser racionalmente definida, como também não pode deixar de ter uma li­ gação imediata com o real” . (3) Se no princípio alguns artistas plásticos já desenvolviam alguns trabalhos em torno de formas geométricas abstratas, tendo porém uma atuação isolada, como Almir Mavignier, Ivan Serpa e Abraham Palatnik, em breve eles constituirão um núcleo importante. Em 1952, temos o aparecimento do Grupo Ruptura de São Paulo, liderado por Waldemar Cor­ deiro e Geraldo de Barros, que seria a base do concretismo paulista. Entre os principais ar­ tistas que integravam o movimento destacava-se Luiz Sacilotto, Lothar Charroux, Hermelindo Fiaminghi, Maurício Nogueira Lima, Judith Luaund, Kazimir Fejer, Anatol Waldislaw. Uma Estratégia de Ação Cultural A década construtiva coincidiu com a. da promoção e aceleração do crescimen­ to econômico do país, especialmente através do fortalecimento do mercado inter­ no e o incremento da produção industrial. O término da D Guerra Mundial veio trazer profundas modificações para a sociedade brasileira, abrindo novas perspec­ tivas para os diferentes setores da sociedade, com importantes repercussões no plano cultural. O período que se segue ao conflito mundial será caracterizado pela definitiva emergência do setor industrial que toma-se a área mais dinâmica da economia brasileira. Haviam sido criadas condições favoráveis, facilitando o desenvolvimento da economia e da indústria em particular, que recebe um grande impulso devido aos enormes saldos em divisas estrangeiras acumuladas durante a guerra, em disponibilidade para financiar a in­ dustrialização. Aliava-se a esses fatores a existência de um mercado interno suficiente para garantir o consumo de produtos industriais. A ideologia do projeto desenvolvimentista partia da constatação de uma desigualdade entre as nações ricas e pobres, adiantadas e atrasadas. O esquema teórico sustentado pela política governamental seguia certas formulações concebidas pela Cepal, órgão criado pela ONU para analisar os problemas econômicos da América Latina, cuja idéia básica era a de que os países periféricos ou subdesenvolvidos teriam uma formação ecoíiômico-social es­ pecifica, determinada pela relação de dependência aos centros do sistema. Os países pe-


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riféricos apresentavam também .um dualismo quanto á economia interna, ou seja. ha­ vería dois setores diferentes: um dinâmico, industrial e moderno, outro estagnado, rural e atrasado. Esta contradição seria resolvida através de mudanças na estrutura econômica pelo desenvolvimento crescente do setor industrial. O predomínio agrícola vai ser suplan­ tado pela participação do setor industrial na renda interna do país. Segundo dados estatís­ ticos. “ entre 1939 e 1946. o produto real industrial, aumentou de 60%, enquanto o cres­ cimento do setor agrícola foi da ordem de 7% ” (4). A partir dos anos 50, o processo de in­ dustrialização brasileira deixa de ser um projeto para transformar-se em realidade. A es­ trutura econômica do pais ganha impulso e a sociedade como um todo fica dominada por uma ânsia de extensão. O setor moderno da economia era o industrial, representado pelo Estado e pelos novos empresários, em oposição ao setor tradicional, exportador, consti­ tuído pelos cafeicultores. Aceleravam-se também as transformações estruturais ao nível da sociedade global. A industrialização trará consigo o incremento do processo de urbani­ zação. acompanhado pelo aumento da taxa de crescimento da população urbana, destacando-se o fortalecimento da classe média como um setor significativo na estrutura social e política do país e como parte integrante do processo produtivo. A rede de serviços que se desenvolveu com a indústria — comércio, bancos, transportes, serviços públicos, agências de propaganda, empresas imobiliárias, entre outras — oferece novas oportunidades de em­ prego para a classe média em expansão. Com base nas aspirações de desenvolvimento econômico, apoiado no industrialismo, ocorrerá uma ampla mobilização política, cuja linha de ação manifesta-se através de uma ideologia de cunho burguês e nacionalista. Na tese central, a de que o Brasil deveria estar em pé de igualdade com os países desenvolvidos e industrializados, existe o desejo claro de superar o atraso econômico. Através do aceleramento do processo industrial, a nação teria condições para tornar-se um país independente, superando a situação de país exportador de produtos primários. O Programa de Metas era otimista, com a promessa contida no slogan dos “ 50 anos em 5” . e a finalidade era modernizar rapidamente o país. A ideologia desenvolvida corporificava-se no seu objetivo principal: acelerar a acumulação, aumentar a produtividade dos investimentos existentes e aplicá-los novamente em atividades produtoras. A aceleração do desenvolvimento econômico terá reflexos na cultura e na arte. O desejo de modernização da burguesia industrial e da própria classe média urbana abre pers­ pectivas para a sociedade brasileira, gerando, no plano cultural, uma série de instituições — como museus e bienais — que visam reatualizar o nosso sistema de arte e modificar es­ teticamente o país. A atividade artística passa a ser encarada como uma parcela do projeto da nação, parte integrante da consciência nacional, abrindo-se espaço para o artista. A arte construtiva internacional vinculava-se à idéia moderna, progressista, de in­ tegração do homem no processo industrial; o concretismo brasileiro mantém este com­ promisso: o trabalho artístico deverá informar qualitativamente a produção. O concretis­ mo, ao que parece, foi a “ contrapartida artística da filosofia de aspiração nacional, de uma ideologia de governo progressista” . (5) A formulação estética de um conceito de moder­ nidade atrelava-se à idéia de progresso, do desenvolvimento social, como acrescenta Ronaldo Brito: O mesmo movimento de aproximação à modernidade via ciência e tec­ nologia, estão presentes no concretismo brasileiro. O problema era adotar um ponto de vista moderno, positivo, participante, frente ao processo da civilização contemporânea. O artista tornava-se o inventor de protótipos, um técnico que manipulasse com competência os dados da informação visual” . (6) A atitude concretista traduz-se ainda numa vontade racional de conquistar novos


LUISSACILOTTO , “ Concreçâo 5629” , 1969,

esmalte s/alumínio, Col. MAC-USP. horizontes para a arte, romper com estruturas arcaicas, patriarcais e agrárias, presas a uma consciência oligárquica que impedia o desenvolvimento artístico de üm país moder­ no, urbano e industrial. Era, portanto, necessário agir diretamente sobre a linguagem da arte e adaptá-la ás transformações da sociedade. Dentro desta ótica se pretendia inaugurar uma arte brasileira. Assim ela vai servir como modelo para a construção social, criadora de novas realidades num pais onde tudo está para ser construído. A arte serviria como ins­ trumento eficaz de transformação e construção de um novo mundo. O critico Frederico Morais assinala que havería nas sociedades latino-americanas, sobretudo no Brasil, uma vocação construtiva, ou seja, uma vontade de construir (Torres Garcia) derivada de uma aspiração típica de quem ainda não possui nada. “ O fazer artís­ tico deve ser encarado como um esforço de ordenação do caos... O gesto construtivo é um gesto fundador de mundos. Gesto primeiro, aberto ao futuro. Não se trata de copiar ou imitar o já existente, o já gasto e portanto imperfeito; mas de inventar, de fazer surgir um mundo novo, claro, limpo e transparente” . Acrescenta ainda que a arte construtiva não seria uma manifestação cultural pertinente às sociedades industriais avançadas, mas às sociedades em fase inicial de desenvolvimento econômico: “ Terá sido justamente esta vontade de ordem que levou à aceitação de modelos construtivos tão logo se anteviu a pos-



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sibilidade de um desenvolvim ento acelerado do nosso continente com o final da D Grande G u e rra” . (7) Nessa proposta pode ser localizada um a presença política que se traduz pelo desejo utópico de renovar e tran sfo rm ar a sociedade. A arte estaria, portanto, relacionada ao es­ forço de integração de um p ro jeto nacional, na ânsica de contribuir para o aperfeiçoamento da m áquina industrial cap italista, revelando, ao m esm o tem po, uma prática artística que teria o desejo de su p erar o subdesenvolvim ento e o atraso tecnológico. Esta solução progressista delegada à arte tem um com ponente ideológico relacionado ao período de desenvolvim ento que a sociedade brasileira atravessava: era necessário atualizar e estetizar o am biente, racionalizá-lo no sentido de contar e encam inhar o caos do subdesenvolvi­ m ento e recuperá-lo. A m aior parte dos artistas pertencentes ao m ovim ento concreto paulista passou pelo clima de euforia desenvolvim entista do pós-guerra e orienta o seu processo de trabalho para um a atividade ligada à indústria. Segundo A racy A m aral, grande parcela destes artis­ tas vai m anter, paralelam ente á produção artística, um compromisso profissional com o meio em presarial paulista, seja com o artista gráfico, publicitário, diagram ador, ilustrador, desenhista industrial, d esen h ista têxtil, entre outros. Esta aproxim ação com o processo industrial é registrada nas palavras de Waldemar Cordeiro: ‘‘N o que se refere ao elem ento, a arte concreta apresenta mais um a identidade com a in d ú stria... O ap arecim en to e o aperfeiçoam ento da indústria são sem dúvida fatores históricosque estão na base de toda a arte contem porânea. O que se revela incontestável é a importância decisiva da indústria na com preensão do conteúdo da arte contem porânea, cuja finalidade últim a e d estin o histórico acreditam os ser a arte industrial” . (8) O que observam os é a incorporação da filosofia da Bauhaus, via Escola de U lm , que referenda um a postura ideológica, utópica e progressista, de integração da arte na vida coletiva. A o colocar a atividade artística intim am ente ligada aos novos meios de produção, desejava-se a própria diluição do objeto artístico na sociedade. Tornou-se um a espécie de atitude m oderna en treg ar à arte a tarefa de organizar o real. Despojada do caráter sagrado, mítico, metafísico ou ro m ân tico , a arte deveria agir segundo princípios racionais, inves­ tigadores, práticos e objetivos, de modo a ser capaz de intervir na indústria. Os concretos p aulistas, teoricam ente, adotam essas idéias. A intenção será gerar uma arte adequada ao m undo contem porâneo, num a tentativa de sincronizá-la com a nossa época. As idéias geom étricas, construídas objetivam ente, deveriam tornar-se concretas a partir do trabalho do artista. A ciência, a mecânica, a sem iótica de Pierce, a teoria da in­ formação de N orbert W ien er servirão com o bases teóricas para o desenvolvim ento formal dos trabalhos. A arte apresentaria certas características estruturais, sobretudo aquelas relacionadas com a ó tica, segundo um a organização geom étrica, num a aproximação cons­ tante ao pensam ento racional e científico.

O Programa Estético Concretista O m ovim ento co n cretista brasileiro com põe um a posição homogênea ao se declarar contrário a “ todas as variedades e hibridações ao naturalism o; ao não figurativism o he­ donista, produto do gesto g ra tu ito , que busca a m era excitação do prazer e do desprazer” . (9) Esta postura inicial, ao que parece, tom ou um a configuração de “ frente am pla” ar­ ticulada num a defesa de u m a linguagem geom étrica. Colocavam-se frontalm ente contra o sistem a de representação vigente, cujo ponto de referência básico era a busca de certos


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conteúdos que, não só expressassem , com o docum entassem o real brasileiro , calcado ainda na aspiração a um a identidade nacional. N ão se tratava apenas de defender um program a estético, mas adotar tam bém um a tática capaz de intervir em nosso sistem a de arte, im pregnado ainda dos postulados m oder­ nistas, nos quais o universo sim bólico brasileiro era anotado a nível do código figurativo. A estética dom inante refletia um com portam ento que se m antinha tal qual as prem is­ sas lançadas pelos m odernistas de 22: era dirigida para um a arte figurativa, dando margem a um a leitura literária m etafórica. A m aior parte dos artistas encontrava-se preso ao es­ quem a tradicional da representação, utilizando um a linguagem m im ética cuja intenção era reproduzir o real. A iconografia da arte brasileira seguia, do ponto de vista plástico, vin­ culada ao problem a da representatividade devido â necessidade de um a tem ática voltada para a dim ensão brasileira. O ra, tal prática artística, superada pelas linguagens estéticas internacionais, deixavase perm ear por conteúdos subjetivos que roubavam à arte a sua potência verdadeira. Os concretistas questionam este un iv erso sim bólico em que a arte estaria voltada para a sim ­ ples cópia ou recriação da natureza. P retendem rom per com o caráter de representati­ vidade adotando o elem ento geo m étrico como um valor plástico autônom o, pela m ate­ rialidade que ele com porta e não com o arcabouço para rep ro d u zir o real. O espaço da arte não se rem ete mais ao ilusionism o; existe plenam ente na relação entre seus elem entos e suas m atérias. A produção artística estaria, pois, voltada para a autonom ia da forma, livre do aspecto narrativo ou anedótico. O objetivo era evitar a fruição lírica ou conteudística. Os concretistas darão ênfase sobretudo à estru tu ra, com o um a característica fundam ental da obra, ao rigor e à autodisciplina. O seu program a estético é doutrinariam ente rigoroso, segundo os postulados básicos da arte construtiva. O c a rá te r austero vai se refletir na sua posição teórica, no sentido de lim par a forma de todas as im purezas. Eles exercem um a forte pressão sobre o am biente artístico brasileiro, a ponto de alguns críticos afirm arem que “ O concretism o foi, para m u ito s, um a espécie de serviço m ilitar obrigatório” . N o M anifesto R uptura, lançado em 1952, é feita um a distinção nítida entre a arte que possibilitaria a criação de form as novas, através de princípios velhos, e as que criam formas novas através de princípios novos. P ara eles, o m étodo tradicional de representação já tinha cum prido a sua tarefa h istórica. A partir deste p o n to de vista, estabelecem certos princípios diferenciadores e n tre o que é velho e o que é novo, supondo não existir co n ­ tinuidade en tre os dois pólos. A passagem do velho para o novo se efetua m ediante um sal­ to qualitativo, um rom pim ento definitivo — daí o nom e do grupo: R uptura. Parece que foi esquecido, co n tu d o , o fato de haver, na cu ltu ra brasileira, um subs­ trato decorrente dos problem as que vinham sendo colocados pelas produções culturais an ­ teriores, com o tam bém pelos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos com outros pos­ tulados estéticos. Estes fatores nos levam a questionar a verdade do radicalismo do grupo concreto paulista, ignorando todas as outras configurações em vigor, alijando as outras tendências existentes na dialética in tern a de nossa cu ltu ra. C onsiderar a arte nào-figurativa com o a única linguagem artística possível, e o con cretism o com o o início da arte brasileira, é congelar a validade de qualquer prática artística que esteja fora deste registro. Paulo V enâncio Filho aborda essa questão do confronto cultural e ideológico en tre um a linguagem institucionalizada e a perspectiva de um a vanguarda: “ Todo e qualquer trabalho de arte no Brasil ainda se defronta com um a prem issa: com eçar de novo. Sem pre o esforço da produção se defronta com a presença de u m a H istó ria da A rte. D e certa


MAURÍCIO NOGUEIRA U M A , “ Pintura 2” , óleo s/tela, 100 x 73 cm. Col. Conselho Estadual de Cultura, SP. m aneira, é contra este patrim ônio consolidado que o artista luta no sentido de positivar o seu trabalho. Contra esta instituição que de algum modo parece dizer incessantem ente que tudo já foi feito e não há nada para se fazer de novo. Entretanto, é justam ente através do diálogo critico de sua produção com o processo histórico da arte, que o sujeito tem a pos­ sibilidade de detectar a pertinência de sua prática” . (10) Essa postura ortodoxa, vinculada aos moldes europeus, a incompreensão da com ­ plexidade cultural brasileira tende a tom á-los alheios à nossa realidade. Há um afastam en­ to do social na medida em que o campo estético é tratado como um objeto em si mesmo, independente das relações com as outras instâncias. Ma tentativa teórica de superar a con­ tradição arte e sociedade, e diluir a arte no processo social, erigem um mundo de valores que está acima, e portanto afastado, da realidade. Esqueceram-se de um dos pólos desta contradição: a especificidade da sociedade em que este modelo teórico está inserido. Suas formulações não contêm um a interpretação da realidade sobre a qual operam apenas a jus­ taposição de um modelo teórico produzido por sociedades altam ente desenvolvidas. Estas lim itações fazem com que, ao adotar o modelo, perm aneçam com as suas características formais, sem transform á-las. A este respeito, Ronaldo Brito acrescenta: “ Repetindo até certo ponto os outros m ovim entos culturais e artísticos nacionais, cuidou apenas de im ­ portar o modelo e adaptá-los ás circunstâncias locais, sem um questionam ento propria­ m ente crítico” . (11) A importação de idéias desenvolvidas nos centros internacionais, sobretudo a A lem anha, Suíça e H olanda, vai colocar-se de forma complexa, dados a nossa diversidade


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e atraso em relação às sociedades européias. Referindo-se à questão, Ferreira G u llar afir­ ma: “ A diferença entre a realidade européia em pleno desenvolvim ento e a realidade brasileira em formação é um dado im portante para que se en ten d am as m udanças que vão se verificando en tre estas duas realidades, na medida em que am bas se transform am ao m esm o tem po em estágios diferentes. Deve-se levar em conta tam bém o fato de que a própria transform ação do m undo, operada pela civilização européia em seu desenvolvi­ m ento, cria para a sociedade brasileira condições diversas das que, neste estágio, encon­ tram os países europeus, determ inando assim que o processo de desenvolvim ento bra­ sileiro tenha características próprias, m esm o cum prindo estágios equivalentes do processo econôm ico. A história não se repete e os países subdesenvolvidos não repetirão, nem no plano econôm ico, nem político, nem cultural, a história dos países hoje desenvolvidos .

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O im portante para a nossa análise não é questionar se a a rte construtiva é, ou nao, um produto histórico de certos fenôm enos ocorridos nos países capitalistas desenvolvidos; se o processo de formação e desenvolvim ento dessas idéias são p ertin en tes apenas á sua própria problem ática cultural. O que querem os colocar com o m atéria de reflexão é o problem a de en co n trar um a equivalência teórica deste procedim ento no nosso am biente cu ltu ral; se houve ou não um equívoco na apropriação deste corpo teórico por parte do grupo concreto paulista, é essa pergunta o ce n tro de nossa análise. O tem a é a viabilidade do seu program a estético en q u an to projeto de inserção da arte na vida social, a verificação de sua proposta de criar um modelo alternativo para a arte através de aplicações do trabalho artístico na vida prática, co m o o d esig n , as artes gráficas, a publicidade, o jornalism o, a arq u itetu ra e o urbanism o.

N O T A S BIBLIO G RÁFIC AS

01. PEDROSA. Mário. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo, Perspectiva, 1975 p. 254. 02. GULLAR. Ferreira. Arte neo-concreta: uma contribuição brasileira, in Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-1962) sup. coord. Aracy Amaral. MEC/Funarte/M A M /R J; Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1973, p. 106. 03. CORDEIRO. Waldemar. Teoria e prática do concretismo carioca, in op. cit., p. 134. 04. COHN, Gabriel. Problemas da industrialização no século X X , in Brasil em perspectiva. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969. p. 306. 05. BITTENCOURT. Francisco. A década da experimentação, in Revista Critica de A rte, Rio de Janeiro, Associação Brasileira de Críticos de Arte, ano II, n? 4, 1981, p. 139. 06. BRITO. Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro Ensaio sobre a produção visual neoconcreta. Rio de Janeiro, 1975, p. 28 (texto inédito). 07. MORAIS, Frederico. Artes Plásticas na América Latina: do Transe ao Transitório, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 87/89. 08. CORDEIRO, Waldemar. Arte Industrial, in Projeto Construtivo Brasileiro na A rte, op. cit., p. 193. 0 9 . ------Manifesto Ruptura, op. cit., p. 69. 10. VENÂNCIO FILHO, Paulo. Lugar Nenhum: o meio de arte no Brasil, in Arte Brasileira Contem porânea. Cadernos de Textos, Rio de Janeiro. Funarte, n? 1. 1980, p. 24. 11. BRITO. Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. op. cit., p. 12. GULLAR, lerreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Ensaios sobre arte Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 1969, p. 33. '


Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no Século XIX

IS A B E L R O C H A

N o Século X V III. quando G arcia Rodrigues Paes pediu licença ao Governador do Rio de Janeiro. A rtu r de Sá M enezes, para abrir uma estrada entre a Baia da G uanabara e a Borda do Cam po (atual Barbacena), e que começava o desbravamento da região sul flu m inense. O objetivo desta estrada era minimizar o percurso do ouro entre as minas e o porto do Rio de Janeiro. A Coroa portuguesa receosa de que houvesse contrabando proibiu a navegação no Rio Paraiba do Sul. A produção aurifera até então era escoada pelo Ca­ m inho dos G uainás ou C am inho Velho, que ligava M inas Gerais ao Rio de Janeiro via T aubaté e G uaratinguetá, no Estado de São Paulo, chegando a Parati e daí ao porto ca­ rioca. U m longo e dispendioso cam inho que facilitava o desvio e o contrabando de ouro. A Estrada Real para Vila Rica nom enclatura oficial do Cam inho Novo aberto por Garcia Rodrigues Paes — atravessava quase que perpendicularm ente o Estado do Rio de Janeiro. Partia do porto da Estrela, no fundo da Baia da Guanabara, subia a Serra do M ar até atin­ gir a Roça do Alferes (origem de Pati do Alferes); dai seguia até a Roça de Pau Grande, passava por Ubá e partia em direção a Roça de Garcia Rodrigues (atual Paraiba do Sul), in­ do. então, rum o à Borda do Cam po, passando antes por Paraibuna. Convém observar que e n tre os diversos autores há divergência quanto ao traçado do Caminho Novo para as Minas G erais. A partir da Estrada Real, inúmeras foram as abertas ao longo dos séculos XVIII e X IX . no que pesem as tentativas da Coroa de impedir que outros fossem abertos, ainda com o intuito de coibir o desvio do ouro. N o século XVIII os principais caminhos abertos foram: Caminho de Proença (1725), passava por Petròpolis ru m o á Paraiba do Sul onde encontrava o Caminho N ovo; Caminho do T inguá. do Rio de Janeiro a Pati do Alferes via N ova Iguaçu e Sacra Familia do Tinguá; C am inho de São Paulo (1733), passava por Itaguai, São João M arcos, Rio Claro, Bananal ru m o a São Paulo, cam inho da Paraíba Nova de Simào da Cunha Gago (1744), vindo de M inas chegava a Resende. N o século X IX vam os ter: Cam inho de Valença de João Rodrigues da C ruz (1800), partia de Pau G rande e se dirigia a Valença; Cam inho do Rio Preto (inicio do século), saia de U bá. atravessava o rio Paraiba e rumava a Valença indo até M inas Gerais pelo rio P reto; Estrada do C om ércio e Estrada da Policia (1817-1820), saiam do C am inho Novo e iam em direção, uma de V assouras e a outra de V alença; Estrada “ União e Indústria” (1856), saia de Petròpolis passando por T rês Rios, encontrava-se com o Cam inho Novo na divisa com M inas G erais.


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Ao longo dos primeiros caminhos vão surgindo as roças de mantimentos e os pio­ neiros engenhos de cana-de-açúcar, além dos registros que controlavam o tráfego. As roças produziam basicamente o milho com o que abasteciam as tropas de mulas dos car­ regadores de ouro. Plantavam, ainda, a mandioca, o arroz, o feijão e o café (ainda sem ex­ pressão). Os engenhos de açúcar, com suas destilarias e moendas chegaram a ter im por­ tância econômica na região, conferindo a seu proprietário um “ status mais elevado na hierarquia da sociedade local. Pau Grande e Ubá são exemplos de engenhos de açúcar com suas residências e instalações inúmeras para atender a produção. Os viajantes do inicio do século X IX , como Saint-Hilaire, testem unharam o conforto que havia nessas fazendas. O café começou a ser plantado em larga escala no vale do Paraíba a partir da segunda década do século XIX. “ Pequenas vilas sem expressão, até esse período, tom aram -se grandes centros cafeeiros, como Vassouras, Pirai, São João Marcos (hoje submerso), Resende. Barra Mansa, Valença e Paraíba do Sul. Devido ao bom preço que alcançava o café no mercado externo, sua produção tornou-se uma grande atração para fazendeiros. O valor da exportação do café que havia começado a sobrepujar o do açúcar, passou a re­ presentar no exercício de 1837/38, mais da metade do valor total do nosso comércio ex­ terior. posição de que não se afastaria nos anos seguintes e que se firmaria, quase ininter­ ruptamente tempos depois” (1). As condições naturais para o plantio do café aí eram es­ plêndidas. O terreno é formado por ondulações suaves, as “ meias laranjas” , num a alti tude que oscila entre 300 e 900 metros, mantendo a tem peratura dentro dos limites ideais para o café e regularizando a precipitação. “ Região m uito acidentada não lhe faltavam en­ contras bem protegidas contra o vento (fator im portante num a plantação arbustiva de grande porte como o cafeeiro) e convenientemente coberta por densíssima selva, a floresta tropical, que desmatada liberou solo magnífico” (2). O café chegou ao Vale do Paraíba no momento em que se deu a grande queda na ex­ tração do ouro em Minas Gerais. As riquezas forjadas nas minas de ouro estavam à procura de uma nova forma de investimentos. Através da doação de sesmarias, os m i­ neiros investiram na plantação do café, expulsando o posseiro, o rancheiro, o engenho de açúcar e o índio, além de desmatar uma densa floresta tropical. “ Como característica essencial do modo de produção escravista colonial, a pro­ priedade cafeeira se constituira, principalmente, de uma grande extensão de terra tra ­ balhada por um grande núm ero de escravos. Os senhores que se estabeleceram nesta região, recebendo grandes doações de terra da Coroa, em forma de sesmaria, em cada um a delas constituíram uma ou mais fazendas e através de incorporação de terras vizinhas tornaram-se donos de um grande núm ero de fazendas e sítios de café” (3). Diversos destes fazendeiros foram expoentes na aristocracia rural fluminense. A lista de barões do café ul­ trapassou a casa da dezena. O modo de produção limitou a extensão da fazenda, mas não o núm ero delas em relação ao proprietário, chegando alguns a possuir 20 fazendas apro­ ximadamente, com cerca de 6.000 escravos. A plantação exigia cuidados perm anentes. A mão-de-obra deslocava-se diariamente á ela, o que de certa forma definia os lim ites da fazenda. Além da terra cultivada, a unidade agro-industrial cafeeira compunha-se de: 1 —Casa grande — habitação do senhor e de sua família, norm alm ente composta de com ­ partimentos próprios a uma residência, incluída a capela ou oratóno. (1) Muniz, Celia Maria Loureiro, Os Donos da terra, Um estudo sobre a estrutura

(2)

(3) Muniz, Celia Maria Loureiro.


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2 — Casa do adm inistrador — nas unidades de m aior porte ou nas fazendas “ filiais” havia ainda a residência do adm inistrador. 3 — Senzala — habitação dos escravos, composta apenas de quartos de dormir,. 4 — Engenho — para beneficiam ento do café, com o m aquinário movido por sistema hidráulico. A lém disso beneficiava a cana-de-açúcar, mandioca e o milho. 5 — T ulha — parte do com plexo do engenho era o local para armazenagem dos produtos agrícolas. 6 — T erreiro de café — onde se lavava e secava o café. 7 — Enfermaria — n u m a região sujeita a constantes epidemias provocadas, entre outras cousas, pelas péssim as condições de vida dos escravos, é comum se ter notícias de en­ fermarias. N em todas essa construções que formavam o complexo agro-industrial cafeeiro sobreviveram até os nossos dias. O conservadorismo do senhor do café, a m onocultura que consum ia recursos naturais da terra, o envelhecim ento do cafeeiro, a insolvência eco­ nôm ica dos fazendeiros, a abolição da escravatura, a escassez de mão-de-obra são algumas das causas da decadência do café ainda no século passado. Os testam entos dos senhores e de suas viúvas com provam essa decadência, citando hipotecas, cafeeiros improdutivos, despreparo sócio-econôm ico para enfrentar a abolição da escravatura, construções e edifícios que necessitavam reparos. As hipotecas foram na sua maioria executadas; as ter­ ras abandonadas depois de consecutivas queimadas que não mais surtiam os efeitos de­ sejados. O café se dirigia para São Paulo que estava mais bem preparado e estruturado para o trabalho de hom ens livres. A s casas nem sem pre foram recuperadas com o m esm o fausto de décadas anteriores. A m onocultura cafeeira foi substituída pela estagnação econômica e, posteriorm ente, pela agro pecuária, principalm ente a do gado leiteiro e de corte. A agricultura passa a ser de subsistência e para o com ércio local. É o fim do barão do café porém não de seu carism a. Este é transferido para o coronel, dono da terra.

Localização e Implantação O café leva de 4 a 5 anos para começar a produzir, o que exige, sempre, novas terras para a sua expansão. P o r o u tro lado ele tem m aior duração se plantado nas encostas dos pequenos morros. T em de ser m antido limpo para que se impeça o desenvolvimento de pragas, permitindo que se plante ao longo do cafezal, durante certas épocas do ano, outras culturas. N o dizer de Lacerda W emeck a seu filho em 1847 “ um fazendeiro cuidadoso tem todos os dias um jantar esplêndido, e só lhe custam dinheiro o vinho e o sal, ou alguma iguaria para acepipe, o mais ele tem de casa e com m uita profusão” . Como executor de todos os serviços realizados dentro da fazenda o escravo impôs, de certa forma, a sua ocupação espacial. É fundam ental para o senhor do café o controle do escravo e a este é fundamental a distância que percorre para execução dos serviços, sem que para isso tenha consum ido todas as suas energias. Para que um a fazenda seja produtora de suas necessidades de consum o tem que ter, ainda, o mais próxim o possível correntes de água. Esta deve ser abundante e límpida pois será consum ida nas m ais diversas atividades; no engenho para mover o m aquinário; pelo gado; para lavar o café e pela casa grande, diariam ente. Para o assentam ento das cons­ truções a presença d ’água é tão vital que Lacerda W emeck dirá a seu filho que ela “ obriga” às vezes a buscar um sítio menos agradável, mais trabalhoso e até dispendioso para levantar os edifícios” e “ eis o motivo por que m uitos e grandes estabelecimentos estão


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feitos sem aform oseam ento". Levando em consideraçãò estes dois fatores poder-se-á dem arcar o sitio mais con veniente à im plantação das co nstruções. N a observação de Lacerda W erneck tirará ou m andará tirar a planta, com designação da casa de m oradia, de todas as m áquinas que forem necessárias, de paióis e arm azéns, de cavalariça e senzala para moradia dos pretos . Porém , antes, serão feitas instalações provisórias; tan to para o sen h o r com o para os es cravos cuidando que estas construções não atrapalhassem o risco definitivo da fazenda. O engenho de Serrar é o prim eiro a ser instalado um a vez q u e paralelo a tudo isso se estará desm atando. A madeira retirada da floresta será toda utilizada nas edificações. Este desm atam ento, ainda, prepara a terra para o plantio e para as criações de gado e aves. A pesar de não se ter notícias de arquiteto, ou m elh o r, de m estre de risco, há sem pre uma constante na im plantação da casa grande em relação às dem ais construções. Con dicionantes há para que tal aconteça. A prim eira delas, m ais u m a vez, é a presença do es cravo. Da casa grande o senhor deverá ter um a visão m ais am pla possível do m ovim ento diário da fazenda. A s construções foram um “ q uadrilátero funcional (O bs. S t e i n , pág. 26), onde estão a casa grande, a senzala, os en g en h o s, as tulhas, o paiol, os arm azéns, as estrebarias e os chiqueiros. Este quadrilátero poderá em alguns casos definir o terreiro de café (Fazenda do P ocinho, V assouras; Fazenda de S a n fA n a , Barra do P iraí, no que pese elas não terem sido concluídas; e Fazenda da P rosperidade, Barra do Piraí). N a m aioria dos casos ele não será perceptível de im ediato, pois as construções se en c o n tram m ais dispersas (Fazenda da T aquara, B arra do Piraí; Fazenda do A terrado, B arra do P iraí; Fazenda Feliz Rem anso, Barra do P iraí; Fazenda do Secretário, V assouras, e tc ...). N o s casos de fazendas de menor porte todas essas construções poderão estar anexadas â casa grande form ando um só edifício, caso da Fazenda o R ecreio-Piraí. A denom inação da fazenda era dada, um as, pelos acidentes geográficos: a do Ri beirão, da C achoeira, do M o n te A lto ; do A terrado, a de D u as B arras; a de Ipiabas, nome do Ribeirão. E outras pelos padroeiros: SanC A na, São Luiz da Boa Sorte, Santana dos M eirelles. Santa Luzia, São F id elis... A do Secretário não se sabe corretam ente a origem do nom e. A tradição popular explica que houve ai um Secretário de Estado que deu o nom e ao Ribeirão que por lá corre e este deu nom e à Fazenda.

Casa G rande

P o n to irradiador de toda a vida na fazenda essa casa e n c o n tra se sem pre mais elevada em relação às demais construções. Se por um lado é prim ordial para o senhor que sua casa seja elevada, do ponto de vista do co n tro le, por o u tro as técnicas construtivas exigiam que não se im plante ao nível da sala por causa da um idade. A de G u arib u (V assouras) que reina soberana do alto de um a colina tem tam bém um a plataform a que a isola do contato direto com a terra. C om o que assentadas n a tu ra lm e n te no declive dos m o rro s algum as casas terão um sem i-prim eiro piso. Nelas a habitação propriam ente dita se e n c o n tra no segundo pavim en­ to, onde se desenvolve de m aneira com pleta. Estas co n stru çõ es colocadas a cavaleiro dos m orros perm itiam um a m aior visibilidade, retirada da topografia natu ral. C om o nos casos, diversos de sobrado. Estas form as de im plantação davam ao senhor do café, tal e qual ao proprietário u r ­ bano, m aior “ sta tu s’’, denúncia de u m a situação econôm ica m ais privilegiada, onde o prim eiro piso era dedicado às atividades de serviço (com ércio, para a cidade) e no segundo


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encontrava-se a residência. N o caso de im plantação em en co sta, isto tom a-se mais claro. N o prim eiro piso só havia o vestíbulo, denunciador das funções ai desenvolvidas. N o mais a presença de cachoeiras e depósitos impedia qu alq u er relação e n tre um e o u tro piso. Já no caso de alguns sobrados, revelando o alto poder eco n ô m ico do proprietário, a ligação podería ser feita. O m elhor exem plo é a fazenda do S ecretário que no prim eiro piso tem o vestíbulo, os quartos de hóspedes, o escritório, o salão de recepção, a sala de jantar e os serviços. N o segundo está o que se denom inava de área nobre, onde só os moradores, parentes e amigos m uito íntim os tin h am acesso, afora o salão de m úsica que aí se localiza. Sobrados m enos faustosos, porém m ais com uns, são os q u e m antêm isolados os serviços do prim eiro piso das atividades residenciais do segundo. N o caso de ocupação em encosta o acesso à m oradia poderá ser e x te rn o (Fazenda P rosperidade, Barra do Piraí), com o na m aioria dos sobrados (o de São Luiz, Barra do Piraí), ou por um vestíbulo no prim eiro piso (Fazenda Esteves, V alença e Bela A liança, Barra do P iraí). H á os casos em que o seg u n d o piso é reduzido. E ssas con stru çõ es sugerem um gosto mais recente e têm o apuro de isolar deste corpo c e n tral, os q u arto s de dorm ir no sobrado. N o prim eiro piso estavam a sala de recepção, os q u arto s de hóspede e os serviços (Fazenda Santa Ju sta e a da Forquilha, Rio das Flores). O riu n d o s das M inas G erais os colonizadores desta região trouxeram a experiência ur bana de habitar. Em diferentes situações topográficas, clim áticas e program áticas esses


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hom ens deram um a nova interpretaçãç espacial às soluções arquitetônicas mineiras até então praticadas e absorvidas. Este com portam ento trouxe, no seu bojo, m uito da ex­ periência da m orada paulista. A varanda fronteiriça ladeada por dois cômodos é um a cons­ tante em nossas fazendas. A planta baixa do prim eiro piso da Fazenda da Forquilha acusa esta persistência de form a que, apesar das reform as posteriores, não conseguiu desaparecer. O esquema de um a varanda ladeada por Capela e q u arto de hóspede se repete neste caso em duas fachadas. N o que pese não haver de fato um a varanda na fachada principal a planta revela este gosto. A sala cen trad a da morada paulista foi aí dividida em três cômodos que se interpenetram e para onde abram -se todos os dem ais com partim entos da casa. Seme­ lhanças não tão óbvias, porém com a m esma origem , encontrarem os nas fazendas Aliança e M onte A lto, Barra do P iraí. A m bas tinham com o acesso principal uma varanda ladeada por dois côm odos, sendo um a Capela. A varanda, tão freq ü en te na A rquitetura brasileira, tem diversas funções nas. casas grandes de fazendas. É o elem en to m ediador en tre o espaço externo e interno, ou entre a área social e intim a (Fazenda M o n te A lto, Barra do P iraí, a de Ubá, V assouras), ou uma circulação alternativa (a do Pocinhò, Vassouras; S a n t’A n a, Barra do Piraí; Feliz Remanso. Barra do Piraí). Em q u alq u er caso ela é um espaço adequado ao clima da região. A mentalidade conservadora da época traçou para a casa rural os m esm os elementos privatizadores que se u tilizav am nas casas urbanas. A s áreas sociais estão sem pre voltadas para o acesso principal. O fato de aparecerem q u artos nesta área denota a preocupação constante de se m an ter o hóspede fora da área intim a da casa. A sala de jantar é o cômodo de ligação e separação e n tre as duas alas. Ela se situa, na maioria dos casos, no que po­ deriamos denom inar de p o n to de barreira social (um papel sem elhante ao cancelão nas residências urbanas). A área social era a m ais im ponente da residência. N orm alm ente tinha o piso e o forro em taboado corrido, às vezes o forro era em estuque. A s paredes, algumas vezes, eram adornadas com bandas pintadas no alto e batente para o espaldar das cadeiras a meia altura. Os melhores trabalhos de esquadria eram reservados a esta área, assim com o o melhor mobiliário. O s quartos, na m aioria em fila, criando longos corredores, eram locais despojados e simples. Seu m obiliário se restringia ao essencial. Suas dimensões eram em m uito infe­ riores ás dos salões de recepção. A tendiam apenas a sua função precipua. A área de serviço co m cozinha, copa, despensa e depósito completava a construção. Esta área era de dom ínio exclusivo das m ulheres, m isturando as escravas com as sinhás. É ai que preparavam os alim en to s, costuravam e lavavam protegidas pelo pátio que se for­ mava nos fundos da casa pela h o rta e pelo pom ar. R aram ente o chão desta área era coberto, o telhado ficava aparente, sem forro. A s esquadrias eram m uito simples não havendo, originariam ente, a presença do vidro. Para os escravos q ue labutavam nas roças havia, nas encruzilhadas dos caminhos da plantação de café, fogões que os atendiam . Era nessas encruzilhadas que , tam bém , se criavam as aves para alim entação. A s senzalas tam bém eram isoladas da casa grande, for­ m ando um a co astru ção própria. Segundo W em eck elas “ devem ser voltadas para o nas­ cente ou poente e em u m a só linha, se for possível, com quartos de 24 palmos em quadro e um a varanda de oito de longo em todo o com prim ento. Cada quarto destes deve acomodar quatro pretos solteiros e, se forem casados, m arido e m ulher com filhos unicam ente. As varandas... são de m u ita utilidade porque o preto, na visita que faz ao seu parceiro, não molha os pés se está a c h o v e r ...” Estas observações parecem ter sido féitas por todos os fazendeiros pois as senzalas com o que seguem a um só risco e medida.


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Dos tipos de plantas utilizadas nas casas grandes a mais comum é de desenho em L , de influência u rb an a com o ressalta a Prof? D ora A lçantara. N este caso a fachada principal poderá ou não se localizar na m enor dim ensão tal as moradias urbanas. A s fazen­ das São Luiz (B arra do P irai) e a Fidelis (R .F.) são exem plos de planta em “ L” para so­ brados e as fazendas do A te rra d o (B arra do Piraí) e Ribeirão (R .F.) entre outras, térreas, As fazendas M onte A lto e Feliz R em anso (B arra do Piraí) se desenvolveram formando um duplo “ L . O caso da Feliz R em anso tem disposição curiosa uma vez que tendo se desen­ volvido a partir de um a prim eira construção vai se repetir até formar um longo corpo com fachada exígua e com acesso lateral em varanda. T al as casas urbanas do fim do século X IX , onde o afastam ento da divisa lateral do lote perm itiu acrescentar-se um a varanda. O utro tipo, m u ito co m u m , é a casa que se desenvolve em torno do pátio central. Este tem inúm eras utilidades, sendo a da aeração e ilum inação a mais im portante delas. Este tipo de planta, tam bém de im posição urbana do fim do século X VIII, já se enquadra dentro do espirito neo-clássico q ue com eçava a se expandir no Brasil do inicio do Séc. XIX. Fazendas Bela A liança (P i.) e São Luiz da Boa Sorte (V assouras) são os m elhores exem ­ plos. N o que pese ter pátio in tern o , a da A liança (B arra do Piraí) não pode ser classificada com o tal, um a vez que in ú m era s reform as desfiguraram o seu desenho original. A planta em “ U ” é en co n trad a nos casos em que a construção revela um gosto mais erudito e elaborado. A s fazendas do Esteves (V ai) e a do Secretário (Vassouras) são tes­ tem unhos m arcantes de um a arquitetura que tem na Corte do Séc. X IX sua origem imediata. A m bas são m o n u m en tais e im ponentes, com acabamentos sofisticados. A do Secretário tem características de construções que só a M issão Francesa forneceu. A do Horizonte que se utiliza do m esm o esquem a de planta revela um gosto mais do fim do século. A escada lateral do acesso principal com seu desenho sinuoso, trabalhado em ferro, além do porão alto, d en o tam u m a influência mais tardia e nitidam ente urbana. As fazendas do P o cin h o (V assouras) e S a n t’A na (B arra do Pirai) são casos isolados. Elas definem, com suas construções, perfeitam ente o “ quadrilátero funcional” , no que pese a do Pocinho não te r sido concluída. O Séc. X IX , desde o seu inicio, é m arcado por acontecim entos históricos im portan­ tes. Para o nosso estu d o são a vinda da M issão A rtística Francesa e a inauguração da Academia Imperial de Belas A rtes os mais relevantes. A escola traçou os parâm etros para o novo gosto estilístico da arq u itetu ra francesa da época: o neo-clássico. A Corte Imperial assumiu o estilo, de co n stru ç ão mais refinada, com o arquitetura oficial. C entro econôm ico da época, o Vale do Paraíba não ficou alheio às mudanças ocor­ ridas na Corte. N a m edida em que os senhores do café entravam em contato com o poder central e, principalm ente, na medida que o “ barão representava este m esm o poder, a tendência foi de absorção e transposição dos com portam entos adotados no Rio de Janeiro. Esta transposição, feita na m aioria das vezes sim plificadam ente, vai se deparar com com portam entos arquitetônicos anteriores, já enraizados de origem mineira de característica urbana. Se por um lado o co rredor “ adotado nas plantas das habitações rurais é dispo­ sitivo tipicam ente u rb an o e de sentido claram ente discrim inatório e a sua introdução “ evidencia um ‘ab u rg eu sam en teo ’ (N .O . Reis Filho), por outro lado é significativa a presença da planta urb an a oitocentista nas casas de fazendas. A sala fronteiriça que se liga a um a outra posterior por m eio de um corredor ladeado de quartos é encontrada nas fazen­ das de Ubá (V assouras), Prosperidade (Barra do Pirai) e Feliz Remanso (Barra do Pirai). É neste sentido que supom os a presença de, pelo menos, um discípulo da Missão Francesa na construção da Fazenda do Secretário. A erudição do vocabulário desse edifício é em m uito superior a de seus vizinhos. Os princípios de simetria do neo-clássico são ai tão


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rígidos que para não co m p ro m eter a m odinatura ex isten te na fachada posterior, a escada principal tem seu guarda-corpo tão deslocado que quase atin g e a om breira da janela. O u tras fazendas apresentam aspectos formais classizan tes, porém só se tem notícias de um caso com o uso do arco pleno, tão em voga no Rio de Jan eiro , e a verga reta pre­ dom ina na m aioria absoluta. A s fazendas de Ipiabas (B arra do Firai), Santa Ju sta (R .F .) e Ribeirão Frio (B arra do P iraí) usam arco abatido, h eran ça e persistência formal de um m om ento arquitetônico an terio r. A da Bela A liança (B arra do P iraí) já introduz um gosto neogótico em suas esquadrias, en co n tradas tam bém em V asso u ras e C onservatória. A s fazendas M onte A legre (V assouras) e Esteves (V alen ça) se aproxim am do partido arquitetônico da do Secretário, porém são mais sim ples n o vocabulário. Já as Fazendas São Fidelis (R .F .), São Sebastião (B arra do Piraí) e R ibeirão (R .F .) são assobradadas, extre m am ente sim ples, sem n en h u m rebuscam ento, a não ser a presença eventual de vidro e de um destaque à porta principal. A São Luiz da Boa Sorte (V assouras) destaca-se de su as congêneres pela utilização de janelas gem inadas que no tram o c e n tral vedam e disfarçam um a varanda em butida no cor po da casa. além de um avarandado que protege a escada principal da fazenda. Seu vo­ cabulário é classicizante e revelador de um neoclássico p ro v in cian o . A da Forquilha (R .F.) já d en u n cia um rom antism o de fim de século que se apresenta em form a de “ ch a le t” com o v arian te da proposta clássica. T em com posição sim étrica, as sobradada no tram o central e u m prim oroso acabam ento na fachada em estuque branco sobre a parede azul. Os beirais que arrem atam os pequenos e graciosos frontões são con cluídos com delicado lam brequim . A influência m ineira nas casas de fazendas são nítidas e a m ais relevante é a técnica construtiva. N a m aioria absoluta das vezes são de pau-a-pique, sobre baldram e de madeira ou pedra, dando à construção um ritm o bem m arcado pelos pilares que fazem as vezes de cunhais nas construções mais elaboradas. A m adeira, q u an d o aparente, seja nos pilares seja n o enquadram ento das esquadrias, ou nelas próprias, é pintada de cores fortes co n ­ trapostas às paredes, salvo raras exceções brancas. O s telhados co m suas grandes tesouras, assentam -se m ajestosam ente sobre as paredes form ando acen tu ad o s beirais. A s platibandas são raríssim as. Os tetos, n o rm alm en te planos, com encaixe de saia e cam isa, são pin­ tados de branco, alguns casos de m arro m . A Fazenda Ipiabas (B arra do Pirai) tem , na sala principal, um teto de gamela pintado, com o as esquadrias in te rn a s, nesta cor. As cozinhas invariavelm ente não tinham forro, ficando o m adeiram ento do telhado aparente. Este revestim ento de qualquer form a não fazia m uito sentido devido á fuligem que saia dos fogões à lenha.

Foi utilizado para a elaboração deste trabalho o acervo do A rq u iv o do D epartam ento de H istória e T eoria da Faculdade de A rq u itetu ra de Barra do Pirai — FERP — que desen volve pesquisa, junto com os alu n o s, sobre a arq u ite tu ra ru ral do Vale do Paraíba Flu­ m inense nos M unicípios de B arra do P iraí, Barra M aasa, P iraí, V olta Redonda, Resende, V assouras, V alença e Rio das Flores. O s desenhos aqui apresentados são do aluno Luiz Cláudio Ribeiro.

BIBLIO G RAFIA ALCANTARA, D ora — Anotações Sobre a Arquitetura Rural Fluminense, in Artefato, Jornal de Cul-


Arquitetura rural do Vale do Paratba F lum inense no século X I X

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A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim

A N N A M A R IA M O N T E IR O DE C A R V A L H O

Na segunda metade do século XVIII, uma notável obra urbana destaca-se como um documento visual dos mais representativos da história e da arte do Rio de Janeiro. Trata-se do Passeio Público de Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim, ex­ pressão plástica da realidade cultural do Brasil-Colônia que se afirma como Capital do Vice-Reino. E, no amálgama dos modelos europeus importados, a obra mostra os indícios de uma singularidade artística e de uma consciência nacional. De sua fundação em 1565 a meados do setecentos, a cidade do Rio de Janeiro se desenvolve em torno do binômio Igreja/Estado, manifestando uma ideologia políticoreligiosa marcada pela Contra-Reforma que, em Portugal, funda-se na divulgação da cul­ tura luso-católica e na defesa territorial, garantindo-lhe a manutenção da Colônia. Do ponto de vista de uma expressividade plástica e urbana, manifesta-se essa ideologia na arte monumental das Igrejas e Conventos das Ordens Primeiras e nas construções fortificadas, contrastando com a modéstia das casas urbanas, as ruas estreitas e tortuosas e a insalubridade da cidade. Já no início do século XVIII, o Rio se afirma como principal porto da Colônia, por ser o escoadouro natural dos minérios da Gerais (descobertos no século anterior). Seus gover nantes, embora ainda privilegiem os interesses defensivos, começam a voltar-se para os urbanos, diante da expressão que a cidade vai adquirindo aos olhos da Coroa. Um exemplo é a construção do seu primeiro chafariz — o da Carioca em 1723. Em 1763, o Rio de Janeiro é elevado a sede de Governo e a Capital do Vice-Reino, obedecendo às mudanças político-administrativas introduzidas, no Brasil, por Marquês de Pombal, o Ministro todo-poderoso do Rei D. José. Razões de ordem estratégica deter­ minam a escolha: seu porto oferece maior segurança e fiscalização do que o de Salvador e está mais perto da região sul do país. Torna-se também cada vez mais evidente a aproximação do modelo lisboeta de capital como imagem de um poder absoluto, esclarecido e iluminado, iniciado com D. João V e que a política centralizadora pombalina enfatiza na reconstrução da cidade arrasada pelo terremoto de 1755. Assim, Lisboa e Rio de Janeiro apresentam a incorporação do estilo barroco mo­ numental, expressão do poder do Estado — das principais capitais européias do momento: Roma e Paris; e, também, do rococó, arte refinada e galante, desenvolvida sobretudo na Corte de Versailles. Essas duas formas chegam, a essas cidades, conciliadas, sem a opo­ sição do pensamento que as geraram inicialmente.


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N o Rio de Janeiro, o m o n u m en tal e o requintado passam a ser as obras dos poderes civil e m ilitar com o, por exem plo, o Palácio do G overnador (1743), A rco do Teles (1750), os A rcos da Lapa (1750), a C asa do T re m (1762). A s m anifestações artísticas religiosas das Igrejas das O rdens T erceiras e Irm andades. expressão são tam bém do poder dos leigos, com o declínio das O rdens P rim eiras, quando da expulsão dos jesuítas do Brasil em 1755, d u ran te a reform a pom balina. C om o exemplo, as Igrejas das poderosas O rdens Terceiras do C arm o e de São Francisco, p ertencentes aos brancos e notáveis. A parte urbana da cidade já apresentava ruas retilin eas. com traçado em xadrez e abertura de largos, o que propiciava m aior aeração e luz à cidade. Isso evidencia um a estru tu ra plástica e urbana racionalizante, em que está presen te a proposta ilum inista com os conceitos de civilidade, higienização. bem -estar social, progresso cientifico e cren ça nas realizações hum anas, in­ corporada à solenidade da proposta barroca. Cabe ao quarto V ice-R ei, D. Luís de Vasconcelos, to rn a r mais evidente esse proces­ so. quando opta em sua gestão (1779-1790) por atacar os ainda graves problem as de in salubridade e abastecim ento d 'á g u a da cidade. D ecide-o por esse trabalho m onum ental, que é o Passeio Público — o p rim eiro local de lazer do carioca — num desejo de integração do espaço da natureza ao da urbe. com expressão artística. O m onum ental desce do altar á rua. consagrando o “ p o v o " na figura do seu benfeitor. O artista fica. assim , anônim o e es quecido. reconhecido, apenas, pela tradição popular. N as cartas de D. Luís de Vasconcelos dirigidas ao Sr. M artinho de M elo e Castro esse refere-se á obra do Passeio Público (e ou tras), mas não ao M estre (R e v ista do I H G B .T o m o 4. pp. 34, 35). Sua prim eira biografia data de meados do século X IX , feita por M anuel de A ra ú jo P orto A legre (publicada em artigo “ V a le n tim d a Fonseca e S ilv a ". R evista do I H G B . vol. 19, pp. 369/375, RJ, 1856) a p a rtir de um relato de Sim ão José de N azaré, discípulo de V alentim . O utros biógrafos acrescentaram novos dados: M o reira de Azevedo (O R io de Ja n eiro , sua H istó ria , M o ­ n u m e n to s , H o m e n s N o tá v e is, U sos e C u rio sid a d es , V ol. I, p. 569, RJ, 1877) descobre nos Livros de Óbitos da Igreja do Rosário a data de sua m o rte: 1? de m arço de 1813: Nair B atista ( “ V alentim da Fonseca e S ilv a", R evista d o S P H A N , n? 4. pp. 272/282, RJ, 1940) confirm a a inform ação, ainda esclarece o term o de en trad a de V alentim na mesma Irm andade em 1799 (fls. 39 Lvs. 1752/1829) e reconhece a autoria de seus retábulos nas Igrejas das O rdens 3?s do C arm o e de São Francisco; Á lv aro M achado reconhece a au toria de V alentim no retábulo da Igreja da Conceição e Boa M o rte ( “ Igreja da Conceição e Boa M o rte , in M u n d o C a tó lic o . Rio. 1956); A n n a M aria M o n teiro de C arvalho, nos da Igreja da C ruz dos M ilitares (liv ro d e Receita e D espesa, M aço I. 12 de dezem bro de 1812, Doc. n ? 28; 14 de abril de 1812, Doc. n? 82, inform ação doada ao A rquivo do S P H A N em 1984). M u lato , filho de um c o n tra tad o r de diam antes e de u m a negra africana, o seu ca­ m inho está traçado a A rte ; aqui cabe a observação de Sérgio B uarque de H ollanda (in “ Letras, A rtes C iências” , C ap. III, H istó ria G era l da C iviliza çã o B ra sileira , pp. 108 a 109. SP, 1982): A vocação e a destreza artística passam a co n stitu ir um a inspirada pos­ sibilidade de m ovim ento ascensional na rígida e stru tu ra escravista. Por essa via, forma-se um novo grupo, que não é cativo nem senhor, cuja co r de tez é ignorada e cuja presença é indispensável” . C onta Porto A legre “ que fora aqui que aprendera a a rte torêutica com o entalhador que fez as prim eiras obras da O rd em T erceira do C a rm o ” . 1 0 / n? /U/ o ? ^ di-SCOrdam‘. G ° 1nZaga D uque Estrada ( ‘‘M e stre V a le n tim ” , in O P a iz , i. /U 3/1213) diz que te n a adquirido algum co n h ecim en to de sua profissão em P ortugal.


A espacialidade do Passeio Público de M estre Valentim

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para onde foi pequeno e voltou jovem ainda, aproxim adam ente em 1765 e ficando aqui até a morte. Eximio toreuta e artista do “ risco” , seu nom e já figura como M estre em 1773 (19 Livro de Receita e Despesa da Ordem 3? do Carmo). Logo se destaca dentre outros M es­ tres entalhadores contem porâneos, executando magníficas obras de talha e imaginária em algumas das mais im portantes igrejas da cidade e, ainda, moldes de lampadários, mobi­ liário e objetos sacros. Engenhoso urbanista, “ arq u iteto ” e escultor, no período de um Alpoim e de um F unk, constrói além do Passeio Público os mais famosos chafarizes da época — o das M arrecas (1785), Pirâmide (1789), Lagarto (1786) e Saracuras (1795), dotando todas essas obras de belas esculturas. É ainda responsável pela reedificação do prédio do Recolhim ento do Parto (1789), que se incendiara. Nào podemos ainda saber como Luís de Vasconcelos, fidalgo instruído, de larga ex­ periência adm inistrativa, encarregou M estre V alentim para o estudo e direção das obras públicas urgentes preterindo a escolha de m ilitares diplomados engenheiros com o; por exemplo, o sueco Funk. O fato é que, encomendados o projeto e a construção do Passeio Público á competência e á lavra de Valentim, ele se torna a mais im portante expressão ar­ tística do Rio de Janeiro dos Vice-Reis. Analisemos alguns itens que, a nosso ver, definem a obra: 1. O conceito ilum inista de saúde pública, liberando “ ar puro” e luz à população, presente na escolha do local. Iniciado em 1779 e concluído em 1783, o Passeio Público surge em local acertado , que a consulta de mapas e iconografia da época perm ite avaliar: como podemos depreender de cópia da planta de Roscio, projeto de fortificação de 1769 (Gilberto Ferrez, in A s ( idades de Salvador e do Rio de Janeiro, no S écu lo X V I I I , RJ, 1963, pp. 32 e 33) a cidade compunha-se de um quadrilátero que tinha com o lim ites a leste, as águas da baia e a oeste, pouco mais que a rua da Vala (hoje U ruguaiana), com um a saída para o Largo de São Fran­ cisco e outra para os terrenos e o Convento da A juda. Daí partia o Caminho dos Barbonos a que seguia o de M ata-Porcos, fazendo ligação com o interior, de onde algumas granjas e chácaras forneciam o abastecim ento. Um terreno na urbe ou mais para o interior apresen­ taria condições idênticas de insalubridade, calor e falta de conforto que castigavam a população; a brisa m arítim a da tarde, vinda do Sudeste, encontrava uma barreira nos mor ros do Castelo e de Santo A ntônio, unidos nas suas bases; as áreas internas nào tinham o m enor encanto. Eram alagadiças e sem m orros próxim os obrigatórios aos necessários ater­ ros. Buscando a praia, ainda que um pouco distante, Valentim alcança zona bela e fresca, nào obstante a insalubridade do local alagadiço, e obtém solução ideal, com o desmonte do m orrote das M angueiras e aterro da Lagoa do Boqueirão da Ajuda e circunvizinhanças. Is to porque o m orro era baixo e de terra, um contraforte do M orro de Santa Teresa e a chamada lagoa não passava de um raso espelho d ’água. como podemos ver num quadro da época, o óleo do pintor Leandro Joaquim, atualm ente no Museu Histórico Nacional (fig.

D. 2. A crença no progresso e nas realizações hum anas, de um governante iluminista está evidenciada no preparo e proteção da área; a maior obra de engenharia feita no Vice Reinado. É de se com preender o enorm e esforço para levar a cabo um em preendim ento dessa natureza, dada a precariedade de recursos, de instrum entos e equipamentos disponíveis e da qualidade da m ão-de-obra. Somente o sentido de autoridade e de independência de Luís de Vasconcelos e a confiança depositada no talento e capacidade do m ulato Valentim explicam-lhe o êxito. V im os que Luís de Vasconcelos dispensou autoridades no ramo da en-


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genharia da época. . . . . . C onform e verificamos na carta do Vice-Rei dirigida ao Sr. M artinho de M elo e Castro ( “ opus cit. ” , pp. 34/35). datada de 1781, faz-se referência “ a um trabalho iniciado com aqueles aterros de 1779 — o Passeio P úblico” e que dá a en ten d e r que Vasconcelos agira com urgência, diante dos problem as de insalubridade e abastecim ento d água da popu­ lação. sem se utilizar dos clássicos pedidos de autorização e de recursos. Segue o texto, “ ...segui o meio term o de m andar para a fortaleza da Ilha das Cobras todos esses vadios, que se encontram em algum com m isso, fazendo-os trab alh ar nos seus officios; e passando o rendim ento e producto das obras que se vendem para um cofre, que m andei estabelecer no calabouço, para se applicarem as im portâncias que alli se vão ajuntando ás obras pu­ blicas d esta cidade. N o m esm o cofre se guardam as qu e respeitam aos açoutes dos es­ cravos que os seus senhores m andam castigar, afim de se im pedir por este modo não só a excessiva paixão com que são punidos, mas ainda de se providenciar a precisão de o serem quando fazem desordens, e se disfarçam por um a indiscreta affeição. Todos estes rendi­ m entos. que se tem apurado por um m ethodo e escrip tu ração abraviada, se tem consum ido nas obras do Passeio Público, a que as pequenas rendas da C am ara, e as poucas forças da Fazenda Real não podiam acu d ir, tendo-se conseguido u ltim am e n te dim inuírem , com o medo d aquella suave correcção, as perturbações d e s te s indivíduos, dos quaes se vem a tirar um a correspondente satisfação na parte que pôde resp eitar ao m esm o publico” . A ssim , escolhido o local e definido o projeto, V a le n tim dá inicio, em 1779, ao tra balho de desm onte do M o rro das M angueiras e o a te rro da Á rea destinada ao jardim e tam bém das imediações. Sem serm os precisos por falta de m aiores dados, podemos adm itir que o tipo de equipam ento usado pela turm a de d esm o n te seriam os clássicos instrum en tos: picareta, enxada e pá. P ara o transporte do m aterial desagregado, em pregava car rocinhas e anim ais de tração, com o são vistos, em g ra v u ras da época, serviços sem elhan­ tes. U m processo rudim entar que nos leva a reconhecer o alto valor do seu trabalho. O utra engenhosa solução foi o recurso utilizado pelo M estre no que se refere á proteção da área: um D ique. O s alagados ju n to ao litoral e a assim cham ada Lagoa do Boqueirão da Ajuda form avam -se, em parte, pelas en ch u rrad as de escoam ento dificil e tam bém pela invasão das ondas nas cheias de ventania. C om os aterros realizados, os efeitos das chuvas estariam resolvidos apenas por adequado declive para a praia, m as o baixo nivel não im pedia, de quando em vez, os m aus efeitos do m ar. Com o m aterial do desm o n te, V alentim constrói u m a m u ralh a elevada “ cerca de dez pés acim a do nível natural do te rr e n o ” (segundo relato do co m erciante inglês, John Luç cock, em N o ta s sobre o R io d e J a n e iro e P artes M e r id io n a is d o B ra sil 1808/1818, p. 59). R evestida por parede de pedra do lado do jardim e , e x te rn a m e n te , por um cais quase vertical de grandes blocos de g ra n ito aparelhado, co n fo rm e g ra v u ra de C. Linde ( A lb u m do Rio d e J a n e iro de 1860). Essa verdadeira barragem rep resen tav a um m eio de proteção ao Passeio P úblico contra os efeitos da n atureza. Com um ou o u tro reparo, tal trabalho resis tiu às ressacas e só foi abandonado pela necessidade de alarg am en to da faixa litorânea, já no século X X . 3. A s raízes árabe e m edieval de Portugal ainda p resen tes na com posição formal do Passeio Público: à idéia de fusão do espaço da n atureza ao u rb a n o (espaço barroco) se opõe a idéia de natureza “ revelada ” por de trás de um m u ro e de um portão. A exem plo de Lisboa, o Passeio Público de V alentim é protegido por um M u ro , “ que de espaço a espaço tem janelas com grades de fe rro ” (Luiz G onçalves dos Santos, em M e m ó ria s para S erv ir à H istó ria do R e in o do B ra sil , p. 29) ou “ janelas com balaústres de m ad eira” (J. M anuel de M acedo, U m Passeio p ela C idade d o R io de J a n e ir o , V . I, RJ,


A espacialidade do Passeio Público de M estre Valentim

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1877, p. 80). Divergências á parte, o fato é que o m uro apresenta aberturas, visíveis em litografia do Barão de P lanitz (12 Vistas do R io de J a n e iro , 1840, Col. Biblioteca Nacional) e, partindo de cada lado da entrada (à rua do Passeio), circunda o parque, ficando-lhe á direita o Largo da Lapa, à esquerda o da Ajuda. O m uro termina ao fundo, num terraço, para o qual dão acesso q u atro escadas. Assim , a fruição da beleza do Jardim e do Panorama da Baia da G uanabara torna-se privilégio de um público selecionado que transpõe o portão. Cercado pelo m uro, o Passeio Público do Rio de Janeiro não se abre publicam ente para a cidade. Persiste ainda um a visão de mundo fechado, particular, a dos conventos e das quintas portuguesas. Em Versailles, cujo modelo de jardim é formalm ente retomado no Palácio Real de Q ueluz e no Passeio Público de Lisboa, a visão de mundo é oposta — de dentro para fora. N o ce n tro do poder m onárquico da França a natureza se abre, em ar­ térias, em direção à cidade. Em Roma, as praças, com fontes e chafarizes, servem de mediação entre o espaço da natureza e o urbano. 4. A composição formal barroca é suporte de um a decoração barroca e rococó de ten­ dência classicizante; o sentim ento nativista de V alentim se instaura na poética da obra. Valentim concebe o Passeio Público no form ato de hexágono regular. Dão-lhe en­ trada um im ponente co n ju n to de P ortal/P ortão, com vista direta para o fundo por uma ala principal, reta, e outras secundárias também retilineas, num traçado especial de paralelas, perpendiculares e diagonais, perceptível na planta do Rio de Janeiro de 1808 de J.C . Rivara (Coleção Biblioteca N acional) e ampliada em M anuel de Macedo ( “ opus c it.” , il. 3). Esse traçado geom étrico evidencia tam bém aproximação do modelo do Passeio Público de Lisboa e dos Jardins do Palácio Real de Q ueluz, por sua vez inspirados na aparência formal dos jardins barrocos franceses e dos italianos do fim do renascim ento, que contrapunham a co n stru ção ordenada da n atu re z^ à movimentação dram ática dos elemen­ tos plásticos e arquitetônicos. A um simples exam e desse traçado em relação ao atual (projeto de G laziou, na remodelação do Passeio Público em 1864, lápis e aquarela, col. Biblioteca N acional) (fig. 2) constatam os nova concepção espacial, neoclássica, que opõe â racionalidade arquitetural e plástica das construções uma manifestação mais espontânea da imitação da natureza. H á também maior interação do jardim com o seu entorno, uma vez que o m uro foi substituído por grades de ferro, deixando, assim, aparecer o seu in­ terior. Segundo litografia de Karl W. von T herem in (em Saudades do Rio de J a n e iro , 1935) o Portal apresenta decoração clássica: pilastras jônicas em granito, encaixadas em abas de alvenaria e encim ado de u rn a clássica; com pletam -no duas guaritas em nicho e arremate em curva e pinha. Dai segue o m uro, deixando ver as aberturas com rexas e ornatos de com poteira. H oje só podem os apreciar o portal até as abas, uma vez que um gradil substituiu as guaritas e o m uro. O Portão é todo trabalhado em ferro. A arte do metal — uma arte industrial desen volvida principalm ente na França, a partir de Luís X IV — é m uito utilizada por Valentim, com notável dom ínio da técnica. Apresenta o portão decoração rococó — volutas, curvas, contra-curvas, estilização de plumas e folhagem, arrem ate em frontão curvilíneo traba­ lhado, rocailles e m edalhão de bronze. O m edalhão ostenta, na face da rua as A rm as Reais e na interior, as efígies da Rainha D. M aria I e do Rei D. Pedro III (fig j 3). Nas aléas, “ ruas bordadas de arv oredo...” (Gonçalves dos Santos, in “ opus c it.” p. 29) são plantadas várias árvores e plantas brasileiras “ sustentadas por treliças de madeira, onde sob o abrigo da flor de m aracujá, os tisnados brasileiros gozam o luxo de um a atmos­ fera fresca” (Luccock, in “ opus c it.” , p. 59). É im portante aqui ressaltar a catalogação


cientifica das árvores e plantas das m atas cariocas feita por B althazar da Silva Lisboa ( A n naes do R io de Ja n e iro . T . 1, cap. V , pp. 204 a 289, 1834), m uitas delas em pregadas no Passeio P úblico (segundo detalhada descrição botânica de José M ariano Filho, in O Pas­ seio P ú b lic o . RJ, 1943), o que dem onstra ter havido um a deliberada preocupação em m os­ trar a flora local, seja por parte do sentim ento nativista de V alentim , seja pelo espírito de investigação científica da n atureza, próprio do ilum inism o, que o Vice-Rei e a C orte in ­ teressavam docum entar. Essas árvores, mais tarde frondosas, form aram um bosque, que podemos ver reproduzido num a litografia do Barão de P lan itz ( “ O Rio de Janeiro em 1840” , Col. Biblioteca N acional) e m ais tarde destruído quando da modificação do jardim . N o que diz respeito a utilização de elem entos escultóricos, arquitetônicos e orn am en ­ tais, o estilo de V alentim caracteriza-se por uma m istura do gosto barroco e rococó, mas sem pre de form a contida e sóbria. Podem os dizer, classicizante. H á tam bém um evidente sen tim en to nativista. Estão presentes nessa obra urbana, e em outras que executou pos­ terio rm en te, esculturas da nossa fauna e flora aliadas ás de inspiração mitológica. Q uase ao fim da aléa principal, de cada lado, erguem -se duas pirâm ides de base tria n ­ gular, “ esg u ias” ... “ de boa p ro p o rção e bem lavradas” (Jo h n Luccock, in “ opus c i t .” , p. 59) construídas em blocos de g ra n ito carioca, onde dois m edalhões de m árm ore branco, colocados pouco acima da base, form am contraste. T razem as seguintes inscrições: “ A o A m or do P ú b lic o " e “ À Saudade do R io " (fig. 4), o que pode com provar a necessidade de V alentim em apresentar sua terra e sua gente (ou do V ice-Rei á sua própria), da m esma forma que exaltara a presença real no medalhão do portão. A s pirâm ides funcionam com o m arco divisório entre o jardim p ropriam ente dito e o co n ju n to arquitetônico que se d istin ­ gue ao fundo da aléa principal: um a Cascata artificial a que segue um T erraço com P avi­ lhões.


L ml jâ–


Figura 7


A espacialidade do Passeio Público de M estre V alentim

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A cascata é form ada por um a espécie de outeiro de pedras e vegetação, como uma toca, onde se vê um m agnífico conjunto escultórico, em bronze, de dois jacarés entre­ laçados e três garças (essas, hoje, inexistentes). H á ainda “ um coqueiro de 20, ou mais palmos de altura, todo de ferro, e pintado ao n atu ral, que, apesar da rija m atéria de que era formado, em poucos anos o vento o despedaçou” (Gonçalves dos Santos, em “ opus c it.” , p. 29) sendo substituído por um busto de Diana, no G overno do Conde dos A rcos. Os jacarés têm representação naturalista, estão dispostos em oposição, num har­ monioso jogo de sim etria e m ovim ento (barroco classicizante). Podemos ter idéia da cas­ cata com todas as escu ltu ras, em desenho de M agalhães Corrêa (fig. 5), concebido segun­ do a descrição de Luís Gonçalves dos Santos ( “ Fontes e Chafarizes” , vol. 170, p. 22, Revista IH G B , 1939). A propósito das esculturas conta-nos o seu prim eiro biógrafo, Araújo Porto A legre: “ V alentim modelou aquelle grupo de jacarés; e porque falhasse a primeira fundição, foi elle em pessoa executar a segunda, que é o resultado que admiramos hoje. É também d ’elle o m enino que vôa e su stenta um Kagado, que vom ita agua em barril de granito, assim com o o eram várias estátuas que desappareceram ” (In R ev. IH G B , vol. X IX , p. 373, 1856). A água da cascata jorra das mandibulas dos répteis e dos bicos das aves num tanque de granito com planta m ovim entada barroca. A cascata é encimada por um frontão de perfil interrom pido e carteia em m árm ore de liós, rococó, com as armas do Vice-Rei. Q uatro escadas em oposição sim étricas dão acesso ao lado oposto do conjunto de onde segue o Terraço. V alentim constrói ali outra fonte: a chamada “ Bica do M e n in o " de que fala A raújo P orto A legre. A crescentam os, com o u tro s autores, a sua descrição, que na outra mão o m enino segura um a faixa com o dístico “ sou útil ainda brincando” . No mes­ mo artigo P orto A legre conta que “ o m enino que hoje lá se encontra é cópia do primeiro (que desaparecera) feita executar, em concurso pela adm inistração pública” (fig. 6). Valentim dá ao T erraç o dimensões adequadas a um a boa “ prom enade” pavim entan­ do-o com fios e lajotas de m árm ore colorido; proteje-o com muretas tipo parapeito, inter­ caladas por pilastras e vasos de m árm ore. As m uretas têm , como encosto, bancos de al­ venaria e revestim ento fronteiro em azulejos bicolores e tampos em m árm ore que servem para o descanso e contem plação do panoram a (fig. 7 ). Constrói, tam bém , dois Pavilhões, um em cada extrem o do passeio do terraço. Dos dois pavilhões, que não mais existem , fizemos um esboço e descrição calcados principalm ente nas observações de Luccock (in “ opus c it.” , pgs. 59/60) e em parte nas de Gonçalves dos Santos (in “ opus c it.” , p. 29). São eles estruturalm ente semelhantes, quadrangulares, com o prova a descrição de G onçalves dos Santos e a gravura de Richard Bate, “ T h e publics gardens. C onvento da A juda, H illo f S. Sebastião, Sta. Luzia, Ponta do Calabouço as seen from th e church of N .S. da G lória” (aquar. color., cópia, Coleção Biblioteca N acional) lem brando capelinhas sim ples, por fora, mas internam ente de forma octogonal e m uito ornam entadas (fig. 8). Essa característica de interior octogonal pode ser vista, por exem plo, na Igreja N .Sra. M ãe dos H om ens, de 1752, á Rua da Alfândega, nas proximidades da oficina-residência do M estre, á Rua do Sabão. N os beirais do telhado vêm-se vasos com ananases em ambos os Pavilhões que ostentam , ao centro, estátuas de m árm ore; à direita A poio e á esquerda M ercúrio. A decoração dos interiores foi entregue aos conhecidos artistas da época: Xavier dos Pássaros que se incumbe do Pavilhão da direita, em cujo teto aplicou penas e plumas coloridas; Xavier das Conchas se incumbiu do outro, em pregando nos adornos dos tetos esse variado material. Os Pavilhões guardam homogeneidade de estilo; nas suas divisórias figuram quadros a óleo de Leandro Joaquim em molduras ovais, douradas. O de Apoio apresenta belos cenários do Rio de Janeiro e o


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de M ercú rio , motivos da sua vida econôm ica. H á rem anescentes dessa coleção de quadros no M u seu H istórico N acional. Finalm ente, V alentim atinge na construção do Passeio P úblico, no todo e no detalhe, níveis elevados de refinam ento e criatividade no cam po da arte . Seja na composição formal ou no sentim ento do m undo, tudo se articula em to m o de um a estrutura hierarquizada que subordina o espaço arq u ite tu ral (representado pelo m u ro ) ao da natureza construída (representado pelos jardins, fontes, esculturas, pavilhões e terraço) e este, ao da natureza propriam ente dita. N o traçado interno, as partes se ordenam ao efeito geral do conjunto e induzem a um clim ax: a com posição é voltada para um eixo central, a aléa principal, que, partindo da en ­ trada, leva o olhar do espectador em direção ao centro da sua criação artística, o im ponente co n ju n to arquitetônico e escultórico formado pela fonte dos jacarés, a bica do m enino e o terraço. D o centro, o olhar dirige-se ao alto, na contem plação do panoram a da natureza — finita da baía e infinita do céu. A s pirâm ides têm , a nosso ver, a carga simbólica de pas­ sagem dessas duas dim ensões. C om o vim os, V alentim criou da abstração das form as im portadas, uma composição m agistral, a um tem po grandiosa e equilibrada, num deliberado propósito de m ostrar uma visão de m undo. Um m undo português da Colônia, subjugado, que ele, artista brasileiro, pretendeu transcender, inserindo essas formas na singularidade da nossa natureza.


O nascimento do prazer da arte

GEORGES D U B Y Tradução: IHey Franco

A prim eira m etade do século X I I I fo i um a g ra n d e época para a teologia. Esta, de ins­ piração franciscana e do m in ica n a , luta contra as heresias. Q ual é a ligação entre essa teologia e a evolução da arte q u e lhe é co n tem p o râ n ea ? Quais são ig u a lm en te, no século seg u in te, as consequências dentro do d o m ín io artís­ tico da nova teologia q u e D u n s S co t e G u ilh erm e de O ckh a m en sin a m ?

O que costum am os cham ar de arte gótica, isto é, uma concepção arquitetônica que tenta fazer com que o m onum ento seja translúcido, que deixa penetrar a luz até o san­ tuário. encontra-se em relação direta com o florescim ento, no inicio do século X II, de uma teologia da luz. N a abadia de Saint Denis, Suger foi o prom otor desta nova estética. Venerava-se na abadia a m em ória daquele a quem chamam os o Pseudo Denys, um re­ presentante do pensam ento bizantino que m ostra a criação como em anação de um foco luminoso, a luz que transform a em Ser todas as criaturas. Animados por este pensamento e fiéis a um texto da Biblia, “ Deus é lu z” , os construtores que trabalharam no projeto de Suger, que o seguiram e foram em seguida para C hartres e para todas as oficinas de tra­ balho das catedrais da França, desejavam de fato dar forma a esse pensam ento teológico. De modo que. ao m eu ver, a catedral gótica é a expressão visual mais convincente desta concepção. O pensam ento teológico formalizou-se em seguida, especialmente na Universidade de Paris; tornou-se bem mais racionalizante, devido á boa recepção da lógica de Aristóteles, e. no decorrer dos séculos XII e XIII, a catedral tam bém se torna mais racional. Ela se desenvolve num a justaposição de seqüências extrem am ente ordenadas, quase idênticas, o que ocasiona um a relativa secura; secura que vem os nitidam ente afirmar-se no decorrer do século XIII. N o final do século XIII e no inicio do século X IV , produz-se uma profunda discórdia entre os hom ens da Escola, isto é, en tre os que trabalhavam naquelas oficinas extraor­ dinárias das universidades, onde a principal disciplina era a teologia. De fato, uma des­ coberta bem mais profunda do pensam ento de A ristóteles e de seus com entadores m uçul­ manos chegava a q u estio n ar determ inados elem entos do próprio dogma. Esta discórdia que suscitou consideráveis transtornos determ ina um a espécie de separação entre a ciência de Deus, a teologia e a ciência do U niverso. Esse movimento, que insinuava-se no pen­ samento de D uns Scot e manifestava-se no pensam ento de G uilherm e de O ckham , tra-

Perguntas formuladas por C.atherine Millet e Guy Scarpetta da revista “A rí Press


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duziu-se igualm ente na evolução da criação artística. M as não creio que este tenha sido o único fator. Separação e n tre a ciên cia de D e u s e a ciência do universo

H ouve tam bém o progresso geral da civilização, a necessidade de lucidez, o contato com o m undo real, a reabilitação da natureza que se opera no decorrer do século XIII, notoriam ente sob a influência de São Francisco de A ssis. São Francisco de Assis não era um teólogo, mas ele “ salvou” o carnal, o natural, o m u n d o da condenação que lhes pesou por tan to tem po. Estas transform ações d en tro do pensam ento e na produção da própria teologia fa­ voreceram o surgim ento do que cham am os de realism o, isto é, de um a atenção voltada para a figura das coisas visíveis. A ch o que o esforço dos pintores no século X IV em aperfeiçoar o ilusionism o recor­ rendo principalm ente à perspectiva tem uma relação ev idente com estas novas atitudes do pensam ento. N o q u e d iz respeito à arte d o sé c u lo XI I I, eu n o te i q u e v o c ê fa la de u m “realism o do g lo b a l" . Q u a l é a diferença e n tre esse realism o do g lo b a l e o realism o que aparece no século X I V ?

E nquanto a criação da G ran d e A rte está inteiram en te sob o dom ínio dos intelectuais, isto é, dos padres e teólogos, o refinam ento do pensam ento teológico conduz a um a ex­ pressão mais conveniente e m ais satisfatória da coerência do universo. Dai a busca do “ global” ; a catedral tom a-se um a espécie de enciclopédia onde todos os elem entos do conhecim ento se reúnem n um todo. É difícil, portanto, falar de realism o, no sentido que a história da arte dá habitualm ente a esta palavra, porque o que os artistas guiados pelos teólogos procuram é reen co n trar o que há de ideal nas cria tu ras, isto é, as intenções di vinas. É um a espécie de busca de tipos exem plares. P or exem plo, a escultura da metade do século X III não procura ab so lu tam en te individualizar seus personagens, tam pouco situá los d en tro de sua verdadeira idade ou particularidade física; ela tenta reconhecer sob os traços dos hom ens e das m u lh eres que se trata de rep resen tar aquilo que há de mais per­ feito, a perfeição do próprio p ro gram a, o modelo p rim itivo tal co m o existiu no pensam ento do D eus criador. E n tretan to , q u an d o a teologia, após a gran d e reviravolta de que falei há pouco, descarta a ciência do u n iv erso criado, ciência que se funda na experiência e na ob­ servação. inventário do que percebem os sentidos, abre-se aos artistas o campo para uma busca que eu cham aria de fenom enológica. É o acidente que deve ser traduzido, dai o desenvolvim ento do re trato e a irru p ção da paisagem . U m a Piedade M a is In d ivid u a l V ocê d isse a p ro p ó sito desta teo lo g ia q u e ela f o i u m a reação ao p a n te lsm o . C o m o en tã o se re e n c o n tra r en tre o p a n te lsm o e p o r e x e m p lo a n a tu reza s e g u n d o São F rancisco?

Isso de fato se deu num a aresta. H ouve por parte daqueles que eram m uito sensíveis ao averroísm o, e a tudo o que as traduções árabes puderam descobrir de um pensam ento que não era cristão e de um a interpretação de A ristóteles e d a filosofia grega, um a grande tentação em ver Deus por toda p arte e portanto de colocar em questão a autoridade da igreja. O panteísm o conduzia ao sen tim en to de que finalm ente a ligação en tre o indivíduo e as forças im anentes podia ser d ireta, sem o interm ediário sacerdotal. E videntem ente a


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igreja combateu tudo isso. A G rande A rte que era a arte oficial tentava descartar tudo o que nela podia haver de panteista. M as com o desenvolvim ento da filosofia de O ckham e com a evolução da sociedade — pois eu não dissocio a evolução do pensam ento do que o sustenta, as relações e n tre os hom ens — pouco a pouco, no decorrer do século X IV , há uma inclinação para as form as de piedade que são cada vez mais individuais (este movi­ mento conduz aos m ísticos renanos, ao m estre Eckart e à Imitação de Jesus C risto) onde aquilo que as pessoas da época cham avam a devoção m oderna se estabelece dentro de uma relação bem mais distanciada no que concerne aos quadros eclesiásticos e onde o diálogo se instaura entre o fiel e D eus. Isso se reflete diretam ente sobre a criação artística, menos nas formas do que nos lugares em que surge a G rande A rte , o oratório privado, o livro de orações, o relicário pessoal (passou-se a usar as relíquias sobre o próprio corpo como se fossem jóias). E é isso que faz com que passemos de um a arte que, no século X III, é uma arte do monum ento, um a arte coletiva, um a arte para o povo inteiro, ao objeto de arte de que se apropria pessoalm ente o indivíduo. A leitura do tem po das catedrais nos ensina que a Itália p erm a n eceu bastante p erm e á vel à nova teologia E n treta n to poderia m o s p en sa r q u e a a rte d e G io tto corresponde a ela, p o r­ que se essa teologia é u m a teologia do in d ivíd u o , a a rte de G io tto é ta m b é m considerada com o um a arte do in d ivíd u o .

Giotto trabalhava sob as ordens pontificiais e cardinalicias que representavam a cul­ tura global do cristianism o. N a m inha opinião, as inovações de G iotto têm m enos relação com o itinerário teológico do que com as formas de transm issão da crença. A arte de G iot­ to só se explica quando a consideram os contem porânea de um a organização extrem am ente voltada para a prédica, para aquilo que hoje nós cham aríam os de m ass m edia. Trata-se de to m ara imagem o mais convincente possível. G io tto transpõe as técnicas do teatro para a pintura; põe em cena os personagens, isto é, indivíduos que têm um papel definido, atores que traduzem o dogma, a revelação, através de um a gesticulaçào e através das posições que uns ocupam em relação aos outros. O T ea tro de G iotto O que poderia ser d ito sobre a arte do teatro e da p réd ica ? V ocê escreveu que pouco a pouco entre os teólogos a *‘d is p u ta '' su b stitu iu a lição.

Isso se passa no in terio r da universidade. N o m om ento em que a teologia se funda no ocidente, isto é, na época de A belardo (eu falei ainda há pouco de Denys o Aeropagita, mas ele veio da G récia e o O cidente era ainda m uito bárbaro para criar sua própria teologia antes do século XII). É d en tro das escolas eclesiásticas, por causa da adoção da lógica aristotélica. que o trabalho sobre a Escritura pouco a pouco muda de forma. D urante m uito tempo isto foi apenas um a m editação individual, confinada a uma leitura com entada por um único hom em , o m estre, que ensinava o seu ponto de vista. Mas pouco a pouco os métodos da dialética, isto é, a contradição, foram sendo colocados em prática. Abelardo em seu Sic e t N o n confrontando opiniões contraditórias retiradas da Sagrada Escritura, convida á discussão. É efetivam ente dentro da universidade, e principal m ente dentro da universidade parisiense que o curso m agistral, a lectio foi sendo progressivam ente subs­ tituída pela d isp u ta d o , isto é, pela controvérsia. E é através do diálogo que se procura uma aproximação da verdade. Entre as ordens m enores, en tretan to , não se trata de refinar o pensam ento teológico mas de difundi lo. O s m étodos são métodos ex trem am ente amplos de transm issão, e se dirigem aos leigos, a quem proibe-se além disso as discussões. A verdade lhes é revelada


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através de um interm ediário que é a cena, através da eloqüência e do sermão, mas apoiados pela cenografia. Recorre-se ao qu ad ro vivo, ao teatro. E a arte de G iotto é a arte do teatro im obilizado, com cenas sucessivas. N ão a cena de teatro á italiana, como se poderia im aginar, m as “ as casas” , as decorações justapostas do teatro m edieval, que era um teatro circular. A s cenas sucessivas das capela alta de A ssis ou de Pádua são cenas do T eatro de Feira colocadas um as ao lado das o u tras, e é diante delas que desfilamos. O q u e significa d ize r que a a rte de G io tto não é tão co n tra d itó ria com relação ao p en sa ­ m e n to de São F rancisco... A pesar disso, o program a realizado por G iotto neutralizava o que podia haver de revolucionário na prédica de São Francisco de A ssis pois tratava-se de um program a es­ tabelecido pela igreja oficial que tentava restabelecer a o rd em . N ão é u m a idéia m u ito a gradável essa da arte c o n tr ib u in d o para neutralizar u m a revo­ lu ç ã o ...

N o en tan to é bastante evidente. A grande em presa artística de Assis consistia em es­ tabelecer d en tro do próprio e s ta b lis h m e n t tudo o que havia de contestador no franciscanismo. M a n ifesta r a Encarnação V o cê fa la va ainda há p o u co de m ediação en tre os h o m e n s e D e u s. Isso te n a algum a relação co m a fig u r a da V irg em , e n q u a n to p rec isa m e n te m e d ia d o ra ?

N ão. T alvez seja m elhor voltarm os um pouco m ais atrás. Você me perguntava, na prim eira pergunta, a respeito das relações en tre a arte e as lutas contra a heresia. É preciso observar que em contrapartida á d o u trin a oficial havia um a prodigiosa e vigorosa corrente de contestação herética, in icialm en te anticlerical, m as igualm ente negadora do que po deria haver de encarnação no cristianism o. Essa c o rren te co ntesta o fato de que a pessoa divina te n h a tom ado a form a ca rn al, que C risto tenha sido um hom em e que seu corpo tenha nascido do ventre de um a m u lh er. T udo isso repugna àqueles que a igreja declara heréticos, isto é, a partir do século X II, os cátaros, cu jo m ovim ento havia sido durante m uito tem po precedido por tendências com paráveis. A arte figurativa, a grande escultura, a p artir do século X I, tem por função essencial esculpir a prédica herética. Dai o lugar que é dado ao corpo, ao corpo de Jesus vivo e, para m anifestar a encarnação, um a exaltação da mãe de D eus. A mãe de D eus, cuja figura foi pela prim eira vez instalada ao ar livre no por tal de C h artre , com o elem en to essencial da decoração. P ouco a pouco explode o desenvol vim ento iconográfico da figura de M aria. O s teólogos estabelecem um a espécie de me táfora e n tre Cristo e sua m ãe, e e n tre Cristo e a igreja. A virgem se torna a im agem da igreja e quando é m ostrada, com o nos tím panos de Senlis e da N otre D am e de Paris, coroada pòr seu filho, é para proclam ar que C risto delegou seu poder real á igreja. F lo re sc im e n to da A r te C ortesã V o lta n d o à noção de realism o. V o c ê escreveu q u e o re a lism o n o sécu lo X I V s e d e v e m ais a u m a m u d a n ç a da teologia do q u e ao pro g resso da b u rg u esia . Isso vai co n tra toda u m a con cepção sociológica da história.

Sem dúvida, tradicionalm ente, o realism o é a arte burg u esa. P or um lado, estou co n ­ vencido de que existem correlações necessárias en tre o p en sam en to e a evolução m aterial


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das coisas. Mas por o u tro , estou tam bém convencido de que não se pode falar de um a arte burguesa, porque á m edida em que a dom inação da G rande A rte foi sendo pouco a pouco retirada das mãos do clero, o foi para passar às m ãos dos príncipes e não dos burgueses. Os grandes projetos, a direção dos artistas, os meios financeiros colocados á sua disposição, nada disso vinha de fortunas burguesas, antes do século X IV italiano. H á um a ‘desclerizaçào’ e portanto um refluxo do teológico; há um a profanação, no sentido etmológico do termo, mas esta arte é principesca. É dado um lugar den tro desta arte, cujos alicerces são teológicos um a vez que para a maioria continua a ser sagrada, a preocupações hedonistas, ao gosto pelo prazer físico, e finalm ente ao florescim ento de um a cultura que não é bur­ guesa mas cortesã. E quando os burgueses to m am -se mecenas ficam fascinados com a Cortesia. Tudo o que vem os modificar-se, ao m esm o tem po na iconografia, nos tem as, nos recursos a m ateriais m ais lum inosos e apetitosos, não deve ser atribuído a um a emergência real daquilo que cham am os burguesia, mas ao florescim ento de um a civilização da corte. U m a A r te M a is Livre Isso quer dizer, ainda e m fu n ç ã o da nova teologia, q u e h o u v e u m a m a io r liberdade da arte com relação ao d o g m a ?

Sim, isso é evidente. A partir do século X IV há um a espécie de separação entre o domínio da fé e o dom ínio da experiência hum ana. H á todo um dom ínio que permanece, que é o da teologia pu ra, m as o u tro lado há tam bém a reflexão autorizada e a aplicação da lógica sobre tudo o que é terrestre, especialm ente o poder. Paralelam ente à teologia, desenvolve-se o que podem os cham ar de um a filosofia, um a filosofia que se to m a m uito livre porque não é mais obrigada a estar a serviço da teologia. Creio que é isso que produz uma grande ruptura. E porque de um modo absolutam ente contem porâneo, os meios con­ cedidos á criação artística não mais se concentram exclusivam ente dentro dos programas teológicos, mas se voltam , na m aioria, para as decorações da festa terrestre, essa liberdade torna-se ainda maior. O artista é levado a lançar um olhar liberado sobre o corpo, sobre a mulher, sobre o m undo. Você vê um a relação d ireta e n tre a p in tu ra de V an E y c k e a teologia de G u ilh erm e de O ckham

Sim. A filosofia existente na obra de G uilherm e de Ockham é um a filosofia direta­ mente naturalista á m edida em que tem um curso próprio em relação ao curso da teologia. A partir de 1400, na sociedade de Jean de B erry, os artistas que, com o os de antigam ente, eram chamados para ilu strar principalm ente os livros de oração são autorizados a traduzir o verdadeiro espetáculo do m undo. Essa co rrente, nascida na corte parisiense, desemboca na grande pintura de V an Eyck, que é um a análise extrem am ente m inuciosa da natureza. A natureza é em si suscetível a um a interpretação.

A té aqui falam os das fo r m a s artísticas, será que p o d e ria m o s agora evocar os a rtista s? Você costum a ligar os teólogos aos a rquitetos, e às v e z e s fa la de a rq u itetu ra e m term o s de teologia. Você acha de fa to q u e o a rq u iteto se co n sid era va u m teólogo?

Tudo isso é m uito obscuro, porque não tem os inform ações suficientes sobre as con­ dições de trabalho. O s hom ens que eram cham ados para executar o trabalho cum priam um programa que lhes era fornecido pelos pensadores, sábios e teólogos. A lém disso, há um momento, mais ou m enos na m etade do século X III, em que a condição dos artistas en­


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contra-se suficientem ente com prom etida, para que eles tenham qualquer independência. V em os claram ente na evolução das decorações esculpidas da catedral de Reims, que um prim eiro projeto, realizado parcialm ente, respondia, pela distribuição prevista das figuras, a um propósito estritam en te teológico. M ais tarde, com a vinda de um segundo artista, as estátuas são redistribuídas com u m propósito p u ram en te estético. Essa des teologização da criação artística faz com que a satisfação pelo gosto estético se to m e pouco a pouco pre­ dom inante. U m hom em com o São B ernardo não conhecia o sen tid o do que nós cham am os de a r­ te, is to é , do belo. Para ele, tratava-se de en co n trar, no in terio r da pedra, a perfeição. E n­ q u an to que as obras atu alm en te expostas no G rand Palais pertencem a um outro registro, o do prazer estético. Isso sig n ifica que a arte m u d a d e fu n ç ã o ?

Estou persuadido disto e foi o que tentei m ostrar m odesta e imperfeitamente, porque é m uito difícil. Em que m o m en to no interior de um a c u ltu ra a arte se libera de uma função m ágica, de um a função religiosa? U m o utro fator que in terv ém diretam ente e que, apesar de não ser teológico, devo m en cio n a r, é que desde o século X II na Itália havia um interesse pelas antiguidades e pelas form as que nada tinham a ver com a teologia cristã. O q u e v o c ê disse sobre São B ernard o m e f e z p e n s a r n o q u e E tien n e Gilson lem bra a p ro p ó sito de São T o m á s de A q u in o , a saber, q u e ele n ã o tin h a u m a estética Ele tinha um a idéia do B elo p u ra m e n te tra n sc e n d e n ta l q u e não lh e p e r m itia co n stru ir u m a estética no se n tid o e m que a e n te n d e m o s h o je, isto é, c o rre sp o n d e n d o às regras de fabricação É ju sto que ele não tivesse u m a estética. N osso conceito de Belas A rtes é absolu­ tam en te estranho ao p en sam en to dos hom ens dos séculos XII e XIII, enquanto que no século X IV vemos grandes príncipes colecionadores colecionar objetos para o prazer dos olhos. Eles esperavam dos artistas que estes respondessem ao desejo de gozar a obra dentro de suas form as.


A nefasta influência dos arquitetos neoclássicos Boullée e Durand sobre a arquitetura moderna*

JO S E P H R Y K W E R K Tradução Candace Lessa

As construções m odernas repousam em grande parte sobre a utilização intensiva de formas geom étricas elem en tares. A lgum as destas formas, como o quadrado, são fáceis de desenhar O u tras, c o m o o circulo e o triân g u lo, ou os sólidos deles derivados, como o cilindro, são mais difíceis de serem trabalhadas. N o entanto, verifica-se um uso insistente destas formas por p arte dos nossos piores arquitetos e projetistas contem porâneos. Difun­ diu se a idéia de que as form as geom étricas elem entares são, por algum m otivo, melhores q* e outras mais com plexas. Devem os esta idéia aos arquitetos neoclássicos, e também a fatores que os antecederam . N o século V a.C ., Platão havia formulado a idéia de que cor­ pos regulares, tais c o m o o cubo e o tetraedro, correspondiam aos elem entos constituintes do Universo, e a esfera, a form a mais perfeita, co n tin h a e unia todas as outras. Estas idéias foram reformadas pelos filósofos medievais e adquiriram um novo ímpeto durante o renas­ cimento. época na qual filósofos e astrônom os acreditavam ser o U niverso redondo, e sus­ peitavam que a T erra tam bém o fosse. Q uando Rafael pintou os filósofos da Antigüidade em um mural intitu lad o A E scola de A te n a s , retratou Ptolomeu, astrônom o e geógrafo, segurando um globo te rre stre ; e Z oroastro, astrônom o mítico, segurando um globo celes­ te. Essas noções platônicas e seu posterior desenvolvim ento tiveram reflexos sobre a ar­ quitetura. A o favorecerem o uso da abóbada em suas igrejas, os arquitetos renascentistas erguiam m iniaturas do arco celeste. Para m uitos filósofos, a esfera era a im agem da perfeição de Deus, assim como tam ­ bém o era o corpo h u m an o . A Bíblia dizia que D eus criara o homem à sua imagem; e, as­ sim como os antigos, os filósofos cristãos queriam reconciliar a idéia da perfeição do corpo com a descrição geom étrica do U niverso. A rtistas estudavam as proporções da figura humana para nelas e n c o n tra r os segredos da harm onia universal, e buscavam um método que exprimisse essa h arm o n ia através de fórm ulas matemáticas simples. Os arquitetos renascentistas acreditavam que a arquitetura poderia transm itir tanto a idéia de harmonia matemática qu an to a idéia do hom em com o microcosmo. Já em meados do século X V II, cientistas procuravam , cada qual dentro de sua área especifica, aquele aspecto irredutível do conhecim ento a partir do qual seria possível cons­ truir um sistem a novo e especializado. A experim entação tomou o lugar da especulação sobre a harm onia un iv ersal. E, na teoria da arquitetura, as ordens antigas deixam de ser


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sacralizadas. C ontudo, a casca de ornam entação clássica co n tin u o u sendo usada pelos arq u iteto s, se bem que m u ito s não acreditavam nesta o rn am en tação com o suporte ou base para um a abordagem racional dos problem as de co n stru ção . A lguns arquitetos do século X V II quefescreveram sobre problem as teóricos justificavam o uso da ornam entação clás­ sica a títu lo de convenção. P assaram a considerá-la co m o um m étodo de desenho familiar e governado por regras; regras estas que, tendo sido estabelecidas por autoridades antigas, eram a garantia do bom -gosto. Surgiu então um a pequena disputa en tre os “ an tig o s” , que de algum a forma defendiam as idéias platônicas, e os “ m o d ern o s” , que buscavam uma prática em pírica. P orém , m esm o aqueles que seguiam o en sin o clássico não o aceitavam com o universalm ente válido. N icholas H aw ksm oor, por exem plo, que trabalhara com C h risto p h er W ren na C atedral de São Paulo, quando solicitado a am pliar o AU SouPs College. um a construção m edieval em O xford, em pregou um desenho que considerava m edieval. A maioria dos seus predecessores e até alguns de seus contem porâneos acha­ riam sua construção por dem ais deselegante e bárbara para um prédio novo. À m esm a época, viajantes traziam da C hina e da índia histórias sobre construções m aravilhosas jamais vistas na Europa. D escreviam en o rm e s palácios e torres de porcelana e alabastro, telhados dourados e ornam entações fantásticas. A inda, narravam a China de um déspota benevolente, adm inistrada por m andarins, hom ens sábios e cultos, que chegavam a seus postos pelo sistem a do m érito. Este tipo de sociedade seduziu os franceses e ingleses do século X V III. Reform adores sociais, viam os chineses com o rivais, e sua civilização com o superior às civilizações antigas da G récia e de Roma. Im itavam com en tusiasm o. às vezes com m u ita elaboração, construções e objetos exóticos. A arquitetura greco-rom ana passou a co m por em um quadro de diversos estilos alternativos, se bem que m ais destacada. Para alguns projetistas, a seqüência lógica desse m ovim ento levaria a uma o rn am entação derivada das form as naturais, pedras, conchas e plantas, e não m ais dos m odelos chineses, góticos, egípcios ou clássicos. E ste tipo de ornam entação se afirma com o estilo, cham ando-se a principio Rocaille e, posterio rm en te, Rococó. N ele, a liber dade inventiva estava a serviço de um ideal, o do prazer natural. Os artistas do Rococó, com o M eissonier, desenhavam qualquer coisa; chegavam a redesenhar a própria natureza. Foi o estilo de um a geração que se libertava do rígido despotism o de Luís X IV . Da França, o estilo espalhou-se por toda a E uropa e, durante trin ta anos, dom inou a moda. M as foi um a m oda sem espinha. A pelava para o capricho das pessoas: torcia-se, retorcia-se e, ao final, saturou-se. N a segunda m etade do século X V III um a nova e poderosa classe média com eçava a to m ar conta da Europa. Ela rejeitava a aparente frivolidade do Rococó. A França não mais liderava a m oda, e a burguesia voltava-se para a liderança de um a Inglaterra mais sóbria. A volta à m aneira austera e clássica foi uma reação inevitável e afetou tanto a aristocracia q u an to o patrono burguês que liderava a nação. Desta vez, os padrõs ornam entais e formas clássicas foram cuidadosam ente estudados e classificados conform e modelos já existentes. Esta talvez seja a m aior diferença e n tre o classicismo do R enascim ento e a visão neoclássica da A ntiguidade. A té os arquitetos e projetistas m ais fervorosam ente neoclássicos questionavam este sistem a; disputavam em torno da harm onia universal e da racionalidade do estilo. A questão reduzia-se agora á im aginação e ao bom -gosto. A m eu ver, o arquiteto que m elh or exemplifica este conflito en tre o exemplo sóbrio e edificante dos antigos, e o desafio do método racional e em pírico, é o parisiense E tienneLouis Boullée. É revelador que tivesse dedicado seu m ais im portante projeto ao m aior filósofo e cientista do seu tem po: Isaac N ew ton. Boullée nasceu em 1728, um ano após a m orte de N ew ton. Q ueria ser p in to r mas, frente á insistência de seu pai, decidiu estudar


A nefasta influência sobre a arquitetura moderna

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arquitetura. Teve um a longa carreira como professor, de nício como m em bro da A ca­ demia Real de A rq u itetu ra de Paris; com a abolição da Academia pelo Governo Revolu­ cionário, Boullée tom ou-se membro do novo Instituto de França, e foi um dos mais in­ fluentes mestres do país até sua m orte, em 1799. Boullée construiu pouco, e a maioria de seus projetos concluídos eram residências para a nobreza, em Paris e nos arredores. Reser­ vava suas energias para grandes projetos que não passavam do estágio de aquarelas. Um m anuscrito com suas idéias foi legado à nação em seu testam ento, tendo sido publicado apenas há alguns anos atrás. Grande parte do m anuscrito é dedicado à tentativa de fundamentação de seu trabalho a partir de princípios básicos, e à tentativa de estabelecer regras universal m ente válidas de desenho, e que tivessem a solidez das teorias de N ew ton. Boullée preocupava-se com as propriedades dos sólidos. Com o escreveu no auge do Rococó, abordou prim eiram ente as propriedades de corpos irregulares. A complexidade e o grande núm ero destes o confun­ diam: “ Cansado da esterilidade surda dos corpos irregulares, passei para os regulares” . Nestes, achou as qualidades fundamentais que, em conjunto, produziam a imagem de or­ dem que procurava; ou seja, á regularidade, a sim etria e a variedade. Segundo Boullée, a esfera reuniría todas as propriedades dos corpos regulares. Cada ponto de sua superfície é eqüidistante do centro. Isso quer dizer que ao olhar um a esfera, de qualquer um de seus pontos, a beleza e a perfeição de sua forma não serão alteradas por ilusões óticas. A esfera apresenta ainda o u tras vantagens. A sua grandiosidade é aumentada pelo fato de revelar a maior área de sua superfície ao nosso olhar. É a forma mais simples, pois não há qualquer descontinuidade em sua superfície. É também a mais graciosa, já que todos os seus perfis são perfeitamente regulares. Em outras palavras, Boullée considerava a esfera o espelho da perfeição: perfeição por si m esma, não como sím bolo da harmonia universal. A esfera foi o elem ento dominante em m uitos de seus projetos, por exemplo, a ópera projetada para o espaço en tre as Tulherias e o Louvre. Boullée acreditava que a ópera deveria ser um tem plo do bom-gosto, um tem plo do prazer, um tem plo de Vênus, um lugar em que o charm e da m ulher parisiense fosse apreciado. Boullée tam bém considerava o aspecto prático. O s teatros do século XVIII eram com um ente destruídos por incêndios. A ópera projetada por Boullée seria construída em pedra e tijolo. O grande peristilo que circundaria o prédio o isolaria e, ao mesmo tem po, fornecería um abrigo para os em ­ pregados que estivessem aguardando o térm ino do espetáculo. A lguns anos m ais tarde Boullée desenhou um cenotáfio para N ew ton, de forma per­ feitamente esférica e em dimensões m onum entais que estivessem á altura de seu herói. À noite, a esfera seria ilum inada por uma esfera subsidiária, representando o sistema solar, com uma série de lâmpadas em constante revolução: “ Utilizando teu divino sistema, ó New ton, para erg u er a lâmpada fúnebre que irá indicar teu túm ulo, parece que me elevei ao sublim e” . À noite, o sistem a solar do cenotáfio representaria o dia; e, durante o dia, a noite. As estrelas seriam representadas por aberturas na abóbada, em form a de funil e que canalizariam pequenos feixes da luz diurna. A enorm e esfera não teria ornamentação: Boullée apenas a circundou com ciprestes e flores. Como a enorme cabeça calva de algum herói grego adornada por um laurel, o hemisfério, circundado pelas árvores e flores, re­ duzia a dim ensões insignificantes o visitante ou “ fiel” . A entrada era um túnel subter­ râneo em arco que conduzia ao sarcófago. O espectador seria literalm ente detido no in­ terior. Isolado, só poderia olhar a imensão do céu. O túm ulo seria o único objeto concreto. A imaginação do visitante estaria impossibilitada de se desviar através de associações ou alusões, pasmo com a imensidão do espaço e com o contraste criado pela estreita passa­ gem. Boullée criou intencionalm ente esse contraste brutal, pois acreditava que o objetivo


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do arq u iteto não era o de c ria r ilusão ou fantasia, com o os arquitetos do Rococó, mas o de projetar as leis inflexíveis da razão através da geom etria elem en tar, enfatizada por violen­ tos contrastes. Boullée construiu pouco. Seu aluno e discípulo predileto, Jacques N icolas Louis D uran d , construiu m enos ainda, m as foi mais in fluente do que o m estre. V iveu durante um a o u tra crise na tendência intelectual, quando a en erg ia neoclássica inicial começava a declinar. A obsessão com a A n tig ü id ade greco-rom ana havia sido reduzida a um a fórmula útil, porém vazia. D u ra n te a m ^ior parte de sua vida, D u ra n d ensinou arq u itetu ra para en ­ genheiros. Suas palestras foram publicadas, e sua fam a se espalhou. A rquitetos de toda a Europa vinham ouvi-lo. Suas idéias passaram a ser a base de ensino da cham ada A rq u i­ tetu ra A cadêm ica no m undo inteiro. Sua influência, agora despida das virtudes originais, ainda chega até nós. Os fundam entos do ensino de D u ra n d são poucos. A disciplina da ar­ q u itetu ra consiste em duas partes: um a, o co n h ecim en to dos elem entos; a segunda, o conhecim ento de com posição. A parte analítica dos elem entos é simples: os diversos m ateriais, seu uso e suas com binações nas form as com plexas de paredes, abóbadas e co ­ lunas. Estas últim as, para D u ra n d , representavam a ordem clássica, forneciam ao a r­ quiteto um a variedade útil de suportes de diversas dim ensões. N ão há mais a idéia de per­ feição presente nas formas gregas: m elhor não utilizá-las se não estão á vista, ou se estão encobertas por decorações. M as o ponto principal das teorias de D urand se refere ao conhecim ento de com posição. P ara ele, a com posição teria que seguir regras estritas. Em prim eiro lugar, evidencia o objetivo de seus m étodos de com posição, que são óbvios e do dom ínio de todos, rem etendo à preocupação em e rg u e r edifícios sólidos, estáveis e confor­ táveis. M as teriam tam bém que ser econôm icos. Q u a se todos que escreveram sobre ar q u itetu ra dizem algo sem elhante. M as D urand não se refere apenas a construções baratas. Q uando fala em econom ia, refere-se tam bém á sim etria, á regularidade e á sim plicidade, o que é fácil de entender e difícil de executar. O s elem entos de que trata na prim eira parte do seu livro devem ser com postos de m aneira a criar as form as m ais sim ples. O quadrado e o círculo eram suas formas preferidas. O edifício deveria se r sim étrico, baseado num sistem a de eixos principal e secundário. O s elem entos de m en o r im portância seria ordenados d en ­ tro daquele sistem a com a ajuda de um a grade. E ste m étodo de planejam ento é ainda ob­ servado pela maioria dos arq u ite to s. A lguns dos m elhores arquitetos contem porâneos recorrem a princípios sim ilares aos.de D urand, m esm o que não explicitam ente. Para al­ guns, a preferência por corpos geom étricos elem en tares é um a espécie de estenografia rápida e vazia; para o u tro s é quase um a busca h istérica de ordem nas nossas caóticas ci­ dades. Q ualquer que seja a razão, chegam os agora ao p aroxism o da arquitetura racional de D urand. A sua crença no prazer proporcionado pela com posição econôm ica de um edifício é com partilhada pela m aioria dos arquitetos, se não tam b ém pela totalidade de seus clien­ tes. D iriam eles, assim com o diria D urand, que “ a d eco ração ” e ‘‘a personalidade” são sim plesm ente palavras para fazer o cliente g astar m ais d in h eiro . N ão era isso o que os grandes m estres neoclássicos pretendiam . Eles não podiam prever as m onstruosidades que a arq u itetu ra racional, que pretendia ser apenas e com ­ pletam ente racional, chegaria a produzir. T em os agora um a arq u itetu ra baseada na geom etria sim ples e que acredita ser o prazer um luxo perigoso que hom ens sérios e ra­ zoáveis devem evitar. M as, com o disse G oya, co n tem p o rân eo de D urand, quando a razão dorm e, ela cria m onstros. Este texto é uma versão editada de uma transmissão de televisão da BBC, durante a exposição neoclássica em Londres, originalmente publicada em The Listener, em 9 de novembro de 1982. Se fosse escrever este artigo agora eu talvez colocasse mais ênfase na diferença entre meus dois heróis.


A escultura no campo ampliado*

ROSALIND KRAUSS Tradução: Elizabeth Carbone Baez

O único sinal que indica a presença da obra é um a suave colina, um a inchação na ter­ ra em direção ao centro do terreno. M ais de perto pode-se ver a superfície grande e quadrada do buraco e a extremidade da escada que se usa para penetrar nele. A obra propriamente dita fica portanto abaixo do nível do solo: espécie de pátio, de túnel, fron­ teira entre interior e exterior, estrutura delicada de estacas e vigas. P erim eters/P a villio n s/ D ecoys de M ary M iss (1978) é certam ente um a escultura, ou mais precisamente, um trabalho telúrico. N os últim os dez anos coisas realm ente surpreendentes têm recebido a denominação de escultura: corredores estreitos com m onitores de TV ao fundo; grandes fotografias docum entando cam inhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados em quartos com uns; linhas provisórias traçadas no deserto. Parece que nenhum a dessas ten­ tativas, bastante heterogêneas, poderia reivindicar o direito de explicar a categoria escul tura. Isto é, a não ser que o conceito dessa categoria possa se tornar infinitamente m a­ leável. O processo critico que acompanhou a arte americana de pós-guerra colaborou para com esse tipo de m anipulação. Categorias com o escultura e pintura foram moldadas, es­ ticadas e torcidas por essa crítica, num a dem onstração extraordinária de elasticidade, evidenciando com o o significado de um term o cultural pode ser ampliado a ponto de in­ cluir quase tudo. A pesar do uso elástico de um term o como escultura ser abertamente usado em nome da vanguarda estética — da ideologia do novo — sua mensagem latente é aquela do historicism o. O novo é mais fácil de ser entendido quando visto como uma evolução de formas do passado. O historicism o atua sobre o novo e o diferente para di­ m inuir a novidade e m itigar a diferença. A evocação do modelo da evolução permite uma "modificação em nossa experiência, de modo que o homem de agora pode ser aceito como diferente da criança que foi por ser visto sim ultaneam ente como sendo o mesmo, através da ação im perceptível do telos. Ademais, nos confortamos com essa percepção de similitude, com essa estratégia para reduzir tudo que nos é estranho, tanto no tempo como no espaço, àquilo que já conhecem os e somos.

* Publicado em The Anti-Aesthetic — Essays on PostModern Culture , Washington, Bay Press, 1984 Titulo original: Sculpture in the Expanded Field.


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A critica perfilhou a e sc u ltu ra m inim alista logo q u e esta apareceu no horizonte da ex periência estética nos anos 6 0 — u m co n ju n to d e pais c o n s tfu tív ísu s que podiam le y tim ãr. e portanto a u te n tic a r, o insólito dessés objetos P lástico? geom etrfas iru-rtc*sx produção industrial? — os fantasm as de G abo. T a tlin e Lissitzlcy poderíam ser convocados - para até sTãr q üe nada disso erá r e a tm e n te estra n h o . N ã o im portava que o conteúdo de um não tivesse nada a*ver com o co n teú d o do o u tro e"fosse dtr Tato o seu oposto; ou que o celulóide de GãbõTõsse sinal de lucidez e inteligência e n q u a n to que os plásticos coloridos 'de Ju d d falassem da gíria da C alifórnia. N ão im portava que as formas construtivistas pretendessem ser prova visual da lógica finuíável e da co erên cia de geom etrias universais è!TqtiaTTTõ''qüê õs m inim alistas, ap arentem ente seus sim ilares, dem onstrassem ser algo ev en tu al, iiidica n d õ llffn jn iv e r s o sustentado por cordas de aram e, cola, ou pelas contin gênciás da força da gravidade e não pela M ente. Essas diferenças foram postas de lado pelo fu ro r historicista. Com o correr do tem po ficou um pouco m ais difícil m an ter esta radicalização. A m edida em que os anos 60 se prolongavam pelos 70 e que se com eçou a considerar como “ e s c u ltu ra " : pilhas de lixo enfileiradas no chão, to ras de sequóia serradas e jogadas na galeria, toneladas de terra escavada do deserto ou cercas rodeadas de valas a palavra e s­ c u ltu ra tornou-se cada vez m ais difícil de ser p ro n u n ciad a, mas nem tan to assim . O c rí­ tico /h isto ria d o r. através de um a prestidigitação m ais ab ran g en te, passou a co n stru ir suas genealogias em term os de m ilênios e não de décadas. S to n eh en g e, as fileiras de N azca, as quadras de esporte toltecas, os cem itérios de índios q u alq u er prova poderia ser arrolada no trib u n al para servir com o testem u n h a da conexão deste trabalho com a história, legi tim ando. desta forma, seu statu s com o escultura. P or não serem exatam ente esculturas, Stonehenge e as quadras de esp o rte toltecas são, n este caso, exemplos suspeitos de pre cedente historicista. M as não im porta. O artificio pode tam bém ser usado em vários trabalhos do inicio do século inspirados no p rim itivism o C o lu n a S em F im de Brancusi serve com o exemplo para se fazer a m ediação en tre o passado longínquo e o presente. A o assim agirm os, con tu d o , o term o e sc u ltu ra , que pensávam os estar resguardando, com eç o rrT sê tornar obscuro. H avíam os pensado em utilizar um a categoria universal para a u ten tica r u m grupo de singularidades; mas esta categoria, ao ser forçada a abranger cam po tão heterogêneo, corre perigo de en trar em colapso. Logo, ao olharm os para o buraco feito no solo, pensamos que sabem os e não sabem os o qu e seja escultura. E n tretan to , eu diria que sabem os m uito bem Q que é um a escultura. U m a das coisas aliás que sabem os é que escu ltu ra n ã ó é um a categoria universal mas um a categoria ligada ^Th istó rla. A categoria e sc u ltu fa , assim com o qualquer o u tro ti|x > de convenção» tem su * própria lógica interna, seu c o n ju n to de regras, as quais, ainda que possam ser aplicadas a um a variedade de situações, não estão em si próprias abertas a um a modificação extensa. Parece que a lógica da escu ltu ra é inseparável da lógica do m onum ento. G raças a esta Iogicã. um a escultura é um a representação com em orativa se situa em determ inado local e fala de forma sim bólica sobre o significado ou uso d este local. U m bom exem plo é a estátua equestre de M arco A u rélio : foi colocada no c e n tro do C am pidoglio para sim bolizar com sua presença a relação e n tre a R om a antiga e im perial e a sede do governo da Roma m oderna. R enascentista. O u tro m o n u m en to utilizado co m o m arco num lugar onde devem o correr eventos específicos e significativos é a estátua C o n v e rsã o de C o n sta n tin o , de Ber nini, colocada no sopé das escadas do V aticano que ligam a Basílica de São Pedro ao co ­ ração do governo papal. A s esc u ltu ra s funcionam p o rta n to em relação á lógica de sua representação e de seu papel c o m o m arco; dai serem n o rm alm en te figurativas e verticais e seus pedestais im portantes por fazerem a mediação e n tre o local onde se situam e o signo


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que representam . N ada existe de m uito m isterioso sobre esta lógica; compreendida e 'utilizada, íoi fonte dé énõrm e produção escultórica durante séculos de arte Ocidental. A convenção, no en tan to , não é im utável e houve um m om ento quando a lógica começou a se esgarçar, N o final do século X IX presenciamos o desvanecim ento da lógica <3cT m onum ento. A conteceu gradativam ente. N este sentido, ocorre-nos dois casos que trazem , ambos, a m arca da transitoriedade. T an to Portas do Inferno com o a estátua de BatZâr, de Rodin, foram concebidas com o m onum entos. As portas foram encomendadas em 1880 para serem instaladas num museu de artes decorativas; a estátua foi encomendada em 1891 para hom enagear o gênio literário francês e deveria ser colocada em determinado local em Paris. O indício do fracasso dessas duas obras como m onum ento — cujas en comendas eventualm ente falharam — não é apenas o fato de existirem inúm eras versões em vários museus de diversos países, mas tam bém a inexistência de um a versão nos locais originalm ente planejados para recebê-las. Seus fracassos também estão entalhados nas próprias superfícies: as portas foram desbastadas excessivamente e recobertas a ponto de se tornarem inoperantes; Balzac foi executado com tal grau de subjetividade que o próprio Rodin, conforme suas cartas atestam , não acreditava que fosse aceito. Eu diria que com esses dois projetos escultóricos cruzamos o lim iar da lógica do monumento e entram os no espaço daquilo que pode ria ser chamado de sua condição negativa — ausência do local fixo ou de abrigo, perda absoluta de lugar. O u seja, entramos ncTmodernismo porque é a produção escultórica do período modernista que vai operar em relação a essa perda de local, produzindo o m onum ento como uma abstração, como um TnarctTou base. funcionalm ente sem lugar e extrem am ente auto-referencialT Essas duas características da escultura m odernista nos revelam seu status e, portanto, a condição essonciálm ente mutável ele seu significado e função. A o transform ar a base num fetiche, a escu ltu ra absorve o pedestal para si e retira-o do seu lugar; e através da representação de seus próprios materiais ou do processo de sua construção^ expõé sua própria autonom ia. A arte de Brancusi é urna dem onstração extraordinária de- como isto ' ãcòTiteceTNum trabalho com o o G alo , a base se" torna ò gerador morfolôgico da parte figurativa do objeto; nas Caridtides e Coluna S e m F im , a escultura é a base, enquanto que cm A dão e Fva a escultura está numa relação de reciprocidade com sua base. Logo, a base pode ser definida com o essencialm ente m óvel, m arco de um trabalho sem lugar fixo, in­ tegrado erri cada fibra da escultura. O utró testem unho da perda de local é a intenção de Brancusi em rep resen tar partes do corpo com o fragmentos que tendem a um a abstração radical; neste caso, local é compreendido com o o resto do corpo, o suporte do esqueleto que abrigaria um a das cabeças de bronze ou de m árm ore. Ao se tornar condição negativa do m onum ento, a escultura m odernista conseguiu uma espécie de espaçoldéál para explorar, espaço este excluído do projeto de répresentaçãõ temporal eêsp acial, filão rico e novo que poderia ser explorado com sucesso. O filão era porém lim ita d o ^ ^ a b e r to no início déste século, esgotou-se por volta de 1950, quando começou a ser sentido; cada vez mais^ com o puro negativismo. N este ponto a escultura modernista surgiu com o um a espécie de buraco negro no espaço da consciência, algo cujo conteúdo positivo tornou-se progressivam ente mais difícil de ser definido e que só poderia ser localizado em term os daquilo que não era. N os anos 50. Barnett N ew m an disse: “ Es­ cultura é aquilo com que você se depara quando se afasta para ver um a pintura. " A res peito dos trabalhos encontrados no início dos anos 60, seria mais apropriado dizer que a es­ cultura estava na categoria de terra-de-ninguém : era tudo aquilo que estava sobre ou em frente a um prédio que não era prédio, ou estava na paisagem que não era paisagem. Os exemplos mais cristalinos do inicio dos anos 60 que nos ocorrem , são ambos de


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Robert M orris. Um deles foi exposto em 1964 na G reen G allery: dígitos quase-arquite­ turais cuja condição com o e scu ltu ra sê reduz sim plesm ente a ser aquilo que está no quarto que não é realm ente q uarto; o o u tro trabalho são caixas espelhadas expostas ao ar livre — caixas cujas formas diferem do cenário onde se en co n tram som ente porque, apesar da im pressão visual de continuidade com relação á gram a e ás árvores, não fazem parte da paisagem. N este sentido, a escu ltu ra assum iu sua total condição de lógica inversa para se tornar p u rá“nêgãfiví3ãdê7 ou seja. a com binação de exclusões. Poderia-se dizer que a escultura deixou de ser algo “positivo para se transform ar na categoria resultante da som a da nãopaisagem com a ndo-arquitetura O limite da esc u ltu ra m odernista, a soma do nem /neTtfTüm podem ser representados em forma de diagram a:

não-paisagem “

//

não-arquitetura /

\ // escultura O fato de ter a escultura se tornado uma espécie de ausência ontológica, a combinação de exclusões. a soma do n e m /n e n h u m , não significa qu e os term os que a construiram — não-paisagem e ndo-arquitetura — deixassem de possuir ce rto interesse. Isto ocorre em função desses term os expressarem um a oposição rigorosa e n tre o construído e o não-cons truído. o cultural e o n a tu ra l. e n tre os quais a produção escultórica parecia estar suspensa. A p artir do final dos anos 60 a produção dos escultores com eçou, gradativam ente, a foca­ lizar sua atenção nos lim ites ex tern o s desses term os de exclusão. O ra, se esses term os são a expressão de um a oposição lógica colocada com o um par de negativos, podem ser trans form ados, através de um a sim ples inversão, nos m esm os pólos antagônicos expressos de form a positiva. Ou seja, de acordo com a lógica de um certo tipo de expansão, a ndo-ar­ q u ite tu ra é sim plesm ente um a o u tra m aneira de expressar o term o p a isa g e m , e nãop a isa g em é sim plesm ente a rq u ite tu ra . A expansão â qual m e refiro é cham ada grupo K lein quando em pregada m atem aticam ente e tem várias o u tras denom inações, en tre elas grupo Piaget, quando usada por estru turalistas envolvidos nas operações de m apeam ento na área das ciências hum anas. A través dessa expansão lógica, um conjunto de binários é transform ado num cam po q u atern ário que sim u ltan eam en te tanto espelha com o abre a oposição original. T orna-se um cam po logicam ente am pliado, que se assem elha ao dia gram a abaixo:

/

//

/\

\\

\

paisagem

arquitetura...........complexo « sf

/ •• •• •• \

\

*

não-paisagem ♦-

\

\

\/ /

escultura

• / não-arquitetura .......... neutro


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As dimensões dessa estrutura podem ser analisadas da seguinte maneira: 1) existem dois tipos de relações de pura contradição que são denominados eixos (posteriormente diferenciados em eixo complexo e eixo neutro), indicados pelas setas continuas (ver o diagrama); 2) existem duas relações de contradição expressas como involução, cha­ mados de esquemas, indicadas pelas setas duplas; e 3) existem duas relações de envol­ vimento, denominadas deixes, indicadas pelas setas partidas. (1) Apesar de a esc u ltu ra poder ser reduzida àquilo que no grupo Klein é o term o neutro da não-paisagem m ais a não-arquitetura , não existem motivos para não se imaginar um termo oposto — que tanto poderia ser paisagem como arquitetura — denominado c o m ­ plexo dentro deste esquem a. Mas pensar o co m p lexo é admitir no campo da arte dois ter­ mos anteriorm ente a ele vetados: paisagem e arquitetura — termos estes que poderíam servir para definir o escultórico (como com eçaram a fazer no modernismo) som ente na sua condição negativa ou neutra. Por motivos ideológicos o complexo perm aneceu excluído daquilo que poderia ser denominado a closura* da arte pós-Renascentista. Nossa cultura não podia pensar anteriorm ente sobre o complexo, apesar de outras culturas terem podido fazê-lo com m aior facilidade. Labirintos e trilhas são ao m esm o tem p o paisagem e ar­ quitetura; jardins japoneses são ao m esm o tem p o paisagem e arquitetura; os campos des­ tinados aos rituais e às procissões das antigas civilizações eram, indiscutivelmente, neste sentido, os ocupantes do complexo. Isto não quer dizer que eram uma forma prematura ou degenerada, ou um a variante da escultura. Faziam sim parte de um universo ou espaço cultural, do qual a escultura era simplesmente um a outra parte e não a mesma coisa, como desejaria a nossa m entalidade historicista. Suas finalidade e deleite residem justam ente em serem opostos e diferentes. O campo am pliado é portanto gerado pela problematização do conjunto de oposições, en tre as quais está suspensa a categ o ríam odérnista escultura. Quando isto acontece e 'quando conseguim os nos situar dentro dessa expansão, surgem, logicamente, três outras categorias facilmente previstas, todas elas um a condição do campo propriam ente dito e liin fiu m ã delas assim ilável pela escultura. Pois, como vemos, escultura não é mais apenas um único term o na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de formas diferentes. G anha-se, assim, “ perm issão” para pensar essas outras formas. Nosso diagrama é, por conseguinte, feito da seguinte maneira:

local-construção /

✓ N

\

paisagem «_£.

-X arquitetura..................... complexo 4 \ \

locais demarcados (

não-paisagem

estruturas axiomáticas

~T* não-arquitetura \

neutro

escultura * closure — termo utilizado pela psicologia da Gestalt para descrever os processos através dos quais os ob­ jetos da percepção, lembranças, ações, conseguem estabilidade, isto ó, o fechamento subjetivo de brechas, ou acabamento de formas incompletas para se constituírem em um todo. (N. T .)


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Parece bastante claro que a perm issão (ou pressão) para pensar a am pliação desse cam po foi sentida por vários artistas mais ou m enos ao m esm o tem po, en tre os anos de 1968 e 1970. Robert M o rris, R obert SmitKson, M ichael H e iz er, Richard Serra, W alter de M aria. Robert Irw in. Sol L eW itt. Bruce N a u m a n , u m depois do o u tro , assum iram uma posição cujas condições lógicas já não podem ser descritas com o m odernistas. Precisamos reco rrer a um o u tro term o para denom inar essa ru p tu ra histórica e a transform ação no cam po cultural que ela caracteriza. P ós-m odernism o é o term o já em uso em outras áreas da critica. Parece não haver m otivos para não usá-lo. Q ualquer que seja o term o usado, a evidência já existe. Por volta de 1970, Robert S m ithson. com P artially B u r ie d W o o d sh e d , na K ent S tate U niversity, em O hio, começou a ocu p ar o eixo do com plexo q ue, para facilitar a referência, cham o de local de construção. Em 1971. com seu observatório construído em m adeira e gram a, na H olanda, Robert M orris se uniu a Sm ithson. Desde então m uitos o u tro s artistas, com o Robert Irw in. Alice A ycock. John M ason. M ichael H eizer, M ary M iss e C harles Sim onds, têm trabalhado d en tro deste novo co n ju n to de possibilidades. A com binação de p a isa g em e ndo-paisagem com eçou igualm ente a ser explorada no final dos anos 60. O term o locais d em a rca d o s é usado ta n to para identificar trabalhos como Spiral J e t t y (1970), de S m ith so n , e D o u b le N e g a tiv e (1969), de H eizer, com o para des crev er alguns trabalhos dos anos 70 feitos por S erra, M o rris, Carl A n d re, IX*nis Oppen heim . N ancy H o lt, G eorge T ra k is e m uitos o u tro s. A lém da m anipulação fisica dos locais, este term o tam bém se aplica a outras form as de dem arcação. Essas formas podem operar através da aplicação de m arcas não p e r m a n e n te s com o, por exem plo, D e p re ssio n s . de H eizer, T im e L in e s . de O p p en h eim . M ile L o n g D r a w in g , de IX* M aria, ou através da fotografia. M irro r D isp la c e m e n ts in th e Y u c a ta n , de S m ith so n , foram provavelm ente os prim eiros exemplos conhecidos, m as desde essa época o trabalho de R ichard Long e H am ish Fulton tem focalizado a experiência fotográfica d e dem arcar. R u n in g F ence, de C h risto . pode ser considerada um a forma não p e rm a n en te, fotográfica c política de demar car um local. O s prim eiros artistas que exploraram as possibilidades da a rq u itetu ra m ais não ar q u ite tu ra foram Robert Irw in , Sol LeW itt, B ruce N a u m a n , R ichard Serra e C h risto. Em todas essas estru tu ra s a x io m d tic a s existe um a espécie de intervenção no espaço real dajir 'g lh ie iu i'3 7 ás "vezes através do déSêntiõ~Oü. c o m o n ó s tra b a lh o s recentes de M o rris, através dcTuso do espelho. Da m esm a form a que a categoria do lo ca l d e m a rc a d o ’ a fotografia pode ‘ seí Utilizada-para esta finalidade; penso aqui nos co rred o re s de videos de N aum an. N o en­ tan to . qualquer que seja o m eio de expressão em pregado, a possibilidade explorada nesta categoria é um processo de m apeam ento das características axiom áticas da experiência ar q u itetu ral — as condições ab stratas de abertura e clo su ra — na realidade de um espaço dado. A am pliação do cam po que caracteriza este te rritó rio do pós m odernism o possui dois aspecTõs já implícitos na descrição acim a. U m deles diz respeito á prática dos próprios ar 11st a s . o outro, a questão tio m eio de expressãc>. Em am b o s, as ligações tias condições do m odernism o sofreram um a ru p tu ra logicam ente d eterm in a d a. Com relação a prática individual, é fácil perceber que m uitos dos artistas em questão se viram ocupando, sucessivam ente, diferentes lugares d e n tro do cam po am pliado. Apesar de a experiência desse cam po su g erir que a recolocação co n tín u a de energia é totalm ente lógica, a crítica de arte, ainda servil ao sistem a m o d ern ista, tem duvidado desse m ovim en­ to, cham ando-o de eclético. A suspeita de um a traje tó ria artística que se move continua e esordenadam ente além da área da escultura deriva o b v iam en te da dem anda m odernista de


A escultura no campo ampliado

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pureza e separação dos vários meios de expressão (e portanto a especialização necessária de um artista dentro de um determ inado meio). E ntretanto, o que parece ser eclético sob um ponto de vista, pode ser concebido com o rigorosãm ériíé lógico de outro. Isto porque, no pós-modernism o, a praxis não é definida em relação a um determ inado meio de expressão — escultura — m as sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios fotografia, livros, linhas em paredes, espelhos ou es­ cultura propriam ente dita — possam ser usados. Portanto, o cam po estabelece tanto um conjunto ampliado, porém finito, de posições relacionadas para determ inado artista ocupar e explorar, como um a organização de tra­ balho que não é ditada pelas condições de determ inado meio de expressão. Fica óbvio, a partir da estru tu ra acim a exposta, que a lógica do espaço da praxis pós-m odernista já não é organizada em to rn o da definição de um determ inado meio de expressão, tomando-se por base o material ou a percepção deste m aterial, mas sim através do universo de termos sen­ tidos com o estando em oposição no âm bito cu ltu ral. (O espaço pós-m odernista da pintura envolvería, obviam ente, um a expansão sim ilar em torno de um conjunto diferente de ter­ mos do binôm io a rq u itetu ra /p a isa g em — um conjunto que provavelmente faria oposição ao binômio u n icid a d e/rep ro d u tib ilid a d e.) C onseqüentem ente, dentro de qualquer uma das posições geradas por um determ inado espaço lógico, vários meios diferentes de expressão poderão ser utilizados. O corre também que qualquer artista pode vir a ocupar, sucessi­ vam ente, qualquer um a das posições. Da m esm a forma, na posição limitada da própria es­ cultura, a organização e conteúdo de um trabalho m arcante irá refletir a condição do. es­ paço lógico. Refiro-me à escultura de Joel Shapiro a qual, apesar de se inserir no term o neutro, está envolvida no estabelecim ento de imagens de arquitetura dentro de campos (paisagens) relativam ente vastos de espaço. (Estas considerações tam bém se aplicam, evidentem ente, a o u tro s trabalhos — por exem plo de Charles Simonds ou A nn e Patrick Poirier.) Tenho insistido que o campo ampliado do pós-modernismo acontece num momento específico da história recente da arte. É um evento histórico com um a estrutura deter­ m inante. Parece-m e extrem am ente im portante mapear esta estrutura e é isto o que co­ mecei a fazer aqui. M as por se tratar de um assunto de história, é tam bém importante ex­ plorar um co njunto m ais profundo de questões que abrangem algo mais que o mapeamen­ to e que envolvem o problem a da explicação. Estas questões se referem à causa seminal: as condições de possibilidades que proporcionaram a mudança para o pós-modernismo, bem como as d eterm inantes culturais da oposição através da qual um determ inado campo é es­ truturado. C ertam en te esta abordagem parapensar a história da forma difere das elaboradas árvores genealógicas construídas pela crítica historicista. Pressupõe a aceitação de rup­ turas definitivas e a possibilidade de olhar para o processo histórico de um ponto de vista da estrutura lógica.

R E F E R Ê N C IA 1) Para uma discussão do grupo Klein, ver “ On the Meaning of the Word ‘Structure’ in Mathematics” , de Marc Barbut, editado por Michael Lane em Introduction to Structuralism (New York, Basic Books, 1970); para uma utilização do grupo Piaget, ver “ The Interaction of Semiotic Constraints” , de A.J. Greimas e F. Rastier, YaJe French Studies, n? 41 (1968), pp. 86-105.


Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura*

H ubert Damisch Tradução: Anamaria Skinner

1 Existe um a verdade da p in tu ra o u, conform e o en u n ciad o voluntariam ente am bíguo de C ézanne “ Devo-lhes um a verdade em pintura e a d ir e i" (1), existe um a verdade em p in tu ra? E essa verdade, verdade da pintura, verdade em p in tu ra , cabe ao sem iólogo, se não dizê-la (talvez ela não possa ser dita fora da p in tu ra ? ), pelo m enos inscrevê-la no regis­ tro teórico, indicar seu local de em ergência, definir suas condições de enunciação com referência ao objeto “ P in tu ra ” , com parável ao m odo co m o ele trabalha, particularm ente, e conform e suas possibilidades, para constituí-lo e n q u a n to dom ín io , cam po ou modo es­ pecífico de produção de um sen tid o , ele próprio especifico? A lém de não dissociável de um a interrogação mais fundam ental sobre a “ necessidade” da arte (necessidade que Iouri Lotm an dem onstrou estar ligada á e stru tu ra m esm a do tex to artístico, à sua organização interna (2); a questão procede quan d o se trata de ap resen tar algum as observações, de caráter bem geral, a respeito de u m a sem iologia da p in tu ra , considerada possível, em bora um a parte significativa do trab alh o , da reflexão, da análise, da critica sem iológica aplicada às produções das artes visuais, c o n tra riam en te a isso, possa parecer propensa a im pedir o seu avanço. O que levaria o sem iólogo, na m elhor das h ip ó teses, a reconduzir a suas d eter­ m inações ideológicas profundas, a exigência de verdade que aparece, de tem pos a tem pos, no cam po pictural, sob determ in ad as formas e em níveis variados (sob a form a, por exem ­ plo, d en tre os iniciadores do R enascim ento, da adesão ao m odelo óptico da visão; mas tam bém , a um o utro nível, o da sensação colorida e co lo r a n te , signifiafcfo e signifi c a n te, por dotar a pintura, a do pró p rio C ézanne, de um valor de d enotação no sentido de Frege). E im p o rtan te ver (ver e não so m en te com preender) q u e esta q uestão da verdade em pin­ tura (que é, ao m esm o tem po, q u estão da verdade n a p in tu ra e questão da verdade da efígie, da verdade em efígie) está no c e n tro do debate q u e o pro jeto enseja hoje em dia, ex­ cetuando alguns, e m uito raro s, desenvolvim entos de u m a sem iologia das artes visuais, e, em prim eiro lugar (essa o rd em de prioridade, em sua dupla d eterm inação lógica e ideo­ lógica, causa, ela própria, problem a) de um a sem iologia da p in tu ra , e do m odo com o essa confere a este debate um alcance que excede largam ente os lim ites do cam po especializado em cuja m arca se anuncia.

Conferência apresentada no 1? Congresso Internacional de Semiótica, M ilâo, 2 /6 de junho 1974


Oito teses a fa vo r (ou contra?) um a semiologia da pintura

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2 O projeto de estu d ar a pintura com o um sistem a de signos há de responder, pri­ m eiramente, á preocupação em alcançar, pela definição sim ultânea do objeto de uma semiologia e dos procedim entos de análise que a constituíram , um a verdade de ordem cientifica que diga respeito á produção pictural. N u m a perspectiva saussuriana, e tomando como modelo o “ m olde linguístico” , esse projeto leva, em sua formulação inicial, a in­ troduzir no todo heterogêneo dos fatos de “ p in tu ra ” (heterogêno no sentido que esses fatos pertencem aos m ais diversos dom ínios de pesquisa: cosmetologia, quím ica das cores, óptica geom étrica e /o u fisiológica, teoria das proporções, psicologia da percepção, mas também m itologia com parada, simbólica geral, iconografias particulares e tc ...) um primeiro recorte, a p artir do qual esse co nju n to heteróclito se deixaria pensar em sua coerência: assim com o a linguagem , um a vez feita a separação entre a massa dos fatos de fala, e o registro da língua, do sistem a ao qual esses fatos deveriam estar reportados como norma. Q ualquer form a de que se revista a oposição assim marcada entre os dois registros, e por mais sofisticado que possa ser o enunciado — “ a a rte ” pensada com o um desvio con­ sequente em relação à norm a, tida na conta de categoria semiótica (D. Uspenskij); a “ lín­ gua” da pintura fragm entada, disseminada num a multiplicidade de sistemas parciais, de códigos de “ invenção e de leitura (P. Francastel); o sistema do quadro distinto das es­ truturas da figuração e o objeto “ P in tu ra ” vislum brado através, e a partir do texto por ele responsável e que o articu la (J. L. Schefer); tratar-se-á sempre de traçar um a superfície de divagem , en tre a p e rfo n u tn c e que a obra representa ( “ a obra-prim a” ), e a rede, ou o sis­ tema de com petência que implica seu decifram ento, sua interpretação; e isso no momento exato em que se postula que a “ arte ” não se dá jam ais separadamente das obras singulares, que sua significância não rem ete a código algum , nem às convenções recebidas, e que as relações significantes da “ linguagem artística” ficam por ser descobertas no interior de uma composição dada (B enveniste, e no m esm o sentido Shefer: “ Só há sistem a do qua­ dro” ). A questão não m uda de feição: perm anece a da natureza, do estatuto, da articu­ lação dos “ signos” nos quais se informa e de que se orienta a leitura, quer esta tente, ou não, constitui-los, na ordem declarativa, em sistem a. N o en u n d a d o deste projeto — estudar a p in tu ra, as obras da pintura (segundo a for­ ma, ela tam bém am bigua, de Francastel) com o um sistema de signos — o grifo recai sucessivamente em siste m a e s ig n o s , para deixar bem claro (a) que se a pintura se deixa analisar em term os de sistem a (s), sistem a não deve ser entendido necessariam ente como sistema de signos e, (b) que se a problem ática do signo pode revelar-se pertinente na matéria, em nível e lim ites próprios, é talvez na mediada que a noção de signo se deixa isolar da de sistem a (e reciprocam ente). A não ser, talvez, que trabalhem os para infundir um a outra noção do signo, um a outra noção do sistem a, diferentes daquelas que toda a tradição do O cidente terá regularm ente associado á possibilidade de decompor um conjun­ to, uma estru tu ra articulada, em alem entos discretos, em unidades identificáveis como tais.

3 Em um registro que não apresenta, dessa vez, nada de teórico, mas que não deixa de corresponder á prática de fato do historiador ou do “ connaisseur” ; adm itir-se-á que não existe um a leitura, nem m esm o um a prim eira apreensão, de um afresco, de um conjunto


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decorativo etc ... que não se apóie em um d eterm in ad o n ú m ero de traços, m arcas ou elem entos discretos, que se apresentam com o unidades perceptivas (ou im agentes ’), ev en tu alm en te com binadas em sintagm as, im ediatam ente dados com o tais, e d en tre os quais, alguns, por sua recorrência em um a série de obras dada, ordenam -se em form a de repertório, mais ou m enos rico, o qual será tom ado co m o característico de um artista, de u m a escola, de um a época, ou m esm o de um a c u ltu ra . T odos traços ou elem entos, ou m esm o sintagm as, que não são certam ente da m esm a ordem ou do m esm o nível, como tam bém não são em n ú m ero finito: sem elhante ás figuras, representativas ou não, que se dão a conhecer no cam po p ictu ral, os m otivos, atrib u to s ou m arcas (atitudes, gestos, ex ­ pressões, até m esm o cores, tra ta m e n to etc.) de que o d iscu rso iconográfico se alim enta, assim com o os índices que requerem a atenção do co rtn a isseu r, em busca de atribuições exatas (e lem brar-se-á aqui da analogia, estabelecida por F reu d , en tre o m étodo do conn o isse u rsh ip tal com o o havia definido G iovanni M orelli, e o do analista que, com o o con n a ise u r . está fadado a trabalhar com dados irrisórios, m arginais; algo, dizia F reu d , com o a recusa da observação (3), incluindo os traçados, pinceladas, im pressões que parecem guar­ dar a titu lo de índice algum a coisa do trabalho de que a obra é o produto. Sem co n tar as letras, núm eros, inscrições, filactérios, legendas, títu lo s, assinaturas etc, que a obra exibe, dada a circunstância, nos seus lim ites próprios ou na sua periferia, e que produzem no contexto m esm o de um a apreensão, que se queria e s trita m e n te sensível, “ e sté tic a ” , um efeito especifico de leitura, ou parafraseando Paul K lee, u m a prim eira “ aquiescência para com o sig n o ": a coexistência nos lim ites de um a m esm a com posição, ou em sua proxi­ m idade im ediata, de elem entos de natureza icônica ou indiciai, e de dados propriam ente sim bólicos (quando a im agem não se apresenta ligada exp licitam en te ao texto, dada ou não in p re se n tia que ela ilustra: v er a esse respeito o trabalho recen te de M eyer Schapiro sobre a im agem ligada à palavra, th e w o rd -b o u n d im a g e (4) deixa b astan te claro que, se podemos de acordo com Benveniste co n sid erar que é a língua — en ten d a-se a língua “ n a tu ra l” — que confere ao conjunto “ p in tu ra ” (ou “ q u ad ro ” ), inform ando-o sobre a relação de sig no. a qualidade de sistem a significante (5); essa relação se dá an terio rm en te a toda leitura, a toda interpretação, no in terio r m esm o desse co n ju n to , o u , pelo m enos, em seu espaço de definição. Resta saber se os elem en tos propriam ente perceptivos, formas e /o u figuras, podem a rigor ser qualificados co m o unidades, no sen tid o sem iótico, fora, ou feita a abs­ tração. da operação que os declara; ou ainda nos term o s de P eirce, se o rep re se n ta m e n tem ou não a qualidade de signo, in d ependentem ente do in te rp re ta n te verbal que ele d eter­ m ina.

4 Q ualq u er sistem a significante deve definir-se pelo m odo que lhe é próprio de significar. Tam bém é verdade que ao presum ir, co m o faz B enveniste, que seria preciso

por força desse sistem a definir as unidades que ele m obiliza para produzir o “ sen tid o ” e especificar a natureza do sentido produzido “ (6), p recipita-se a conclusão de que a lín ­ gua deve ser reconhecida com o a in terp re tan te de todos os sistem as sem ióticos (e, logo, do próprio sistem a “ P in tu ra ” , que será desde entào caracterizad o na term inologia dos sem ióticos soviéticos com o sistem a m odelizante se c u n d á rio ” ), supondo-se que nenhum sistem a dispõe de um a língua na qual possa classificar e in terp re tar segundo as d istin ­ ções sem ióticas, e que som ente a língua pode, em principio, classificar e in terp retar tudo, inclusive ela própria (7). N o que diz respeito ás unidades m obilizadas para produzir o sentido, o sistem a P in tu ra ” não dispõe, sem dúvida, de u m a língua que lhe perm itiría


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definir aquelas a que recorre. JEsse sistem a só pode produzi-las, designá-las, mostrá-las, exibi-las por meio dos artifícios e procedim entos de espaçam ento, posicionam ento, en ­ quadramento, ilum inação, tratam ento, deform ação etc, que o caracterizam . Todos esses artifícios não copiam a ordem discursiva e nem necessariam ente a ordem icônica, em sen­ tido restrito, na m edida em que esta últim a se basearia na m im esis. E não existe, desde a for­ ma de apresentação, a própria forma im agea n te (sem que forçosamente o term o imagem seja tomado em sua conotação estritam ente m im é tic a ), na m edida em que esta se regu­ laria, por exemplo, pelo modelo perspectivo ou que ela concentraria, com o em M ondrian ou na m in im a l a r t , um co n ju n to finito de princípios ou de elementos a partir dos quais seríamos levados a afirm ar com W ittgenstein que esta só pode ser, se não reproduzida, descrita, representada, pelo menos produzida, m ostrada, exibida, pelos meios que são os da "im agem m esm a (8). Para não extrapolar a questão das unidades (pois a da Farm der A b b ild u n g dem andaria desenvolvim entos que não caberíam aqui), observa-se-á ainda que, se uma pintura se deixa decifrar a partir de um a m ultiplicidade de códigos, se ela comporta também vários níveis de leitura, a possibilidade de que ela apresente desvios e também remissões para um código, ou de um nível para outro, a capacidade decorrente daí para uma unidade dada, de assum ir, segundo os níveis, funções heterogêneas, ou até con­ traditórias, introduzem no “ sistem a" (no sentido m ais vago, por enquanto) a possibili­ dade de um jogo de interpretância, se não declarativa, m onsírativa (no sentido que Lacan pôde dizer que, no so n h o , “ isso m o stra"), de um nível ou de um código a outro, como se observam pelas variações que suscita um m esm o m otivo formal ou iconográfico, e que levam a estabelecer altern ativ am en te, ou até sim ultaneam ente para um m esm o elemento (ex: a “ n u v em " na tradição figurativa do O cidente, a coluna de tantas Anunciações e Natividades, mas tam bém as toalhas estendidas de Cézanne ou os “ quadrados" de M on­ drian) as funções (plásticas, construtivas, sem ânticas, sintáticas, simbólicas, decorativas, estilísticas etc) de nível diferente (o problema sendo, então, de saber se é razoável preten­ der produzir o sistem a dessas funções, e isso sem prejulgar a coerência dos níveis, o seu grau de sistem aticidade). Seria conveniente ainda reservar-lhes um lugar, de acordo com Meyer Schapiro, ao lado das unidades im ediatam ente identificáveis com o tais, dos ele­ mentos não m im éticos, não diretam ente signaléticos, e poder-se-ia dizer, nào-discretos da mensagem icônica, todos elem entos — a forma do suporte, sua m oldura, as propriedades do fundo com o cam po, as relações de escala e orientação, de posicionam ento, de espa­ çamento, os com ponentes da substância icônica enquanto tal, pontos, linhas, superfícies, manchas etc (9), e principalm ente a cor que, na afirmação de Benveniste (esta afirmação, que traz a marca de um logocentrism o disfarçado, deixa de ser aceitável para um pensa­ mento que trabalha para infundir um a outra noção de signo, que não a estritam ente lin­ guística), considerada em si m esm a, não se apresentaria, de forma algum a, na qualidade de signo, nem m esm o na de unidade. Todos elem entos que desempenham na pintura re­ presentativa um papel decisivo, um papel in te g ra n te (no sentido linguístico do termo), mas que a pintura m oderna a partir de Cézanne e Seurat esforça-se, pelo contrário, para dissociar de sua função im a g e a n te , para exibi-las, produzi-las em seu valor de expressão, de significância própria, autônom a: a ponto de que a “ não-figuração" — longe de aparecer como um caso p articular, com o um m om ento limite na história da pintura, e que não poderia ser pensada senão a partir da estru tu ra representativa, conforme esta se constituiu partindo da posição fixada para o sujeito no dispositivo perspectivo levaria, pelo con­ trário, se a tom arm os com o se deve, i.e., a sé rio , a subm eter, pela “ descoberta" do “ procedim ento" (com o queriam os Form alistas), e pela substituição do voltar-se para a N atureza pela própria expressão pictural, o sistem a “ P in tu ra" a um deslocamento radical


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na ordem da significância, até subtrai-lo, pelo m enos em p arte, á relação de in terpretância, em que o discurso sem iológico — talvez seja essa um a de suas funções ideológicas mais im portantes — pretende, pelo contrário, fechá-lo.

5 À questão: o sistem a “ P in tu ra ” se deixa r e d u z ir a unidades? responder-se-á, pois, pela negativa. Ficando por d eterm in ar se as unidades que esse sistem a m obiliza, de forma bem visível, e que representam talvez a recaída, ou a escapada (com o se vê quando um a organização perspectiva se deixa ler a partir de algum índice ou “ flexão” figurativa: um fragm ento arquitetônico apresentado de forma reduzida, a dim inuição a que são sub­ m etidas as figuras etc), se essas unidades são signos, e se a noção m esm a de signo, em sua acepção tradicional, é p ertin e n te no contexto de um sistem a que não se deixa — salvo ex­ ceções sem pre significantes, quando não polêm icas, táticas e até m esm o estratégicas, e cujo exem plo a arte m oderna não é a única a utilizar — reconduzir a um código digital; tan to m ais que este to rn a obrigatório abrir espaço ao lado dos elem entos im ediatam ente identificáveis no plano perceptivo, para processos figurativos irredutíveis a um co rp u s de regras que deveríam presidir a associação e a com binação das unidades em n ú m ero finito e de m esm o nível. Se a noção de signo pode revelar-se cabível no dom ínio “ P in tu ra ” , será a p artir de um corte diferente deste até aqui referido. N o “ m olde” estritam en te saussuriano, que impõe d istin g u ir e n tre a ordem do sistem a (a com petência) e a das produções (a p e r fo m a n c e ), um a articulação deve ser substituída; esta obterá sua pertinência da distinção e n tre os níveis de análise (a questão vem a ser, talvez, a da relação entre duas “ perfom anc e s ” , a da obra e a da in terp retação — da m aneira co m o esta relação se inscreve em um es­ paço co m u m , mas não idêntico, de “ com petência” ). D eixando de lado provisoriam ente o problem a da articulação pro p riam ente figurativa ou plástica, suporem os que se o conceito de signo pode ganhar valor o p erató rio no dom ínio “ P in tu r a ” , é prim eiram ente (e talvez exclusivam ente) com referência a um nível, a um m odo de significância que não é aquele — sem iótico — em que as unidades perceptivas form as e /o u figuras, são reconhecidas com o tais (e isso se dá m esm o se esse reconhecim ento passa pelo desvio de um a “ decla­ ra ção ” , de um in terp retan te explicito), mas àquele sem ântico — em que a im agem , por re q u ere r um a leitura, term in a por assum ir um estatu to propriam ente discursivo, um a vez que, para falar com o os iconólogos, ela é “ feita para significar um a coisa diferente daquela que o o lho v ê ” . A teoria dos níveis desenvolvida por Panofsky, ao m esm o tem po que reitera o corte dado em seu tem po por Cesare Ripa, e n tre a ordem do visível e a do lisível, co n d u z tam bém a opor o u n iv erso dos m o tiv o s , dos objetos ou dos acontecim entos fi­ gurados por linhas, cores e volum es, ao universo das im a g e n s , dos motivos reconhecidos com o portadores de um a significação secundária ou convencional, distante de sua sig­ nificação prim ária, “ n a tu ra l” , e que se prestam â com binação â m aneira da “ h istó ria ” , da fábula ou da alegoria, ao m esm o tem po que a toda espécie de desdobram entos figurativos (a im agem de Isaac sendo tom ada por “ figura” da im agem do C risto que ela pré-tigura etc): seja um universo de um discurso cuja im agem no sentido que definim os co n sti­ tu iría a unidade m ínim a, m esm o quando se articula declarativam ente com o um enunciado ( “ um a personagem fem inina segurando um pêssego com a m ão d ireita” , devendo ser lida, de acordo com o exem plo citado por Panofsky, com o u m a personificação da “ verd ad e” ). U nidade no registro sem ântico o nde opera a iconologia, que provavelm ente deve ser recebida com o signo, já que se lhe pode associar um “ significante” (o m otivo que se


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“ vê” ) e um “ significado” (o conceito ou enunciado que se co m p re en d e ), e que ela se deixa identificar na qualidade de com ponente e eventual m ente de in teg ra n te (no sentido em que M eyer Schapiro mostrou em um famoso estudo (10), que a imagem de São José es­ tendendo uma arm adilha á serpente “ integrava ” a A n u n cia ç ã o do S e n h o r de Flemalle, na sua diferença com referência às representações tradicionais desse acontecim ento) de uma unidade de nível superior, aquela que constitui o quadro. Unidade, signo m in im u m de um “ discurso de im agens” ( ragionam enti d 'im a g in i , como diziam ainda os iconólogos) através da qual a pintura se posiciona para representar, encenar, significar, com a ajuda de meios estritam ente representativos, um certo n ú m ero de noções, de relações e até mesmo de proposições abstratas. E se os trabalhos de Panofsky sobre o sim bolism o na pintura flamenga ratificam de m aneira im pressionante as análises de Freud sobre o trabalho do sonho (essas tam bém referidas, da forma mais explícita possível, ao trabalho da pintura), o encontro nada tem de fortuito: basta aceitar que a simbólica dos V an Eyck, como a do sonho, segundo Benveniste (11), dem onstram um a verdadeira lógica do discurso, e que suas figuras são, antes de tudo, figuras de retórica, tropos. N a Interpretação dos so n h o s , o próprio Freud havia proposto a seguinte análise da Escola de A te n a s de Rafael: o fato de reunir num espaço cênico dado como unitário, filósofos pertencendo a épocas e culturas diferentes, até m esm o antagônicas, aparece com o um meio, para o pintor, de estabelecer, pelo modo estritam ente figurativo de uma m o n stra ç ã o , um a noção de filosofia como reino transhistórico, e com o sociedade de espíritos, em que Platão, São T om ás e talvez o próprio Averróis se encontrariam dialogando para além das contingências de espaço e de tempo, de língua e de crenças (12). O ra, os procedim entos utilizados pelos Van Eyck ou por Roger van der Weydar são exatam ente da mesma natureza. Assim com o, para não citar mais de um, entre todos aqueles colhidos por Panofsky, o procedim ento que, na unidade de um mesmo cenário ou m oldura arquitetônica, p. ex. um a igreja, em cuja fachada (ou interior) se desenrola um a cena, faz com que o pintor associe dois “ estilos” definidos: o estilo romano e o estilo gótico, para representar a sucessão temporal, a oposição do antes e do depois, e até m esm o esta, com pletam ente nocional, do Antigo e do N ovo Testam ento (13).

6 Se tivéssemos de adm itir, sempre segundo Benveniste, que o sistem a “ P in tu ra” se caracteriza pelo fato de que, diferentem ente da língua, ele só apresenta um a significância unidimensional (a signifcânia semântica, correspondendo ao universo do “ discurso” , ex­ cluindo toda significânia propriam ente sem iótica), forçoso seria então reconhecer que uma boa parte do program a de uma semiologia da pintura teria sido desde então realizada sob o título da Iconologia, ou da Iconologia entendida, segundo o term o empregado por Panofsky, como u m a “ Ciência da interpretação” (14). Mas, se a Iconologia pode preten­ der recuperar, em últim a instância, sob a forma não mais de signos, mas de “ sintom as” de uma visão do m undo ou de um a consciência de classe, os traços ditos “ estilísticos” da obra e até a sua fatura, ela não supera a incapacidade, e juntam ente com ela, toda a dis­ ciplina estritam ente interpretativa de conhecer a pintura em sua substância sensível, em sua articulação propriam ente estética, no sentido kantiano do term o. Está ai um a questão que o semiólogo não pode ignorar, que ele chega m esm o a colocar: a de saber se a obra de arte se reduz ou não a um sistema de significação (15). Pergunta decisiva com referência ao questionam ento a partir do qual essas “ T ese s” nasceram, e que tem por objeto a ver­ dade da pintura, a.verdade em pintura, o estatu to (ideológico, critico, teórico) do discurso semiológico em sua relação com essa verdade. Tratando-se do “ sentido” que produziría a


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p in tu ra é certo que a especificação não seria do campo da própria pintura, mas do da língua que “ sozinha pode in terp retar tu d o ” . M as a obra, a obra de arte, a obra de p in tu ra não conheceríam outro destino (no sentido em que Freud fala de um d estin o das pulsões), senão a interpretação, o u tra transform ação previsível, para retom ar um term o de Lotm an que abre um a perspectiva m u ito nova (16), do que a s e m a n tiz a ç ã o ? N ão era essa parecenos a opinião de Freud, pelo m enos no que concerne a obra em sua relação com o pro­ dutor: “ A significação não representa grande coisa para essas pessoas (os artistas). Eles só se interessam pelas linhas, as form as, o acordo dos co n to rn o s. São os defensores do p rin ­ cípio de prazer” (17). Isso q u er dizer que o universo das linhas, das form as, do co n to rn o — excluindo significativam ente o d ar cor — não autoriza d iretam en te um a análise em te r­ mos de significação, e sim um a abordagem form al, se não ‘‘estilística” , a questão p er­ m anecendo a m esm a, a de saber com o a forma, assim distin ta do conteúdo, en co n tra meios para assimilar-se a um a econom ia, seja esta a do ‘‘p ra z e r” ?

7 O problem a volta ao da existência, ou não, de um nível se m iô tico da p in tu ra. O ra , a questão está geralm ente mal colocada, uma vez que vem ao encontro da questão do “ es­ tilo ” (noção cujo papel nefasto aos estudos de arte seria preciso m ostrar, e de com o a pro­ porção que vem tom ando visa im pedir a colocação do problem a que nos ocupa, proibir o seu enunciado) e dispõe de m eios para interferir com a da im a g e m , sendo colocada com o questão da natureza, sem iótica o u não-sem iótica da im agem . V im os que, para Panofsky, a im agem se revelaria ao nível do simbólico. M as que não existe a im agem , para o Iconólogo, senão a partir do m om ento em que à significação “ n a tu ra l” , dada ao registro da percepção, se superpõe um a significação convencional. Se retiverm os a imagem não m ais pelo que ela significa, m as pelo que ela nos deixa ver (sem p re ju lg a ra natureza da articulação do legível sobre o visível),tratar-se-á de d eterm in a r se a im agem , o “ fazer a im agem ” (a síntese im ageante dos fenom enólogos) pode ser pensada e analisada em term os de articulação significante. D onde, independentem ente da d e te r­ m inação lógica que levará a pensar a construção da im agem com prioridade, na rubrica do espaço — noção, em m atéria de p intura, das mais equivocas — , impõe-se a referência, a p artir daí obrigatória, às ten tativ as feitas para estudar o processo im a g ea n te (e o próprio processo perceptivo) na qualidade de processo de com unicação, e nos term os da T eo ria da Inform ação; todas tentativas que correspondem a um re to rn o a um a posição pré-fenom enológica do problem a, já que se limitam a estabelecer a im agem tom ada por a n a lo g o n do real, em um a relação de denotação quanto ao percebido, o u , o que vem a dar no m es­ m o, em um a relação de reprodução ou de equivalência q u a n to á percepção. C om o a im agem não teria estatuto de m ensagem , quando a própria percepção está assim ilada a um a operação de decifram ento, de “ reconhecim ento” , quando um a e o u tra são recuadas até suas raízes com uns convencionais (18)? Seria ainda co n v en ien te, antecipando toda e qualquer discussão sobre esse ponto, questionar desde o princípio a determ inação (teórica, ideológica, linguística) que leva a pensar a pintura na qualidade, ou na categoria da im agem , m as de um a im agem de tipo particular, se não específica: um a im agem que se caracterizaria por um acréscim o de su b stâ n c ia , de onde lhe viria seu peso, seu titu lo de p in tu ra, e que produziría, por essa razão, um efeito de p razer específico. É, no e n ta n to , possível que a pintura apontada seja dada com o um a variedade de imagem e n tre o u tra s, variedade privilegiada, se não dom inante, em um a c u ltu ra onde o term o m esm o “ p in ­


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tura” (que se tenha em m ente as dificuldades que coloca a esse respeito a tradução de Wittgenstein) pode ser tom ado como sinônimo de im agem , de representação , de retrato, ou até mesmo de reprodução ou de im itaçdò (por onde se introduz, através do tem a da m i­ mes is, a questão da verdade da efígie, da verdade em efígie). Q uanto ao program a de uma semiologia geral, a semiologia da pintura inscrever-se-ia, todavia, em seu lugar, na rubrica de uma semiologia da im agem, e como um ram o particular desta.

8 Parodiando M erleau-Ponty, dir-se-ia que a se fazer pintura com o percebido, se deixaria de lado o nível sem iótico, logo, a própria pintura, na medida em que um a verdade ai trabalha para aparecer, e que essa verdade não é do campo imediato da ordem do discur­ so, mas que tem relação em alto grau com a percepção. Pois existe, certam ente, algo como um nível sem iótico da pintura, mas que não se deixa reconduzir à instância do signo, como também não á da im agem, cuja noção funciona, sem dúvida, com o um verdadeiro obstáculo epistemológico: o nível, por exemplo, em que trabalhava Cézanne quando, numa intenção ainda de denotação, dizia querer substituir o problema da luz pelo da cor e da representação, das sensações coloridas pelas sensações colorantes (19). Este trabalho,o mais próximo da percepção sobre o significante, esta colocação do trabalho do significante na pintura, de que a arte de Cézanne, com o tam bém a de seu contem porâneo Seurat, oferecem o exemplo, testem unha, com uma eloqüência que não toma em prestados senão os recursos da pintura, que a superfície de separação entre o sem ântico e o semiótico não deve ser procurada en tre o nível da figura (dada a ver) e o da significação (dada a com ­ preender), mas em algum lugar no encontro e n tre o legível e o visível, en tre o domínio do simbólico e o do sem iótico, com a condição de se pensar o semiótico, tal com o Julia Kristeva, como uma modalidade do processo da significância, que se poderia dizer na verdade psicossomática, em ligação direta com o corpo, e com o um m om ento logicam ente, gene­ ticamente, produtivam ente anterior ao sim bólico, mas que neste se faz objeto de uma reve­ lação pela qual ele se integra (20). M om ento de um a articulação — o de um c o n tin u m an­ terior ao do signo lingüístico e ao próprio signo icônico (na medida em que este só se cons­ tituirá se determ inar um in terpretante). M om ento pré-tético, anterior à posição do sujeito na sua referência à experiência da imagem especular, cuja articulação1do campo cromático, estritam ente contem porânea, como mostrou Jakobson em relação ao campo fonemático (21), oferece a m elhor ilustração: tanto mais que a história da pintura deixa-nos ver como o semiótico, sob a espécie precisam ente da cor, pode deixar-se recuperar e funcionar, a título de suplemento, no in terio r do simbólico, mas tam bém com o ele pode voltar, sob o simbó­ lico e fora dele, a um a posição de exterioridade com relação ao signo e a toda significação constituída na ordem da linguagem , assim com o na da imagem, na da representação (só se levar a sério isto que Peirce trabalhou tardiam ente, e enunciou sob o titulo do hipo-icone, do ícone que não se deixa ainda pensar sob n enhum título, e de uma representatividade, que antecede qualquer relação de interpretância (22), apesar da idéia que ele tinha de que tomando a noção em sentido mais amplo, um signo poderia adm itir outros interpretantes do que um conceito: um a ação, um a experiência, m esm o um efeito sensível, uma pura qualidade de “ feeling” (23)). Nesse sentido som os levados a sustentar que a semiologia, em sua ordem de dependência linguística, encontra-se como que trabalhada pela questão da pintura, como ela ainda o é, pela da escritura, sendo os operários o pintor e o escritor, ambos associados por Filebo á mesma tarefa, não inteiram ente dupla. M as quanto â economia do processo significante, do qual a pintura é o teatro (onde define e redefine a


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sem cessar cena), esta econom ia é para ser pensada até nos seus lim ites, e talvez até no seu “ alé m ” , dentro do reg istro freudiano e a p artir do co nceito que co n tin u a a ser, na leitura de Freud, objeto de u m a verdadeira censura, i .e ., o da reg re ssã o , tal com o a In te rp re ta ç ã o do s so n h o s o introduz. A regressão formal que está no princípio, ao m esm o tem po que é a m ola, do trabalho do sonho — um trabalho pensado em si m esm o no tex to freudiano — d en tro da referência explícita ao trabalho do p in to r e que só produz seus efeitos, fora de toda relação de interpretação, ao se servir da distância — e da tensão que en g e n d ra — e n ­ tre o registro do visível (do que pode ser m ostrado, figurado, representado, encenado) e o do legível (o registro do que pode ser dito, en u n ciad o , declarado). Separação que é a do trabalho p ro d u to rd e u m a m ais-valia icônica, por en q u a n to , e isso deve ser salientado, que o ícone tem por propriedade distintiva fundam ental o fato de que por sua observação direta, o u tras verdades relativas ao objeto podem ser descobertas, além daquelas suficientes para determ inar sua construção (24); mas tam bém , n o caso da p in tu ra, um a m ais-valia es­ pecialm ente pictural, que a define em sua diferença da im agem que lhe confere o privilégio de que falamos. Separação que será m arcada co m o o lu g ar de um a oposição (de u m a c o n ­ tradição) ou de um a troca, e sem dúvida com o o dos dois ao m esm o tem po, com o o qu er a tom ada em condiração da “ figurabilidade” que p reen ch e a condição para toda regressão. Separação ainda constituidora da textu a lid a d e p ic tó r ic a en q u an to tecida de legível e vi­ sível, e a partir da qual é conveniente colocar, em relação ao sistem a “ P in tu ra ” , a questão do significante; o significante do qual Freud en sin a, se o lem brarm os bem , qu e não seria possível produzi-lo, e n em m esm o reconhecê-lo, a p a rtir de um a posição de exterioridade, pois ele só se apresenta se form os por ele capturados. NOTAS (1) Paul Cézanne, “ A Emile B ernard” , 23 de outubro 1905; Correspondência, Paris, 1937, p. 277 (2) Iouri Lotman, A estruturado texto artístico, trad. fr. Paris, p. 26 sq. (3) cf. Hubert Damisch, “ A parte e o todo” , Revista de estética, 1970, e "O guardiio da interpretação” , T e lq u e l, n? 44 e 45 (inverno e primavera 1971) (4) M eyerSchapiro, Words and Pictures, Paris, La Haye, 1973 (5) Emile Benveniste, “ Semiologia da lingua” . Problemas de linguística geral. t. II, 1974, p. 63 (6) ibid, p. 57 (7) ibid, p. 61-62 (8) cf. Ludwig W ittgenstein, Tractatus logico philosophicus, 4.121 sq. (9) cf. M eyerSchapiro, “ Some Problems in the Sem ioticsof visual A rt: Field and Vehicle in Image Signs" Semiótica, vol. I, n? 30 (1969); trad. fr. in Critique, n? 315-316 (agosto setembro 1973) (10) Id., “ Muscipula Diaboli: The Symbolism of the Merode A ltarpiece” , A rt B u/letin, 27. 1945, 182 7 (11) Benveniste, Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana” . Problemas de lin gülstica geral, t. 1, Paris, -1966, p. 75-87. (12) Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos, trad. fr. Paris. 1967. p. 271 (13) cf. Erwin Panofsky, Early Netherlandish Painting, Cambridge (M ass.) 1957 (14) Id.. Ensaios de iconologia, trad. fr.. Paris. 1967, Prefácio, p. 5 (15) Roland Barthes, “ A mensagem fotográfica", C omm unications, n? 1 (1961). p. 128 (16) Lotman, op. cit., p. 47 (17) Freud, A Ernest Jones, 8 de fevereiro 1914; citado por Jones. A vida e a obra de Sigm und Freud trad fr.. Paris, 1969, t. III, p. 465 ^ÍÍP Um exempl° ^essa tàtica epistemológica, cf. U m berto Eco, A estrutura ausente Miláo 1968 (19) Cézanne. “ A Emile B ernard” , 2 3 de dezembro 1904. Correspondência, p. 269 (20) Jnlia K risteva, A revolução da linguagem poética. Paris, 1974. "Semiótica e simbólico" (21) Koman Jakobson, “ Linguagem infantile afasia” 1969. p. 87 sq

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Cap' 3- 276' 277 (C' 1902>' in C o , W * * * " • ">'• Ml.

(23) Id. Cartas a Sra. Welby (1904) C.P. vol. VIII, p. 220-230 (24) Iá.. Elements o f Logic, C .P ., vol. M I, p. 158


O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PU C/RJ, em nível de pós-graduação latu-sensu, foi formado há quaro anos. O curso se inscreve numa visão da História da Arte e da arquitetura como um processo de rupturas, o que implica numa relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileiras, apreendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e a pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.

Coordenador acadêmico: Carlos Zilio

Professores: Dora Alcântara Eduardo Jardim Fernando Cocchiarale José Reginaldo S. Gonçalves Jorge Czajkowski Miriam Ribeiro de Oliveira Pedro Alcântara Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Washington Dias Lessa Wilson Coutinho


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