Imaginário e Arte ano XIII / XIV. número 17/18

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Imaginário Revista do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória - Nime Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IP-USP

Imaginário e Arte ano XIII / XIV. número 17/18 julho a dezembro de 2008 / janeiro a junho de 2009 ISSN 1413-666x


Revista Imaginário N0 17/18 20 semestre 2008 10 semestre 2009 ISSN 1413-666x

Conselho Editorial:

Publicação do Núcleo interdisciplinar do Imaginário e Memória (NIME) e do Laboratório de Estudos

Adriana Marcondes (IPUSP), Afrânio Mendes Catani (Faculdade de Educação-USP),

do Imaginário (LABI) _ Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da

Ana Lucia Lobato de Azevedo (Núcleo de Produção Digital do Pará / Instituto de Artes do

Personalidade (PSA) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).

Pará), Ana Maria Loffredo (IPUSP), Anete A.S. Farina (Faculdade Presbiteriana Mackenzie/ IPUSP), Arley Andriolo (IPUSP), Iram Jácome Rodrigues (FEA-USP), Joana Montero Ortiz

Beatriz Vianna Henry (NIME /LABI-USP), Christina Cupertino (Universidade Paulista-UNIP), Denise Dias Barros (Faculdade de Medicina - USP), Fernando Milton de Almeida (NIME/LABIUSP), Luiz Hildebrando Campos Lemos (NIME/LABI-USP), Magali Franco Bueno (Depto. Geografia - FFLCH-USP/NIME-LABI-USP), Marcelo Gomes Justo (Centro Universitário Senac - SP), Maria Luisa Sandoval Schmidt (IPUSP/NIME/LABI-USP), Rita de Cássia Monteiro (Univ. Mogi das Cruzes-UMC), Rosane de L. S. Vianna (USP), Tatiana Freitas Stockler das Neves (IPUSP/ NIME/LABI-USP), Walnice Nogueira Galvão (Depto. Letras - FFLCH-USP).

Conselho Consultivo:

Consultores “ad hoc”:

(Giramundo Consultoria-SP), José Leon Crochík (IPUSP), Laura Villares de Freitas (IPUSP), Leny Sato (IPUSP), Lia Ribeiro Fernandes (psicanalista/ Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae), Liana Cardoso Soares (artista plástica/ historiadora da Superintendência de Controle de Endemias-SUCEN-SP), Luis de Moraes Altenfelder Silva Filho (FEBRAP), Maria Alice Oliva de Oliveira (Universidade Bandeirante de São PauloUNIBAN), Maria Cristina Machado Kupfer (IPUSP), Maria Júlia Kovács (IPUSP), Paulo Albertini (IPUSP), Rogério Lerner (IPUSP).

Angela Nobre de Andrade (Universidade Federal do Espírito Santo - UFES), Antonio Candido (Universidade de São Paulo), Billie DeWalt (University of Pittsburg - USA), Christoph Singler

Editoras: Maria Luisa Sandoval Schmidt

(Universidade de Besançon – França), Dorthe Nyland Sorensen (University of Copenhagen-

Tatiana Freitas Stockler das Neves

Dinamarca), Francine Saillant (Universidade de Laval - Canadá), Helenilda Cavalcanti (Fundação Joaquim Nabuco - Fundaj- PE), Heliana de Barros Conde Rodrigues (Universidade

Liana Soares Projeto gráfico e arte da capa:

Federal do Rio de Janeiro-UFRJ), Iolanda Évora (Centro de Estudos sobre África e do

Edição e Produção gráfica: Gerson Mercês

Desenvolvimento – CESA / ISEG / Universidade Técnica de Lisboa-Portugal), Jérri Roberto

Crédito do artista: Sergio Fingermann, pintor.

Marin (Universidade Fed. de Grande Dourados - UFGD), Jorge Ramirez Cazadilla (CIPS - La

Créditos da obra: Pintura sobre papel da Série Partes do Todo (Ilustração da capa)

Habana, Cuba), Paulo Vanzolini (IBC-USP), Ricardo T. Neder (UNESP), Roberto Novaes de

Sá (Universidade Federal Fluminense- UFF), Silas Guerriero (PUC - SP), Steven Engler (Mount

Royal College - Canadá), Sylvia Leser de Mello (Instituto de Psicologia - USP- IPUSP), Walnice

Nogueira Galvão (FFLCH -USP).

76 x 57 cm, 2010.

Revisão do português: Beatriz Henry, Christina Cupertino, Luiz Lemos,

Maria Luisa Schmidt, Rita Monteiro, Rosane Vianna e Tatiana Neves

Berenice Young Revisão do espanhol: Apoio financeiro: Programa de Apoio às Publicações Científicas Periódicas da USP - Comissão de Credenciamento; Programa de PósGraduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do IPUSP.


Imaginรกrio e arte


Imaginário é uma publicação do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e da Memória - NIME, da Universidade de São Paulo e do Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI, do Instituto de Psicologia da USP. Revista /maginárío - INDEXADORES Exemplares disponíveis nas bibliotecas da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia ReBAP: www.bvs-psi.org.br/ rebap/ Disponível eletronicamente no site da Biblioteca Virtual em Psicologia - BVS-PSI: www.bvs-psi.org.br (PEPSIC). Indexada na base de dados em: Indexador dos Periódicos Brasileiros na Área de Psicologia – INDEX PSI Periódicos (BVS-PSI): www.bvs-psi.org.br Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - LILACS. Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, Espana y Portugal - LATINDEX CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciências Sociales y Humanidades. Endereço para correspondência Labororatório de Estudos do Imaginário (LABI) Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) Av. Prof. Mello Moraes, 1721, bloco G, 10. andar - sala 19 E CEP 05508-030 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 3091-4475 (PSA) tratar com Maria Luisa Schmidt e-mail: labi@usp.br, maluschmidt@terra.com.br ou Imaginário/NIME-LABI, Instituto de Psicologia, taneves@usp.br Universidade de São Paulo, no. 17/18, São Paulo, 2o. sem. 2008 / 1o. sem. 2009. website: www.ip.usp.br/laboratorios/labi/ Anual de 1993 a 2005. Semestral a partir de 2006. Em 1994 e 1997 a publicação foi interrompida por falta de financiamento. ISSN 1413-666X 1. Antropologia 2. Sociologia 3. Literatura 4. Arte 5.

Psicologia


sumário Editorial

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Carta ao leitor

25

artigos originais O imaginário de morar revelado: A casa vista por Cecília Meireles Rafael Alves Pinto Jr.

29

O Bom Retiro: além, muito além da José Paulino Belkis Trench Tânia Lisboa Machado Dulce Coppedê

45

A arte moderna e os imaginários da alteridade José D’Assunção Barros

69

Visões de Van Gogh: imagem e auto-imagem Luciana Bertini Godoy

103

Imaginário artístico e da arte entre traços e resíduos das relações arte-natureza na obra de Walmor Corrêa Marcio Pizarro Noronha Miguel Luiz Ambrisi

125


Caderno de Imagens artigos originais Sala de professores em instalação: considerações sobre a vivência estética na formação de educadores Clara Paulina Coelho Carvalho Pobres incivilizáveis: por uma infinita experimentação criadora Monique Borba Cerqueira Cinema e ruralidade: uma leitura do Jeca-tatu nos filmes de Mazzaropi Rafael Júnior Andrade Maria Izabel Vieira Botelho Eveline Torres Traduções e traições do olhar Ana Maria Portugal Os tempos do cômico na afasia: Waat de Beckett e a privação da linguagem Alessandra Caneppele O tradicional e o moderno nos imaginários sociais da Argentina nas décadas de 1960 e 1970. Sua projeção literária no “Beijo da mulher aranha” de Manuel Puig Nidia Burgos A Estética Aplicada de François Delsarte: entre memórias e esquecimentos José Rafael Madureira Nietzsche e a arte como abrigo espiritual Antonio Leandro da Silva

Enthousiamós Deborah Matheus

365

Rupigwara: a relação primeva do índio kawahib com o princípio da depredação José Osvaldo de Paiva

383

201

Corridas de aventura: o mito do herói, a aventura e a representação mítica da natureza Luiz Fabiano Seabra

411

225

Mosaico e pesquisa qualitativa: combinando fragmentos na tarefa de análise de dados Carla da Silva Santana Maria Júlia Kovács

257

Um exercício de alteridade: aproximações e afastamentos entre Jung e Reich Laura Villares de Freitas Paulo Albertini

171

273

293

319 347

Ética na pesquisa com crianças Ana Cristina Gracia Dias Maria Isabel da Silva Leme Silvia Helena Koller

439

453

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contents

Editorial

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Letter to the reader

25

original articles The imaginary one of the space of live revealed: The Home seen by Cecília Meireles Rafael Alves Pinto Jr.

29

The Bom Retiro: beyound the borders of José Paulino Belkis Trench Tânia Lisboa Machado Dulce Coppedê

45

Modern art and imagináries of alterity José D’Assunção Barros

69

Views of Van Gogh: image and self image Luciana Bertini Godoy

103

Art and artistic imaginary between traces and rests of the relationships art-nature in the Walmor Corrêa´s work Marcio Pizarro Noronha Miguel Luiz Ambrisi

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Images original articles Teachers’ lounge in installation: considerations on the aesthetic grasp of living experience in the formation of teachers Clara Paulina Coelho Carvalho Poor incapable of being civilized: for an infinite creative experimentation Monique Borba Cerqueira

171

201

Enthousiasmós – Enthusiasm Deborah Matheus Rupigwara: The primeval relation of kawahib indian with the depredation principle José Osvaldo de Paiva

383

Adventure races: The hero’s myth, the adventure and the mythical representation of nature Luiz Fabiano Seabra

411

225

Mosaic and qualitative research: combining fragmentos in the analysis task given Carla da Silva Santana Maria Júlia Kovács

Translations and betrayals of looking Ana Maria Portugal

257

An exercise in otherness: approaches and departures between Jung and Reich Laura Villares de Freitas Paulo Albertini

Watt de Beckett: the comic and the deprivation of language Alessandra Caneppele

273

Cinema and rurality: a read of the Jeca Tatu in movies of the Mazzaropi Rafael Júnior Andrade Maria Izabel Vieira Botelho Eveline Torres

Tradition and modernity in the social imaginaries of Argentina in the ´60 and ´70´s Their literary projection in The spider woman´s kiss of Manuel Puig Nidia Burgos François Delsarte’s Applied Aesthetics: among memories & forgetfulness José Rafael Madureira Nietzsche and the art as a spiritual shelter Antonio Leandro da Silva

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319 347

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Ethical issues involved into the research with children Ana Cristina Gracia Dias Maria Isabel da Silva Leme Silvia Helena Koller

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sumario

Editorial

21

Carta al lector

25

artículos originales Lo imaginario del espacio de habitar revelado: La casa vista por Cecília Meireles Rafael Alves Pinto Jr. El Bom Retiro: mas allá, mucho más allá de las fronteras de la calle José Paulino Belkis Trench Tânia Lisboa Machado Dulce Coppedê

29

45

Arte moderno e imaginarios de alteridad José D’Assunção Barros

69

Visiones de Van Gogh: imagen y auto-imagen Luciana Bertini Godoy

103

Imaginario artístico y del arte entre los trazos y residuos de las relaciones arte-naturaleza en la obra de Walmor Corrêa Marcio Pizarro Noronha Miguel Luiz Ambrisi

125


Cuaderno de Imágenes artículos originales Sala de profesores en instalación: consideraciones sobre la vivencia estética en la formación de educadores Clara Paulina Coelho Carvalho Pobres incivilizables: por una infinita experimentación creadora Monique Borba Cerqueira

171 201

Enthousiasmós – Entusiasmo Deborah Matheus Rupigwara: La relación primitiva del indio de kawahib con el principio de la depredación José Osvaldo de Paiva

383

Competencias de aventura: el mito del héroe, la aventura y la representación mítica de la naturaleza Luiz Fabiano Seabra

411

225

Mosaico e investigación cualitativa: combinando fragmentos en la tarea del análisis dada Carla da Silva Santana Maria Júlia Kovács

Traducciones y traiciones del mirar Ana Maria Portugal

257

Un ejercicio de alteridad: acercamientos y alejamientos entre Jung y Reich Laura Villares de Freitas Paulo Albertini

Watt de Beckett: el cómico e la privación del lenguaje Alessandra Caneppele

273

Cinema e ruralidade: una lectura del Jeca-tatu en las peliculas de Mazzaropi Rafael Júnior Andrade Maria Izabel Vieira Botelho Eveline Torres

Lo tradicional y lo moderno en los imaginarios sociales de la Argentina en las décadas 1960 y 1970. Su proyección literaria en El Beso de la Mujer Araña de Manuel Puig Nidia Burgos La Estética Aplicada de François Delsarte: entre recuerdos y olvidos José Rafael Madureira Nietzsche y el arte como abrigo espiritual Antonio Leandro da Silva

293

319 347

365

Ética en la investigación psicológica con niños Ana Cristina Gracia Dias Maria Isabel da Silva Leme Silvia Helena Koller

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editorial

O LABI e o NIME em seus estudos teóricos e debates metodológicos encontraram-se por diversas vezes às voltas com o tema da arte, provocando sua escolha como mote dos números XV, XVI e XVII da revista Imaginário. Há pelo menos dois sentidos da relação entre arte e ciências humanas e sociais: um primeiro refere-se ao caráter exemplar ou paradigmático da arte para o conhecimento humano e um segundo, à arte como objeto daquelas ciências, bem como da filosofia. Nesta aproximação está presente o risco da arte ser tomada como ilustração de argumentos e hipóteses da psicologia, sociologia, antropologia, entre outras. Se, no entanto, a arte pode ser vista como modos de apresentação do mundo, portadores de sentidos e significados próprios, a interlocução, por sua vez, pode ser lugar de potência e fecundidade para as disciplinas acadêmicas. Não se trata para as ciências de “copiar” a arte, buscando aí uma saída para suas crises de modelo e de metodologia, mas de aceitar uma abertura para visões paradoxais e opostas que convivem e permanecem em sustentação. Trata-se de aprender com a arte esta possibilidade de encarar dilemas sem a urgência de superação. O caráter de experiência da atividade artística remete à indissociável relação entre fazer, descobrir e criar própria da arte.


Num certo sentido, esta tem sido, também, a experiência de pesquisadores das ciências humanas e sociais ao se defrontarem com os desafios lançados ao conhecimento neste início de um novo século e a concomitante desconfiança nos dispositivos consagrados de pesquisa de campo e de interpretação teórica de seus achados. Esta experiência obriga os inconformistas a fazer, descobrir e criar desenhos de pesquisa em que uma apresentação da complexidade de mundos no mundo contemporâneo possa acontecer. Não existem muitas garantias antecipadas, mas a premente necessidade de pesquisar como quem cria, renovando as tradições acadêmicas. No espírito de reunir diferentes perspectivas e práticas de diálogo entre arte e ciência, os números XV e XVI da Imaginário publicam artigos em que a arte comparece como ponto de partida para indagações no campo das ciências humanas e sociais e da filosofia, trazendo para seus territórios questões relativas à sensibilidade e à precariedade da existência humana. Há outros textos em que objetos e produções artísticos são analisados como testemunhos de tempos históricos e de modos de vida. Por fim, há, ainda, artigos que vão em direção oposta às acima apontadas, buscando na arte instrumentos redutíveis para o campo de aplicações das ciências humanas e sociais, o que representa outra vertente vigente de certas apropriações da arte pela ciências. Esperamos que o conjunto de artigos contribua para a compreensão das múltiplas conexões que arte e ciências humanas e sociais podem comportar na atualidade, promovendo um campo de debate fecundo.


carta ao leitor

Vivemos na Imaginário um conflito característico de uma era: a divisão entre a pressão de uma produção regida por limites, prazos e critérios externos, e o fruir da experiência do pensamento, da reflexão e da criação. Vivemos um tempo diverso das demandas contemporâneas da pressa, da submissão castradora a normas de patrocínio e avaliação que, se por um lado vinham exigindo procedimentos preestabelecidos na edição da revista, por outro, muito mais nefasto, passaram a imprimir um ritmo aos trabalhos do Núcleo que deixava seus participantes com uma resistente sensação de dívida e incompletude. A Imaginário tem sido a expressão de um trabalho com o qual queremos estar em consonância, abrigando e expandindo nossos questionamentos e o modo como compreendemos que o saber se dê, mais ao modo da aspereza e do desalojamento do que o das descobertas recentes e do estado da arte. Não o conhecimento que se acumula, mas a reflexão que se pode compartilhar, afetando e alimentando tanto ao leitor como a nós mesmos, conduzindo à interlocução e à troca: um compromisso com a fecundidade e não com a noção corrente de produtividade. Com a intenção de sustentar a fidelidade ao tempo do nosso pensamento, decidimos alterar a periodicidade e o caráter da revista, propondo uma relação diferente com nossos colaboradores. Ao invés de estipular a tradicional chamada para artigos, optamos por manter a abertura permanente para colaboradores que desejem recupe-


rar o prazer de participar de uma publicação que não terá uma periodicidade fixa e que não passará por avaliação externa formal. Desejamos manter a condição de diálogo com nossos interlocutores, dentro de expectativas comuns e critérios geridos em conjunto. Essas contribuições poderão acontecer em diversos registros que não apenas o material escrito de producão acadêmica. Sugerimos o formato inicial de Cadernos, que abriguem não só artigos, mas colóquios, manifestações artísticas, depoimentos, ilustrações. Encerramos aqui a Revista Imaginário como periódico científico e inauguramos uma série ou coleção de cadernos, elaborada com carinho e envolvimento e lançada quando ficar pronta. Conselho Editorial da Revista Imaginário



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o imaginário do espaço de morar revelado: a casa vista por cecília meireles Rafael Alves Pinto Junior Universidade Federal de Goiás - UFG

Em junho de 1947, o jornal A Manhã publicou na seção “Letras e Artes”, uma crônica de Cecília Meireles intitulada A Casa. Tendo seu primeiro livro lançado em 1919 – Espectros – o nome de Cecília Meireles já se ligara ao que de melhor se fazia na poesia da primeira metade do século XX no Brasil. E não somente à poesia. Além dela, se dedicou à prosa em vários gêneros: artigos, ensaios, conferências, estudos sobre folclore e educação. Este texto não se propõe a fazer uma análise do discurso “oculto” no texto de Cecília, entendido como produto cultural de sua autora; sobretudo quando se coloca este horizonte como produto de uma experiência estética intersubjetiva e vista como obra que se completa nos olhos de quem o lê. A interpretação que proponho, ao rever o mundo que o texto da escritora revela, é apenas uma entre as várias possíveis. Como é facilmente verificável, a linguagem poética invade a sua prosa. Talvez, não importe delinear os contornos de uma ou de outra, mas perceber manifestações diversas da mesma pena, fruto de uma única poiesis.

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Dentro do contexto de ruptura e de divisor de águas que o modernismo construía na literatura e nas artes no Brasil das primeiras décadas do século XX, Cecília se distinguiu de seus contemporâneos por recusar tanto uma identidade nacionalista quanto uma particularidade estética determinada através de uma ruptura. Colocada numa condição de “pós-simbolista” por Otto Maria Carpeaux e ao lado de Drummond e Bandeira entre os grandes poetas vivos daquele momento, Cecília se distingue através de uma poética simultaneamente atual e inatual, conforme o colocado por Neto (2001). Trata-se de uma filiação a um conceito de tempo diverso de seus contemporâneos, desligado de fraturas estilísticas, arroubos nacionalistas ou afirmações ideológicas. Para ele: Não se trata, portanto, de uma “neo-simbolista” que apenas voltava ao Simbolismo de maneira passiva, mas de uma autora que parte desse movimento, e do que havia nele de conexões com o Parnasianismo, rumo a uma arte moderna escoimada de seu materialismo limitador, fazendo preponderar um desejo de unificação e não de cisão, de universalização e não de particularização. E esse desejo se realiza muito mais pelo desprendimento dos vínculos terrenos, num movimento de ascensão que lhe dá um olhar mais amplo sobre o homem e a existência. Avessa ao sentimento estético separatista, ela se apossa de uma palavra agregadora, por sentir de forma aguda a fugacidade de tudo. Afastada do centro da poética modernista, manejando uma língua intemporal, ela deu continuidade a uma tradição lírica ibérica, trilhando a contramão dos rumos poéticos de nossa modernidade, que negou justamente a conexão com a cultura portuguesa, em nome da afirmação do local ou por deslumbramento por culturas mais avançadas tecnicamente. O que é considerado conservador em sua postura adquire um papel de revolta, de resistência, até hoje pouco valorizado em nossa cultura afoita demais pelas novidades (op. cit., p. xxiv-lvi).

Neste sentido, falar em brasilidade, expressa na arte da época, corresponde abordar uma temática constante no cenário cultural nacional e que diz respeito aos problemas de uma conceituação de uma cultura brasileira. Como ponto de partida, entendemos que

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as práticas artísticas modernistas – principalmente as relacionadas à literatura - se revestiram de propriedades capazes de esclarecer práticas sociais e ideológicas inauguradoras de uma forma de ordenar, ou ao menos de propor uma unidade cultural. Sobretudo no que apresenta de imagética. Vista desta maneira, a conceituação de uma identidade cultural não deve ser entendida como um conceito fechado, mas antes como um continuum de resultados transitórios dado basicamente às suas causas múltiplas e mutáveis. Desta forma, tornando-se um ponto de referência essencial no processo de formação da arte brasileira, o modernismo se afirmou no Brasil através de um processo historicamente inconcluso, dinâmico e contraditório em sua essência; e, portanto, problemático e aberto; ainda que em sua primeira fase até os anos 1930 esta antinomia não seja consciente. Somente a partir da II Guerra é que esta antinomia será assumida, sobretudo por Mário de Andrade, como uma estrutura inconclusa e um problema aberto. No panorama do modernismo no Brasil, a obra de Cecília, em prosa ou verso, não revela nenhum momento de ruptura em termos profissionais, nenhum ano de conversão à modernidade, nenhuma guinada abrupta. Sua formação se deu de uma maneira peculiar, estando intimamente ligada ao seu percurso biográfico. Neto (2001) observa que será a orfandade, portanto, a circunstância caracterizadora de uma estética da ascese, lugar geométrico que a poeta elege como morada. Deste ponto de vista, externo e alheio é que a autora se coloca ao escrever A Casa. À compreensão deste ponto de vista é preciso entender os conceitos de tempo e de espaço revelados pela poeta e de que nos apoiaremos nesta exposição.

1 – o olhar exterior – a casa vista por fora Das minhas altas varandas a avistava. E se a notei, foi só por sua solidão, esse uniforme pelo qual – objetos, animais, pessoas, - fazemos o nosso reconhecimento. Pensei que seria meu destino amá-la. E sobre ela pensei algumas vezes, deslizando como uma pequena

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mosca pelas suas vidraças insondáveis, aventurando-me como os esbeltos gatos pelos ângulos do seu telhado, farejando o desenho secular e pueril das suas cornijas.

Cecília Meireles, de suas altas varandas – reais ou imaginárias - observa uma casa de esquina, abandonada – cheio só de silêncios. A autora identifica como seu este espaço alheio:” ainda quando pertençam a outros, para mim é que foram feitos”.. Ao lugar exterior atribui o reconhecimento de suas dispersões em portas, corredores, escadas e jardins. Aos lugares que não são seus e onde não se está, se espelha. Ao se colocar no corpo de outros seres – pequena mosca pelas vidraças, gatos pelos telhados – faz um primeiro e fundamental reconhecimento, algo como um tatear através do externo.

mecanismos da imaginação e, através da distância, compõe um espaço de sonho que ela preenche com ela própria. Não interessava a ela entrar na casa. A renúncia seria exercitada através da distância do olhar. O conhecimento do interior, ao revelar o conteúdo, poderia impedir o espelhamento; e o espaço que ela compõe não pode ser mensurável ou definido pelos parâmetros construídos pela arquitetura do edifício. Ao se colocar do lado de fora, Cecília cria uma visão de espaço peculiar, plena de subjetividade, relacionada com sua noção de tempo. O tempo não se apresenta em sua condição de passado ou futuro, mas em sua condição transitória, fugidia. Apesar de presente, escapável e móvel. Daí seu encantamento e sua dor.

Assume sem rodeios sua relação com a distância e o que ela representa:

À imobilidade do objeto físico da casa, a autora identifica uma ação. Ação de igual intensidade à sua de observadora e em sentindo contrário. Uma ação que não é percebida por ninguém além dela:

Pensei que das minhas altas varandas se inclinava um coração de amor para a casa solitária, e deixei-me ir vivendo essa nova ternura; com suas ausências, seu natural impedimento de distância, e a impossível comunicação. Mas afinal, aprendemos tanto com os homens a lição da renúncia que amar uma casa fechada é um pequeno exercício; e uma casa vazia contém mais sonho e mais resposta que a maioria das pessoas. Nunca esperei, no entanto, nada mais que esse meu amor. Porque o amor não precisa mesmo de nada. E até de certo modo, quando se fortalece muito, começa a excluir tudo. O amor quer ser sozinho, isento de repercussão.

Mas um dia a casa tirou todas as suas telhas. E entendi que para mim as tirava, e que era seu modo de dizer-me “Eu também te amo.” Era o seu modo de entregar-se. E das minhas altas varandas vi toda a sua anatomia, suas divisões, suas passagens, suas claridades, seus descalabros, a mancha dos quadros no papel das paredes, as pias, os lavatórios, os ladrilhos amarelos e azuis, o chão com sua geometria, o lugar de comer, o lugar de dormir, e esse espaço geral de sofrer, que as casas piedosamente cercam com seus sucessivos regaços.

Visto em sua relação com o espaço, a dimensão temporal adquire um novo significado. Além do comprimento, largura e altura - as dimensões espaciais -, o tempo comparece como um elemento de se estar no espaço. O verdadeiro sujeito da percepção da arquitetura é aquele que se coloca no espaço, ainda que do lado de fora como na Casa. Ao tempo real da experiência, Cecília contrapõe uma quarta dimensão temporal simbólica, processada pelo afastamento em relação ao objeto.

Metáfora do seu próprio fazer poético, a figura da casa é instrumento, ela própria, de representação de um mundo interior absolutamente sensorial. Através desta “desconstrução” se processa uma revelação e o interior do objeto passa, mesmo à distância a ser percebido. A imagem corresponde a um desnudar em que observam novas cores. Os espaços internos outrora cobertos – e portanto menos sujeitos às variações da luz – adquirem novas tonalidades através do sol e da lua. Elementos naturais que adquirem presença de protagonistas dentro do espaço contruído.

O fato de não entrar na casa, não explorar seus ambientes internos, não vê-los por dentro, é significativo. A autora escolhe ficar do lado de fora apesar de nada indicar um impedimento de se entrar no espaço da casa. Entretanto, esta não ação desperta na autora os

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Esta ação de ruína do espaço construído, vista e comprendida pelo olhar exterior, é para a autora o objeto mesmo da percepção, numa ação que podemos identificar como fenomenológica. O que a po-

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eta vê – real ou imaginariamente – são dados absolutos apreendidos em intuição pura. O processo de desmaterialização do espaço físico objetiva descobrir tanto as estruturas essenciais dos atos de ver e imaginar (noesis) quanto as entidades objetivas que correspondem a elas (noema), para usar uma terminologia tão cara à fenomenologia. A experiência propiciada pela distância e pela solidão, se constitui no hábito da habitabilidade, a que se refere Ferrara (2000). Pela vivência da solidão, a cronista aplica à cidade e aos seus elementos – as outras casas – o seu modo de habitar e de ver o seu entorno. A solidão é a lente através do qual ela faz o uso do seu entorno. Falando sobre a habitabilidade e o uso do espaço, Ferrara esclarece que: Na homogeneidade da cidade, o hábito é a sedimentação de um uso urbano e, ao mesmo tempo, fator de baixa definição da cidade enquanto fonte de informação; entretanto, é por este mesmo uso que o homem se apropria do espaço ambiental, identificando-o e se identificando com ele; é o uso que dinamiza o espaço e o concretiza como modo de ser de uma cidade ou de um modo de viver. A cidade adquire identidade através do uso que conforma e informa o ambiente. O espaço é informado pelo uso que o transforma em lugar, em ambiente público ou privado (2000, p. 21).

A poeta não pretende dominar estes elementos ou suas antinomias, mas transitar por eles mediante uma experiêcia sensível e imagética. O texto relata uma experiência que deveria ser o contrário do de se construir uma memória. Mediante o desfazer, a autora constrói um sentido. Cria, mediante a ruína da casa, uma experiência de se estar no mundo. O espaço e o tempo da arquitetura comparecem como sujeitos de uma metáfora e de uma experiência poética. No texto, a figura da casa, do espaço construído, arquitetônico, desempenha a função de se estar diante de uma obra de arte. Quer como presença ou como desvelamento, produção do sentido, experiência do mundo da obra que se intromete e faz vacilar o mundo daquele que se envolve com ela, como entende Brandão (1999). Segundo ele, a existência da obra de arte se afirma na ação de se produzir um sentido:

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Já na sua Poética, Aristóteles estabelece a verossimilhança e não o vero como o objetivo do poeta trágico. Propondo a este retratar não “os homens como eles são” mas “tais como devem ser”, afora inúmeras outras considerações derivadas acerca da eticidade original e da função da obra de arte, o Estagirita coloca a necessidade da obra ater-se aos princípios de unidade tempo, ação e lugar que a capacita a condensar as ações e concentrar a vida de modo a que ela, afastando-se da dispersão do contingente, revele um sentido e promova a catarsis e o auto-reconhecimento do espectador. E, assim fazendo, ela se vê conferida de sentido e oferece um conhecimento da verdade que antes se ocultava. Tal experiência da verdade é o que muda o espectador e, portanto, é um outro tipo de verdade que se anuncia na obra de arte e que não pode ser compreendida como adequatio entre a obra e algo exterior a ela: é a verdade como desvelamento, produção do sentido, experiência do mundo da obra que se intromete e faz vacilar o mundo daquele que se envolve com ela (1999, p. 3-4).

Através do espaço revelado pela casa, a autora refuta qualquer presentificação e desafia a percepção linear do tempo. Para isso, utiliza do instrumental da poesia que a permite transpor a noção imediata do tempo e à concretude da matéria. De dentro de seu invólucro, a autora cria um mundo pessoal e ao povoar a casa com o “seu” tempo, dissolve a barreira da distância espacial do que vê.

2 – o olhar interior - a casa vista por dentro Na história das artes visuais, a figura de Johannes Vermeer (16321675) é uma das mais fascinantes. Das trinta e seis pinturas atribuídas a ele – algumas não datadas com precisão até hoje – apenas duas não são de interiores. Imersas na representação da vida doméstica, tema dominante da escola de Delft, sua obra mostra momentos íntimos do espaço de morar. Rara é a visão de uma rua ou uma paisagem. Estão ausentes também os retratos, ao menos na sua concepção tradicional. A luz e a espacialidade representada em suas vistas exteriores não se constituem em obras de exceção. Tanto os interiores quanto os exteriores, favorecem para Vermeer,

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mais o jogo de luz e sombra do barroco do que a claridade clássica. As vistas do espaço construído pelo artista não estão em oposição às de seus contemporâneos, como podemos ver nas obras de Pieter Saenredam (1597-1665), de Pieter de Hooch (1629-1684) e de Gabriel Metsu (1629-1667). Imersas no horizonte do desenho barroco, os interiores de Vermeer, apesar de mostrarem e explicitarem uma forma ao observador, apresenta-a na incompletude. Conscientemente, o artista oculta parte dela por detrás de uma cortina, no horizonte não vislumbrado através de uma janela aberta, no que está por vir em um corredor, numa encruzilhada, numa porta entreaberta. A forma representada só pode ser entendida através desta incompletude, desta parte oculta que sabe-se presente mas que não se pode ver. Neste jogo, reside o propósito de evitar que a imagem enfocada na tela pareça legitimada pelas contingências materiais do assunto representado, como o colocado por Wölfflin (2000). Tudo parece simples e nada o é, dado que a luz não se refere à forma, tornando-se ela própria, um elemento não mensurável. Segundo ele: O motivo perde a sua evidência, o seu significado inequívoco; surgem então aquelas tomadas que não demonstram qualquer interesse pelos objetos, para as quais a pintura paisagística constitui, sem sombra de dúvida, um terreno mais propício do que o retrato e os quadros de cenas ou assuntos históricos. (...) As vistas arquitetônicas podem ser ricas em conteúdo objetivo, mas devem comportarse como se não se preocupassem em nos transmitir determinada realidade (2000, p. 295).

Consideradas em suas autonomias poéticas, nada liga aparentemente a obra de Vermeer à de Cecília. A literatura moderna do século XX no Brasil e a pintura Holandesa do século XVII parecem à primeira vista, separadas por um intransponível abismo. Penso que não. Falar do espaço da casa é falar de uma ampla realidade que deve ser vista como complexidade. Além dos dados expressos por sua materialidade, ele é formado pelas dimensões simbólicas e imaginárias, dimensões paralelas traduzidas pela poesia e pela pintura. Entendo que pensar o espaço da morada é fazer convergir as variadas dimensões que partem dela ou a ela se sobrepõe. Tanto

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a literatura quanto as artes visuais se constituem num instrumental privilegiado que nos permite compreender o espaço geral de sofrer no dizer da cronista. No contexto da obra de Cecília, a Casa (1947) se situa entre duas obras de fôlego: Mar absoluto e outros poemas (1945) e Retrato Natural (1949). Frutos do cerne de sua poética e do período mais tranqüilo e estável propiciado pelo seu segundo casamento. Em 1951 vai pela segunda vez à Europa. Conhece a França e os Países Baixos, e da Holanda escreve os Doze Noturnos da Holanda, publicados em 1952. Anda pelas mesmas ruas de Vermeer. Através da figura da noite e do silêncio, compõe um quadro onírico. Uma noite holandesa – nítida – envolvia a poeta: E a noite dizia-me: “Vem comigo, pois, ao vento das dunas, Vem ver que lembranças esvoaçam na fronte quieta do sono, E as pálpebras lisas, e a pálida face, e o lábio parado E as livres mãos dos vagos corpos adormecidos! Vem ver o silêncio que tece e destece ordens sobre-humanas, E os nomes efêmeros de tudo que desce à franja do horizonte! Oh! Os nomes... – na espuma, na areia, no limite incerto dos mundos, Plácidos, frágeis, entregues à sua data breve, Irresponsáveis e meigos, boiando, boiando na sombra das almas, Suspiro da primavera na aresta súbita dos meses ...” (MEIRELES, C. Doze noturnos da Holanda. In: SECCHIN, A. C. (Org.) 2001, p. 709-710).

Envolto no mesmo silêncio que envolveriam Cecília Meireles, o espaço de Vermeer é concebido pela distância. Através dela o silêncio unifica, entrelaça e equaciona tanto pessoas quanto objetos. O mundo externo, o tempo da natureza e sua realidade não interessam ao pintor. Desprovido de interesse, ele se dedicou ao mais íntimo dos espaços: o de morar. O pintor constrói um espaço cuja única intromissão do exterior é a luz e seus reflexos, sua geometria e sua sombra. A luz revela e fixa

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as figuras suspensas em gestos solitários através de uma intimidade que não se imagina revelada. Uma intimidade que é medida através da luz, da sombra e da distância, ela própria espaço. Segundo Alpers (1999): Quando nos movemos entre o modelo e o olho, as imagens holandesas e os textos holandeses sobre imagens, estamos mapeando um território no qual a representação da aparência – o ut pictura, ita visio de Kepler – não só define as imagens, como exclusão entre o desenho e a pintura, mas também domina o senso do eu do artista e lhe invade a própria mente (1999, p. 107)

Ao espaço cartesiano, mensurável, analítico, Vermeer contrapõe um espaço subjetivo, construído a partir da geometria visual, mas além dela. A geometria é a ferramenta da representação da distância do ser em relação aos seus sentimentos, que se apresentam ao observador como uma recordação e não como um fato. À idéia do registro de um fenômeno o pintor oferece a construção de um espaço único e mágico. Construção plena de uma subjetividade íntima que somente seria reconhecida e valorizada na segunda metade do século XIX, por autores como Marcel Proust (1871-1922). Os anos entre 1662 a 1667 foram para Vermeer de inspirada produção. Datam deste período obras importantes como Carta de Amor (1667), Mulher com colar de pérola (1664), O Concerto (1664) e Lição de Música (1662). Em todas elas, podemos entender o espaço pictórico através da distância que o constitui. A distância estabelece as relações de quem vê – na penumbra – e de quem é visto, sob a luz. As ações desempenhadas pelas figuras – ver uma carta, experimentar um colar de pérolas, executar ou aprender música – apenas marcam e referenciam a distância, estabelecendo um limite à observação. Estabelecem um lugar próprio que não pode ser invadido senão pela distância do olhar. O olhar é o único instrumento que nos permite entrar neste mundo, mas respeitando a privacidade a que tem direito seus habitantes. Vermeer constrói um mundo de sujeitos que devolvem aos observadores a possibilidade de preencher, através da imaginação, o fato. Qual o conteúdo da carta do amado ausente? Em quê pensavam diante da janela aberta? Qual a palavra na boca entreaberta, na

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frase suspensa? Qual sentimento aflorou e foi abafado? O pintor não responde a nenhuma destas perguntas. Devolvendo-as ao espectador cria a possibilidade de, através do imaginário, construir um sentido, e ao fazer isso, participar da própria experiência estética e do próprio fazer artístico. Mediado pelo simbólico formado pelo imagético, o observador pode partir do visível e chegar ao invisível. Cabe a quem vê, completar o jogo que o espaço pictórico barroco nos propõe e, ao permitir essa abertura, minimiza os aspectos da consciência evidentes na percepção, coloca a obra – poética ou visual – num horizonte não cartesiano. O destino da casa da crônica de Cecília é notadamente, diferente das retratadas por Vermeer. Ao espaço incompleto do desenho barroco, corresponde uma revelação em Cecília. A casa se desnuda, abrindo-se em ruína, achando-se “desnecessária”. Entretanto a casa sobrevive à sua desmaterialização: Tudo desapareceu. E a casa ainda existia. E por fora não tinha mudança nenhuma. E a sombra das nuvens boiava na sua amplidão e só de ar e de luz e de som estava repleta. De silêncio, não. O silêncio voara, e olhava para ela, com os meus olhos. Ele e eu assistíamos a esse deixar de ser que parecia voluntário. E ouvíamos a casa dizer que desdenhava de si própria, que se achava desnecessária, que tudo quanto fora já não servia, e que até para abrigar e proteger é preciso inventar mil modos diferentes, sucessivos, porque as misérias dos homens que habitam as casas são muito complicadas, doloridas, assustadiças, inquietas. (...) E a memória da casa estava apenas no chão, no traçado do chão, por onde ela voltava ao seu começo, àquele tempo em que o arquiteto a inventara e ela era um vago pensamento. Era um desenho em cima da Terra, outra vez, mas um desenho que agora se apagava. E a casa me foi dizendo adeus pouco a pouco, e muito amorosamente. E um dia olhei das minhas altas varandas e todas as suas janelas tinham saído, e suas quatro paredes tinham sido levadas, e ela não possuía mais limites: era um quadrado deserto, um pequeno quadrado do planeta, à mercê dos homens.

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A cronista constrói uma imagem poética em que o objeto – a casa – retorna ao conceito, à concepção e à gênese estética. No caso, a materialidade do espaço construído se resume ao desenho conforme o concebido pelo arquiteto, reconstruindo uma memória “ao avesso”. Parte do reconhecimento da forma externa e termina no quadrado deserto, um pequeno quadrado do planeta, à mercê dos homens. Na Casa, a identidade de quem vê se dá no reconhecimento da destruição do objeto, que é, ele próprio sujeito da experiência estética: Foi só então que algumas pessoas repararam na casa que já não era casa. Que não era mais aquela casa. E como para os outros só tinha sido aquilo, é natural que não fosse mais nada. Nem deixara pó que sujasse a roupa dos passantes. Mas eu, que a tinha visto e ouvido... Ah, comigo foi diferente. Quando chegarmos à Eternidade, também ela estará entre as coisas sem morte, - e não terá rua nem número: será simplesmente “A casa”. E, por seu serviço, permanência e derrota no mundo dos homens, anjos infantes correrão por suas traves e com longas ramagens cheias de flores a adornarão.

Ao colocar a casa na latitude da Eternidade, a cronista a situa no mundo platônico e imortal das Idéias. Colocando-a como objeto ideal, Cecília faz uma redução eidética, encontrando um significado para ela essencial. Às diferenças de uma casa ou de outra, variadas como produtos da cultura, se sobrepõe a imagem da casa imagética, substantiva; e nisto podemos identificar mais uma das características de Cecília: a universalidade. Falando sobre o desejo de universalidade na obra de Cecília, Miguel Sanches Neto coloca que: Afastada do centro da poética modernista, manejando uma língua intemporal, ela deu continuidade a uma tradição lírica, ibérica, trilhando a contramão dos rumos poéticos de nossa modernidade, que negou justamente a conexão com a cultura portuguesa, em nome da afirmação do local ou por deslumbramento por culturas mais avançadas tecnicamente. (...) Segundo sua visão, as particularidades temporais, estéticas, sociais e históricas são secundárias. Ela pôde realizar-se sem seguir o modelo do poeta moderno, esquizofrenicamente contemporâneo de si mesmo. Recusando uma identidade nacionalista, preferiu, segundo a fórmula de Fernando Pessoa, ser patrimônio da língua portuguesa (Op. cit., lvi-lvii)

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Reler a crônica de Cecília reabre a possibilidade de que, através da experiência estética e da ferramenta do imaginário seja possível articular saberes, construir identidades e reconfigurar a relação de distância entre o observador e o objeto da arte. A referência à obra de Vermeer abre uma releitura da crônica de Cecília no sentido a confrontar as incompletudes do espaço e do tempo que ela nos oferece. A obra de Cecília espera ser relida. E esta releitura se reveste de importância quando consideramos a necessidade de, na contemporaneidade, nos colocarmos diante de um mundo globalizado, mas não universal.

Resumo: Este ensaio objetiva reler a crônica de Cecília Meireles – A Casa – e reabre a possibilidade de que, através da experiência estética e da ferramenta do imaginário seja possível articular saberes, construir identidades e reconfigurar a relação de distância entre o observador e o objeto da arte. Para estabelecer um caminho metodológico relacionamos dois níveis de abordagem com objetivos distintos: um vendo o espaço textual poético por fora conforme colocado por Cecília, e outro, vendo o espaço interno, pictórico a partir da obra de Vermeer. A referência à obra de Vermeer abre uma releitura da crônica de Cecília no sentido a confrontar as incompletudes do espaço e do tempo que ela nos oferece. Palavras-chave: literatura brasileira, Cecília Meireles, arte holandesa.

Abstract: This I practice objective reread to chronic of Cecília Meireles – the Home – and reopens the possibility of that, through the experience esthetics and of the tool of the imaginary one be possible articulate you will know, build identities and reconfigurar the relation of distance between the observer and the object of the art. For it establish a methodological

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road we relate two levels of approach with distinct objectives: a seeing the poetic textual space on the outside adapt put by Cecília, and another, seeing the pictorial, internal space from the work of Vermeer. The reference to the work of Vermeer opens a releitura of the chronic one of Cecília in the sense it confront the incompletudes of the space and of the time that she offers us. Keywords: brazilian literature, Cecília Meireles, dutch art.

Resumen: Este ensayo objetiva releer la crónica de Cecília Meireles – A Casa – y reabre la posibilidad de que, a través de la experiencia estética y de la herramienta del imaginario sea posible articular saberes, construir identidades y reconfigurar la relación de distancia entre el observador y el objeto de arte. Para establecer un camino metodológico relacionamos dos niveles de enfoque con objetivos distintos: uno viendo el espacio textual poético por fuera conforme colocado por Cecília, y otro, viendo el espacio interno, pictórico a partir de la obra de Vermeer. La referencia a la obra de Vermeer abre una relectura de la crónica de Cecília, en el sentido de confrontar los vacíos de espacio y de tiempo que ella nos ofrece.

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MEIRELES, C. Doze noturnos da Holanda. In: SECCHIN, A. C. (Org.). Cecília Meireles. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 709-710. ____________. Obra em prosa. Volume I. Crônicas em Geral. Tomo I. Apresentação: AZEVEDO FILHO, L. A. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. NETO, M. S. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In: SECCHIN, A. C. (Org.). Cecília Meireles. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SECCHIN, A. C. (Org.). Cecília Meireles. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. WÖLFFLIN, H. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Palabras clave: literatura brasilera, Cecília Meireles, arte holandesa.

bibliografia ALPERS, S. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999.

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BRANDÃO, C. A. L . A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

e-mail: rapjr_arq@yahoo.com.br

FERRARA, L. D´Alessio. Espaços comunicantes. São Paulo: Anablume, 2007.

Recebido em 06/02/2008 Aprovado em 10/09/2008

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o bom retiro: além, muito além das fronteiras da josé paulino Belkis Trench Doutora em psicologia e pesquisadora do Instituto de Saúde

Tânia Lisboa Machado Estudante do Instituto de Psicologia da USP e estagiária do Instituto de Saúde

Dulce Coppedê Estudante do Instituto de Psicologia da USP e estagiária do Instituto de Saúde

introdução Vejam com seus próprios olhos esta paisagem zebrada, tigrada, matizada, mourisca, recamada, entristecida, açoitada, lacunar, ocelada, multicolorida, rasgada, de cordões atados, de fitas cruzadas, de franjas puídas, inesperada em todo o canto, miserável, gloriosa, magnífica de cortar o fôlego e fazer o coração bater. Serrés

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Pergunte a qualquer paulistano sobre a primeira coisa que ele imagina quando pensa no bairro do Bom Retiro e provavelmente você ouvirá algo sobre a Rua José Paulino. A rua que é considerada pelos guias especializados como a rua de compras feminina “mais famosa” do país, também é um paraíso para as “sacoleiras de todo o Brasil”. Estima-se que pelas suas mais de 350 lojas, espalhadas ao longo dos diferentes quarteirões, circulem aproximadamente 70.000 pessoas por dia. O conselho dado nos guias a quem pretende embarcar nessa aventura é muito claro e simples: Vá preparada, a rua fica cheia, tem camelôs espalhados pelas calçadas e em muitas lojas você não pode experimentar as peças. Fora isso os preços são bem mais em conta e as roupas têm qualidade. (http: www.guiadasemana.com.br/noticias.asp).

Já para quem percorre a Rua José Paulino diariamente na condição de simples transeunte, como é nosso caso, talvez o que mais incomode e irrite é que ali você se sente impossibilitada de seguir em seu próprio tempo e ritmo. Muitas vezes você é obrigado a parar em momentos em que não espera, porque a pessoa que está a sua frente, acompanhada de suas sacolas, resolve parar abruptamente para olhar as ofertas de determinada loja. Outras vezes, você se sente atordoada de tanto levar “bordoadas” de malas e sacolas. Tais acontecimentos, por serem muito repetitivos, lhe obrigam a criar o hábito de andar por esta rua como se o seu corpo fosse um veículo, seja realizando freadas bruscas para evitar as topadas e batidas, seja buscando rotas alternativas. 1 Este artigo é parte das pesquisas que realizamos como preparação para o Projeto Escutatória - o qual pretendemos realizar no bairro do Bom Retiro, tendo entre os seus objetivos criar na Praça Coronel Fernando Prestes um ponto de ancoragem e escuta para os sonhos, frustrações, tristezas e desejos das pessoas que por lá circulam ou são seus freqüentadores assíduos, tais como idosos, jovens, moradores de rua, prostitutas, mães e filhos.

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Quando resolvemos criar outros caminhos para chegarmos menos estressadas ao nosso destino – O Centro de Memória da Saúde Pública, na rua Tenente Pena – não sabíamos ainda o que encontraríamos nas transversais, perpendiculares e paralelas da José Paulino, muito menos que o novo modo de caminhar abriria a possibilidade de descobrir um Bom Retiro que estava além, muito além das fronteiras traçadas pela rua José Paulino. Não seria, portanto, exagero, e muito menos pretensão, dizer que a história desta pesquisa1 se inicia literalmente com o pé no chão. Paradoxalmente, quanto mais afastávamos nossos pés da José Paulino, mais e mais a compreendíamos.

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Durante aproximadamente quatro meses, trajetos iguais e diferentes foram percorridos tanto solitariamente quanto conjuntamente por cada uma de nós. Algumas vezes retornávamos àquelas rotas de fuga da José Paulino, em outras seguíamos por novas direções. Relacionando gestos e passos, ou avançando, recuando e voltando a dar um e outro passo neste espaço é que fomos construindo a nossa metodologia discursiva do espaço. E nos perguntávamos: como dar voz aos espaços que foram moldados pelos nossos passos? Os passos são número, diz Certeau , mas um número que não constitui uma série. “Não se pode contá-lo, porque cada uma de suas unidades é algo qualitativo: um estilo de apreensão táctil, de apropriação cinésica. Sua agitação é um inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares”. (1994, p.176). O presente artigo, portanto, não é uma prestação de contas ou uma tentativa de contabilizar nossos passos pelo espaço do Bom Retiro, e sim um relato do espaço, tal como por nós foi tecido e no qual nos permitimos perder-nos “deliciosamente nas delicadezas do ínfimo, esquecidos do universal em prol das singularidades prenhes de sentido” (SERRÉS, 1993, p. 189). O relato também pode ser considerado como um primeiro passo para o desenvolvimento de outros projetos mais amplos no bairro envolvendo a area de saúde e os moradores do Bom Retiro.. Alguns autores, mesmo que não citados, nos acompanharam e deram respaldo aos nossos movimentos, em diferentes momentos, são eles: Benjamin (1995), Cardoso (1988), Novaes (1988), Pereira (2002), Rolnik (1989), Santos (2002) e Tournier (2001).

um bom retiro, os bons retiros. Sabemos que a simples denominação de um logradouro ou de um bairro por si só encerra múltiplo significado. Um nome próprio, ao identificar uma pessoa, um lugar, um espaço geográfico, cumpre também a missão de delimitar e dar visibilidade a uma determinada singularidade. Diríamos ainda, tanto nós quanto a psicanálise, que a escolha de um nome, além de sinalizar um destino, ainda aponta para as marcas do desejo de quem o escolheu.

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2 A “Chácara Bom Retiro”, de propriedade de Manfredo Meyer, foi adquirida pelo Estado em 1882 para a instalação do Desinfectório Central. Em 1979, neste mesmo local, foi inaugurado o Museu de Saúde Pública “Emílio Ribas” sendo tombado em 1985. Atualmente é o nosso local de trabalho e o “Centro de Memória da Saúde – MEMO”.

3 Segundo Dertônio (1971), a região do Bom Retiro, que desde o inicio do século XIX foi ocupada por chácaras e sítios de famílias abastadas, tornou-se, em algumas décadas, uma região essencialmente operária. Instalações de armazéns, depósitos de mercadorias e indústrias trouxeram à região a ocupação dos imigrantes, sobretudo portugueses e italianos, que trabalhavam como operários. A partir de 1900, o bairro, que levou o nome de uma de suas antigas chácaras, viveu sua expansão comercial e recebeu inúmeras famílias israelitas. Posteriormente, também se instalaram ali imigrantes sírios, libaneses, russos, poloneses, gregos entre outros. Desde as últimas décadas do século XX, a região também recebeu forte imigração de coreanos, que assumiram e modernizaram o mercado da moda ali instalado, além de bolivianos que, por sua vez, são os mais comuns empregados nas confecções da região.

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Oficialmente, a origem do nome do bairro é explicada pelo fato de, no início do século XIX, ser esta uma região ocupada por sítios e chácaras de pessoas que ali se instalavam para seu retiro de fim de semana. Possivelmente existiria ali uma chácara com essa denominação, que, quando foi loteada, deu o nome ao bairro2. Para o dicionário Aurélio, “bom” é um adjetivo que tem como primeiro significado: “aquele que tem todas as qualidades adequadas à sua natureza ou função” (1999, p.316). Já “retiro” tanto pode ser compreendido como um lugar solitário, ou de retraimento, como de sossego, recolhimento, tranqüilidade ou remanso (idem, p. 1759).

a dos Italianos, a Talmud Thorá, a Guarani, entre outras. Nas vizinhanças estão a Estação da Luz, a Sala São Paulo, a Pinacoteca, o Parque da Luz etc. Aliás, o Bom Retiro e a Luz talvez sejam os dois bairros da cidade mais bem servidos de transportes públicos. Por lá circulam inúmeras linhas de ônibus, peruas, metrô e trem. Porém, se você quiser conhecer realmente o Bom Retiro é melhor fazer como nós e usar como meio de transporte os próprios pés. Mais ainda, extrapole as referências fornecidas pelas cartografias oficiais do bairro e deixe que os seus agenciamentos e afetos criem as cartografias que se fizerem necessárias.

E se existe uma coisa que não se pode negar ao bairro é a sua capacidade de dar acolhimento e refúgio ao outro, ao estrangeiro, ao diferente. Além dos portugueses que já povoavam o bairro, passam a habitá-lo a partir de 1880 imigrantes italianos e, em 1890, judeus, seguidos, porém em menor escala, de sírios, libaneses, turcos, russos, gregos. A partir da década de 60, coreanos e, da década de 80, bolivianos3.

Nós, por exemplo, quando começamos a imprimir nossos gestos na cartografia do bairro, apelidamos a José Paulino de “Vitrina” do Bom Retiro, e sua circunvizinhança de “Bastidores”. Buscamos, por meio de uma metáfora, estabelecer relações, pouco visíveis ao grande público, entre o que é exposto e teatralizado na rua de maior prestígio do bairro e a realidade das outras ruas que contornam essa cena.

Nesta longa trajetória, a Rua José Paulino sempre ocupou um lugar de destaque na paisagem, sendo considerada a rua mais movimentada e o caminho de entrada do bairro. Todo o tráfego que do centro da cidade se dirige para o bairro do Bom Retiro, passando por um dos pontilhões sobre os trilhos da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí entra pela Rua José Paulino. Todos os passageiros dessa Estrada que demandam casas no referido bairro obrigatoriamente descem na Estação da Luz e entram pela Rua José Paulino. Isso é assim agora. E era mais ainda no princípio do século, pois então não havia mão única na referida rua e nas demais ao redor da Estação da Luz, e assim o movimento do bairro para o Centro e mesmo aquele para a Rua São Caetano e bairro do Brás se fazia pela referida rua. Chamava-se nesse tempo, Rua dos Imigrantes. Por tal motivo a rua predominou comercialmente no bairro. Os comerciantes a preferiam para as suas lojas, suas oficinas de costura, os industriais para suas incipientes fábricas (DERTÔNIO, 197, p. 78-79).

Hoje uma grande placa escrita: “Sejam Bem Vindos ao Bom Retiro”, anuncia o início do bairro e também o da Rua José Paulino. Nas suas proximidades estão a Rua Prates, a Três Rios, a da Graça,

Entre a Vitrina e os Bastidores existem diferentes formas de apropriação do espaço e uma constante metamorfose de ambulantes. Na Vitrina, como mencionamos, o dia-a-dia acontece de maneira bem frenética: peregrinação de pessoas de loja em loja, trombamentos e xingamentos acontecendo a qualquer segundo ou hora. A partir das 18 horas, tudo na rua se transmuta: os lojistas pontualmente abaixam as suas portas e rapidamente toda a sua extensão é ocupada por pessoas que catam as sobras de tecidos que são jogados em sacos de lixo e abandonados pelas confecções. A seleção do que deve ser aproveitado e descartado é realizada na própria rua e a conseqüência mais imediata é que no início da noite, de segunda a sexta, a José Paulino assemelha-se a uma verdadeira quarta–feira de cinzas: a Vitrina despe a sua fantasia e novos protagonistas investem os seus sonhos com os restos de tecidos. Em algumas ruas dos Bastidores, como por exemplo a Rua dos Italianos, observa-se o mesmo movimento, porém mais disperso. O fato de estas ruas serem mais discretas no seu dia-a-dia talvez não provoque em quem as vê no final do dia a sensação de uma metamorfose tão abrupta quanto a que ocorre na José Paulino. Algumas destas ruas – ainda que possam à primeira vista ser apontadas apenas como coadjuvantes da José Paulino, pois pre-

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dominantemente comercializam produtos destinados a viabilizar o comércio da grande Vitrina (tais como o de máquinas industriais, aviamentos ou tecidos) – necessitariam de um estudo específico. (ver Caderno de imagens – parte I, figura 1- Foto de Marcos Moura: Loja de Máquinas de costura nos Bastidores do Bairro). Ao que tudo indica, estas ruas estendem a sua função de Bastidores para outros centros de confecção da cidade, estado ou país. É nessas ruas que encontramos um tipo de camelô que vende um produto muito específico: moldes de vestuário em papel. Outras ruas, tais como a Prof. César Lombroso, parecem ter adquirido na última década uma identidade própria e fazem parte do que chamaríamos de “Circuito Off José Paulino”. Tais ruas têm as suas próprias regras. Esteticamente extrapolam as referências da José Paulino e se alinham ao estilo das edificações e vitrines dos shoppings e do bairro dos Jardins. Apenas vendem por atacado e para quem tem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ. Algumas de suas lojas possuem estacionamento, manobristas e buscam dar um atendimento diferenciado ao cliente. Dificilmente vemos nas lojas desta rua as placas que freqüentemente encontramos nas da José Paulino: “Favor não entre comendo, bebendo e fumando”. Impossível, aliás, imaginarmos os compradores destas lojas fazendo o que faz prazerosamente a maioria dos transeuntes que circulam pelas lojas da José Paulino, adquirindo milhos, pamonhas, abacaxis e água de coco dos camelôs para degustarem em pleno céu aberto. Neste aspecto, as ruas que compõem a “Off José Paulino” talvez sejam mais conservadoras do que a própria Vitrina. Lá o “código estético dominante associado à razão técnica” parece imprimir uma grande rigidez de papel a pessoas e coisas, direcionando e organizando os produtos unicamente em função do consumo, restando muito pouco para práticas de espaço inventivas. Em outras ruas fora desse circuito, é possível ser constantemente surpreendido com a vida pulsante do bairro e com a capacidade das pessoas de transformarem o seu cotidiano, graças à arte do fazer, entendida por Certeau (1994) como voltas e atalhos, astúcias sutis de caçadores, táticas de resistência pelas quais o homem comum altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito.

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Na José Paulino, podemos nos surpreender com tais táticas, especialmente através dos camelôs. Vemos que alguns colocam ao lado de suas barracas manequins de plástico para exporem o seu produto, enquanto que outros nos surpreendem pela maneira como utilizam o próprio corpo para as suas vendas. Uma senhora, por exemplo, que vende bonecas, trata o seu produto tal como uma mãe cuida de seu bebê. Sentada em uma cadeira e com a boneca no colo, brinca e a acarinha. Identificamos o mesmo cuidado entre os ambulantes que vendem frutas ou pamonha, curau e milho verde, e que ocupam as longas quadras da rua, pois ainda que os produtos estejam lá organizados e direcionados ao consumo, em muitos aspectos esses vendedores conseguem imprimir diferenciais aos seus gestos, especialmente através do cuidado e afeto direcionados tanto aos produtos quanto aos clientes. Os abacaxis, por exemplo, são cortados e embalados separadamente, um a um, em plásticos com cortes diferentes. Ao cliente é oferecido guardanapo e às vezes também um bom papo. Já em outras ruas empregam–se outras táticas de apropriação do espaço. Na Rua Sólon, por exemplo, um comerciante instalou um banco de concreto em frente à sua loja, ao lado de um ponto de ônibus. Na Rua da Graça, esquina com a Júlio Conceição, uma loja de aviamentos recobre todo o chão de sua calçada com os mais diferentes botões e nos faz instantaneamente lembrar e declamar os versos da antiga canção de roda: “se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante, só pro meu, só pro meu amor passar”. (Cantiga de Roda, autor desconhecido). (ver Caderno de imagens – parte I, figura 2 - Foto de Marcos Moura: Calçada de botões). Na Rua General Flores, vemos uma árvore circundada por um canteiro de concreto no qual foram incrustadas moedas de cruzeiros e cruzados em frente a uma parede inteiramente revestida de manchetes e tirinhas de jornais – ambas diante da fachada de uma loja. E na Rua Silva Pinto, em frente a uma mercearia, vemos vasos de plantas circundados de alfaces. No caso do dono do estabelecimento, ao colocar um banco para que o transeunte sente-se, parece dizer: “sente-se e descanse próximo de mim”. Já o que transforma a rua pública em uma rua de

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Certeau (1994) faz a seguinte distinção entre estratégia e tática: “chamo de ‘estratégia’ o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta. A nacionalidade politíca, econômica ou científica foi construída segundo esse modelo estratégico. Denomino, ao contrário, ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância”. (CERTEAU, 1994, p. 46).

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botões coloridos, mostra o quanto faz sentido o pensamento de Okamura: “eu sou o espaço que estou e estou no espaço que sou” (OKAMURA, p. 67). A mistura de plantas ornamentais e a horta de alfaces, poderia chamar-se: “Vejam como a vida pode ser híbrida!”. Já o canteiro de moedas, mesmo sem o aval do autor da instalação, transformou-se ao longo do tempo em uma obra interativa, cujo título poderia ser: “Estou aqui, descole e use!”. (ver Caderno de imagens – parte I, figura 3 - Foto de Marcos Moura: Canteiro com moedas).

tempo em que a delimitação entre espaço público e privado era menos contundente. As portas destas moradias foram construídas de forma a abrirem-se diretamente para a calçada, o que tornava muito menor a distância entre a sala da casa e a rua. É quase impossível não imaginar as crianças brincando ali, ou ainda, os adultos conversando do lado de fora.

Duas vezes por ano acontece o Bom Retiro Fashion Business. Nestes dias, tudo se inverte e não é a tática, mas a estratégia4 que impera. A José Paulino perde o seu caráter de Vitrina e se torna apenas expectadora do que acontece em suas transversais, como na rua Ribeiro de Lima onde se deu o lançamento da coleção “outonoinverno/2007”. O mesmo acontece à noite, ou nos fins de semana. Neste horário ou nestes dias, a Vitrina se encerra e apenas raros bares e restaurantes mantêm suas portas abertas.

Enfim, por toda parte elementos arquitetônicos liberam nosso corpo e imaginação e nos conduzem a diferentes tempos e espaços, fazendo-nos lembrar de uma bela frase de Bachelard (1993, p. 25): “Os verdadeiros bem-estares têm um passado”. Ou, ainda, da passagem na qual Certeau aponta para o fato de que só existe “lugar”, em sua concepção, quando freqüentado por uma multiplicidade de “espíritos”, que se escondem silenciosamente, podendo ou não ser evocados. Segundo ele,

nós, as ruas e os outros Andar pelo bairro, sentar em algum lugar, comer ou simplesmente bisbilhotar em uma loja ou mercearia provoca a quem se abre ao relacionamento com esta paisagem, diferentes formas de estranhamentos. O simples recorte do caminho percorrido entre a estação Luz do metrô (localizada em um dos pontos da fronteira geográfica do bairro) e o Centro de Memória, nosso destino, já nos oferece alguns exemplos. Tanto uma quanto a outra construção foram erguidas em pleno século XIX e, inevitavelmente, nos colocam em contato com um passado que nos é bastante remoto. Nestes lugares podemos sentir os efeitos de uma arquitetura concebida em outro ritmo de vida, com outro padrão estético, outra concepção do uso de recursos materiais, característicos de uma época distinta da atual. Ao optarmos por percorrer algumas de suas transversais, também nos deparamos com a simplicidade das casinhas, que nos remetem à ocupação operária, datada também do início do século XIX, empreendida sobretudo pelos imigrantes italianos, no

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Observando os sobrados nos quais o espaço para o estabelecimento comercial fica no andar térreo, com a casa em cima, nos remetemos àquela forma de trabalhar em família, bem próxima da moradia.

(...) os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados a legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias a espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. (op. cit., p.189)

Da mesma maneira que somos remetidos em um mesmo dia a diferentes tempos e espaços, também somos compelidos diariamente em nossos caminhos a exercitar a alteridade. Quem é esse outro que é ao mesmo tempo semelhante e diferente de mim? São perguntas que, mesmo não sendo continuamente verbalizadas ou explicitadas, foram incorporadas ao nosso dia-a-dia, pois lá, diferentemente do que sentimos em outros bairros da cidade, você se sente quase que cotidianamente obrigado a ter que apontar, identificar e catalogar as identidades: ele é judeu, é coreano, boliviano, grego, brasileiro, italiano. O mesmo fazemos com as edificações com as quais nos relacionamos no espaço: essas casas são dos coreanos, essa padaria é judaica, esse bar é de baianos, mas é freqüentado por bolivianos etc.

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O outro também parece em todo momento buscar pistas para nos identificar e catalogar. E, mesmo que não verbalize, parece buscar indícios para reconhecer a nossa identidade. Neste incessante movimento e estranhamento entre nós e o outro, tanto acontecem aproximações e encontros como distanciamentos, muitas vezes intransponíveis. Por exemplo, quando a diferença de idioma impossibilita que eu experimente a sua comida, ou ainda, quando a diferença entre religiões impossibilita que haja entre nós aproximações ricas e criativas. Notamos, assim, que o encontro com o outro nunca é pautado pela neutralidade e envolve um entrecruzamento de muitos planos e múltiplas dimensões. Todorov (1939a) em sua tipologia das relações com outrem mostra que, para darmos conta das diferenças entre eu e outro existentes no real, nos situamos e atuamos em três planos. No primeiro (o plano axiológico), fazemos um julgamento de valor: o outro é bom ou é mau, feio ou bonito, gosto dele ou não gosto dele. Assim, estabelecemos gradativamente uma hierarquia entre eu e o outro e estendemos as nossas avaliações valorativas, generalizando-as, por exemplo, para religiões, etnias e até mesmo para gêneros sexuais. O segundo plano (o praxiológico), envolve a ação de aproximação ou de distanciamento entre eu e outro. Neste movimento tanto posso desejar e me identificar (ou colar a minha imagem à dele), quanto impor-lhe a minha imagem e assimilá-lo, ou antropofagicamente digerí-lo e comê-lo. Entre a submissão ao outro e a submissão do outro, há um terceiro plano – o epistêmico – no qual o que está em pauta não é mais a gradação de valores e sim uma gradação infinita entre os estados de conhecimento inferiores e superiores: conheço ou ignoro a identidade do outro, reconheço ou destituo de sentido a sua identidade ou a sua existência. Neste movimento de manifestação de tantos eus e tantos outros, ou neste incessante movimento desta ciranda multiétnica, talvez quem mais sofra com a falta de reconhecimento ou da manifestação do olhar do outro sejam os bolivianos, que vivem e trabalham em regime de semi-escravidão em diferentes pontos do bairro.

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Os bolivianos costumam trabalhar das 6h às 23h ou das 7h às 24h e ganham entre R$ 200,00 e R$ 400,00 – valor difícil de ser alcançado – por mês. Moram num cubículo, no próprio local de trabalho. São quartinhos de 2,00m x 1,50m que abrigam o trabalhador, sua família, a máquina de costura e mais um espaço para colocar a roupa que é produzida (em alguns, o quarto e a oficina ficam em ambientes diferentes). Os colchões são enrolados durante o dia e à noite, quando vão dormir, se transformam em cama. As roupas prontas são normalmente entregues a coreanos que têm lojas de roupas baratas. (http://www.social.org.br/relatório2003/relatório021.htm)

O fato de viverem em uma situação clandestina talvez os leve a evitar qualquer tipo de proximidade com o diferente. Vivem confinados em suas moradias e/ou locais de trabalho e são quase invisíveis à luz do dia. Um dos poucos locais em que eles se concentram é uma agência de viagem onde são vendidas passagens de ônibus para a Bolívia e “helados” (sorvetes). Em suas paredes, anúncios de shows latinos e cabines telefônicas que fazem chamadas internacionais. Esta agência parece funcionar como uma espécie de embaixada e de ponto de encontro. Mas, mesmo neste local, nem sempre é possível estabelecer uma relação com os bolivianos, pois existe medo e desconfiança da parte deles. Os outros em geral também parecem estabelecer com os bolivianos uma relação distante e fria. Os taxistas, por exemplo, se recusam a transportá-los, segundo o relato de um deles, “porque eles nunca têm dinheiro para pagar a corrida de volta até as suas casas”. A esse respeito, ou melhor, a respeito de pessoas que vivem entre os outros sem que tenham a sua existência reconhecida, Todorov diz: Se os outros estiverem ausentes, não podemos, por definição, captar seu olhar. Mas o que provavelmente é ainda mais doloroso do que a solidão física, que pode ser resolvida ou amenizada por diversos meios, é viver entre os outros sem deles receber qualquer manifestação. (1939, p. 70)

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a rua das misturas A cidade, diz Sennett (1989), é um local onde estranhos podem se encontrar, e estes podem apresentar-se sob duas perspectivas bem diferentes. O estranho tanto pode ser considerado sinônimo de estrangeiro ou de forasteiro – quando é facilmente identificável pela cor da pele, pelos olhos, pela língua, e até mesmo pelos seus hábitos alimentares – como pode ser percebido como um outro desconhecido, ou irreconhecível, modo de apreensão que pode inclusive dominar as percepções daqueles que estão inseguros quanto a sua identidade, ou perdendo as imagens tradicionais de si mesmos. No Bom Retiro, nos encontramos, cotidianamente, com esses tantos outros estrangeiros, outros tantos brasileiros, bem como com os brasileiros estrangeiros e os estrangeiros brasileiros. Encontramos -nos com os coreanos, italianos, poloneses, bolivianos. Conversamos com os cearenses, pernambucanos, baianos, mineiros, gaúchos. Cruzamos com as excursões de compradoras do Sul e Sudeste do Brasil e vimos as gerações de brasileiros cuja língua materna é o coreano, o espanhol, o hebraico. E, neste mesmo fragmento da cidade de São Paulo, nos permitimos abrir um espaço intersubjetivo em que pudéssemos compartilhar o ruidoso e íntimo encontro que passamos a ter, de maneira mais intensa e cotidiana, com esta nossa identidade brasileira: ela própria estrangeira, miscigenada, difusa e, em muitos casos, irreconhecível. Uma conversa com um jornaleiro do bairro nos pareceu muito ilustrativa. Ao se referir à convivência com tantas etnias e religiões, disse o jornaleiro: “esse bairro é o que mais se mistura”. E referindo-se aos diferentes imigrantes que vivem na região diz: “Eu não gosto da imigração porque ela tira o trabalho dos brasileiros, mas o governo não olha pra isso. Eu acho que ele deveria olhar. Eu digo isso, também, porque aqui mesmo no postinho, de cada 10 pessoas atendidas, você pode ver que 6 ou 7 são bolivianos.” Completando ainda: “todos os imigrantes vêm para o Brasil para extorquir. Tem os judeus, que por causa do holocausto teriam um ponto a favor, mas de resto todos os imigrantes só vêm para extorquir”. É relevante mencionar que, ao ser perguntado sobre sua descendência ele disse que é brasileiro, um brasileiro comum, que é baia-

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no e que brasileiro mesmo é quem nasceu no país, no nordeste – disse tudo isso, mas depois comentou que ele mesmo deve ter algum português na família por causa de seu sobrenome. Um outro jornaleiro com quem também conversarmos na região considerou os próprios brasileiros nascidos em outros estados como imigrantes nesse bairro. E, dando continuidade a esta linha de pensamento, bem como à observação das pessoas à nossa volta, nos questionamos em relação àqueles que vivem em outros bairros e cidades, mas que ocupam e transformam o Bom Retiro durante o horário comercial – seriam também estrangeiros? Ou ainda, aqueles que são filhos, por exemplo, de coreanos, mas que desde a infância vivem no Bom Retiro: até que ponto se identificarão com a nacionalidade dos pais e até que ponto a irão estranhar quando atingirem a maturidade? E, deste modo, fomos tendo a impressão de que, neste bairro, é praticamente impossível não refletir a respeito de nossas identidades e, portanto, de nossas origens: Quem somos nós, o que é ser brasileiro o que nos aproxima e o que nos distancia de um paulista, de um mineiro, de um gaúcho, ou de um nordestino? E o que nos aproxima e distancia de um italiano, um judeu, um coreano, um boliviano? como essas perguntas são respondidas ou formuladas pelos filhos de imigrantes, nascidos no Brasil e, portanto, brasileiros; como as nações ou os grupos humanos reconhecem os seus iguais, ou ainda, o que é ser um igual? E, nesse movimento reflexivo e retroativo, também nos defrontamos com a questão mais ampla de nossa identidade, nacional, já descascada camada por camada, como diz Lucy Dias, pelas mentes geniais de Darci Ribeiro, Roberto da Matta, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, etc. ( 1999, p. 10). A partir dos discursos dos jornaleiros, bem como destas reflexões, começamos a nos interessar e também solicitar para algumas pessoas exemplos de espaços no bairro onde as misturas ou a convivência entre as diferentes etnias se evidenciam de maneira mais visível ou concreta. A Rua Prates foi a eleita, tanto por nós, quanto por um motorista de táxi da redondeza e um proprietário de banca de jornais e revistas, como um exemplo de rua de “misturas”. (ver Caderno de imagens – parte I, figura 4).

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5 Sobre a Lei da Cidade Limpa, o site da prefeitura diz: “São Paulo pode se tornar uma Cidade Limpa. A Lei da Cidade Limpa está em vigor desde o dia primeiro de janeiro de 2007. Os responsáveis por anúncios fora das regras serão multados em 10 mil reais, mais mil reais por metro quadrado excedente. [...] A nova legislação [...] tem como objetivo eliminar a poluição visual em São Paulo, proíbe todo tipo de publicidade externa, como outdoors, painéis em fachadas de prédios, backlights e frontlights. Também ficam vetados anúncios publicitários em táxis, ônibus e bicicletas. A legislação ainda faz restrições aos anúncios indicativos, aqueles que identificam no próprio local a atividade exercida. (http://www.prefeitura.sp.gov.br/ portal/a_cidade/noticias/index. php?p=14184)

Andar por toda a extensão da Rua Prates, neste momento em que as placas das fachadas dos estabelecimentos da cidade estão sendo retiradas, em função da “lei Cidade Limpa”5, favorece o exercício imaginativo de nos perguntarmos: “O que será que é aí? Eu acho que é...”, como também obriga que haja entre eu e o outro o estabelecimento de algum tipo de relação, mesmo que se limite a uma relação pontual onde o outro apenas responda: isto é uma escola, ali é uma igreja etc. Se de um lado alguns apenas respondem ao que lhes é solicitado, com outros é possível estreitar os laços e descobrir muitas coisas novas sobre as ruas e o bairro. Entrando por exemplo em uma das Vilas que ainda resistem à verticalidade da cidade e conversando com uma de suas moradoras, fomos nos dando conta de quão destituídas de sentido são as fronteiras religiosas e étnicas, ao menos neste lugar. Na entrada da Vila, em uma de suas laterais está escrito “Rua Padre Edgar Aquino Rocha”, enquanto na outra parede lemos “Sinagoga Adat Ischurun”. Dentro dela, ao lado da sinagoga, algumas crianças coreanas brincam, e no mesmo espaço vemos no asfalto inúmeros resquícios de pintura da bandeira brasileira. Quem chega na Rua Prates, entrando pela Rua Ribeiro de Lima provavelmente será surpreendido com lojas que levam a aqueles que já se familiarizaram com o padrão do comércio do bairro a questionarem seu senso perceptivo ao depararem-se com duas lojas especializadas em artigos para golfe. Mais surpreendidos ainda ficarão se resolverem continuar esta aventura até o fim da rua, pois descobrirão que em pleno centro da cidade há um grande clube de golfe. O Green Golf é utilizado pelos coreanos para treinarem o esporte, mas, ao contrário do que o nome aponta, o único verde que vemos no clube é o da extensa rede disposta ao longo de sua edificação, onde é realizado o treinamento dos jogadores. Na Rua Prates ainda temos o “Clube Coreano”, localizado em uma pequena vila onde é possível jogar Go, um fascinante jogo de estratégia criado na China provavelmente há mais de 4000 anos. (http:// pt.wikipedia.org/wiki/Go) Outra surpresa também envolvendo homens e jogos aconteceu em um outro quarteirão da Rua Prates, a diferença é que, neste caso, os homens montam uma mesa na calçada da rua e jogam dominó

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ou qualquer outro jogo semelhante enquanto aguardam serem chamados para realizar “um bico ou um servicinho” como transportadores de carga das confecções vizinhas. Na Rua Prates, o encontro entre etnias é visível, sobretudo espacialmente. Vemos, por exemplo, colados lado a lado a sinagoga “Beith Itzchok Elchonon” com o “Man Nam Karaokê”6, ou a tradicional Escola judaica “Lubavit” com a “Escola Objetivo Rumos”, estando à sua frente a creche judia “Gana”. Temos ainda lado a lado, como vizinhos, uma mercearia especializada em produtos coreanos e uma outra que vende produtos kasher. A presença de instituições religiosas na rua é imensa, pois além das duas sinagogas já mencionadas, também estão instaladas na Rua Prates a “Igreja Presbiteriana Feliz”, a “Igreja Missionária Oriental de São Paulo” e nos fundos de uma terceira vila ainda temos uma outra instituição religiosa coreana identificada apenas com uma cruz. Ao longo de toda a extensão da rua, estão espalhados diferentes tipos de serviços: oficinas automotivas, chaveiros, borracharias, sendo os donos, em sua maioria, descendentes de italianos.

6 Segundo a Wikipédia: “Karaokê ou caraoquê (japonês [...] formado por [...] kara, “vazia”, e [...] ōkesutora, “orquestra”) – estabelecimento comercial de entretenimento em que qualquer um pode cantar para o público, acompanhado por músicos ao vivo ou playbacks instrumentais.”

O Flâneur, na perspectiva benjaminiana, é uma espécie de detetive que tenta desvendar os significados urbanos da cidade, buscando os indícios em seus menores vestígios. Seguindo seu exemplo, buscamos decodificar o que apreendíamos do espaço, como um cartaz que vimos afixado em um dos muros da Rua Prates, onde estavam escritas as palavras: “Aluga-se Quarto: Queremos pessoas que não trabalhem fora, ou trabalhem em casa, ou durmam durante o dia” seguidas de dois números de telefones, um fixo e outro de um celular. Como não conseguimos nos comunicar por telefone com quem oferecia um emprego ou talvez apenas uma moradia, cada uma de nós criou a sua própria fantasia. “Deve ser para cuidar de um doente, ou idoso” – disse uma. “Não, acho que é para manter movimento na casa” – disse outra. Aos poucos, observando outros tipos de cartazes espalhados pelo bairro e que à primeira vista também nos pareciam esquisitos, fomos compreendendo a provável existência de todo um código de comunicação que é direcionado apenas a um público de iniciados e que não necessita ser explicitado, muito menos questionado.

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Dessa mesma forma percebemos que em alguns estabelecimentos comerciais ou de serviços do bairro imperam códigos sutis de pertencimento, que são transmitidos especialmente através da palavra escrita, seja em cartazes de divulgação de festas ou eventos coreanos, escritos na língua nativa, ou de divulgação de serviços direcionados à comunidade judaica que, ainda que escritos em português, têm apenas este público alvo. Um exemplo é o panfleto que divulgava: “(...) uma nova marca que chega ao mercado, especializada em saias para meninas e mulheres da comunidade judaica. Alegre e criativa para o dia-a-dia e festividades”. Se, de um lado, as palavras nos obrigam a sermos transportados para reconhecermos as diferenças entre a nossa escrita e as diferentes línguas: coreano, hebraico, espanhol; de outro, os diferentes nomes de batismo de lojas e ruas do bairro nos fazem acreditar que vivemos em um mundo sem fronteiras ou barreiras étnicas. Afinal, em qual outro bairro da cidade, por exemplo, encontraríamos cruzamentos como: Rua Guarani com Rua Talmud Thorá, Rua Sólon com Rua dos Italianos ou Rua Sólon com Rua Anhaia? Ou um restaurante tipo self service, cujo proprietário é coreano, com o seguinte escrito na fachada: “servimos comida japonesa, chinesa e brasileira”?

7 Truzzi (2000) menciona existir uma “ideologia anti-pluralista por excelência” no discurso cotidiano dos brasileiros, que se desdobra a partir de argumentos assimilacionistas, considerando a diluição das diferenças étnicas e culturais a forma ideal de relação com o estrangeiro, com o diferente.

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A palavra, diz Merleau-Ponty (1980), não é tradução de sentido mudo, mas criação de sentido. A linguagem não veste idéia – encarna significações, estabelece a mediação entre eu e outro e sedimenta os significados que constituem uma cultura. É ainda o espaço da língua, tal como também o dos jogos, onde uma sociedade explicita mais as regras formais do agir e os funcionamentos que a diferenciam, como nos diz Certeau (1994). Neste aspecto, as palavras emitidas pelas diferentes línguas que habitam o bairro do Bom Retiro, tanto criam e favorecem as assimilações7 entre eu e outro, quanto estabelecem as diferenciações.

metamorfoses Depois de caminharmos durante tanto tempo pelas ruas do Bom Retiro, imaginávamos que chegaria o dia no qual o bairro não mais nos surpreenderia, porém, até agora isso não aconteceu conosco.

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Ainda ficamos espantadas quando nos deparamos com um detalhe inesperado de algo que estava ao nosso lado e que não havíamos percebido, ou quando descobrimos novas facetas daquilo que já havíamos dado como aprendido ou compreendido. O mais curioso é que não é exatamente no espaço idealizado e construído para sermos surpreendidos, a Rua José Paulino, onde sentimos tudo isso. A superexposição de produtos, a repetição de padronagens, cortes, códigos, imagens e gestos, talvez contribuam para que vejamos a rua apenas de uma maneira nua e crua: uma vitrina que reflete e espelha aquilo que tanto os comerciantes quanto os consumidores esperam e querem dela. Neste sentido, a José Paulino é um lugar, ou melhor, um não-lugar, impessoal, onde tudo e todos se transformam em consumo e objeto consumível. Em um não-lugar o caminhante apenas encontra imagens de si mesmo: (...) O único rosto que se esboça, a única voz que toma corpo, no diálogo silencioso que ele prossegue com a paisagem-texto que se dirige a ele como aos outros, são os seus – rosto e voz de uma solidão ainda mais desconcertante porque evoca milhões de outras. (AUGÈ, 1994, p. 94-95).

A experiência de sentir em nossas próprias peles, e tão intensamente, a solidão de tantas outras pessoas no cotidiano do engarrafamento de corpos e veículos da Rua José Paulino talvez tenha favorecido a busca de novas formas para agenciarmos o nosso destino, seja criando rotas alternativas, seja estabelecendo relações afetivas com o singular ou ínfimo. Da mesma maneira, foi esta sensação de não pertencimento às pessoas e ao lugar que abriu possibilidades para que nos colocássemos no lugar do outro, do estrangeiro e dos inúmeros imigrantes que um dia chegaram ao bairro. Entre nós, as que caminham, e eles, os que imigraram, foram ainda surgindo novos vínculos, alguns, inclusive, de caráter próximo e íntimo. Imigrar é ter o desejo de se deslocar e buscar um novo lugar. Caminhar é “abandonar”, largar as pernas e os pés e se deixar levar. “É o ir, sair da eternidade do lugar e do instante”. (Dichtcheknian, 2004, Boletim 17). Em comum aos dois talvez esteja a busca de um solo e a procura de um próprio.

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Uma de nós é bisneta de italianos e filha de imigrantes do interior do estado, outra é a primeira geração em mais de um século nascida fora do estado de Minas Gerais e a outra ainda é ela própria imigrante vinda de uma pequena cidade do estado do Rio Grande do Sul.

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Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. (LISPECTOR, 1999, p.23)

(tentar) vê-la como se ela fosse dada encantada ao nosso mundo pela primeira vez.

Além destas descobertas, caminhar pelas ruas do Bom Retiro também proporcionou a nós três, mulheres que fizeram da psicologia sua escolha profissional, a possibilidade de caminhar pelas nossas próprias Vitrinas e Bastidores. Resgatamos as histórias dos imigrantes em nossas famílias, compartilhamos nossas alegrias e dores, trocamos experiências sobre os namoros, as separações, o casamento, os filhos, o morar com os pais, o sair dos filhos adultos da casa dos pais, o sair dos pais da casa onde moravam com os filhos, o adoecer dos pais, a troca de papéis dos filhos com os pais no avançar da vida. Talvez a intimidade que nos acometeu tenha sido estimulada pela própria prática do espaço.

Resumo: Quando pensamos no bairro do Bom Retiro, São Paulo, possivelmente, uma das primeiras imagens recorrentes que nos vêm à mente é a da Rua José Paulino. Território considerado pelos guias especializados como a rua de compras feminina “mais famosa” do país; estima-se que pelas suas mais de 350 lojas espalhadas pelos seus longos quarteirões, circulem 70.000 pessoas por dia. Quem é ou o que é o Bom Retiro além das fronteiras da José Paulino foi a pergunta que norteou os quatro meses de nosso caminhar pelas suas circunvizinhanças. Andando, recuando e voltando a dar passos e mais passos neste espaço é que fomos construindo a nossa metodologia discursiva do espaço. Paradoxalmente, quanto mais nos afastávamos da José Paulino, mais e mais a compreendíamos. “Além, muito além das fronteiras da José Paulino” é tanto um “relato de espaço”, o ambiente onde as práticas se realizam (CERTEAU, 1994), como o relato de encontros e desencontros entre nós e o outro.

Praticar o espaço é “repetir a experiência jubilosa e silenciosa da infância: é no lugar, ser outro, e passar ao outro”8 (Certeau, 1994, p. 191). Com relação a isso, escreve Marc Augé: A experiência jubilosa e silenciosa da infância é a experiência da primeira viagem, do nascimento como experiência primordial da diferenciação, do reconhecimento de si como si mesmo e como outro, que reitera a do andar como primeira prática do espaço e a do espelho como primeira identificação como imagem de si. Todo relato volta à infância. Ao recorrer à expressão ‘relatos de espaço’, Certeau quer tanto falar dos relatos que atravessam e organizam lugares (...) quanto do lugar que constitui a escritura do relato. (AUGÈ, 1994, p.78).

Todo relato, nesse sentido, é escrito antes mesmo de ser lido. E se compreendermos um relato dessa maneira, também reconheceremos que relatar algo que já foi vivido não se limita apenas a reviver acontecimentos, deslocar palavras no espaço e tempo, classificar ou organizar palavras pensamentos justapostos e inscritos nas gavetas dos guardados da memória, mas sim, abrir-se também à criação de um novo conhecimento. Relatar uma experiência, portanto, não é apenas revê-la ou vê-la de outra forma ou maneira. É, sobretudo, (tentar) suspender o nosso juízo, desconhecê-la e

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Palavras-chave: Bom Retiro, relato de espaço, Alteridade.

Abstract: When we think about the neighborhood of Bom Retiro, São Paulo, possibly one of the first recurring images that comes to our minds is that of the José Paulino street. It is considered by specialized guides to be the most famous female-oriented shopping street for women in the country, and the number of visitors to the more than 350 stores spread along its long blocks is estimated at 70.000 people daily. Who is or what is Bom Retiro beyond the frontiers of José Paulino street? That was the question which oriented our walks in its surroundings during four months. By walking, retreating and again taking more and more steps in this territory, we created

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bibliografia

a sort of discursive methodology for it. Paradoxically, the further away we went from this the street, the more we understood it. “Beyond, well beyond the frontiers of José Paulino Street” is as much a territorial report, the environment where practices occur (Certeau), as a report meetings and failures to meet between us and others.

AUGÉ, M. Dos lugares aos não-lugares. In.:______ Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. [Trad.: Maria Lúcia Pereira]. São Paulo: Papirus, 1994:.71-106. (Coleção Travessia do Século).

Keywords: Bom Retiro, territorial report, Alterity.

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Resumen: Cuando pensamos en el barrio del Bom Retiro, en São Paulo, posiblemente, una de las primeras imágenes recurrentes que se nos viene a la mente es la de la Calle José Paulino. Territorio considerado por los guías especializados como la calle de compras femeninas “más famosa” del país, se estima que por sus más de 350 tiendas diseminadas a lo largo de sus cuadras circulen 70.000 personas por dia. Quién es o qué es el Bom Retiro más allá de las fronteras de la calle José Paulino fue la pregunta que orientó los cuatro meses de nuestro caminar por su circunvencindad. Andando, retrocediendo y volviendo a dar pasos y más pasos en ese espacio, que fuimos construyendo nuestra metodología discursiva del espacio. Paradójicamente, cuanto más nos alejábamos de la calle José Paulino, más y más la comprendíamos. “Más allá, mucho más allá de las fronteras de la calle José Paulino” es tanto un relato de espacio, el ambiente donde las prácticas se realizan (Certeau, 1994), como el relato de encuentros y desencuentros entre nosotros y el otro. Palabras clave: Bom Retiro, relato de espacio, Alteridad.

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Recebido em 03/09/2007 Aprovado em 16/09/2008

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a arte moderna e os imaginários da alteridade José D’Assunção Barros Universidade Severino Sombra (USS), Vassouras Conservatório Brasileiro de Música Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense

Um dos dados mais relevantes que assinalam o desenvolvimento da moderna Arte Ocidental que se estabelece a partir de fins do século XIX está nas múltiplas maneiras como esta arte pôde ser renovada a partir de contatos com a sua alteridade cultural e com os imaginários correspondentes a esta alteridade. Saturados de padrões de representação que vinham se desenvolvendo desde a Arte Renascentista, de técnicas há muito utilizadas nas várias esferas da produção artística, e também saturados de uma forma específica de ver o mundo que se transpunha sintomaticamente para as obras de arte, os artistas ocidentais modernos deixaram-se invadir em momentos distintos da sua história por esta alteridade que eram o Oriente, a África, a Oceania, a América nativa. Estes caminhos em direção ao “outro” e seu imaginário vieram a constituir um movimento bastante amplo, que estende sua abrangência às várias formas de expressão e gêneros artísticos da arte ocidental. Podemos vê-lo na Pintura, na Escultura, na Música, na Literatura, na Poesia. E podemos também associar esta retomada mais recente das outras culturas a um fenômeno ainda mais geral – que se esbate na própria ‘crise de descentramento’ do homem

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ocidental, quando este começa a questionar a sua visão etnocêntrica do mundo e a ideia evolutiva de que ele mesmo era um ponto mais avançado e civilizado a ser atingido pelas culturas que antes considerava primitivas. Na verdade, o fascínio pelo “outro” nas sociedades europeias não constituiu propriamente uma novidade aflorada apenas às portas da modernidade artística. Essa atração, de um modo ou outro, vinha desde tempos remotos caminhando a par do “medo do Outro”, do seu estranhamento, da vontade de submetê-lo – e a sua história é tão extensa quanto complexa. Contudo, é necessário demarcar com toda a precisão possível a singularidade da assimilação e reelaboração da alteridade pela arte Ocidental de fins do século XIX e da primeira metade do século XX. A princípio, esta singularidade pode ser iluminada a partir do seu contraste com o interesse da Arte Romântica pela alteridade, que tinha ocorrido nas décadas anteriores mas por um viés bem distinto. De fato, também os artistas românticos haviam se interessado pelo Oriente, pela África e pela América. Delacroix (1798-1863) e tantos outros pintores haviam retratado personagens e ambientes orientais, haréns turcos e cenas islâmicas; e a Literatura ocidental já tinha, à mesma época, descoberto estes mesmos temas, lançando um olhar para as outras culturas do seu tempo ao mesmo tempo em que lançava o outro olhar para antigos mundos do seu passado histórico que haviam sido desdenhados pelos pintores neoclássicos – como a enigmática Idade Média, por exemplo. No Brasil do século XIX, e na América de modo geral, pintores-viajantes vindos da França, da Inglaterra, da Itália, da Alemanha e de outras partes da Europa buscaram avidamente novos ambientes para serem retratados e descritos. Contudo, o que buscavam estes diversos artistas no Oriente, na África e na América? Como assimilavam estes artistas estes imaginários, ou, antes, como os construíam a partir de sua forma específica de perceber o “outro” – para eles um “outro” oriental ou primitivo, conforme o caso? Os artistas românticos – podemos ensaiar aqui uma resposta a este enigma que foi a assimilação da arte dos outros povos e do imaginário da alteridade pela estética Romântica – buscavam na verdade o “exótico”, a alteridade como elemento para surpreender, em alguns

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casos para questionar uma realidade que os desapontava ou da qual eram críticos, em outros casos para exercer um trabalho de erudição sobre as exóticas civilizações orientais ou sobre os “selvagens” povos nativos da África e da América. Conforme se vê, o interesse da Arte e da Literatura Romântica pelas culturas não-ocidentais era sobretudo um interesse temático, às vezes motivado pela curiosidade de antiquários que havia sido trazida pelo historicismo tão típico do século XIX, às vezes motivado por uma vontade de evasão da dura realidade da qual muitos artistas eram críticos, ou ainda por uma vontade de vivenciar intensamente as fortes emoções da alteridade. Os imaginários da alteridade foram tratados pelos românticos como fonte para temas exóticos, sobretudo isto, neste caso contrapostos positivamente ou negativamente à própria imagem que faziam da sua realidade ocidental. (ver Caderno de imagens – parte II, figura 1 - Delacroix, A Morte de Sardanapalu, 1827-28). Examinemos agora uma situação bem distinta. O que buscaram os movimentos modernos nestas outras culturas e civilizações, que os diferencia tão radicalmente da postura romântica? Como estes movimentos de apropriaram dos imaginários da alteridade, ou os construíram a partir de uma nova maneira de perceber o outro? Esta indagação remete inicialmente a uma questão complexa que se refere a uma delimitação (talvez impossível) dos primórdios da modernidade e dos movimentos que já podem ser legitimamente categorizados como “modernos”. Embora esta seja uma questão polêmica e que teremos que discutir mais adiante, pelo menos para o aspecto aqui dissertado será bastante oportuno considerar a modernidade ou a pré-modernidade dos Impressionistas, pois eles foram certamente os primeiros artistas a examinarem as culturas não-ocidentais de uma nova maneira que não a meramente pautada pela sensação do “exótico”. Logo veremos que, na sua assimilação da arte oriental, os impressionistas buscavam não tanto uma renovação de temas, embora isto também pudesse ocorrer lateralmente, mas principalmente novos padrões de expressão e representação, novas possibilidades técnicas e materiais, ou até mesmo novas maneiras de conceber a arte. Esta mesma busca de novos meios e padrões que pudessem renovar a arte, mais do que os temas, estaria também por trás do

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interesse de alguns artistas modernos por culturas antigas que não a civilização Greco-Romana – esta que fora a matriz da tradicional concepção artística do Ocidente através de sua retomada renascentista e de seus desenvolvimentos posteriores. O que os artistas do período moderno ou pré-moderno buscavam na alteridade cultural de sua própria época, ou na alteridade histórica de civilizações como o Antigo Egito, era sobretudo uma possibilidade de renovar a arte a partir dos seus próprios meios. Pela primeira vez os artistas ocidentais se interessavam mais sistematicamente não pelo “outro cultural” como tema para a sua arte sempre ocidental – mas sim pela própria arte deste outro. Estes artistas motivaram-se simplesmente a aprender algo com a Arte do Oriente, da África, da América nativa e da Oceania. Eles ousaram renovar a sua arte a partir de um exame atento da arte de outros povos, e não se limitaram simplesmente a utilizar temas oriundos destes povos para tratá-los à maneira ocidental tradicional. Pode-se dizer que os artistas pós-românticos e modernos, mais do que um interesse pelos imaginários da alteridade como mero repertório de imagens a serem artisticamente trabalhados por uma concepção criativa ainda ocidental, começam a se interessar pelos imaginários da alteridade como fontes para aprender um novo modo de imaginar o mundo, de representá-lo, de transfigurá-lo. Passa-se da mera apropriação romântica de um imaginário do “outro” como arquivo passivo de imagens, para uma reapropriação dos imaginários da alteridade como fonte viva de processos para alimentar a imaginação, para abrir a mente ocidental a novos modos de conceber o mundo, para renovar a própria técnica de recriação do mundo. Uma rápida digressão faz-se aqui necessária. É verdade que, para o caso da inclusão do Impressionismo como campo estético propriamente moderno, devem ser colocadas algumas ressalvas, sobretudo diante do contra-argumento de que os pintores impressionistas não divergiram propriamente do grande ‘paradigma naturalista’ que vinha se desenvolvendo desde o Renascimento. De fato, os impressionistas também queriam pintar a Natureza tal como a viam – embora estivessem prontos a discutir o que era visto realmente por um observador verdadeiro. De certo modo, a sua pesquisa sobre os reflexos das cores visava à criação de uma réplica ainda mais

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perfeita da impressão visual – ainda que eles tenham revolucionado os meios e técnicas na sua busca de novas possibilidades de representação visual. Tudo isto pode ser contra-argumentado quando se fala na modernidade dos impressionistas. Mas o fato é que, para uma discussão acerca das novas relações que se estabeleceram entre a moderna Arte Ocidental e as outras culturas, será bastante conveniente iniciar pelos artistas impressionistas – uma vez que estes precedem nesta busca os movimentos mais modernos que lhes seguiram no decorrer do século XX. Assim, artistas como Claude Monet, Toulouse-Lautrec e Degas podem ser citados como empreendedores extremamente significativos nesta nova direção. Da mesma forma, é inegável que a primeira alteridade redescoberta pela moderna Arte Ocidental como fonte para novos meios e padrões de expressão, ou mesmo para uma nova concepção de Arte, foi seguramente a Arte do Extremo Oriente. Existem razões históricas que favoreceram, em fins do século XIX, o contato mais sistemático entre a civilização ocidental e a arte que se fazia no extremo oriente. Pode ser citado por exemplo um tratado comercial entre a França e o Japão no ano de 1858, que facilitou muito o acesso dos franceses a produtos japoneses, e também é imprescindível lembrar uma mostra internacional que ocorrera no ano de 1867 – na qual o Japão se fez presente com inúmeras peças de cerâmicas e xilogravuras (ukyo-ês). Mas, tal como já foi dito, o interesse pelo Extremo Oriente então despertado nos artistas impressionistas – distintamente do mero interesse pelo exótico despertado nas pessoas comuns da mesma época – deve ser atribuído antes de mais nada a um forte interesse de renovação estética e técnica, de modo que o acesso facilitado a peças oriundas do extremo oriente apenas entrou basicamente como um elemento dinamizador deste processo. Dito de outra forma, os artistas impressionistas buscaram a arte oriental porque precisaram dela, e não porque tiveram repentino acesso a elas através do comércio de produtos orientais. Um dos pioneiros na reelaboração de uma influência oriental na pintura impressionista foi seguramente Claude Monet (1840-1926), que acentuara seu interesse pela arte japonesa a partir de 1866 – ano em que viajara para a Holanda. Este país, diga-se de passa-

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1 Sobre estes vários aspectos, ver HASHIMOTO, 2002.

2 Entrevista reproduzida em MACHADO, 1988, p.13.

gem, desde o século XVI já cultivava uma ligação comercial bastante significativa com o Oriente, de modo que mesmo Rembrandt (1606-1669) – um pintor barroco do século XVII – já havia se interessado discretamente por estampas japonesas, inspirando-se para algumas de suas gravuras na economia de traços e na ocorrência de espaços vazios que era bastante típica das aguadas japonesas1. Desta forma, é bastante sintomático que Monet tenha acentuado seu interesse pelas estampas japonesas durante sua estadia na Holanda, se bem que o pintor francês tenha declarado em uma entrevista depois publicada que já conhecia a pintura japonesa antes desta data2. De qualquer maneira, ele confirma que foi na Holanda que conseguiu adquirir um relevante lote de estampas japonesas. É também de 1867 um quadro igualmente sintomático de Monet – o Terasse à Sainte Adresse – onde já aparecem aspectos inspirados no padrão oriental de imaginar e representar o mundo. Entre estes elementos, podemos indicar sua representação das ondas do mar, tratadas com certo decorativismo estático que conferem à pintura a sensação de estarmos diante de um cenário de teatro. De igual maneira, ao par de uma perspectiva ocidental empregada no sub-ambiente pictórico do Terraço, ele desenvolve recorre a uma visão tipicamente oriental quando passa à representação do céu e do mar, situando todos os seus elementos num mesmo plano. Observa-se ainda que as figuras humanas neste quadro de Monet são bem pouco individualizadas, de modo que elas assumem um papel fundamentalmente plástico na composição (Machado, 1988, p.13). (ver Caderno de imagens – parte II, figura 2 - Monet, Terasse à Sainte Adresse, 1867). Este quadro dificilmente seria explicável sem a inspiração da arte oriental, posta a dialogar com elementos mais marcadamente ocidentais. A apropriação artística das estampas japonesas por Monet e outros impressionistas foi de fato uma grande fonte de renovações, e será útil entender em linhas gerais o que caracterizava estas estampas – tanto do ponto de vista de seus materiais como do ponto de vista de suas técnicas e formas de construção das imagens. As gravuras denominadas ukyo-e (palavra que poderia ser traduzida como “mundo flutuante”) surgem no Japão ainda no século XVII –

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no decurso do chamado período Edo (1603-1868) – e adquirem um grande impulso com a arte de Hishikawa Moronobu (1618-1694). As estampas do “mundo flutuante” estavam na sua origem limitadas ao contraste entre o preto e o branco, mas logo foram incorporando outras cores até atingir uma policromia bastante rica. Entre os temas preferidos de Moronobu destacam-se a representação de flores, de pessoas passeando à noite à beira do rio Sumida, da figura feminina, ou de pessoas entretendo-se com pequenos jogos. Mas desde já é muito importante ressaltar que as figuras nas estampas de Moronobu assumem uma função fundamentalmente plástica na composição. Elas são em geral pouco individualizadas, o que reforça a sua função como elementos da composição entre outros – pretextos para o desenho e para o trabalho com a cor, e não tentativas de imitação da realidade ou da natureza à maneira ocidental. As estampas policrômicas de Moronobu foram depois transferidas para placas de madeira que permitiam a impressão em quantidades maiores, daí originando-se o gênero das xilogravuras. Mais tarde surgiriam outros mestres de importância fulcral, e que tiveram seus trabalhos bem difundidos no Ocidente, como foi o caso de Hokusai (1760-1849) – autor da célebre gravura “A Onda”. (ver Caderno de imagens – parte II, figura 3 - Hokusai. A Grande Onda de Kanagawa das “36 vistas do Mount Fuji”, 1823-29). Do ponto de vista da concepção de arte, os artistas japoneses oriundos da arte Edo estavam atentos a alguns princípios estéticos fundamentais – como a “myabi”, que significa algo como “elegância refinada”, a “wabi” (prazer da tranquilidade), a “sabi” (simplicidade elegante), e o “mono no aware” (pathos da natureza). Estes princípios viriam a calhar para a estética de alguns dos pintores impressionistas, particularmente para o seu caráter contemplativo e seu refinamento intimista, e não é de surpreender que as estampas japonesas tenham sintonizado tão bem com as suas aspirações estéticas. Emerge aqui, das gravuras japonesas, não apenas um outro modo de representar o mundo, mas também de concebê-lo, de imaginá-lo, de vivenciá-lo na imaginação criadora. Mais do que a ocorrência de certas imagens afeitas à realidade oriental, tem-se aqui, neste imaginário da alteridade, um certo modo de viver esta realidade na imaginação criadora, um ambiente gerador de certas

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posturas perante o mundo e, como desdobramento, de certas técnicas para representá-lo. Podemos neste ponto retomar a questão da assimilação da alteridade japonesa pelo Impressionismo. Outra pintura de Monet bem significativa nesta direção é La Plage de Trouville (1870), que alguns autores cotejam com uma das estampas japonesas da coleção do próprio Monet (ver Caderno de imagens – parte II, figura 4) , atribuída a Utamaro Kitagawa (c.1797). Como este quadro, poderiam ser citados outros exemplos de Monet e também de outros pintores como Renoir, Toulouse-Lautrec, Degas, e antes deles Manet. Mas o que nos interessa por hora é destacar que Monet não vai buscar nestas estampas o tema (que ele na verdade adapta a motivos do Ocidente), mas sim novas técnicas de uso da perspectiva, de representação das figuras femininas de modo pouco individualizado – o que lhes confere um valor eminentemente plástico e não temático – bem como a representação de diversos elementos figurativos praticamente sem volume. Citaremos, por fim, o emprego de pinceladas largas, planas e espessas, que terminam por unificar a composição de uma maneira que à época era pouco empregada no Ocidente. Assim como Monet, outro pintor da belle-époque que se inspirou na gravura japonesa para renovar a sua arte foi Toulouse-Lautrec (1864-1901). Ele acompanha Degas (1834-1917) na sua busca de uma economia de meios, e a aplica a um novo gênero que torna a sua arte singular e única: o cartaz. Foi precisamente com as gravuras japonesas que Toulouse-Lautrec (ver Caderno de imagens – parte II, figura 5 - Toulouse-Lautrec, Le Divan Japonais) percebeu o impacto impressionante que uma ilustração poderia trazer se a modelagem e o detalhamento fossem sacrificados em nome de uma audaciosa simplificação. Assim, mais uma vez temos o exemplo de uma renovação na forma e meios de expressão através de lições extraídas da alteridade oriental. Conforme pudemos verificar através dos exemplos acima ressaltados, o que Monet, Toulouse-Lautrec e outros impressionistas buscam nas estampas japonesas é essencialmente da ordem da forma, da técnica, do uso da cor e do espaço, da concepção estética – e não do âmbito dos materiais temáticos, que era precisamente o

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que havia atraído alguns artistas românticos para uma assimilação de outro tipo do Oriente. Bem ao contrário, os impressionistas franceses de fins do século XIX estão mais interessados no desenho franco e límpido das estampas japonesas, em que a elegância e a força do conjunto é acentuada pela ocorrência de uma espécie de “claro-escuro descontínuo, oposto ao ocidental e fugindo ao modelado”3. Em poucas palavras, eles estão interessados em extrair da arte japonesa (mas também da chinesa) precisamente aquilo que pode ajudá-los a renovar os seus meios e formas de expressão.

3 Sobre isto, ver PEDROSA, 2000, p.291.

Nesta mesma direção, vale destacar que a maior lição que os pintores impressionistas puderam extrair das estampas japonesas foi a possibilidade de compreenderem – a partir do contraste com uma arte não viciada pelas regras e convenções acadêmicas europeias – o quanto estas convenções e lugares-comuns ainda persistiam entre eles, mesmo que disto nem sempre se dessem conta. Eles percebiam, portanto, que contemplar a alteridade poderia ajudá-los a entender os limites de sua própria arte, e com isto impulsioná-los para a renovação. Na mesma época em que os pintores impressionistas empreendiam as suas pesquisas no campo das artes visuais, a Música Impressionista também nos oferecia uma contribuição análoga através das composições mais modernas de Claude Debussy (1862-1918). Este compositor francês também se encantou com os modos musicais orientais, e vislumbrou a possibilidade de empregá-los para romper com o já saturado campo da tonalidade tradicional, que desde o período barroco limitava os músicos ocidentais a apenas dois padrões de escalas heptatônicas (os nossos modos Maior e Menor). Ele investiu precisamente na utilização de antigos modos já esquecidos (os antigos modos medievais), mas também na utilização da Escala Chinesa de cinco sons, também conhecida como “modo javanês”. Os resultados desta apropriação de modos orientais encontra-se em músicas como os Arabescos para piano ou o noturno Nuages, para orquestra (1899). Seu sucessor no impressionismo musical francês, Maurice Ravel, segue por direções análogas, e o seu Quarteto de Cordas (1903) nos dá um bom exemplo do emprego da escala pentatônica oriental. De qualquer modo, é interessante ressaltar que estes músicos também empregaram meios

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e materiais da música oriental para reformular a música moderna, e não para produzir meras referências temáticas, como o fez – à maneira romântica – o compositor Puccini em sua ópera Turandot (1924). Assim, para além de um novo imaginário sonoro – que a seu tempo também é recuperado por estes músicos impressionistas – tem-se aqui o concurso à penetração em uma nova “imaginação sonora”. A escala pentatônica remete-nos, na verdade, a uma nova visão de mundo através da música, bem distinta do jogo de tensões e distensões promovido pela harmonia tonal e suas duas escalas fundamentais. Voltando ao campo das artes visuais, é interessante notar que as mesmas estampas japonesas que haviam encantado os pintores impressionistas, como Monet, continuaram se abrindo também à inspiração de outros artistas e movimentos, mas agora através de aspectos novos e igualmente fundamentais para a revolução dos meios de representação e expressão, que não os antes destacados para o caso dos impressionistas. Assim, o que seduz Van Gogh (1853-1890), fauvistas representados por André Derain e Matisse, ou os pontilhistas liderados por Seurat e Signac – pintores que adentram mais ainda o espaço da modernidade – não é mais a largueza da composição e as áreas contrastadas claro-escuras que tanto tinham chamado atenção dos impressionistas franceses. Van Gogh e os fauvistas, em especial Henri Matisse (1869-1954), apreendem nestas estampas algo bem peculiar: as vastas superfícies sem sombras, e mais particularmente ainda as cores puras, às quais dariam um tratamento chapado de modo a assegurar uma intensidade de expressão. Adentram, pode-se dizer, uma nova faceta do imaginário artístico oriental, penetrando-o através de uma certa dimensão da imaginação visual que se permite perceber o mundo como constituído por cores que implicam em padrões de intensidade, energias visuais puras, diretamente conectadas a um universo correspondente de sentimentos. A comprovação de que Van Gogh aprendeu sistematicamente as estampas japonesas – não fosse a própria intensidade de cores puras e efeitos à maneira oriental que podemos encontrar nas suas pinturas – pode ser buscada em diversos estudos de Van Gogh que apresentam um explícito paralelo com algumas estampas japone-

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sas da época. Entre elas, podemos citar Chuva na Ponte e As Três Árvores (ver Caderno de imagens – parte II, figura 6). A descoberta ocidental do impactante efeito das “cores puras” pode ser associada a uma segunda leitura modernista da arte oriental, ou pelo menos esta descoberta teria sido algo acelerada pela instigante conscientização de alguns artistas ocidentais com relação ao fato de que a arte oriental já lidava muito mais livremente com a cor do que a pintura europeia De fato, para muitos artistas orientais, mesmo quando envolvidos com a representação de uma cena ou objeto, não havia qualquer obrigatoriedade de se aproximar da “cor local” – isto é, da cor que determinadas figuras ou objetos teriam na sua situação de origem. Vale dizer, estes artistas se permitiam a dar um tratamento muito mais subjetivo à cor, e também buscavam superar as próprias limitações da visão humana criando um universo de cores que tinha a sua própria lógica interna, sem necessariamente estarem atrelados a uma mera imitação das possibilidades cromáticas oferecidas pelo mundo circundante. A cor era para alguns deles uma possibilidade de reconstrução de uma realidade que tinha as suas próprias regras, um elemento expressivo de alta significação. Percebe-se aqui, que o imaginário proposto pelos artistas orientais, e a seu tempo reapropriado por fauvistas e expressionistas, conduzia a uma nova forma de conceber e de imaginar o mundo, reconstruindo-o a partir da cor. No Ocidente, esta nova postura frente à cor começara a irromper a partir de Van Gogh e Gauguin. É verdade que, mesmo antes, já havia sido iniciada uma extraordinária pesquisa pictórica com as experiências impressionistas em torno dos efeitos de luz e cor extraídos da própria Natureza – e são bons exemplos disto as diversas representações que Monet fizera da Catedral de Rouen (1894) em momentos diferentes do dia e em condições atmosféricas diversificadas. Mas já havia pintores igualmente modernos que não mais se contentavam com os delicados matizes impressionistas habitualmente explorados por pintores como Renoir e Monet, e alguns já consideravam as paletas impressionistas um tanto monótonas4. De igual maneira, muitos já não viam porque seguir os ditames da Natureza com relação às possibilidades cromáticas. Pintores como Henri Matisse, André Derain e Maurice Vlaminck vinham se interessando cada vez mais em

4 Van Dongen, que futuramente participaria do grupo dos fauvistas, teria assim se referido à tendência da qual ele faria parte: “É possível falar sobre a escola impressionista, porque os impressionistas sustentaram certos princípios. Para nós, não havia nada disso, pensávamos apenas que as cores dos impressionistas eram um tanto monótonas” (WHITFIELD, 1991, p.11).

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explorar os caminhos que haviam sido abertos pelo pioneirismo de Vincent Van Gogh e de Paul Gauguin. Eles logo tenderiam a preferir francamente as paletas fortes e vibrantes, e em alguns casos a substituir a indefinição impressionista por contornos delineadamente pesados. É extremamente significativo o papel inspirador que seria desempenhado pela arte oriental – mas também pela chamada “arte primitiva” dos povos africanos – num dos mais importantes movimentos artísticos do princípio do século XX: o Fauvismo. Na verdade, estes artistas já vinham amadurecendo um caminho pictórico onde se destacava de maneira bem especial a franca utilização de cores puras e uma aplicação bem mais generosa da tinta na tela, e podese dizer que a nova leitura da alteridade oriental em um pintor como Henri Matisse (1868-1954) desempenha aqui o papel de uma descoberta de algo que já estava dentro dele mesmo. Matisse extraíra das estampas japonesas algo bem distinto daquela serenidade e refinamento que havia encantado os pintores impressionistas. Sua atenção tinha se voltado mais especificamente para as vastas superfícies sem sombras que aparecem em algumas destas estampas, e obviamente para as cores puras que ali surgem de maneira franca e desimpedida. Aponta-se também em Matisse uma inspiração na cerâmica persa, da qual o pintor aprendera “a arte de combinar de um modo decorativo” (a expressão é do próprio Matisse, em um artigo que fez alguma sensação na sua época). Dentro deste espírito, uma tela pintada por Matisse em 1904 – Luxo, Calma e Volúpia – já mostra figuras nuas radicalmente simplificadas, de modo que elas terminam por assumir no conjunto uma função essencialmente decorativa. Tudo nesta tela já conspira para pôr abaixo uma longa tradição paisagística que até então havia se desenvolvido na arte ocidental (ver Caderno de imagens – parte II, figura 7 - Matisse, Luxe, calme et volupté, 1904). Antes de serem percebidos como corpos femininos, as figuras de mulheres nuas que estão dispostas na tela são essencialmente formas que desempenham uma função plástica no conjunto. Formas que, por sua vez, não deixam de ser invólucros que abrigam pequenas manchas de cores puras (Muller, 1976). Da mesma maneira, a árvore, a linha da praia e o barco – dispostos na parte direita da

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tela – desempenham fundamentalmente o papel de unificar a superfície pictórica num único plano espacial. Cada elemento nesta tela tem uma função eminentemente decorativa. É também interessante notar que Matisse reapropria-se neste quadro da técnica pontilhista, que havia sido desenvolvida por Seurat nos anos anteriores e que consistia basicamente em justapor pontos ou pequenas manchas de cores de modo a produzirem um efeito ótico a certa distância. O pontilhismo era uma das sensações da época, e Signac – um dos alinhados de Seurat nesta nova técnica pictórica – havia registrado em seu ensaio sobre a pintura moderna aquilo que logo ficou conhecido como “teoria do divisionismo da cor” (Signac, 1899)5. Segundo esta teoria, as cores deveriam ser aplicadas em doses cuidadosamente calculadas de cores complementares. O pontilhismo proposto por Matisse em Luxo, Calma e Volúpia tinha contudo as suas singularidades. Tratava-se de um pontilhismo que explorava cores bastante fortes, e não a paleta discretamente suave e aveludada que costumava predominar nas telas de Seurat e Signac. Matisse avança aqui em novas direções, deixando que as cores ajam e reajam intensamente umas sobre as outras. Grosso modo, se é que tal imagem pode ser empregada, tinha-se aqui uma espécie de “pontilhismo oriental”, lançando mão de cores fortes e buscando francamente um efeito decorativo. Em alguns aspectos, este emblemático quadro antecipa os caminhos que logo seriam seguidos por Matisse em direção a uma arte que a si mesma impunha uma meta tão decorativa quanto a que o pintor apreendera das gravuras japonesas e da cerâmica persa, e que cada vez mais se concentraria em explorar um novo e vivo universo de cores.

5 Esta obra – que era ao mesmo tempo um panorama da arte moderna e um panfletomanifesto destinado a fornecer um embasamento teórico ao sistema científico da divisão da cor – tornara-se na época uma das leituras básicas de alguns dos artistas do movimento “fauve”.

Luxo, Calma e Volúpia chamou imediatamente a atenção de André Derain, Maurice Vlaminck e outros jovens pintores que ansiavam por uma renovação pictórica através de novas possibilidades de tratamento da cor e do desenho. Seguindo nesta nova direção, os Fauvistas realizariam a sua célebre exposição em 1905 – marco de um movimento que, embora de curtíssima duração, teria profunda repercussão na arte moderna. Matisse, o principal nome do movimento, prosseguiria explorando de maneira cada vez mais audaciosa as cores puras e os efeitos decorativos, frequentemente evocando um padrão oriental de tratamento da cor e do desenho.

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O Oriente Islâmico encontra a obra de Henri Matisse através de dois caminhos bastante significativos. Para além da já mencionada cerâmica persa, a presença da tapeçaria islâmica aparece tanto como influência decorativa como sob a forma de motivos incorporados pelo pintor em suas cenas de interiores. É o que ocorre, por exemplo, em Natureza Morta com Tapete Vermelho (1906), tela que estabelece um significativo diálogo entre a planura oriental e a profundidade ocidental, e que muitos autores apontam como o marco inicial da pintura decorativa de Matisse (Essers, 2002). De maneira análoga, não há como ignorar a presença da tapeçaria persa em uma das mais famosas composições do pintor francês, A Sala Vermelha (ver Caderno de imagens – parte II, figura 8 - Matisse. Harmony in Red,1908). O vermelho, o verde e o azul na sua modalidade mais pura – sempre organizados de maneira a reagirem intensamente uns sobre os outros – eram também típicos da cerâmica persa até o século XIII, neste caso utilizados para a criação de superfícies ornamentais. São estas mesmas cores que Matisse escolhe para dois de seus mais famosos quadros: A Música e A Dança, ambos datados de 1910. Ambos os quadros apresentam os mesmos elementos: cinco corpos humanos vermelhos, um monte verde, um céu azul. Em A Dança (ver Caderno de imagens – parte II, figura 9 – Matisse, 1910) os corpos estão em movimento, integrados por uma dinâmica unificadora que se estabelece através de uma disposição oval dos dançarinos de mãos dadas, sugerindo-se claramente um movimento no sentido horário dos ponteiros de um relógio. O movimento e a passagem do tempo entrelaçam-se, portanto, nesta que é uma das obras-primas de Matisse. Os dançarinos, unidos através do movimento circular e incessante, transformam-se desta forma nas engrenagens de um tempo circular e eternamente renovado – tempo oriental, que gira em círculos, e não linear e progressivo como aquele à que nos habituamos no ocidente. A Música (ver Caderno de imagens – parte II, figura 10 – Matisse, 1910) também lida com possibilidades simbólicas análogas. Ao contrário do movimento e da integração que vimos em A Dança, cada figura está neste segundo quadro isolada e imobilizada. Contudo, se olharmos com maior atenção veremos que as cinco figuras

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estão dispostas conforme um curioso alinhamento, como se fossem as notas de uma escala. Não teremos aqui a escala ocidental – constituída de sete notas musicais – mas sim a escala oriental, uma escala pentatônica que os músicos ocidentais só haviam trazido para a sua música em tempos recentes, particularmente a partir de Claude Debussy e Maurice Ravel. Percebe-se, neste caso, que Matisse articula dois imaginários de alteridade: ao imaginário visual trazido pelo sistema de cores puras, inspirado na Arte Persa, vem se juntar imaginário sonoro chinês – berço da escala pentatônica – evocado através da alusão às cinco notas de uma escala oriental. Cada uma destas notas, adicionalmente, é ela mesma representada pela figura de um músico, de modo que se tem a imagem onírica da Música por dentro da Música. Tematicamente, um golpe de mestre; tecnicamente, uma obra prima; historicamente, o momento sublime onde um artista ocidental torna-se o ponto de conexão de dois imaginários de alteridade, prestando uma homenagem à Arte/ Música Oriental que lhe permitiu, a ele e a outros artistas modernos do ocidente, transmudar a sua própria arte através de uma nova maneira de assimilar a alteridade. Se a descoberta do impactante efeito das cores puras fora decorrência de uma segunda leitura modernista da arte oriental, já posteriormente as estampas japonesas se abririam ainda a uma terceira leitura de aspectos, demonstrando a sua riqueza como fonte renovadora para a Arte Ocidental. Mário Pedrosa capta de maneira bastante arguta este terceiro momento de releitura quando afirma que “hoje sabemos admirar-lhes também o poder expressivo das linhas”. Ele refere-se, neste ponto, a um momento da História da Arte que já assistira aos avanços da Arte Concreta e Neo Concreta – tendências modernistas que tinham chamado a atenção precisamente para uma importância reelaborada da linha, e que por isto permitia uma releitura das estampas japonesas na direção deste aspecto (Pedrosa, 1979). Vale lembrar ainda, antes de passar a uma avaliação de outras alteridades assimiladas pela moderna Arte Ocidental, que a arte produzida no Japão segue influenciando a renovação pictórica do ocidente em outros momentos. É conhecida a influência do abstracionismo informal de Kosaka Gajin (1877-1953) através dos Estados Unidos,

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ajudando a consolidar a tendência americana do Expressionismo Abstrato que foi levada adiante por pintores como Pollock (19121956) e De Koning. Por fim, se falamos da influência oriental na moderna arte ocidental, poderíamos ter discutido também o outro caminho: como o Ocidente influencia a arte oriental. A produção artística do período Meiji, entre 1868-1912, documenta a influência de um tradicional figurativismo ocidental na arte japonesa daquele período. E, mais além, os mais modernos artistas japoneses também se inspiraram na arte ocidental mais inovadora. Mas isto já fugiria ao tema que estamos aqui abordando, que é o do papel da alteridade na renovação da arte ocidental. Uma segunda alteridade a influenciar decisivamente a moderna Arte Ocidental seria aquela que os europeus do fim do século XIX e do início do século XX viram na sua época como uma “alteridade primitiva”. Aqui aparecem como novas fontes de renovação a arte produzida pelos povos ágrafos – como os de algumas regiões da América nativa, da Oceania, da África. Paul Gauguin (1848-1903) é pioneiro nesta direção. Ao contrário do refinamento impressionista, que pôde encontrar na delicadeza de algumas gravuras japonesas e chinesas uma excelente fonte de renovação, Gauguin estava mais interessado em obter vigor e intensidade de sentimentos. Crítico dos rumos da civilização ocidental, ele buscava uma vida mais simples, mais instintiva, ou até mesmo mais “selvagem”, e foi encontrar uma fonte de inspiração para a sua arte nas ilhas oceânicas dos mares do sul. Não se contentou apenas em aprender com as obras de arte produzidas por uma outra cultura, ele transferiu-se literalmente para o Taiti em 1891. Seu objetivo era explicitamente o de aprender com esta alteridade que os europeus consideravam “primitiva” (ver Caderno de imagens – parte II, figura 11 - Paul Gauguin, Arearea, 1892). Os quadros pintados por Gauguin neste período já revelam algo que ele buscava na produção anterior: simplicidade, cores fortes, e particularmente um tratamento bidimensional das imagens que seria sinal dos tempos. Com isto, era afrontada diretamente a perspectiva naturalista, e Gauguin podia abrir mão das sombras projetadas que haviam caracterizado toda uma tradição anterior, bem como trabalhar com áreas de cor separadas por pesados contor-

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nos. A inspiração para estas reformulações pôde ser encontrada por Gauguin no Taiti, para além da mera temática dita “primitiva” – e a experiência fez com que ele fosse tomado como modelo para outros movimentos. Já vimos em momento anterior que os fauvistas – eles mesmos inspirados nos caminhos antes trilhados por Paul Gauguin – também não foram alheios à influência da alteridade oriental. Neste momento será oportuno ressaltar que, para além da alteridade oriental – japonesa ou persa – Henri Matisse e outros pintores ligados à tendência fauve também assimilariam muito expressivamente uma outra alteridade que adentra o espaço da modernidade com especial vigor: a alteridade africana. O diálogo com a alteridade africana aparece em uma outra parte da produção matisseana, que se desenvolve paralelamente àquela pintura que já vimos ter sido essencialmente caracterizada pelas cores fortes e puras. Referimo-nos à escultura de Matisse, que nem sempre é tão lembrada como sua arte pictórica, mas que ocupa um lugar singular na História da Arte Ocidental. Esta escultura é especialmente inspirada na estatuária africana – particularmente a partir de algumas peças que o artista francês adquirira em 1906 – e revela-se aí um dos gêneros através dos quais a alteridade africana pôde penetrar decisivamente na Arte Moderna. O outro gênero, que veremos ter incidido diretamente sobre a pintura cubista de Picasso, foi a arte das Máscaras Ritualísticas. Mais ainda que na alteridade oriental, os artistas ligados ao Fauvismo encontraram na alteridade africana uma arte coirmã de tudo o que até então haviam buscado. Àquela altura, por volta de 1905, já haviam sido apelidados de “fauves” por um crítico – palavra que significa literalmente “selvagens” – e aceitaram sem maiores problemas o novo rótulo porque este remetia precisamente aos aspectos espontâneos e instintivos de sua arte. Maurice Vlaminck – um dos primeiros a descobrirem a escultura africana – chega mesmo a se referir a uma natureza selvagem ansiosa por se libertar dentro de si mesmo a partir dos quadros que estava elaborando neste período: Intensifiquei todos os meus valores tonais e transpus para uma orquestração de cor pura cada coisa que senti. Eu era um selvagem sensível, repleto de violência. Traduzi o que via instintivamente, sem qualquer método, e transmiti a verdade, não tanto artisticamente

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quanto humanamente. Apertei, destrocei tubos e tubos de águamarinha e vermelhão. (WHITFIELD, 1991, p.18)

Também a cerâmica negra atraiu os fauves. Algumas peças que Matisse recolhera em uma viagem a Argélia passaram a servir de modelos para algumas de suas naturezas-mortas. São peças que se destacam pela simplicidade decorativa, e a sua inclusão como motivos para serem pintados entre outros objetos possui a finalidade de introduzirem o decorativo dentro do decorativo. Um exemplo pode ser encontrado na Natureza Morta com Cebolas Rosadas (ver Caderno de imagens – parte II, figura 12 – Matisse, 1906), que dispõe em uma mesa três cerâmicas argelinas e algumas cebolas. Neste caso, os próprios elementos decorativos inseridos dentro das figuras de cerâmicas passam a atuar “decorativamente” com os demais elementos do quadro: as cebolas, o tampo da mesa e os próprios jarros africanos – tudo isto apresentado de maneira deliberadamente primitivista. O movimento fauvista – na sua curta duração que vai de 1904 a 1907 – pode ser considerado, enfim, o precursor da assimilação da alteridade africana pela Arte Moderna. Depois disto cada um de seus integrantes parece seguir rumos bem diferenciados, e já não será possível falar propriamente em um movimento fauvista. Mas a verdadeira assimilação da alteridade africana – como espécie de moda que se estende irresistivelmente por toda a Europa – estava apenas nos seus primórdios. O período generalizado de descoberta da arte africana pelos artistas europeus pode ser situado entre 1907 e 1910. A recente fundação de uma série de museus etnográficos, em diversos países da Europa, contribuiu bastante para esta súbita eclosão de um notável interesse de artistas e intelectuais europeus pela Arte Africana. Mas é preciso retomar aqui o que já foi dito sobre o impulso para a assimilação da arte oriental pelos pintores impressionistas. Na verdade, os objetos oriundos de várias regiões africanas vieram ao encontro das mais atualizadas preocupações estéticas que afloravam na vanguarda artística da Europa. Sem este irresistível impulso de renovação que emergia criativamente em uma arte europeia ávida de novidades formais e expressivas, a arte africana teria perma-

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necido uma curiosidade de museu: mera alteridade tratada com o rigor erudito de um antiquário, mas não uma fonte autêntica para a renovação da própria Arte Ocidental. Não é à toa que um dos primeiros livros sérios sobre a Escultura Negra, escrito em 1928 – pouco depois desta espécie de “renascença negra” na Europa – já assinalava com bastante precisão que as principais razões do interesse da Arte Moderna por estas tradições residiam no fato de que elas “acentuam mais o desenho do que a representação literal, apresentando efeitos de formas, qualidades de linha e superfície, combinações de massa que são desconhecidas da tradição grega” (Guillaume e Munro, 1928). Desta maneira, não apenas os artistas, como também os críticos e estudiosos, podiam concordar que o interesse pela Arte Negra não provinha do exotismo ou do estranhamento de seus temas, mas sim de aspectos relacionados com os próprios meios da Arte. Por outro lado, falar em “arte” para os objetos de escultura negra, bem como para as máscaras ritualísticas, requer alguns esclarecimentos relativizadores. Quando pensarmos mais rigorosamente nas estatuetas africanas, nas máscaras e objetos de cerâmica, nas peças de indumentária mágica e adornos, e em tantos outros produtos daquilo que por convenção denominamos Arte Negra, deveremos ter sempre em mente que nas suas culturas de origem todos estes objetos são “objetos de ação”, e não objetos para serem contemplados ou consumidos como obras de arte à maneira ocidental. Estes objetos devem ser tratados como arte ou como artefatos? Esta é uma questão complexa que tem interessado os estudiosos, embora menos aos artistas. Nas primeiras décadas do século XX, os artistas ocidentais interessaram-se pelos artefatos africanos transferidos para os museus etnográficos muito mais pelos sentimentos profundos que deles lhes pareciam emanar, pela sua intensidade expressiva, pela ousadia no tratamento da forma. Não haviam despertado ainda, como o fariam os artistas da década de 1960, para o fato de que além destas impressionantes qualidades estes objetos possuíam ainda outras virtualidades que mais tarde poderiam interessar também à moderna Arte Ocidental – como o fato de serem objetos em dinâmica conexão com contextos culturais e naturais onde desempenhavam

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o papel de “objetos de ação”, objetos que visavam transformar o mundo através da magia ou da estruturação de um forte identidade tribal, objetos que foram confeccionados para se inserir em cerimônias de diversos tipos, em redes simbólicas para sociedades tribais secretas, em rituais de iniciação e ritos de passagem, em festas coletivas. Em uma palavra, objetos produzidos para as pessoas interagirem com eles, ou para interagirem eles mesmos com o ambiente e o contexto envolvente. Ocorre que – para os homens ocidentais, e particularmente para os artistas – chamar a estes artefatos de “objetos de arte” esquecendo os seus contextos originais, sempre foi um gesto bastante espontâneo. Tal como observa Arthur Danto, “por causa de sua aparência ao olhar sensível, por causa de semelhanças estéticas com os trabalhos de arte de nossas próprias tradições, é inevitável talvez que nós acabemos vindo a enxergar como trabalhos de arte objetos que não usufruem deste status nas suas sociedades de origem” (Danto, 1989, p. 32). Por outro lado, o esforço de entender o objeto na sua cultura não deve ter efeito paralisante, e felizmente os artistas ocidentais foram com alguma liberdade decifrando os artefatos africanos por camadas, captando-lhe as dimensões que cada época permitia: a expressão, a intensidade, a forma, a interatividade.

6 Esta tradição artística pode ser observada em uma famosa “Cabeça de Princesa”, que faz parte nos dias de hoje do acervo do Museu de Londres.

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Convém, antes de prosseguir, lançar um olhar sobre as características essenciais desta “Arte Africana” (assim a chamaremos em lato sensu) que influenciara com tanto vigor alguns dos principais movimentos modernistas da arte europeia Muitas das esculturas africanas atendiam nas suas culturas originárias a finalidades mágicas, e com esta intenção os povos politeístas – como os yorubas e os binis – modelaram peças de em marfim, ouro e bronze que possuíam desenhos bastante expressivos. No que se refere à técnica, alguns povos africanos utilizavam um processo da cera que já havia sido esquecido pelos europeus, e que à altura do século XX podia ser assimilado como mais uma novidade. Esta técnica favorecia a modelagem de bustos e cabeças, como ocorre em algumas das tradições herdadas da cultura Ife, que floresceu entre os anos 1000 e 1500 da Era Cristã e que vai repercutir nas esculturas de bronze produzidas pela cultura Benin, da Nigéria6. (ver Caderno de imagens – parte II, figura 13 - Arte Benin, Cabeça que representa Ora).

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Para além deste e outros tipos de esculturas negras, a África também legou como modelos uma série de estatuetas em madeira que foram prontamente assimiladas pelos artistas ocidentais. Aparecem também os entalhes em madeira que posteriormente são recobertos com latão, tal como ocorre entre os Bakotas, do Gabão. É importante destacar neste ponto que a África era ela mesmo um vasto território de alteridades, embora a civilização ocidental tenha se habituado a enxergá-la como um imenso continente negro, imaginariamente unificado através do contraste da pele mais clara dos europeus com o predomínio de tonalidades de pele mais escuras que apresentavam muitos dos povos africanos. Não há como discutir aqui a grande variedade de etnias africanas que a si mesmas se viam como povos bem diferenciados – e que se expressavam através de inúmeras diferenças físicas e culturais – mas de qualquer modo ela deve orientar a compreensão de que aquilo que chamamos de Arte Negra era na verdade um conjunto diversificado de muitas tradições. Mas, enfim, as esculturas africanas que chegam à Europa do princípio do século XX surpreendem inicialmente tanto pelos seus efeitos de formas e desenho acentuado como pela variedade de maneiras de representar a criatura humana, os animais ou mesmo simples formas com significado simbólico e desenvolvimentos esquemáticos, em flagrante contraste com a tradição naturalista da qual a escultura europeia ainda não conseguira se libertar. Deste repertório de tipos e formas africanas cada artista moderno, conforme a singularidade de seu próprio estilo, poderia extrair uma fonte de inspiração. Foi assim que Brancusi (1856-1957), um dos principais escultores cubistas, pôde se apropriar das talhas em madeira da África (mas também da Oceania) para idealizar e concretizar um tipo de escultura inédito na civilização europeia, onde o monólito é reduzido à simplicidade arquetípica que não mais se restringe à massa sólida e às tradicionais formas humanas e animais (Greenberg, 2001). Da mesma forma, as “cabeças” africanas oriundas da arte Ife permitiram que ele pudesse radicalizar uma experiência de simplificação da forma ovóide sugerindo a representação de rostos reclinados – mas acrescentadas de um diálogo com efeitos de reflexo da luz

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7 A evolução desta série é examinada por KRAUSS, 1998, p.106-112.

sobre o bronze. Esta série culmina com a famosa peça escultórica denominada “O Começo do Mundo” (1924)7. (ver Caderno de imagens – parte II, figura 14 - Brancusi. O Começo do Mundo, 1924). Outras escolhas foram as de Modigliani, que foi imediatamente atraído pelas esculturas e estatuetas de rostos alongados – e ele mesmo produziu a partir de 1908 esculturas próximas de alguns estilos africanos. Basta citar uma conhecida Cabeça de 1913, hoje na Galeria Tate de Londres – em que a partir de incisões bem rasas em blocos de calcário vemos ser delineada a fisionomia de uma cabeça, mostrando uma arte na qual Modigliani lança mão do desenho para gravar na pedra uma linguagem essencialmente primitivista. Concomitantemente à escolha de seu padrão escultórico preferido em meio ao repertório africano, este singular alongamento dos rostos vai interferindo também na sua pintura. Desta forma, sob a as camadas mais visíveis da pintura de Modigliani – a um só tempo elegante, recatada e misteriosa – pulsa na verdade uma matriz escultural africana que entra em perfeita sintonia com seu espírito inovador. Eis aqui um exemplo da maestria através da qual um artista moderno recobre um imaginário de alteridade primitivo (no sentido de primeiro, de anterior) para construir pictoricamente uma imagem em suave tensionamento com a matriz que lhe deu origem. (ver Caderno de imagens – parte II, figura 15). Este ponto é bastante interessante, pois permite observar que as esculturas negras e as estátuas de madeira oriundas das várias regiões da África influenciaram não apenas a Escultura Ocidental, como também as suas representações pictóricas. Isso também ocorre com as Máscaras Ritualísticas africanas, que conjuntamente com a escultura constituem os gêneros através dos quais a arte negra penetra na moderna arte ocidental. Veremos a seguir que as máscaras negras ritualísticas influenciaram diretamente a pintura cubista, através de Picasso, o que autoriza os historiadores da Arte a dizer que a Arte Negra, conjuntamente com a abstração proveniente de Cézanne, constituiu-se em um dos dois pilares deste movimento que revolucionou a Arte Moderna. Em 1907, tendo como impactante marco o quadro Les Demoiselles d’Avignon, Picasso (ver Caderno de imagens – parte II, figura 16) começa a elaborar uma nova estética – logo denominada cubista na

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sintonia com algumas pinturas que Braque já vinha desenvolvendo. Esta nova estética fundamenta-se, grosso modo, na destruição de harmonia clássica das figuras e na decomposição da realidade. Mas ela foi primordialmente inspirada nas máscaras rituais da África, com as quais Picasso tivera contato neste mesmo ano. As máscaras ritualísticas aparecem em diversas culturas africanas – como a cultura Benin, na Nigéria, mas também a Fang, no Gabão, a Bambara, e tantas outras). Na verdade, em que pese o seu extraordinário florescimento na parte ocidental da África, é mesmo impressionante a difusão da máscara em quase todas as culturas naturais do continente africano (Monti, 1991). Tudo leva a crer que o seu elemento motivador básico está nas práticas mágico-religiosas ligadas à vida cotidiana, e isto também pode ser confirmado com os registros rupestres das culturas pré-históricas que também apresentavam motivações similares, pois nas paredes das cavernas que abrigaram as culturas humanas da Idade da Pedra já apareciam cenas representando caçadores mascarados com cabeças de animais. Mas, naturalmente, estas funções mágico-religiosas foram abstraídas por ocasião da primeira leitura ocidental da alteridade africana – uma leitura eminentemente estética e técnico-expressiva – que os artistas ocidentais empreenderam inovadoramente no princípio do século XX. Somente a partir da década de 1960, como veremos adiante, os artistas ocidentais iriam se dar conta de que a máscara poderia ser também um poderoso meio de integração com a natureza, com o ambiente, e com os misteriosos mecanismos instituidores de uma identidade mágico-religiosa. Mas no princípio do século XX a leitura ocidental das Máscaras Africanas concentra-se nos aspectos estéticos, formais e expressivos – o que já é uma grande novidade para a época. Também é interessante notar que uma maior variedade de possibilidades expressivas para além dos interesses meramente mágicoreligiosos ocorre na parte ocidental da África, precisamente nas zonas em que arte teve um desenvolvimento mais próximo da concepção que é mais familiar ao Ocidente. Mas esta região já é por si só extraordinariamente extensa, e configura uma vasta área que se estende do Senegal a Angola, limitada ao norte pelo Saara, ao sul pelos desertos de Kalahari e a oeste pelos Grandes Lagos.

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Outro dado extremamente relevante para compreender as Máscaras Africanas nas suas culturas de origem é que eles operam uma superação da individualidade e empreendem um mergulho numa dimensão mais universal, por assim dizer. Assim, uma máscara não busca traduzir os sentimentos ou as emoções específicas de um indivíduo diante de uma situação concreta e específica. Ao invés de retratar o homem que venera, que teme, que combate ou morre, ela se configura em uma personificação, - ou antes numa corporificação – da própria Veneração, do Temor, do Combate e da Morte. O particular é aqui superado, e através da universalidade o homem que usa a máscara une-se cosmicamente ao mundo. Através do uso da máscara o homem específico pode evadir-se da singularidade de sua própria experiência para experimentar existências diferentes. E é precisamente esta possibilidade de ultrapassar as limitações individuais que permite que o homem que utiliza a máscara considere a possibilidade de que o seu poder terá aumentado pela imediata identificação com as forças universais que se operou através da máscara. Esta permite, enfim, não só que ele supere as limitações de sua realidade cotidiana, como que também participe mais plenamente da multiplicidade da vida do universo – transcendendo a dimensão humana e alcançando âmbitos que de outra maneira seriam inacessíveis à sua vivência: os mundos mineral, vegetal e animal, a dimensão de todos os seus antepassados, as poderosas forças cósmicas, a realidade divina. Com a máscara, o homem torna-se Deus ou Animal, passa a coincidir com o antepassado fundador da sua tribo, ou mesmo configura-se em pura força viva. A última dimensão a ser ressaltada para uma correta compreensão do que vem a ser a máscara ritualística – e esta será particularmente importante para a segunda leitura da alteridade africana que os artistas ocidentais empreendem a partir dos anos 1960 – é a dimensão da coletividade. A comunidade inteira pode-se reunir, como se fosse um único grande corpo, em torno da máscara – e o homem que a porta torna-se o representante de todos, o médium que põe a coletividade em contato com o sobrenatural ou com as conexões planetárias mais amplas, com o passado ou o futuro do grupo, ou simplesmente com a universalidade do gênero humano.

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Em que pese o papel central destas funções mais amplas – atribuições mágicas e universalizantes da máscara – esta também pode ser empregada para finalidades muito práticas: para presidir um rito de iniciação, para estabelecer mecanismos de identidade, para invocar a imparcialidade na ocasião em que é preciso presidir julgamentos, para conservar a ordem na comunidade, ou simplesmente para divertir os habitantes de uma aldeia em uma ocasião festiva (esta última função, naturalmente, coincide perfeitamente com o uso da máscara nos Carnavais). É esta variedade de usos e finalidades, somadas às funções cósmicas e naturais anteriormente descritas, que produz uma enorme variedade de tipos nas máscaras africanas. Poderemos voltar agora, com maior conhecimento de causa, à questão que nos interessa mais especificamente neste momento: a primeira leitura das máscaras africanas pela Arte Moderna do início do século XX. Habitualmente, as máscaras africanas apresentam rostos vincados e deformados – para atender aos já mencionados propósitos mágicos ou ritualísticos – e estas deformações e transfigurações de traços faciais humanos foram prontamente assimiladas pelas necessidades estéticas do Cubismo então nascente. Nenhuma destas máscaras desenha modelos naturalistas de rostos humanos, e elas se prestam às mais diversas variações: ora um alongamento do rosto, ora uma forma de queixo que converge para uma ponta, ora um afundamento de cada lado do roso fazendo sobressair o nariz e a boca, ora uma fusão de sobrancelha e complexo nasal, ora a formação de sulcos vincados torneando concentricamente os olhos, ora a redução da forma do rosto a uma geometria esquematizada (um cone ou uma esfera, por exemplo). (ver Caderno de imagens – parte II, figura 17 – Máscaras africanas diversas). Assim, pode-se dizer que – mesmo quando pretende invocar com intenso realismo o rosto humano – o artista africano libera-o daquelas particularidades individuais que fariam dele algo como um retrato à maneira ocidental, e com isso logra-se alcançar um máximo de intensidade expressiva generalizada. Os traço pessoais de um rosto são deliberadamente abolidos ou transfigurados e a estrutura fundamental do rosto, embora sugerindo em algumas situações um intenso realismo, é obtida de maneira inusitada por uma bem cal-

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culada disposição dos volumes e formas geométricas em um vivo contraste que constitui a sua trama fisionômica essencial. Com isto, a multiplicidade de formas produzida pelas máscaras africanas – e também pelas esculturas dos mesmos povos – parece recriar o próprio gênero humano transferindo-lhe imprevisíveis possibilidades formais e expressivas.

ta da alteridade africana, desta maneira, estende-se não apenas sincronicamente, mas também no tempo. Será possível agora, de posse de uma clara consciência das motivações que alimentam o Cubismo, compreender mais especificamente a obra de Picasso e as fases de sua produção artística que se beneficiaram mais diretamente da alteridade africana.

Não obstante esta imensa variedade de formas, a arte negra – escultura ou máscara – apresenta uma direção estética bem definida: ela é sobretudo uma arte de expressão, que parte de dentro do humano para fora, e portanto mostra-se como pura “invenção” ao invés de se configurar na reprodução ou imitação da Natureza que está na origem da escultura ocidental. Não é à toa que esta arte atraiu antes de todos as atenções dos fauvistas, artistas especialmente preocupados em encontrar um novo padrão de expressividade. Mas, da mesma forma, a invenção formal pôde inspirar com igual intensidade os caminhos de pesquisa pictórica que seriam desenvolvidos através da corrente cubista da Arte Moderna.

Conforme pudemos ver, cada movimento modernista pôde extrair das várias artes africanas uma dimensão ou aspecto que os interessasse formal ou esteticamente, assim como cada artista também pôde fazer suas escolhas neste rico universo para adaptá-la às suas próprias singularidades. Assim, os fauvistas – que aceitaram a designação de “selvagens” que lhes impusera a crítica de sua época – pressentiram naquelas estatuetas e máscaras africanas as forças mais profundas da vida e uma intensa liberação dos instintos. Os cubistas, por seu turno, interessaram-se pela revolução de formas e traços que estas mesmas peças lhes proporcionaram.

A multiplicidade de formas das máscaras e esculturas africanas, contrapondo-se como uma enorme riqueza de possibilidades ao monótono rosto tradicional que até meados do século XIX fora imposto pelo naturalismo europeu, bem como a possibilidade de vincar as feições faciais fragmentando a face ou reconstruindo olhos e boca – tudo isto foi reapropriado artisticamente pelo Cubismo para os seus próprios propósitos – e depois introduzido em uma pintura que passaria a investir na bidimensionalidade ou também na possibilidade de mostrar uma imagem através de uma multiplicidade simultânea de perspectivas. Este aspecto, aliás, também se origina em outra arte proveniente da África, só que desta civilização histórica que fora o Antigo Egito dos faraós e das pirâmides. Os egípcios, como atestam as pinturas nas paredes das Pirâmides, precederam os cubistas na ideia de representar uma figura a partir de diversos ângulos e perspectivas simultâneas, decompondo a imagem de uma forma muito peculiar. (ver Caderno de imagens – parte II, Figura 18). Esta multiplicação do espaço a partir de diversas perspectivas, agora expostas simultaneamente como nunca fora tentado pela arte ocidental, mostra-se uma conquista do Cubismo que já fora há milênios percorrida pela arte dos antigos egípcios. A apreensão cubis-

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É oportuno ressaltar que – à mesma época em que se desenvolvia a assimilação das então chamadas “culturas primitivas” pelos cubistas, fauvistas e outros campos estéticos – os músicos ocidentais também abriam uma corrente estética que se empenhava em trabalhar com ritmos primitivos e danças ritualísticas seja da África ou da América Latina. Alguns dos exemplos mais notórios deste primitivismo musical é podem ser encontrados na célebre Sagração da Primavera, de Stravinsky (1913), ou no Allegro Bárbaro de Bela Bartók (1911). Estas obras despertaram o mesmo escândalo que algumas das pinturas cubistas, sobretudo o balé Sagração da Primavera, que tematiza um mundo de sacrifícios pagãos e de ritmos selvagens. Até aqui abordamos as leituras fauvista e cubista da Arte Negra oriunda da África: para o caso do Fauvismo ela fora focada como uma arte que coloca em evidência os instintos e a intensidade de expressões – particularmente sob o signo das cores puras e fortes – e , para o Cubismo, fora focada como uma arte que ousa transfigurar os traços, reconstruir a figura humana, reinventá-la de mil maneiras. Em ambas estas leituras, o que comovera os artistas ocidentais na arte negra fora a vitalidade plástica e a beleza formal daquelas imagens que, na verdade, haviam sido deslocadas do seu original contexto natural e cultural, no qual desempenhavam uma

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função social e coletiva, frequentemente associando-se a uma significação sagrada. Esses aspectos se perdiam no deslocamento do objeto de arte africana para os museus etnográficos. Contudo, as sucessivas releituras da arte negra não se esgotam nas apropriações fauvista e cubista. Elas avançam no tempo, atingem também as últimas décadas do século XX. Com extrema argúcia, Mário Pedrosa observa em um texto de 1968 que, àquela época, já a sensibilidade moderna começava a despertar para um aspecto da Arte Negra que até então ficara um pouco negligenciado e esquecido: precisamente a ação que estes objetos e imagens exerciam nas sociedades ditas primitivas e em seus contextos culturais naturais, bem como “o comportamento coletivo que impunham à sociedade de onde brotavam” (Pedrosa, 1986, p. 223). Assim, a arte negra continuava a ser valorizada por todas as suas qualidades estéticas e formais, mas a estas qualidades já assimiladas se acrescentava a partir daqueles anos uma nova dimensão. No mundo da arte ambiental e interativa do final dos anos 1960, da superação dos tradicionais limites dos gêneros artísticos em direção a um campo cada vez mais expandido, da arte pósmoderna ou da arte ambiental participante, os artistas ocidentais passavam a se fascinar com a possibilidade de encontrar uma equivalência entre “a sua atitude, seu trabalho, e a atitude e o trabalho do artista negro ou caduceu, nos seus respectivos contextos sociais” (idem). Os artistas ocidentais dos anos 1960, preocupados com questões como a de vencer o isolamento do artista em relação à sociedade, de alcançar o coletivo ou mesmo o mítico, subitamente se encantavam mais uma vez com a Arte Negra – que, em seu contexto cultural e natural alcançava precisamente isto. Estes artistas ocidentais finalmente percebiam que haviam sido precedidos em suas atuais preocupações pelos artistas negros e de outras sociedades ditas primitivas – estas que, como eles, davam forma à vontade de modificar a ordem natural, de alterar de maneira ativa e dinâmica o ambiente em que estavam mergulhados (ibidem). Estas sociedades naturais, que não conheciam a cisão entre artistas e espectadores – já que na atividade coletiva ou ritual todos os membros da sociedade produziam a dança coletiva ou confeccionavam o objeto ritualístico – subitamente deslumbravam mais

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uma vez estes artistas ocidentais que agora queriam romper com a inércia do espectador de arte e convidá-lo a produzir com eles a obra de arte. Os artistas ocidentais encontravam então, nas suas próprias atitudes, algo como os ecos de uma arte negra que era ativa, participante, coletiva, integrada ao ambiente natural e social, e para a qual o que importava não era a contemplação do objeto, mas a “participação do objeto”8. A terceira releitura da Arte Africana pelos artistas do Ocidente, portanto, corresponde à releitura de um setor da comunidade artística que conseguiu conceber algo para além do objeto artístico autônomo e desconectado – isolado no espaço de arte – e que pôde compreender também a possibilidade de um “objeto relacional”, que estende sua ação e seus efeitos para o espaço circundante e para a própria vida. É muito interessante, aliás, que a possibilidade de uma releitura da Máscara não mais como mero objeto estético e expressivo, mas como objeto de integração e de uso, permitiu que os artistas ocidentais focassem a sua atenção em um aspecto que até então havia lhes escapado. Na sua realidade original, o africano considerava “máscara” não apenas o aparato facial, mas todo o conjunto da indumentária, o que inclui também o traje de tecido ou fibras vegetais que é portado pelo dançarino em uma celebração, e mesmo os braceletes que lhe envolve os membros ou os acessórios que o portador da máscara segura nas mãos. E mais, a máscara africana era quase sempre concebida para estar em movimento – sendo notável que o seu uso aparece associado, em boa parte das ocasiões, à prática da dança. Assim, além de a máscara estender-se no espaço para muito além do aparato facial que cobre um rosto, ela também não deveria ser compreendida como um objeto imobilizado. Trata-se de um objeto que se abre a potencialidades dinâmicas, a movimentos possíveis.

8 “O artista primitivo cria um objeto ‘que participa’. O artista de hoje, com algo de um desespero dentro dele, chama os outros a que dêem participação ao seu objeto” (PEDROSA, 1986, p.225).

A máscara, desta forma, mostra inúmeras possibilidades. Em alguns casos será vestida, em outros será apenas mostrada – como pode ocorrer entre os participantes de rituais de iniciação – em outros casos, quando em forma diminuta, elas podem se converter em pingentes corporais, e pode-sedizer que, para além disto, a própria tatuagem é também ela mesma máscara que adere ao corpo. De qualquer modo, em movimento ou em exibição conduzida, a más-

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cara é caminho para uma arte ampla que transcende a própria feitura e posterior contemplação estética do objeto-máscara. Esta extensão do conceito de máscara, já perfeitamente familiar aos africanos, só poderia ser compreendida pelos artistas ocidentais em uma época em que os seus tradicionais gêneros artísticos – como a escultura e a pintura – começaram a ser questionados como os únicos compartimentos possíveis à atividade artística. É um mundo em que a pintura salta para o universo escultórico, ou em que a escultura torna-se penetrável ou interferida pelo receptor de arte – interpenetrando-se assim de teatro e de vida – que permite que os artistas ocidentais aprendam mais uma vez com a alteridade africana, que não conhecia obviamente estas limitações artísticas. O mundo que permite uma terceira releitura da Arte Africana é o da Arte Ocidental que se aventura para o campo expandido. Um exemplo brasileiro está nos Parangolés de Hélio Oiticica, objetos artísticos que sintonizam com o conceito expandido de Máscara que traziam os africanos desde as origens. O Parangolé não é para ser contemplado como objeto imobilizado em museu: é para envolver o usufruidor da arte, para ser vestido, para oferecer-se à possibilidade das progressões espaciais e da Dança. É objeto integrador, que cria conexões com a sociedade, com a Natureza e com o mundo. A assimilação da alteridade africana pela Arte Europeia completa assim um caminho longo: da sua avaliação como “arte exótica” no período romântico até à sua avaliação como arte capaz de inspirar a revolução da expressão ou da forma que se dá nos primórdios da modernidade artística, e daí até a sua percepção – por volta da década de 1960 – como forma de arte inserida em um contexto social e natural mais amplo, capaz de ecoar nas tendências da arte ambiental, da arte performática e tantas outras. De resto, estes aspectos relativos à arte africana também coincidem perfeitamente com a arte dos povos nativos americanos – como é o caso dos indígenas brasileiros – o que nos leva a discussão de uma terceira e última alteridade que teria sido assimilada pela Arte Ocidental em seu longo ciclo de compreensão artística do “outro”.

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Resumo: Este artigo busca esclarecer e discutir as relações entre a Arte Moderna e os imaginários da Alteridade – entendendo Imaginário não apenas como um repertório de imagens ou os caminhos temáticos possíveis de serem reapropriados pelo artista, mas também a própria capacidade de Imaginar, de perceber e recriar as imagens do mundo. Deste modo, mostra-se como um dos pontos de ruptura de toda uma série de artistas ocidentais, que já podem ser classificados como modernos, foi precisamente uma nova postura com relação ao Imaginário e à Arte de outros povos. O texto aborda mais especificamente as alteridades oriundas dos povos orientais e as alteridades oriundas da África Negra, demonstrando como, a partir destes imaginários de alteridade, os modernos artistas ocidentais conseguiram recriar a sua própria arte. Palavras-chave: Arte Moderna, alteridade; imaginário, representação, imagem.

Abstract: This article attempts to clarify and discuss the relations between Modern Art and the imaginaries of the Alterity – understanding Imaginary as not only a repertory of images or the thematic ways possible of been reappropriated by the artists, but also the capacity itself of to Imagine, of perceive and recreate the images of the world. In this way, the intent is to show how one of the points of rupture of several occidental artists, which can be classified as moderns, was precisely a new posture in relation to the Imaginary and to the Art of the other peoples. The essays aboard more specifically the alterities referent to the oriental peoples and the alterities referents to the Black Africa, showing how, working with these alterities imaginaries, the modern occidental artists had success in recreate his own art. Keywords: Modern Art, alterity, imaginary, representation, image.

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KRAUSS, R. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Resumen: Esto artículo intenta aclarar y discutir el relación entre Arte Moderno y imaginario de la Alteridad – comprendiendo Imaginario no solo como un repertorio de imágenes o como los caminos temáticos posibles de ser apropiados por el artista, pero también como la capacidad de imaginar, percibir y recriar el imágenes del mundo. De esta forma, buscase mostrar como un de los puntos de ruptura característico de varios artistas del occidente, qué ja pueden ser clasificados como modernos, fue exactamente una nueva postura con relación a el Imaginario y hasta el Arte de otros pueblos. El ensayo aborda más específicamente las alteridades provenientes de los pueblos orientales y las alteridades referenciadas en la África Negra, demostrando cómo, a partir de estos imaginarios de alteridad, los artistas modernos del Occidente tuvieron éxito en recrear su propio Arte.

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Palavras clave: Arte Moderno, alteridad, imaginario, representación, imagen.

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e-mail: jose.assun@globo.com Recebido em 29/01/2007 Aprovado em 18/04/2008

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visões de van gogh: imagem e auto-imagem Luciana Bertini Godoy Doutora em Psicologia Social (Psicologia da Arte) Instituto de Psicologia da USP

Não há palavra que possa esgotar o assunto que é Vincent van Gogh. (Bonafoux, 1986, p. 13)

espirais da criação Com esta epígrafe, foi aberta a Tese de Doutoramento defendida em outubro de 2006 no Instituto de Psicologia da USP, intitulada Espirais da Criação – auto-imagem do artista moderno na correspondência de Van Gogh (GODOY, 2006), da qual este artigo pretende explorar alguns aspectos. Este trabalho foi produzido no contexto das pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Estudos em Psicologia de Arte (Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IP-USP), cujas atividades pretendem contribuir para a compreensão da Arte, em suas várias linguagens (teatro, música, cinema, literatura e, sobretudo, artes plásticas), a partir do contexto psicossocial, ao mesmo tempo em que procuram compreender os fenômenos psicossociais a partir das diferentes manifestações e contextos artísticos. Mais especificamente, o Laboratório promove pesquisas teóricas e de campo acerca dos processos de criação artística, de recepção e leitura de obras, da psicodinâmica da ex-

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periência estética em ateliês, oficinas artísticas, no contexto clínico, em galerias ou exposições. Tendo em vista esta proposta de abordagem das interfaces entre a psicologia e a arte, do que se trata, então, a pesquisa apresentada em Espirais da Criação? Que questões a motivaram e a quais ela conduziu? Conhecido como “pintor maldito”, Vincent van Gogh (1853-1890) tem atrelado à sua imagem um elenco de estereótipos, mitos e lendas formados e perpetuados pelos trágicos acontecimentos de sua vida, não menos que por sua trágica pintura. Automutilação, internações psiquiátricas e suicídio, somados ao isolamento do artista e ao estranhamento causado por suas obras em seus contemporâneos, fizeram de Van Gogh o ícone da relação entre arte e loucura. Desta constatação, surgem as indagações: em que medida sua obra seria derivada de sua “doença” – termo utilizado pelo próprio pintor – como querem alguns autores? Ou, ao contrário, de que forma a doença seria um fator constitutivo de sua identidade de artista, o que, entre outras características, o definiria como um artista moderno por excelência? O contato com a correspondência do pintor (VAN GOGH, 1986) e a observação de seus posicionamentos acerca destas questões mobilizaram o confronto de alguns discursos construídos sobre Van Gogh com aquele que ele próprio produziu. E discursos não faltam sobre este fenômeno em que o artista se transformou. Desde sua morte, artigos, livros e teses, exposições e catálogos, canções, poemas e filmes, sucessivas edições de sua correspondência, enfim, pesquisas e produções de toda ordem reverberam, até os dias de hoje, o forte impacto estético e existencial provocado por Van Gogh sobre aqueles que dele se aproximam, seja através de suas obras plásticas, seja pelo contato com suas cartas. Considerando as aproximações e distinções dos pares vida/obra de artista, discurso clínico/discurso crítico sobre o artista e suas produções, o trabalho sobre suas cartas proporcionou o acesso ao olhar do próprio pintor sobre si mesmo e o mundo em que viveu, a arte do passado e de seu tempo, bem como a sua própria, conteúdo este que tornou imperativa a consideração da correspondência como uma obra que, em si mesma, justificava uma aproximação sistemática e cuidadosa.

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As relações entre arte e loucura são, certamente, um pivô na discussão acerca de Van Gogh, mas não devem encobrir a importância do exame do contexto artístico-cultural em que o artista viveu, particularmente, em se tratando do ponto de vista psicossocial privilegiado no estudo. O que acontecia política, econômica e culturalmente no mundo e, em especial, na “capital mundial” de então, Paris - cenário habitado por Van Gogh a certa altura de sua vida? Que idéias e utopias nutriam os homens do último quarto do século XIX? E as gerações anteriores? Como Van Gogh participa destes cenários, o que herda e o que contesta em cada um deles? Como estabelecer essas relações a partir de sua correspondência? A respeito desta, outro aspecto a ser abordado: o que caracteriza e quais as especificidades de um estudo de cartas? E, ainda, que relações podem ser estabelecidas entre a obra plástica e a obra escrita de Van Gogh? Estas questões orientaram os eixos teóricos que fundamentaram a pesquisa e permitiram uma compreensão mais profunda de determinados elementos presentes na correspondência. A apreensão do “universo de Van Gogh” a partir de sua própria perspectiva possibilitou o alcance dos objetivos propostos na pesquisa, quais sejam, o delineamento de sua auto-imagem e, a partir dela, o exame dos principais elementos que compõem a figura do artista moderno, numa manifestação singular e emblemática, compreendendo por que Van Gogh pode ser considerado um de seus principais representantes.

imagens de van gogh Das inúmeras questões compreendidas no estudo deste artista, gostaria de enunciar apenas uma, a mais simples, talvez, mas cuja resposta não é unívoca, demandando o cuidado de não se ceder à tentação das reduções simplificadoras e das definições ilusoriamente definitivas: quem foi Van Gogh? Desta indagação, emerge o sentido da imagem que intitula a tese, Espirais da Criação. Aproximar-se do tema Van Gogh significa percorrer um caminho espiralado, envolver-se nas diferentes perspectivas proporcionadas por

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1 Duas das principais referências destas concepções são, por um lado, o pensamento de Merleau-Ponty (2004, 1999, 1994, 1980a, 1980b), cuja noção de estrutura fundamenta a abordagem do fenômeno tal como formulada; e, por outro, a compreensão do mito oferecida por Lévi-Strauss (1973) e articulada metodologicamente na pesquisa, segundo a qual “o mito se desenvolverá como em espiral até que o impulso intelectual que o produziu seja esgotado.” (p. 264).

cada nível de apreensão do fenômeno, experiência que, não obstante, conserva sua unidade e uma lógica interna de sentidos.1 Retomando a epígrafe que aqui se repete, “não há palavra que possa esgotar o assunto que é Vincent van Gogh.” (BONAFOUX, 1986, p. 13), aponto que o propósito, evidentemente, não é este; antes, é assinalar a complexidade inerente à questão formulada e a dificuldade de apresentar este artista tão popular, sobre quem tanto já foi dito por autores que vão desde a mais especializada crítica, ao mais anônimo espectador diante de suas obras.

a) vincent ou van gogh? As complicações começam já com seu nome. Como se referir ao artista? Desde o fim do século XVII, um Van Gogh porta o nome Vincent (BONAFOUX, 1987). Um século mais tarde, em 1798, nascia Vincent van Gogh, pastor, avô do pintor. Entre seus doze filhos, Vincent Willem van Gogh, proprietário de uma galeria de arte e Theodorus van Gogh, pastor, pai do pintor. Um ano antes do nascimento do consagrado Vincent (Willem) van Gogh, houvera outro, natimorto, Vincent Willem van Gogh. Quatro anos mais tarde, nascia Theodorus van Gogh, marchand. Este teve um único filho, Vincent Willem van Gogh, engenheiro, cujo primogênito recebeu o nome do avô, Theo van Gogh. Grande parte de seus biógrafos optou por chamá-lo Vincent, argumentando ter sido esta a sua preferência. Dos quadros que assinou, assinou Vincent; este “simples e informal Vincent era mais fácil e combinava mais com seu feitio” (SWEETMAN, 1993, p. 13). Tal simplicidade corresponde inversamente à dificuldade da pronúncia de Van Gogh, que, até hoje, assume sonoridades diferentes conforme a língua que o entoa (HERZFELD, 1987). Algumas delas, irritavam-no particularmente, sobretudo, ao que parece, a pronúncia francesa, tendo sido um motivo para que ele pedisse a Théo que o inscrevesse com seu prenome no catálogo de uma mostra de que participaria em Paris, argumentando que, ali, as pessoas não saberiam pronunciá-lo. Bonafoux (1986) considera a irritação do artista proveniente do próprio sobrenome, não tanto dos erros em

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sua pronúncia. Pontua algumas cartas em que o signo do parentesco é para ele uma “injúria” (BONAFOUX, 1986, p. 128), especialmente no período de 1883-84, quando rompe definitivamente com a casa paterna. Na solidão concreta e existencial, ele assina Vincent, um prenome, desenraizado, desvinculado de sua origem. (ver Caderno de imagens – parte II, Figura 1- Carta assinada pelo artista, s/ data). O pintor opta por Vincent para estar próximo de seu espectador e identificar-se de forma simples, pessoal, negando as relações mais formais estabelecidas pelo sobrenome. Mas há aí uma controvérsia: se é a simplicidade de um prenome, indicativa da imagem pela qual deseja ser reconhecido, que move sua escolha, por que teria assinado tão pouco? – segundo Bonafoux (1986), apenas um sétimo de suas telas são assinadas; por que se importaria com a correta pronúncia de seu sobrenome, a ponto de este argumento aparecer como um fator determinante de sua escolha? Em contrapartida, em que medida Vincent (no lugar de Van Gogh) pode ser compreendido como uma negação familiar, considerando o histórico em que Vincent se repete a cada geração, não se distinguindo significativamente de Van Gogh como uma forte referência ao pertencimento àquela família? O crítico e historiador Jacques Leenhardt2 abre algumas perspectivas sobre a validade deste debate. Segundo ele, a sociedade moderna vive com uma pesada exigência de subjetivação. Há que se realizar subjetivamente enquanto uma individualidade. Com esta demanda, ela se reconhece na obra de Van Gogh, em sua dor essencial, a mais profunda. Ao mesmo tempo, a sociedade nega este reconhecimento, atribuindo o que viu à produção de um louco. A loucura porta toda a carga subjetiva do sofrimento humano, não é fácil encará-la; por isso, o espelhamento é rechaçado. Este movimento pendular de aproximação e distanciamento com relação ao artista tem, na oscilação entre chamá-lo Vincent ou Van Gogh, uma de suas manifestações. Enquanto aquele que consegue expressar o que há de comum a todos, o pintor está perto, irmanado à humanidade, ele se chama Vincent. O louco que expõe as mais profundas dores humanas, este deve ser mantido afastado, possui um nome que nem sequer pode ser pronunciado: este louco é Van Gogh.

2 Comunicação pessoal, por ocasião do estágio realizado junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, entre fevereiro e junho de 2004.

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Nesse sentido, prossegue Leenhardt, chamá-lo Vincent ou Van Gogh é um pretexto para introduzir a discussão sobre vida e obra, homem e artista. Na verdade, conclui ele, qualquer que seja a escolha, ela será arbitrária, uma vez que sua dificuldade espelha a ambigüidade que cerca as questões trazidas por este artista. 3 As informações resumidamente aqui reunidas foram baseadas em algumas biografias e cronologias do artista, entre as quais as de Van Gogh-Bonger (2004), Walther e Metzger (2002), Leeuw (1996), Sweetman (1993), Van Gogh (1986), Coli (1985) e Van Gogh (1960).

b) uma biografia3 Aos 30 dias do mês de março de 1853 nasceu Vincent Willem Van Gogh, em Zundert, uma pequena cidade no sul da Holanda, onde seu pai era o pastor responsável pela comunidade protestante. Em sua família, três tios eram envolvidos com o comércio de arte e um primo era pintor. Primogênito (após o filho natimorto), Van Gogh teve cinco irmãos, entre os quais Théo, aquele que o sustentou afetiva, financeira e artisticamente desde que optou pela carreira de pintor, de forma ininterrupta, até sua morte. (ver Caderno de imagens – parte II, Figura 2- Van Gogh, 13 anos; Figura 3 -Van Gogh, 19 anos). Aos 16 anos, mudou-se para Haia, iniciando-se como marchand numa das filiais da galeria de arte Goupil, da qual um dos tios era sócio. Frustrado nesta carreira e convencido de que ela tinha sido mais uma decorrência da tradição familiar do que fruto de uma escolha pessoal, nove anos mais tarde, Van Gogh ingressou numa escola evangelista em Bruxelas, partindo logo para o Borinage (região carbonífera do sul da Bélgica), onde praticou a evangelização dos mineiros. Ainda não seria este o seu destino. Após dois anos de intensos sacrifícios e sucessivas reprovações dos pastores responsáveis por sua formação, aos 27 anos, Van Gogh abandonou a carreira religiosa e deu início à artística. Esta passagem foi selada significativamente com o recebimento dos primeiros 50 francos de Théo. Autodidata, estudou primeiramente o desenho com o auxílio de manuais e apenas lentamente se iniciou na pintura. Os anos de formação estenderam-se de 1880 a 1886, durante os quais o artista efetuou uma constante migração entre cidades da Holanda e da Bélgica. Em fevereiro de 1886, Van Gogh partiu para Paris, instalando-se no

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apartamento de Théo, com quem viveu por dois anos. Travou contato com a pintura impressionista, teceu uma rede de relações entre os pintores, consolidando-se, ele mesmo, como um artista cuja principal tarefa seria dar prosseguimento às pesquisas que resultariam na arte moderna. Van Gogh jamais sairia da França. Cansado das disputas entre os artistas em Paris e bastante debilitado física e mentalmente em função da agitação da vida na metrópole, em 1888, o pintor partiu para o sul, encontrando, em Arles, a tranqüilidade do campo e as cores mais intensas que procurava. Lá, amadureceu a idéia de constituir o ateliê do sul, uma espécie de comunidade artística. Apesar de alguns pintores terem acenado com a possibilidade de se juntarem a Van Gogh, o único que efetivamente se uniu a ele foi Paul Gauguin, e apenas por dois meses. Suas diferenças pessoais e artísticas impediram o prosseguimento de uma convivência que foi turbulenta desde o início. O famoso episódio da orelha cortada aconteceu após uma intensa discussão dos artistas, e foi seguido da primeira internação psiquiátrica de Van Gogh. Passou o ano seguinte no asilo para alienados em Saint-Rémy, ainda no sul da França, sempre em internação voluntária. Seus três últimos meses de vida foram vividos em Auvers-sur-Oise, sob os cuidados do Dr. Gachet. Em 27 de julho de 1890, Van Gogh deu-se um tiro no peito, vindo a falecer dois dias depois, a cabeça deitada no colo de Théo. Nesta sucinta apresentação dos principais movimentos do artista e fatos que marcaram sua vida, temos uma visão de Van Gogh pautada pela cronologia dos acontecimentos, uma imagem, portanto, relativamente objetiva e linear: Van Gogh nasce, vai, começa, ingressa, desiste, desenha, pinta, se mata. Através dela, acompanhamos suas origens familiares e culturais, suas escolhas e objetivos, enfim, sabemos onde e o que, mas não sabemos como e por que.

c) episódio da orelha cortada Uma outra maneira de aproximar-se de Van Gogh é, justamente, através de um dos episódios mais notórios da história da arte, acerca

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do qual só se tem a versão de Gauguin, como mencionei, o outro protagonista. Ele registrou-a em suas Memórias (GAUGUIN, 2000), escritas catorze anos após o incidente. À pergunta quem foi Van Gogh?, ouve-se, com freqüência, a resposta: foi o pintor que cortou a orelha. Este episódio marcou para sempre não apenas a vida do artista no âmbito mais pessoal, mas também sua imagem de artista vinculada à loucura, perpetuada publicamente ao longo dos anos. É uma história bastante lacunar, suscitando, por isso, preenchimentos, se não fantasiosos, no mínimo inusitados, que vão desde uma suposta homossexualidade do artista, até a interpretação de seu gesto como a primeira expressão da body art na história da arte. Em todo caso, restou, ainda, a notícia do jornal local do dia seguinte, pautada no registro policial da ocorrência, o qual, por sua vez, foi baseado no depoimento de Gauguin.

NOTÍCIAS LOCAIS Domingo passado às 11:30 da noite, um certo Vincent Vaugogh [sic], pintor de origem holandesa, apresentou-se à Maison de Tolérance nº 1, perguntou por uma certa Rachel, e deulhe... sua orelha, dizendo: “Guarde este objeto com cuidado.” Depois desapareceu. Informada deste ato, que só poderia ser o de um pobre lunático, a polícia foi na manhã seguinte à casa dessa pessoa e encontrou-a deitada na cama sem dar sinais de vida. O infeliz foi imediatamente recolhido ao hospital. Forum Républicain, Arles, 30 de dezembro de 1888.4 4 Sweetman, 1990: 239. 5 Na verdade, a segunda. A primeira nota sobre Van Gogh foi escrita por Gustave Kahn na Revue indépendante de abril de 1888, por ocasião da exposição Peintures: exposition des Indépendants, em Paris, nesta data. (HEINICH, 1991: 223).

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O acontecimento descrito foi o ápice da crise vivida com Gauguin, com quem, havia dois meses, Van Gogh compartilhava a casa amarela, seu estúdio no sul da França. Do ponto de vista de seu projeto artístico, o esgotamento desta relação significou, grosso modo, o fim de uma utopia na qual Van Gogh depositava sua esperança de constituição de um ateliê no Sul, região privilegiada pela exuberância de suas cores, onde os artistas pudessem formar uma comunidade, produzir coletivamente, desenvolver-se ao compartilharem suas pesquisas, dividir suas despesas, tudo de forma a garantir liberdade de criação, desvinculação das pressões financeiras exercidas pela imperiosa condição de produzir quadros vendáveis e, sobretudo, garantir o desenvolvimento independente da nova arte. (ver Caderno de imagens – parte II, Figura 4 - Auto-retrato com bandagem, 1889). Do ponto de vista do outro pólo que articula sua imagem, a loucura, este foi o primeiro episódio das crises que passaram a suceder-se a partir de então, configurando o que o próprio artista denominava sua “doença mental”. Inaugura, assim, sua relação com médicos e sanatórios. O isolamento e a loucura, antes excentricidades da adoção de uma vida artística, institucionalizam-se dentro e fora de si: os sintomas persistem, esboçam-se os primeiros ensaios sobre as hipóteses diagnósticas e as internações psiquiátricas são, agora, uma realidade. Ainda assim, Van Gogh continua pintando, leva adiante, individualmente, o projeto de desenvolvimento da nova arte, daquela que seria, para ele, no futuro, a verdadeira arte moderna. Considerado isoladamente, como muitas vezes é, este episódio transforma a loucura no “cartão de visitas” do artista. A partir daí, tudo passa a ser interpretado por este crivo, sua vida, sua obra, sua história. Contrariamente à perspectiva biográfica, aqui, faltam os o que (s) e sobram apressados por que (s).

Nesta nota de jornal, uma das primeiras publicações sobre Van Gogh5, o artista é apresentado através da associação dos dois elementos responsáveis pela imagem nele impregnada, a de “um certo pintor de origem holandesa” e do “pobre e infeliz lunático”, ou seja, a imagem do artista louco pela qual ele é imediatamente reconhecido.

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d) auto-retratos Se Van Gogh é aquele que assina Vincent, é o jovem cuja fisionomia foi registrada em fotografias aos 13 e aos 19 anos, é o “pobre lunático” que se automutila e se pinta em seguida... ele também é... (ver Caderno de imagens – parte II, Figura 5 - Auto-retrato; 1886; Figura 6 - Auto-retrato, 1887; Figura 7 - Auto-retrato, 1889). Os auto-retratos de Van Gogh são o palco do entrelaçamento dos termos vida e obra para Pascal Bonafoux (1998), crítico e biógrafo do artista. Através dos auto-retratos, Bonafoux aprecia as transformações de sua pintura ao longo de sua carreira, contrapondo estas transformações à permanência do mesmo modelo, do mesmo caráter, do mesmo Van Gogh. Se a intensidade do olhar crítico e severo do pintor repete-se de tela em tela, sua forma de representação não; as primeiras são mais escuras, fundos espessos, marrom, bronze, enquanto que, forçadas pela cor e pelo toque quebrado do pincel, elas se tornam cada vez mais vibrantes, nada mais que cores. Os auto-retratos, continua Bonafoux, já não mais se parecem com o artista, mas com a pintura que ele inventa. Ele se sacrificou a ela e os retratos que ele pinta são menos os retratos DE si mesmo, que os retratos feitos POR si mesmo. É que eles não são uma representação oficial. Van Gogh não se pintou para ser reconhecido. Sua pintura é de uma outra ordem; ultrapassa seu caráter tanto quanto suas crises: para este autor, ela é o seu próprio olhar. Não um olhar que busca um reflexo de si mesmo; aqui, este olhar propõe, inquire, lança uma mensagem através da linguagem privilegiada do artista, sua pintura. Para Bonafoux, a pintura de Van Gogh se opõe a quaisquer manifestações sintomáticas que pudessem interferir de alguma maneira em sua criação. O autor é textual: “Sua obra é sua vida, não é sua vida que é sua obra.” (idem: 15). Este é o caminho pretendido por Bonafoux, acompanhar a metamorfose do Vincent van Gogh nascido em Zundert em pintura. Esta compreensão da relação vida e obra de Van Gogh pelos seus auto-retratos aproxima-se, mais amplamente, das considerações de Lejeune (1986) acerca da recepção do espectador diante do gênero auto-retrato na pintura. Partindo de três “enganos” cometidos por

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ele na apreciação e atribuição de retratos tomados por auto-retratos e vice-versa, o autor discute a relação realidade/ficção, modelo/ imagem, vida/obra na obra de arte. A certa altura de suas reflexões, o autor escreve: “Porque o retrato só funciona com este pressuposto: este indivíduo tem um valor social, e, mais fundamentalmente: o homem tem um valor. Aliás, todas as representações, tanto de objetos quanto de paisagens, são fundadas sobre um pressuposto derivado metonimicamente daquele. Só funcionam como signos do homem. Vejo então o auto-retrato como uma situação particular, um detalhe espantoso, onde irrompe bruscamente no centro do gênero mais codificado (o retrato) uma faísca (que por vezes encontra-se apenas no espírito do espectador) revelando de maneira vertiginosa a essência da arte: a auto-representação do homem (e não a representação do mundo), (...)” (LEJEUNE, 1986, p. 80).

Se toda a arte, independentemente da forma (gênero) que assuma, é auto-representação do homem, o auto-retrato, Lejeune (1986, p. 80) conclui: “torna-se a própria alegoria da arte.” Aqui, a identidade pessoal – definida como “uma relação estabelecida entre uma imagem e um nome próprio” (p. 79) – é secundária, ainda que a autorepresentação do homem, ou seja, a arte, parta sempre de uma dada individualidade. É justamente isso que a leitura de Bonafoux propõe: localiza no próprio processo artístico de Van Gogh (e não em suas disposições psíquicas), a grandeza e independência de sua arte, mais do que o registro de sua loucura. As duas últimas apresentações de Van Gogh representam as duas principais vertentes adotadas pela crítica (leiga e culta) sobre o artista desde sua morte: de um lado, prevalece a compreensão da vida e temperamento de Van Gogh relacionados com as expectativas culturais acerca do papel e da missão do artista na sociedade (artista isolado, incompreendido e louco); de outro, privilegia-se o acompanhamento da evolução de sua pintura, localizando-a na história da arte moderna (ZEMEL, 1980). De todo modo, desde a aparição no noticiário local de Arles, não mais cessaram as controvérsias envolvendo este artista. Desde sua primeira aparição, Van Gogh tornou-se um tema inesgotável.

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o estudo das cartas

Tabela: Temas e Subtemas TEMASSUBTEMASV1: Autodefinição (características pessoais) V2: Relação com a FamíliaV3: Relação com Théo: IrmãoV4: Relação com Théo: MantenedorV5: Relação com Théo: MarchandVIDAV6: Peculiaridades da Relação com ThéoV7: Reflexões e ValoresV8: Reconhecimento do TrabalhoV9: Sacrifícios, Opressão, IsolamentoV10: Vida AfetivaV11:CotidianoV12: Relação com AmigosV13: MorteA1: Artista/Arte ModernaA2: LiteraturaA3: Pintura: PreferênciasA4: Pintura: Descrição de suas ObrasARTEA5: Pintura: Descrição de Outras ObrasA6: Processo de Criação: PreferênciasA7: Processo de Criação: TécnicasA8: Cidade x Campo/Associação de ArtistasA9: ImpressionismoA10: AcademiaA11: Futuro/ArteD1: DoençasD2: Arte e Doença MentalDOENÇAD3: Doença Mental/Rejeição SocialD4: Médicos e SanatóriosD5: Percepção de Artista LoucoD6: Futuro/ Doença. 7 Para uma descrição detalhada de todo o processo de análise das cartas, conferir Godoy, 2006, Parte I, Capítulo 5: Corte e Costura: o procedimento da pesquisa. 6

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São mais de 900 as cartas sobreviventes escritas por Van Gogh, 652 apenas a Théo em 18 anos de correspondência. Desde sua primeira publicação (parcial) em 1914, várias edições se sucederam. A partir de então, suas cartas somam-se às suas telas como fonte de estudo de sua vida e obra. Elucidam dados biográficos, contêm suas reflexões a respeito da arte, testemunham sua trajetória. Expõem aos leitores os movimentos ora firmes e incisivos, ora frágeis e cambaleantes, de um artista que se pôs a escrever sobre si mesmo, apresentar seus pensamentos sobre o mundo que o cerca. E, na solidão desse gesto, como na da pintura de uma tela, Van Gogh se constitui. Um processo que não é linear, tampouco transparente. A intimidade de uma subjetividade, sua forma de ser mais profunda, expressa-se de maneira a turvar a vista do curioso leitor. Lança-o a enigmas que, paradoxalmente, não se deixam solucionar. Apreender o ponto de vista do próprio artista registrado em sua correspondência significa, portanto, propor um diálogo com o que tanto se pensou e se produziu sobre ele. Para isso, as cartas foram abordadas de duas maneiras, em momentos sucessivos. Batizada de corte-costura por João FrayzePereira, orientador da pesquisa e criador do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte, esta é a metodologia utilizada nos trabalhos ali realizados. No entanto, para utilizar uma outra expressão que lhe é cara, não se trata de prêt-à-porter, mas de um ateliê de “alta costura”, pois cada pesquisa, com suas problemáticas e recortes específicos, requer um tratamento sob medida, seguindo e ajustando-se às formas de cada temática. Assim, após a análise estrutural (identificação dos temas Vida, Arte e Doença, os quais se desdobraram em 30 subtemas6), as 262 cartas escritas nos últimos cinco anos de vida do artista foram analisadas tematicamente, o que significou o acompanhamento de cada tema ao longo da correspondência, observando-se as feições do tratamento dado pelo artista em cada momento de sua vida.7 Esta abordagem da correspondência permitiu alcançar uma compreensão do conjunto das cartas, tanto do ponto de vista do seu conteúdo, quanto dos aspectos formais que se sobressaíram em função das análises operadas; ao mesmo

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tempo, possibilitou a localização dos elementos necessários para que os objetivos do trabalho pudessem ser atingidos, ou seja, os elementos da correspondência que permitiram o delineamento da auto-imagem de Van Gogh.

auto-imagem Até agora, foram dadas algumas pinceladas que trouxeram diferentes imagens de Van Gogh, cada qual segundo uma perspectiva diversa. Apreendidas em sua pessoalidade, na relação com a loucura e em sua identidade artística (segundo os três grandes temas identificados na correspondência – vida, doença e arte), acrescento, agora, ainda uma outra, uma articulação desses três aspectos, presentes na auto-imagem do artista, estabelecendo, com estas imagens, um diálogo fecundo. O que ouvimos são as palavras mesmas do pintor. Na investigação dos componentes que definem para Van Gogh o artista que ele é, sua ligação vital com a identidade artística é o primeiro a ser apontado. É como se ele pintasse por ser esta a sua natureza. Esta idéia aparece em algumas passagens de maneira muito clara:8 WI “Tenho um negócio sujo e difícil, a pintura, e se eu não fosse como sou, eu não pintaria, mas sendo como sou, eu freqüentemente trabalho com prazer e posso visualizar a vaga possibilidade de um dia fazer pinturas com alguma juventude e frescor, muito embora minha própria juventude seja uma das coisas que perdi. (...) Não quero estar incluído entre os melancólicos ou aqueles que se tornam azedos e amargos e cheios de fel. Tudo compreender é tudo perdoar, e acredito que se nós soubéssemos tudo, nós alcançaríamos alguma serenidade. (...) De qualquer modo, não é má idéia você se tornar um pintor, pois quando alguém tem fogo dentro de si e um alma, esse alguém não pode mantê-lo fervendo – melhor queimar do que estourar o que está dentro. Para mim, por exemplo, é um alívio fazer uma pintura, e sem isso, eu seria mais infeliz do que sou.”

8 A nomenclatura que antecede os extratos apresentados referem-se ao número da carta em que se encontram. Foi adotada a numeração que consta em Correspondance Complète de Vincent van Gogh (VAN GOGH, 1960). As cartas dirigidas a Théo contêm apenas um número; as cartas à irmã Willemime são identificadas por um W e as endereçadas ao amigo Émile Bernard, por um B. Caso a carta seja para um outro interlocutor, seu nome será identificado.

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531 “Ah! meu caro irmão, às vezes sei tão bem o que quero! Posso muito bem na vida e também na pintura me privar de Deus, mas não posso, sofrendo, privar-me de algo maior que eu, que é minha vida, a potência de criar. E se, frustrados nesta potência fisicamente, procuramos criar pensamentos ao invés de criar crianças, continuamos contudo a fazer parte da humanidade.”

Van Gogh não tem escolha, não pode ser outra coisa que não um artista. Aceita sua natureza, o “fogo” e a “alma” que alimentam sua “potência de criar”. Isto o salva da melancolia e do rancor que poderiam predominar em função das perdas a que a mesma pintura o levou. Nesse instante, homem e artista não se dissociam. Mesmo sendo a arte a sua vida, continua, “contudo a fazer parte da humanidade.” Estas passagens indicam a dificuldade de se considerar separadamente o homem e o artista em Van Gogh. Todavia, um outro elemento aponta exatamente a direção contrária, pois diz respeito à oposição entre a vida de artista e a verdadeira vida – isto é, a vida dos homens que trabalham, ganham sua vida, têm filhos etc. Esta oposição perpassa toda a correspondência, levando à seguinte questão: como podem conviver, de um lado, a expectativa de que o verdadeiro artista seja aquele que se coloca integralmente diante de seu ofício, que apreende o mundo com sua alma e transforma sua percepção em pintura; e, de outro, a concepção de que a entrega exigida pela arte é tão irrestrita, que o homem é consumido em sua verdadeira vida pela vida na arte? Recordem-se as oposições já anunciadas: a “juventude” e o “frescor” da pintura em detrimento da juventude perdida do pintor, os contrastes entre a “potência de criar” e a “potência física” e entre seus respectivos subprodutos, “pensamentos” e “crianças”. Se se observar atentamente o que constitui cada pólo da oposição, ver-se-á que o sacrifício da verdadeira vida não é pelo artista. O confronto não é entre o homem e o artista, mas entre o homem e a arte. Pois, segundo as idéias de Van Gogh e os valores ali expressos, o fracasso nas realizações esperadas quando se vive a verdadeira vida – constituir família, criar filhos, sustentar-se com o próprio trabalho, garantir a saúde e um pouco de lazer, enfim,

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uma vida convencionalmente burguesa – não é compensado pelo sucesso na arte, traduzido, por exemplo, em reconhecimento do artista pela crítica e público. A compensação se dá pelo investimento no sucesso da arte, senão no presente, certamente projetado no futuro. 489 “E nós que, pelo quanto sou levado a crer, não estamos de modo algum perto de morrer, sentimos contudo que a coisa é maior que nós, e mais longa que nossa vida. Não nos sentimos à morte, mas sentimos a realidade de sermos muito pouca coisa, e que, para sermos um elo na corrente dos artistas, pagamos um alto preço em saúde, em juventude, em liberdade, as quais não desfrutamos nem um pouco, não mais que um burro de carga que puxa uma carroça cheia de gente que, essa sim, desfrutará a primavera.” 582 “Deixo isto, como convém, para pessoas mais completas, mais perfeitas que eu. Eu por mim sou bom só para algo intermediário, de segunda importância e apagado. Por mais intensa que possa ser minha sensibilidade, ou por mais que meu poder de expressão possa adquirir numa idade em que as paixões materiais ficam mais extintas, jamais eu poderia, sobre um passado tão carcomido e abalado, erguer um edifício predominante. Portanto o que me acontecer me é mais ou menos indiferente - inclusive ficar aqui - acho que ao fim e ao cabo meu destino se equilibrará.”

Van Gogh declara-se pessoal e artisticamente “bom só para algo intermediário”, incapaz de “erguer um edifício predominante”, a despeito de sua “intensa sensibilidade” e “poder de expressão”. Mas é exatamente neste lugar intermediário que, segundo suas concepções, o artista deve estar, pois, quando considera esta “coisa (que) é maior que nós, e mais longa que nossa vida”, ou seja, a arte, ser artista é ser um instrumento, é assumir a função de conduzir a arte, como o “burro de carga”, de um estado (“carcomido e abalado”) a outro, para que ela desfrute a primavera. O dilema vivido é lançado para adiante e a esperança no futuro da arte justifica a condição presente. Assim, em Van Gogh, a identidade artística não se distingue dos seus aspectos mais pessoais, ela lhe é orgânica, intrínseca à sua “natureza”. A arte, porém, exige sacrifícios que só serão recompensados no futuro; a promessa se

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reserva às gerações vindouras. Entretanto, o que acontece no âmbito individual da atualidade da vida do artista, qual o saldo deste sacrifício? O último elemento acrescentado a esta composição indica um caminho: a loucura como um componente da identidade artística de Van Gogh. 574 “Este bom Gauguin e eu no fundo nos compreendemos, e se somos um pouco loucos, que seja; não somos também um pouco artistas o suficiente para contrabalançar as inquietações a este respeito pelo que dizemos com o pincel? Todo mundo talvez um dia sofra de neurose, de histeria, de epilepsia, ou outra coisa. Mas não há compensação? Em Delacroix, em Berlioz e Wagner? E é real essa loucura artística de nós todos, não nego que sobretudo eu não tenha sido atingido até a medula; mas digo e sustento que nossas compensações e consolos podem, com um pouco de boa vontade, ser considerados como amplamente preponderantes.”

Num primeiro momento, Van Gogh contrabalança a loucura pelo que pode dizer “com o pincel”. Ao fazer isso, ele reivindica uma “compensação”, separando o discurso da loucura daquele da arte; eles não se confundem. Em seguida, ele reúne esses termos, empregando a expressão “loucura artística”. No entanto, esta adjetivação da loucura sugere, antes, uma especificação, delimitando o contexto artístico em que a loucura se expressaria, marcando sua diferença daquela que pode atingir “todo mundo”. É, portanto, a esta “outra” loucura que o artista se refere neste momento. A leitura desta passagem suscita uma impressão geral de que Van Gogh acolhe esta “loucura artística” sem muita surpresa. Ele afirma não temê-la e um dos motivos desta reação seria, em primeiro lugar, a “amplamente preponderante” compensação pela arte. Outras razões transparecem em suas palavras: 578 “Bom - afinal há tantos pintores que de um modo ou de outro são doidos, que pouco a pouco me consolarei.” 592 “Mas sem brincadeira, o medo da loucura diminui consideravelmente ao ver de perto as pessoas por ela afetadas, como eu facilmente poderia ficar a seguir. Antigamente eu tinha repulsa por estes seres e me era muito desolador ter que pensar que tanta gente de

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nossa profissão tenha acabado assim. Pois bem, atualmente penso em tudo isto sem receio, ou seja, não acho isso mais atroz do que se essas pessoas tivessem morrido de outra coisa, de tísica ou de sífilis, por exemplo. Estes artistas, vejo-os recuperando seu ar sereno, e você acha que é pouca coisa reencontrar ancestrais da profissão? E, sem brincadeira, fico muito agradecido por isto.”

Estas considerações não significam, obviamente, que a loucura não fosse experimentada como algo terrivelmente doloroso e ameaçador. Nada em seus depoimentos indica que a loucura tenha sido, de alguma maneira, bem vinda na vida do artista. O alívio perceptível em suas palavras advém de sua compreensão da loucura como um dos ingredientes que compõem a figura do artista, assegurando-o quanto à sua identidade e, por que não, conferindo um sentido à sua trajetória na arte até o desembocar de sua condição presente. Se, do ponto de vista da loucura como doença, há dúvidas quanto à origem e ao diagnóstico, a loucura enquanto elemento de sua identidade artística é uma certeza para Van Gogh, como se confere no extrato abaixo, seu máximo atestado disso. 582 “É preciso que eu sofra a prisão ou o hospício? Por que não? Rochefort, Hugo, Quinet e outros não deram um exemplo eterno sofrendo o exílio, e o primeiro até mesmo o banimento? Mas só o que eu quero dizer é que isto está acima da questão da doença e da saúde. Naturalmente fica-se fora de si em casos similares - não digo casos iguais, ocupando eu um lugar bem inferior e secundário, mas digo similares. (...) Penso em aceitar decididamente minha profissão de louco, assim como Degas tomou a forma de um escrivão. Mas acontece que eu não sinto ter toda a força necessária para desempenhar tal papel.”

Van Gogh articula, assim, suas duas visões predominantes da loucura: o fato de ela estar “acima da questão da doença e da saúde” - ou seja, de pertencer ao domínio da arte e não da medicina - não o isenta de sofrer os seus sintomas. Da mesma maneira, compreender que a loucura é um atributo de sua profissão não garante que ele terá “toda a força necessária para desempenhar tal papel”. Seria esta articulação uma outra expressão da dicotomia vida de artista / vida verdadeira, cuja nova versão poderia ser loucura de

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artista / loucura verdadeira, agora reaproximadas? Tal hipótese sugere que tanto o isolamento, quanto, posteriormente, a loucura de Van Gogh seriam resultantes do sacrifício da verdadeira vida pela escolha da vida na arte. Nesse sentido, a alienação de si mesmo provocada pelos delírios, alucinações e amnésias seria uma outra versão de um afastamento anterior, incitado não pela loucura, mas pela arte, tal como vivida por este artista. Bonafoux (1986) afirmava que, pela arte, Van Gogh se encontrara. Esta é parte da verdade, pois, pela arte, ele também já tinha se perdido. E o que dizer da afirmação ainda mais desconcertante de que, na loucura (artística), Van Gogh se reencontra? – “E você acha que é pouca coisa reencontrar ancestrais da profissão?” Aqui reside um dos mais intrigantes paradoxos que envolvem a figura de Van Gogh. Como é possível falar em alienação de si mesmo, se o acesso a esta complexa cosmogonia só foi alcançado através das cartas que ele mesmo escreveu em plena posse de sua lucidez, como ele tanto insiste? Não se pretende resolver o paradoxo; apenas lembrar, em primeiro lugar, que estas idéias foram articuladas a partir de categorias internas ao pensamento do artista; em segundo lugar, tais afirmações deverão ser compreendidas, considerandose o sentido atribuído pelo artista aos termos em questão: vida de artista, verdadeira vida, alma, loucura, loucura artística e a maneira pela qual, na concepção de Van Gogh, eles se articulam. Assim como faz sua obra plástica, a escrita de Van Gogh interroga, perturba o leitor, obriga-o a suspender e então rever sua própria bagagem moral e intelectual, sob a pena de não conseguir embarcar no universo proposto pelo artista. Assim, o paradoxo apresentado só se dissolveria na medida em que se supusesse, com a tradição racionalista, que razão e desrazão (cujo traje que melhor a veste é a loucura) mantêm entre si relações excludentes, rompidas pela necessária dominação da primeira sobre a segunda. Se as cartas de Van Gogh forem lidas sob este prisma, poderão oferecer apenas duas alternativas: ou a dissecação da loucura e a conseqüente formulação diagnóstica (com a varredura de tudo mais que existe nas cartas), ou a completa negação da loucura – isto é, tanto uma quanto outra representando o exercício desta dominação tingida de branco pelos aventais do século XIX, como tão

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bem ensinou Foucault (1978). Alternativamente, Van Gogh requer uma leitura mais complexa, não excludente, uma abordagem que encontre ferramentas para lidar com os aspectos contraditórios e às vezes obscuros desse fenômeno, como nos lembra Marilena Chauí (2002, p. 256), “porque o mundo humano é simbólico, portanto indeterminado, aberto ao possível, e a ação humana, quando livre, é o poder para transcender uma situação dada de fato por uma outra que lhe confere nova significação.” A propósito, a escolha por chamá-lo Van Gogh, neste trabalho, aconteceu a posteriori. Em meio ao debate acerca de sua denominação, optei pelo nome através do qual primeiramente tive contato com este artista, como a maioria de nós, como que para fazer jus à nossa história. Pensando bem, talvez tenha sido a escolha correta, pois este nome inarticulável ao estrangeiro que tenta dele se aproximar, escapa-lhe, resiste, permanece inapreensível e, contudo, cintilante, vivamente colorido, aguçando a curiosidade e a paixão que me movem em sua direção. Não deixa de ser surpreendente que, a despeito das adversidades, tenha sido este o nome que sobreviveu; mais um enigma, paradoxalmente compreensível, que envolve o homem que o porta.

Resumo: Inserido no campo de estudos da Psicologia da Arte, este artigo pretende explorar a complexidade envolvida no estudo do pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890), dada a extensa produção sobre o fenômeno em que se transformou e a diversidade de perspectivas pelas quais é abordado. Partindo da indagação: quem foi Van Gogh?, algumas visões do artista foram apresentadas, revelando o imaginário constituído em torno desta figura. Posteriormente, estas imagens dialogaram com a auto-imagem do pintor, delineada a partir do estudo de sua correspondência. A auto-imagem de Van Gogh emerge da articulação dos aspectos que, nas diferentes visões apresentadas, aparecem isoladamente: sua pessoalidade, a arte e a loucura.

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Palavras-chave: psicologia da arte, Van Gogh, correspondência, auto-imagem.

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presentadas, aparecen de forma aislada: su personalidad, el arte y la locura. Palabras clave: psicología del arte, Van Gogh, correspondencia, auto-imagen.

Abstract: Inserted in the field of studies of Psychology of Art, this paper intends to explore the complexity involved in the study of the Dutch painter Vincent van Gogh (1853-1890). This difficulty is due to the extensive production about the phenomenon he has become, as well as to the diversity of perspectives from which he is discussed. Beginning with the question: who was Van Gogh?, some views of the artist had been presented, disclosing the imaginary around this figure. Then, these images were thought in regard to the self image of the painter, delineated from the study of his correspondence. The self image of Van Gogh emerges from the articulation of three aspects which had appeared separately in the previous presentation: his personality, art and madness. Keywords: psychology of art, Van Gogh, correspondence, self image.

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Resumen: Insertado en el campo de los estudios de la psicología del arte, este artículo se prepone explorar la complejidad implicada en el estudio del pintor holandés Vincent van Gogh (1853-1890), dado la producción extensa del fenómeno en el cual se transformó y la diversidad de las perspectivas por las cuales se lo enfoca. A partir de la pregunta: ¿quién era Van Gogh? , algunos ángulos por los cuales el artista es visto fueron presentados, divulgando el imaginario constituido sobre esta figura. Más adelante, estas imágenes dialogaron con el auto-imagen del pintor, delineada a partir del estudio de su correspondencia. El auto-imagen de Van Gogh emerge de la articulación de los aspectos que, en las diferentes visiones

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e-mail: lucianagodoy@hotmail.com Recebido em 09/03/2007 Aprovado em 02/06/2008

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imaginário artístico e da arte entre os traços e resíduos das relações arte-natureza na obra de walmor corrêa

Marcio Pizarro Noronha Escola de Música e Artes Cênicas – EMAC Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia – FCHF Universidade Federal de Goiás – UFG

Miguel Luiz Ambrizzi Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação – CEPAE Universidade Federal de Goiás – UFG

apresentando o artista Walmor Corrêa é um artista catarinense radicado no Rio Grande do Sul. Seus trabalhos pertencem ao universo da pintura. Corrêa utiliza as técnicas da pintura clássica, com base no desenho, no desenvolvimento de estudos (esboços) e, posteriormente, a pintura, fazendo-se valer de uma tradição do tipo acadêmica. Suas pinturas recentes aproximam-se das ilustrações dos livros de História Natural, aliás, alvo do comentário de alguns críticos que se debruçaram sobre sua produção1. Durante seu processo de trabalho o artista realiza uma minuciosa observação e pesquisa em diferentes fontes

1 Encontramos estas referências nos textos de Tadeu Chiarelli, Blanca Brites, Maria Amélia Bulhões e Bianca Knaak. Indicamos a leitura do catálogo da exposição do artista aqui estudado, bem como consulta ao site do artista.

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científicas (livros de anatomia, compêndios e manuais de zoologia). Ele, primeiramente, formula uma hipótese sobre a espécie e, a partir daí, estuda como ela pode ser cientificamente descrita nas suas características mais gerais como anatomia, fisiologia e hábitos.

2 A escolha deste título teve como referência um texto de Sigmund Freud, a qual “está relacionada ao que não é doméstico, ao que não é simples, ao que é também rude. Relacionase com o que assusta, com o que desperta medo e horror”. Entretanto, o artista pensa que “tal palavra possua uma sensibilidade especial”. Para ele, a sua “curiosidade é no sentido de descobrir que sensibilidade é essa e como ela nos capacita a distinguir o que é estranho ou esquisito dentre as entidades que nos assustam” (Corrêa, 2004, 2005). Tal conceito perpassa a sua relação com as espécies que representa e também a relação daqueles que as vêem como criaturas reais.

Seus primeiros trabalhos neste domínio, encontrados na séria Natureza Perversa, apresentam cruzamentos de espécies animais como pingüim e peixe, gatos e pacas, siris e aranhas, entre outros. Criaturas essas que podem ser frutos da imaginação do artista, do medo dos efeitos inimagináveis do consumo abusivo de alimentos transgênicos ou de suas reflexões acerca dos experimentos da engenharia genética. Já no grupo de trabalhos intitulado Unheimlich2, Corrêa trabalha numa outra direção. Suas novas criações são mitos populares brasileiros, os quais são formados por hibridações de diferentes animais (cachorra da palmeira) ou de humanos e animais em um único ser (sereia e capelobo). Sendo assim, o artista, ao representa-los dessa forma, dissecando-os e dando um discurso de verdade para suas anatomias, estaria reforçando a crença e o imaginário popular ou estaria iluminando o desconhecido? Ainda nesta série, Corrêa combina informações tanto científicas (médicos e especialistas) como populares (moradores das regiões onde estes mitos e lendas se mantêm vivos), para então, representa-los como esperado em um atlas de anatomia, o qual se utiliza de conhecimentos técnicos de desenho, pintura e escrita.

revisão de alguns tópicos em torno da imaginação e do imaginário Muitas são as linhas de estudo que fazem uso do termo imaginário na composição de seu referencial teórico e nas formas da apreensão e leitura da realidade, envolvendo aí os estudos da história, da filosofia, da psicanálise e da arte. Na perspectiva dada como sendo a dos Estudos do Imaginário, este se constitui em um conjunto de representações, crenças, desejos, sentimentos que auxiliam na apreensão e entendimento da realidade, dando-lhe uma configuração, por vezes, identificada como sendo a de uma figuração –

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uma realidade figurada ou apreendida através de um conjunto de figuras. Em diferentes formas de entender o problema, o imaginário aparece como um campo de produção de análogos, sejam eles resultantes de operações conscientes ou inconscientes, apresentando de um modo ou de outro um elemento substitutivo para um objeto ou para uma realidade, constituindo-se este numa presença figural-objetal-imaginária. No campo de estudos da Arte e seus objetos podemos revelar, minimamente, duas entradas ao tema: uma delas busca apreender o modo do aparecimento e do funcionamento de um imaginário artístico – da arte, do artista e seus objetos – e o outro é aquele que se faz valer de uma perspectiva tematológica, concernente aos Estudos do Imaginário propriamente dito, tal como nos aponta JeanPierre Richard. Num campo, o estudo das problemáticas referentes ao campo artístico. No outro campo, todo um universo semântico abre-se ao objeto de arte nas suas relações entre cultura e simbolismo. Por outro lado, numa abordagem filosófica, imaginação é a faculdade criativa do pensamento, no momento mesmo em que este produz representações (imagens mentais) de objetos da percepção e/ou inexistentes – por exemplo, uma quimera, um ser imaginário, uma sereia, uma paisagem sem qualquer existência. A ordem cartesiana do pensamento é elucidativa neste domínio e trata a imaginação como algo que diz respeito especificamente a objetos que não possuem qualquer correspondência com o mundo da experiência. No princípio do racionalismo moderno, um veto à imaginação. Ou melhor, uma supressão das relações entre imaginação e experiência, fazendo da imaginação um tipo de experiência particular e alucinatória. A experiência, então, viria a ser critério substitutivo para a ordem imaginativa, tornando filosoficamente aceitável o princípio da observação e da descrição da realidade. O desenvolvimento dos aparatos técnicos corrobora este sentido de busca de apreensão do real, observável entre o olhar distanciado e o olhar aproximado. Ao longe, vê-se como paisagem. Na proximidade, as imagens parecem compor verdadeiras microscopias. A combinação entre o distante e o próximo é fundamental no desenvolvimento da tecnologia óptica. A observação deixa-se acompanhar

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pelas formas da catalogação. O mundo observável como paisagem (e panorâmica) é descrito a partir de princípios de microscopia. Nestes termos, o artista moderno deve combinar a distância com a proximidade, a paisagem com o retrato (olhar de observação), encontrando-se apto a promover uma ambiência de imersão, amalgamando a observação com o detalhe. Tudo isto propicia um jogo de imagens diversas – que configuram um catálogo, as “fisiologias” ao gosto da literatura e da arte naturalista – e, nesta panorâmica, uma sucessão de cenas. O estilo, a diversidade e, sobretudo, a técnica de construção das fisiologias, o sistema de catalogação que distribui todas as coisas num painel, encontram um equivalente perfeito nos panoramas. “O primeiro plano, visualmente elaborado, mais ou menos detalhado, do diorama tem seu correspondente na roupagem folhetinesca dada ao estudo social, constituindo um amplo pano de fundo análogo à paisagem”. Uma disposição espacial onde tudo tem lugar, que teria sua forma acabada na “pintura mecânica”. (...)

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olhar percorre toda a superfície, sem qualquer hierarquia de perspectiva. Mas não se encontra liberado para a fruição. O observador é convocado a uma atenção flutuante que segue o ballet mecânico das imagens. O princípio ilusionista remete ao trompe-l’oeil e não há qualquer novidade neste procedimento4. Apenas a diferença moderna encontra-se na incisão do tempo no espaço, na inclusão da temporalidade na paisagem. Esta sucessão denominada de diorama é extendida sob a superfície de uma tela e somente a museografia permite recuperar o sentido do claro-escuro oferecido pelo aparato técnico.

4 Neste âmbito podemos lembrar o texto de crítica de Blanca Brites, conforme as indicações bibliográficas ao final do trabalho.

como se vê um diorama?

Uma completa reorganização do regime da visão – dos princípios da visualidade – está se processando aqui. A constituição do observador autônomo, sem referência a um lugar, móvel. O panorama circular quebra o ponto de vista localizado da perspectiva pictórica, permitindo ao espectador uma ubiqüidade ambulatória. O mesmo esquema da visão do flâneur nas ruas. O diorama iria mais longe, retirando a autonomia do observador, situado numa plataforma que se movia lentamente, possibilitando vistas de diferentes cenas e mudanças nos efeitos de luz. O olhar é adaptado a formas mecânicas de movimento (PEIXOTO, 1996, p. 93 - 94).

Tudo depende da variação da iluminação, mais fraca ou intensa, magnífica ou terrificante. A obscuridade inicial que reina sobre a cena dá, aos poucos, lugar à luminosidade quase imperceptível e difusa da aurora. Uma paisagem se desenha com crescente nitidez, as árvores saem da sombra, o contorno das montanhas e das casas torna-se visível. O sol eleva-se cada vez mais alto, por uma janela vê-se o fogo na cozinha da casa e, no canto da paisagem, um grupo de camponeses está sentado em torno de uma fogueira, cujas flamas vão ficando mais vivas. A claridade do dia então diminui, até cair a noite. Mas logo o luar se faz sentir e a paisagem torna-se novamente perceptível. No primeiro plano, acende o farol de um navio no porto e, ao fundo, numa igreja sobre a colina, as velas do altar são iluminadas. Todo o movimento do mundo, o fluir do tempo, se ofereceu na tela pintada, transparente, com pequenas fontes de luz instaladas atrás, que a clareiam com seu fulgor artificial. É a “arte da ilusão” dos dioramas, a paisagem como um quadro mecânico. (...) Os dioramas, essas caixas que conservavam o antigo e o exótico, são “aquários do distante e do passado” (PEIXOTO, 1996, p. 94).

Em Walmor Corrêa, desde suas primeiras séries, esta problemática da apreensão filosófica cartesiana e das tecnologias visuais se apresenta e fica nominada e subvertida em Diorama Cartesiano V3 (ver Caderno de imagens – parte IV, figura 1). Um plano – a tela – se apresenta como paisagem. Não há um ponto de vista a seguir. O

O artista apresenta estas “idéias da imaginação”, produzidas enquanto fatos mentais, sem qualquer vínculo com a realidade exterior, mas, sustentados, na aparência, no modo eleito para dar à representação uma forma reconhecível, inteligível, assemelhada às formas da representação naturalista, tirando-lhes, portanto, o veto

O panorama é o paradigma do olho móvel. Sua plataforma central, exígua, obriga o espectador a se deslocar, a girar o olhar. Alimenta a visão, limitando seu espaço. O verdadeiro início pode então ser localizado no trompe-l’oeil. E seu prolongamento cinematográfico no cine-olho – a câmera móvel – de Vertov.

3 CORRÊA, 2003, p. 11.

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representacional, deslocando-as do campo quimérico para o campo representacional e para um puro jogo de simulação que duplica e desdobra os próprios simulacros do natural. A princípio, não há experiência destes objetos, há apenas invenção, imaginação, é o que poderia ter enunciado Descartes. O uso da representação convencionada como naturalista – as formas da ilustração da História Natural do século XIX e de seus herdeiros contemporâneos – e a abertura desta fenda na representação, pois da técnica ao conteúdo, há uma transformação no repertório do artista, temos algo que vai além do sentido propugnado de termo de invenção, transformando a invenção imaginativa em operação de matriz mais kantiana. A imagem produzida tem o poder de operar uma síntese, instaurando uma possibilidade de conhecimento, revelando a condição do simulacro da imagem naturalista por conta de sua duplicação e perversão. A imagem deixa de ser uma mera cópia do real, para ilustra-lo por conta de mimese do processo perceptivo. Tal como a imagem do inexistente ou do ainda não-existente, a imagem utópica ou do divinal, não propugna uma operação de simulacro da realidade, mas de um simulacro da Idéia propriamente dita, enunciando uma operação para lá de platônica. Diz, sinteticamente, Japiassu e Marcondes: “Assim, quando imaginamos Deus, a imagem que produzimos não copia nenhum objeto, mas se compõe de elementos de objetos reais” (JAPIASSU & MARCONDES, 1990, p. 129). Com isto, podemos afirmar que há uma imaginação divinal – ou por semelhança a esta operação de produção da imagem de Deus – na face monstruosa destes seres. As figuras de Corrêa não copiam objetos existentes, mas fazem aparecer um objeto composto por elementos retirados de diferentes objetos existentes no plano da realidade. Corrêa faz a travessia da modernidade num raciocínio direcionado ao campo dos mitos e da problemática platônica da imagem, na conjugação dos problemas do simulacro e da Idéia. Se, de um lado, esta operação permite a produção de um conhecimento acerca das categorias e das limitações encontradas no plano das representações, questionando os limites da forma de apresentação do mundo e da realidade suscitada pelo naturalismo, transformando-a na própria convenção produtora de efeitos de real,

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por outro, esta dimensão cognitiva, alça vôos na direção do pensamento propugnado na Antigüidade clássica, na medida em que a representação se integra ao reino dos simulacros. É do simulacro do simulacro enquanto a imagem se oferece para um enfrentamento da representação e uma reapresentação de um acesso outro à realidade. A cognição acedida pela via da sensação provocada – o mal-estar que a imagem produz ao desestabilizar a representação naturalista (e verdadeira, científica) – nos permite promover uma via de acesso indireto ao conhecimento da natureza, tornando-a efetivamente o reino de um possível e inteligível pela via desta operação de invenção. Animais imaginários compõem este cenário e, ao serem confrontados com as formas convencionadas da representação – com suas técnicas e repertórios culturais –, permitem, por conjunção e espelhamento, promover a abstração necessária para se chegar ao conhecimento da Idéia. Nesta perspectiva encontra-se um ponto de apoio fundante deste projeto que se desdobra em transformações (lógica transformacional), o da compreensão da Idéia de Ciência e da Idéia de Natureza, como paradigmas abrangentes que, para serem Idéias, necessitam não apenas da manifestação simulada dos objetos naturais, bem como da inclusão, por meio do artifício da convenção, da possibilidade da existência destes animais imaginários no conjunto dos seres naturais e existentes. A possibilidade do pensar conceitual, platonicamente, aponta para a forma ideal de sustentar, ainda, uma Idéia de Natureza que seja sustentável aos olhos da contemporaneidade. Há uma distensão das representações estáveis para que a Idéia possa se manter. Desse modo, a expressão da Idéia em Imagem é pura operação de simulação que, por inversão, nos confunde e nos direciona para a queda nos sentidos, destinando o observador a reunir as diferentes imagens e sensações e, a partir daí, operar uma nova síntese, uma abstração, capaz de dar nova porta de entrada ao mundo das Idéias. Como num jogo de vai-e-vém, o espectador é convocado a reconhecer nestes simulacros, o próprio simulacro da representação naturalista e, portanto, o jogo de mentiras tornadas estáveis que nela se encontram. Tudo isto, não com o intuito de duplicar as superfícies – raciocínio barroco –, mas de iluminar as Idéias, esten-

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dendo, através do simulacro do simulacro, a condição de realidade dos seres imaginários e, portanto, tomando a Natureza como plano da Idéia. Corrêa, ao embaralhar imagens, nos conduz, tal como Demiurgo, e convoca a pensarmos por meio de um paradigma do possível existente, ultrapassando os meios da representação da experiência sensível e as formas como os objetos concretos tornam-se visíveis. Até aqui, as imagens “distorcidas” e tecnicamente sustentadas nos modelos representacionais hegemônicos servem à cognição.

as imagens e as tradições 1. o artista viajante e as ilustrações da história natural e suas vizinhanças (teratologias, animais fantásticos).

5 BRAGA, 1988, p. 4.

Os trabalhos de Walmor Corrêa, como afirmamos, mantêm as características e os princípios da ilustração científica, que busca, através da representação fiel do modelo, uma verdade (do tipo científico). A ilustração científica é um documento que é elaborado com técnicas do desenho e da pintura em aquarela – uma produção estética utilizada para fins científicos da zoologia, botânica, entre outras áreas. Pinheiro (2000), em seus “diálogos interconexos”, designa que as contaminações do campo científico pelo artístico, e vice-versa, não são apenas características das produções recentes em arte e ciência. Elas já estão explicitadas nas estratégias de produção das imagens desde o período das Grandes Navegações – do século XVI ao XIX, com a exploração das fronteiras planetárias. O artista, contratado para trabalhar nas expedições científicas, podia usar a observação científica como leitmotiv para a exploração formal bem como a ciência se fez valer da arte para a obtenção de diferentes meios de registro da realidade (ver Caderno de imagens – parte IV, figura 2 - Hércules Florence, Piranha, 18275). De acordo com Pinheiro, voltando os olhos para o passado, vejo que essa aproximação não é tão nova assim, nem de uma parte, nem de outra. O que seriam os

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antigos registros pictóricos dos viajantes europeus nas terras distantes: Pintura? Etnografia? Ciências Naturais? A arte usava como motivo a observação científica, e a ciência usava a arte como registro, como instrumento. Temos, portanto, a arte falando de antropologia, a antropologia usando a arte como instrumento, e ainda a antropologia falando de arte enquanto objeto de estudo (2000, p. 129).

A arte produzida pelos ilustradores científicos tinha como objeto a exploração do material etnográfico e, portanto, acabava falando de uma “certa antropologia” – bem como de uma zoologia, de uma botânica – a partir de suas investigações formais. Por sua vez, as expedições científicas faziam dos artistas e de suas técnicas de registro da realidade um instrumento para o desenvolvimento da pesquisa científica aos moldes do século XIX. Posteriormente, as próprias reflexões do campo teórico irão tomar estas obras como documentos do passado, falando de arte do ponto de vista das relações culturais, tal como nos estudos do Imaginário e dos Viajantes, onde estas obras e relatos passam a ser examinados de um ponto de vista histórico. A temática geral das relações entre arte e ciência, tal como apontada por Pinheiro, encontra-se desenvolvida no estudo monográfico de Oliveira e Conduru (2004). Para estes autores, que estudaram uma série de pranchas com representações coloridas de barbeiros, estamos diante de um problema nos relacionamentos entre arte e ciência. Se, na atualidade, como aponta Pinheiro (2000), as conexões formam produções artísticas reconhecidas, no passado, o julgamento por parte da ciência, poderia destinar ao limbo as obras com excessivo caráter artístico e pouco caráter científico. Se hoje temos uma interconexão, no século XIX havia mais uma negociação mediada por categorias científicas. Se hoje o artista se apropria da ciência para o estético, no passado, a ciência fazia o uso técnico do saber artístico. Estas atitudes apropriativas do artista, e mais liberadas em relação aos moldes científicos para a produção das imagens, podem resultar na exclusão das imagens, no seu ocultamento tanto para a ciência quanto para a arte (OLIVEIRA & CONDURU, 2004), bem como na separação entre artista e naturalista. Os artistas-viajantes não produziam somente desenhos, pinturas e esboços. Várias pranchas produzidas por eles estão acompanhadas

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6 CORRÊA, 2003, p. 27.

de anotações que são, em sua maioria, técnicas, classificatórias, informações científicas que pretendem ressaltar os interesses de tal registro. Observando os trabalhos de Corrêa, podemos identificar questões de anotação que mostram claramente sua minuciosidade quanto às condições de observação. O artista, ao elaborar suas obras, assinala em seus desenhos tanto o nome de pormenores e características da partes do animal, registrando elementos da morfologia e da fisiologia. Nestes termos, estes trabalhos absorvem as características dos primórdios da ilustração científica, um tipo de representação figurativa que se combina com o uso de textos (ver Caderno de imagens – parte IV, figura 3 - Walmor Corrêa, Apêndice II, Série Catalogações, 20036).

gem (ibid.). Como dissemos, o artista faz uso do texto para nomear detalhes e comunicar as características de tais criações, as quais ele as “batiza” com nomes em latim – privilegiando a referência à tradição da taxonomia – ou em alemão – por ser uma língua que permite a junção de palavras, na formação de compostos –, tais como:

De acordo com Oliveira e Conduru (2004),

Desse modo, os títulos trazem à tona, tal como no pensamento visual e da linguagem, a herança das tensões entre a retórica (da linguagem) e a imagem. Os enfrentamentos e as relações entre palavra e imagem, entre texto e pintura, são problemas da ordem platônica e as soluções encontradas entre os séculos XVI e XVIII, tratam exatamente deste enfrentamento entre uma visão leonardiana (que se assemelha a idéia de que uma imagem vale por mil palavras) e uma visão da tradição do Ut Pictura Poesis, na qual ocorre uma subordinação da imagem ao campo narrativo. A pintura, do século XVI ao XVIII, vive em grande parte, sob a égide da ilustração. Pensar a arte a partir das suas relações históricas com a ilustração, portanto, corresponde a pensar sobre os princípios de ordenação retórica, da imagem como campo narrativo e, numa dimensão de obediência aos princípios da comunicação visual e gráfica. A imagem designa uma dimensão de conteúdo (semântica) na qual o espectador é um leitor de informações e de determinados significados socialmente reconhecidos e culturalmente estáveis. Neste jogo entre a imagem comunicativa e a imagem artística, os meios técnicos, o reconhecimento dos modelos de composição e de descrição visual e os elementos que produzem o efeito de verossimilhança são de grande importância. No verossímil, a imagem deve ser capaz de remeter diretamente ao objeto observado e tomado sob a forma da representação. Em alguns casos, o verossímil é um efeito retórico – quando reconhecemos por conta de um padrão ou modelo de produção imagética – e em outros é uma instância que

a ilustração científica é um tipo de representação figurativa cujas finalidades são registrar, traduzir e complementar, por meio da imagem, observações e experimentos científicos que vão desde a descrição de espécies microscópicas de animais e vegetais até a anatomia humana, passando pela arqueologia, paleontologia, mineralogia, geologia, cartografia, astronomia, arquitetura, física, engenharia e história natural de uma infinidade de seres vivos e sua relação com a paisagem ou nichos onde vivem.

A ilustração é, em sentido geral, uma imagem que está usualmente acompanhada de texto, fazendo parte, assim, do que se denomina iconografia, ou “documento visual que constitui ou completa determinado texto” (ARAÚJO, 1986, p. 477). Incluem-se nos conceitos de iconografia ou ilustração as imagens obtidas tanto através de métodos manuais de representação como desenho, pintura e gravura, quanto de reprodução técnica, como a fotografia (p. 336). Nestes termos, Walmor atende mais claramente aos princípios da produção de uma iconografia ou de um “pensamento de ilustração”, no qual imagem e texto encontram-se associadas, mas não subordinadas, como apontam Oliveira e Conduru (2004). Na ilustração, um pensamento comunicacional precede ao senso artístico. Nesta forma de comunicação visual, os recursos técnicos da arte são utilizados com a finalidade de atingir significados formais estáveis, tornando uma informação do tipo abstrato ou uma descrição em ima-

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“Möve mit Krallem” (Gaivota com garras); “Wirbeltierspinne” (Aranha vertebrada); “Amphibien mit Schnabel” (Anfíbio com bico) – língua que permite também uma certa liberdade na junção inabitual de palavras, ou recebem uma fictícia denominação latina como o “Apterigiformes Aço II”, acompanhando a tradição acadêmica (BRITES, 2003, p. 14).

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se aproxima da noção de mimese enquanto cópia do real – o efeito de real na figura.

7 Este é o problema que foi introduzido neste texto e nas formas do relacionamento entre imagem-texto com o pensamento filosófico e científico. Traçada a imaginação como zona do campo da “loucura”, restaria para o pensamento visual a ordem da experiência, obtida através da observação. Nestes termos é que entendemos a importância do desenvolvimento dos aparatos ópticos, como o meio de encontrar uma maior exatidão na observação e a supressão das diferenças entre a representação e a realidade. Uma ordem eminentemente ficcional denominada para o campo da literatura como sendo a do “efeito de real” (Barthes).

O que importa, em suma, é que o espectador-leitor seja capaz de identificar na representação um objeto qualquer existente no plano da realidade observada, e possa, portanto, por definição, comparar a representação com a observação7. O desenho e a pintura de caráter científico eram os meios para a produção desse tipo de testemunho visual e para o estudo sistemático dos elementos advindos do mundo natural. Assim, a produção deste artista corresponde provocativa e conscientemente ao ideal da representação que caracteriza a ilustração científica, podendo: (...) variar muito em termos de composição: encontra-se em uma gradação que vai desde o linear, esquemático, diagramático até trabalhos de contornos e traçados bem-definidos, preenchidos com tinta, coloridos e de elevada complexidade plástica (fig. 41). O importante é lembrar que o tipo de imagem que chamamos de ilustração científica deve ser útil à caracterização de um objeto, sem teoricamente conter ambigüidade ou outra característica que resulte em uma interpretação, por parte do leitor, diferente daquela que o cientista deseja transmitir (OLIVEIRA & CONDURU, 2004, p. 337).

Walmor utiliza as normas estabelecidas neste tipo de trabalho visual, o que possibilita que em suas obras possamos enxergar a síntese entre a verdade científica e a criatividade artística nos conduzindo a uma ilusão. Em seus trabalhos vemos que seu pensamento analítico fragmenta os corpos dos animais, para evidenciar detalhes das cabeças e patas de aves. Por outro lado, ao fragmentar ele recombina e produz seres impensados, presentes na ordem imaginária, convocando-nos, desde já, às teratologias. Como diz Chiarelli, ao observarmos mais atentamente suas obras, podemos perceber que: não se trata exatamente de representações naturalistas de animais que povoam os cotidianos da mata do país. Na seqüência, percebemos também que, de fato, a verdade supostamente inerente à estética naturalista não passa de um mito passível de ser questionado por um talento mais perverso (2002, p. 9).

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Como enunciamos, a perversidade encontra-se no uso do efeito de real provocado pelo mote do naturalismo, amplamente aceitável como modo de representação científica da realidade, para promover a existência dos seres inexistentes, mas possíveis (ou tornados possíveis por sua vizinhança e sua afinidade com um padrão representacional, aceitável para nosso olhar culturalmente “sitiado”). Walmor, nestes termos, parece ter sido tomado pelas impressões que os viajantes estrangeiros (séc. XIX) tiveram e registraram ao defrontar-se com o mundo natural exuberante brasileiro. Com o domínio da técnica do desenho e da ilustração, este artista nos conduz a uma credibilidade aos seres por ele criados. São ilustrações que desafiam “nossa crença na verdade da estética do natural, embora... sinalize para uma natureza transformada em puro artifício e arbitrariedade” (ibid). Ainda para Chiarelli, em suas obras encontramos “híbridos de mamíferos e insetos, pássaros e peixes, mamíferos e aves, mamíferos e peixes”, que: falam de um mundo fantástico, representam a taxidermia de uma fauna fantástica que perturbam nossa percepção, sobretudo pelo fato de que, na atualidade, eles não se apresentarem como meras alucinações artísticas, mas como possibilidades científicas (ibid).

Brites reafirma tal pensamento quando ao escrever que “pequenos detalhes atraem o olhar, causando sensação de estranhamento”. Para ela, tais detalhes “se tornam mais definidos, evidenciando uma fauna que se mostra em toda sua complexidade híbrida, sendo possível intuir a mescla das várias espécies” (2003, p. 13). Suas obras são vizinhas das teratologias, das mitologias e dos animais fantásticos (ver Caderno de imagens – parte IV, figura 4 - Walmor Corrêa, Ondina, 20058). Mas, ao mesmo tempo, são representadas, como pertencentes ao modo naturalista de olhar o mundo. Daqui para adiante, a zoologia de Corrêa estará mais afinada com uma cripto-zoologia, o reino da investigação da existência dos ditos seres imaginários, e, o artista será, por outra via, um tipo de cientista, ou, mais ainda, talvez, promovendo uma reinversão das relações entre ciência e arte no tempo presente. Se o século XIX assiste a estabilização do modelo ascendente da ciência e de uma noção de ciência intimamente relacionada aos conhecimentos físi-

8 CORRÊA, 2004-2005, p. 3.

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cos e biológicos, onde a produção artística pode e deve estar submetida ao regime da visualidade propugnada pela ciência, a visão cripto-zoológica de Walmor Corrêa pode estar reinaugurando, num ponto de vista contemporâneo e, quiçá, pós-moderno, a proposição de que a ciência deve seguir a invenção da arte. Mundos imaginados pela arte deverão ser investigados e criados pela ciência. Não será esta a visão contida numa cosmovisão genética do mundo? Ao invés do desaparecimento de seres, por princípio de extinção (evolucionismo do século XIX), estas obras estariam a nos oferecer uma cosmovisão onde recombinações e atualizações poderiam reapresentar ao homem contemporâneo, num mesmo cenário, seres mutantes e animais pré-históricos?

2. as simulações e inversões de walmor corrêa e suas relações com o imaginário da arte contemporânea: o que fazem estas “aberrações” no cenário contemporâneo? Uma das questões, portanto, posta na pauta desta análise encontra-se no modo como esta produção artística se relaciona com o próprio imaginário da arte, ou seja, com aquelas afirmações e crenças que, a partir da modernidade, constituem o ethos do mundo da arte. A noção de arte moderna deve sua imagem às grandes feições da revolução retiniana na pintura do século XIX – impressionismo – e seus prosseguimentos na virada pictórica propugnada pela pintura gestual e abstrata norte-americana e seu ideólogo, Clement Greenberg. O debate em torno do moderno implica, portanto, numa consciência da arte em torno da própria arte e a plena realização da autonomia das linguagens. Nestes termos, a pintura de Corrêa estaria inserida numa corrente historicista do tipo pós-moderno, fazendo frente a esta concepção do moderno, e nas vertentes que fazem retornar ao campo da problemática artística as categorias do mundo da linguagem e do pensamento de uma retórica da pintura – em sobredeterminação da linguagem em relação ao imagético ou visual.

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De que maneira pode-se aprofundar esta dimensão imaginária da arte e do que se entende por arte contemporânea? No campo dos estudos da Arte e seus objetos, revela-se a busca de uma apreensão do modo do aparecer e do funcionamento do imaginário artístico – da arte, do artista e seus objetos – na contemporaneidade. Nestes termos, o trabalho de Fabbrini é bastante elucidativo e enuncia o problema dos signos e do modo como a contemporaneidade se constituiu como eleição de formas e matérias do tempo para a construção da obra. Afigura-se um imaginário da Imagem-Tempo. Este pode ser representado, nas produções artísticas, através de uma reedição constante das imagens do passado – seja por paródia, seja por alegoria, em apropriações e produções de intertextualidade – ou de uma operação que entende o passado enquanto matéria da memória e, no campo das potências plásticas, da matéria, ela própria memória. A modernidade do final do século XIX é inaugural nesta dimensão e tal, como enuncia o autor acima citado, temos sua produção desde o pós-impressionismo. Encontramos seu raciocínio em Van Gogh, Ensor, Kokoschka, nas collages de Braque e Picasso, nos Merztableaux de Schwitters, e, mais recentemente na produção pictórica matérica, dos anos 1950 para cá9. Tudo aqui se integra às transformações do paradigma retiniano em direção ao campo do problema matérico, revigorando e transformando as concepções do campo pictórico propriamente dito10. Para entender, contemporaneamente, como imagens do passado, matéria e memória se articulam na produção do imaginário artístico propriamente dito, o crítico Fabbrini propõe uma leitura da produção de três artistas, o norte-americano Julian Schnabel, o alemão Anselm Kiefer e o brasileiro Nuno Ramos. Nesta perspectiva, a obra de Anselm Kiefer seria talvez uma das maiores operações de síntese do imaginário da arte, pois ela reúne, em si, a dimensão de conteúdo alegorizante das imagens do passado (passado histórico e da história da arte) com as potências da matéria (tradição moderna, pintura matérica), dando às imagens uma dimensão corpórea. Ela opera uma síntese entre as tradições pré-modernas – da pintura narrativa – com a tradição moderna – da pintura pictórica.

9 Fabrinni cita Jean Fautrier, Jean Dubuffet, Wols, Jean-Paul Riopelle, Pierre Soulages, Antonio Tapiés, Karel Appel, Alberto Burri e Eduardo Paolozzi. 10 O raciocínio pictórico, típico de uma formalização barroca, expande-se na pintura retiniana e ganha uma tessitura, no século XX, nas diferentes manifestações da pintura matérica e gestual. Nestes termos, o raciocínio do classicismo-modernismo do Laooconte (Greenberg), na afirmação da autonomia entre as diferentes linguagens e de uma categoria autônoma do pictórico, encontra-se combinado a uma prática do pictórico em oposição ao raciocínio linear, expandido no interior do campo de separação das linguagens, a própria condição de ultrapassagem das suas fronteiras enquanto linguagem. A hierarquia desenho-pintura é superada no alto modernismo e seus desdobramentos permitem a proposição de uma situação paradoxal, para a qual a autonomia da pintura é a própria afirmação do gesto e, portanto, reintegração da linguagem da pintura no campo da gestualidade. Aqui, a interpretação de Greenberg para um artista-modelo como Jackson Pollock pode ser ultrapassada por uma percepção da força do gesto e as condições da produção desta pintura enquanto performance e não, restritivamente, enquanto linguagem da pintura.

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Mas, por outro lado, podemos pensar numa dimensão de conteúdo imaginário que, ao referir-se ao passado artístico e sua historicidade, a uma determinada relação com a tradição (de procedimentos e técnicas, história técnica e dos materiais, do ensino da arte acadêmica e das formas da organização do pensamento sob a forma do desenho), ao enfrentamento com o plano da ilustração no campo figural (com a observação das relações produzidas historicamente entre imagem e texto), revelam-se privilegiadas no que tange a apreensão – por via da ficção, da imaginação – do próprio passado histórico, fazendo-se um campo metafórico da História da Arte. Neste campo de ação, a intersemioticidade e a interculturalidade se fazem evidentes. Numa leitura do artista Mimmo Paladino, Fabbrini sugere a presença de (...) um homo viator (o “amalgâmico”, “filho das fusões e amante das algaravias”), o autor de um “dicionário dos mundos mitológicos”: um “bazar de culturas, européias e não-européias”. Não é um viajante que se detém nos lugares para conhecer seus aspectos naturais, sociais e culturais. Sua travessia (pois il viaggio é la metáfora della vita), ao contrário, assume o risco da indebita appropriatio, de tornar a história da arte um acúmulo de imagens e não um problema. Além das referências indicadas, encontramos entre os mitos de seu museu pessoal seres emplumados, homens tatuados e sacerdotes de rituais perdidos no tempo. Sua história, além de acolher as diferentes épocas e latitudes, é também um manual de entes estranhos: uma silva de varia lección (2002, p. 31).

Aqui, uma divergência se constitui. O maneirismo contemporâneo dos artistas ocidentais (alguns reconhecidos como sendo pintores neobarrocos ou pós-modernos), como o de Paladino ou o de Schnabel, tem como alvo a reintegração na coleção das imagens do mundo ocidental os aspectos de uma cultura de musealização. Nestes termos, um certo “orientalismo” romântico, no sentido ideológicoconceitual do termo, apresenta-se neste tipo de obra contemporânea. O artista viajante pós-moderno realiza uma viagem consciente numa cultura destinada à musealização. Assim, referir-se a imagens é referir-se às condições de sua historicidade, não enquanto uma problemática, mas enquanto uma condição de ordem factual. Cada artista obedecerá à produção de uma singular trajetória imaginária.

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E em Corrêa, o que encontramos? Por um lado, o artista integra-se, como outros pintores brasileiros11, ao movimento da figurativização dos anos 1980. Nesta linhagem, sua pintura tem como ponto histórico às referências diretas ao modo de fazer de uma tradição (do desenho-pintura) e ao conjunto do repertório das imagens, aplicando-se a ele, um raciocínio clássico, como o de um pintor arcadista – onde pinturas são narrativas e figurativas. Por outro, ao fazer da técnica um modo de apresentar a História, no campo imaginário, o artista realiza o esforço de, nas palavras de Lévi-Strauss, “(...) com toda a aplicação técnica da pintura mais tradicional, para reconstituir em torno de mim um universo mais vivível do que este em que me encontro (...).” (CHARBONNIER, 1989, p. 84). E, mais ainda, num entendimento precário da obra de arte, pensando como certos objetos do pensamento podem, em determinados contextos, e, por uma certa disposição, serem observados enquanto obras de arte. Como nos diz Lévi-Strauss, Chegue a dispo-lo de várias maneiras: uma maneira, ou algumas maneiras, que seriam utilitárias e científicas, e outras, que seriam gratuitas e artísticas, e que a diferença entre elas só diga respeito aos arranjos. Uma concha não é a mesma coisa em uma galeria do Museu de História Natural ou sobre a mesa do amador de curiosidades... da mesma forma, algumas curvas são equações para os matemáticos, ou objetos maravilhosos. (...)

Não creio que a partir do momento em que nos engajássemos nesse caminho – e concebo perfeitamente que nossa civilização poderia encaminhar-se para ele – conseguiríamos frear o movimento e pará-lo no ponto que você focaliza, de uma simples redistribuição literal. Iríamos cada vez mais na direção da divisão, da recomposição, e em que finalizaríamos? Talvez numa pintura minuciosamente figurativa, mas onde o artista, ao invés de dar uma visão mais ou menos transposta e interpretada, fabricaria superpaisagens, como aliás a pintura chinesa jamais cessou de fazer; seria mais nesta direção que eu veria aparecer uma solução da contradição atual: em uma espécie de síntese da representatividade, que poderia ser de

11 Esta questão se presentifica na geração 80 na pintura brasileira. Em trajetória contemporânea ao artista catarinense de nascimento e gaúcho por adoção, encontramos o maneirismo do pintor Julio Ghiorzi, com suas referências intertextuais e intervisuais à pintura holandesa – mais do que aos modelos da pintura espanhola – e ao próprio modernismo. Neste sentido, encontramos uma importante medida comparativa que permite associações, aproximações e diferenças entre estes dois pintores historicistas. De um lado, Corrêa faz uma referência direta ao raciocínio linear, tipicamente renascentista, do paradigma clássico, privilegiando a constituição de uma linha a ser colorida. Ghiorzi é um artista formalmente implicado no raciocínio do tipo pictórico e, portanto, de uma tradição formal barroca. As associações historicistas de Corrêa integram-se à problemática do campo narrativo na imagem e à tradição do Ut pictura poesis. Ghiorzi refere-se aos modelos visuais do século XVII, mas sua problemática é integrada ao problema do exclusivamente pictórico. Nestes termos, os efeitos maneiristas – e, portanto, da tradição que mais integra o texto à imagem – são subsumidos num campo decididamente clássico-moderno, greenberguiano, na afirmação das relações intervisuais entre as imagens pictóricas e fazendo desta forma uma questão mais atual entre os embates da pintura do alto modernismo e a Pop Arte, ou seja, um perfilamento na problemática histórica da História da Pintura. Consideramos que os procedimentos de ambos os pintores são altamente elucidativos dos trajetos da pintura figurativa na

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década de 1990. Em Corrêa, tal como já o foi afirmado, a pintura pode ser reconvocada às suas funções retóricas – da linguagem – e, nos termos clássicos, dar ao seu fac-símile do real, um grande detalhamento que provoca os limites da significação – cultural – dos objetos pintados, ultrapassando a ordem perceptual e nos convocando a pensar na ordem imaginária e na estrutura (anatômica, fisiológica) dos objetos. Seus objetos serão museais na medida mesma em que se amplifica a compreensão e o reordenamento da ordem imaginária científica. Em Ghiorzi, o problema se restringe e reverbera no campo de uma retórica da pintura propriamente dita. Suas alusões historicistas são referências explícitas ao campo da História da Arte e, nestes termos, são originariamente objetos museais artísticos. Assim, de um museu a outro, da História Natural à História da Arte, ambos os artistas realizam, como no dizer de Lévi-Strauss, “pinturas superlativamente figurativas”. Ver CHARBONNIER, 1989.

novo levada a um ponto extremo; e não da representatividade, que atuaria sobre o plano da livre combinação dos elementos. (...)

Mas imagino perfeitamente que pudesse viver diante de uma grande paisagem; eu conheço... você irá chocar-se, talvez, pois citarei pintores menores, que aliás, de maneira bastante curiosa, são os únicos aos quais, no momento, continuo sensível: digamos, esses grandes quadros de Joseph Vernet que representam os portos marítimos da França do século XVIII, expostos na grande sala do Museu da Marinha e que estão entre os raros que sempre me dão profunda emoção. Imagino que pudesse viver diante desses quadros e que as cenas que representam se tornem para mim mais reais do que as que me cercam. Ora, o preço que têm para mim relacionase ao que me oferecem: o meio de reviver essa relação entre o mar e a terra que ainda existia na época, essa instalação humana que não demolia completamente mas arranjava as relações naturais da geologia, da geografia e da vegetação, restituindo assim uma realidade de predileção, um mundo de sonho onde podemos encontrar refúgio (CHARBONNIER, 1989, p. 85 - 86). O que identificamos enquanto ordem simbólica na produção de Corrêa diz respeito a esta capacidade de “com a aplicação técnica da pintura mais tradicional”, reconstituir um universo vivível. Seus objetos de eleição, seus desenhos-pinturas, ordenados neste contexto de referencia museal, problematizam nossas tradições representacionais e, no seu limite, propugnam um questionamento histórico à ordem civilizacional científica bem como aderem a novos patamares de organização do saber científico. Dispostos em gabinetes, gavetas, pranchas, redomas de vidro etc. sobrepõem ao científico o artístico, combinando ao pensar científico a noção de arranjo estético – o raciocínio do trompe l’oeil da arte. Assim, esta pintura figurativa e minuciosa produz uma visão de mundo, uma superpaisagem, não apenas como representação do mundo, mas como síntese das operações históricas da representação, numa dimensão sincrônica, atuando sobre uma combinação

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de diferentes elementos da tradição – da pintura propriamente dita, das relações imagem e texto, da representação científica etc. Estas imagens ocupam um lugar no imaginário artístico e da arte, pois como herdeira dos pintores de ilustração e dos artistas documentaristas – que estão próximos do Vernet de Lévi-Strauss – sua produção imagética corresponde a uma superpaisagem, um quadro que ultrapassa os seus meios e sua retórica (do texto, da imagem) para nos oferecer um modo imaginário do relacionamento entre a arte e a ciência, entre o animal e o humano, numa instalação que se sobrepõe à organização científica – do evolucionismo biológico – e propugna um arranjo e um reequilíbrio entre as tradições e as invenções, orientando um mundo de representações estáveis para um mundo instável de objetos a serem representados, reconhecendo que o pensamento do concreto e a tessitura do mundo podem ser capazes de reorientar a arte e a pintura, de modo que este, nos seus limites, convoque as novas formas do pensamento científico – do paradigma genético – a integrar-se a nossos modos de reconhecer o mundo, “retornando à fantástica diversidade das espécies”. (CHARBONNIER, 1989, p. 87) Assim, este pintor seria parte de um imaginário artístico pós-Duchampiano e pós-Warholiano, preparando-se, pela via da tradição ocidental da pintura, a ultrapassagem do já esgotado raciocínio do ready-made (do objeto manufaturado) e da sua versão perversamente alegre do objeto de consumo, propugnando uma extensão da arte na direção da natureza e na diversidade do mundo.

concluindo. “o carnaval dos animais”, de walmor corrêa. rumo ao imaginário dos animais. Sim, mas desse ponto de vista, a natureza é muito mais rica que a cultura: esgotamos tão rapidamente os objetos manufaturados, em comparação com a fantástica diversidade das espécies animais, vegetais e minerais... enfim, esse novo caráter do ready made é uma espécie de último recurso, antes de retornar à grande fonte. (Claude Lévi-Strauss)

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12 PATIÑO, Victor Manuel (ed.) Faunética. Antologia poética zoológica panamericana y europea. Acopio, ordenamiento, introducción, traducciones y notas de Víctor Manuel Patiño. Santafé de Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1999. 13 Muitos dos textos da História Natural misturam observações e descrições de observação com registros advindos do campo do imaginário. Patiño ressalta que as obras pioneiras do século XVI ainda aceitavam, sem evidências, a existência real de animais tidos como sendo imaginários, com registros encontrados sob a forma da poesia oral e de ilustrações, sem qualquer testemunho de observação por parte do autor. Mesmo no século XIX, com a ascensão do paradigma científico, pesquisas desenvolvidas em torno dos artistas-viajantes demonstram que a dimensão ficcional, da fabulação e da invenção, sempre este presente e instituindo as representações. Padrões de representação e repertórios, tal como elenca Baxandall, são tão importantes para a construção das imagens quanto a observação in locu do mundo natural. Em dissertação de mestrado defendida recentemente (2007), Ambrizzi acompanha algumas destas estratégias de produção representacional, demonstrando como algumas das imagens produzidas por artistas-viajantes no Brasil, sob a égide da ciência da época, criavam cenários e paisagens inexistentes. Sem tratar especificamente deste tema, o trabalho aponta exatamente para este campo da pesquisa do imaginário histórico, como alvo de futuras leituras e observações.

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É preciso um pouco de tudo para fazer um homem. (Gilbert Durand) El hombre estuvo asociado con los animales aun antes de empezar a dispurtarles su território a los grandes mamíferos terrícolas. Primero, porque ellos le precedieron en la evolución ontogênica y le suministraron, desde el principio, alimento, abrigo y adornos. Segundo, porque de algunos de ellos aprendió conductas como la sociabilidad, la cooperación y el comportamiento para el dominio del medio. Dicha asociación dejó huellas imborrables y adquirió varias manifestaciones. Una de ellas el totemismo, es decir, el fenómeno animista de transferir a determinados animales epónimos el próprio espíritu, considerándolos como outro yo, o de creerse indentificados con ellos en una ascendência común (PATIÑO, 1999, p. 15).

Os seres humanos já estiveram associados aos animais por diferentes meios. Por nossa condição primordial biológica, e, por todas as formas etológicas e culturais, bem como, nos mecanismos da produção simbólica, enquanto signo e objeto de investigação religiosa, estética e científica, os animais integram-se à história da espécie humana. Das grandes formas do animismo, do pensamento selvagem e das tradições da literatura oral e da mitologia, das formas observáveis no reino da natureza até as fabulações e a ordem teratológica (os bestiários), encontramos as funções simbólicas do sacrifício, da representação da “des-ordem” instintual e da produção de uma zoofilia, incluindo aí diferentes ritos de conjunção dos animais com o animal humano, num procedimento de identificação. Victor Manuel Patiño, numa Antologia poética zoológica, FAUNÉTICA12, enuncia as relações consistentes entre a fabulação / ficção e a observação / descrição, amalgamando as origens do pensamento da anatomia e da fisiologia em quadros do pensamento que fizeram inseparáveis as figuras reais e os seres fantásticos, míticos e monstruosos13. Chegando até nós, através do imaginário dos viajantes, estes bestiários foram se imiscuindo com as culturas indígenas locais e com as cosmologias das populações vindas da África. Todas estas figurações e alegorias tomaram corpo na tradição oral, nos textos de contos de fadas, nas imagens de ilustrações fantásticas e científicas, constituindo-se em vocabulário para a produção de diferentes obras artistas. Desde seus começos, portanto, a apre-

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sentação dos animais na arte não se restringe à observação, mas inclui seres fabulosos, figuras simbólicas representativas de culturas religiosas ou de motivos da heráldica, figuras da fantasia, dentre outras. Para Patiño, seguindo a classificação do alemão Heinz Mode, é possível encontrar neste universo: I – monstruos con cuerpo humano o animal, pero de actitud definidamente humana: demonios, ángeles, sátiros, minotauros; II – monstruos con cuerpo humano o animal, pero de actitud eminentemente animal: esfinge, centauro, sirena; III – monstruos de cuerpo e cabeza de animales de diversas clases y con rasgos añadidos: grifo, dragón, pegaso, mixtos. IV – seres o combinaciones mixtas con multiplicación o simplificación deliberadas: unicornio, cíclope de un solo ojo, patasola, orejas largas, sin boca; deidades hindúes con brazos y cabezas múltiples; enanos y gigantes; V – figuras humanas o animales de acontecimientos u objetos naturales, con indicios simbólicos: hombre-agua, hombre-árbol, espada en forma humana, barcos con figura humana y animal. Otros trabajos comentan lo relativo a los animales mágicos (1999, p. 18).

O universo é amplo. As relações são multiplicáveis. Em todas elas, recombinações entre animais e entre animais e humanos, bem como inversões, são recorrentes14. Da oralidade ao mito, dos registros do folclore ao imaginário cultural popular e, mais ainda de uma cultura popular-internacional, podemos traçar um vasto repertório de histórias e de relações políticas e simbólicas. Diferentes questões se abrem ao leitor e envolvem os seguintes termos: o animal é tratado aqui enquanto objeto imaginário do artista, imposto a sua prática pictórica; a forma animal é entendida enquanto uma in-formação do sujeito-artista e do mundo, configurando-se em paisagem “animalizada”, imagem e página a ser vista e lida, interpretada; o imaginário dos animais configura, no conjunto, uma zôopoética; e as ações do sujeito operam transformações nesta economia formal e semântica, traçando as relações entre o sujeito (artista) e os objetos por ele produzidos, enquanto uma fantasmagoria, imagem que se repete, se desloca e se atualiza, permitindo uma observação sobre as simbolizações que articulam o sujeito à imagem, através de uma matéria constante, de uma forma, de um tema ou de um tipo de corpo, zona ou parte dele15. Como vimos até aqui um imaginário ar-

14 Algumas relações entre animais e humanos foram investigadas durante a pesquisa de doutoramento em antropologia (USP, 1999), no que tange as relações entre embriões-fetosbebês e formas e qualidades animais e vice-versa. Ver referências.

15 Estas observações partem da aplicação metodológica dos Estudos do Imaginário na perspectiva tematológica, tal como a encontramos no estudo da autora portuguesa, Lourdes Câncio Martins. A autora estuda o imaginário do vegetal na obra do escritor Jean Genet.

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tístico propriamente dito integra-se a uma outra problemática, a do imaginário tematológico, traçando relações entre a problemática da arte e dos conteúdos e da ordem semântica nela implicada. Nos termos de Walmor Corrêa esta ordem imaginal faz do signo um traço que se liga ao universo imaginário dos animais, num dizer poético, ao carnaval dos animais do artista. A questão de ordem imaginária tematológica encontra-se, portanto, identificada em via de mão dupla: de um lado, o poder e o fascínio exercido por esta Zoologia – o privilegiamento dos animais - sobre as formações imaginárias do sujeito-artista, e, de outro, como estas relações articulam-se de modo a constituir uma ordem simbólica, traçando um desenho que se aproxima de uma filosofia do artista, uma espécie de Zoofilia, objeto apenas enunciado e a ser estudado em momento posterior.

16 Reconhecemos no trabalho do artista a reaparição do animal como integrante efetivo de um cenário político-social-cultural-ecológico-artístico contemporâneo, presente em diferentes contextos, como alvo das políticas populacionais, afetado pelas condições de vida construídas pela espécie humana, integrando-se ou não às formas da organização da vida em cidades, uma metáfora etológica, um objeto da ecologia e, mais ainda, na dimensão antropológica, como uma nova relação do indivíduo com o seu entorno, nos grandes centros urbanos, onde os animais tornaram-se nossos grandes companheiros, filhos e amigos, bem como da possibilidade de elaboração simbólica da morte na convivência com nossos animais de estimação.

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Assim, nestas operações zôopoéticas constitui-se um fundo de formas e padrões, nos quais o animal surge como elemento da repetição (por reaparição constante e força da obsessão na arte) ou, no vocabulário formal, um motivo privilegiado pelo artista, adquirindo um lugar singular para a construção de um imaginário do animal16. Desse modo, a zôopoética configura a arquitetura invisível de uma zoofilia e de uma compreensão ampliada e profunda do ser humano enquanto integrante da estrutura animal do mundo. A poética de Walmor Corrêa não seria apenas alvo das construções do pensamento moderno (Descartes e Kant) e tampouco um retorno aos problemas do simulacro e da Idéia (platônica), mas também, uma certa ligação do sujeito e do sujeito-artista com o animal, constituindo-se em imaginário subjetivo, oferecendo-nos sugestões acerca das relações homológicas entre o artista e o animal, tal como na filosofia de Nietzsche e nas suas heranças pós-estruturalistas e desconstrutivistas, em filósofos como Deleuze e Derrida.Tal tarefa exige um estudo no campo da leitura visual e da interpretação dos animais e de um imaginário dos animais na produção do artista, traçando aí o método da crítica temática e da leitura imaginária na perspectiva tematológica. Neste domínio o animal é tratado enquanto símbolo que promove a zôopoética, em diferentes lógicas instituintes das obras: transformações / fusões de animal em animal; transformações / fusões de animal em / com humano e vice-versa, privilegiando atitudes eminentemente animais e produzindo seres que, ao

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atravessarem as fronteiras entre humano e animal, configuram-se em formas malditas e portadoras de malefícios; transformações / fusões de humanos em / com animais, com atitudes humanas e mistas, portadoras de maldições capazes de transportar benefícios. Assim positividades e negatividades são investidas e transformáveis. O animal é o motivo privilegiado, mas mudando de posição e de função. As questões indicam afinidades entre o universo poético e os raciocínios transformacionais do estruturalismo lévi-straussiano, apontando para um tipo de mitopoética, na qual somos obedientes aos termos das operações lógicas: relações animal-animal, animal-humano, humano-animal. Outra possibilidade, já enunciada por seus críticos, diz respeito às correlações com o campo científico, fazendo da arte o lugar da investigação dos mundos possíveis para a ciência e da ciência uma matriz para as operações de simulação no fazer artístico. Deste lugar podemos traçar caminhos descritivos que promovem as afinidades entre o universo de Corrêa e as formações de organismos complexos – mutantes, ciborgues (Donna Haraway) – onde animais e humanos são objetos das novas narrativas da ciência bem como figuras heróicas das histórias em quadrinhos populares. Ou ainda, podemos abordar estes encontros da arte com uma popfilosofia de Deleuze, na qual um devir-animal, devir-vegetal e um devir-mineral assumem lugar preponderante na ordem rizomática do mundo. E na dimensão ética do estético, a ascensão de uma ordem zoofílica, tal como apontada na obra desconstrucionista do filósofo Jacques Derrida, enquanto um possível paradigma filosófico do artista, nas relações homólogas entre animal e artista (Nietzsche), ou, no retorno à “grande fonte da natureza” (Lévi-Strauss) e a seu ideal rousseauísta do “bom selvagem”, propugnada no interior deste universo de artefatos artísticos. Quais são aqui nossos símbolos operantes, potências do tráfego e do afeto nesta ordenação imaginária do mundo? Qual a filosofia desta arte, na qual as imagens promovem uma inversão de ordem cosmológica? Que mundo é esse que o artista produz e provoca,

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faz aparecer? Aqui, reina a idéia de que quanto mais se chega no microscópio, o que se encontra é a metamorfose, e não a substância. Por isso, ao fazer imago das instabilidades formais, dando-lhes uma forma, o artista acaba por operar, no sentido próximo ao de Durand, ao artista-alquimista, aquele que produz uma substanciação – uma materialização – para um estado de permanente transformação. Nestes termos, a arte seria um veículo de tornar visível um possível, elegendo uma linha e nela vetorializando, desenhando, traçando um plano. Esta dimensão do pensar os objetos do conhecimento reintegra-os ao campo do valor. Corrêa reinaugura, tal como outros artistas, relações ético-estéticas entre a epistemologia moderna – e o conhecimento dos objetos enquanto objetos de interesse e de legitimação das formas do saber – e uma filosofia axial, convocando-nos a pensar, com a reintegração imaginária de seus “monstros” – por sobreposição, por junção, por hibridação, por fusão, por conjugação -, nos objetos técnico-estéticos de fronteira. Ao somar os saberes e ao fazer dos motes da ciência lugares para a produção do “engodo” da arte, o artista também opera a reunificação ou a ponte entre os conhecimentos do mundo científico com o mundo não-científico e, portanto, tal como o pensa Durand, ele reintegra a ciência no irracional.

Resumo: Este trabalho, um estudo bibliográfico em História da Arte e Estudos do Imaginário, apresenta leituras de visualidades artísticas produzidas pelo pintor brasileiro contemporâneo, Walmor Corrêa. Os trabalhos são observados no contexto da pintura e desenho tradicional (Arte Acadêmica, ilustração), desenvolvendo o relacionamento entre Arte e Natureza e entre Arte e imaginário científico. Os estudos e séries incluem a noção representacional da Natureza, entre um padrão de representação iconográfica – acadêmica, científica e documental – e um imaginário teratológico (imaginário popular). Corrêa restaura para o presente a visão naturalística, mas ele oferece um outro ponto de vista, com a intenção de propor simulacros para nosso próprio mundo. Neste artigo, o tema do imaginário artístico contemporâneo

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sustenta uma reflexão acerca da emergência destas imagens na Arte Contemporânea. Nós analisamos as relações desta estética com as regras e padrões da produção de arte em nosso tempo. Palavras-chave: História da Arte, Arte e Natureza, imaginário artístico e científico, Walmor Corrêa, Arte Contemporânea. Abstract: This work, a bibliographical study in Art History and Imaginary Studies presents visualities readers of artworks produced by the brazilian contemporary painter, Walmor Corrêa. The artworks are observed in a context of the traditional painting and drawning (Academic Art, ilustration), development the relationship between Art and Nature and between Art and scientific imaginary. The studies and series including the representational notion of the Nature, between a pattern of iconographic representation – academic, scientific and documental – and a teratological imagery (popular imaginary). Corrêa restores for the present the naturalistic view but he presents a other point of view, with a intention to propose simulacros to our own world. In this article, the theme of artistic contemporary imaginary supports a reflection about the emergence of this images in Contemporary Art. We analyze the relationships of this aesthetics with the rules and patterns of the art production in our time. Keywords: Art History, Art and Nature, artistic and scientific imaginary, Walmor Corrêa, Contemporary Art. Resumen: Este trabajo, un estudio bibliográfico en Historia del Arte y Estudios del Imaginario, presenta lecturas de visualidades artísticas producidas por el pintor brasileño contemporáneo, Walmor Corrêa. Los trabajos son observados en el contexto de la pintura y dibujo tradicional (Arte académico, ilustración), desarrollando el relacionamiento entre Arte y Naturaleza y entre un padrón de representación iconográ-

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fico – académico, científico y documental – y un imaginario teratológico (imaginario popular). Corrêa restaura para el presente la visión naturalista, pero él ofrece otro punto de vista, con la intención de proponer simulacros para nuestro propio mundo. En este artículo, el tema del imaginario artístico contemporáneo soporta una reflexión acerca de la emergencia de estas imágenes en Arte Contemporáneo. Nosotros analizamos las relaciones de esta estética con las reglas y padrones de la producción del arte en nuestro tiempo.

MARTINS, L. C. Jean Genet e o imaginário do vegetal: enraizamento e explicação do mundo. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia / Imprensa Portuguesa, 2003.

Palabras clave: Historia del Arte, Arte y Naturaleza, imaginario artístico y científico, Walmor Corrêa, Arte Contemporáneo.

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catálogos do artista Natureza perversa. Walmor Corrêa. Apresentação Tadeu Chiarelli (Apropriações / coleções). Textos de Blanca Brites (Perversa natureza sedutora), Maria Amélia Bulhões (Pesquisa, imaginação e mentira) e Bianca Knaak (A natureza generosa e perversa das criaturas transitórias do mundo e da arte). Porto Alegre: Gráfica Pallotti, sem data. Unheimlich – imaginário popular brasileiro. Walmor Corrêa, 20042005. Livro de Artista. Porto Alegre: Edição do artista, sem data.

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noronha & ambrizzi. Imaginรกrio - usp, n0. 17/18, pรกg. 125-152, 2009

e-mail: marcpiza@terra.com.br; miguelambrizzi@bol.com.br. Recebido em 20/04/2007 Aprovado em 04/06/2008

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caderno de imagens

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Parte I Artigo: O Bom Retiro: Além, muito além das fronteiras da José Paulino. Belkis Trench Tânia L. Machado Dulce Coppedê

FOTO N.º 1 (Legenda: Loja de Máquinas de costura nos Bastidores do Bairro, Foto Marcos Moura)

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Figura 2

FOTO N.º 2 (Legenda: Calçada de botões, Foto de Marcos Moura)

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Figura 3

FOTO N.º 3 (Legenda: Canteiro com moedas, Foto de Marcos Moura)

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Parte II Figura 4

Artigo: a arte moderna e os imaginários da alteridade José D’Assunção Barros

Figura 1. Delacroix. A Morte de Sardanapalus, 1827-28 óleo sobre tela Musée du Louvre, Paris.

Figura 2. Monet. Terasse à Sainte Adresse, 1867 Metropolitan Museum of Art, New York

Figura 3. Hokusai. A Grande Onda de Kanagawa das “36 vistas do Mount Fuji”, 1823-29 xilogravura, 10 x 15 in Metropolitan Museum of Art, New York

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Figura 7. Matisse. Luxe, calme et volupté. 1904.

Figura 4. Monet. La Plage de Trouville, 1870

Óleo sobre Tela. Musée National d’Art Moderne, Paris.

National Gallery, London

Figura 8. Matisse. Harmony in Red (A Sala Vermelha), 1908

Figura 5.Toulouse-Lautrec. Le Divan Japonais

Figura 6a.Van Gogh. Chuva na ponte, 1887 Rijksmuseum Vincent Van Gogh, Amsterdam

Óleo sobre tela. The Hermitage at St. Petersburg

Figura 6c .Hiroshigue. Tempestade na Grande Ponte Perto de Atake Figura 9. Matisse. A Dança, 1910.

Figura 6b.Van Gogh. A três Árvores Rijksmuseum Vincent Van Gogh, Amsterdam

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Figura 6d. Hiroshigue

Óleo sobre Tela. The Hermitage, St. Petersburg, Russia

Jardim Kameio

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Figura 10 Matisse. A Música, 1910. Óleo sobre Tela.

Figura 13. Cabeça que representa Ora.

The Hermitage,

Arte Benin. Museu Britânico, Londres

St. Petersburg, Russia

Figura 14.Brancusi. O Começo do Mundo, 1924.

Figura 11. Paul Gauguin. Arearea, 1892 Musée d’Orsay,

Bronze polido. 19 x 16,8 cm

Paris.

Museu Nacional de Arte Moderna, Paris

Figura 12 Matisse. Natureza Morta com cebolas rosadas, 1906

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Figura 15a.Modigliani. Cabeça, 1913.

Figura 15b.Modigliani. Marcelle, 1917.

Pedra. 62,8 x 17,7 x 35,4 cm

Óleo sobre tela.

The Tate Gallery of London

Coleção particular.

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Parte III Artigo: Visões de Van Gogh: imagem e auto-imagem Luciana Bertini Godoy Figura 16. Picasso. Les Demoiselles d’Avignon, 1907. Giraudon, Paris.

Máscara - Arte Benin

Máscara - Arte dan

Máscara - Arte fang

Máscara - Arte luba

Máscara - Arte luba

Máscara - Arte fang

Figura 2: Van Gogh, 13 anos

Figura 1. Carta assinada pelo artista (s/ data) Figura 17. Máscaras africanas diversas, com diversos formatos

Figura 18. Pablo Picasso. Três Dançarinas, 1925. Óleo sobre tela. Tate Gallery, London

O Deus Anupú conduz o espírito do faraó

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Figura 3: Van Gogh, 19 anos

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Parte IV Artigo: imaginário artístico e da arte entre os traços e resíduos das relações arte-natureza na obra de walmor corrêa Marcio Pizarro Noronha Miguel Luiz Ambrizzi

Figura 4. Auto-retrato com bandagem, 1889.

Figura 1. Diorama Cartesiano V (Acrílica e grafite sobre tela, 140 x 240 x 03cm, 2002)

Figura 5: Auto-retrato, 1886

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Figura 6: Auto-retrato, 1887

Figura 7: Auto-retrato, 1889

Figura 2. Piranha – Hércules Florence, 1827.

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Apêndice II – Série Catalogações - Walmor Corrêa, 2003

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Ondina – Walmor Corrêa - 2005

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Parte V Artigo: sala de professores em instalação: considerações sobre a vivência estética na formação de educadores Clara Paulina Coelho Carvalho

Memorial

A cesta e a violeta

Sala de professores

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sala de professores em instalação: considerações sobre a vivência estética na formação de educadores1 Clara Paulina Coelho Carvalho Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Docente convidada do Departamento de Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae (SP).

Os questionamentos quanto aos objetivos da instituição escolar, sua função social e necessária renovação pedagógica integram a pauta de discussão sobre o projeto político-pedagógico da escola. Orientada por um corpo de intenções e procedimentos que esboçam a identidade da instituição, a qualidade do ensino tem sido avaliada a partir da tessitura produzida por todos os segmentos envolvidos no processo educativo, incluindo a comunidade e órgãos gestores de políticas educacionais, bem como o entrelaçamento de fatores organizacionais, técnico-profissionais e pessoais. No que tange ao sentido da escola para a sociedade contemporânea e ao tipo de conhecimento nela produzido, os olhares voltam-se com especial atenção para os atores sociais que, na lida diária, estão envolvidos nessa produção, permitindo vislumbrar a crucial importância da formação de educadores. Nessa perspectiva, Candau (2003) aponta, como tendência em expansão, a formação continuada de professores, inserida no contexto específico de cada escola e centralizada na reflexão e crítica em torno de seus problemas e projetos, o

1 Este artigo aborda a análise de um dos três grupos de educadores que integraram a pesquisa participante através de oficinas com recursos expressivos no horário de formação contínua em serviço, realizada em uma escola de ensino fundamental da rede pública municipal de São Paulo, como parte da tese de doutorado defendida em 2006, no Instituto de Psicologia da USP, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Luisa Sandoval Schmidt, intitulada: “A dimensão político-pedagógica da vivência estética no projeto da escola”. Agradeço à Profa. Dra. Ângela Pinheiro (NUCEPEC/ UFC) pelo apoio na elaboração deste trabalho.

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2 Autores que tratam da necessidade de autonomia da escola na construção do seu projeto pedagógico salientam a importância dos espaços de reflexão coletiva, embora raramente tenham abordado a escola como uma organização educativa, no sentido de trazer para essa discussão todos os segmentos envolvidos nos diferentes espaços da instituição (porteiros, faxineiros, cozinheiros, secretários etc.), permanecendo o debate sobre o processo de ensino-aprendizagem ainda circunscrito à relação professor-aluno. (GADOTTI, 1997; AZANHA, 1998; VEIGA; RESENDE, 2000; VEIGA; FONSECA, 2001; VEIGA, 2002)

que requer a articulação entre concepção e execução. Trata-se de uma ruptura com o padrão que segmenta o conhecimento entre “acadêmico” e experiencial, exigindo uma relação mais orgânica entre universidade e comunidade, sem o privilégio de locais exteriores à escola como produtores e difusores de conhecimento. Valorizando os trabalhos que têm como referência o saber docente adquirido através de leituras e vivências, esse paradigma visa à construção de uma prática coletiva, com a realização de fóruns no interior da escola em que se possa integrar a reflexão dessa prática à produção de conhecimento, tornando-a de fato significativa2. Nesse sentido, Nóvoa (1992) aponta a necessidade de identificação dos problemas da organização escolar, vislumbrando a potencialidade formadora que há nas buscas de resolução. Com o conceito “autoformação participada”, o autor aponta que a formação do educador só é apropriada quando a ela é dado um “sentido no quadro da sua história de vida”, estando o seu saber de referência ligado à experiência e identidade. Defende o espaço formativo como propício à “produção de vida”, a qual ocorre na inter-relação entre o pessoal e o profissional, a partir da necessidade de intervenção na organização escolar como um todo. Inserindo-se no debate atual sobre formação contínua de educadores, a oficina com recursos expressivos afilia-se à perspectiva que elege a escola como um importante locus de produção de vida para os diferentes segmentos que a compõem. Em seu caráter específico, elege o que denomino “vivência estética” como um componente formativo fundamental para a problematização do cotidiano e mobilização de ações coletivas pertinentes ao contexto em que se insere. No decorrer do processo criativo, ocorrido nas oficinas com recursos expressivos, o conhecimento dá-se através de um redimensionamento da experiência reflexiva, com a formação de novas sínteses produzidas entre percepção, expressividade, toque, movimentos e modos de lidar com materiais de uso diário, os quais configuram berço e cenário de impressões. Duarte Jr. (2000) considera que a educação da sensibilidade desvela uma sabedoria primordial, que está na base de uma razão mais abrangente, essencial para uma crítica radical do conhecimento. Trata-se de um saber direto, corporal, anterior às representações,

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o qual permeia a experiência do mundo vivido. Segundo o autor, esse saber sensível, resgatado através do que denomina experiência estética, rompe com a razão instrumental, na qual a educação moderna procurou respaldar-se. Para falar sobre esse modo de conhecimento, o autor pauta-se no resgate feito por Maffesoli (2001) acerca da raiz grega da palavra estética, desvelando-a como aisthesis, o contrário de anestesia: Tudo isso remete para uma ética da estética, isto é, para um etos constituído a partir de emoções partilhadas em comum. (...) Deve-se entender estética, aqui, em seu sentido mais simples: vibrar em comum, sentir em uníssono, experimentar coletivamente. Coisas que permitem a cada um, movido pelo ideal comunitário, sentir-se deste mundo e em casa neste mundo. (MAFFESOLI, 2001, p. 137).

Na oficina com recursos expressivos, espaço consagrado à vivência estética, ocorre o resgate dessa sabedoria primordial, originando sentidos calcados em uma razão que se diria enraizada, incorporada, por acontecer através da apropriação de limites reais e da capacidade de enfrentamento diante das questões que se apresentam. No trabalho relatado a seguir, a filosofia existencial, como crítica à ciência e à técnica modernas, oferece orientação epistemológica e metodológica para a compreensão dos fenômenos ocorridos na oficina e seus desdobramentos na organização escolar em que foi realizada3. Nesse modo de intervenção, entende-se que a escola traduz a totalidade existencial daqueles que a habitam. Portanto, o que nela ocorre é expressão das condições em que é dado o existir humano, sendo o mundo compreendido não como algo externo, separado do homem, porém, como algo que o constitui, “(...) uma sutil e poderosa trama de significação que nos enlaça e dá consistência a nosso ser, nosso fazer, nosso saber” (CRITELLI, 1996, p.18). Ocorre que essa teia, muitas vezes, parece se desfazer, causando a sensação de não pertença, desabrigo. Na oficina com recursos expressivos, partes dessa trama (mundo) vão sendo ocultadas ou postas à luz, fazendo com que as coisas sejam reveladas em sua pluralidade de sentidos, condensadas na obra e no fazer artístico. No movimento de aparecer e ocultar-se, novas tramas significativas vão surgindo, trazendo assim a sensação de redimensionamento

3 A estruturação das oficinas, a leitura das produções estéticas e do processo criativo nelas deflagrados ocorreram neste estudo a partir das leituras de Heidegger (1992, 2002a, 2002b, 2002c, 2004), Merleau­ -Ponty (l996), Arendt (1992, 1998) e Ricoeur (1987), filósofos que norteiam a analítica do sentido proposta por Critelli (1996). Tem como referência o trabalho com oficinas do Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP. Sobre oficinas com recursos expressivos a partir de um referencial fenomenológico e existencial, Ver MORATO (1999); CUPERTINO (2001); OSTRONOFF (2000); CARVALHO (2000, 2006).

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4 Com o termo educador, refiro-me a todos os profissionais da escola, por entender que o processo educativo permeia todos os espa ços dessa instituição (cozinha e refeitório, banheiros, portaria, pátio etc.), refletindo as contradições e valores neles presentes.

5 O nome dos participantes da pesquisa foi substituído para que não sejam identificados.

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do conhecimento que se tem das coisas, através do fortalecimento de impressões e da sensação de ampliação e/ou ruptura no modo de referir-se a si mesmo e ao outro. Como expressão dessa tramamundo, o conhecimento é algo provisório e plural, constituindo-se de forma diversa, por vezes antagônica, a depender do lugar e do modo como é tecida. Nesse sentido, revela Critelli (1996), a partir da filosofia heideggeriana, que o ser das coisas não está nelas mesmas, incrustado ou cristalizado em suas representações, mas entre os homens e as coisas, mediados pela trama de significação que vão tecendo no lidar entre si e com elas. A partir desse referencial, a oficina é concebida como prática fenomenológica que se constitui em via de acesso à multiplicidade de significados em que as coisas se apresentam para as pessoas, abrindo possibilidades para o surgimento de novas significações. Compreendendo que a escola precisa ser vista na pluralidade de perspectivas que a constitui, a oficina propicia o desvelamento de diferentes verdades, nos modos como o fazer educativo nela acontece, por vezes de forma heterogênea, híbrida e conflitante. Com a abertura desse espaço de experimentação e diálogo entre os referenciais diversos que constituem a formação do educador4, sensibilidade e conscientização emergem integradas, sendo deflagradas como dimensões políticopedagógicas da vivência estética.

o lugar do educador: abismo entre o passado e o futuro? A contradição existente entre a educação vivenciada ao longo da história de vida dos educadores e as propostas pedagógicas em que são muitas vezes impelidos a engajar-se gera sérios paradoxos entre discurso e prática profissional, tornando-se um aspecto fundamental da formação. A esse respeito, Lígia, professora de Português5, comentou perceber-se mentindo ao seguir “o papel do educador” e transmitir coisas que não são verdadeiras para ela, como conceitos da sociedade tidos como certos e dos quais ela mesma discorda. Arendt (1992) ajuda a situar esse dilema como expressão da crise do homem contemporâneo, impelido a viver em um mundo regido pela diluição da tradição. A esse respeito, Lafer (1992, p.10) utiliza uma imagem poética de José Emílio Pacheco: “Seres

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entre duas águas marginais de ontem e de amanhã: é isto o que fizeram de nós” ·. Um aspecto que revela a alienação do trabalho do educador, portanto, é o fato de ele encontrar-se nesse espaço abismal entre o processo educativo que lastreou a sua experiência e o futuro do qual é chamado a ser artífice das novas metodologias a serem rapidamente consumidas como mercadoria e transmitidas como instrumento de mobilidade social. Seria a educação um lugar de “eterna suspensão” daquilo que se construiu para atender ao chamado sempre urgente do que mal se anuncia? Segundo Arendt (1992), a educação na América foi fundada sob o pathos do novo, da necessária (e ilusória) ruptura com o Velho Mundo, para que se pudesse divulgar uma nova ordem social mais justa, em que o progresso eliminaria a opressão e a miséria. No entanto, deixando o olhar migrar através das divisórias do interior da escola, é possível constatar embates entre o velho e o novo pela conquista de espaços. Na sala de aula, lugar ainda considerado “seu”, o professor diz fazer as coisas ao seu modo, guiado pelo senso do que acredita ser o certo, muito embora se sinta, às vezes, inseguro ao fazê-lo. Mais uma vez, Arendt (1992) nos ajuda a compreender a insegurança do educador ao lançar mão do seu próprio juízo e critérios para avaliar e relacionar-se com o aluno. A autora considera que, nos momentos de crise da sociedade, é rompido um tecido comum que une o homem à coletividade. A partir de Arendt, concluímos que a educação, em seus abalos periódicos, reflete essa crise, que quebra as regras do juízo humano articuladas na integração dos cinco sentidos a um mundo que é comum a todos, desfazendo assim o elo entre razãoemoção-intuição. Nesse ponto, instala-se a dúvida: afinal, qual é o dado de realidade em que devo confiar? Isso torna cada vez mais frágil a visão prospectiva da vida. Em meio a essa fragmentação, as metodologias e projetos incessantemente oferecidos na formação clássica de educadores são percebidos como textos alheios e, de fato, não legitimados, por não possuírem um lastro na experiência dos trabalhadores da escola. Contudo, aponta Critelli: “Perguntar pelo passado nos re-aloca no presente e redimensiona nossas possibilidades de vir a ser” ·. Para a fenomenologia heideggeriana, acolhendo a tradição na qual estamos inseridos, mesmo sem saber, vislumbramos as coisas no que

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são e como são. Assim as apanhamos na perspectiva do tempo e, para Heidegger (2002a, p.45), o tempo é o “genuíno horizonte de toda compreensão e interpretação do ser”. Somos uma clareira que se manifesta sempre se projetando à frente de si mesma e, nesse projetar-se, apanhamo-nos no passado, recobrando-nos no modo como temos sido. Em um movimento espiral, desdobramos o tempo, ou seja, desdobramo-nos “epocalmente”, construindo uma história (ALMEIDA, 2005). Nesse sentido, aquilo que foi faz parte de nós, balizando as possibilidades à frente. No entanto, as tecnologias educacionais, calcadas na lógica da modernidade, rompem com a historicidade que nos constitui, avariando nossa direção. O tecnicismo é um envio histórico da técnica que oculta a perspectiva histórica das coisas, inclusive dele mesmo, submetendo­-nos a vidas sem rumo, sem memória. Para a análise dessa questão, Heidegger (2002c) resgata a origem da palavra técnica, tékhne, pondo à luz o contexto civilizacional no qual surgiu. Proveniente do grego, tékhne relaciona-se a uma forma de desencobrimento presente no fazer das artes, na habilidade artesanal e nas construções, como também no cultivo do que cresce na natureza. Tékhne pertence à pro-­dução, poiesis, no sentido de deixar-viger, deixar surgir e elevar-se por si mesmo. Poiesis é o desencobrir-se único numa pluralidade de sentidos, com respeito ao modo próprio de aparecer dos entes. Originariamente, a técnica é algo poético. A técnica moderna, no entanto, apoiando-se nos modelos oferecidos pelas ciências da natureza, restringe o que se desencobre, limitando-o para torná-lo passível de exploração e controle. O autoritarismo tecnocrático escraviza o que aparece, sujeitando-o à lógica de acúmulo de bens e consumo. O desencobrir-se pro-dutor, porém, é um conhecimento que abre, respeitando o modo próprio em que as coisas aparecem, sem aprisioná-las nas malhas de conceitos e representações generalistas. Poiesis, portanto, é o desencobrir em seu sentido originário. Ao fazê-lo, devolvemos as coisas ao seu destinar-se, isto é, ao modo como aparecem na direção dada ao existir de quem as apanhou. Trata-se de um desencobrir com solidez, pois, enraizado na memória. Nesse sentido, Heidegger elucida a figura mitológica Mnemosyne (memória), filha do céu e da terra que gerou como filhos o jogo, a dança, o canto, a poesia. Esse resgate do berço da

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cultura ocidental, quando se deu um nome à memória, ajuda-nos a considerar como produções poéticas as formas de desencobrimento apoiadas na lembrança. Estas serenamente acolhem o que, em cada caso, inquieta, interroga e permanece como o “a se pensar”. O pensamento genuíno é essencialmente poético, ao deixar-se apanhar pelo que se mostra no seu modo próprio de viger, sem esconder o que permanece oculto. O desencobrir poeticamente põe à luz o ser das coisas, sem lhes expurgar o mistério, sem sufocar o que aparece, através de uma busca ávida por respostas pré-formatadas que nos protejam da insegurança diante do que se mostra. O desencobrir lastreado pelo pensar na lembrança realça o brilho do que permanece vivo a cada vez no aparecer, sem que se perca a capacidade de germinação daquilo que se anuncia como novo, vindo do passado que chega ao presente6. A aproximação poética do mundo liberta-nos, ao mesmo tempo em que liberta o mundo. Nela o homem se torna ouvinte, na escuta atenta do que se abre e volta a encobrir-se no movimento do aparecer dos entes. Nada é posto às claras em sua totalidade, já que todo aparecer corresponde a um encobrir-se, esconder-se.

6 Modo de referir-se aos entes presentes na figura do narrador, tal como aborda Benjamin (1994).

poiesis em oficina Permanecendo com essa concepção do fazer poético, torna-se inevitável a tomada de uma posição radical, no sentido de ir à raiz do pensamento que respalda as reflexões esboçadas até o momento: o homem habita esta terra humanamente, se o poético acontece com propriedade (HEIDEGGER, 2002c). Poiesis é o modo humano de habitar a terra. Para o desenvolvimento dessa forma de pensar a humanidade e o poético, Heidegger apóia-se em um trecho do poema “No azul sereno...”, do poeta alemão Hölderlin: “Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra” (HEIDEGGER, 2002c, p.168). Primeiramente, o verso nos convoca a pensar que o homem é aquele que é à medida que habita. O seu modo de ser é habitar, o que significa ser junto a um mundo que não está dado a priori. Habitar é ser arranjando, arrumando, morando, abrindo espaços numa relação de co-­pertença ao mundo, formando incessantemente plexos de relações entre si e as coisas. Habitar significa ser construindo, isto é, ser em uma relação de proteção (abrigo), cultivo

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e edificação, sendo a habitação poética um lugar de pertencimento aberto pelo respeito ao modo próprio de ser de cada coisa. O homem é pleno na construção de plexos poéticos. O poético aqui não se constitui em simples adorno, fantasia, fuga do real; é a realidade mais originária do homem, seu modo de efetivamente habitar. A morada poética dá-se na abertura de espaços em que as coisas formam reuniões integradoras no pertencimento mútuo (HEIDEGGER, 2002c).

7 Os textos aos quais me refiro são expressões do que Boutinet (2002) denomina cultura de projeto. Ícones da tecnocracia, os inúmeros projetos que tramitam em nossa sociedade tornaram-se instrumento para a busca de identidade de diferentes grupos e, paradoxalmente, dão forma à fuga de uma realidade que permanece sempre à espera do porvir, marcada em sua atualidade pelo empobrecimento dos laços sociais, ausência de vínculos e perda das tradições.

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Ao construirmos poeticamente, somos atravessados por uma linguagem que se recria em nós num dizer inaugural. É quando consideramos algo apanhando-nos em situação, reeditando aquilo que é visto e a nós mesmos a partir de um reunir atento à diversidade e novidade do que está à frente, mesmo que conhecido. Construímos assim uma medida própria no lidar com os entes, sendo possível rompermos com um discurso alienado, engessado por generalizações indiferenciadas. Tomar uma medida própria refere-se a uma tomada de atitude que se dá através de uma escuta atenta e sensível, na qual a identidade entre as coisas é tecida a partir do mútuo pertencer ao diverso, ou seja, quando o mesmo é concebido já se tendo levado em consideração a diferença. Somente assim é possível pensar a existência do coletivo. A linguagem poética é aquela que converge, reúne e recolhe, num lugar que desenvolve e preserva o que envolve (HEIDEGGER, 2004). Nesse resguardo da diferença, o que nos advém como legado é desconstruído e transformado, com a suspensão do familiar e a abertura de novas sintaxes. É quando atendemos ao apelo da linguagem, libertando-nos de textos percebidos como algo que não nos diz respeito, por nos impedir de tomar uma medida própria. Estes são fabricados a partir do esquecimento de si mesmo e precipitação num futuro aberto pelo afastamento das próprias raízes7. Nesse sentido, torna-se imprescindível à formação de educadores criar lugares nos quais se torne possível colocar-se no centro do que se fala e, assim, expor partes dissociadas, desconstruir preconceitos e trabalhar experimentalmente com a gestação de princípios, abrindo novos plexos de significações com respeito ao que se possui. A oficina com recursos expressivos abre, portanto, um espaço na formação contínua de educadores para a instauração do habitar

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poético. Oferece tempo e espaço para o que Marques (1986) considera fundamental na construção do projeto da escola: as leituras interpretativas das tradições, cujos sentidos encontram-se adormecidas. Essa desconstrução de elementos fossilizados da tradição requer a livre expressão, isto é, uma comunicação que consiga desnudar-se de julgamentos, para daí operar uma “desmontagem das subjetividades esquecidas de suas origens, para o reencontro da vida escolar com suas motivações primeiras” (MARQUES, 1986, p.20). Entre as “águas marginais do passado e do futuro”, o espaço vivencial coloca-se como várzea propícia ao reconhecimento do que se lança como semente (projetos), mantendo o respeito à terra de velhas colheitas (experiências). Na oficina, a capacitação ocorre como “reiteração”, isto é, apropriação de sentido daquilo que volta a aparecer. Essa apropriação se dá quando algo é liberado, isto é, apreendido no seu enviar-se, no rumo histórico em que este algo foi desvelado de certa maneira, ocultando-se de outras. Numa comunicação artesanal8, por ocorrer de corpo inteiro, os conhecimentos são transarticulados em novos rumos, buscando-se uma sincronia entre fala, olhar, gestos e formas produzidas com as mãos, o que interfere no curso das simbolizações. No processo criativo ocorrido na oficina, situações do cotidiano ganham nova configuração, pois os elementos que as constituem (cheiros, sabores, formas, sons, texturas etc.) são rearranjados e reapresentados em composições estéticas. Essas produções formam textos interpretativos abertos, construídos coletivamente. São formas expressivas que, como diria Geertz (1978), provocam “desarranjos semânticos” e o “cruzamento de limites conceituais”, fazendo com que os significados possam ser rearticulados, apontando para “novos referentes”.

8 Imagem utilizada por Benjamin (1994) em suas considerações a respeito da arte de narrar.

A vivência estética ocorrida na oficina dá-se na abertura de uma temporalidade caracterizada como um instante de fluidez, provocada pela soltura nos fios de sentido, nos quais as coisas estavam enredadas até então, o que permite a gestação da palavra inaugural. Desse modo, o gesto criativo abriga o paradoxo entre ruptura e continuidade, no qual os significados são rearticulados. A vivência é aberta como instante de eternidade, imensidão, como sensação de assenhorear-se do tempo, de estar no tempo e não de correr atrás

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dele ou sentir-se perdendo-o. É quando as coisas “fazem sentido”, por serem acolhidas em meio àquilo que se sabe de si e da possibilidade à frente (COLPO, 2002). A fenomenologia heideggeriana resgata essa dimensão da temporalidade, já identificada pelos gregos como Kairós, elucidando-a como o instante aberto pela intimidade, silêncio e escuta, em que são dadas novas consistências às coisas. Trata-se de uma abertura de “tempo intersticial” que reúne presente, passado e futuro, vivida como “presentificação” (COLPO, 2002; CYTRYNOWICZ, 2000). Considero que a dinâmica do Kairós seja cadenciada pela vivência, instante poético vivido como um hiato e caracterizado pela flexibilização da significatividade de tudo o que há. As vivências são as geratrizes das experiências. As experiências são tramas significativas acolhidas por diferentes formas discursivas, caracterizadas pela singularização, significando dizer que, ao apanhar e transmitir algo como experiência, a pessoa sente-se transmitindo a si mesma, numa sensação de estar, ao mesmo tempo, escolhendo e herdando o que transmite e lhe é transmitido de forma única (HEIDEGGER, 2002a; ALMEIDA, 2005).

histórias de vida em assemblage9 9 Gênero artístico em que a obra, uma espécie de colagem tridimensional, caracteriza-se pela reunião de diferentes materiais, como objetos do cotidiano e fragmentos naturais ou manufaturados (DEMPSEY, 2003).

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A oficina teve início com um comentário sobre o clima positivo da última reunião de pais. Sofia, coordenadora, com sorriso desconsertado, destacou que, dentre as sugestões para a reunião seguinte, estava escrito: “cafezinho”. E justificou o pedido das mães com o comentário que ouviu: “Se tivesse um chazinho (...), a gente ia ficar mais descontraída (...)”. Entre olhares de confirmação, prosseguiram relembrando iniciativas para a aproximação dos pais em escolas onde trabalharam anteriormente. Lígia lembrou o quanto havia gostado do local da última reunião de professores, embora algo a tenha desagradado: certo destrato entre as colegas na hora de dividir o lanche. A conversa deslizou da reunião de pais para a reunião de professores, passando pelo comentário sobre a importância de receber bem quem chega a casa e de como esse cuidado acontece na escola. A partir dessa discussão, constatou-se quanto o professor anda descuidado consigo mesmo. Representação social nega-

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tiva, baixa auto-estima e necessidade de partir de si o processo de valorização foram aspectos levantados. Um lugar de descuido foi sinalizado por Lígia: “Vide a sala dos professores!” Passaram então a fazer uma análise das condições de tal sala, dando margem à idéia de como as pessoas andavam tensas, com certo sarcasmo em relação aos alunos e à administração municipal. Diante disso, surgiu a necessidade de tornar a sala de professores um local mais limpo e agradável. Sugeri: “Que tal transformar essas sugestões em um projeto? Como seria cuidar bem desse espaço?” Logo fervilharam idéias: cortina e toalha de mesa brancas, conversas com os professores que utilizam o espaço, pedidos de sugestões, retirada do sofá, arranjo de flores e necessidade de uma mesa maior com cadeiras para acolher todo o grupo que se reúne no intervalo, compra de pequenos utensílios para servir melhor o lanche. “Como é que nós sabemos de tudo isso e continua tudo daquele jeito?”, questionou Lígia com espanto. E continuaram a falar sobre a relação entre professores e desses com os funcionários, a partir da análise de cada objeto do local: microondas, geladeira, cesto de lixo... Lembrando da impecável aparência de uma coordenadora com a qual já havia trabalhado, Lígia concluiu que aquela sala precisava ter requinte e elegância. “Mas o que seria mesmo requinte?”, perguntei. Recorremos ao dicionário para nos certificarmos quanto aos significados de requinte e elegância destinados àquele espaço. Concordaram quanto ao seguinte: dar qualidade, beleza, desenvolver ou cultivar em alto grau a sensibilidade, sutileza. “Algo que demonstre uma atenção”, completou Aurora, professora de Matemática. A elegância se adequaria a esse espaço em forma de graça, encanto, bom gosto, gentileza e cortesia. Nesses termos, como aquela sala poderia favorecer um modo de relacionamento em que estivesse presente o bem cuidar de si e do outro? A partir do questionamento de como andavam as relações interpessoais nesse lugar, começaram a esboçar um projeto a ser continuado até a oficina posterior. Para essa ocasião, solicitei que trouxessem sabores, cheiros, texturas, imagens, sons ou objetos significativos, que expressassem o bem cuidar de si e do outro, ao longo da história de cada uma delas. Na seqüência, objetos de estima, amigos e parentes em momentos inesquecíveis foram espalhados sobre a mesa anexa à sala de professores.

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Menina calada, Aurora, apontando para as fotos, falou da sua relação com a professora na pré-escola. Com o cheiro de pipoca invadindo a sala, roupas da década de 70 revelaram um estilo hippie e o namoro na feirinha da Praça da República. Sua juventude nos foi contada ao mostrar lenços, colares, camisetas com espelhos bordados e xales, cuidadosamente guardados e protegidos do tempo. Aos poucos, o tempo da oficina e de sua vida foi passando, estávamos agora no tempo aberto pelas imagens do seu casamento e, logo depois, no das festinhas de aniversário dos filhos, decoradas por ela, imprescindível lembrar. Calças xadrez, barbados e de cabelos no ombro: assim os amores foram registrados. O que antes era moda, agora parecia engraçado. Lígia comentou: “Ah, como era divertida a vida, meu Deus!” E Nádia, secretária que eventualmente fazia jus à qualidade de participante do grupo, assegurou: “Engraçado hoje, se você olhar pra trás. Mas naquela época era sério isso (...) Mas não é diferente o sabor daquele tempo para o sabor de agora?” Foi quando a barba dos rapazes chama a sua atenção, e ela pergunta: “E essa barba, era uma questão religiosa?” Aurora explicou: “Não, era a moda!” Embaladas pelo bolero Sinceridad, de Bienvenido Granda, Lígia deu risadas ao recordar o pequeno gravador que acompanhava, em memória, a fita cassete que ela havia trazido, apresentado-nos à trilha sonora da sua lua-de-mel. Nas fotografias, detalhes da sua casa iam aparecendo, como a ambientação dos almoços em família e das festas infantis. De uma música para outra, Lígia nos levou a lugares ainda mais distantes, agora aproximados com as imagens em branco e preto dos seus bisavós e avós, tonalizados pelo amarelado do tempo no papel. Traços no modo de sentir e agir, presentes através dela, foram percebidos como herança italiana. Recordou com gratidão: Essa aqui é a minha avó. Essa mulher que me alfabetizou, com a cartilha do meu irmão. Eu entrei com sete anos na escola, já sabendo ler e escrever. Ganhei essa boneca que chamava Regina. Essa menininha sou eu. Olha, essa mulher que me ensinou o que era saudade, porque ela viveu com a gente até que eu tinha seis anos e meio. Aí ela foi embora porque achou que estava nos dando trabalho. Um dia eu falei pra minha mãe: Mãe estou sentindo um negócio.

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Cada vez que eu penso na nonna eu sinto uma coisa. E ela falou assim: Isso é saudade, filha.

Fatiando o pão doce que havia levado, Aurora recordou: “No interior, eles traziam na charrete o pão doce e o pão salgado. Que cheiro de pão doce, que delícia! Até hoje eu lembro do cheiro do pão, quando a gente ia pegar”. Continuou Lígia: O meu marido falava: Ah, porque feijão como o da minha avó... Mas eu falei (que) ele era novo, brincava na rua, chegava lá e ia comer feijão. Agora, você olha o extrato bancário e vem comer feijão. Mas nunca vai ter o mesmo gosto! A vida é outra, não é?

Ao final, fizeram sobre a mesa uma montagem interligando todos os elementos ali presentes: o pão doce, as fotos, os objetos, formando assim uma colagem sensorial-tridimensional. Fotografei essa assemblage para que a imagem fosse utilizada na oficina seguinte. Quando a sirene soou, convocando-­as para a sala de aula, tocava na fita de Lígia a voz de Frank Sinatra em My Way, parecendo sintetizar musicalmente a produção plástica. (ver Caderno de imagens – parte V, figura 1 - Memorial) Na oficina seguinte, pedi que encontrassem uma forma de dar um continente às fotografias que eu havia tirado da assemblage. Aurora iniciou a produção de um envelope, e depois resolveu que uma caixa serviria melhor. Lígia concordou, e Sofia, que não tinha participado da oficina anterior, iniciou a produção de um livro, no qual pensou em colar uma seleção de fotos. Enquanto manuseavam os papéis ali dispostos, perguntei: “Assim como vocês estão fazendo algo que acolha as imagens de suas vidas, como fazer do projeto dessa sala algo que também possa acolher o jeito pessoal de bem cuidar, presente nessas histórias?” As educadoras estavam convidadas a interferir no espaço de trabalho, a partir do respeito à história e temporalidade de cada uma como ser humano, favorecendo a relação entre o trabalho e a totalidade das suas vidas. Passado o mês de férias, nos reencontramos na sala de professores. Embora não tivessem continuado o projeto da sala, Aurora levou espontaneamente lembranças de ex-alunos: bilhetes, amostrinhas de perfume, placa de porcelana em sua homenagem. Foi

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quando perguntei: “Esse lugar aqui acolhe a história de vocês?” Lucília, professora de Geografia, ponderou: Acolhe, porque você (referindo-se ao grupo) está aqui e, de qualquer maneira, tudo isso está presente na sua formação, no que você é, na maneira como você age, se relaciona (...). Então você traz, e tudo isso é acolhido. Só que, se não for exposto, como você fez agora, trazendo isso à tona (referindo-se à Aurora), então a gente não conhece.

De acordo com Carvalho (1995), os professores desse nível de ensino (segundo ciclo do Ensino Fundamental - 6o ao 9º ano) sofrem um agravante processo de despersonalização, já que as diferentes escolas em que precisam trabalhar para complementar o salário passam a ser locais de passagem, lugares impessoais em que eles se esforçam para identificar-se. Diante dessa necessidade de tornar o espaço pedagógico um pouco mais “familiar”, lembro-me da consideração de Bachelard (1996, p. 25): “(...) todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”. Em contrapartida, como afirma Carvalho (1995), os anos 80 e 90 se caracterizaram pela crítica à feminização do trabalho docente, à domestificação do espaço escolar, aspectos relacionados à ausência de uma postura crítica e competente. A autora, no entanto, questiona a separação entre vida pessoal e trabalho, por tratar-se de crença fundamentada em um modelo técnico e racionalista, culturalmente construído pela parcela masculina da sociedade, o qual acarretou problemas também para o homem. Na realidade, sabemos que o público e o doméstico se interpenetram. Para que os valores presentes no fazer educativo sejam explorados em sua abrangência e profundidade, essa relação precisa vir à tona, no sentido de desvelar como se constroem os liames identitários, com suas hierarquizações, contradições e preconceitos presentes também no cotidiano de trabalho.

expressões cotidianas em foco No decorrer das oficinas, Aurora levou telas que havia pintado para expor na sala. Lígia observou a limpeza da toalha e a reforma do antigo sofá, iniciativas coordenadas por Sofia. Embora resistisse

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em levar adiante a modificação de um espaço onde circulavam outros professores, ausentes naquele momento, o pequeno grupo resolveu prosseguir, dando destaque à poluição visual da sala. Explorando o quadro de avisos com inúmeros panfletos sobrepostos, Lígia comentou sobre um clima nebuloso que percebia entre as pessoas. Como se ali também as relações estivessem sobrepostas, encobertas. A sala de professores passou a ser posta à luz como lugar, região. Para Heidegger (2002a), um lugar é descoberto como plexo de elementos que se articulam, formando significação própria. Nas oficinas, passamos a trabalhar o modo como é vivida a trama “sala de professores”. Nela, o que as coisas falam umas às outras? O que os objetos dizem daqueles que habitam esse espaço? Com o acolhimento da sala como teia significativa, vislumbramos a “espacialidade”, concebida pela fenomenologia de Heidegger como condição originária, parte da contextura de articulação e realização do homem. Nessa perspectiva, o homem é “espacializando”, isto é, compreende a si mesmo abrindo o mundo como conjuntura de referências. Assim, os distanciamentos e direções vão sendo abertos no lidar com o mundo, no uso e manipulação dos instrumentos. Com o termo “circunvisão”, Heidegger (2002a) refere-se ao olhar humano, que, originariamente, articula e remete uma coisa à outra em função do direcionamento que dá à sua existência. As coisas daquela sala não estavam lá de um jeito aleatório, apartadas do homem, porém, instaladas, arranjadas, isto é, pertencentes a uma rede de significância que revelava direcionamentos do existir. Inicialmente, focalizamos as expressões cotidianas. Solicitei que escolhessem uma ou várias cores de papel celofane e entrassem em contato com o modo de ser desse espaço, das pessoas que nele transitam: “O que foi percebido até agora com relação às expressões das pessoas aqui? Que gestos, que caras são encontradas nesse espaço?” Pedi que fechassem os olhos e visualizassem essas expressões. Foram comentando sobre hábitos e atitudes das pessoas nas duas salas que se comunicam, formando o espaço dos professores. Iluminadas por lanternas acesas em sua direção e envoltas pelo colorido do papel, Lígia e Olívia, professora de Geografia, projetaram algumas expressões. Por estar chegando agora à

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escola, Olívia disse não saber o que fazer. Pedi-lhe para comunicar a imagem de estar entrando naquele local, novo para ela. Com a tez azulada, expressou sua “cara de interrogação” e o seu “pé atrás”. “Pé atrás é normal, não é? De quem não conhece o espaço, chega com o bonde andando, pegando a classe de uma professora que foi muito boa... É complicado”.Ao falar, vai dobrando o papel, para mim uma forma de expressar o seu recolhimento. Lígia preferiu dizer:

poética do espaço, no qual Bachelard (1996) refere-se à simbologia da toalha branca sobre a mesa. Elucidada em diversos poemas, e agora por Lígia, essa imagem sugere a delimitação de um ponto central de respiração da casa.

Aqui é uma coisa múltipla, a gente ri. Ria-se mais. (...). Acho que vai estressando. É muita reclamação na hora do lanche, que eu acho que é imperdoável. (...). É, porque a gente já desce tão estressada! Você está com fome, os alunos agitados. (...) É um muro de lamentações.

Através do projeto, a significância silenciosa que escorre por entre atitudes e objetos desse espaço foi esboçada. No instante poético, pequenos detalhes do outro cresceram diante dos olhos: a cor da toalha, a tampa da cesta de lixo, as marcas do rosto da colega ou a expressividade de suas mãos. Para a poeta Regina Célia Barbosa (2001), o lado poético do cotidiano é algo ao mesmo tempo escondido e escancarado. É desvelado através de um modo de olhar que libera o que se move entre a materialidade dos objetos, as palavras e os gestos humanos no seu entorno. Esse olhar possibilita a soltura dos entes presos à teia significativa que nos constitui. Desconstruída, novas tramas emergem através de um processo de apropriação ou, se preferir, personalização, em que as pessoas se percebem como artífices de novos significados.

Perguntei o que ela gostaria de ver lançado no intervalo entre as aulas e pedi que iluminasse a parte da sala correspondente, ao que respondeu: Que as pessoas tentassem esquecer, por quinze minutos apenas, o que já aconteceu. Ou, ao invés de dizer que fulano e beltrano não trabalham, dizer: Peguei o caderno da fulana e estava uma graça. (...) As pessoas estão meio exacerbadas, com um medo de perder não sei o quê. Até quando eu vou ficar achando que tá tudo tão difícil, e por isso eu posso ser grossa, sem educação?

Focalizando a mesa com a lanterna, argumentou: Estou sentindo falta de uma relação profissional em que se comungue dos mesmos ideais. (...) eu quero que a gente saiba que a gente é profissional, e que nós estamos aqui para fazer um trabalho. (...) O que eu ponho agora nessa mesa?

Sugeri que ela expressasse, através dos traços a serem desenhados no projeto da sala, a comunhão profissional que desejava. Somando os colegas e o pessoal da secretaria, Lígia pôs uma cadeira para cada um deles em torno da mesa com toalha branca desenhada, comentando em seguida: “Pluralidade, que a gente soubesse se respeitar e respeitar a diferença do outro, mas, ao mesmo tempo, também saber que você é diferente. E cada dia você está diferente”.O desenho da professora reportou-me ao estudo sobre a

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Ao final, foi sentida a necessidade de reorganizar o local como um todo, subdividindo as duas salas em um espaço para refeições e outro para descanso e convívio com os colegas.

quando se encontram, o que as coisas dizem umas às outras? A intervenção na sala de professores continuou a ser explorada como ação pedagógica. Yeda, professora de Português, fez a seguinte crítica sobre o local: “Tem coisa que não tem serventia. Aqui é como se fosse depósito de lixo para os professores verem. Tudo dentro de um espaço onde o professor fica”.Lígia refutou: “Não seria o contrário? O professor é que teria que estar na sala das outras coisas? Os professores é que estão na sala dessas coisas”.Yeda concluiu: “Os professores estão na sala das coisas ‘inservíveis’. Retirar os inservíveis e deixar só os inúteis, que somos nós”. A fala de Yeda lembrou-me uma imagem poética criada por Manoel de Barros (2003), ao se referir a um pente velho que, na sua decadência e

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desuso, misturava-se a terra, integrando-se aos musgos do quintal. Tornara-se um “desobjeto”, muito embora os objetos ali presentes parecessem não se integrar entre si e ao local que os continha. A balança, os cones de trânsito, as prateleiras com os livros amontoados, agora eram referidos pela sua não-serventia para o contexto “sala de professores”. Mas algo eles tinham de desobjeto. Pareciam estar próximos de não serem eles mesmos, como a cadeira quebrada suspensa na prateleira ou os livros que não se sabia de quem ou para quem seria a leitura: eram coisas em seu “estado terminal”.

10 A identificação com produções pessoais, objetos cotidianos ou elementos da natureza que fazem parte da situação em que se encontra a pessoa é uma técnica utilizada em Gestalt Terapia e de uso bastante fr eqüente na Arteterapia Gestáltica, a qual favorece a conscientização de aspectos pessoais até então submersos ou compreendidos como algo alheio.

Na seqüência, cada pessoa escolheu dois objetos da sala e promoveu um diálogo entre eles, favorecendo a expressão de si através de um processo de identificação com os mesmos10. Indaguei: “O que as coisas nesse espaço poderiam dizer umas às outras? E para aqueles que andam por aqui?” Lígia escolheu uma cesta de pão que estava sobre o armário. Quando solicitada a dar voz à cesta, encontrou elementos que a identificava ao objeto: (...) Sei lá, hoje eu sou uma cesta vazia precisando de... Atenção, precisando de sentimento, precisando que as pessoas olhem pra mim como um outro ser humano. (...) Sou uma cesta também porque eu gosto de carregar coisas. Gosto de colaborar com as pessoas. E a minha função de cesta é trabalhar para os outros (…).

Ao tomar o vaso de violetas roxas, continuou: “(...) Eu acho que em alguns momentos eu sou um vaso porque eu proporciono a ampliação de coisas, plantaram coisas em mim”. Perguntei se haveria algo que o vaso poderia dizer à cesta, e afirmou Lígia: “Cesta, você precisa um pouco mais de beleza, de cuidado, de limpeza. Um pouco mais de alegria, talvez. Um pouco mais de enfeite”. O grupo escreveu e colou sobre os objetos o que eles teriam a comunicar para os que freqüentam a sala. Palavras de uma cesta: “Sejamos receptivos. Ajudar o outro a carregar seu fardo pode aliviá-lo e tornar você mais leve”.Recado do sofá: “Descansem! Aproveitem! Desfrutem! Usem! Abusem!” Mensagem de um garrafão vazio: “Enquanto eu for útil, usem-me e saciem a sua sede. Mas quando eu não tiver mais utilidade, ajudem-me para que eu não seja olhado com desprezo”. (ver Caderno de imagens – parte V, figura 2 - A cesta e a violeta)

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Espreitamos o que Baudrillard (2000; 2001) chama de silenciosa cumplicidade entre as coisas, para quem o objeto é considerado um conceito filosófico que se apresenta como senha para a compreensão da cultura, possuindo a dupla condição de instrumento e de signo. Como signos, os objetos transcendem a sua função utilitária e, estabelecendo entre si um jogo simbólico na cotidianidade vivida, desvelam modos de relações sociais. Concordando com o autor, desvelamos o “sistema falado dos objetos” e passamos a considerar que cada móvel ou utensílio da sala de professores abre uma faceta das relações que nela se estabelecem. A disposição dos livros nas prateleiras (suportes provisórios que mal conseguem conter tantas informações), antes mesmo de qualquer intervenção, constituía-se em uma instalação fortuita que traduzia esteticamente a arritmia de informações e a náusea diante delas. A responsabilidade pela limpeza da cesta de lixo, ou pela utilização do microondas, testemunhava a hierarquização social presente nas relações profissionais, desvelada a partir do uso do espaço comum. (ver Caderno de imagens – parte V, figura 3 - Sala de professores) Em seguida, interferiram no espaço produzindo pequenas instalações com os objetos e suas “falas”, de forma a destacá-los e arranjá-los em uma nova trama. Agora, desprendidos de suas relações habituais, em “instalação”, os objetos foram reconfigurados em uma função “comunicativa” e “provocadora”, convidando à interação e à releitura da cartografia de relações interpessoais do lugar (BARROS, 1992). Para Dempsey (2003), a instalação recria o espaço através de ambientações, funcionando como “catalisador de idéias”. Segundo Barros (1992), a instalação promove a interação de elementos culturais e sociais herdados da memória e tradição, os quais passam a ser transformados no “tempo da experimentação”. Barros (1992) considera que essa forma de arte cria o “lugar do imaginário” ou “espaço do imaginário”, onde o espaço-tempo cotidiano é rompido, criando microcosmos que poderiam ser vistos em analogia aos lugares míticos e rituais. Ao serem rearranjados através da vivência estética, os objetos da sala foram, de certo modo, sacralizados em uma ordem que expressava tanto uma síntese do sentido que perpassa o mundo vivido como um apelo para sua superação.

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instalação em lugar de passagem Em uma oficina com a presença de Fátima (diretora da escola), o grupo expôs as reflexões feitas até o momento, discutindo também a viabilidade de mudanças para o local, como inclusão de computadores e subdivisão de espaços. Lígia avaliou: A gente começou a perceber o quanto não se cuida. (...) A Yeda vive falando: ‘Eu acho que estou emburrecendo. Não sobra tempo pra você estudar, pra se preparar’. A gente virou uma coisa, na verdade. Não um ser humano preocupado consigo mesmo e com os outros em volta da gente. (...) Há uma representação negativa da profissão, porém, fomos vendo o quanto o professor também é responsável por isso.

A professora considerou que a reforma da sala estava ligada à expressão do bem cuidar, relacionando a necessidade de melhor infra-estrutura e higiene dos objetos ao repensar das relações entre as pessoas que utilizam o local. Fátima expôs que já havia pensado em fazer modificações ali, porém, estava num impasse, pois na planta oficial da escola não constava esse espaço. Seria ilegal fazer alteração de qualquer tipo. Explicou que, na verdade, aquela sala havia sido improvisada por uma diretora já há algum tempo, onde antes constava um corredor. Oficialmente, apenas um único espaço estava destinado à secretaria, direção e sala dos professores. Na impossibilidade de mexer na estrutura atual do prédio, Fátima sugeriu adaptar para os professores uma sala de aula localizada ao lado da coordenação. O grupo continuaria a fazer suas intervenções na sala atual, e sugeri a construção de uma maquete que materializasse as questões problematizadas, convocando as pessoas a vislumbrarem outras possibilidades de convívio. Já estávamos em meados de outubro e o grupo seguia bastante disperso. Apenas Lígia começou a dar forma às suas intenções na maquete. Em algumas ocasiões, verbalizava suas impressões sobre aqueles que olhavam as oficinas “de fora”: “Eu não sei se você percebeu como as pessoas estão assim: ela está brincando de casinha. Não está trabalhando nem propondo. É pra passar o tempo. Aquelas bobagens...” Lígia tinha com freqüência a necessidade de me colo-

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car frente a essas outras visões, que, de um modo oculto, pareciam balizar, ou ofuscar, a sua. Foi quando eu coloquei: “Você está sempre trazendo a outra visão, que contrastaria com a sua”. A suposta opinião dos outros servira para encobrir o enfrentamento de questões que causavam incômodo à professora, que assim revelou: Às vezes eu fico só no comentário. Eu não consigo pôr a mão na massa e fazer (...) Eu vejo o que está errado, mas não faço porque vou estar sendo alvo da crítica. Isso eu tenho claro para mim (...) O único lugar que eu me sinto mais segura de fazer alguma coisa é na sala de aula, lá eu me sinto a dona do pedaço. Aqui eu não sinto que eu faço, e nem que o quê eu faço tenha algum resultado. Nós não temos esse trabalho coletivo, é muito truncado.

Dos materiais ali dispostos para a construção da maquete, pegou a massa de modelar e começou a produzir as cadeiras em torno da mesa. Pedi-lhe que imprimisse a expressão que para ela mais identifica cada professor, na forma a ser dada às cadeiras. Riu da minha sugestão e preferiu falar que gostaria que as pessoas se despissem de suas defesas. Pedi então para que ela modelasse em uma das cadeiras o movimento de despir, que estava fazendo nos braços. Em seguida, expôs o que a inquietava: “Eu entendo tudo racionalmente, a questão é colocar pra fora... Olha, eu despi totalmente a cadeira! (rindo)” “É difícil entrar nesse jogo?”, perguntei, referindo-me à vivência estética. Prontamente respondeu: “Não! Eu entro de alma, de coração. Eu não entro com as mãos. Eu não consigo fazer, entendeu? Eu fico travada totalmente”. Utilizando-se da metáfora do vestir e despir, continuou: “Parece que a gente veste uma... A gente põe uma postura, e não há meio de abrir mão daquilo nunca. Isso é muito complicado”. Percebendo a diferença quanto ao engajamento nas primeiras oficinas (com objetos pessoais e fotos de família) em relação às intervenções na sala, indaguei como elas avaliavam essas etapas. Aurora respondeu: “Esse resgate foi gostoso (...) Voltar às épocas boas da vida”. No entanto, considerou “decepcionante” a passagem da assemblage para as instalações. Lígia questionou: “Percebe que aqui a gente só tinha que pensar no que estava pronto, no que já foi? Depois foi uma questão de modificação mesmo. Trabalhar em

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prol dessa modificação de postura. Aí o bicho pegou”. E relacionando as oficinas com a dinâmica do semestre letivo, avaliou: “A cabeça está sempre pensando em outras coisas, e você acaba não mergulhando de cabeça nisso”. Aurora continuou: “Está tudo improvisado. Tudo hoje pra amanhã”. Lígia complementou sua opinião: “Além de muitos eventos em que o professor vai e não ocorre aula. Assim como o aluno não tem a escola como a coisa mais importante naquele momento, o professor também não tem”. Diante do que estava sendo vivido, perguntei se faria sentido continuar a produção da maquete, e Aurora avaliou: “Com a maquete, a gente está tentando mostrar uma mudança pra melhor. Uma mudança até de relacionamento entre professores, professor e direção. Tudo porque é uma mudança do que é mais íntimo para os professores, que é a sua sala (...)”. E decidiu o grupo por continuar.

o velho e o novo postos em obra Na última oficina, as professoras mostravam-se assoberbadas com projetos vindos de instâncias diferentes e sem comunicação entre si, tais como: eventos nacionais e estaduais a serem trabalhados em sala de aula como proposta da coordenadoria de ensino, programações comemorativas da escola, propostas da coordenação pedagógica a serem encaminhadas por cada sala, além das avaliações de alunos e tarjetas a preencher. Em meio a uma evidente sensação de esgotamento, pedi que deixassem as suas marcas na caixa que serviu de suporte para a maquete inacabada e, com essa forma, fechamos o trabalho de oficinas que ocorrera durante aquele ano letivo. Desenhando ondas pretas e amarelas que se sobrepunham, Lígia avaliou que esses foram “momentos de reflexão, introspecção, mas também de exposição de alma, de ampliação de mundo”. Quanto às produções estéticas, Aurora percebeu não ter havido a preocupação em “fazer bonito”, importando o “sentimento da hora”. Considerando as oficinas como um “trabalho de alicerce”, revelou: “Não adianta você estar trabalhando de um jeito lá em cima (sala de aula), se aqui em baixo (espaço de convivência entre os pro-

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fessores) é outra coisa”. Trazia, assim, a importância do resgate e focalização de valores contraditórios que permeiam as relações no cotidiano da escola. Olívia expressou a sensação de estranhamento que a acompanhou durante boa parte do processo: “Pra falar a verdade, nem sei se entendi. (...) Não sei se é porque eu precisava de mais... Eu acho que tudo isso ajuda, porque você estando bem... essa mudança no dia-a-dia a gente precisa. Mas eu, sinceramente, encontrei muita dificuldade”. Com a imagem da lanterna, a qual havia focado partes da sala, Lígia procurou iluminar para Olívia sentidos possíveis para o que tínhamos vivido: Mas veja bem, lanterna é um negócio que eu sempre brinquei. Acho muito divertido. Mais divertido até do que útil. Eu fecho uma sala que tem lá em casa e brinco com a lanterna e minha neta. Daí eu vim aqui e pego a lanterna. E eu tenho um filho que tudo que ele quer ele consegue, tudo que ele projeta ele consegue. E ele fala: ‘Mãe, a gente tem que ter um foco. Não muda o foco!’ Ele usa essa expressão. Só que aí eu aliei tudo. Quer dizer, focar, como ele usa, tem tudo a ver. Se você usasse a sua mente como uma lanterna, pra você iluminar aquilo que você está fazendo, aquilo que você pretende... Até projetasse uma coisa mais futura, mais longe um pouco. (...) E ao mesmo tempo, achar que a lanterna é tão lúdica! Quer dizer, eu tive uma outra experiência de tudo isso.

Com essa fala, Lígia expressou verbalmente a entrega ao inesperado, aberto pelo processo criativo. Nesse contexto, a fala se dá de modo imprevisível, uma vivência que, como coloca Carneiro Leão (2002), ocorre no jogo cadenciado entre a exposição de remissões e a silenciosa viagem por dentro do movimento do referir. Assim emerge o pensamento, como escuta do silêncio que articula as remissões, movimento originário que opera uma ruptura com as significações cristalizadas e unívocas. Lígia fluiu por dentro das significações do iluminar. A lanterna tornou-se imagem poética, articulando diferentes possibilidades existenciais. Houve uma abertura para o silêncio que articulava uma imagem à outra: a lanterna que é lúdica, aquela que é útil e a que ajuda a focar um objetivo de vida. Todas saíram

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de lugares e tempos estabelecidos, parecendo agora se realocar, enviando-a a novos direcionamentos frente à existência. Enquanto pintava as mãos para deixar no interior da caixa, Olívia me fazia perguntas sobre os materiais que estavam sobre a mesa. Expressando a sua falta de intimidade com as tintas e pincéis, parecia pedir que eu os apresentasse a ela. Como a buscar uma compensação, frisou que a sua filha, no entanto, tivera uma educação bem diferente, pois conhecia tudo aquilo. As marcas da mão de Olívia deixaram em mim a impressão de que quase nada terminara naquele momento. No ano seguinte, quando retornei à escola para mostrar parte dos meus registros, percebi que a nova sala de professores havia acolhido muitas sugestões do grupo e, ao mesmo tempo, era um lugar diferente. Como materialização de um desejo, o novo espaço abriu as fronteiras do possível, do que poderia tornar-se realizável. Puseram-se em obra o velho e o novo. No movimento dos antigos armários, da conhecida mesa, agora juntos aos computadores e novas violetas, formou-se outro arranjo. Esse talvez mais harmonioso, por parecer em maior sintonia com o movimento das pessoas naquele espaço, com possíveis sentidos de se estar ali. Resumo: A oficina com recursos expressivos é apresentada neste artigo como um método de formação contínua para profissionais da educação. Através da vivência estética, foram problematizadas questões organizacionais, técnicoprofissionais e pessoais pertinentes à organização do trabalho educativo, relacionando-as à estruturação de práticas pedagógicas inseridas no contexto específico de cada escola. Para a análise desta temática, foi realizada pesquisa participante em grupo com diferentes segmentos de trabalhadores de uma escola pública municipal de São Paulo. A ontologia de Martin Heidegger ofereceu suporte teórico e metodológico para a estruturação das oficinas e análise das produções estéticas. As considerações de Hannah Arendt sobre a crise da educação na América nortearam a compreensão a respeito da diluição da tradição e seus reflexos sobre a desvalorização da profissão docente. A leitura de Bachelard e Baudril-

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lard, dentre outros, abriu possibilidades de superação dessa problemática, através do desvelamento da dimensão poética do espaço de trabalho. Para os participantes, as oficinas com recursos expressivos constituíram-se em um trabalho de alicerce, a partir da reflexão e construção de novos sentidos para o fazer educativo, evidenciando-se o caráter político e pedagógico da vivência estética. Palavras-chave: pesquisa participante, vivência estética, oficinas com recursos expressivos, formação de educadores, filosofia existencial.

Abstract: The workshop with expressive recourses is herein presented as a method of continuous formation of professionals in the field of education. Through the aesthetic grasp of living experience, organizational, technical-professional and personal matters were questioned, pertaining to the organization of the educational chores, relating them to the structuralization of pedagogical practices inserted in the specific context of each school. For analyzing such theme, participant research was carried out in group of workers of different segments of the public-school net of the state of São Paulo. Martin Heidegger’s ontology offered the theoretical and methodological supports for setting the structures of the workshops and the analysis of the aesthetical production. Hannah Arendt’s considerations on the educational crisis in the Americas set north to understanding the dilution of the tradition and its consequences on the devaluation of the teaching professionals. The reading of Bachelard and Baudrillard, among others, opened the possibilities for overcoming this problem through the revelation of the poetic dimension of the working space. For the participants, the workshops with expressive recourses were a foundation-laying activity from the reflection and construction of new feelings towards the educational deeds, evidencing the political and pedagogical character of the aesthetic grasp of living experience.

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Keywords: participant research, aesthetical grasp of living experience, workshops with expressive recourses, formation of teachers, existential philosophy.

Resumen: La oficina con recursos expresivos se presenta en este artículo como un método de formación continua para profesionales de la educación. A través de la vivencia estética, se problematizaron cuestiones organizacionales, técnicoprofesionales y personales pertenecientes a la ordenación de la labor educativa, relacionándolas a la estructuración de prácticas pedagógicas insertadas en el contexto específico de cada escuela. Para el análisis de esta temática, se realizó una pesquisa participante en grupos de diferentes segmentos de trabajadores de una escuela pública municipal de São Paulo. La ontología de Martin Heidegger ofreció soporte teórico y metodológico para la estructuración de las oficinas y análisis de producciones estéticas. Las consideraciones de Hannah Arendt sobre la crisis de la educación en América orientaron la comprensión respecto a la dilución de la tradición y sus reflejos sobre la desvaloración de la profesión docente. La lectura de Bachelard y Baudrillard, de entre otros, abrió posibilidades de superación de esa problemática, a través del desvelo de la dimensión poética del espacio de trabajo. Para los participantes, las oficinas con recursos expresivos se constituyeron en una labor de fundamento, a partir de la reflexión y construcción de nuevos sentidos para el hacer educativo, evidenciándose el carácter político y pedagógico de la vivencia estética. Palabras clave: pesquisa participante, vivencia estética, formación de educadores, oficinas con recursos expresivos, filosofía existencial.

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e-mail: clarapaulina@terra.com.br Recebido em 15/02/2009 Aceito em 17/04/ 2009

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pobres incivilizáveis: por uma infinita experimentação criadora1 Monique Borba Cerqueira Núcleo de Condições de Vida / Instituto de Saúde

1 Este artigo é parte da tese de doutorado Pobres, Nômades e Incivilizáveis: Potência e Criação de Novos Modos de Vida, defendida na PUC/SP, sob a orientação da Profª Aldaíza Sposati.

A desvalorização das forças da vida inventa o pobre — o mal provido, pouco fértil, o improdutivo, de menor valor, mal dotado, desfavorecido, desprotegido, digno de compaixão, infeliz. Massacrado, o pobre é incapaz, grotesco, burro, abjeto, ocupando um lugar de subtração e exibindo sempre alguma forma de apagamento de si. Como náufragos contemporâneos, assistimos à exaustão de modos de civilização que produzem sujeitos banidos, sobreviventes, migrantes que exibem seu perfil caótico massivamente. Sobrantes e miseráveis de toda a ordem são tomados por uma visão unidimensional. Pobres e pobreza constituem-se sujeitos e processos a serem interrogados aqui numa direção contrária às investigações cuja regra geral é descrever, informar ou denunciar as faces do seu infortúnio. Importa abordar a potência dos pobres, sua capacidade de produzir vida na própria vida. Refletir sobre os pobres significa desconstruir uma figuração constituída por imagens e semânticas negativas. Aqui, evidenciar a pluralidade de signos da pobreza conduz ao exame da esfera moral e seus mecanismos de rigidez e autoconservação, o que não impede a possibilidade da construção de uma dimensão ético-política afirmadora de diferenças e produtora de novos sujeitos. Para isso, é

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2 Um pensamento artístico, criador de novos sentidos, conectado a afetos e paixões define a produção de alguns dos principais interlocutores deste estudo: Nietzsche, Deleuze e Foucault.

preciso subverter o próprio pensamento2, torná-lo distinto do exercício meramente recognitivo do pensar que apenas reconhece o que já está dado. Nesse sentido, problematizar o mundo dos pobres remete ao esgotamento dos modelos de civilização expressos na linearidade de interpretações correntes, ao mesmo tempo em que requer uma visão capaz de destituir seu fundamento. É necessário, então, pairar sobre a moral, abandonando seu peso, sua seriedade, mantendo sob suspeita o caráter correto, definitivo de toda interpretação, uma vez que ela sempre obedece a uma hierarquia de valores. É preciso observar os movimentos da vida que não são inteiramente úteis, podendo transcorrer num tempo vazio, nulo, roubado do dia, no limite do irrepresentável. Nesse sentido, nosso foco recai sobre o campo das artes — literatura e cinema — cujo recorte define a escolha de três personagens: Carlitos, que tornou clássico o cinema mudo criado por Charles Chaplin; Gabriela, do romance de Jorge Amado e Macabéa, protagonista de “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. Embora todos eles vivam sob o signo da escassez e respondam a uma lógica caracterizada pela privação, importa perceber a sua capacidade de resistir a formas de dominação expressas nos mais variados planos da existência, o que possibilita distingui-los como portadores de um fator incivilizável, marca de uma desobediência incomparável. A condição de vida precária dos personagens propicia um olhar sempre dirigido do interior de uma civilização em ruína, colocando a nu toda nossa degradação e decadência. Todos os personagens analisados são atravessados por um fluxo de vida sem limites; eles desconhecem qualquer enquadramento soberano, vivem segundo seus próprios códigos e são cegos à uniformidade.

3 A afirmação é o mais alto poder da vontade. “Afirmar é tornar leve: não é carregar a vida sob o peso dos valores superiores, mas criar valores novos que sejam os da vida, que façam a vida leve e ativa” (DELEUZE, 1976, p.154).

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dignificar a vida É através da invenção afirmativa3 que a criação mostra-se a serviço da vida. Ao fazer a crítica dos valores morais, a genealogia proposta por Nietzsche procura abrigar a vida das formas de avaliação que a degeneram e enfraquecem. Daí o projeto de transvalorar, produzir valores novos que dignifiquem a vida.

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A moral, tão bem instalada na tradição, nos padrões culturais, nos costumes, apodera-se do sujeito, não permitindo a coexistência das diferenças. Postula-se tão somente a reprodução sistemática de sentenças, juízos, opiniões, conselhos, advertências, normas de conduta como uma evidência incontestável. Os valores estabelecidos circulam estendendo a mesma verdade a todos, indicando um caráter universalista, voltado para a obediência e o aprisionamento das forças criativas. É através da imposição dessas medidas de verdade que advertem e recomendam conformismo e retidão para superar os sofrimentos da vida que o sujeito verga-se aos limites de um destino irrevogável, onde a lei, a vergonha e a culpa confirmam a condição de impotência dos pobres. A moral cria códigos de conduta e regras na direção de um campo impositivo, utilitário e finalista, configurando relações de dominação expressas em sentenças inabaláveis que modelam o que se deve pensar, como agir, em que acreditar. A moral reforça a impotência, regula visibilidades e invisibilidades daqueles que estão em toda parte: os pobres. A abordagem nietzscheana e sua crítica incisiva aos valores morais aponta para a necessidade do abandono de uma moral opressiva, propondo a transvaloração, a criação de novos valores. Tal é o sentido da vontade de potência, algo que perpassa a vida, incluindo as formas mais estranhas e desconhecidas de existência, pois todos os corpos são um agregado de forças e, portanto, tendem a ampliar a sua influência, o seu domínio sobre o mundo. Há um elemento plástico contido no princípio de vontade de potência. Por isso, são dois os tipos de forças em luta: as forças de conservação e as de criação, estas últimas relacionadas à invenção e metamorfose (DELEUZE, 1976, p. 45). As forças de manutenção querem preservar o que existe, conservar o que se tem, deixando intacta a própria vida e quem se é. Tais forças são importantes no sentido de proteger a existência, evitando que o corpo pereça ou seja destruído por outras forças. Já a potência ativa é sempre algo que quer expandir, afirmar a própria vida. Ela tende a criar novos arranjos de força, sempre inéditos, impensáveis, num movimento contínuo de excitação da própria vida, pois tudo o que existe é uma pluralidade de forças em luta

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(idem, 1976, p.41). As forças de invenção ou criadoras buscam a superação de si mesmas, o ultrapassamento de quem se é e do que se tem. Por isso, essas forças criadoras querem a metamorfose, a transformação, o risco de não se submeter a nada, pois é preciso ousar a criação de novas formas de viver. Trata-se de produzir novos sentidos, valores, conexões, sensações, sentimentos, ao contrário da vida investida pela moral que tende fortemente à conservação da potência e das forças inferiores de adaptação. A vida como vontade de potência libera o sujeito do confinamento a um eu individuado sempre remetido e legitimado por uma identidade. O sujeito é definido pelo que ele pode e não pelo que ele é. Isto significa abrir-se à multiplicidade, à possibilidade de criação e expansão. Na perspectiva nietzscheana, a falta, a incompletude não são constitutivas do sujeito, pois todos nós somos agregados de força em luta. Assim, desaparece o problema da infinita insuficiência do ser, tão explorado pela lógica capitalista. A abordagem nietzscheana mostra que é preciso produzir a carência material para compor segmentos humanos fracos. É assim que se convence o outro do valor intrínseco da falta, fazendo com que coletividades inteiras sejam separadas da sua potência, daquilo que elas podem. O massacre e o enquadramento dos pobres em modelos morais de toda ordem ocultam formas singulares de vida e expressam práticas de sujeição que capturam formas de existir e de pensar. Mas as resistências se erguem como “(...) possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício.” (FOUCAULT, 1985, p.91). Em entrevista concedida em Toronto (1982), Foucault explicita da seguinte forma a questão da resistência: (Pergunta) - Politicamente falando, o elemento mais importante pode ser, quando se examina o poder, o fato de que, segundo certas concepções anteriores, ‘resistir’ significa simplesmente dizer não. É somente em termo de negação que se tem conceitualizado a resistência. Tal como você a compreende, entretanto, a resistência não

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é unicamente uma negação. Ela é um processo de criação. Criar e recriar, transformar a situação, participar ativamente do processo, isso é resistir. (Foucault)- Sim, assim eu definiria as coisas. Dizer não constitui a forma mínima de resistência. Mas, naturalmente, em alguns momentos é muito importante. É preciso dizer não e fazer deste não uma forma decisiva de resistência. (FOUCAULT, 2004 b, p.268).

Numa perspectiva foucaultiana, cabe distinguir as práticas de sujeição, sempre ligadas à moral, das práticas de liberdade que remetem a uma ética, onde ganham validade novas formas de existência na contracorrente valorativa dos contextos historicamente dados. A experiência do sujeito moral temeroso do acaso e da multiplicidade, consideradas grandes perturbações humanas, é o que constitui os julgadores implacáveis do mundo, aqueles que investem sua covardia contra a vida, ao moralizar todas as coisas, pois a moralidade e seus valores mais venerados foram colocados ao homem como uma sentença coercitiva baseada no “tu deves”. O pensamento nietzscheano vai anunciar o “tu podes” como expressão maior da criação humana cujas possibilidades de realização são inesgotáveis. É Nietzsche que nos convida a pensar que a vida não tem sentido a não ser aquele que criamos com o nosso infinito poder de valorar e transvalorar tudo o que existe, rumo ao ultrapassamento de uma desgastada forma-homem. Eis aí a generosidade do princípio de vontade de potência ao associar a vida a uma força que não se esgota, que quer infinitamente mais, sendo capaz de vislumbrar, incessantemente, zonas perigosamente inesperadas que irrompem como possibilidades ilimitadas de criação.

nas tramas da vida e da arte Conhecer a vida através da arte sempre foi alvo de suspeita. Mas, talvez, por isso mesmo as artes sejam o caminho mais oportuno para uma aproximação que permita sentir, tocar a vida e acompanhá-la em seu turbilhão mais caótico, mais emocionante. “É por isso

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que a arte é mais ‘veraz’, porque não ‘quer’ ser verdadeira. (...) Assim é que precisamos da arte, para não morrermos da verdade” (PERRUSI, 2001, p. 173). Os personagens remetem à ficção, seja no cinema ou na literatura, no entanto, o objeto de nossa análise não privilegia a trama mais evidente das narrativas, especialmente no tocante a sua fidelidade à realidade. Ao contrário, trata-se de questionar o regime de representação literária e cinematográfica por meio de uma sondagem daquilo que é singular, ampliando as possibilidades de seguir o movimento narrativo, o que permite revisitar novos regimes de significação que ancoram a potência dos personagens. Parte-se do pressuposto de que a análise realizada a partir do plano das artes requer mais do que uma observação estática, classificações ou caracterizações dos autores e das obras. Tal perspectiva aproxima-se da noção de travessia ou filosofia de percurso em Deleuze, pois está distante de uma vontade de significar, representar, sendo avessa ao esforço imitativo do mesmo; trata-se apenas de acompanhar atentamente um deslocamento, sem programação: A cada instante, singularmente, compor ou recompor um universo, configurar e descrever configurações. Assim atravessar o caos: não explicá-lo ou interpretá-lo, mas atravessá-lo, por todos os lados, em uma travessia que ordena planos, paisagens, marcas, mas que deixa atrás de si o caos se fechar como o mar sobre o sulco. (NANCY, 2000, p. 116).

Trata-se de acompanhar o percurso fugidio de personagens que extrapolam a ordem da representação, fazendo irromper intensidades, paixões, novas relações tempo-espaço e demais ultrapassamentos do esperado. É importante ressaltar as diferenças entre os personagens e obras aqui referidas. No caso de Clarice Lispector, há uma clara relação da sua literatura com a voracidade das forças da vida, dissolvendo esquemas de representação sobre o mundo e alavancando processos de singularização. Trata-se de uma escrita “líquida, sem porto seguro, sem árvores nem raízes; uma escrita que é carne e sensação” (LINS, 2004, p. 47). Tal característica não se repete nas obras de Charles Chaplin e Jorge Amado, onde a lógica da representação

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aparece bem demarcada. No entanto, ocorre algo interessante com os personagens Carlitos e Gabriela. Uma espécie de transbordamento os atinge, para além da estrutura narrativa que os concebe. Tais personagens se adensam e agigantam de modo a escapar do espaço narrativo, ultrapassando os autores e as próprias obras. Carlitos não se limita ao rótulo consagrado de “romântico vagabundo” e Gabriela não se restringe ao emblema de “mulata sensual”4. Gabriela é uma personagem construída a partir do protótipo da mulher miserável, uma retirante nordestina que subverte o “feio”, como clichê e estereótipo da pobreza. Sua trajetória nos conduz à construção do cuidado de si e à busca constante de um bem viver, assinalado pela liberação do prazer, do desejo e da liberdade em todas as esferas da vida. Já Carlitos vem traduzir o grande desafio de enfrentar a vida alheio às obrigações instituídas socialmente. Para ele, viver a destituição através dos recursos do próprio corpo, não o desloca para uma lógica limitada à sobrevivência, ao contrário, lança-o em direção a formas de resistência e ressignificação permanentes. Macabéa, o mais desconcertante dos personagens, aponta para o tema da grande recusa, não apenas em relação aos padrões, mas às poderosas forças civilizatórias. Em sua vida comum, quase miserável, a datilógrafa Macabéa ousa uma suavidade, atreve-se a compor com o silêncio, despertando forças que ultrapassam qualquer entendimento. Macabéa não precisa ser compreendida ou compreender, por isso ela é capturada com virulência pelo discurso moral que a denomina obtusa, uma criatura sem graça, sem sentido. Mas tudo isso confirma sua potência maior — não se dar a conhecer. Assim, ela escapole aos registros do inteligível, à ideia de sujeito e a qualquer forma limitável. Sem ser louca, Macabéa joga a todos nós em dimensões inomináveis, num espaço sem certezas, inapreensível, inqualificável. Enquanto tudo se insurge contra ela, a nordestina segue construindo seu pequeno mundo de resistência e criação.

4 A personagem Gabriela não apenas ficou confinada ao apelo simplista de mulata sensual, como também foi expoente da cultura sexual e tropical brasileira cuja mística foi invocada tanto por Gilberto Freyre, quanto pelo próprio Jorge Amado.

Os personagens remetem à possibilidade de uma outra cosmologia dos seres, descortinada por um mundo de paixões, encontros e paisagens existenciais, onde a criação afirma a vida.

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assimetrias da invenção The tramp, Charlot, Carlitos. A figuração do vagabundo imortalizada na história surgiu em 1914, quando Chaplin já atuava no cinema, mas o personagem só ganhou a capacidade de problematizar o mundo numa fase mais madura, a partir de 1916. O vagabundo surge. Vem de onde não se sabe. Aparece numa pequena multidão, do lado de fora de um circo, andando num beco pobre, trabalhando numa linha de montagem ou dormindo na rua. Andarilho do acaso, ele experimenta uma escolha — desfrutar a vida no ócio. Charlot não teme o fracasso social. Não aceita a culpa, o castigo social, não elabora a vida como desastre. Ele não se coloca como vítima da privação. Habita um corpo frágil, pequenino, franzino. A assimetria vai marcar a figuração de Carlitos. Botas e calças de tamanho exagerado, paletó e colete muito justos. A pujança desse corpo que deseja exceder os limites de uma delicada constituição física requer uma marca alegórica — sapatos colossais e o inseparável chapéu. O alto grau de astúcia corporal, aliada a uma resistência selvagem tornam sua trajetória um percurso visceral. Embora desafie permanentemente forças muito poderosas de ortopedia social, ele jamais se deixa capturar totalmente, ainda que entristeça, sofra, seja ofendido e surrado. A bengala de bambu tem o imenso poder de arquear sem quebrarse, numa analogia com o enorme grau de resistência criativa, flexibilidade e versatilidade do personagem. A bengala inventa gestos, um estilo de expressão; jamais é utilizada para destruir algo ou golpear alguém; ela dá balanço a um corpo singular, marcando seu deslocamento pelo mundo. As calças absurdamente largas contrastam com o paletozinho justo, anunciando o tom anedótico e extravagante do personagem. No entanto, é na arte da simulação que reside o grande virtuosismo do vagabundo. As calças velhas e enormes possibilitam o logro, a pequena trapaça, o furto, a flexibilidade de movimentos e agilidade para a fuga. Carlitos, o provocador, o construtor de absurdos, torna óbvia e necessária toda a excentricidade. Aqui o humor insurge como disposição de engenhosidade que reelabora a realidade.

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A pantomima dota Carlitos de uma forma-palhaço para além da tradição do clown. Os membros inferiores indicam sua habilidade de surpreender, fugir, espreitar, simular: o pontapé para trás, as viradinhas rápidas, corridas e freadas, cabriolas, a elasticidade do passo permitida pelas calças largas. Uma forma lânguida, afetiva aparece no movimento dos ombros que emocionam, articulados com o rosto preocupado/alegre/triste/assustado; o entrelaçar dos braços pode demonstrar acanhamento ou um jeito doce e maroto de conseguir as coisas. Mas as mãos exibem o grande acontecimento da pantomima em Chaplin. As infinitas possibilidades de expressão nas mãos de Carlitos mostram a incrível originalidade da sua pantomima introduzida no cinema mudo, retardando a sonoridade fílmica na obra de Chaplin. O vagabundo se aventura, saindo de seu território. Desarrumando os códigos definidos, ele rouba, burla e encanta num movimento veloz. Mas trata-se de um deslocamento arriscado, ele transita por um mundo de intensidades nunca seguro ou previsível, mas absolutamente necessário à sua existência. O vagabundo não se confunde com o usurpador, não destitui o outro da sua capacidade de agir, mas insiste em criar e experimentar novas composições com o mundo, o que torna Carlitos um ladrão insólito, incomum. A exuberância do vagabundo: “Achar, encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar” (DELEUZE E PARNET, 1998, p.16). Charlot é anedótico, extravagante, caricato, ao mesmo tempo em que possui uma relação de extrema simplicidade com o mundo. A alteração dos registros de significação, a rejeição da constituição íntima das coisas, pessoas e relações de força compõem a estratégia fundamental para a invenção de si. Ele subverte aquilo que rejeita ou não pode enfrentar no registro oficial dos fatos. Cria novos instrumentos, afetos, tudo aquilo que permita resgatá-lo da órbita de uma realidade opressiva com a qual se recusa a se relacionar, mas que necessita, eventualmente, percorrer. Diante das ciladas do mundo, ele cria atitudes-atalho que expressam uma grande recusa ao universo da ordem. Seus atalhos encurtam distâncias espaciais, temporais ou afetivas, estando impressos na própria postura corporal. É assim que o conhecido pontapé para trás do vagabundo denota diferentes graus de exotismo. É curioso o

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fato de que Carlitos nunca dê pontapés frontais, ele sempre arranja um jeito de dar pontapés no traseiro de seus parceiros “olhando para o outro lado” (BAZIN, 1989, p.23). Uma atitude vital relaciona-se ao pontapé para trás, Carlitos opta por não encarar a dificuldade de frente, “prefere atacá-la de surpresa, virando-se de costas” (idem, 1989, p.23). O pontapé para trás é uma manobra de lateralidade, onde Carlitos tenta disfarçar, acertar o seu alvo de forma imprevisível, ousando uma manobra repentina. É um gesto de evasão diante do esperado, uma forma de contornar os obstáculos, confirmando uma “falta de obstinação” diante das grandes oposições impostas pelo mundo (ibidem, 1989, p. 16). Em “Tempos Modernos”, Carlitos é o vagabundo irrecuperável que insiste em se tornar trabalhador. É aí que tudo começa a confabular contra ele: o mundo da indústria, das técnicas e maquinações modernas, a politização dos operários, as greves e quebra-quebras. A toda essa perplexidade dos tempos modernos, Carlitos responde bailando, deslizando — um outro modo de percorrer e desacreditar as formas de domesticação impostas ao indivíduo. Ele dança, patina, graceja, espetacularizando e se extasiando com todas as coisas. “Tempos Modernos” é o filme que mostra o conflito do sujeito com tudo aquilo que a humanidade criou como tributo à razão, à funcionalidade e grandiosidade técnica, qualidades que suscitam desprezo e profunda indiferença em Carlitos. Multiplicam-se as situações em que Carlitos quer enganar a lógica do mundo do trabalho. Essa é uma das tônicas mais presentes em toda filmografia. Às vezes, ele não quer trabalhar. Outras vezes ele não sabe, não consegue, não pode, não suporta o trabalho, porque trabalhar é desempenhar uma função, é empregar uma quantidade de força numa tarefa repetitiva, é fazer tudo como deve ser feito, como dita a regra, a necessidade, os cronogramas e prazos exigidos pela dinâmica de produção. Tudo isso constitui um universo completamente distante do mundo inventor de Carlitos. É por isso que ele não consegue desempenhar a função de bombeiro, alfaiate, soldado, gari ou operário, além de tantas outras ocupações executados de forma errática pelo vagabundo. O único trabalho que ele consegue desempenhar bem é o de artista.

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Arte, alegria, irreverência — elementos indissociáveis, presentes nas estratégias de vida e luta adotadas por Carlitos são meios destinados a ultrapassar obstáculos e obter diferentes graus de superação da própria existência. François Truffaut, ao citar Bazin, enfatiza a cumplicidade de Carlitos com os objetos que recebem um sentido sempre diferente daquele que a sociedade lhes atribui (ibidem, p.12). É o que acontece magicamente na famosa “dança dos pãezinhos”, no filme “Em busca do ouro”. Carlitos sonha que está à mesa com a bailarina que ama e suas amigas, na noite de reveillon. Elas pedem que ele faça um discurso para comemorar aquele momento, mas ele declina, dizendo estar tão feliz que fará então a “dança dos pãezinhos”. Espeta o garfo num pão francês, depois no outro, criando assim duas perninhas. Coreografados pelas mãos do vagabundo, os pãezinhos dançam lindamente. A graça da pantomima reúne-se à alegria de criar emoção a partir do habitual, corriqueiro, onde o sentido estático da coisa inanimada se transforma, devolvendo exuberância ao mundo. Carlitos inventa e faz proliferar novos sentidos, investindo sua força no banal, no reles, criando um deslumbramento imprevisto nas coisas. Carlitos anda no limite, corre perigo e nem sempre escapa à violência das forças patológicas que insistem em se apoderar de sua vida. O movimento dos lábios, olhos, sobrancelhas, testa, toda uma linguagem mímica fez com que o chamado cinema elementar de Chaplin rejeitasse a estratégia do grande plano, pois não se tratava da câmera mostrar pormenores em Carlitos, uma vez que a arte da pantomima precisava ser retratada desde os pés, passando pelas mãos, até o rosto — era preciso mostrar o corpo em ação do vagabundo. Carlitos multiplica-se nas potências de seu corpo — território existencial, corpo de invenção.

uma vocação de liberdade Sob o fermento do sol, tropeçando na geometria rachada do chão de barro, dias pouco suaves comandam corpos exaustos que ignoram

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qualquer dificuldade. É nessa terra estéril que surge Gabriela, brisa quente e leve, soprando as páginas do romance de Jorge Amado. Gabriela, invencível combatente do sertão, é acontecimento imprevisível que deitará seus instintos mais vitais sobre as terras de Ilhéus. Sua história tem início com as grandes secas nordestinas indutoras de emigração num movimento que arrasta enormes contingentes humanos — os retirantes. Eles são grupos ou indivíduos que se definem a partir da fuga, escapando com sede de vida a toda adversidade provocada pelas intempéries. Expulsos de seu território, os retirantes vagam por novos caminhos, numa trajetória nômade por excelência. “Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem respeito, sem pretexto...” (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 41). É preciso traçar uma saída para a vida. Gabriela atravessara o sertão num caminhar sem fim. Foi cruzando distâncias infinitas que essa moça se tornou uma força clandestina inapreensível, oculta na travessia da caatinga. “Ia pelo caminho quase saltitante. Parecia uma demente com aquele cabelo desmazelado, envolta em sujeira, os pés feridos, trapos rotos sobre o corpo.” (AMADO, 2004 p. 78). Encontrada pelo árabe Nacib no antigo mercado de escravos, Gabriela possuía o anonimato dos enjeitados “(...) vestida de trapos miseráveis, coberta de tamanha sujeira que era impossível ver-lhe as feições e dar-lhe idade (...)” (idem, p. 115). Gabriela no vento agitado, seu vestido farrapo claro. Nada a carregar nas mãos, nada a reter entre os dedos, apenas olhos límpidos de viver. O júbilo da chegada naquela terra estranha vai redesenhar os lábios e expandir no mundo a alegria de Gabriela. Sorriso no rosto feito vento, momento de clara simplicidade. (...) riu um riso claro, cristalino, inesperado (ibidem, p.116). (...) ela despertou amedrontada mas logo sorriu e toda sala pareceu sorrir com ela (ibidem, p. 126). (...) sorriu e tudo sorriu com ela, até o árabe Nacib deixando-se cair numa cadeira (ibidem, p. 127).

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Mulher pobre, famélica, sofrida, sozinha no mundo, mas plena de desejo pela vida. Este o espanto maior, a sagacidade ímpar do romance de Jorge Amado — Gabriela é a inversão dos valores tenebrosos que configuram as limitações naturalizadas pela ideia de pobreza. É desconcertante o processo de demolição do “mesmo” conduzido por Gabriela, porque produzido pela cegueira de uma ousadia cheia de paixão. Essa moça que não atina o significado do ressentimento é abençoada por ignorar seu passado de aflições. Ao ressurgir do áspero agreste, Gabriela modela a si mesma e torna pulsante a própria vida. Gabriela é puro apaixonamento — uma criatura de desejo. No filme dirigido por Bruno Barreto (1982), a primeira aparição da mulata no Vesúvio, bar de Nacib, ocorre durante um bate-boca político. De repente, todos se calam, paralisam diante daquela visão que se amplia no recorte da porta. Gabriela entra. Linda, a pele morena sob o vestido florido. Em sua contagiante aproximação, ela vai liberar as múltiplas conexões do desejo, espalhando prazer nos mais diferentes domínios da vida. É na solidão das artes culinárias que Gabriela se recolhe à sua paixão: preparar seus feitos, lançar explosões, transformar-se incessantemente a partir dos encontros com o mundo. Gabriela é tempestade de sensações. A sua cozinha não é feita somente do preparo da comida, mas do apurado manejo de si, conduzido como processo de criação na busca extremada pelo prazer como condição da existência. Gabriela é experiência em mutação transformada na mais exótica especiaria viva. Ela é o próprio tempero, modifica o que toca, tornando cada vez mais plástica e singular a própria vida. É certo que essa moça desperta malquerença nas mulheres da cidade; os coronéis a respeitam e até reverenciam; os homens a cobiçam com desejo de dominação; as crianças e os animais possuem adoração incondicional por ela. Pactuante com a natureza, feliz na calma de lidar com o mundo, Gabriela esculpe sensações e por isso mesmo, recria com maciez o tempo da vida. Gabriela é a feiticeira das sensações e sua vitalidade instaura-se nos encontros. A relação de liberdade estabelecida com a natureza per-

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mite arranjos plásticos, estéticos, emocionantes. Misturada ao azul do céu, ao frescor da água, ao cheiro da fruta, à alquimia do tempero, Gabriela perturba e surpreende. Acima de qualquer proibição constrói-se um corpo de pura invenção que é único — corpo criança, mulher, guerreira, corpo fruta que só deseja se dar ao mundo. É impossível adequar os modos de Gabriela aos costumes locais. Candura e liberdade colocam Gabriela em sintonia com os territórios da infância. Numa sequência incrível, a versão cinematográfica de “Gabriela” mostra a moça no meio da rua, gritando para os moleques: “— Vem!” Ela aparece com a parte superior do corpo pendida para frente, cabeça no vão das pernas, traseiro para cima. De repente, todos entram em movimento ao ouvir o seu chamado “— Vem !” É assim que brincam de “pular carniça”. Com arrojo, um salta sobre o outro, rápido, sem vacilo. Velocidade, coragem, arrepio — prazer de desafiar o corpo e suas possibilidades. A figuração de Gabriela não se limita meramente a um rol de qualidades atribuídas à personagem que protagoniza a trama ficcional. Ao contrário, ela faz disparar um gigantesco bloco de sensações e percepções, aquilo que Deleuze chama de perceptos, produto, por excelência reservado à dimensão das artes (DELEUZE, 1989). É nesse sentido que as linhas da escrita produzem linhas de vida, onde se vislumbra uma variedade imensa de potências puras de afirmação da vida que desmascaram as formas limitadas de existência que insistimos em admitir como únicos modos de viver. Embora a característica da sensualidade tenha se tornado a visão generalizada através da qual Gabriela tornou-se conhecida pelo grande público, especialmente nas adaptações feitas para o cinema e a TV, a personagem aponta para possibilidades de leitura infinitamente mais complexas. Provocar o desejo, sentir de outras maneiras é o que move Gabriela. Tão bom ir ao bar, passar entre os homens. A vida era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar as goiabas, comer manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas

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cantar, com um moço dormir. Com outro moço sonhar (AMADO, 2004 p. 204).

O tema do puro apaixonamento nos lembra que o corpo liberta a vida. Gabriela transvalora o corpo, maximiza seu poder. Aproximase de uma ética nietzscheana da alegria que redescobre e celebra a plenitude dos instintos, dos afetos e dos sentidos. O romance de Jorge Amado se abre inteiro ao desejo, criando uma mulher carnosa, rosal em festa. É assim que a inebriante sensualidade de Gabriela parece explorar as tão desconhecidas e perigosas potências do sensual, espalhando e inventando novos prazeres nos mais diversos planos da vida. O prazer faz seu percurso errante, ocupando os mais distintos espaços, desde a rua até o quintal, da cozinha à cama, numa trajetória sem início ou fim.

potências do imperceptível Uma nordestina e a tarefa de existir na grande cidade. “A hora da estrela” é uma narrativa que causa sobressalto. Macabéa habita o registro do impensável, surge como alguém que não “é”. Essa moça faz desabar certezas. A escrita clariceana possui essa provocação que incita à estranheza, onde a literatura escancara o universo de valores tenebrosos que imobilizam a vida. A história coloca o leitor absolutamente imerso numa caçada a fim de definir, coagir, capturar Macabéa. Por isso, a escrita desperta espanto e perplexidade. Um forte ranço moral é mesclado à narrativa com o objetivo de vergar a vida, fazendo-a arrastar-se até nivelá-la ao idêntico. Nessa perspectiva, Maca é a nordestina desgraçada, feia e “murrinhenta” que “assoava o nariz na barra da combinação. (...) Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço.” (LISPECTOR, 1999, p. 27). Mas a obra de Clarice nos leva muito além, se captarmos o movimento de fuga e resistência que fazem de Macabéa uma personagem incodificável. Ela nos leva a dimensões inimagináveis e é

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nesse espaço singular que a personagem ganha uma força incomparável. Macabéa afasta-se de qualquer modulação do hegemônico, se evade das formas de dominação mais perversas que insistem penetrá-la a todo momento. É assim que essa moça alagoana se torna uma estrela do começo ao fim da narrativa, fazendo evaporar os tradicionais signos de pobreza e impotência que só encontram seu referente nos códigos morais que ela desconhece.

complexo. Uma existência qualquer, espontânea, singular: este o esplendor de Macabéa.

Os detalhes de uma vida reunidos numa única personagem, alguém absolutamente sem importância, faz com que Macabéa se transforme numa das maiores aventuras existenciais da literatura clariceana. “E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico (idem, p. 20). Macabéa que o diga.

A resistência dessa moça consiste numa teimosia: a despreocupação em “ser”. Ávida em percorrer o mundo embarcada nas forças de sua própria invisibilidade, Macabéa não carrega tormentos. Descrever Macabéa requer delicadeza. Silêncio, vazio, ausência são espaços que abrigam seu melhor virtuosismo. “As palavras mais silenciosas são as que trazem a tempestade, pensamentos que vêm com pés de pombo dirigem o mundo” (NIETZSCHE, 2005b, p.19).

A escrita clariceana não tarda a mostrar que Macabéa escapa a qualquer processo designativo. “Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases.” (ibidem, p.14). Em certo momento, percebe-se que a protagonista parece não caber mais na narração. Defini-la em frases irritadiças e moralizantes não revela aquilo que foge, algo que escapa por entre as palavras. O fenômeno Macabéa exaspera porque não cabe em nenhum arbítrio. Eis o segredo de Macabéa: uma existência que resiste por meio da força do indizível, do invisível, vitalidade maior que pulsa do início ao fim da narrativa. “A hora da estrela” conta a história dessa moça de dezenove anos que “nascera inteiramente raquítica”. A jovem também é órfã de pai e mãe e fora criada pela tia beata, sua única parenta que lhe batia sempre no mesmo lugar, na cabeça.

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Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser (ibidem, p. 37).

É afundando-se na superfície que se chega à intimidade de Macabéa, lugar de uma suavidade silenciosa e viva. “Minha cabeça é boba, mas meu coração é sábio.” (NIETZSCHE, 2005a, p.356). A simplicidade de Macabéa é uma qualidade inconciliável com a natureza humana mais perfeita. Sua discordância essencial com o mundo reflete-se fundamentalmente no plano das valorações. “Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor” (LISPECTOR, 1999, p. 23). É por esse espaço mundano que ela transita munida de armas brandas, mas muito eficazes — seu silêncio, sua invisibilidade, sua inconsciência. Raciocinar muito ou pouco, ser bonita ou feia não são questões que se colocam para Macabéa. É com a mínima força que ela opera uma demolição dos valores. Está distante das preocupações universais, transcendentais; não tem olhar ou escuta para qualquer padrão de verdade instituída. Interage com o mundo a sua maneira.

As pancadas ela esquecia pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida (ibidem, p. 28).

Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz (idem, p. 69).

Dócil, ela costuma roer as unhas pintadas de vermelho, ouvir a Rádio Relógio, colecionar anúncios e desculpar-se por tudo. Mas responder à pergunta quem é Macabéa é um empreendimento muito

Uma jovem que se situa num campo de não pertencimento não pode ser vista a partir de uma ótica do conhecimento sobre os seres e as verdades do mundo. Embora a condição social e existencial dessa moça diga algo importante sobre ela, não diz tudo, porque

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Macabéa é a própria recusa às falsas consolações humanas. “Ela somente vive, inspirando e expirando. Na verdade — para que mais que isso?” (ibidem, p. 23). A noção de falta em Macabéia não exprime uma incompletude, mas a ausência de toda finalidade, de toda apropriação presa ao indivíduo. “Há os que têm. E há os que não têm: É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha.” (ibidem, p. 25). Macabéa anima-se com a pequena grandeza que emerge da superfície. É cega para o registro do profundo, não possui profundidade alguma. Mais que isso, trata-se de uma personagem que provoca perplexidade por ter uma identidade fixa diluída. Não há coerência capaz de caracterizá-la. Maca está no limite do absurdo, do insustentável, da estranheza, da desrazão. Sua flutuação identitária passa ao largo dos signos de uma sociedade de massa, pronta a formatar o perfil e o íntimo de cada um. Macabéa não possui a razão como referente, mas “(...) não era nem de longe débil mental...” (LISPECTOR, 1999, p. 30). “Ela era de leve como uma idiota, só que não o era.” (idem, p.26). “Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas.” (ibidem, p. 69). Torna-se impossível atribuir uma essência à Macabéa, pois nela existir não supõe qualquer excesso, seja de verdade ou de autenticidade. Macabéa existe como uma fagulha, um impasse, jamais uma certeza. “Para ela a realidade era demais para ser acreditada. Aliás, a palavra ‘realidade’ não lhe dizia nada” (LISPECTOR, 1999, p.34). Ela segue em direção oposta à intenção pedagógica de designar, dizer o que é “(...) não saber fazia parte importante de sua vida” (idem, p. 28). O não saber em Macabéa não carregava qualquer ansiedade ou angústia. Tal como um estado perene de alegria, o vazio da significação não surge como uma forma de aniquilamento, mas como algo que expressa um outro modo de viver. “Não sabia que era infeliz.” (ibidem, p. 26). “O céu é para baixo ou para cima? Pensava a nordestina. Deitada não sabia.” (ibidem, p. 31). Algo excepcional provoca agrado, júbilo, alegria — são os prazeres de Macabéa. Eis que eles chegam, podendo parecer exóticos ao olhar fortuito. O instante inefável de Macabéa arrebata todo o

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corpo como encantamento irreprimível. Assim, um grande regozijo na vida da jovem é sua coleção de anúncios que recortava de jornais. Havia um anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela. Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo (ibidem, p.38).

A única coisa que Macabéa desejava era ser impossível — uma estrela de cinema — dotada de um brilho singular, o que é solucionado por Clarice, fazendo da nordestina um acontecimento narrativo que invade e inflama a escrita a cada momento, como uma estrela errante, nômade. É preciso proteger-se desta criatura que deixa tudo que o mundo sabe à deriva. É preciso nomeá-la incapaz, infeliz e estúpida, pois essa moça comanda toda força capaz de romper a lógica finalística do saber e do poder.

considerações finais Os personagens aqui apresentados cumprem a função de arrancar o sujeito da rede de classificações “verdadeiras”, da padronização dos sentidos, do molde das relações tão carregadas de promessas de destruição. Carlitos, Gabriela e Macabéa configuram um regime de experimentação sobre o qual se constrói um sujeito ético, político, sensível, emocionante, anárquico e vital. A vida, então, supera e se distingue da noção de sobrevivência, utilizada de forma tão equivocada para pensar a questão social. Assim, desloca-se a centralidade do problema da origem social dos personagens para as inesperadas formas encontradas por eles de resistir aos duros bloqueios provenientes do processo de dominação. A pobreza perde sua força descomunal que espetaculariza e destrói, quando em contato com potências de vida.

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Os personagens ilustram o que significa viver sob lógicas inteiramente distintas daquelas que a subjetividade moderna nos propõe. Eles não sabem nem querem se comportar socialmente. Comer, sentir, pensar, andar, vestir-se, amar não são sentenças fixas nem constituem modelos imutáveis diante da constatação de que é tão necessário quanto possível existir de outra maneira. Perseverando rumo a novas direções, os personagens traçam diferentes linhas de vida, abrindo contornos mais dignos, invisíveis, súbitos e impensáveis para a vida. Para eles, o mundo abre-se numa perspectiva de ressignificações indispensáveis, mas extravagantes aos nossos olhos tão habituados a juízos corretos e estáveis. Em sua discreta simplicidade, eles nos convidam a demolir as bases fixas e cheias de certeza das nossas fantasias engessadas por formas de agir, sentir e pensar tão iguais. Essa mistura de forças e fraquezas, de resistência e criação instaura um magnífico campo de superação no enfrentamento dos códigos dominantes. Todos os personagens demonstram uma espetacular capacidade de desenraizar-se da condição de pobreza. Não há submissão ao mundo material ou moral, se resiste a tudo que ameace subtrair. Como um caleidoscópio, os personagens nos invadem com uma perspectiva de vida infinitamente generosa. Em suas múltiplas virtualidades Carlitos, Macabéa e Gabriela não são apenas atormentados viajantes que ultrapassam radicalmente as barreiras do comedimento e delírio. Eles são criadores de uma sabedoria que devolve agilidade à vida nos revelando um segredo estimulante: ninguém sabe até onde uma potência pode nos levar.

Resumo: A partir da interlocução com autores como Nietzsche, Deleuze e Foucault, este artigo trata da potência dos pobres e não somente de sua amarga trajetória de privação, o que requer a introdução de um novo diálogo. Ao invés de privilegiar um universo moral que a tudo classifica, pondera e ordena numa pesrpectiva universalizante, partese da potência afirmativa que aponta para um sujeito éticopolítico intenso, ousado e pleno de superação. Restituindo à

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verdade seu caráter limitado, desfazendo-se do véu absoluto da razão, trata-se, sobretudo, de incitar o pensamento e a vida a se abrirem ao múltiplo, longe de certezas e modelos, na direção de uma infinita experimentação criadora. Palavras-chave: pobres, vontade de potência, sujeito éticopolítico, resistência e criação. Abstract: From the interlocution with authors such as Nietzsche, Deleuze and Foucault, this article speaks about the power of the poor and not only of their bitter trajectory of deprivation, requiring the introduction of a new dialogue. Instead of promoting a universe of morality of all sorts and putting together a universalizing perspective, it starts from the affirmative power that points to an ethical-political intense subject, bold and capable of overrun. Restituting the truth to it’s limited nature, abandoning the absolute veil of reason, it aims, above all, to encourage thinking and life itself to be open to the multiple, far from certainties and models, in the direction of an infinite creative experimentation. Keywords: poor, will to power, ethical-political subject, resistance and creation.

Resumen: A partir de la interlocución con autores como Nietzsche, Deleuze y Foucault, este artículo trata de la potencia de los pobres y no tan sólo de su amarga trayectoria de privación, lo que requiere la introducción de un nuevo diálogo. En lugar de privilegiar a un universo moral que a todo clasifica, pondera y ordena en una perspectiva universal, se parte de la potencia afirmativa que apunta para un individuo ético-político intenso, osado y lleno de superación. Restituyendo a la verdad su carácter limitado, deshaciéndose del velo absoluto de la razón, se trata, principalmente, de incitar el pensamiento y la vida a abrirse a lo múltiple, lejos de las

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certidumbres y modelos, en la dirección de una infinita experimentación creadora. Palabras clave: pobres, ganas de potencia, individuo éticopolítico, resistencia y creación.

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Em busca do ouro. Dirigido por Charles Chaplin. EUA: MK2, DVD Vídeo, 1925, versão original The golden rush, DVD duplo. O circo. Dirigido por Charles Chaplin. EUA: Reproduzido pela Editora Barcelona, DVD Vídeo, 1928, versão original The Circus. Tempos modernos. Dirigido por Charles Chaplin. EUA: MK2, DVD Vídeo, 1936, versão original Modern Times, DVD duplo. Gabriela. Dirigido por Bruno Barreto. São Paulo: Playarte Home Vídeo, 1982, (98 min.). A hora da estrela. Dirigido por Suzana Amaral. São Paulo: Raiz Produções Cinematográficas/Embrafilme, 1986, versão legendada para o inglês: The hour of the star (96 min.).

e-mail: monique@isaude.sp.gov.br Recebido em 14/04/2008 Aprovado em 28/10/2008

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cinema e ruralidade: uma leitura do jeca- tatu nos filmes de mazzaropi Rafael Júnio Andrade Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de Viçosa em 2006. Mestrando em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa. Bolsista CNPq.

Maria Izabel Vieira Botelho Doutora em Sociologia, 1999, UNESP. Professora Adjunta (Relações Sociais no Campo e Cultura e Identidade Social) do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa.

Eveline Torres Doutora em Educação Física pela Universidade Gama Filho. Professora Adjunta do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Viçosa.

introdução O cinema representa, desde o início do século XX, uma importante possibilidade de lazer para a população, bem como de construção de representações e imagens sobre o mundo. Neste trabalho pro-

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curamos discutir como o cinema na década de 50, nos filmes de Amacio Mazzaropi, se configurou enquanto um elemento importante para a afirmação de um imaginário social sobre o homem rural, coadunando com a construção realizada anteriormente na literatura de Monteiro Lobato. Para isso discutimos primeiramente questões teóricas sobre o imaginário social. Em segundo lugar discutimos o recurso metodológico weberiano, do tipo ideal que utilizamos para operacionalizar este trabalho. No terceiro momento discutimos a respeito da construção do Jeca e a identidade nacional. No quarto e último momento, o papel do cinema, enquanto possibilidade de lazer, através dos filmes de Mazzaropi, nesta relação.

sobre o imaginário A forma como a realidade é construída representa um questionamento problemático para os homens e as sociedades. Procurar formas de compreender a própria vida, os seus significados e as suas diversas relações com outros mundos, material ou imaterial, ou seja, empreender uma cultura é tanto uma questão de ordem existencial, e, portanto de grande relevância, como, principalmente uma necessidade e um imperativo para a própria existência humana, uma vez que sem a cultura os homens (...) não seriam os selvagens inteligentes de Lord of life, de Golding, atirados à sabedoria cruel dos seus instintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista, ou até mesmo, como antropologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se encontrar. Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelectuo: verdadeiros casos psiquiátricos (GEERTZ, 1978, p.61).

Esta realidade é, pois, uma construção cultural que não acontece somente em nível individual, mas, pelo fato de ser pública, ocorre principalmente em nível coletivo por meio de diversas mediações como a linguagem, as imagens, a escrita etc. O real não é simplesmente uma coisa dada, um a priori, mas sim o resultado de uma efervescente construção simbólica e material dos homens e sociedades.

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Cada cultura e seus participantes, por sua vez, apresentam sua concepção daquilo que é realidade ou não que se modifica dentro do próprio quadro histórico das culturas e sociedades. No caso da sociedade ocidental foi e ainda é marcante o caráter racional de concepção do real construída pelo pensamento moderno. Este se constitui no século XVII, tendo como base uma confiança otimista na razão que, naquele momento, tornou-se a responsável e também a legitimadora, pela representação, daquilo que era real, portanto, daquilo que existe. Esta tendência cientista e ‘realista’ na perspectiva de BAZCKO (1985) defendia que “não são as idéias que fazem a história. A história verdadeira e real dos homens está para além das representações que estes têm de si próprios e para além das suas crenças, mitos e ilusões” (p. 297). As certezas fundadas na razão iluminista tomada enquanto legitimadora e construtora da existência concreta foram radicalmente revistas frente às próprias problemáticas da contemporaneidade, tanto no plano das condições de existência quanto nas próprias formas de pensamento. O elemento crítico fundamental dessa racionalidade representou um processo de destruição das normas e certezas universais de análise sobre o homem e a sociedade. Como coloca Pesavento: Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria geral de interpretação dos fenômenos sociais apoiada em idéias-imagens legitimadoras do presente e antecipadoras do futuro (o progresso, o homem, a civilização), ocorre uma segmentação das ciências humanas e um movimento paralelo de associação multidisciplinar em busca de saídas (PESAVENTO, 1995, p. 09).

Não é estranho, desse modo, que nos fins do século XX e início do século XXI se articule um discurso no qual passa a ser constantemente criticada a forma iluminista de conceber, conhecer e viver a realidade, uma vez que estes paradigmas calcados em uma razão única, tomada enquanto verdade, se mostraram além de insuficientes para a compreensão de uma realidade em constante mutação e cada vez mais complexa, serem mecanismos de controle e espoliação. Desenvolve-se assim uma crítica contundente à razão e à forma como se entendia a imaginação e por conseqüência o próprio

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1. BACZKO, B. Imaginação Social. Enciclopédia Unaudi. Imprensa Nacional- Casa da Moeda. 1985.

2. PESAVENTO, S. J. Em Busca de uma Outra História: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História. São Paulo. V.15, nº19, p.9-27, 1995.

imaginário. Não é mais possível conservar a acepção da imaginação enquanto uma faculdade produtora de ilusões, sonhos e símbolos, e que pertence, sobretudo, ao domínio das artes, não sendo considerado como algo sério e mesmo ‘real’. Atualmente difunde-se a própria valorização da imaginação no plano das necessidades políticas e sociais 1. Como salientam Laplantine e Trindade: Vivemos na atualidade a busca de novos caminhos que possam conduzir à compreensão e à superação da realidade. A imaginação tornou-se o caminho possível que nos permite não apenas atingir o real, como também vislumbrar as coisas que possam vir a tornar-se realidade (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p. 7).

Esta mudança de perspectiva está atrelada ainda às novas condições concretas de existência advindas do fim do socialismo real, que abalou a idéia de uma possível sociedade alternativa ao capitalismo, devido ao próprio caráter totalitário daqueles regimes, como a crescente dificuldade do capitalismo em se legitimar até mesmo nos países de Primeiro Mundo onde as questões sociais são cada vez mais graves, como o aumento do desemprego e ascensão de governos com uma marcante tendência fascista2. Dessa forma, não é por acaso que o realce assumido pelo imaginário enquanto objeto de preocupação temática e investigação tenha crescido justamente no momento em que as razões cartesianas e as certezas do processo científico não se apresentam como capazes de dar conta da complexidade do real (PESAVENTO, 1995, p. 13).

Frente a esta crise de paradigmas que aflige as ciências humanas, novas possibilidades de compreensão do social, pautadas em um grande ecletismo das disciplinas, passam a ser marcantes. História, antropologia, sociologia, literatura e psicologia são algumas das ciências que passam a dialogar, construindo um quadro diversificado no qual se procura diminuir as linhas que demarcam as diferentes disciplinas e passam a procurar no imaginário novas possibilidades de compreensão do mundo e dos homens. O imaginário social inscreve-se neste novo quadro intelectual e existencial a partir de determinados pontos. O primeiro deles — o que não significa ser o

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mais importante, ou o mais visível — é que a procura pela sua compreensão se afasta dos modelos tradicionais que o tratavam como desprovido de verdade ou mesmo irreal. O imaginário social é cada vez menos considerado como uma espécie de ornamento de uma vida material considerada como a única ‘real’. Em contrapartida, as ciências humanas tendem cada vez mais a considerar que os sistemas de imaginários sociais só são ‘irreais’ quando, precisamente, colocados entre aspas (BAZCKO, 1985, p. 298).

É necessário considerar, assim, os indivíduos, as sociedades e as culturas historicamente situadas para se aprender o seu imaginário social. Mesmo as sociedades complexas configuram diferentes grupos e imaginários sociais. Além de ser histórico, ele se relaciona com as características sócio-culturais de um determinado grupo social. O imaginário não é assim ‘irracional’ ou mesmo ‘irreal’. Os elementos que utiliza como imagens, símbolos ou mesmo signos encontram-se inter-relacionados e apresentam uma significação concreta para aquele grupo ou sociedade. BACZKO (1985), ao tratar da Imaginação Social, discute, dentre outros elementos, a alteração do conceito de imaginação e imaginário que passa a ser concebido como algo ‘real’, público, pois não é somente uma faculdade ou poder psicológico autônomo, sendo indispensável para a orientação dos homens e das sociedades, como colocado anteriormente. É nesta abordagem que se assentará este trabalho. Sua origem pode ser remedida à Grécia Antiga com Platão e Aristóteles que já percebiam o imaginário, respectivamente pelo poder dos mitos e da retórica na organização da vida social. É, contudo, com as idéias de Marx, Durkheim e Weber, que teria se constituído o campo clássico das pesquisas sobre os imaginários sociais. De acordo com Bazcko: Marx sublima as origens dos imaginários sociais, designadamente as ideologias, bem como as funções que desempenham nos grandes conflitos sociais. Durkheim põe em relevo a correlação entre as estruturas sociais e os sistemas de representações coletivas, ao examinar o modo como estas fornecem uma instância que assegura o consenso senão a coesão social. Quanto a Max Weber, coloca o

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problema das funções que competem ao imaginário na produção do sentido que os actores sociais atribuem necessariamente às suas ações (BAZCKO, 1985, p. 306).

Neste caminho é preciso se atentar que o imaginário é uma das forças reguladoras da própria vida social, sendo umas das respostas que uma coletividade dá aos seus conflitos, divisões e modos de funcionamento. Cada sociedade por sua vez apresenta seus modos de funcionamento deste sistema de representações. Os imaginários sociais, portanto, (...) constituem outros tantos pontos de referência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através da qual, como disse Mauss, ela se percepciona, divide e elabora seus próprios objectivos. É assim, que através dos seus imaginários sociais, uma coletividade designa sua identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma espécie de código de ‘bom comportamento’, designadamente através da instalação de modelos formadores tais como o do ‘chefe’, o ‘bom súbdito’, o ‘guerreiro corajoso’, etc. assim é produzida, em especial, uma representação global e totalizante da sociedade como uma ‘ordem’ em que cada elemento encontra o seu ‘lugar’, a sua identidade e a sua razão ser (ANSART apud BACZKO, 1985, p. 309).

As coletividades, por sua vez, constróem diversos suportes de forma a materializar os seus imaginários, tendo cada um deles uma determinada linguagem. Dois desses suportes são a literatura e o cinema. Foi escolhido aqui trabalhar com a literatura e com o cinema enquanto possibilidades de procurar compreender este imaginário, uma vez que são linguagens com uma produção e representatividade social muito relevante dentro da realidade brasileira. No caso da literatura na figura de Monteiro Lobato no início do século XX, então criador do personagem Jeca-Tatu e no cinema nos anos 50 com o ator Amacio Mazzaropi. Ambos com notável repercussão seja no âmbito do público em geral seja entre intelectuais, na arena científica.

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o jeca ideal Ao se buscar compreender este personagem da literatura de Monteiro Lobato que, posteriormente, foi trabalhado pelo cinema nacional enquanto uma determinada imagem do meio rural, uma forma possível de apreendê-lo é tratá-lo através do modelo de tipo ideal. Como enfoca WEBER (1992) “a construção dos tipos ideais abstratos não interessa como fim, mas única e exclusivamente como meio de conhecimento” (p. 139). O tipo ideal é uma ferramenta de análise weberiana que permite, frente a uma realidade extremamente complexa, tomar apenas um fragmento finito da mesma, de forma a compreendê-lo enquanto uma individualidade sociocultural que foi formulada por componentes historicamente agrupados, muitas vezes não quantificáveis, cujo passado se remonta para explicar o presente e, partindo deste, para se avaliar as perspectivas futuras. Trata-se de um quadro de pensamento, não da realidade histórica, e muito menos da realidade ‘autêntica’; não serve de esquema em que não se possa incluir a realidade à maneira exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito-limite, puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comparada. Tais conceitos são configurações nas quais construímos relações, por meio da utilização da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formulada e orientada segundo a realidade, julga adequadas (WEBER, 1992, p. 140).

Ele não representa, contudo, a própria realidade ou mesmo é um caso exemplar, mas sim uma construção de relações que são suficientemente motivadas pelo pesquisador, a sua imaginação e as influências que ele sofre do seu contexto sócio-histórico, e que, portanto, tornam este modelo objetivamente possível. Isso não significa que o tipo ideal seja simplesmente o produto de apreciações subjetivas, sendo necessário se impor o dever elementar do autocontrole científico, de forma que é necessário se fazer uma distinção estrita entre a relação que compara a realidade com tipos ideais no sentido lógico e a própria apreciação avaliadora dessa realidade a partir de idéias. Como destaca Weber:

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Devemos repetir que, no sentido que lhe atribuímos, um ‘tipo ideal’ é algo completamente diferente da avaliação apreciadora, pois nada tem em comum com qualquer ‘perfeição’, salvo com a de caráter puramente lógico (WEBER, 1992, p. 144).

Outro aspecto importante quanto ao tipo ideal é que sua formação permite tomar rigorosamente consciência não daquilo que é genérico, mas sim daquilo que é específico aos fenômenos culturais. Para a construção desta especificidade tomam-se três princípios: a unilateralidade, a racionalidade e o caráter utópico. O primeiro, como foi colocado, refere-se ao fato de que o pesquisador consciente e rigorosamente realiza sua elaboração do tipo ideal através de uma escolha, ou seja, uma seleção de alguns elementos do objeto a ser interpretado, considerados como os mais relevantes, o que implica em acentuar certos traços em funções de outros, daí sua unilateralidade. Os elementos por sua vez são relacionados de modo racional, sendo que esta racionalidade completa somente existe como utopia, pois o modelo não é e nem pretende ser um reflexo da realidade complexa. Esta operação torna-se relevante uma vez que ao se esboçar as características que constroem o personagem na literatura com Monteiro Lobato dentro da problemática da identidade nacional é possível relacioná-lo com as próprias características trabalhadas pelo cinema com Mazzaropi. É preciso se atentar para o fato de que os tipos ideais apresentam uma conotação fortemente prática, já que permitem aos sujeitos atribuírem significado a uma determinada realidade com o intuito de poder transformá-la, ou seja, as ‘idéias’ sobre um determinado fenômeno têm um caráter eminentemente prático, como acentua Weber: (...) a idéia prática, em cuja validade se crê, bem como o tipo ideal teórico construído para as necessidades da investigação, correm paralelos e mostram uma tendência constante de mutuamente se confundirem (WEBER, 1992, p. 144).

O Jeca como um tipo ideal permite assim procurar conexões causais acerca do universo de sentimentos, valores e mesmo conhecimentos que compõem um imaginário acerca da identidade nacional e que, desta forma, possibilita a construção de um discurso político

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e científico que intervenha na realidade, paralela à construção de um discurso literário e mesmo cinematográfico. Um último ponto a ser colocado é que o ‘olhar’ aqui empreendido através do imaginário social sobre o Jeca-Tatu, construído pela literatura e pelo cinema, representa uma possibilidade frente a inúmeras alternativas, e que tem, como objetivo fundamental, construir um pano de fundo que possa auxiliar no trato das manifestações de ‘lazer’ no campo, sendo este objetivo um dos elementos constituintes deste ‘olhar’.

o velho problema da identidade nacional No Brasil a problemática da identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretarão do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro. Por isso não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos. Torna-se, assim, irrelevante argumentar sobre a veracidade ou não da cultura brasileira, que está ligada à sua própria autenticidade, pois toda identidade é uma construção simbólica necessária. Segundo Ortiz (2003), “(...) não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos (p. 8)”. Esse debate já é antigo no Brasil e os seus intelectuais colocavam que os brasileiros seriam diferentes, nem norte-americanos e nem europeus. É preciso se atentar que toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença. Essa insistência em uma identidade que se contraponha ao estrangeiro advém da própria situação terceiro-mundista do Brasil, transformando esta procura em uma imposição estrutural gerada pela situação dominada e subordinada em que se encontra o país no sistema internacional. Há, porém, uma dimensão da identidade que é interna e através dela se procura esclarecer em que se baseia esta diferença quanto a outros povos que identifica o ser brasileiro. Acontece, entretanto, que se “(...) existe uma unidade em afirmarmos que o Brasil é distinto dos outros países, o consenso está longe de se estabelecer quando nos aproximamos de uma possível definição do que viria a ser o nacional” (ORTIZ, 2003, p. 8).

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Tratar de cultura no Brasil significa falar de relações de poder. Esta luta política é uma disputa pela definição do que seria uma identidade autêntica que por sua vez é uma forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima, o que permite concluir que existe uma história da identidade e da cultura brasileira que corresponde aos interesses de diferentes grupos sociais na sua relação com o Estado. Um elemento significativo e constante nesta história da cultura brasileira esta ligada à problemática racial e foi tratada com um contorno claramente racista. Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha são considerados os precursores das ciências sociais no Brasil. Esse estatuto é justificado, pois foram os primeiros a estudar a concreticidade da sociedade brasileira, seja pela literatura, seja pelas manifestações africanas ou movimentos messiânicos. De acordo com Renato Ortiz (2003) três teorias seriam principais na contribuição da formação da inteligentsia brasileira e de certa forma no próprio delineamento da produção teórica dos fins do século XIX e início do século XX para a construção de uma interpretação da identidade. Elas foram o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer. Todos as três tiveram sua elaboração por volta do século XIX e apesar de distintas podem ser consideradas sobre um aspecto único: a evolução histórica dos povos. O evolucionismo procurou estabelecer as leis que presidiam o progresso das civilizações e que faziam levar povos primitivos, ‘simples’ naturalmente ao mais ‘complexo’, ou seja, às sociedades ocidentais. Ele legitima ideologicamente a posição do mundo ocidental e sua ‘superioridade’ enquanto civilização que decorreria, assim, de leis naturais que orientariam a história dos povos. O dilema dos intelectuais dessa época era compreender a defasagem entre a realidade mestiça e a teoria evolucionista, o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional. A interpretação do Brasil passa por esse caminho que procura o caráter nacional que se reporta diretamente à formação do Estado nacional. O evolucionismo, porém, trazia uma problemática: no Brasil existiam todos os recursos e, mesmo assim, ele não tinha uma civilização, daí que para completar tal explicação é preciso se considerar elementos da especificidade social. O pensamento brasileiro

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da época vai encontrar os seus argumentos nas noções de meio e raça, este último abordando a composição étnica e da mestiçagem. Estes dois paramentos são os elementos analíticos que permitem fundamentar o solo epistemológico brasileiro nos fins do século XIX e início do século XX, estando presentes nas discussões literárias e mesmo ensaísticas que caracterizavam as ciências sociais da época, que irão construir a identidade nacional a partir de uma determinada interpretação cultural do país. A história brasileira é dessa forma apreendida em termos deterministas, clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações tinis e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato (ORTIZ, 2003, p. 16).

Eles são utilizados para a formação da idéia dos ‘dois Brasis’, ou seja, da imagem do Brasil constituído por dois pólos sócio-culturais: o sertão e o litoral. Como coloca Lima: Sertão e litoral surgem no pensamento social brasileiro como imagens de grande força simbólica, que expressam os contrastes e, no limite, o antagonismo de distintas formas de organização social e cultural (LIMA, 1999, p. 22).

O Sertão e o Litoral representam os contrastes de uma sociedade que passa a ser vista como o principal problema de investigação, sendo objeto de diferentes tentativas de interpretação. Figura no pensamento social a idéia de um país que seria moderno no litoral, contraposto a um país refratário à modernização no interior, que muitas das vezes convivia com uma concepção oposta, na qual se acentuava a autenticidade do sertão em contraste com o parasitismo e a superficialidade litorâneos. Outra questão é que as teorias explicativas do Brasil começam a ser elaboradas no final do século XIX e se associam à própria institucionalização das ciências sociais no país. A tentativa de elaboração de uma teoria sobre a sociedade brasileira, apoiada na idéia de existência de ‘dois Brasis’, ocorre de forma concomitante ao processo de formação de uma intelligentsia no país. É como se, no mesmo movimento, intelectuais e sociedade se

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constituíssem, superpondo-se os temas da identidade nacional e da identidade dos intelectuais (LIMA, 1999, p. 26).

O pensamento social brasileiro começou a se constituir, especialmente neste período, através de uma ciência social ainda não institucionalizada — ou seja, ensaística — e de uma intelligentsia que é um grupo social que tem como tarefa específica dotar uma dada sociedade de uma interpretação de mundo, sendo formada no caso brasileiro por pessoas das camadas econômica e politicamente dominantes. Neste grupo é possível destacar a presença de escritores como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato.

3. Oficialmente, porque segundo a professora Paula Arantes Botelho Briglia Habib o personagem Jeca-Tatu já aparecia nas correspondências de Monteiro Lobato a um de seus amigos em Minas Gerais antes de 1914.

É este último por sua vez que consegue se consagrar como um dos mais importantes representantes do discurso desta época, por meio de uma crítica à visão romântica do país e da necessidade de atuação política, via Estado, na formação da identidade brasileira, de forma a superar o atraso nacional. Seu personagem Jeca-tatu representaria o atraso e a identidade nacional da época. Oficialmente foi a crônica “Urupês”, de 1914, que lançou Monteiro Lobato no mundo das letras e na qual foi delineada a figura do Jeca-Tatu, que passando pela famosa campanha de saneamento juntamente com o próprio Brasil, em 1918, vem a se chamar Jeca-Tatuzinho, em 19193. O personagem “Jeca Tatu” popularizou-se e tornou-se referência para caracterizar ou estigmatizar as pessoas da roça, os caipiras. O objetivo do autor ao descrever o caboclo nacional em 1914, pelas páginas do jornal O Estado de São Paulo, entretanto não foi esse. A “invenção” deste personagem que, em cartas ao seu amigo Godofredo Rangel, aparecia desde 1912 — ano no qual ele já residia na fazenda do Buquira, herança de seu avô —, foi uma forma encontrada para desabafar sua insatisfação com o país e denunciar as mazelas nacionais, entendendo-se por “mazelas nacionais” os problemas financeiros enfrentados pelo fazendeiro José Bento Monteiro Lobato ao administrar quase dois mil alqueires de terras em meio à crise pela qual o Brasil passava ao início da primeira Grande Guerra Mundial. No pensamento de Monteiro Lobato sua criação representou a crítica dos modelos românticos acerca da visão do caboclo, como o

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indianismo de Jose de Alencar, assim como da situação das regiões interioranas do país, sendo necessária uma ação do Estado no sentido de programar uma política higiênica e eugênica para seu povo. Para este escritor seria dessa forma que o Brasil conseguiria se constituir enquanto uma verdadeira Nação. No trabalho de Lobato, o personagem Jeca, após ser identificado como o Piolho da Terra, em 1914 — ou seja, o mal que impede o crescimento do país —, torna-se, em um segundo momento, no ano de 1919, após a ‘grande reforma’ advinda das políticas governamentais de saúde, o Jeca-tatutinho, um verdadeiro Farmer americano, dotado de racionalidade, tendo o trabalho e a produtividade como a vocação da vida, além de ter se tornado o principal responsável pela sua própria saúde. O personagem, portanto, sofreu alterações no decorrer de sua história pelo seu autor a partir da construção de uma pedagogia higienista e eugenista vista por Lobato como imprescindível para o progresso da nação. Uma questão importante é que personagens com uma conotação diferente de caboclo foram construídas, como, por exemplo, Mane-Chique-Chique de Ildefonso que enfatizava as proezas e façanhas guerreiras, contudo, foi a imagem estereotipada do Jeca-Tatu de Monteiro Lobato que se conservou e se prolongou no cinema brasileiro nos anos 50. Já neste período de fins dos anos 50 e anos 60, os homens e as nações apresentaram uma onda de otimismo resultante daquilo que fora concebido como a vitória da democracia sobre os regimes nazi-fascistas. O nacionalismo transformou-se em um dos elementos marcantes da época com os Estados preocupados com o seu desenvolvimento econômico e social. Para os nacionalistas, o desenvolvimento foi o tema considerado central para a superação dos problemas sociais e do atraso econômico e cultural. Foram implementadas, assim, políticas que desembocaram na substituição das importações, na criação da indústria nacional e de um mercado interno. A ‘modernização’ era uma das grandes metas e com ela a independência econômica e a autodeterminação. Os investimentos públicos e privados ligados à expansão industrial refletiram por sua vez na nova estrutura populacional. A possibilidade de melhores condições de vida, associada à própria concentração de terra foram alguns dos elementos que provocaram o crescimento das

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cidades, a partir da chegada das populações oriundas do campo. É preciso colocar que neste período a política democrática preocupada com industrialização e a urbanização enquanto meios para o desenvolvimento não foi acompanhada pela própria humanização desse processo. A maior parte dos investimentos industriais efetuados no Brasil entre os anos 50 e 60 não contribuiu em nada para a mudança da estrutura de emprego da população. O ‘desenvolvimento’, nos moldes em que foi executado, agravou os desníveis econômicos, políticos e sociais. As cidades e as áreas industriais crescerem rapidamente, dessa forma, sem nenhum tipo de planejamento ou supervisão associando-se ao fracasso de se manter os serviços mais elementares da vida da cidade no ritmo das modificações. Um novo cenário, com centros comerciais, diversificação de bairros e estabelecimento de favelas, assim com novas formas de sociabilidade pautadas no individualismo e na impessoalidade se firmaram. É com a formação dessa sociedade urbano-industrial no Brasil, principalmente nos anos 50 e 60, que se inicia no país uma cultura de massas. Segundo Ortiz: O crescimento da classe média, a concentração da população em grandes centros urbanos vão permitir ainda a criação de um espaço cultural onde os bens simbólicos passam a ser consumidos por um público cada vez maior (ORTIZ, 2003, p. 83).

Se antes dos anos 30 as produções culturais eram restritas e atingiam um número reduzido de pessoas, a partir dos anos 50 as produções culturais “(...) são cada vez mais diferenciadas e atingem um grande público consumidor; isto confere ao mercado cultural uma dimensão nacional que ele não possuía anteriormente (ORTIZ, 2003, p.82)”. Uma indústria do cinema brasileiro começa a se firmar já no final dos anos 40, com a criação de algumas companhias cinematográficas, dentre as quais se destacam a Atlântida no Rio de Janeiro e a Vera Cruz em São Paulo. Cresce também a própria produção de filmes por produtores autônomos através do incentivo do Estado em construir um mercado consumidor interno. Foi neste ambiente de concentração populacional, desagregação social e crescimento e consolidação de uma indústria do cinema

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com incentivos do Estado que apareceram os primeiros filmes de Mazzaroppi. Amacio Amadeu Mazzaroppi nasceu em 09/03/1912 na Barra Funda – São Paulo. Seu pai era italiano, chofer de praça e sua mãe descendente de português. Produziu 32 filmes, sendo 8 como ator por produtoras como Vera Cruz, vindo em 1958 montar sua própria produtora a PAM Filmes (Produtora Amacio Mazzaroppi), onde produziu 24 filmes. O mais famoso é O JECA TATU de 1959, que mostra de forma humorística o estilo caipira de vida a partir das obras de Monteiro Lobato. Assim, ao tomarmos o Jeca-Tatu como um tipo ideal é possível procurar compreender os significados reunidos neste personagem que o colocaram como o símbolo da identidade brasileira, através de dois discursos e momentos históricos diferentes. Um discurso literário através de Monteiro Lobato que imagina o Jeca por meio de uma escrita considerada séria e comprometida com os futuros da nação e um discurso imagético do cinema em que Mazzaroppi se preocupa simplesmente em retratar o personagem lobatiano, entretanto, de uma forma humorística frente a uma situação nacional marcada por um entusiasmo frente à industrialização e modernização do país. O Jeca seria a imagem ambígua do caipira, das pessoas do campo e daquilo que foi construído como sendo o atraso social do país, no caso da literatura e simultaneamente daquilo que seria considerado a autenticidade brasileira, no caso do cinema. No campo da literatura a questão central discutida por Lobato, como coloca Habid: (...) era a economia e o progresso nacional. A população rural, esteio que é da riqueza pública, força primária da indústria extrativa, fonte de onde tudo promana, quanto mais doentia se tornar, menos eficiente na produção da riqueza será (HABID, 2003, p. 39).

Este atraso para Lobato era do pior tipo, ou seja, racial4, vindo o Jeca representar um ser execrável, pois (...) não era raça (europeu) e nem sub-raça (o índio), ou melhor, uma raça que ele não podia definir. O Jeca era apenas um selvagem, que nada o removia da sua posição de cócoras, símbolo da

4. É preciso se atentar para o fato de que no campo científico e político, a literatura e mesmo nas teorias dos primeiros pensadores sociais, nas décadas iniciais do século XX foram marcadas pelo eugenismo enquanto uma prática social que procura se estabelecer enquanto uma ciência normativa e normatizadora, como ferramenta principal, para a construção de uma nação pura e saudável.

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sua subserviência e nada consegue fazer se assim não estiver (HABID, 2003, p. 28).

de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna (LOBATO apud HABIB, 2003, p. 271).

É esta imagem que posteriormente se transformou na marca do país desde o início do século XX. O Brasil era um país atrasado e doente, pois esta raça é marcada pela indolência e pela preguiça. Como salienta Lima:

O Jeca é também a representação da mais pura ignorância. Ele não tem conhecimentos técnicos para a produção da lavoura ou a criação, que não existem na vida do personagem e nem para o cuidado de si e de sua família. Suas roupas cheias de remendos, o chapéu e o cigarro de palha, a falta de calçados, associam-se à simplicidade das vestimentas da sua mulher e filhos e do seu rancho de sapê. A própria gestualidade, como o seu inevitável ficar de cócoras em diversas situações, muito bem retratada no cinema, assim como os gestos lentos e moles, juntamente com uma linguagem — na perspectiva oficial — ‘simples’ e ‘errada’, auxiliam na composição de um quadro de vida ignorante. É interessante que o Jeca é ainda imaginado, na literatura, como um ser irracional no sentido de tradicional e ingênuo, pois não acredita em nenhum instrumento ou benefício que possa advir da ciência, pois era cismado com estas coisas e vivia isolado de toda e qualquer espécie de civilização, entenda-se, cultura urbana.

A preguiça é um tema chave no debate sobre as populações rurais do Brasil fruto de uma mentalidade tradicional do caboclo que se encontraria em um estágio pré-capitalista, ou seja em uma “existência vegetativa e auto-suficiente” (LIMA, 1997, p. 9).

A preguiça é uma das características muito bem trabalhadas no filme de Mazzaroppi. Na primeira parte de clássico “Jeca-Tatu” este componente fica bem marcado, a partir das cenas em que a filha e a mulher é que realizam todas as tarefas cotidianas incluindo as tarefas do Jeca. A miséria seria uma segunda peculiaridade do Jeca e estaria ligada a este caráter preguiçoso, já que ele era o grande cultor da lei do menor esforço, vivia na mais pura ociosidade, pois o Geca, inteperlado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreno nú, coça a cabeça e cuspilha. — Não paga a pena. Todo o inconsciente philosophar da raça grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga pena. Nem culturas, nem commodidades. De todo o jeito se vive (LOBATO, 1920, p. 208).

Um terceiro elemento típico do Jeca é seu caráter nômade e sua imprevidência, resultado dessa mentalidade tradicional oposta à moral burguesa de trabalho, que o tornava um verdadeiro parasita da terra (...) espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, o pica-pau e o isqueiro,

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É também marcante a imagem primitiva do Jeca e de sua vida. Sua preguiça, sua ingenuidade, sua miséria, seu nomadismo são todos associados a um estado não civilizatório, no qual o homem é submetido pelas forças naturais. Isso é claro quando é realizado um retrato do seu ambiente cotidiano tanto no cinema quanto com Lobato ao colocar que “sua casa de sapé e lama faz rir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao João de barro. Pura biboca de boschimano (1920, p.206)”. Já no campo do cinema o Jeca representa além destes elementos construídos pelo fazendeiro- escritor, em um sentido pejorativo, a autenticidade do país. Aplaudido pelo seu fiel público, criticado por parte da intelectualidade do cinema e absolvido por outra, o Jeca configura-se como um ser ambíguo, no qual a ambivalência das situações, das mentalidades, dos sentimentos e das ações representa os anseios da enorme população brasileira recentemente engolfada com o crescimento das cidades no Brasil, especialmente a população rural migrante. Os filmes de Mazaroppi foram elaborados no período da ideologia desenvolvimentista brasileira marcada pela

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industrialização e pela modernização financiada pelo Estado. Neste contexto dos finais dos anos 40 e 50 do século XX, figura a procura pela construção da imagem de um país desenvolvido e rico. É, contudo, também o período de crítica à importação de uma cultura industrializada  não que esta importação não seja histórica e que não tenham existido outras formas de denúncias e resistências, em períodos anteriores , americanizada e da construção de um estilo de vida urbano, com outras sociabilidades, especialmente no campo do lazer, do cinema. O cinema neste período era uma das grandes e importantes ferramentas na construção e afirmação da identidade norte-americana e veio a se afirmar enquanto um dos mais importantes mecanismos de distinção da população urbana quanto à população rural e mesmo entre a própria população urbana. Neste movimento de modernização da sociedade atrelada à industrialização e urbanização, o cinema configurou-se enquanto um dos símbolos fundamentais para a constituição de uma forma de vida urbana. É interessante que uma das formas mais eficientes e sutis para a construção de uma população brasileira que não fosse mais identificada com o Jeca se constituiu de forma inconsciente na produção de Mazzaropi.

a indústria da diversão e a dramatização da vida brasileira Empresário bem sucedido, portador de um espírito ascético, em uma entrevista à revista Veja em 28 de janeiro de 1970, Mazzaropi colocava que seu objetivo principal era contribuir para a formação de uma “indústria cinematográfica” no país. Mazzaropi compreende o cinema enquanto uma indústria como outra qualquer, sendo necessários investimentos, pesquisas de mercado e muito trabalho. Sua preocupação com o público receptor é prioritariamente econômica e por isso sua discordância com o movimento do Cinema Novo que se proponha uma arte engajada na luta pela modificação das condições de existência das classes oprimidas da sociedade, como os camponeses e migrantes pobres das periferias das grandes cidades. Para o empresário paulista, este tipo de cinema era somente

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arte difícil feita de intelectual para intelectual, que não consegue atender à necessidade principal da população, que é simplesmente a distração, e por isso não lota uma sala e vive em crise. O cinema para ele, assim, é somente uma indústria do entretenimento e cabe à mesma somente oferecer: Distração em forma de otimismo. Eu represento os personagens da vida real. Não importa se um motorista de praça, um torcedor de futebol ou um padre. É tudo gente que vive o dia-a-dia ao lado da minha platéia. Eu documento muito mais a realidade do que construo (MAZZAROPI, 1970).

A produção cinematográfica de Mazzaropi, dessa forma, não foi elaborada por ele, diferentemente de Monteiro Lobato, como um mecanismo de denúncia e controle social, visando um programa higiênico, eugênico ou de desenvolvimento da nação através da superação de um “mal social e humano” representado pelo homem do campo, mas prioritariamente o desenvolvimento de uma indústria da arte. Na verdade Mazzaropi não havia conhecido e nem mesmo lido as obras de Monteiro Lobato. O Jeca foi o tipo ideal de homem rural construído por ele a partir de seu conhecimento dos locais em que se apresentou quando trabalhou no circo. Diz Mazzaropi: “ Nunca estudei o Monteiro Lobato. Pela própria vida, conheço a figura do caipira tão bem quanto ele” (APUT LEITE, 1977). Sua preocupação era, assim, a quantidade, como exposto na reportagem de Paulo Moreira Leite: A receita certa, porém, quem confirma é Gentil Rodrigues, nas duas salas num terceiro andar do Largo Paissandu, sede da PAM Filmes: “quantidade”. Por exemplo: até 1975, o preço médio por pessoa que assistia a seus filmes nunca passou dos 4 cruzeiros. Nunca se pagaria tão pouco num bairro metido a fino ( LEITE, 1977)5.

Com isso sua forma de fazer cinema foi intitulada enquanto uma Hollywood caipira. O Jeca que foi considerado como não Jeca por ser um empresário de sucesso, estruturou um mercado para seus filmes pautados na simplicidade técnica e artística, bem como nas condições de acesso da população a que se destinava, antes da própria constituição de um sistema de promoção e de distribuição

5. A Hollywood caipira. Folha de S. Paulo 08 de junho de 1977. Paulo Moreira Leite. Disponível em: www.museumazzaropi. com.br/sucesso.htm Consultado em 01/set./2007.

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6. Segundo a matéria: O milagre do Jornal do Brasil, Caderno B, pg. 3 - 03 de agosto de 1979, escrito por José Carlos Avellar: “Em 1975, o filme de maior público foi Inferno na Torre (com 3 milhões 15 mil 950 espectadores), Mazzaropi teve com O Jeca Macumbeiro 2 milhões 503 mil 306 espectadores, superando Terremoto (1 milhão 904 mil 394) e Aeroporto (1 milhão 676 mil 363). Em 1974 Portugal Minha Saudade (com 1 milhão 924 mil 812 espectadores) superou O Exorcista, Operação Dragão e As Aventuras do Rabi Jacó. Em 1973 Um Caipira em Bariloche (1 milhão 791 mil 42 espectadores) teve público superior a O Destino do Poseidon e Horizonte Perdido. Disponível em: www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm. Consultado em 01/set./2007.

7. Meu Japão Brasileiro. O Estado de S. Paulo, 28 de janeiro de 1965. Disponível em: www. museumazzaropi.com.br/sucesso.htm. Consultado em 01/ set./2007. 8. Sai de baixo, Mazzaropi. Folha de São Paulo, 8 de junho de 1977. Orlando L. Fassoni. Disponível em: www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm. Consultado em 01/set./2007.

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do filme brasileiro e mesma da força publicitária dos filmes estrangeiros (AVELLAR, 1979)6. Foi assim que Mazzaropi apresentava em 1977 uma renda total com seus filmes, de 42 milhões, 923 mil, 532 cruzeiros e 46 centavos que representavam vinte e três por cento da arrecadação total de filmes nacionais naquele período. Dessa forma, ao lado de Gilda Valença e André Luis Toledo, ele controlava um quinto do cinema nacional, que fica com 4% da bilheteria bruta (incluídas as produções estrangeiras) do país (LEITE, 1977). Também foi este modelo de cinema industrial, juntamente com o próprio imaginário social de uma população subdesenvolvida e incompetente, por uma boa parte da intelectualidade nacional, que significaram a desqualificação de Mazzaropi e da população nacional. Os filmes de Mazzaropi e seu inegável sucesso confirmavam para as elites nacionais o imaginário do meio rural elaborado nas obras de Monteiro Lobato. Assim, mesmo que inconscientemente, a produção de Mazzaropi representou uma forma de promover o desenvolvimento de determinadas formas de agir e viver, próximas de uma realidade rural compreendida como inferior e primitiva e simplesmente negativa, através da imagem do Jeca-Tatu, no imaginário das classes altas e de boa parte da intelectualidade nacional. Disso resultam as críticas de boa parte da intelectualidade brasileira a respeito de sua produção, em função da própria desqualificação do público a que se destina, como foi registrado no Jornal o Estado de São Paulo em 1965, após o lançamento do filme Meu Japão Brasileiro:

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Nosso povo vive dentro de um estágio cultural condicionado pelo subdesenvolvimento. Sob tal condição, é natural que a exaltação da mediocridade vingue. Compreende-se que o homem do povo aceite, até por desfastio, o cinema banal, vulgar, incipiente, imbecil. Falta-lhe, além de um gosto apurado, a oportunidade de conhecer obras superiores (LOYOLA, 1965).9 Dentro do seu primarismo, do seu analfabetismo cinematográfico, Mazzaropi contribui para o retrocesso do cinema. Para o retrocesso cultural das platéias (LOYOLA, 1965) 10.

É preciso perceber, contudo, que o Jeca representa uma forma de vida simplória e cômoda, mas não no sentido estritamente pejorativo para o grande público que não só assistia aos filmes de Mazzaropi, mas vivia a realidade concreta da exclusão e desigualdade social do país. Sua vida era limitada materialmente pelas condições concretas e seu ethos marcado pela simplicidade, pela preguiça estavam inseridos em uma lógica comunitária, semelhante à lógica do meio rural, diferente de valores individualistas e calcados no turpe lucrum da sociedade moderna que se afirmava nas cidades brasileiras na década de 50. Como coloca Zulmira R. Tavares em 1976, no Jornal Movimento:

Além de “gags” pouco interessantes, para alongar inutilmente a fita, temos ainda três números musicais. Mas não obstante a ausência total de estrutura, o filme está alcançando boa receptividade por parte do público. É o caso de se afirmar que cada país tem a “chanchada” que merece (Estado de S. Paulo, 28 de janeiro de 1965)7.

Sem dúvida para grande faixa de um público popular (pouco dado a bate-papos críticos depois de exibições cinematográficas) essa manifestação de um pensamento cristalizado pode responder de forma tranquilizadora a expectativas quanto à organização da vida comunitária e virem, por causa disso, a agradar. Porém os lugarescomuns são manipulados em função, repito, de uma ação tão pouco crível que, mesmo esse público, talvez percam a função tranquilizadora corrente e ganhem outra, muito mais próxima à alegria sem compromisso das atividades lúdicas (TAVARES, 1976) 11.

Mas Mazzaropi conseguiu, aqui, realizar seu pior trabalho. Um monumento em primarismo, mau gosto e falta de sensibilidade, pecados que, creditados a ele, podem ser também levados à conta de seu inseparável colaborador, Pio Zamuner, a eminência parda do Jeca que o cinema brasileiro já teve e hoje não tem mais. Mazzaropi acabou (FASSONI, 1977) 8.

Os filmes de Mazzaropi estavam ligados ao interesse econômico de se constituir uma indústria cinematográfica nacional, o que ele conseguiu, devido à sua capacidade de elaborar uma produção cultural que dramatizasse as representações sociais da população migrante e pobre das cidades no Brasil, tanto as grandes quanto as pequenas, já que ele mesmo elaborou uma rede de distribuição que

9. A Contribuição de Mazzaropi para o Retrocesso. Última Hora, 4 de fevereiro de 1965. Cine-Ronda. Ignácio de Loyola. Disponível em: www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm. Consultado em 01/set./2007. 10. Idem.

11. De pernas pro ar. Jornal Movimento 5 de abril de 1976. Zulmira R. Tavares. Disponível em: www.museumazzaropi.com.br/ sucesso.htm. Consultado em 01/set./2007.

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fez com que seus filmes chegassem a todas ou a grande parte das regiões do país. Segundo a matéria Um caipira que chegou a todos os cantos do Brasil com produção de 32 filmes, do jornal O Estado de S. Paulo de 15 de junho de 1995, de Oswaldo Vitta:

12. Um caipira que chegou a todos os cantos do Brasil com produção de 32 filmes, do jornal O Estado de S. Paulo de 15 de junho de 1995. Oswaldo Vitta. Disponível em: www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm. Consultado em 01/set./2007.

Quando se diz que os filmes de Mazzaropi eram vistos por todo o Brasil, não tenha dúvidas: Isso era mesmo verdade. Tanto que, atendendo pedidos de fãs de vilarejos distantes, normalmente esquecidos pelas distribuidoras, Mazzaropi montou uma empresa e, com ela, sua própria rede de fiscais, que tinham uma maquininha especial para controlar o número de espectadores 12.

Mazzaropi exorcizado por grande parte da crítica de sua época e adorado pelo público, estruturou uma rede administrativa eficaz para a veiculação de seus filmes que foi um elemento importante, mas não responsável pelo seu sucesso. Na verdade esta organização foi uma conseqüência da capacidade do ator-empresário de conseguir ler e dialogar com a realidade vivida das populações rurais e grande parte da população urbana do Brasil. Mazzaropi consegue em seus filmes atingir o arcaico da sociedade brasileira e de cada em dos brasileiros. Para o público ele é estimulante na medida em que repete e se repete incansavelmente e sem cansá-lo e de tanto repetir, de repente, elabora uma inesperada poesia (BARCELOS, 1976). Como diz o próprio Mazzaropi: “Falo a linguagem do povo porque sou caipira igual. O público gosta de bastante sinceridade na representação (APUT BARCELOS, 1976)”. Até mesmo alguns intelectuais contemporâneos a Mazzaropi conseguiram visualizar esta sua capacidade, como Flávio R. Tambellini em matéria no jornal do Brasil em 1978: “Seu público é fidelíssimo e ri ao menor gesto do Jeca. Não importa quão maniqueístas sejam suas histórias ou esquematizados seus personagens. O que interessa é o diálogo público/protagonista (1978, pg. 2)”. O próprio colunista se desculpa frente à intelligentzia nacional cinematográfica, pois a produção de Mazzaropi não significaria um simples retrocesso no gosto das massas populares. Como ele mesmo diz: Enfim, que me perdoe a intelligentzia, mas depois de ter me divertido com o humor sofisticado e dinâmico de Gene Wilder e de Marty Feldman em O Maior Amante do Mundo e A Mais Louca de Todas as

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Aventuras de Beau Geste chegou a vez do mesmo acontecer com o desengonçado o caipira Mazzaropi (TAMBELLINI, 1978).

O que interessa, assim, nestes filmes, é o personagem Jeca Tatu por conseguir abordar as problemáticas da vida concreta e o dilema de uma ampla população migrante que consegue identificar os problemas da realidade que a cerca, mas não consegue politicamente resolvê-lo, o que não significa que esta população não apresente mecanismos culturais de resignificação de suas relações sociais. Para Jean-Claude Bernardet: Mazzaropi só tem sucesso porque seus filmes abordam problemas concretos, reais, que são vividos pelo imenso público que acorre a seus filmes. Não é só, porque é careteiro e tem um andar desengonçado. E porque põe na tela vivências e dificuldades de seus espectadores, e se assim não fosse, não teria o sucesso que tem (BERNADET, 1978, p 11).

Daí que seu público seja formado, mas não exclusivamente, pelas classes menos favorecidas política e economicamente do país, tanto no campo quanto na cidade. A película Jeca Tatu, especialmente, consegue transformar o cinema em uma possibilidade da população brasileira se auto-representar e, com isso, procurar re-elaborar suas dificuldades. Bernardet foi um dos intelectuais que conseguiu visualizar bem a importância da representação do Jeca: O tratamento cômico e o jeito desengonçado do Jeca permite que o público, ao mesmo tempo em que identifica seus problemas na tela, ria deles e se libere de uma certa tensão. Possibilita que o público ria até de sua impossibilidade de resolver os problemas colocados pelos filmes. E justamente este, me parece, o ponto chave da dramaturgia de “Mazza” e de seu sucesso: possibilitar a identificação dos problemas e esvaziar qualquer atitude crítica diante deles (BERNADET, 1978, p 11).

A cinematografia de Mazzaropi se configuraria como uma possibilidade da população oprimida das zonas rurais e urbanas, em seu tempo de lazer, identificar os problemas sociais, sem, contudo, procurar modificá-los, mas pelo contrário, esvaziar esta própria crítica e estabelecer certo tipo de conformismo alegre. É preciso ter em

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mente que não é somente a ação política strictu senso que representa uma possibilidade de organização e luta e que o conformismo seja sempre sinônimo de opressão e injustiça, como acredita Bernardet. Os filmes de Mazzaropi realmente atingem a sociedade brasileira porque permitem que ela represente para si mesma suas contradições, conservadorismo e incapacidade de resolver determinados problemas.

13. CHAUÍ, M. de S. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. 6ª. Brasiliense. São Paulo, 1994.

Mas a própria possibilidade de representar esta situação através de um dos maiores símbolos da modernidade burguesa, o cinema, já se configura, como uma possibilidade de resistência, através do jogo ambíguo de conformismo-resistência para que a população possa em seu próprio tradicionalismo re-elaborar suas formas de viver 13, como demonstram alguns depoimentos: Assisti todos os filmes do Mazza. Meu nome é jornaleiro Nelson Gomes da Silva e acho a vida de São Paulo constrangedora. Mas o Mazza transmite um pouco de suavidade. Gostei do Cristo dele porque eu acredito que a pessoa tem que ser boa na terra para atingir a segunda ( BARCELOS, 1976).

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1960. O público não tinha como foco central o cinema, mas o personagem Jeca-Tatu, o seu jeito de se mexer, de fazer, de dizer. O cinema apresentava uma função secundária um meio mecânico de registrar e duplicar a encenação. Ir ao cinema no tempo livre se constitui enquanto uma possibilidade de acessar e utilizar a modernidade das cidades a seu modo, elaborando uma identidade ambígua do brasileiro, de forma a conjugar elementos tradicionais e modernos. Os filmes de Mazzaropi enquanto lazer representam, assim, uma metalinguagem da constituição de uma identidade ambígua do brasileiro, que se estrutura através do conjunto contraditório de relações e concepções tradicionais e modernas. Se o cinema é uma das linguagens do tempo de lazer na modernidade, como coloca Victor Melo de Andrade, ele também é uma linguagem da tradição e principalmente da sua hibridação 14.

Gosto do Mazzaropi porque ele é contra o divórcio e a favor da pobreza. Aonde já se viu isso. Também sou do contra. Já tiraram tanta coisa da gente, agora só falta tirar o nosso marido também com esse tal de divórcio. Meu nome é Maria Josefina, doméstica e bem casada no bairro Itaim Bibi (BARCELOS, 1976).

Apesar da produção literária de Monteiro Lobato ter sido a fundadora de um personagem e de um imaginário social sobre o meio rural que inspirou a produção cinematográfica e o próprio pensamento social brasileiro posterior, através da dualidade entre sertão e litoral, foi no cinema que os valores e imagens atribuídos ao meio rural se propagaram pela população brasileira, especialmente pelas classes economicamente inferiores. Esta eficiência se encontra no formato sutil e principalmente lúdico que o cinema apresenta e na forma como os filmes de Mazzaropi foram construídos.

Mazzaropi é bom da gente ver de tarde para dar gargalhada e matar o trabalho, aproveitando o seguro do Ienepeesse porque eu quebrei esse braço. Ouvisse aquilo que o Jeca disse ao delegado do filme? ‘Seu delegado é a favor do divórcio, é? Então prepara um cafezinho que eu hoje vou lá na sua casa pedir sua mulher em casamento.’ Mazzaropi é assim, ele diz tudo o que a gente gostaria de dizer. Adalberto Vieira, 23 anos, pedreiro (BARCELOS, 1976).

Este acabou sendo o papel desenvolvido pelo cinema de Mazzaropi, no período de 1950-1960 caracterizado pela ideologia desenvolvimentista, pela industrialização, pelo desenvolvimento urbano das cidades e um sensível crescimento econômico, que também significou a expulsão ou mesmo o deslocamento de um enorme contingente de migrantes das zonas rurais do país para as cidades, como demonstra a tabela I:

14. MELO, V. A. de. CINEMA (IMAGEM) E ESPORTE: DIÁLOGOS ENTRE LINGUAGENS NA MODERNIDADE. Disponível em http://www.anima.eefd. ufrj.br/esportearte/docs/producao.asp. Consultado em: 20/ ago./2007.

A simplicidade dos filmes de Mazzaropi representa o próprio desdém dessa população pela sofisticação e complexificação da ordem burguesa com seu aparato burocrático que, no Brasil, vem reafirmar e enfatizar a dominação tradicional dos latifundiários e das elites citadinas que se formavam e se afirmavam na década de 1950 e

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Tabela I: População Residente, por situação do domicílio e por sexo no Brasil de 1940 a 1980. Anos

Total Homens

Mulheres

Urbana Homens

Mulheres

no pensamento intelectual e no imaginário social da população brasileira, em uma permanente ambigüidade do devir.

Rural Homens

Mulheres

1940 20.614.088 20.622.227

6.164.473

6.715.709 14.449.615 13.906.518

1950 25.885.001 26.059.396

8.971.163

9.811.728 16.913.838 16.247.668

1960 35.055.457 35.015.000 15.120.390 16.182.644 19.935.067 18.832.356 1970 46.331.343 46.807.694 25.227.825 26.857.159 21.103.518 19.950.535 1980 59.123.361 59.879.345 39.228.040 41.208.369 19.895.321 18.670.976 Fonte: IBGE. Elaboração do autor

O público de Mazzaropi foi composto, principalmente, deste contingente populacional. Sua produção cinematográfica, dessa forma, foi endereçada às representações dos anseios, dilemas e expectativas de uma enorme parcela da população que havia se transferido para as cidades e tinha que, a partir de então, re-elaborar suas relações sociais e simbólicas de um mundo rural, de forma a conseguir se reproduzir material e moralmente em um contexto de competição urbano-industrial. Como coloca Afrânio Catani: Mazzaropi estabelece a empatia com um público que, pelo sentimentalismo e pelo riso, se deixa capturar numa identificação pelo avesso: ‘todos se sentem mais modernos, mas urbanos, procurando ver através do jeca a sua própria modernidade’ (CATANI, 1990, p. 292).

Os filmes de Mazzaropi configuram-se, portanto, como uma negação do atraso, no qual o rural aparece como a imagem do primitivo, como sinônimo de conservadorismo para a recente massa urbana, mas não de forma passiva. Assim a literatura elabora uma representação do estilo de vida rural que influencia a produção intelectual e artística no Brasil, contudo, é principalmente pelo cinema que o imaginário social lobatiano passa a viver simbioticamente com o imaginário da população nacional — homens, mulheres, pobres, migrantes — e se constituir como a identidade nacional a ser negada-afirmada, vindo constantemente a reaparecer, devido à permanência deste dualismo de formas de viver e agir, moderno-tradicional, progresso-tradição,

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Resumo: O objetivo deste trabalho foi discutir como o imaginário social sobre o meio rural se configurou na literatura de Monteiro Lobato e, principalmente, como esta configuração se deu no cinema de Amacio Mazzaropi. Se a literatura lobatiana foi fundamental para a estruturação de uma forma de pensamento dual que influenciou o pensamento social e artístico brasileiro posterior, com o caráter dual de compreensão da realidade brasileira, o cinema de Mazzaropi, apesar de inconscientemente, representou uma forma de imprimir nas outras classes e grupos sociais no Brasil o imaginário social do meio rural como tradicional e primitivo, devido a um elemento interno, a ludicidade intrínseca do cinema e a um elemento externo, a identificação entre a massa recém e inconclusamente urbanizada e os tipos e temas desenvolvidos nos filmes. Palavras-chave: imaginário social, identidade nacional, Jeca-Tatu, literatura e cinema.

Abstract: The object this work was discuss how the social imaginary on the litlle rural configure in literature of the Monteiro and mostly how this configuration hapeen in cinema of the Amacio Mazzaropi. If the literature lobatiana was fundamental to the estruturantes of the ambíguous form thought what influence the social thought and brazil artistic posterior, with the dubious caráter of comprehension of the brazil reality, the cinema of Mazzaropi, in spite of unconsciousmente, representation a form oh print in other class and social groups in Brazil, the social imaginary of the litlle rural as tradition and primitive, due the a inside element, intrinsic play of the cinema and the a outsider element, the identification between

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the new mass and urbanity inconclusmente and the types and themes develop in movies.

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Resumen: El objectivo del trabajo fue ablar como el imaginário social a respecto del meio rural se configurou en la literatura de Monteiro Lobato e, principalmente en la película de Amacio Mazzaropi. Se la literatura lobatiana fue fundamental para la estruturacion de una forma de pensamiento dual que influenciou el pensamiento social e artistico brasileño posterior, com el caracter dual de compresion de la realidad brasileña, el cinema de Mazzaropi, pesar de inconscientemente, representou una forma de impresión en las otras classes e grupos sociais en lo Brasil, el imaginario social del meio rural como tradicional e primitivo, debido a uno elemento de dentro, la ludicidad intrinseca de la película e a un elemento de fuera, la indentificación entre la massa recien e inconclusament urbanizada e los tipos e temas desenvolvidos en las películas. Palabras clave: imaginario sociale, identidad nacional, JecaTatu, literatua e película.

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traduções e traições do olhar

Ana Maria Portugal Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana (RJ) Doutora em Literatura Comparada pela UFMG - FALE

O olho serve de janela para o corpo humano, ali a alma contempla a beleza do mundo e goza, aceitando, deste modo, a prisão do corpo, que, sem este poder, seria seu tormento. Leonardo da Vinci Um dia todo homem mostrará o que viu o poeta. Fim do imaginário. Paul Éluard

Traduttore, tradittore. Tradutor, traidor. Segundo Lévi-Strauss (1975, p. 242) essa é uma fórmula muito conhecida que, como uma originalidade, tende a zero no mito em relação a outros fatos lingüísticos. Pois, ao contrário da poesia, que é difícil de ser traduzida, o valor do mito como resposta a um enigma ou a um impasse persiste a despeito das piores traduções. Qualquer

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que seja nossa ignorância da língua e da cultura na qual está expresso, é percebido como mito por todo leitor no mundo inteiro.

1. Na topologia dos nós, utilizada por Lacan a partir do Seminário XXI Les non-dupes errent (Os não-tolos erram), os três registros terão o valor de letras: R. S. I. que implicam dimensões (dit-mansions). O jogo de palavras introduz o Real como dito, participando da linguagem, e não apenas como exclusão. O enodamento produz-se pelo registro do Real, no modelo do nó borromeu, que consiste em três rodelas enodadas de maneira tal, que o rompimento de qualquer uma delas produz a destruição do nó. Isso reafirma, na experiência analítica, a exigência dos três registros. Na lição de 11 de dezembro de 1973 deste mesmo seminário Lacan enuncia: “Até o presente, só lhes falei do Imaginário e do Simbólico, mas, justamente, meu discurso tende a lhes mostrar que é preciso que essas duas dimensões se completem pela do Real. Em outros termos, é preciso que haja três delas. (...) Só há uma coisa a dizer no momento. Desse Real, só posso dizer que é a data de seu batismo: Eu te batizo Real, a ti, como terceira dimensão. Já fiz isso há muito tempo, foi por aí que comecei meu ensino. E acrescentei no meu foro íntimo: Eu te batizo Real, porque se tu não existisses, seria preciso inventar-te.” (1973-1974, lição de 11/12/1973. Tradução nossa).

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Assim também é o real da experiência. Real do imprevisto, do acaso, do impossível. Real que toma um lugar especial para Lacan em sua releitura do texto freudiano desde o início de seu ensinamento. A princípio constitui um dos três registros necessários para abarcar a experiência analítica, ao lado do Simbólico e do Imaginário, sendo privilegiado o Simbólico (LACAN, 1952). Com o decorrer de sua pesquisa, o Real, para Lacan – distinto do conceito de realidade – vai sendo destacado como causa da experiência do sujeito, no mesmo sentido que para Freud tinha o trauma, adquirindo o valor de algo que a intervenção do simbólico expulsa da experiência. Essa expulsão convoca o Imaginário e a linguagem a dar-lhe uma forma, a traduzi-lo em imagens ou palavras. Ainda assim, o Real recusa-se a ser uma mera representação e retorna na realidade como um encontro que abala e desperta o sujeito de seu estado usual (CHEMAMA, 1993, p. 97). Esta abordagem percorre todo o ensinamento de Lacan até os seminários finais, especialmente no Seminário XXI Les non-dupes errent (Os não tolos erram), em homofonia com Les noms du père (Os nomes do pai) – ocasião em que o Real, resistente a ser inscrito surge extraído dos textos de Freud sobre os limites da interpretação (FREUD, 1925) e, numa escrita da topologia dos nós, Lacan faz o batismo do Real como também uma dimensão (dit-mansion), e não apenas um registro (LACAN, 1973-1974: 11/11/1973).1 Esse breve preâmbulo nos introduz a um comentário sobre duas traduções de um mesmo fragmento de real: o olhar. Trata-se de um filme e de um romance: o filme Eyes wide shut (De olhos bem fechados) de S. Kubrick (1999) e o romance de A. Schnitzler, Traumnovelle (Breve romance de sonho) (2000/1926), no qual o filme se baseou. São traduções que, convocando o Imaginário – no sentido lato –, rastreiam, passo a passo, os efeitos do Real sob a forma do olhar, naquilo que ele convida a ver, excitando o invisível. Eyes wide shut (De olhos bem fechados) estreou em 1999, seis meses após a morte de S. Kubrick. Muito segredo circundou sua rodagem, que levou dois anos, com várias datas de estréia adiadas e muita especulação sobre o que seria seu cerne. Apesar de aconte-

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cer em Nova York, foi filmado na Inglaterra. Surgiram tantos boatos que Kubrick exigiu que todos os membros da equipe assinassem um contrato, onde ficava explícito que era totalmente proibido falar a respeito da produção com qualquer pessoa. A filmagem foi iniciada em 1996, com um roteiro que mostra um casal de psicólogos (ou psiquiatras) envolvidos sexualmente com seus pacientes. (www. tanto.com.br). Tanto pelo filme quanto pelo romance de Schnitzler vemos que não se trata disto, e sim de um médico atormentado pelos sonhos e fantasias sexuais de sua mulher com outro homem, o que o leva a um desejo de transgressão, vagueando pela cidade em direção a aventuras e encontros inesperados. A trama de ambos – filme e romance – se alterna nos temas: sexualidade e morte. O título do romance de Schnitzler Traumnovelle surge numa só palavra, sem artigo, seco, em bloco. As traduções modulam-se através das características de cada língua. No inglês Rhapsody: a dream novel, acrescentando o aspecto de uma fantasia musical, com traços épicos (FERREIRA, 1986). Em português, Breve romance de sonho. Breve que parece querer dizer leve, talvez para não ser levado a sério; ou breve porque nada se realiza nesse romance, a não ser a morte, que é breve. Breve porque o sonho é breve, breve porque isso passa, porque todos passam por isso. Breve como uma crônica, pois os acontecimentos recobrem pouco mais que duas noites. Os três títulos anunciam a forma: novelle, novel, romance. O elemento sonho, Traum, dream indica a qualidade desta forma, suas características, seu delineamento: a forma de sonho. “Romance-sonho” poderia ser uma tradução literal. Comparando romance e filme quanto ao título, vemos que o romance-sonho, como uma encenação visual (o sonho é uma vivência de caráter alucinatório [FREUD, 1900, p. 52]), foi traduzido no filme através da ênfase ao olhar, aos olhos, desde que bem fechados. Não é apenas uma referência ao estado do sono – condição material do sonho – mas também à hipótese do inconsciente, pois, dos desejos recalcados que são o motor no sonho, aquele que sonha não quer saber, preferindo fechar os olhos e dormir. Entrelaçando filme e romance, o filme traz certa incoerência. Algumas mudanças se justificam: ora se devem às diferenças das duas linguagens, ora a certas adaptações à realidade de Nova York no

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final do século XX (1999), para que seja apreendido pelo público da época. Mas o fato é que, para um enredo de certa ousadia que coloca a realidade do desejo e do prazer para além dos fatos cotidianos, isto é, nas vias da fantasia e da atmosfera de sonho, seu desfecho destoa como moralista, incluindo personagens que dão explicações demais, num estilo bem americano. Tudo se fecha de forma harmoniosa, a não ser pelo “Fuck!”, dito pela mulher ao final, expressão cheia de ambigüidades. No romance, pelo contrário, várias questões permanecem em suspenso. Ao bom estilo de Schnitzler – autor da modernidade vienense contemporâneo de Freud, considerado por ele como seu “duplo” (FREUD, 1982, p. 396) – o romance-sonho se mantém numa vaga atmosfera de estranheza, alternando os temas de sexualidade e morte. Freud admirava Schnitzler como um dramaturgo explorador de temas comuns à psicanálise, citando-o em seu ensaio “O Estranho”, por considerá-lo um autor que conseguia manter, ainda no século XX, as condições de estranheza no texto, deixando o leitor na insatisfação e na incerteza de suas conclusões. (FREUD, 1919, p. 312) Mas Schnitzler considerava arbitrária a teoria freudiana, e, ao invés de interessar-se pelos trâmites entre inconsciente e consciente, preferia centrar-se num estado intermediário, um estado nebuloso, onde Eros e Tanatos se confundem, como um pesadelo do qual não poderemos sair (CARVALHO, 2000). Prosseguindo o entrelaçamento filme / romance, o que nos impressiona é que, nas idas e vindas de um ao outro, a questão crucial vai ficando mais densa e os elementos acessórios caem, permanecendo a boa tradução do material, que se condensa muito bem no título do filme: De olhos bem fechados. Talvez seja assim que iniciamos uma leitura, procurando apenas apreender o sentido e sintetizá-lo. Abrimos mão dos detalhes e não vemos muita coisa mais. À medida que os olhos se fecham para o sentido unitário e vão-se abrindo para a realidade da fantasia e do desejo, para a realidade com que trabalha a arte, os detalhes vão sendo realçados, começam a brilhar, o todo do sentido já não nos importa tanto, e com os fios a que nos levam os detalhes, são tecidas várias combinações.

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Acontece como na “obra prima do tecelão” do Fausto (GOETHE apud FREUD, 1900: 302),2 metáfora da fábrica de pensamentos do sonho, utilizada por Freud para falar do trabalho com os restos de desejos não satisfeitos e não realizados:

Um pedal lança mil fios Lançadeiras pra lá e pra cá Invisíveis os fios correm a fluir De um golpe, mil combinações a surgir.

2. Cumpre esclarecer que, para as obras de Freud, sempre utilizamos as duas edições: a Edição Standard Brasileira e o original alemão Gesammelte Werke em 18 volumes, o que às vezes implica em diferenças de nossa tradução em relação à oficial. Para maior facilidade de consulta da parte do leitor estamos fazendo constar apenas as referências da Edição Standard Brasileira.

De um pra mil, de mil fios pra mil combinações abertas pelo novo golpe do pedal, e os fios tecem uma nova trama. Assim, há momentos em que as obras de Schnitzler e de Kubrick seguem diferentes tramas que, embora diferentes, incidem num mesmo foco: o olhar, destacado da visão, e separado também da visão de mundo de uma certa sociedade. Philippe Willemart no breve ensaio “A origem da arte: o ódio da illusio” (1995, p. 181) comenta sobre o papel do Imaginário na sociedade, estabelecendo profissões, papéis, categorias de pensamento e da ciência, enfim, hierarquias. Essas categorias dão um sentido de viver a seus membros, e, como foram aceitas pelo grupo, apesar de decorrerem do Imaginário fazem pacto com o Simbólico. É isso que Pierre Bourdieu chama de illusio: “referência universalmente garantida de uma ilusão coletiva, (ou uma) realidade com a qual medimos todas as ficções.”(BOURDIEU, 1992, p. 32, citado por WILLEMART, 1995, p. 184). Mas, de repente alguém ou um grupo, sob a coação de forças inéditas – o Real – põe em dúvida o Simbólico e a illusio existentes. Entre estes está o artista, como aquele que se caracteriza por não querer entrar na illusio proposta pela sociedade, através de suas categorias estabelecidas pelas gerações anteriores. Ele não é neurótico, psicótico ou perverso mais que os outros homens por isso. Numa posição de ódio a illusio, apenas imagina outros caminhos (WILLEMART, 1995, p. 185).

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Com o trabalho da arte há um novo vigor dado ao Imaginário como aquele recurso ímpar fazendo contorno ao Real. Freud já atestava isso quando, em seus primeiros rascunhos endereçados a seu amigo e correpondente W. Fliess, descrevia as fantasias como “fachadas” psíquicas, erigidas diante das vivências de desprazer: coisas vistas e ouvidas, e não compreendidas. Essas fachadas psíquicas têm por objetivo fugir da lembrança desagradável através de um embelezamento dos fatos (FREUD, 1986, p. 241), e são apenas estes recobrimentos – e ao mesmo tempo desvelamentos – que o sujeito recupera em seus sintomas e sonhos. Ainda no sentido de valorizar o Imaginário, Ítalo Calvino inclui a Visibilidade como uma das Seis propostas para o próximo milênio (1990). Partindo de uma bela imagem de um verso de Dante: “Chove dentro da alta fantasia” (Purgatório, XVII, 25), Calvino acompanha o valor do Imaginário no curso do desenvolvimento da arte literária, e fala de sua experiência de escritor, de como se constroem suas imagens. Surgem a princípio por uma razão qualquer, carregadas de significado, mesmo não formuladas em termos discursivos ou conceituais. Logo que a imagem adquire certa nitidez “ponho-me a desenvolvê-la numa história, ou melhor, são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si” (CALVINO, 1990, p. 104). Como ele mesmo argumenta, em nossa época, na qual a autoridade e a tradição não nos servem mais de referências, sendo visadas a originalidade e a invenção, “o problema da prioridade da imagem visual ou da expressão verbal (que é um pouco assim como o problema do ovo ou da galinha) se inclina decididamente para a imagem visual.” (CALVINO, 1990, p. 102). Com isso, o cinema tem seus privilégios. Mas, não podemos esquecer que a imagem que vemos na tela do cinema também passou por um texto escrito, foi primeiro “vista” mentalmente pelo diretor, sendo o filme o resultado de uma sucessão de etapas, imateriais e materiais, nas quais as imagens tomam forma. “Esse ‘cinema mental’ funciona continuamente em nós – e sempre funcionou, mesmo antes da invenção do cinema – e não cessa nunca de projetar imagens em nossa tela interior.” (CALVINO, 1990, p. 99).

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As palavras de Calvino nos levam de volta à psicanálise, a questões tais como a pulsão escópica e seus desdobramentos na vida do sujeito. Por pulsão escópica entendemos o que Freud explicitou em seu ensaio sobre as pulsões (1915, p. 148) como o par escopofilia-exibicionismo, para exemplificar, dentro das vicissitudes da pulsão, a reversão ao oposto, a mudança de atividade – ver, olhar – para passividade – ser visto, exibir-se. Escopofilia é a tradução do termo alemão Schaulust, literalmente: prazer de olhar, já indicando tratarse de mais alguma coisa que a simples visão ou o olho, como função e órgão dos sentidos. A pulsão escópica, como caminho do desejo, expressa no sujeito a relação com o outro intermediada por um ponto de vacilação, no qual o encontro do olhar com o olhar do outro instala um abismo, onde se postula uma pergunta sobre o desejo. É um ponto de enigma sobre o desejo do Outro, e a vacilação é o que cede lugar à angústia. É, pois, a partir de seu estudo sobre a angústia que Lacan, aprofundando a relação da angústia com a dialética do desejo e seu objeto, vem a se deter na análise do olhar como esse ponto de enigma entre o sujeito e o outro – o que provoca um lugar de ser objeto do outro – e propõe uma retroação da posição do objeto, que será agora causa de desejo (LACAN, 2004/ 1962-1963, p. 120). Desde então é como causa de desejo que se estabelece o estatuto do objeto a, que trará o acréscimo do olhar e da voz à lista dos objetos freudianos (seio e fezes, associados à demanda do neurótico) (LACAN, 2004/ 1962-1963, p. 241). Lacan prossegue, no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) – que se segue ao estudo sobre a angústia – o desenvolvimento da proposta do olhar como objeto a, destacando seus efeitos na trilha da constituição subjetiva: efeitos de queda, de desfalecimento, de suspensão, de separação, mas, por outro lado, de enquadre, do jogo de máscaras e da função da tela como lugar de mediação (1973/1964, p. 98-99). Segundo Miller (1994: 20-22), no estudo do campo escópico, a discussão lacaniana com a fenomenologia re-situa o Imaginário, que passa de um Imaginário que se pode ver – a imagem especular jubilatória como formadora do eu – para, após a importância do

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Simbólico e do significante, constituir aquilo que não se pode ver, aquilo que se perdeu. A partir disso, surge entre o sujeito e o nada o véu, o que torna tudo possível. Da função do véu se introduz a da tela, que converte o nada em ser. Podemos esconder o que há, o que não há – o objeto – e também a falta de objeto. A imagem mostra e esconde. Lacan identifica o olhar como objeto a – a título de ilustração – com a janela, através da qual se vê, mas que não nos permite ver a nós mesmos: o enquadre. O que ele denomina olhar é um vazio, permitindo-lhe substituir o par visível-invisível (da fenomenologia) por olho-olhar. Nomeando olhar a um objeto, na medida em que não há objeto adiante, o olhar é o objeto que não se pode ver como própria condição da visão. É importante reafirmar que a invenção lacaniana de objeto a se reporta ao desejo: desejo do Outro, a voz; desejo ao Outro, o olhar. Estes – os objetos a – não os percebemos e não podemos capturar sua substância (MILLER, 1990, p. 27). Seu estatuto é de causa: vazio, perda, dejeto, queda, instigando o sujeito a desejar. Recuperando a função do enquadre, da moldura, no encontro do olhar que se dirige ao quadro com o olhar que ali está deposto pelo artista, Lacan aponta o quadro como uma apreensão do olhar. “Com isso o Imaginário não é Gestalt (configuração), mas envoltura de gozo. A captura do gozo passa pelo Imaginário.” (MILLER, 1990, p. 30-31). Assessorados por estas reflexões, vamos acompanhar as traduções e traições do olhar e do Imaginário nas duas obras que examinamos aqui: o filme De olhos bem fechados (Kubrick) e o romance Breve romance de sonho (Schnitzler). Já pensando no porque do título do filme voltamos ao livro e buscamos o olhar. Desde seu primeiro capítulo, no dia posterior ao baile de máscaras de Carnaval, o casal joga, um com o outro a sedução de possíveis traições durante o baile. Ela dá o primeiro passo e conta a atração que sentira por um oficial da marinha nas férias do casal na costa dinamarquesa, quando, então, se sentira capaz de largar tudo (marido e filha) e seguir este impulso. Diante da janela, ele também se encoraja e conta sua fantasia com uma garota na praia. Nada disso se realizou, mas poderia ter-se realizado.

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Notamos a janela, elemento que se repete em outras cenas, como um marco para algo que vai acontecer. Este significante-imagem vai sendo repetido. A janela serve como enquadre para uma fantasia, como uma moldura. Ainda nesta mesma cena, Albertine conta do verão, pouco antes do noivado: “...um homem jovem e bonito diante da minha janela (...) bastaria que ele dissesse uma única palavra (...) e poderia ter de mim tudo o que desejasse (...) Mas, ele não disse a palavra...” O rapaz se irrita, ela contorna, num sorriso: “Não fosse você a pessoa diante de minha janela, tampouco a noite de verão teria sido tão bonita.” A cena se interrompe – como no filme – com a criada avisando sobre um chamado de um paciente ao médico (SCHNITZLER, 2000, p. 16). No filme o baile é de comemoração de Natal. Mas o olhar é foco constante: é o que prende Alice a seu par, o húngaro, enquanto dança. Mostra-se cheia de trejeitos, afetada, frágil, leve como as mulheres vienenses: as histéricas cheias de charme e de artimanhas do texto de Freud. Após o baile, a conversa: Alice de óculos. Por que os óculos? Não pode ser um elemento arbitrário, está aí para anunciar que a visão é pouca, que é preciso o artifício para se ver melhor, um artifício como a lente da câmara. Vemos o mundo através de uma lente que circunscreve nosso campo de visão. Anteriormente, a própria apresentação do filme já nos indicava o campo do olhar. Primeiro quadro: letras brancas sob fundo negro: “Tom Cruise”. Segundo quadro: “Nicole Kidman”. Terceiro quadro: “Um filme de S. Kubrick”. Uma grande loura, de costas para a câmera, deixa tranqüilamente cair seu vestido a seus pés. Uma cortina de teatro acaba de cair junto com o vestido de Alice (N. Kidman) após os três dados simbólicos. Último quadro da apresentação: EYES WIDE SHUT, os olhos bem fechados. O título soa como uma ordem ou um conselho ao espectador / voyeur. Stanley Kubrick o convida a fechar os olhos para acordar num sonho, que não é simplesmente um sonho. Os primeiros segundos do filme invocam estes instantes, que são vividos como se fossem horas e que precedem o sono, onde o olho pisca tão forte que queima a linha de divisão entre realidade e sonho (FIRMINO, In www.tanto.com.br). Outro elemento que o filme nos apresenta é o espelho. Numa cena de sexo, Alice, nome tão carrolliano, diante do espelho contempla sua

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imagem, enquanto se deixa beijar e acariciar pelo marido. Será que ela nos olha por detrás deste espelho? Ela se sente ainda observada, mesmo após o imperativo do título do filme: De olhos bem fechados?

os sentidos e os unifica nas cenas de desnudamento das mulheres – caem as capas que as envolvem, menos a máscara – após o que os casais se dirigem ao sexo. No entanto, Bill apenas vê.

Na cena da orgia, as máscaras são outro elemento do olhar. Em ambos, filme e livro, é o elemento que vai unir a pulsão de ver e a pulsão sexual. As pessoas se vêem pelas máscaras e pelos disfarces, mas a expressão íntima não se dá a conhecer. Posteriormente, a câmara do cineasta passeia pelas máscaras de aspecto perseguidor.

No romance trata-se de música sacra, e a senha é Dinamarca, ou seja, o país da viagem de férias, onde ocorreu à esposa a fantasia de traição. Schnitzler está mais próximo do sonho, uma vez que Dinamarca é um resto diurno (FREUD, 1900, p. 591-601), é a senha que resta de algo insatisfeito no cotidiano e que trará a construção de um sonho, motivado pelo desejo inconsciente. O personagem literário, diferente de Bill, personagem do filme, também não é tão passivo: insiste na companhia de uma mulher que o atrai, quer têla para si, confessa seu desejo, parece estar mais próximo e mais interessado em realizá-lo.

Schnitzler sustenta as máscaras desde o primeiro baile (que é de Carnaval) até a cena da orgia. Nesta cena o personagem, ao ser descoberto, propõe que se dê a conhecer e que seja retirada sua máscara, mas isso não é possível. A máscara da mulher é que cai, mas o que ele vê somente é seu corpo e a vasta cabeleira negra. Não pode ver seu rosto, e é retirado da cena numa carruagem de janelas vendadas, de maneira a não saber aonde vai. Imagina que vai para a morte, mas, de repente, as portas da carruagem se abrem, e é deixado num lugar desconhecido, numa rua onde alguns transeuntes o vêem e se assustam com seu aspecto. Kubrick só propõe a máscara na cena da orgia. A câmara segue de máscara em máscara, num diálogo estranho destes olhares fixos, com a expressão congelada e artificial. As máscaras perseguem o personagem, denunciando-o como estranho à secreta sociedade. Os participantes têm gestos afetados num castelo cheio de balcões, cortinas, colunas, lustres, bastidores, e ele é apenas um figurante oprimido na encenação. Sua máscara veneziana e seu disfarce não o protegem por muito tempo, talvez porque ele é excessivamente passivo, excessivamente voyeur. O momento crucial da denúncia faz um giro no olhar: de sexual passa a perseguidor. A cena da orgia é uma cena de voyeur sob um fundo musical, unindo olhar e voz. Não só pelo acesso a casa por intermédio do músico: Nachtigall (cotovia, pássaro da noite), como pela senha Fidelio (ou O amor conjugal, ópera de Beethoven) e também pelos sons graves que acompanham a cena. Na ópera criada pelo filme a música de Ligetti emite notas de piano regulares, como se elas transformassem o tempo em algo elástico e desacelerado, como um piano ao ser afinado, traduzindo a confusão de Bill, o personagem (FIRMINO, In www.tanto.com.br). A voz grave, monótona e repetitiva embriaga

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Bill vai ao necrotério, conclui que se trata da mesma mulher da orgia, e é chamado à casa de Victor (vitorioso), anfitrião do primeiro baile, que esclarece os fatos: a mulher que o resgata na orgia tem como sacrifício “foder” excessivamente e não, morrer, como Bill havia pensado. A morte, que se deu agora foi apenas por overdose. “É uma questão de tempo.” – diz Victor. Ao final do filme, o cineasta faz da máscara um elemento de enigma. Após esta cena, a câmara nos mostra a máscara ao lado de Alice, que dorme. Temos aí o tempo do espectador e o do protagonista. Voltando para casa, Bill vê a máscara, que estava perdida. Nós, os espectadores a vemos antes dele. Kubrick permite ao espectador abrir os olhos, e distinguir-se do ator, ou da imagem. Nesse momento estamos separados de seu olhar. Talvez pudesse ter sido aí o final do filme para se manter na atmosfera estranha que nos prometeu. Mas não. A máscara perdida se transforma no elo para a possibilidade de refazer a relação, que será prometida na cena de compras de Natal. No romance, a busca pela atraente mulher que o resgatou tem seu desfecho no necrotério, onde, no meio da noite, encontra seu colega, Dr. Adler. Note-se que há uma certa série de nomes de pássaros: Adler = águia; Nachtigall = cotovia (sobrenome do músico); Schreivogelgasse = pássaro gritador (nome da rua do paciente que morre). Podemos imaginar estas alusões a pássaros como presen-

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ça simbólica do desejo. Dr. Adler mostra-lhe o corpo da mulher morta, cuja notícia ele vira no jornal. Mas não pode ter certeza de reconhecê-la e, embora o afirme para o colega, não há como assegurar, pois não conhece seu rosto. Mantém-se o mistério sobre a mulher. Assim se conclui a cena. Nesta fixação ao olhar e no seu desenvolvimento como pulsão sexual, o feminino é o objeto, é o que se desnuda, e isso fica mais patente no filme que no romance. Mas também é o que se oculta e se esgueira, evitando uma real confrontação, a não ser na morte. No ensaio “Cinema: revelação e engano”, Ismail Xavier nos adverte do poder de convicção embalado pela evidência empírica da imagem. Assim como na fotografia, é comum que se esqueça a função de recorte e de montagem. Só se chamamos a atenção para a moldura, para a relação entre e a foto e seu entorno, é que começamos a tecer as relações entre o visível e o invisível de cada situação. No cinema, a sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas. A montagem sugere, nós deduzimos (XAVIER, 1988, p. 367-368). Xavier prossegue, observando que, por outro lado, há uma identificação do meu olhar com o da câmera. A imagem que recebo compõe um mundo filtrado por um olhar exterior a mim, que me organiza uma aparência das coisas, estabelecendo uma ponte, mas também se interpondo entre o mundo e eu. Mas são dois momentos distintos: na filmagem há uma direção, um compromisso, um risco, um prazer e um poder de quem escolhe filmar. Como espectador, contemplo uma imagem sem ter participado de sua produção, franqueando algo que me seria impossível, mas, por outro lado, algo me é roubado. Mas, não tenho escolha. Ainda como espectador tenho privilégios. Velozmente salto de um ponto a outro, sem comprometer o corpo, sem os limites do meu corpo. Estou em toda parte e em nenhum lugar, ao lado das personagens, mas sem ocupar espaço, sem presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo (XAVIER, 1988, p. 370). E o olhar da literatura, seria, por acaso mais pulsional? Ou estamos diante da mesma tradução / traição? Talvez possamos buscar uma resposta em Freud, em seu ensaio “O Estranho” (1919), cuja parte final reúne algumas hipóteses sobre

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as diferenças entre o estranho da experiência cotidiana e seu tratamento pela ficção. A ficção é soberana em manejá-lo e desfazê-lo, a não ser quando o estranho resiste por tratar-se do inconsciente, havendo certa equivalência entre das Unheimliche (o estranho) e das Unbewusste (o inconsciente), sendo o prefixo un- a marca do recalque (FREUD, 1919, p. 305). Mas, quando a ficção não desfaz a estranheza e consegue, por seus artifícios mantê-la, a experiência do sentimento de estranheza não permite que se esqueça o Real. O tempo e a memória se questionam. Com o estranho, a memória não só funciona como um depósito, onde se sedimentam as experiências, mas, na pulsação do tempo, revela o inédito, o que ainda está excluído do campo Simbólico e espera por uma tradução. Talvez aqui não valesse mais a definição de Schelling, privilegiada por Freud em seu ensaio: “estranho é o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (1919, p. 282), sendo o caso de propor uma outra: estranho é o impossível a ocultar, é a experiência do Real. O escritor consegue mantê-lo, ao dispor, em sua bagagem, da tensão exata de um tênue fio de Imaginário, nem firme, nem frouxo demais, apenas o suficiente para que o estranho nunca se torne excessivamente familiar (PORTUGAL, 2006, p. 103). Quanto ao olhar como experiência do Real, a possibilidade de sua tradução está nos contornos: janelas, molduras, cortinas, capas, lentes e máscaras, artifícios que pertencem ao Imaginário, em sua condição de desenhar uma linha3, e que capturam o gozo, ao denunciar sua presença, fazendo despertar o sujeito para o desejo, nem que seja apenas no sonho, sem, no entanto, que feche os olhos no desejo de dormir. Resumo: Através da análise de um filme e do romance no qual se baseia, acompanhamos o trabalho do Imaginário na expressão da importância do olhar como pulsão e objetocausa de desejo (objeto a), utilizando as referências da Psicanálise (Freud e Lacan). Com isso, o Imaginário ultrapassa suas características de ilusório e enganoso para se revelar o recurso primordial de enquadre e tradução das experiências com o Real, recurso fundamental na experiência da arte.

3. Esta condição do Imaginário, esvaziado de conteúdo fantasioso é também uma modificação que Lacan traz ao propor a topologia dos nós no Seminário XXI Les non-dupes errent (Os não-tolos erram). Ele enuncia: o Imaginário “é sempre uma intuição do que deve ser simbolizado”. É o Imaginário tal como utilizado pelas ciências matemáticas, quando fixam em letras seus argumentos e trabalham com a suposição de seus construtos. Lacan aborda a Matemática como um giro das três letras: I (Imaginário) – R (Real) – S (Simbólico), concluindo que seu campo consiste em Imaginar o Real do Simbólico. ( 19731974, lição de 13/11/1973. Tradução nossa.)

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Palavras-chave: De olhos bem fechados (S. Kubrick), Breve romance de sonho (A. Schnitzler), psicanálise, pulsão escópica (Freud), o olhar como objeto a (Lacan), Imaginário, Real.

Abstract: Through the analysis of a film and the novel on which it’s based, we follow the Imaginary’s work of expressing the importance of looking, as a drive and object that causes the wish (a object), using psychoanalytical references (Freud and Lacan). With these articulations, we may think that the Imaginary goes beyond its characteristics of illusion and mistake, to reveal itself as the main resource for the framing and translating the experiences of the Real, resource that is fundamental in the artistic experience. Keywords: Eyes wide shut (S. Kubrick), Rhapsody: a dream novel (A. Schnitzler), psychoanalysis, scopic drive (Freud), looking as a object (Lacan), The Imaginary, The Real.

Resumen: A través del análisis de un filme y de la novela en el que se basa, acompañamos el trabajo de lo imaginario en la expresión de la importancia del mirar como pulsión y objeto-causa de deseo (objeto a), utilizando las referencias del Psicoanálisis (Freud y Lacan). Con eso, lo imaginario ultrapasa sus características de ilusorio y engañoso para revelarse el recurso primordial de encuadre y traducción de las experiencias con lo Real, recurso fundamental en la experiencia del arte. Palabras clave: De ojos bien cerrados (S. Kubrick), Relato Soñado (A. Schnitzler), psicoanálisis, pulsión escópica (Freud), el mirar como objeto a (Lacan), Imaginario, Real.

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e-mail: anamportugal@gmail.com Recebido em 20/04/2007 Aprovado em 13/10/2008

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1 Uma versão inicial desse trabalho foi apresentada em setembro de 2006 em Belém do Pará no II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e está disponível nos anais eletrônicos do evento (www.fundamentalpsychopathology.org/ anais2006/5.83.1.htm).

watt de beckett: o cômico e a privação da linguagem1

Alessandra Caneppele Pós-doutoranda (bolsista FAPESP) e professora colaboradora do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp

Em Watt, a escrita de Beckett nos enreda antes de tudo na história de suas palavras. Desse modo, uma interpretação referida a conteúdos desqualifica-se: é a palavra, e não aquilo a que ela supostamente poderia se referir, que joga seus lugares através da concatenação beckettiana.2 Do mesmo modo, a fala de sujeitos diagnosticados como afásicos rompe a crença de um diálogo sustentado apenas na referência aos supostos conteúdos que transitariam pela palavra e introduz uma realidade descolada da certeza neles: entre o que se diz e o que supostamente se deve/quer dizer abre-se o fosso de uma palavra que se instala ou deixa de se instalar ao seu próprio gosto, como se adquirisse vida e morte próprias. Assim como em Watt, na afasia as palavras estão presentes, mas não no lugar em que concordam com a voz de um sujeito, um conteúdo ou significado. E, em ambos os casos, seus efeitos são reconhecidos como cômicos.3 Mas o que faz cômica uma palavra?

2 Pilling (1995, p. 37) escreve: “almost every object in Watt, and almost every moment of narrative production, could be received as symbolic, but need not be [...] Watt, as the name of the figure central to its existence serves to remind us, is an investigation into the possibility of ‘what’-ness”. Seguindo as indicações desse mesmo crítico, interessa-nos ler Watt como uma parábola ou uma fábula sobre a própria possibilidade de significação e, nesse contexto, nossa leitura será muito diversa daquela de Didier Anzieu (1992) em Beckett et le psychanalyste: não buscaremos interpretar o que apareceria simbolicamente no texto, lendo-o como uma história na qual caberia adivinhar quem efetivamente representam suas personagens e seus verdadeiros significados; pelo contrário, investigaremos como Watt através do cômico indagaria o sujeito mesmo da psicanálise sobre a própria possibilidade de sustentação de uma significação. Para tal proposta esclarecemos que escolhemos ler a publicação em francês de Watt, concebendo-a como texto original e não apenas como tradução do texto em inglês. 3 Lacan (1955) escreve no seminário sobre as psicoses que a fala do afásico induz ao riso; por outro lado, alguns comentadores da obra de Beckett definem Watt como seu texto mais cômico.

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o cômico em freud

poderá ser comparada com o gasto de representação efetivamente realizado no cômico.

Freud conclui que o prazer da comicidade parece surgir de uma economia de gasto de representação ou ocupação. Assim como o chiste produz prazer porque um outro faz desnecessária a manutenção de uma despesa de inibição, no cômico o prazer provém de um outro que permite a economia de uma despesa de representação, posto que ele mesmo se faz lugar dela. Nesse contexto, se o chiste se coloca como momento de compreensão de um a mais de significação enlaçado à representação, já o cômico recorta um campo de investigação sobre a própria representabilidade.

A representação de meta pressuposta na comparação cômica é fundamental para a compreensão da distinção entre o riso da criança e o riso cômico do adulto. Freud (1905, p. 212) escreve que a criança pode rir perante uma cena engraçada – a queda de um colega, por exemplo – mas por trás desse riso encontraríamos a frase “tu caístes e eu não”, enquanto no riso cômico a frase seria “assim ele o faz – eu o faço de outro modo – ele o faz como eu fiz quando pequeno”. Embora em ambos os casos esteja presente uma comparação, no caso do cômico, essa implica uma dupla diferença: entre eu e o outro e entre eu e eu mesmo quando pequeno; e, ao mesmo tempo, uma igualdade: entre eu quando pequeno e o outro (portanto, não há apenas estranhamento como na criança, mas também identificação). No riso da criança, a temporalidade não é duplicada como no caso do riso cômico: há um tempo único em que um cai e o outro, não; já no cômico, ri-se de um tempo da desigualdade a partir de um tempo de igualdade. Por fim, na criança o confronto se dá entre um eu e um tu e no cômico, os sujeitos são outros: dois eu e um ele. Portanto, tempo, sujeitos e resultados dessa comparação são diferentes – e tais diferenças só são possíveis porque o sujeito pode estabelecer uma comparação entre a sua ação e a do outro através da passagem pela representação de meta.

Para explicar a economia do cômico, Freud propõe o esquema da comparação entre adulto e criança. A condição para que a comparação se faça cômica é a de que ela descubra uma diferença. Mas qual a natureza da diferença dada nessa comparação entre adulto e criança? Freud a define em termos de representabilidade: no cômico há um gasto desmedido e supérfluo dos elementos de representabilidade da cena que só pode ser compreendido e reconhecido como excessivo na medida em que é comparado a uma meta de representabilidade concebida como gasto mínimo de movimento do corpo próprio. Ou seja, reconhece-se como um a mais de movimento na representação aquilo que faz diferença frente a um funcionamento da representabilidade que tende para o movimento mínimo. Para que tal comparação se processe, será necessária uma representação de meta representando o gasto mínimo, a qual

Dentro desse contexto, pode-se compreender porque Freud (1905) estabelece uma oposição entre chiste e cômico a partir da atribuição da participação do inconsciente e do pré-consciente em cada um deles. O chiste dependeria de um trabalho do inconsciente e também poderia ser conduzido a uma diferença, mas essa seria entre os modos de representação do pré-consciente e do inconsciente – e, portanto, indicaria a retirada de um gasto de inibição viabilizando a aparição da cadeia de representações inconscientes. Já o cômico não dependeria desse trabalho inconsciente, mas apenas da comparação entre as séries de representações pré-conscientes, posto que o comparado é da ordem do que no pré-consciente se sustenta como representação tanto do que se é como do que se espera ser – logo, do que se idealiza para si mesmo, do que se coloca como diferença alcançada em si mesmo.

Em O chiste e sua relação com o inconsciente, Freud (1905) parte de uma bibliografia que se dedica a uma generalidade nomeada “cômico” para, depois, recortar e diferenciar nela certos grupos de efeitos cômicos os quais permitiriam saberes especializados e circunscreveriam mecanismos particulares de funcionamento da linguagem. Ele concluirá tripartindo o campo outrora abarcado pelo cômico em chiste, cômico e humor. Como pano de fundo dessa diferenciação persiste uma igualdade: todos são modos de funcionamento do aparelho anímico em que o prazer descende de uma poupança de despesa. Mas qual a especificidade dessa economia de gasto no cômico?

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Conclui-se que, enquanto o chiste trabalha para diminuir a inibição, o cômico, pelo contrário, trabalha para o reforço dessa inibição, pela via da reapresentação das representações de meta impostas como medidas para uma diminuição, para a criação de uma mímica mínima de movimentos do corpo – ou seja, na direção de um silenciamento do corpo que o outro cômico, ao reapresentá-lo em desmedida, permite apaziguar pela marcação da diferença. Desse modo, se o chiste permite ao sujeito economizar inibição, o cômico lhe permite economizar o retorno do inibido: ele mesmo pode economizar na representação do que pede para ser representado, pois o outro faria isso para ele. Em 1927, retomando a discussão sobre o humor a partir da teoria das instâncias anímicas, Freud o conceberá como a contribuição mediada pelo supereu ao domínio do cômico: a pessoa do humorista retirou o acento psíquico do eu para deslocálo sobre o supereu. A esse supereu inflado, o eu pode parecer insignificante e pequeno, triviais todos os seus interesses, e frente essa nova distribuição de energia, ao supereu resultará fácil conter as reações possíveis do eu. (FREUD, 1927, p. 280)

Ele conclui descrevendo o que o humor nos diria: “Olhe, aí tens esse mundo que te parecia tão perigoso! Não é mais que um jogo de crianças, bom apenas para zombar de ti!” (FREUD, 1927, p. 282). Portanto, constitui-se uma tríade na qual a especificidade do que se define como cômico poderia ser assim resumida: economia de gasto de representação; comparação entre dois, mediada por uma representação de meta; contribuição do pré-consciente e, por dedução a partir do texto de 1927, contribuição do eu. O cômico deveria nos auxiliar a compreender algo sobre o eu enquanto instância de representação de si e do outro e das diferenças sustentadas nas comparações entre tais representações: é sobre a economia do eu enquanto medida de si mesmo e do outro que nos fala o cômico. E, nesse contexto, Freud (1905) indica onde se estabelecem tais medidas/diferenças do eu quando na própria unidade do cômico ele distingue três lugares nos quais se processa a comparação entre dois, capaz de promover uma diferença no gasto de representação: o espaço entre eu e um outro; o espaço interno de um outro; o espaço interno do eu.

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No primeiro caso, “o outro me apareceria como criança; no segundo, ele mesmo desceria à condição de criança; no terceiro, eu acharia a criança dentro de mim” (FREUD, 1905, p. 210). Cada uma dessas comparações corresponderia a um caso de cômico. No primeiro, a comparação se faz através do reconhecimento de um movimento desajeitado, tal como o de uma criança ainda às voltas com o domínio de seu corpo. No segundo – aquele da comicidade por situação, exageração, imitação e rebaixamento – o caráter infantil do pouco domínio das funções do corpo, da repetição ilimitada, do desmedido, da tendência a imitar os adultos ou subjugá-los, reapareceria no sujeito cômico perante o qual aquele que o assiste pode sentir empatia. Sobre o terceiro caso, da comicidade por expectativa, Freud (1905, p. 211) escreve: “se poderia tomar como ponto de partida a confiança da criança em suas expectativas e sua credulidade para compreender que se coloca em cena comicamente “como criança” quando sucumbe ao desengano cômico”. Mas como Watt, concebido como parábola sobre o cômico, proporia uma articulação desses três lugares através da temporalidade de uma história afim àquela da estruturação de um sujeito/personagem?

watt e o cômico Ha! Meu riso, senhor Watt, nome perdido na estrada. Sim. De todos os risos que propriamente falando não o são, mas que pertencem muito mais ao pio, três apenas segundo minha opinião merecem que neles nos detenhamos, a saber, o amargo, o amarelo e o sem alegria. Eles correspondem a – como dizer? – a uma escoriação progressiva do entendimento, e a passagem de um ao outro é a passagem do menos ao mais, do inferior ao superior, do exterior ao interior, do grosseiro ao sutíl, da matéria à forma (...) E o riso hoje amargo? Às lágrimas, senhor Watt, às quentes lágrimas (...) não percamos mais tempo com isso (...) O riso amargo ri do que não é bom, é o riso ético. O riso amarelo ri do que não é verdadeiro, é o riso judiciário. Não é bom! Não é verdade! Enfim! Mas o riso sem alegria é o riso noético, pelo focinho – ha! – assim, é o riso dos risos, o risus purus, o riso que ri do riso, homenagem estupefata à gozação suprema, em resumo, o riso que ri – silêncio por favor – daquilo que é infeliz. (BECKETT, 1968, p. 48).

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4 De acordo com a proposição freudiana de que o cômico se dá através de uma comparação, encontramos em Watt o reconhecimento do valor de uma comparação estruturando na narrativa a passagem do primeiro momento cômico para os outros: “De seu desejo de se aprimorar, de seu desejo de aprender, de seu desejo de se curar, o que restava? Nada. Mas isso já não era alguma coisa? Ele se via como ele tinha sido então, tão pequeno, tão pobre. E agora? Menor, mais pobre. Não era isso já alguma coisa? Tão doente, tão só. E agora? Mais doente, mais só. Não era isso já alguma coisa? Como o comparativo é alguma coisa. Que ele seja mais que seu positivo ou menos. Que ele seja menos que seu superlativo ou mais.” (BECKETT, 1968, p. 154). Com essa constatação fecha-se o capítulo dois e inaugura-se a diferença narrativa do capítulo três, iniciando assim a história do deslocamento temporal da personagem entre os lugares do cômico.

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Quando, no capítulo I, Watt entra na casa de Mr. Knott, senhor a quem ele deverá servir durante uma temporada, seu antecessor lhe faz uma “breve exposição” de sua própria estadia na casa, na qual lemos o trecho transcrito acima. O livro Watt pode ser lido como uma parábola sobre a “escoriação progressiva do entendimento” perpetrada por um herói cômico que deve caminhar sozinho de um a outro desses risos. Sem poder aprender pela experiência do outro que lhe fala, Watt é exortado por esse a se colocar no ponto de partida (o riso amargo) de uma jornada “sem precedentes” (BECKETT, 1968, p. 66).4

primeiro tempo cômico: o desfiladeiro das séries / o palhaço-palavra em queda No primeiro momento da parábola não temos acesso à fala da personagem Watt. No trem ele encontra um outro que “começava pelo essencial”, ou seja, nomeando a si mesmo. Este que começa pelo próprio nome dirige a Watt a pergunta sobre o lugar para onde viajava. Após essa pergunta lemos: “Watt nomeia o lugar”; “Watt nomeia o lugar novamente” (BECKETT, 1968, p. 29). Trata-se, assim, não da transcrição de uma fala, mas sim da inscrição “essencial” de um nome próprio enquanto lugar ao qual se dirigirá uma pergunta – de acordo com o nome próprio Watt/What. A diferença entre os dois personagens é explícita nesse primeiro encontro: enquanto o outro lhe interroga a partir do que está escrito no papel e na lei, “Watt não escutava nada, por causa de outras vozes que iam lhe cantando, gritando, dizendo, murmurando, coisas incompreensíveis na orelha. Essas vozes, se elas não lhe eram conhecidas, não lhe eram nem menos desconhecidas” (BECKETT, 1968, p. 30). Watt não compreende a pergunta que se dirige a ele. E, nesse momento, sua viagem começa a assumir uma primeira forma: a de uma seqüência de séries intermináveis de palavras que se desdobram em combinações infindáveis. Será assim no incidente pai-filho Gall; sobre os procedimentos visando à alimentação de Mr. Knott; os procedimentos para dar o resto de comida aos cachorros; sobre a família dos que trazem os cachorros; sobre o enamoramento com a peixeira etc.

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As séries se sucedem em Watt quando a possibilidade de uma significação para a palavra se desmorona ao lado da persistência da pergunta por ela: “essa fragilidade da significação imediata não lhe valia nada, a Watt, pois ela o obrigava a procurar uma outra, uma significação qualquer ao que passou, a partir de uma seqüência de imagens” (BECKETT, 1968, p. 73); “mas qual era essa busca de uma significação nessa indiferença em relação à significação?” (BECKETT, 1968, p. 75). Na desmontagem da possibilidade de usar a palavra pot, conclui-se que “Watt se encontrava agora rodeado de coisas que, se elas consentiam de ser nomeadas, não o faziam senão por assim dizer que ‘leur corps défendant’” (BECKETT, 1968, p. 81); porque ele podia sempre esperar, de uma coisa da qual ele não soube jamais o nome, poder aprendê-lo, um dia, e assim se apaziguar. Mas, tratando-se de uma coisa cujo verdadeiro nome cessou, repentinamente ou pouco a pouco, de ser o verdadeiro nome para ela, uma tal esperança lhe era interditada. (BECKETT, 1968, p. 82)

O outro, nesse contexto, mesmo que nomeie, não resolve a dúvida: se o outro diz, isso não poderia dizer da verdade do nome, constituir essa verdade, mas apenas dar a esperança para Watt de que um dia, curado, ele também poderia nomear como o outro nomeia – portanto, o outro só pode dirigir a Watt um ponto de interrogação. Ele se cansa esperando receber/perceber uma resposta do mundo: “e assim no começo, espírito e corpo, Watt obrava sua velha obra. E assim Watt, tendo aberto com sua varinha essa caixa de ferro branco, vê que ela estava vazia” (BECKETT, 1968, p. 141). Descoladas de qualquer significação, alheias a um lugar de nomeação que pudesse sustentar uma correspondência entre elas e as coisas, as palavras se fazem mera combinação de barulhos: coaxar das rãs, fala dos outros reduzida a um “cui, cui” dirigido a um pássaro, um barulho estranho escutado entre as flores, “plopf, plopf” (BECKETT, 1968, p. 153). Leitores de Watt, reconhecemos em suas infindáveis séries desse primeiro momento narrativo algumas cenas cômicas do cinema – Chaplin, o Gordo e o Magro. Funcionando segundo uma mola interna que em si mesma encontra a força que impulsiona sua perpetuação, as cenas se desdobram em um crescente que parece inesgotável. Apenas a destruição de todos os elementos passíveis

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5 Do mesmo modo como a palavra de Watt se desdobra em séries excessivas, assim também o seu corpo movimenta-se com um excesso de movimentos afim à representação cômica: para ir para a frente, ele deve jogar seu corpo para cada um dos lados. Ainda sobre a simetria entre o que é da ordem da representação pelo movimento do corpo e o que é da ordem da representação da palavra, lemos em Robinson (1985, p. 169): “do mesmo modo que Watt andava às avessas, do mesmo modo ele conversava recuando.” O cômico da personagem de Watt é duplamente cômico – seu corpo e sua palavra são cômicos – porém, enquanto obra escrita, é do cômico da palavra que ele retira sua realidade.

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de serem destruídos, dos erros passíveis de serem cometidos, dos equívocos passíveis de serem perpetrados, apenas au bout a cena pode encontrar a sua parada – enquanto a platéia ri desbragadamente com a seqüência crescente de infortúnios. F. M. Robinson concebe o cômico da escrita de Beckett como “equivalente verbal de um palhaço cambaleando continuamente sem ser capaz de cair” (ROBINSON, 1985, p. 149). O fracasso da linguagem, assim como o do palhaço, apresenta-se cômico na medida em que, ao mesmo tempo, se impõe uma impossibilidade de parar: “a experiência cômica é dupla e simultânea: nós vemos, ironicamente, que a máquina não funciona, e nós vemos que (...) ela funcionará até que ela se realize a si mesma em seus próprios termos” (ROBINSON, 1985, p. 151). Trata-se, portanto, de construir o registro poético da linguagem como estrutura paradoxal do sujeito, configurando a comédia de um impasse: “os protagonistas de Beckett almejam descansar e são compelidos a mover-se, almejam silêncio e são compelidos a falar e escrever (...) são oprimidos pelo sentido do irracional embora sejam compelidos a racionalizar” (ROBINSON, 1985, p. 158). Se, para Beckett, o paradoxo do artista é justamente aquele de ser obrigado a expressar ao mesmo tempo em que não pode expressar, Watt realiza esse paradoxo para o autor que ansiando “pela falta da fala então inventa um protagonista quase sem fala e depois fala sobre ele. A falta de palavras é contida no interior das palavras, mas claro que isso não pode ser, e então resulta uma comédia da linguagem” (ROBINSON, 1985, p. 183)5. Portanto, o cômico de Watt revela certo paradoxo da linguagem que, para esse comentador, é compreendido como o que ata nela sem-sentido e sentido, nada e presença, absurdo e necessidade. Tratar-se-ia aqui de um cômico afim ao riso amargo, ao riso que riria do que não é bom? Watt procura o tempo todo se agarrar a algo que possa justificar a nomeação, ele a busca, mas sua busca é tanto infatigável quanto fracassada, quanto mais ele busca seu ponto de parada, mais ele se enreda em seu movimento e a amargura do fracasso de quem não pode abandonar a tarefa se desdobra em cada nova série. Ele cai, mas sua vertigem almeja o repouso e essa diferença o exaure. Ao mesmo tempo, se o riso amargo é o riso ético, compreende-se que o primeiro movimento cômico de Watt desenhe

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o impasse de um sujeito que não pode atribuir à sua própria palavra um valor: onde encontrar o que justificasse um ponto de parada, dando a certeza para uma nomeação? Ele não encontra esse ponto e suas palavras continuam cambaleando, sem encontrar o chão – elas persistem ecoando seu fracasso. A estrutura narrativa do primeiro momento do texto nos permite associá-lo ao que Freud escreve sobre o cômico dado pela comparação a um outro rebaixado à condição de criança e que em uma situação de exageração exporia o embaraço pertinente ao “desamparo infantil”. Nesses casos, escreve Freud, a exageração e a repetição sustentam-se em uma “carência do sentido de medida”, adquirido apenas posteriormente e que inibiria tais atividades anímicas. Mas no primeiro Watt que encontramos em Beckett o cômico se faria em um outro cujo funcionamento da linguagem teria sido rebaixado, exagerado e repetido em sua desmedida infantil. Não é, portanto, de um outro cômico em seu exagerado movimento do corpo (como o palhaço) ou em seu descontrole das funções corporais, mas sim de um outro que encenaria um exagero infantil no corpo da palavra. O cômico de Watt, nesse primeiro momento, não apontaria, então, apenas para o nada, o sem sentido e o irracional colados à realidade mesma da palavra, mas sim para o retorno de uma realidade desmedida da infância da palavra e do lugar que essa reservaria ao sujeito. Assim como Watt, o afásico, segundo Lacan, não perde sua atenção pela linguagem, pelo contrário. Para ele, deve-se reconhecer a persistência e insistência de uma intenção nesses sujeitos: eles insistem na linguagem. Porém, tal como a personagem de Beckett, o afásico tanto mais insistiria na linguagem quanto mais nessa se mostraria a sua “impotência verbal” (LACAN, 1955, p. 254) - o sujeito nela insiste justamente na medida em que não alcança o “cerne do que quer dizer” (LACAN, 1955, p. 250), que permanece “girando em torno” sem chegar à palavra (LACAN, 1955, p. 254) e se mantém ao lado do verbal e não o “encarna” (LACAN, 1955, p. 249).6 Haveria, portanto, uma persistência que se manteria pelo deslocamento do sujeito da linguagem. Mas, qual deslocamento? Lacan fala sobre um duplo procedimento afim a uma corriqueira troca de palavras entre falantes: um apagamento da atenção ao som, à forma daquilo

6 Lacan (1955) trabalha indiretamente, através da escolha de suas palavras, uma oposição entre psicose e afasia: enquanto na primeira o sujeito faria corpo, responderia e preencheria com libido o significante, já o afásico não chegaria nunca a encarnar o mesmo significante – desse modo, se no delírio há um excesso de significação, na fala afásica essa parece como faltante, tal como no primeiro momento de Watt. Mas como compreender essa diferença que implica posições distintas do sujeito da linguagem na psicose, na afasia e também na neurose? Buscamos a chave para essa compreensão nos deslocamentos diferentes entre simbólico, real e imaginário, constitutivos da frustração, privação e castração.

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7 Lacan não desconsidera no Seminário III a natureza da linguagem enquanto exercício sem parada; pelo contrário, ao conceber a significação como sempre remetida a uma outra significação, ele postula um funcionamento para essa que aparentemente se igualaria à queda do primeiro Watt, e se pergunta se o discurso não seria sempre sem “ponto de parada”, sempre “falhado”. Enfim, dada essa concepção de linguagem, por que não estaríamos todos fadados ao mesmo enredo de Watt? Para responder à pergunta sobre o que nos faz parar, Lacan diz, nesse momento de sua obra, sobre o “significante no real” enquanto impacto do fenômeno que apresentaria ao sujeito o “significante enquanto ser ou não de linguagem”. Supondo-se que a posição de Watt na linguagem seja afim à privação (e, efetivamente, no início da história Watt é uma personagem privada de falas), compreende-se que o sujeito deslocado para o real estabeleceria uma outra relação com o suposto significante no real, diferente daquela do sujeito da castração. Poderíamos falar de um excesso de real, de uma desmedida deste, que esvaziasse ou fizesse escoar a significação, ao contrário do que Lacan descreveria como uma fixação/ parada de significação dada justamente pelo recorte/limite do real pelo significante? Dada essa posição inicial de Watt na linguagem, aparentemente o que lhe permitiria a parada na queda das significações estaria dado em um outro lugar que, seguindo Beckett, seria organizado pelo cômico.

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que se ouve permitiria que se completasse o ouvido enquanto significação - aquele que ouve falaria a significação do ouvido na medida em que pudesse também apagar a imagem do que vem como som falado do outro. Ora, em Watt temos justamente a persistência da atenção às imagens das palavras, a insistência delas e não o seu apagamento: Watt não pode se desvencilhar dessas, onipresentes, o que, em contrapartida, o desloca do lugar no qual poderia completar o ouvido pela atribuição de significação. Paradoxalmente, ele espera da carne/matéria das palavras o que apenas um sujeito concebido como lugar de significação poderia fazer encarnar. Mas, se por um lado trata-se da preponderância do elemento de representabilidade da palavra, exacerbação de sua imagem, trata-se, por outro lado, de momento de retorno do apagado lugar de atribuição de significação pela insistência da pergunta mesma pela significação, a qual constitui o próprio enredo da história de Watt. A palavra cômica de Watt, em seu primeiro momento, desfila sua autonomia como coisa do mundo, rivalizando com os objetos e não podendo, portanto, ser a eles atribuída, posto que não há alguém que possa ser agente dessa atribuição – e, de acordo com a história que se conta, Watt também principia sem narrador e sem a presença do pronome eu. Tal como o palhaço em sua infindável queda, Watt principia cambaleando, enquanto nós, espectadores/ leitores, nos perguntamos: mas ele não está vendo/ouvindo o que ele está fazendo/falando? Se ele visse/ouvisse, ele pararia... Mas ele não pode se ouvir em sua palavra e nisso/nessa reside todo o seu desamparo.7

segundo tempo cômico: o jogo do espelho – a imagem que escapa7 Alguém que escuta e alguém que fala aparecem no capítulo III e com eles um eu que descobrimos agora como narrador franqueando nosso acesso a Watt. Nesse novo contexto narrativo, tanto nosso exercício de leitura como a fala de Watt se modificam. Distanciados de Watt, assistimos agora ao encontro e comparação entre este e seu narrador, e, significativamente, nesse momento pela

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primeira vez temos acesso a sua voz, podemos escutar a sua fala: baixa, rápida, única, ao mesmo tempo tão baixa e tão rápida, particular, sem trabalho de composição, sem incerteza quanto a como continuar, “Watt falava como alguém falando sob ditado, ou recitando, como um papagaio, um texto tornado familiar pela força da repetição” (BECKETT, 1968, p. 161). A partir da escuta dessa fala, ocorre um novo encontro entre eles, o qual romperia um primeiro tempo em que ambos se encontravam próximos e fechados em um estado de natureza que aparentemente prescindia das palavras ou pelo menos do reconhecimento daqueles que as proferiam. Mas como se dá tal encontro de conseqüências tão marcantes na estrutura do texto? Antes de cada qual passar por uma brecha de seu próprio parque e adentrar um espaço intermediário entre esses, onde poderão ficar juntos, descreve-se o encontro que se compõe, por sua vez, como cena de comparação: eu reconheço (...) no parque vizinho, andando em direção à mim ao contrário ... quem? Watt em pessoa. Sua retrogressão era lenta e ondulante, pelo fato sem dúvida dele não ter olhos atrás da cabeça (...) Mas sempre sem murmúrio ele recuava, até escorregar contra o muro (...) Depois ele deu meia-volta, com a intenção provavelmente de retornar como ele havia vindo, e eu vi seu rosto com toda a frente de seu corpo. Ele tinha o rosto ensangüentado, as mãos também, e a cabeça cheia de espinhos. Sua semelhança, nesse momento, ao Cristo dito de Bosch (N.G. n.?) era tão notável que eu fui abalado. E no mesmo instante eu tive instantaneamente a impressão de me encontrar diante de um vasto espelho que me reenviava meu parque, e meu muro, e eu mesmo, e até mesmo os passarinhos agitados no vento, ao ponto que eu olhei minhas mãos, e tateei meu rosto, e o meu crânio luzente, com uma inquietude tão real quanto injustificada. Porque se havia alguém sobre a terra, nesta época, digno de ser julgado sem semelhança com o Cristo dito de Bosch (N. G.n.?), sem querer me gabar era bem eu. Ora, Watt, eu exclamei-me, a ti então bem arranjado, não tem erro [pas d’erreur]. Sim não é [Pas ce n’est oui], respondeu Watt. (BECKETT, 1968, p. 164).

Segundo N. Ramsay (1984), Sam, a personagem, que agora narraria a história em primeira pessoa, inventaria Watt, distanciando-se de si mesmo ao assumir para si o papel daquele que narra o outro e,

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portanto, distanciando-se da própria dissolução da linguagem agora reconhecida nesse outro do espelho – desse modo, Sam poderia, então, teorizar e conceber uma compreensão para sua língua desconexa reconhecida alhures. Do mesmo modo, a construção da estrutura narrativa nesse trecho da obra destrói em nós leitores nossa colagem ao texto, interpondo entre nós e ele a presença de um narrador. Trata-se justamente do instante de aparição no texto do pronome eu, referida aqui a uma estrutura especular: na cena do reconhecimento de um outro em espelho surge um eu que fala e escuta a fala de um outro. Mas, por que em Watt é uma cena cômica que se representa na estrutura especular afim à invenção de um eu? A inclusão nesse trecho do texto de um narrador que se compara a um outro concorda com o cômico descrito por Freud como dado pela constatação de uma diferença entre dois: entre eu e um outro. Assim, Sam se coloca frente a Watt exatamente nos termos da comparação postulada por Freud: entre eu e o outro se estabelece uma igualdade (ele é igual a mim quando criança) e uma diferença (eu agora sou diferente dele). Sam se acha perante Watt como se diante de um espelho que reenvia para ele exatamente o que ele tem do seu lado, mas, através de uma segunda comparação – intermediada pela imagem do Cristo de Bosch (representação de meta) – estabelece-se uma diferença: Watt é semelhante ao Cristo, mas nada é menos semelhança a esse Cristo do que Sam, embora, entre si, Sam e Watt sejam semelhantes. O texto da narração de Sam traz as marcas de sua repulsa pela realidade aportada pela visão de Watt, evidenciando, como escreve Freud sobre esse momento de comparação cômica, o “prazer infantil apagado para o adulto” reapresentado pelo outro frente ao qual agora se marca distância pelo riso. Entre ambos, como narra Sam, não há atração, um impulso que leve ao encontro, mas apenas um encontro que se faz ao acaso: “o desejo de nos encontrarmos nos faltava” (BECKETT, 1968, p. 162). A diferença, portanto, é antes de tudo um não querer estar no mesmo lugar (diferença na representação de meta que no texto é representada pela imagem do Cristo). Trata-se, desse modo, da postulação de um eu que surge justamente no lugar no qual se abriga uma ficção de si mesmo. Mas qual a especificidade dessa ficção quando ela é encenada comicamente?

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A cena no espelho descrita por Beckett através de Sam não diz sobre o júbilo e o lúdico descrito por Lacan (1949) no momento do encontro da criança com sua imagem, quando ela seria capturada por uma forma que anteciparia ortopedicamente um acabamento compreendido como engodo e ilusão, pelo fechamento do sujeito em uma significação.8 Ela remeteria a uma outra cena, muito comum ao domínio cômico, na qual se cria a falsa ilusão de um espelho pelo ato de imitação de uma personagem dos movimentos de uma outra. Nessa cena cômica, revela-se um outro no lugar onde se esperava o encontro consigo mesmo – tal cena comporia, então, o avesso da ilusão apontada por Lacan, o momento de seu desencanto, o reverso que faz do encontro com o igual ao mesmo tempo também encontro com o que fará sempre uma diferença no eu. Aquele que inexistia no primeiro momento narrativo de Watt, enquanto possibilidade de atribuição de significação para as palavras, surge no espelho em um segundo momento como o que não é capturado pelo outro, como o que lhe escapa como diferença. E os efeitos desse estranhamento aparecem novamente sob a forma de um funcionamento da linguagem: não mais séries infinitas sem parada, desfiladeiros de puras imagens, mas sim a presença de um sujeito que narra a ação de um outro sobre a matéria mesma dos significantes. Encontramos, então, Sam descrevendo longa e minuciosamente sua escuta da ação de Watt sobre a linguagem, sobre seus modos de uso diferenciados das palavras. O eu reconhecido na cena cômica não participaria do fechamento identificatório dado por uma significação, mas sim do reconhecimento de uma ação pela qual o sujeito faz diferença sobre a matéria do significante. Beckett expõe no corpo desengonçado e desconjuntado de Watt a máxima de que, já do ponto de vista da estruturação do corpo próprio, a unidade entrevista no espelho nunca se perfaz, ela falha. Mas, assim como o corpo de Watt, também o corpo de sua palavra é exposto como sendo aquilo que faz resistência a ser fechado e acabado em uma significação: ele persistirá sempre fazendo diferença ao se reapresentar em sua qualidade excessiva de pura representação, matéria outra diferente daquela que se faz a significação. Riso amarelo, o cômico transita nesse momento pela imagem como aquilo que não é verdadeiro, julga-a e ri de sua ilusão

8 T. J. Cousineau (1979), em Watt: language as interdiction and consolation, propõe investigar o paradoxo beckettiano da linguagem não a partir da questão da racionalidade, mas sim da suspeita de que “em toda a ficção de Beckett o homem é habitado por uma falsa consciência”, uma consciência de natureza ilusória. Para tanto, ele usará a teorização lacaniana sobre o estádio do espelho e Mr. Knott, em cuja casa Watt percorre os caminhos da dissolução da significação, será interpretado como o grande outro – e não como em Robinson (1985), que lê Mr. Knott como Naught (nada/zero). Para Cousineau, Beckett escreveria em Watt sobre o desmascaramento e a destruição da autoridade do Outro, tomado como “espaço vazio” que expressaria seu poder de interdição através da linguagem. Seu protagonista dependeria, então, da redenção dada pelo abandono da realidade formal da palavra – alienada na imagem tal como o moi alienado em sua imagem no espelho – e a assunção de sua realidade como sendo aquela do sentido – portanto, aquela que interdita o acesso à coisa, mas ao mesmo tempo consola com a perspectiva do sentido. Assim como Nietzsche e Freud, Beckett apontaria para o nada que sustentaria o lugar habitado pelo sujeito, mas, na perspectiva de Cousineau, através da desmontagem da consciência ilusória do sujeito. Infelizmente Cousineau não avança sua leitura para investigar como Beckett constrói a estrutura especular em seu registro cômico e, desse modo, conclui reconhecendo apenas o que se estrutura em outro lugar (naquele do sentido) e não na especificidade da pró-

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pria cena e do sujeito cômicos descritos no espelho em Watt. Já N. Ramsay (1984) concebe todo o capítulo III de Watt como correlato de uma cena especular cômica em que dois palhaços, frente a frente, fingem que há um espelho entre eles, mas não a remete às teorizações da psicanálise. Para além dessas primeiras leituras, nosso trabalho buscará investigar como a cena no espelho enquanto cômica poderia ser ela mesma, em sua especificidade, lugar de estruturação do sujeito da psicanálise.

9 Para Lacan (1955) a significação é por definição da ordem do imaginário, portanto, é da ordem do que se fecharia na relação especular. Já para Watt em seu primeiro momento imagem da palavra e significação são opostas – onde há imagem Watt não pode se prender a uma significação. Tal diferenciação impede que façamos uma assimilação fácil entre os dois contextos e deve, pelo contrário, chamar a atenção para a importância de se investigar a especificidade que a noção de Bild tinha na obra freudiana e como essa estará relida em Lacan a partir dos registros do real e do imaginário. Um modo de se pensar tal diferença poderia ser buscado em Freud na oposição entre imagem e imagem de movimento do corpo próprio, sendo que a segunda estaria referida ao jogo do espelho enquanto movimento de repetição de um movimento do corpo próprio pelo qual o sujeito atribuiria significação, enquanto no real a imagem seria sempre aquilo que não pode ser capturado pelo movimento do corpo próprio.

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de transcendência e acabamento. Mas há na passagem de Watt pelo riso amarelo um a mais. Mantida na diferença de matéria dura de que é feito o efêmero da significação, a palavra é submetida por ele também a variados procedimentos de diferenciação: cortar, desmontar e montar, virar e revirar, inverter e intercalar. Na medida em que há na estrutura especular o estabelecimento de uma diferença, o próprio sujeito passa a ser aquilo que é capaz de incidir como diferença sobre o significante tomado em última instância como pura matéria/imagem. Watt é descrito mastigando a palavra, submetendo-a como coisa ao jogo no qual se mostra sua fragilidade significativa, retomando-a como pura representação.9 Tal como na cena dos palhaços no falso espelho, aqui um outro escapa desde o lugar no qual se esperava encontrar a totalidade da identidade dada por uma imagem, encenando o ridículo daqueles que são pegos no momento de desenlace de uma ilusão. Mas esse jogo pelo qual se inscreve um ridículo traça também ao mesmo tempo as marcas da aparição de um sujeito que já está para além do real.

terceiro tempo cômico: rir de si mesmo pose tão lamentável que ele se deu conta disso, e teria sorrido, se ele não estivesse muito fraco para sorrir, ou rido abertamente, se ele estivesse forte o bastante para rir abertamente. Internamente ele se descontraiu, certamente com certeza, e esqueceu um instante suas preocupações, mas menos do que se ele tivesse tido a força de sorrir, ou de rir abertamente. (BECKETT, 1968, p. 230).

No terceiro tempo de sua parábola, Beckett nos leva com Watt para fora da casa de Mr. Knott, após o intermezzo no qual o outro no espelho (Sam) toma a sua palavra para falar da fala de Watt. Mas a palavra que prossegue nesse terceiro momento não é entregue ao eu que surgiu anteriormente no espelho e também não será mais a palavra do narrador oculto do primeiro momento. De acordo com a passagem que encerra o encontro de ambos, as personagens passam a viver “ora longe um do outro, mas ora juntos, para se esvanecer confundidos” (BECKETT, 1968, p. 221). Assim como a palavra e o eu são encontrados em Watt na decomposição de uma

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diferença, o sujeito de sua história sobreviverá também em uma diferença que na qualidade de intransponível passará a ele um espaço de identificação. Em seu terceiro tempo cômico, Watt caminha para a verdade de seu nome próprio: sujeito que não se constitui no espelho pela captura em uma significação, mas sim pela própria pergunta pela significação a qual reafirma a diferença entre esses dois lugares. E ele será capaz, então, de rir de si mesmo – mesmo que efetivamente não ria. Chega-se, assim, ao riso sem alegria, o riso que ri do que é infeliz, o riso noético de quem sabe do próprio destino infeliz, mas que aí mesmo encontra motivo de riso. Ele não precisa de um outro para rir – está sozinho, consigo mesmo, e pode em si mesmo aferir a diferença que lhe permite o cômico. Nós também, leitores, não precisaremos mais de Watt para caminhar comicamente em nossa própria infelicidade. Continuaremos nos indagando sobre a significação das imagens que se aproximam e fogem, mas, calejados pelos enganos dessas, olharemos para elas como quem olha para nosso “velho erro, esse erro de um tempo passado” (BECKETT, 1968, p. 236). Saberemos da perda de nosso lugar, mas também que é menos cansativo ir para frente do que para trás, que não importa ir para o destino “mais próximo” ou o “mais distante” (BECKETT, 1968, p. 255), contanto que possamos escutar quando dizemos o destino. Riso cômico “mais tardio” e “distante da criança”, o riso dado por uma comparação dentro do eu é definido por Freud como “comicidade da expectativa” e descrito como pertinente a um “desengano”: apenas o adulto poderia marcar a diferença entre a crença outrora sustentada e a posterior constatação do próprio engano arraigado a tal crença. Apenas aquele que pode marcar em si essa diferença, reconhecer-se a si mesmo como lugar mortal de logro, do que não pode se igualar a uma significação, poderia encontrar a si mesmo no lugar do cômico. Enfim, do mais exterior ao mais interior, a escoriação progressiva do cômico em Watt revelaria em seu tempo noético a verdade do sujeito constituído em uma diferença que o desloca para o lugar de uma pergunta pela verdade. A parábola cômica fala de um sujeito que, ao não apagar/limpar sua realidade de diferença, por fim pode se encontrar no lugar de uma pergunta:

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Esse casaco não tinha sido jamais, desde então, em nenhum momento lavado – senão imperfeitamente pela chuva e pela neve, e pela geada, e, claro, por ocasionais e furtivas imersões nas águas do canal – nem lavado a seco, nem revirado, nem escovado, e é sem dúvida por essas precauções que ele deve ter ficado, senão inteiro, pelo menos uno. (BECKETT, 1968, p. 226).

os tempos do cômico da afasia Se a afasia provoca um efeito cômico e se pudemos reconhecer três lugares/tempos distintos do cômico, também na afasia devemos reconhecer, como é evidente na clínica desses sujeitos, uma temporalidade. Os três tempos de Watt poderiam nos auxiliar a compreender o movimento através do qual o sujeito poderia sair do ocultamento afásico pela via de uma estrutura cômica afim ao privilégio da função de representabilidade e ao detrimento daquela da significação. De acordo com a concepção freudiana de que o cômico se perfaz pelo excesso e a desmedida na composição da cena representacional, também o sujeito afásico se constituiria na medida de um exercício representacional excessivo que deslocaria sua presença do campo da resposta/significação para aquele da própria pergunta por essa. 10 R. S. Doody (1991, p. 297) associa essa ação do afásico sobre a palavra ao jogo de desconstrução do significante proposto por Derrida e conclui que tal exercício ocorre “na afasia e não ocorre realmente na escrita” e que “aphasic discourse becomes work that makes more work”. O privilégio que a autora atribui ao discurso afásico a partir de uma leitura pós-moderna em contraposição a o que poderia ser uma leitura lacaniana da afasia poderia nos auxiliar a compreender as diferenças entre Lacan e Derrida a partir dos diferentes lugares reservados ao sujeito em suas teorias.

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Em um primeiro momento, a palavra persiste pela insistência de seu fracasso. Parece impossível, então, atar significação e som, onde o sujeito permaneceria oculto tal como aos leitores está ausente o narrador do primeiro Watt. Tudo se passa, então, como se apenas o real de um cérebro lesionado dominasse o espaço do ar/alma que sustenta o som da palavra – desfiladeiro sem pausa ou silêncio profundo.10 Como descreve Freud, o cômico, nesse momento, se faria no outro, rebaixado a um modo de funcionamento degradado no qual a ausência do reconhecendo e escuta de si mesmo levaria à desmedida e ausência dos pontos de parada. Momento do paradoxo do desfiladeiro das palavras de Watt, que não podem parar, mas que existem na realidade alheia a uma escuta que lhe possa reservar o lugar de uma significação. Assim como o primeiro riso de Watt, é amargo o cômico que se apresenta aqui: no lugar onde uma perda real evidencia a vulnerabilidade mortal do sujeito e de

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sua palavra, apenas o corpo da palavra insiste testemunhando a dificuldade de morrer. Em um segundo momento, um sujeito estranha-se diante de uma palavra que é e não é sua – momento em que surge um eu, mas estranhado, opondo-se à imagem, desmembrando-a, afirmando seu lugar pela ação imperiosa sobre o elemento corpóreo da palavra – ela não é a minha verdade, parece gritar aos ouvidos. Tal como no acting out, o sujeito se escuta, mas não se reconhece naquilo que escuta – e a presença desse sujeito imaginário se faz por uma ação brutal sobre a realidade imagética da palavra: ele a mastiga, procura-a entre os dentes, a passeia sobre seus lábios, reafirma-se justamente onde só ocorrerá estranhamento.11 E, nesse momento, lembramos do riso amarelo de Watt, quando um eu indica, envergonhando-se, a ambigüidade de sua distância/proximidade perante um outro – o cômico aqui se faz, como descrevera Freud, pela comparação entre eu e outro, quando o sujeito ao mesmo tempo se reconhece e se estranha no exercício de seu corpo próprio e do imaginário de sua palavra. Assim como em Beckett, o espelho cômico presentificado nesse momento da afasia refletirá o empenho imaginário que sustenta o movimento precário de captura na significação. No terceiro momento da afasia, encontrar-se-ia a resignação dada no retorno para o eu de um saber infeliz: marcado brutalmente pela verdade de sua realidade mortal e alheia a qualquer significação, o sujeito encontra-se apenas como pergunta por essa. Ciente de uma diferença intransponível entre significação e a matéria mortal pela qual essa se faz representação, ele não estará identificado nem à primeira nem à segunda, mas sim à própria busca pela significação que incide recortando uma palavra no real. Seu riso será sem alegria, mas portador de um saber, será noético, revelando o paradoxo do que se faz significação apenas enquanto pergunta por essa. E nesse tempo ele estará comicamente sozinho consigo mesmo – como escreve Freud, quando o cômico se faz no espaço de uma comparação interna ao eu, joga-se com a quebra das expectativas, a desilusão em relação às esperanças acalentadas ingenuamente. Aceitar carregar o que o tempo marcou nessas ilusões, tal como o casaco velho de Watt, jamais limpo, será o que poderá mantê-lo

11 Subjacente a nossa leitura está a hipótese de que tanto na afasia sensorial quanto na motora o lugar reservado ao sujeito em um primeiro momento é o mesmo, embora os sintomas de linguagem sejam aparentemente opostos: quer pela falta, quer pelo excesso de palavras, o sujeito estaria oculto no desfiladeiro do real do corpo, restrito à matéria corporal da qual não se recortou ainda uma representação. Para tanto é necessário postular que um primeiro momento da jargolalia não concordaria com a apresentação do que poderíamos compreender como movimentos do corpo próprio, na medida em que, seguindo as indicações de Lacan, as palavras desses afásicos não estariam encarnadas. Compreende-se que se a significação é da ordem da atribuição dada na captura no espelho de um movimento do corpo próprio, encontraríamos ausentes aqui tanto significação quanto movimento de corpo próprio.

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11 D. Forest (2005) em Histoires des aphasies conclui o capítulo dedicado à revisão da compreensão da fala afásica, proposta pelas concepções lingüísticas referentes aos níveis de elaboração da frase, reconhecendo que as mais recentes abordagens desse tema apontam para a necessidade de se atentar para o que seria a presença de uma estratégia do sujeito afásico na tentativa de chegar a uma fala da qual estaria privado. A fala afásica seria, nesse contexto, já uma ação do sujeito sobre a língua que poderia usar da desmontagem de seus padrões gramaticais como tática de se chegar à fala. Mas o autor chama a atenção também para o caráter não intencional ou de deliberação consciente dessa suposta ação do sujeito sobre a linguagem na afasia, concebendo-a como automatismo que revelaria a “maquinaria” estrangeira à consciência da própria linguagem. Também aqui pudemos reconhecer em Watt e no cômico da afasia esse dizer a mais constituído em um exercício de desmontagem da língua. Porém, trata-se em nossa pesquisa de propor o desdobramento dessa hipótese pela investigação do que poderia ser para o sujeito da psicanálise o suposto automatismo dessa ação sobre a língua de modo a permitir a ponderação sobre a eficácia ou não das diversas estratégias pertinentes a essa desmontagem para a re-inscrição desse sujeito na língua. Ou seja, no interior do campo clínico da psicanálise, levantamos a hipótese de que a particularidade do que em cada caso retorna como pai imaginário na privação – tal como concebida por Lacan (1956) – esclareceria por que na clínica

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como um sujeito na exata medida de uma indagação pela significação. Porta de saída do momento precedente em que não há a escuta e, portanto, a série cômica se desdobra sem parada, como jogo que se sustenta em si mesmo, a palavra propriamente afásica do segundo tempo cômico é também porta de entrada na estruturação de um sujeito nomeado como pergunta pela significação (Watt/ What). Robinson (1985, p. 165) escreve que Watt, como Cristo, “encarna o paradoxo do espiritual habitando o físico, aqui tornado um paradoxo cômico”. Voltando ao início da história de Watt, lemos que a pergunta que seu interlocutor lhe faz no princípio de sua viagem é justamente sobre se um rato, ao comer uma hóstia consagrada, comeria ou não o corpo de Cristo. Assim como Beckett na parábola de Watt compreendeu comicamente esse paradoxo, também a clínica das afasias pode ser compreendida como caminho a traçar entre o momento da lesão – tomado como aquele que iguala a boca do homem àquela de um rato – e o tempo de sua diferenciação. Nesse percurso, a verdade da parábola de Watt nos precederia, ensinando sobre a fragilidade de uma diferença que se dá no momento mesmo em que nos fazemos capazes de procurá-la, inscrevendo-nos no riso afim ao tempo efêmero da mera possibilidade de indagação pela significação dada por um exercício desmedido de retroapresentação. Resumo: Nesse trabalho primeiramente lemos Watt de Samuel Beckett como parábola de uma suposta temporalidade do cômico (riso amargo, riso amarelo e riso sem alegria) a qual aproximamos aos três lugares de comparação que segundo Freud propiciam o efeito cômico (o outro, o eu frente a um outro e o eu). Em um segundo momento, partindo de uma indicação de Lacan sobre o efeito cômico da fala dos sujeitos afásicos, investigamos a pertinência do reconhecimento de um semelhante deslocamento por esses três tempos/lugares afins ao cômico para a compreensão do percurso a ser percorrido pelo sujeito atingido pela privação da linguagem.

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Abstract: In this paper, first I read Beckett’s novel Watt as a parable of a presumed timing of the comic (bitter laugh, hollow laugh and mirthless laugh) which I colligate with the three places of comparison that, according to Freud, promote the comical effect (the other, the ego opposite to another, and the ego). Second, beginning from a hint made by Lacan about the comical effect of the aphasic’s speech, I investigate if an acknowledgement of such a move in those three times/places belonging to the comic is pertinent to the understanding of the path that the individual suffering from langage deprivation has to pass through.

nem todo afásico chegaria ao sábio terceiro tempo de Watt. E, em contrapartida, reconhecemos nessa clínica a possibilidade de movimentar o saber teórico da psicanálise sobre como o seu sujeito se estrutura também enquanto representação e comicidade.

Keywords: comic, aphasia, Beckett, psychoanalysis. Resumen: En este trabajo, primeramente leemos la novela Watt, de Samuel Beckett, como una parábola de una supuesta temporalidad del cómico que relacionamos con los tres lugares de comparación que, según Freud, propicían el efecto cómico (el otro, el yo delante de un otro, y el yo). Después, partindo de una indicación de Lacan sobre el efecto cómico de la habla de los individuos afásicos, investigamos si el reconocimiento de un tal movimiento en eses tres tiempos/ lugares propios del cómico es pertinente para la comprensión del camino que deve atravesar el indivíduo que padece la privación del lengaje. Palabras clave: cômico, afasia, Beckett, psicoanálisis.

bibliografia ANZIEU, D. Beckett et le psychanalyste. L’Aire: Archimbaud, 1992. BECKETT, S. Watt. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968. COUSINEAU, T. J. Watt: language as interdiction and consolation. In: Journal of Beckett Studies, 4, 1979, p. 14-34.

Palavras-chave: cômico, afasia, Beckett, psicanálise.

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DOODY, R. S. Aphasia as Postmodern (Antropological) Discourse. In: Journal of Anthropological Research, vol. 47, 1991, p. 285-303. FERENCZI, S. A Psicologia do Chiste e do Cômico. In: Obras Completas. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 133-144. FOREST, D. Histoires des aphasies. Paris: PUF, 2005. FREUD, S. Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten. In: Studienausgabe. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1989. vol. IV, p. 9-219. _________. Das Humor. In: Studienausgabe. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1989. vol. IV, p. 275-282. LACAN, J. Le stade du mirroir comme formateur de la fonction du Je. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 89-97. __________ Le Seminaire. Livre III. Paris: Seuil, 1981. __________ Le Seminaire. Livre IV. Paris: Seuil, 1994. PILLING, J. Beckett’s english fiction. In: The Cambridge Companion to Beckett. Cambridge University Press, 1995. p. 17-42. RAMSAY, N. Watt and the significance of the mirror image. In: Journal of Beckett Studies, 9. 1984. p. 21-36. ROBINSON, F. M. Samuel Beckett: Watt. In: Bloom, H. (org). Modern Critical Views: Samuel Beckett. Philadelphia: Chelsea House Publishers, 1985. p. 147-192.

e-mail: alessandra.caneppele@uol.com.br Recebido em 02/03/2007 Aprovado em 06/05/2008

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lo tradicional y lo moderno en los imaginarios sociales de la argentina en las décadas 1960 y 1970. su proyección literaria en el beso de la mujer araña de manuel puig

Nidia Burgos* Universidad Nacional del Sur Bahía Blanca, Argentina

A través de la historia, las sociedades se han entregado a la invención permanente de sus propias representaciones globales, ideasimágenes a través de las cuales elaboran modelos formadores para sus miembros, tales como “el buen ciudadano” o “el militante”. Aquellas representaciones constituyen los “imaginarios sociales”. Como señala Baczko (1999), para la consecución de los modelos pretendidos las sociedades recurren a representaciones colectivas que surgen del ámbito de lo imaginario y de lo simbólico. Los emblemas, los signos y los lemas dan una identidad y diferencian del resto. Con ellos, los miembros de una sociedad expresan sus aspiraciones, justifican sus objetivos, conciben su pasado e imaginan su futuro. Las maneras colectivas de pensar, creer e imaginar de los jóvenes en las décadas del ´60 y ´70 promovieron como ideales figuras tan determinantes y opuestas, como la del “guerrillero” y la del “hippie”.

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El análisis de aquellas representaciones colectivas nos permitirá esclarecer en qué medida sus promotores se apropiaron de modelos de sociedades industrializadas de Europa y Norteamérica y también en qué medida siguieron normas tradicionales de comportamiento de sus propias sociedades periféricas. El notable incremento de las comunicaciones entre los pueblos a partir del auge de las nuevas tecnologías: radio, cine y televisión, generó en la conciencia del intelectual latinoamericano un malestar creciente por la evidente situación subordinada de América Latina con respecto a los países desarrollados, pero simultáneamente, el triunfo de la revolución cubana en 1959 y su consolidación a lo largo de las décadas del ´60 y el ´70, fomentó el convencimiento de que ese estado de subordinación y marginación podría ser superado por “la revolución”. Esto generó una mística del compromiso, conjuntamente con ideales de sacrificio y de servicio y la propugnación del uso de la violencia para la consecución de aquellos fines. Esto trajo aparejado la sobrestimación de la muerte heroica y la valoración de un arquetipo a imitar: el militante guerrillero. Pero a su vez, existió otro segmento generacional, también perteneciente mayormente a los estratos medios, igualmente descontento del sistema existente, que generó otra figura contestataria pero diametralmente opuesta a la anterior, el hippie. Con un ideario pacifista y con propuestas que los marginaban de los hábitos convencionales de oferta y demanda procuraron separarse de una sociedad que despreciaban y que también los despreciaba. Buscaron formas de vida mediante las cuales procuraron marginarse pacíficamente del sistema económico-social imperante y por ende de sus compromisos y su violencia.

Thoreau, Henry David.(18171862) Escritor norteamericano, discípulo de Emerson. 2 Vinoba Bhaabe intentó en India una reforma agraria en forma no-violenta. Caminó por más de 200.000 aldeas de su país solicitando tierras para los desposeídos. 1

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Hubo asimismo en el medio, un importante sector social de procedencia bastante heterogénea, pero fundamentalmente intelectual que optó por seguir métodos no-violentos promovidos por los seguidores de las doctrinas de Thoreau1 (desobediencia civil: “no obedecer ley injusta”), Gandhi, Vinoba Bhaabe2 en India y su difusor occidental Lanza del Vasto. Si bien éstos, como los hippies, valoraban también el trabajo artesanal y procuraban autoabastecer sus necesidades sin depender en lo posible de la sociedad de consumo, no eran pacifistas, sino no-violentos, y en esto hay una diferencia

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fundamental, mientras el pacifismo va contra las consecuencias de un sistema social injusto, la no-violencia va contra sus causas, por lo cual es netamente revolucionaria y procura cambios radicales pero obviamente incruentos. En mayo de 1915 Gandhi fundó el Ashram Satyagraha. Veinticinco personas establecieron con él una comunidad que iba a servir de experiencia solidaria, de escuela de hombres, de descubrimientos económicos, de profundización de relaciones humanas. Era el ensayo de una microsociedad que iba a encontrar sus propias leyes, basadas en los principios espirituales de la Ley Superior de la Verdad y el Amor. Ahí practicaron los principios de no-violencia, de noposesión, de cooperación solidaria tratando de fundar el concepto de una nueva economía para el mundo. Gandhi promovía acciones creadoras pero también valores de actitud para saber sufrir y renunciar, aceptando la cárcel, la calumnia, hasta el martirio y la muerte misma. Vivir la vida de un paria era su ascética, renunciar a sus bienes, a su prestigio y a su status era su ofrenda para participar en la experiencia comunitaria que debía convertirse en escuela de hombres y de pueblos. Hombre espiritual intentó crear una India nueva, experimentando en el Ashram nuevas formas de convivencia para dar a la humanidad la evidencia de que pueden existir otros tipos de relaciones humanas y sociales, otros medios para emancipar al hombre de toda esclavitud, de toda miseria, pues él enseñó que hay una miseria opulenta: la del que carece de todo porque ambiciona todo, como asimismo una esclavitud a lo material y a convenciones que impiden la liberación íntima. Ideó normas para la persona y una metodología o técnica social. Por ello su método fue al mismo tiempo un llamado para los que buscan su liberación íntima, como para aquellos cuya meta es la liberación social, pues prácticamente es imposible una sin la otra. Tuvo continuadores como Vinoba Baahabe Y el Pandit3 Nehru4 en India. El líder negro Martín Luther King en EEUU y Lanza del Vasto en Europa, quien creó la “Orden laboriosa del Arca” en Greenoble (Francia) y procuró extenderla creando subsedes por toda Europa y América. Lanza del Vasto dejó una impronta muy fuerte en los medios intelectuales argentinos. La revista y la editorial Sur difundieron tanto la obra de Gandhi como la de Lanza del Vasto y éste fue acogido

3 Pandit: palabra sánscrita que designa un título honorífico otorgado en la India a los brahmanes eruditos, y especialmente a los versados en el estudio de la literatura sánscrita.

Nehru (1889-1964) fue discípulo de Gandhi y uno de los artífices de la independencia de su país. Fue primer ministro de la India entre 1947-1964.

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en sus numerosas visitas al país, por Victoria Ocampo, Vicente Cicchitti, Vicente Fatone y otros valiosos intelectuales argentinos que procuraron hacer conocer su mensaje. Estos grupos no-violentos no tuvieron casi incidencia en la política interior argentina porque no fueron mayoritarios, pero sin embargo alcanzaron resonancia internacional cuando durante el “Proceso militar”, dos de sus miembros relevantes fueron propuestos en Medellín como candidatos al Premio Nobel de la Paz: Vicente Cicchitti y Adolfo Pérez Esquivel. Finalmente éste último recibió el premio en el año 1980. Desestimando entonces el valor masivo de estos modelos no-violentos, consideramos que los dos perfiles que se ofrecían como figuras estructuradoras del imaginario social para los jóvenes de la época, eran el de militante y el de hippie. Estos modelos no habían surgido auctóctonamente, sino que provenían de metrópolis con campos intelectuales centrales. Cuando finalizó la segunda guerra mundial, EEUU y las principales ciudades europeas comenzaron a fijar las metas de desarrollo deseables para las naciones de Occidente. Los objetivos más atractivos fueron la modernidad lato sensu, industrialización, alto nivel de vida y Estado expansivo. Desarrollo y progreso se transformaron en conceptos de valor superlativo, por lo que el orden político y el régimen social que no lograban convertirlos en realidad a corto plazo eran considerados retrógrados y necesitados de una asistencia que no dejaba derecho a una existencia propia. Lo notable es que justamente aquellas metrópolis opulentas estaban generando a su vez un mayor número de descontentos con el sistema existente, especialmente entre los jóvenes, herederos directos de la generación beatnick y el existencialismo de posguerra. Ellos promovieron un brote contestatario que se oponía a la guerra, a los trabajos calificados y rechazaba en general los símbolos del status y del éxito social y profesional como valores estimables. Idealizaron románticamente la vida campesina y paralela y necesariamente despreciaron la cultura urbana. La ciudad representaba la decadencia, los hábitos de consumo voraz y la sede natural de la vapuleada “burguesía”.

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El movimiento hippie tuvo su cuna en las poderosas metrópolis estadounidenses y provocó una “sacudida” entre los miembros jóvenes de esa sociedad. Especialmente los menores de veinticinco años, quienes hacia 1966 fueron reconocidos “personajes del año” por la revista Time, que la consideró la generación más vocinglera de la historia. Esto a pesar de que propugnaban su ideología contestataria a través de periódicos subterráneos (o sea, no oficiales y desautorizados). El pionero de estos semanarios fue The Village Voice, que apareció en 1955 en Greenwich Village y fue durante una década el único diario disidente. Después fueron apareciendo en San Francisco, Chicago, Boston, Filadelfia y otras ciudades, tabloides similares de vida efímera, hasta que en 1964 apareció Los Angeles Free Press, conjuntamente con no menos de treinta publicaciones semanales o quincenales firmemente establecidas mientras otras cuarenta se iban abriendo camino, esto sin contar las publicaciones subterráneas de los colegios secundarios. El auge de esas publicaciones fue tal que llegaron a constituir un sindicato de prensa subterránea (UPS) que agrupaba los periódicos anti-institucionales, de Nueva Izquierda, orientados hacia la juventud. Vale aclarar que los subterráneos no estaban unidos en cuanto a una metodología, ni alineados en lo que respecta a todas sus metas específicas, pero clamaban al unísono por algo “distinto” al establishment. Jerry Hopkins, en 1967 recopiló en Los Ángeles una especie de antología de textos subterráneos (ensayos breves, poemas, declaraciones, dibujos, editoriales, avisos y notas que abarcaban temas tan variados como política, educación, drogas, sexo, arte, censura, religión, etc) que dio a la imprenta en 1968 bajo el título The Hippie Papers, que tuvo su edición en español al año siguiente en Biblioteca de las Cuestiones bajo el título de El libro Hippie, con una portada de Hermenegildo Sabat y el sello de Editorial Brújula. Así se difundieron en la Argentina estas propuestas contestatarias provenientes de la zona marginal de la sociedad opulenta norteamericana y que prendieron prioritariamente en los jóvenes de la clase media estudiantil de la Argentina. Por entonces, desde marzo de 1966, se había implantado el régimen del general Juan Carlos Onganía que limitaba fuertemente las libertades individuales y que había desplazado una democracia débil en la que pocos creían por

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entonces. El descontento crecía, pero los cambios anhelados no pasaban por el camino democrático que se hallaba por entonces totalmente desacreditado. Los jóvenes radicalizados luchaban por el logro de un cambio revolucionario por vía violenta, los hippies, por un alejamiento radical de los modelos de la sociedad burguesa. Por ello instalaron comunidades rurales en el sur del país. Para ellos, el espacio rural era el locus ideal para desertar de la sociedad de consumo, de la violencia que en ella imponían las leyes del mercado y las leyes injustas que derivaban los impuestos al sostén del poderío militar o como en EEUU a guerras de dominio (Vietnam fue el ejemplo más contundente). El campo permitía el cultivo de sus huertas comunitarias que les ofrecían un abastecimiento básico y la ejecución tranquila de sus artesanías, pero casi inadvertidamente al principio, la sociedad de consumo, sin atender a su filosofía de fondo, puso de moda los aspectos externos de su estilo, en sus formas más exóticas y pintorescas (telas, colores, sandalias, adornos, etc), fagocitando al movimiento hippie. Este proceso que generaron las metrópolis centrales se repitió paso a paso, íntegra y algo tardíamente en la Argentina. El escritor argentino Jorge Asís rememora graciosamente aquellos hechos en su libro Carne picada: ... para colmo, el arte marginal que cultivaban en los nimios paréntesis de la actividad rural, se había impuesto masivamente en el mercado (...) al final los mercenarios que no tenían preocupaciones de serenidad interior les copiaban las maneras y convirtieron sus inquietudes artesanales en el gran negocio que no podían admitir los locos sueltos, los hippies o apenas raros. Con el elemental signo pesos en el horizonte y con una chequera altiva por revólver, pelafustanes sin paz ni barba invadieron con imitaciones casi perfectas hasta el último mercadito de Liniers, con collares o múltiples sanatas de mostacillas o cobre o cuero. Además ya cualquier imbécil que andaba sin laburo se dejaba la barba, entraba en litigios con la higiene, se hacía el marginado y curraba haciendo artesanía. Sin piedad ni bombilla el sistema al final los había chupado, como si fueran ajenjo o agua. (ASIS,1981, p. 252) .

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Las naciones de América Central y del Sur sobrellevaban por entonces una crisis de identidad porque, abandonando las tradiciones y los valores de su propia historia, adoptaron las normas y modelos de los países del Norte, con deudas externas cada vez más crecientes, pero sin poder alcanzar las metas de desarrollo deseadas. En general, los revolucionarios e intelectuales provenientes de las capas medias latinoamericanas sucumbieron a la fascinación de los paradigmas de desarrollo de la civilización metropolitana. Los círculos socialistas y nacionalistas de izquierda latinoamericanos criticaban el orden establecido en nuestras naciones a causa de la incapacidad de éste para inducir ese progreso, y discutían modelos cuyo objetivo era un desarrollo acelerado hacia la industrialización, el consumo masivo y la consolidación del Estado nacional para lograr reducir el abismo entre nuestras sociedades periféricas y las metrópolis. Así se vio la flagrante contradicción de que los grupos intelectuales progresistas y los militantes revolucionarios estimaran los elementos centrales del modelo de desarrollo de los países del Norte, pero proponiendo simultáneamente modelos socialistas o nacionalistas de izquierda para alcanzar rápidamente aquellos logros, pues en nuestros países se identificaba al socialismo con un rápido crecimiento social, mientras que el capitalismo era considerado retardatario e injusto. El movimiento guerrillero latinoamericano estimó a la violencia como una vía rápida y eficiente para conquistar el poder, para luego, por medio de un modelo de socialismo estatal en lo político, solucionar los problemas del subdesarrollo, logrando una justicia social permanente. Aquella ideología constituyó una fuerza de atracción poderosa para intelectuales descontentos. Provenían en su mayoría de los diversos sectores de la clase media y aún alta, siendo el número de estudiantes mayoritario en sus filas, ya que los ideólogos los proporcionaban en general las Universidades y Escuelas Superiores. Constituían una contra-elite profundamente desilusionada del modelo imperante, decidida a todo, que quería destruir a la clase alta en lo económico y ocupar los puestos de los gobiernos que frustraban sus anhelos de progreso y justicia para las masas. En los sectores radicalizados de las capas medias surgió la intención de modernizar aceleradamente el conjunto de la sociedad, partiendo

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de la creencia de que el atraso socioeconómico suministraba una condición esencial para movilizar la anhelada revolución. La lucha guerrillera se constituyó así en una vía militar y violenta hacia la conquista del poder público. Sus rasgos ideológicos esenciales, tomados del modelo cubano, fueron el antiimperialismo, el socialismo revolucionario como arquetipo de orden social, la lucha armada para solucionar por vía rápida los problemas del subdesarrollo y de la injusticia social y fundamentalmente la creencia en la factibilidad de la revolución por medio de procedimientos políticos, conspirativos y técnico-organizativos. La absoluta obviedad que atribuían a la “crisis insoluble” del Estado nacional, cuyo indiscutible remedio era la revolución socialista no eran las conclusiones de un análisis cuidadoso, sino los puntos de partida de toda argumentación. Dice Mansilla: “Un pensamiento que está determinado hasta tal grado por lo obvio, denota una afinidad notoria hacia sistemas dogmáticos y se inclina irremediablemente al fomento de pautas autoritarias de comportamiento y a imposibilitar normas democráticas” (1980, p. 21) pues las masas sólo actuaban convenientemente cuando ejecutaban escrupulosamente las órdenes de sus dirigentes, quienes se arrogaban el monopolio del saber y de las decisiones correctas. Justificaban su comando absoluto en la incapacidad de las masas para comprender la negatividad del sistema imperante y estimar los beneficios de las soluciones propuestas por la guerrilla. El propio Che Guevara en su obra El socialismo y el hombre en Cuba diferenció al pueblo, “masa todavía dormida a quien había que movilizar”, de su vanguardia, “la guerrilla, motor impulsor de la movilización, generador de conciencia revolucionaria y de entusiasmo combativo”. La masa realiza con entusiasmo y disciplina sin iguales las tareas que el gobierno fija, ya sean de índole económica, cultural, de defensa, deportiva, etc. La iniciativa parte en general de Fidel o del alto mando de la Revolución y es explicada al pueblo que la toma como suya. (GUEVARA, 1997, p. 205-206. El subrayado es nuestro)

El grado de esa confianza, según Guevara, responde precisamente a la interpretación cabal que hacen esos dirigentes de los deseos del pueblo. Esa actitud elitista y mesiánica provoca un tratamiento

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paternalista de las masas. Esto responde al ordenamiento estrictamente jerárquico de la organización en un eslabonamiento piramidal que castiga severamente faltas u omisiones. Circunstancias que delatan una persistencia del fenómeno del caudillismo que hace de la violencia inmediata el método usual de control de conflictos, lo que dio por resultado, en aquellas décadas, una combinación híbrida de intentos de soluciones contemporáneas progresistas con aspectos tradicionales autoritarios que subyacen en el inconsciente colectivo argentino. Es sabido que los enfrentamientos maniqueos y las políticas de exclusión del oponente es una práctica en nuestra sociedad que se remonta a la Colonia y aún a la tradición precolombina. La intolerancia hacia el adversario en religión así como en política, las relaciones jerárquicas entre tribus dominadoras y dominadas y luego entre españoles e indígenas envileció las relaciones sociales y las cargó de un rencor persistente desde los orígenes. Ese sustrato de la cultura autoritaria es el que otorga hasta hoy, el fundamento moral de prácticas violentas. La literatura argentina ha dejado constancia de esa perseverancia en la violencia en nuestras prácticas sociales, baste recordar las obras fundantes de nuestra literatura: Martín Fierro, El Matadero, Facundo, amén de todo un cancionero de Refalosas, donde se destacan tipos humanos que hacen de la violencia y el coraje su modus vivendi, tales como el gaucho malo, el montonero, el compadre, etc. La brevedad de nuestro trabajo nos impide seguir detenidamente el derrotero histórico de los antagonismos que jalonaron nuestra historia, pero un breve y desordenado recuento de los enfrentamientos más destacados nos permitirá recordar a unitarios y federales, conservadores y populistas, Braden o Perón, azules y colorados, etc, divisiones que se proclamaban siempre en pintorescas consignas como “alpargatas sí, libros no”. Aún el lema “ni vencedores ni vencidos”, que surgió cuando Oribe capituló ante Urquiza en 1851, y se repitió en 1955 con la caída del régimen peronista, ocultaba en realidad una nueva dicotomía excluyente, como se reveló casi inmediatamente a través del famoso decreto 4161 que prohibía el uso de símbolos, denominaciones peronistas y hasta la mención misma de sus líderes: Perón y Eva Perón.

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El régimen peronista también había percibido a la política como un enfrentamiento de bandos irreconciliables y su líder proclamaba violentas venganzas: “cinco por uno no va a quedar ninguno”, y los contrarios, durante la agonía de Eva Perón pintaban en las paredes frases como “cáncer te amo”. Al fin, la “Revolución Libertadora” con su secuela de proscripciones, fusilamientos y venganzas provocó que el autoritarismo encarnara en la sociedad argentina. La política se convirtió en sinónimo de enfrentamiento dicotómico donde la sola existencia del adversario implicaba una amenaza. No había posibilidad de coexistencia de los distintos, sino que para cada uno existía una verdad única y absoluta. Recordemos que el movimiento Montoneros nació a la vida pública el 29 de mayo de 1970 con el resonante secuestro y posterior asesinato del general Pedro Eugenio Aramburu, quien había ordenado los fusilamientos del conspicuo peronista, general José Valle y otros insurrectos que en junio de 1956 se rebelaron contra el régimen de la “Revolución Libertadora”. El retorno de Perón en 1973, lejos de modificar, empeoró aquellos antagonismos que se proclamaron en consignas que enfrentaban la patria peronista a la patria socialista. La creciente intolerancia aún en el seno del movimiento, eclosionó en la eliminación física del oponente, en el que se encarnaba el Mal. A partir del golpe militar de 1976 la visión maniquea se intensifica en un régimen que se aboca a la destrucción total de la oposición en una lucha paranoica por el control total de las conciencias. El régimen militar se arroga un rol mesiánico de purificación basado en la metáfora del cuerpo. La sociedad es un cuerpo que ha sido invadido por gérmenes nocivos que han introducido en él las ideologías extrañas (entiéndase extranjeras) y por tanto los órganos contaminados deben ser extirpados en aras de la salud general. El maniqueísmo extremo de esa visión autoritaria es inexplicable si no se tiene en cuenta que para el Proceso militar la guerra que ellos emprendieron era tanto cultural como militar. El enemigo al que consideraban aún más peligroso que al guerrillero, era el ideólogo. El aparato cultural se constituyó en el objetivo del control autoritario y los códigos lingüísticos del régimen se nutrieron de términos relacionados con la medicina, la higiene y la salud. Al extremo que a la sala de tortura se la llegó a denominar “quirófano”, y a los grupos

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parapoliciales de derecha “anticuerpos” que luchaban contra la “infección” comunista. Desgraciadamente esas metáforas se extendieron y se utilizaron para justificaciones ideológicas tanto de derecha como de izquierda. Esta visión se expresó en el campo popular a través de consignas diversas que podemos resumir en el concepto “Para el compañero todo, para el enemigo ni justicia”5. En el movimiento guerrillero la concepción de la factibilidad de la revolución se basaba en el notable triunfo de la revolución cubana lo que provocaría su irresistible e inmediata imitación. Esas agrupaciones, por lo demás, alimentaban la segura esperanza de que las masas iban a reconocer en ellas su vanguardia y se plegarían a sus proyectos libertarios. El estado de injusticia social imperante y la lucha misma de los rebeldes crearía las condiciones de la revolución. “Esa concepción activista–voluntarista, -dice Mansilla- parte de una relativa desatención de las condiciones objetivas y de una sobrevaloración de los altos mandos revolucionarios” (MANSILLA, 1980, p. 27).

Pinedo, Jorge. Consignas y lucha popular en el proceso revolucionario argentino 19551973. Buenos Aires: Editorial Freeland, 1974.

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Aquellos esquemas de pensamiento eran muy simplistas y en sus proclamas y panfletos se puede constatar una carencia de diferenciación de las características y problemas entre los diversos países de América Latina, como asimismo una evaluación maniquea de socialistas versus capitalistas. Los defensores de otros intereses sociales no sólo constituían el enemigo sino también la encarnación de un orden demoníaco conformado por un minoritario sector de explotadores que subyugaba a una enorme masa de explotados. Además subrayaban el carácter fundamentalmente agrícola ganadero de nuestra economía que se hallaba en manos de unas pocas familias de la Sociedad Rural, como asimismo el carácter capitalista monopólico de la industria que servía a intereses extranjeros y al consumo suntuario de la elite. Los trabajadores especializados que recibían mejores salarios constituirían una minoría contrarrevolucionaria. Este pensamiento esquemático no se detenía a analizar las complejidades de nuestras estructuras sociales, pero servía sin embargo para lograr fáciles acatamientos. También enfatizaban la existencia de recursos al parecer inagotables en nuestra tierra, juntamente con la marginación de una parte importante del pueblo,

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lo que obedecía a los malos manejos capitalistas y justificaba un necesario y drástico cambio. Las explicaciones simplificadoras del subdesarrollo eran fuertemente atractivas como asimismo que la solución a todos los problemas se encontraba en la adhesión irrestricta al modelo cubano de socialismo estatal. El dogmatismo, el celo sectario, el autoritarismo de los dirigentes, la jerarquización militarista de las agrupaciones, la sobrevaloración de la elite dirigente y el voluntarismo de sus apreciaciones y acciones, obedecían a un poderoso sustrato tradicional de comportamiento autoritario que nos recuerda al de los caudillos del siglo XIX: Quiroga, Aldao, López Jordán, y a los líderes populistas del siglo XX como Palacios, Irigoyen o Lencinas. Por lo que bajo un barniz de revolución social, persistían en las organizaciones guerrilleras la rigidez jerárquica, la dureza de los castigos y fundamentalmente la idea de que un grupo esclarecido daría a la masa la conciencia de clase correcta para que éstos comprendieran su situación marginal. La idea de heroísmo como pauta básica de comportamiento, y la adopción de pautas atávicas de violencia y justicia, llevaba también a los miembros de la guerrilla rural a la idealización de la vida campesina, ruda, varonil, pues la ciudad era sede de la decadencia y el afeminamiento. El campo era en cambio, el espacio genuino de los revolucionarios, pues tenía la virtud de acercarlos al sentimiento del proletariado además de incitarles a la valentía y al heroísmo. Un miembro de la guerrilla debía asemejarse a un samurai. La preocupación por el heroísmo cotidiano y por la entrega total a la causa revolucionaria, prolongaba la tradición hispanoamericana del culto al héroe. La idealización de la muerte en combate estaba imbricada, junto al valor y la fuerza entre las virtudes viriles tradicionales de Hispanoamérica. El honor encabezaba un código de valores estricto que exigía actos genuinamente revolucionarios, fructíferos y correctos en el que la muerte heroica se constituía en anhelada culminación. La permanencia y cultivo de esos valores prerracionales provenientes de la sociedad tradicional les otorgaba, paralelamente a la posibilidad de sufrir torturas, prisión y muerte, también el derecho

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sagrado de quitar la vida a los enemigos. La violencia se convertía de ese modo en un instrumento para el cambio social, pues se lo consideraba el medio lícito para quebrar estructuras sociales injustas y se menospreciaba cualquier otra vía alternativa. Como la crueldad de la lucha dependía de la reacción del enemigo, esto descargaba toda la responsabilidad de la violencia en el antagonista. Esta concepción convertía a la utilización colectiva de la fuerza física y de las armas en actos positivos que seducían con la posibilidad de ejercer justicia. Esto se unía al culto personalista de los jefes, correlacionado al estilo dramático y sentimental de las declaraciones de la guerrilla, en una clara actitud moralizante frente a los problemas políticos, lo que evidenciaba una continuidad acrítica del caudillismo latinoamericano. Paralelamente también era notable el atavismo de las actitudes de los miembros de la Junta militar que imperaba por entonces en la Argentina, pues sus miembros provenían de la misma sociedad. La negativa al diálogo político y la utilización vertiginosa de la violencia, erigiéndose en dueños absolutos de la verdad, es una conducta basada en una sanguinaria tradición de caudillismo que, acrisolada en las guerras de la organización nacional, siempre se ha sustentado en nuestra patria en el uso de la fuerza y de las armas, en el carácter antidemocrático y autoritario de los caudillos y en su afición sensual a la violencia. Masas sumisas y serviles, temerosas y fanatizadas en el culto al héroe formaban sus legiones y se movilizaban por principios irracionales y maniqueos que se azuzaban con lemas como “Mueran los salvajes unitarios”, “Federación o Muerte”, etc. Las imágenes irracionales de autoridad y dominación nutrieron en los ´60 y ´70 un imaginario proclive a la conspiración, al estilo dramático y moralizante en sus comunicados y declaraciones, al aprecio de lo altisonante y a la exaltación de la muerte heroica. El impulso social-revolucionario que estimuló este imaginario no podía surgir sino en un contexto de Modernidad con su esperanza en modificar el mundo, con su fe en un hombre diferente, “el hombre nuevo”. Pero el error consistió en pretender alcanzar rápidamente la modernización que proponían los campos culturales de la metrópolis europeas, sin advertir que el salto de un orden patriarcal e

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incipientemente industrializado a un modelo de socialismo estatal implicaba la destrucción de la “democracia burguesa”, y en realidad la de cualquier forma de democracia, máxime en una sociedad que no poseía una tradición democrática, y sí en cambio, una tradición caudillista y autoritaria. La premisa de que el atraso socio económico-cultural ofrecía la condición esencial para el logro de la revolución, fue una consideración netamente Moderna. La Postmodernidad se encargó, en la década siguiente, de admitir que en realidad aquella situación produce más bien apatía y un bajísimo nivel de expectativa de cambios. La adopción acrítica de metas foráneas, tanto de las metrópolis como del modelo socialista cubano, produjo en el imaginario de los actores de aquellas décadas, una combinación híbrida entre aspectos modernos y reaccionarios, destruyendo en germen la posibilidad de una verdadera emancipación. Diversos aspectos de la mentalidad característica de los miembros de las organizaciones guerrilleras que hemos connotado, tuvieron su ejemplificación literaria en numerosos textos ficcionales del período estudiado, verbigracia, en El beso de la mujer araña (1976) de Manuel Puig, novela en la que se equiparan la violencia política y las represiones sexuales en una vinculación temática abarcadora de todo lo que atenta contra los aspectos puramente humanos de los individuos. En el personaje de Valentín Arregui, el militante encarcelado, Puig presenta una mentalidad autoritaria, maniquea, que autorreprime sus impulsos afectivos hacia una joven de clase alta porque es representante del “enemigo” capitalista y burgués al que hay que doblegar. Escinde razón y sentimiento en una actitud esquizofrénica que lo llevará, después de ser salvajemente torturado, al delirio final donde al fin, liberado de la autocensura, alucina una figura humana que reúne rasgos de Marta, su amor secreto y de Molina, el homosexual, los dos seres que marcan afectivamente la conflictiva última etapa de su vida. El pensamiento dicotómico es la tendencia a dividir todas las cosas, hechos y personas en categorías bien definidas y defender a ultranza la rigidez de esas diferenciaciones. Esta actitud crea cadenas de

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autoritarismo y sumisión que favorecen el pensamiento totalitario. El dirigente de este tipo se proclama representante o encarnación del bien, la libertad, la democracia o cualquier ente al que él dice encarnar. A su vez, el militante autoritario cree que quien no sigue ciegamente los dictados de sus esclarecidos dirigentes, no ama de verdad a la patria. Lo paradójico de la psicología autoritaria es que el que la posee es el primero en ver en todas partes, salvo en sí mismo, indicios y actitudes que califica de autoritarias. Su intolerancia a la ambigüedad le exige dividir todo y a todos en grupos que se excluyen mutuamente: buenos/malos, amigos/enemigos, sin aceptar matizaciones de ningún tipo. La rigidez de este pensamiento lleva a la desvalorización y al desprecio del contrario, que puede conducir incluso al uso de la violencia física para eliminar al oponente. Es también básicamente antiintrospectivo, pues se resiste a buscar las motivaciones de su conducta porque en el fondo teme admitir que no siempre tiene razón y menos aún, que no la tenga aquella Gran Autoridad que ha elegido como ídolo de su pensamiento, sea un líder, una ideología, una creencia religiosa, etc. (ADORNO, 1965, p. 18). Puig desnuda la impostura de aquel maniqueísmo y lo hace decodificando las posturas arbitrarias de Valentín. En el fragmento final en el que vaga entre la fantasía y la memoria, aparece sin censura el personaje reprimido. De alguna manera, el encuentro con Molina le permite reconocer sus verdaderos sentimientos hacia la mujer vedada por su ideología. Puig reprocha la hipocresía de las mentalidades maniqueas y salta sobre las marcas tradicionales de género. Así Valentín llega a reconocer su aceptación gustosa de lo suave, lo delicado, lo femenino y sensual y a su vez Molina asume el rol tradicionalmente masculino de proveedor y protector, llegando incluso a realizar la hazaña heroica de sacrificar su vida para proteger a Valentín. – Al final, Valentín, vos también tenés tu corazoncito. – Por algún lado tiene que salir... la debilidad, quiero decir. –No es debilidad, che.

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– Es curioso que uno no puede estar sin encariñarse con algo...Es...como si la mente segregara sentimiento, sin parar... (PUIG, 1991, p. 47).

La personalidad de ambos personajes va pasando por una serie de identificaciones con “otro” que es modelo en los filmes que cuenta Molina. A éste, las películas lo llevan a una identificación con sus bellas heroínas y se deja arrastrar por la historia sentimental sin importarle las connotaciones ideológicas. A Valentín, en cambio, los filmes lo entretienen pero van contra su ideología. Él no puede, como Molina, sustraerse, por ejemplo, al significado del uniforme nazi. Para Molina, en cambio, el uniforme simplemente engalana al apuesto actor, realza su masculinidad y es símbolo de poder. Molina – Si me dieran a elegir una película que pudiera ver de nuevo, elegiría ésta. Valentín – ¿Y por qué? Es una inmundicia nazi ¿o no te das cuenta? ...................................................................................... – Me ofendés porque te creés que no me doy cuenta que es propaganda nazi, pero si a mí me gusta es porque está bien hecha , aparte de eso es una obra de arte, vos no sabés porque no la viste. – Pero estás loco, llorar por eso? – Voy a llorar todo lo que se me dé la gana. – Como quieras. Lo siento mucho. (PUIG, 1991, p. 63).

Puig toma textos fílmicos de clase B y los rescribe para que su carga trasgresora permita el ingreso de otro concepto de realidad más aceptador de las diferencias. El choque que producen, verbigracia, los uniformes nazis en el inconsciente colectivo, Puig lo rescribe para alcanzar la aceptación de ciertos elementos de la mentalidad femenina y homosexual que no son admitidos por la sociedad.

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Valentín – Sí, pero vos sabés que los maquís eran verdaderos héroes, ¿no? Molina – Che, pero me creés más bruta de lo que soy. (...) tené bien en claro que la película era divina por las partes de amor, que eran un verdadero sueño, lo de la política se lo habrán impuesto al director los del gobierno, ¿o no sabés como son esas cosas? (PUIG, 1991, p. 98).

Otras típicas dicotomías autoritarias que aparecen ejemplificadas en la novela de Puig son la escisión cuerpo/mente y trabajo/diversión: “No hagas descripciones eróticas. Sabés que no conviene”. (PUIG, 1991, p. 10). “De veras, te lo pido en serio. Ni de comidas ni de mujeres desnudas”. (PUIG, 1991, p. 20). – Yo no puedo vivir el momento, porque vivo en función de una lucha política... Está lo importante, que es la revolución social, y lo secundario, que son los placeres de los sentidos. Mientras dure la lucha, que durará tal vez toda mi vida, no me conviene cultivar los placeres de los sentidos, porque son de verdad secundarios para mí. El gran placer es otro, el saber que estoy al servicio de lo más noble, que es...bueno... mis ideales,... el marxismo, si querés que te defina todo en una palabra. (PUIG, 1991, p. 33-34).

En los ejemplos apuntados es evidente la mística del sacrificio. La posición del guerrillero en la novela es un estereotipo del modelo autoritario. El homosexual ofrece, en cambio, una cosmovisión del mundo más flexible, menos estructurada. – Decilo, que soy como una mujer ibas a decir. – Sí.

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– ¿Y qué tiene de malo ser blando como una mujer? ¿por qué un hombre o lo que sea, un perro, o un puto, no puede ser sensible si se le antoja? – No sé, pero al hombre ese exceso le puede estorbar. – ¿Para qué?, ¿para torturar? – No, para acabar con los torturadores. (PUIG, 1991, p. 35).

En la personalidad de Molina, la influencia de lo femenino (que es fuertemente aliado a la vida) le permite trocar la posibilidad de conseguir información sobre la identidad de los compañeros de Valentín, por alimentos que mejoran notablemente la rudeza extrema del confinamiento de ambos, pero especialmente para ayudar y proteger a su compañero de celda. Valentín, en cambio, recién puede reconocer y aceptar sus sentimientos, cuando en la situación límite del confinamiento, la enfermedad y la tortura, encuentra a un ser humano que le ofrece amor, seguridad y confianza en medio de su aislamiento hostil: “Aquí nadie oprime a nadie. Lo único que hay, de perturbador, para mi mente ... cansada, o condicionada o deformada ... es que alguien me quiere tratar bien, sin pedir nada a cambio” (PUIG, 1991, p. 206). El reacomodamiento de los personajes con sus apenas asumidas pulsiones secretas procura una liberación de las etiquetas genérico sexuales, pero especialmente una superación de la posición de los ideólogos del cambio social que de ninguna manera aceptaban la homosexualidad; por el contrario, tal como hemos señalado, estimaban al campo como un sitio viril por excelencia, pues imponía el arrojo, la fuerza y la destreza física para sobrevivir a sus arduos desafíos. Puig utiliza la fenomenología del bolero y lo sentimental para vulnerar máscaras, imposturas y convenciones sociales: – Sabés una cosa... yo me reía de tu bolero, y la carta que recibí por ahí dice lo mismo que el bolero.

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– Sí, me parece que no tengo derecho a reírme del bolero. (PUIG, 1991, p. 140).

Evidentemente su plan narrativo apuntaba a mucho más que ofrecer una ficción, pero para evitar la carga ensayística dentro del relato, deslindó sus aseveraciones, presunciones y opiniones dividiendo el texto en un arriba y un abajo. Arriba está ocupado por la ficción y abajo aparecen notas que ofrecen diversas opiniones sobre el origen de la homosexualidad, textos sobre la propaganda y el cine nazi y un monólogo interior de Molina recordando una película romántica que no desea compartir con Valentín. Con ello amplifica y asegura la dimensión crítica del texto de ficción. Puig entiende al ser humano de una forma totalizadora, más allá del género sexual, raza, religión o posición sociocultural. Reclama que no puede haber cambio social sin liberación sexual. Tanto es así, que el autor, como decimos precedentemente, no se conforma con la situación ficcional que ofrece su novela, sino que en una serie de ocho notas a pie de página, ofrece variadas disquisiciones en torno de la problemática homosexual, extraída de veinticinco autoridades como Sigmund y Ana Freud, Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, entre otros, para en la última nota, inventar la autoridad número veintiséis, la doctora danesa Anneli Taube y transmitir por su voz fingida, sus propias ideas sobre el vínculo entre liberación sexual y revolución. Esas notas informan al lector sobre la bibliografía de divulgación científica sobre la homosexualidad y la opresión sexual que estaba por entonces en boga. Puig enfrenta dos personajes contrapuestos entre los que existe una importante diferencia cultural, pues Valentín es un graduado universitario (arquitecto) y Molina, un decorador de vidrieras. Pero mientras Valentín presenta una férrea voluntad revolucionaria en aras de la cual vive una mística del sacrificio que lo incita a dividir las gentes en amigos o enemigos, Molina, posee una cosmovisión del mundo más flexible, más aliada a la vida, centrada fundamentalmente en el área afectiva, no en la racional. Puig incentiva su crítica en los alegatos que inserta en las notas al pie de página:

– ¿Te parece?

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A los homosexuales se los ha marginado en los movimientos de liberación de clases y en general en toda acción política. Es notorio (sic) la desconfianza de los países socialistas por los homosexuales. Mucho de esto –afortunadamente, acota la doctora Taube-, empezó a cambiar en la década de los sesenta, con la irrupción del movimiento de liberación femenina, ya que el consiguiente enjuiciamiento de los roles “hombre fuerte” y “mujer débil” desprestigió ante los ojos de los marginados sexuales esos modelos tan inalcanzables como tenazmente imitados. La posterior formación de frentes de liberación homosexual sería una prueba de ello. (PUIG, 1991, p. 211).

La novela de Puig no busca la parodia sino que rescata valores en elementos de la cultura popular, y con elementos depreciados de esa cultura, como la novela o el folletín rosa, elabora una obra de arte. Las trivialidades de la conversación las convierte en lengua literaria, las traslada al mundo del arte al convertirlas en texto de ficción6.

6 Cuando Puig escribió la novela los intelectuales de izquierda teorizaban sobre elementos de la cultura popular como la historieta, el dibujo animado y su utilización como elementos de sometimiento o adoctrinamiento. (Fueron muy difundidos los cuestionamientos a personajes como el Pato Donald o Tarzán).

En la tensión entre diferentes estratos socioculturales muestra lo cursi imbricado a lo sublime. En el imaginario homosexual lo femenino está exacerbado (uso de turbantes, pelucas, lazos de seda, plumas, identificación con las estrellas de cine) y en ese ámbito de lo vulgar y lo doméstico consigue insertar lo sublime ( dar la vida por amor). Si el Diccionario Larousse (1993), define como camp: “Que adopta la moda y los gustos imperantes de 1945 a 1960”, encontramos que la producción de Puig encuentra su articulación en esos límites, especialmente en los géneros populares en boga por entonces, la novela rosa, el melodrama y en el cine de Hitchcock, que privilegia el cruce entre lo sentimental, lo policial y lo psicoanalítico. Pero Puig, además va más atrás en sus búsquedas, especialmente en el cine de Hollywood de los años ´30 y ´40 (SPERANZA, 1998, p. 135). La utilización de aquellas formas del arte de masas le posibilita la seducción del lector desde la irresistible fascinación del estereotipo y de los códigos sentimentales de lo cursi. El último film que cuenta Molina es inventado por Puig sobre el modelo del melodrama mexicano típico, conformado por historias sobrepuestas que se glosan en los boleros que la historian. En las películas contadas, ricas en lo visual pero de pobre contenido argumental, hay un valor alegórico que surge por sobre su intimidad

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con el mal gusto. Puig recurre a esas alegorías; así, el título de la novela alude al leitmotiv del beso traicionero que destruye, el beso de la mujer pantera que mata a quien la besa, que luego se troca en mujer araña. El beso de la mujer araña pierde la carga negativa de traición para en cambio humanizar al guerrillero y llevar a Molina a un acto de sacrificio heroico. El beso en los cuentos de hadas rompe el hechizo, aquí rompe el pacto de Molina con los carceleros. Molina se sacrifica por amor a Valentín. En general, en Puig lo erótico está fuertemente relacionado con la muerte. En Boquitas pintadas (1970) el personaje conjunta el amor y la muerte. La consecución del amor en sus novelas siempre lleva a la muerte. Eros y Thánatos no pueden separarse. Tal vez se vio forzado a llegar a esos finales desdichados porque veía muy lejano el día en que los militantes aceptaran los dichos que él atribuye a la doctora Taube: “El niño que decide no adherir al mundo que le propone su padre -la práctica de armas, los deportes violentamente competitivos, el desprecio de la sensibilidad como atributo femenino, etc- está tomando una determinación libre, y más aún revolucionaria” (PUIG, 1991, p. 209). Puig estuvo a lo largo de su vida permanentemente conectado con el cine y conocía la fuerza hipnótica de ciertas imágenes que apelan al imaginario sentimental en forma primitiva e irresistible, tal como lo hacen también las revistas del corazón como las de Corín Tellado, que se abastecen en el arsenal emblemático del romanticismo y utilizan profusamente las noches de luna, la brisa cálida, la música de boleros, los vestidos de seda o lamé, los perfumes, las flores y el champagne para rodear los encuentros amorosos de sus heroínas. ...suena una música maravillosa, (...) y entra una brisa por la ventana, un ventanal muy alto, con un cortinado de gasa blanca que flota con el viento como un fantasma, y se apagan las velas, que eran toda la iluminación. Y entra nada más que la luz de la luna, y la ilumina a ella, que parece una estatua, alta como es con un traje blanco que la ciñe bien, parece un ánfora griega (...) y él le dice que ella es un ser maravilloso, de belleza ultraterrena, y seguramente con un destino muy noble. (PUIG, 1991, p. 61- 62).

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Como bien dice Graciela Goldchluk: “Puig pone en el centro de las discusiones literarias el problema del gusto y de la literatura mala” (1998, p. 56), pero además, -decimos nosotros-, por otro lado polemiza con el progresismo de las décadas del ´60 y el ´70 que busca una liberación en el ámbito político pero olvida, margina o subestima una liberación totalizadora de lo humano que contemple lo étnico, lo religioso, lo sociocultural y especialmente lo sexual. En aquel cine en el que buceaba Puig, las heroínas son personajes femeninos sometidos y Molina, el personaje de su novela, procura ocupar el lugar de la mujer en esa relación homosexual que está buscando. Constantemente asume el papel femenino: se autodefine “loca” (p.218), hace la comida, cuida y limpia a Valentín, arregla la celda, etc. Puig cita esta opinión de Marcuse: “la función social del homosexual es análoga a la del filósofo crítico, ya que su sola presencia resulta un señalador constante de la parte reprimida de la sociedad” (p.199). A propósito dice Daniel Balderston: “El filósofo crítico del diálogo en la celda no es Valentín Arregui sino el aparentemente frívolo Luis Molina. Necesita la voz del otro, como de sus oídos para elaborar su dialéctica” (1998, p. 276). Y nosotros estimamos que Puig además, necesitó de la autoridad vicaria de la doctora apócrifa para establecer un contrapunto dialógico con las autoridades previamente citadas y con el texto de ficción, para así poder exponer claramente su teoría: lo sexual, liberado de las connotaciones culturales que ha predeterminado la sociedad a los roles masculino/femenino, provocaría una auténtica y completa revolución social. Surge de la lectura una valoración sustancial de lo intangible. Hay una calificación tácita de las “calidades humanas”. Los homosexuales en el mundo carcelario son despreciados, pero Molina se revela espiritualmente superior a los guardias y aún al director de la cárcel. Y termina convirtiéndose en el personaje heroico del texto. En resumen, nos es dable observar que durante las décadas del ’60 y ’70 muchos intelectuales, especialmente los comprometidos en organizaciones políticas, simultáneamente admiraban y rechazaban los modelos que ofrecían las metrópolis centrales, lo que los llevó a pretender alcanzar las metas de desarrollo de aquellas sociedades, pero bajo un sistema socialista estatal.

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Si a ello agregamos el sustrato autoritario de la sociedad argentina, no debe extrañarnos el clima contradictorio y violento en que se desenvolvió aquel período histórico, tal como lo ilustra El beso de la mujer araña.

Resumo: As maneiras coletivas de pensar, crer e imaginar dos jovens nas décadas de `60 e` 70 promoveram como paradigmas figuras tão determinantes e opostas como a do “guerrilheiro” e do “hippie”. A análise daquelas representações coletivas nos permite esclarecer as causas e os métodos da adoção acrítica de metas estrangeiras, tanto das metrópoles centrais como do modelo socialista cubano, produzindo no imaginário dos agentes daquelas décadas uma combinação híbrida entre aspectos modernos e reacionários, destruindo no gérmen a possibilidade de uma verdadeira libertação. Desde as nossas sociedades periféricas pretendemos alcançar as metas de desenvolvimento das sociedades capitalistas, porém sob um sistema socialista estatal. Se a ele agregamos o substrato autoritário da sociedade argentina, não deve causar-nos estranhamento o clima contraditório e violento em que se desenvolveu aquele período histórico, tal como ilustra O beijo da mulher aranha (1976) de Manuel PUIG, quem polemiza com o progressismo das décadas de `60 e `70 que procura uma libertação no âmbito político, ao mesmo tempo que esquece, marginaliza ou subestima uma libertação totalitária do humano que contemple o étnico, o religioso, o sócio-cultural e especialmente o sexual.

Palavras-chave: modernidade, tradição autoritária, metrópoles centrais, sociedades periféricas, Manuel Puig.

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Abstract: The collective ways of thinking, beliefs and imagining of the young people in the ´60 and ´70´s promoted some paradigmatic figures, so determining and opposite figures as the “guerilla” and the “hippies”. The analysis of those collective representations allows us to clarify the causes and the methods of the acritical adoption of foreign objectives, both coming from the central metropolis and from the Cuban socialist model, producing in the actor´s imaginary of those decades a hybrid combination between modern and reactionary aspects, destroying the possibility of a true liberation. From our peripherical societies we tried to reach the objetives of development of the capitalist societies, but under a socialist system. If we add the authoritarian substrate of the argentine society, it should not be odd for us the contradictory and violent climate in which that historical period developed, as illustrated by The spider woman´s kiss (1976) of Manuel PUIG, who was critical of the progressivism of ´60 and ´70´s that looks for a liberation in the political scope, while it forgets, marginalizes or underestimates a totalizing human liberation contemplating ethnic, religious, social and cultural aspects, and especially sex.

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Keywords: modernity, authoritarian tradition, central metropolis, peripherical societies, Manuel Puig.

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e-mail: nburgoscasal@speedy.com.ar

ADORNO, T.W. y otros. La personalidad autoritaria. Buenos Aires: Proyección, 1965.

Recebido em 06/05/2008 Aprovado em 26/11/2008

ASIS, J. Carne picada. Canguros I., Madrid; Buenos Aires; México: Editorial Legasa, 1981. AAVV. Encuentro Internacional Manuel Puig. Compiladores: José Amícola y Graciela Speranza. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1998.

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a estética aplicada de françois delsarte - entre memórias e esquecimentos -

José Rafael Madureira

Doutor em Educação, Linguagem e Arte pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Pesquisador do LaborarteFaculdade de Educação da UNICAMP

Cativai os surdos pela expressão harmoniosa do vosso gesto, encantai os cegos com a agradável potência das vossas inflexões (François Delsarte apud PORTE, 1992, p. 11).

Desde as duas últimas décadas do século 20, François Delsarte (1811-1871) vem sendo continuamente citado e discutido pela historiografia do espetáculo como personagem central da refundação teatral novecentista, na qual o teatro naturalista, afundado em mórbidas convenções, foi colocado em xeque. Na nova concepção cênica, inspirada pelas idéias originalmente lançadas por Delsarte, o ator – isto é, o seu corpo e os seus gestos – conquistou status de obra de arte viva, emancipando-se do texto dramático.

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Delsarte esteve frequentemente presente na Europa, na prática e no espírito próprio onde o empenho pedagógico era mais intenso, naquelas escolas de atores onde a pesquisa prevalecia e a tradição era utilizada num sentido evolutivo e não conservador, onde, de uma vez por todas, se tentava fundar uma nova tradição: dos ateliês de Copeau e Dullin até o teatro-laboratório de Grotowski. Mas, além desses momentos específicos, Delsarte compunha os ares que o teatro do século 20 respirou para viver e se transformar. Ademais, Delsarte, secretamente, tem circulado nas veias do teatro até os dias de hoje, quando muito do teatro “de expressão”, derivado das próprias modalidades e convenções estéticas do ator e das suas exigências expressivas, pode encontrar nele um antigo e desconhecido descendente (ROPA, 1988, p. 122).

A força do pensamento de Delsarte estendeu-se ainda para os domínios da ginástica, com especial força nos sistemas de Mensendieck, Kallmeyer e Bode, responsáveis pela concepção de sistemas ginásticos mais expressivos em contraposição à retidão dos métodos tradicionais: Existe uma total unanimidade em conceder a François Delsarte a paternidade absoluta das idéias originais que desembocariam mais tarde, através de um processo evolutivo, nos princípios e formas de trabalho que Bode denominara Ginástica Expressiva e depois Ginástica Rítmica, modalidade que hoje se reconhece como Ginástica Moderna (LANGLADE & LANGLADE, 1982, p. 44).

1 Apenas dois pequenos textos foram publicados: Méthode Philosophique du Chant (1833), um encarte de 7 páginas impresso por conta do próprio autor; e Esthétique Appliquée, les Sources de l’Art (1865), publicado nos anais da Sociedade Filotécnica de Paris.

Da obra de Delsarte, originalmente vinculada à tradição oral, restou apenas alguns manuscritos não publicados1, cartas, esboços e apontamentos que celebram o devir dionisíaco do homem. Delsarte não guardava pretensões literárias. A feitura de seus manuscritos inacabados foi desencadeada por insistência de alguns amigos e discípulos. Para ele: “A escrita é uma língua morta” (apud PORTE, 1992, p. 52), ademais: Aquilo que constitui a debilidade da linguagem articulada, da linguagem filosófica, é sua sucessividade; necessita enunciar frase por frase; cada frase é constituída por um certo número de palavras, cada palavra é constituída por sílabas, cada sílaba de letras, de vogais e consoantes, e não tem fim... quantas coisas precisam ser

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escritas para exprimir um sentimento? Um volume não bastaria para expressar aquilo que um único gesto é capaz de dizer. Num único gesto existem coisas que, para serem traduzidas, exigiriam um volume inteiro. Esse volume não poderia expressar o que um singelo movimento poderia fazê-lo, pois esse singelo movimento é capaz de expressar todo o meu ser. Toda a inteireza do homem está expressa no gesto, por isso ele é persuasivo, é o agente direto da alma, ele diz tudo (DELSARTE apud PORTE, 1993, p. 45-46). De fato, caros senhores, o silêncio não é a eloqüente expressão da alma? Será que um homem apaixonado constrói frases? Será que diante do objeto contemplado, um olhar ou um sutil movimento das mãos não revela ao homem apaixonado mil vezes mais do que um discurso, ainda que fosse um discurso elaborado pela academia? (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 236-237).

Delsarte celebrou o corpo humano como “diamante da criação, alfabeto universal da enciclopédia divina” (Apud PORTE, 1992, p. 104), apresentado essa idéia com muito entusiasmo: Eu trago para a vossa apreciação um objeto que é o mais elevado de todas as ciências. Ele é mais belo que as esculturas de Fídias. Ele encerra mais harmonia do que todas as obras de Beethoven, de Mozart; mais poesia do que já foi revelada pelos maiores poetas do mundo. Enfim, todas as concepções reunidas do gênio humano desaparecem como sombras diante desta obra suprema. Trata-se, caros senhores, da obra-prima de Deus, trata-se de vós mesmos! Trata-se daquilo que o homem mais ignora no mundo, quer dizer, o homem (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 233).

fragmentos de uma vida François Delsarte nasceu em Solesmes, um pequeno vilarejo ao norte da França. Père Bambini foi o seu primeiro mestre de canto e, em 1826, encaminhou o prodígio para a Escola Real de Música e Declamação de Paris. Delsarte teria tido um futuro promissor como tenor lírico se não fosse a condução apressada e irresponsável de seus professores. Após quatro anos de estudos vocais mal dirigidos,

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Delsarte perdeu quase completamente a voz, vítima de uma afonia aguda. Seu caso foi levado ao conselho de ensino do Conservatório que atestou a incapacidade do interno em concluir seus estudos. Dispensado do Conservatório e desprovido de qualquer suporte, Delsarte encontrava-se sozinho e entregue à própria sorte. Ao invés de atirar-se no Seine, ele agarrou-se à vida com uma obstinação ainda maior, determinado a provar o seu valor como artista. A solidão nunca foi ele motivo de angústia, ao contrário: “É na solidão em que somos deixados num desdenhoso abandono, que o supremo artista opera e produz suas mais adoráveis obras-primas” (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 145). Delsarte analisou com severidade a conduta dos seus mestres e os métodos empregados pela mais prestigiada escola de artes dramáticas na França oitocentista. Quando ele mais precisou da generosidade e, sobretudo, do amparo institucional, foi descartado com indiferença. Ele buscou na medicina, inutilmente, alguma espécie de tratamento que pudesse aliviar suas dores intensas de garganta. Diversos médicos ofereceram-lhe milagrosas receitas de cura que não surtiram qualquer efeito. Todos eles foram unânimes ao declarar que o caso estava encerrado. Em resposta às queixas do paciente, indicaram que bastaria fechar a boca e interromper definitivamente o canto. Delsarte, evidentemente, não deu ouvidos àquelas sentenças, mas a experiência rendeu-lhe substanciosas reflexões sobre a racionalidade científica de seu tempo: As especialidades onde encerramos as ciências que nos são ensinadas arrasam o bom senso, do mesmo modo como as especialidades onde as usinas encerram os operários arrasam sua inteligência. As ciências são mutiladas e seus pedaços revelam-se estrangeiros entre si. As academias são compostas de especialistas, eis a razão de sua profunda esterilidade. Não há lugar, em nenhuma academia, para um intelectual ou um artista. E como me dizia um ministro: “Há lugar para tudo, tudo se encaixa. Temos encaixes redondos, quadrados, alongados, etc. Cada um enquadra-se ao seu espaço. Todavia, não há espaço para um homem como vós!” (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 23).

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É bem provável que nós não tenhamos sobre as coisas deste mundo e do outro mundo o mesmo ponto de vista, nem a mesma maneira de percebê-lo. Assim, eu amo a perfeição, isso significa que eu não sou progressista. Eu não me sinto obrigado, como aqueles que chamamos homens de vanguarda, a caminhar com meu século por duas razões: se meu século caminha sem rumo, não vejo nenhum motivo que me impeça de andar sempre em frente; em segundo lugar, em minha qualidade de artista, eu vivo a vida dos tempos e sou, por essa razão, livre contemporâneo de todos os séculos. Por fim, tenho menor estima pela luz do meu século ao contemplar a luz de todos os séculos (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 239).

Além de atuar como professor de canto, oratória e recitação, Delsarte envolveu-se nas questões estéticas e filosóficas da arte. Ele também realizou um minucioso trabalho de compilação de peças vocais (música antiga) cuja qualidade foi descrita com entusiasmo por Saint-Saëns: Esses Archives du Chant eram uma maravilha de beleza tipográfica, de precisão e bom gosto [...] Delsarte procurava a pureza dos textos; os seus sucessores esforçaram-se para tornar as obras antigas mais acessíveis ao público modernizando-as. É penoso constatar este fato: em literatura, se estudamos os textos, procuramos reproduzir, o quanto for possível, toda integridade presente no pensamento do escritor; em música é completamente o contrário: a cada nova edição, um professor, encarregado de guardar e vigiar o precioso material, adiciona anotações de sua própria autoria e invenção (Apud RANDI, 1993, p. 141).

Entre 1840 e 1870, Delsarte organizou cursos de Estética Aplicada organizados em 9 lições, divididas entre três artes: a oratória, o canto e a mímica. Os cursos destinavam-se aos literatos, compositores, atores, cantores e oradores. Entre os inscritos destacavam-se: Maria Malibran, Henriette Sonntag, Jules Lefort, Louis Gueymard, Willian Charles Macready, Eugène Delacroix, Alexandre Dumas, Georges Bizet, Gioacchino Rossini, Aphonse de Lamartine, Theóphile Gautier e Richard Wagner. Alguns se dirigiam aos seminários atraídos pela ciência da expressividade humana, fundamento da oratória, da pintura e da música;

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outros participavam por mera curiosidade, observando-se a visibilidade que ele havia conquistado com o passar dos anos. Ao explicar uma de suas leis da expressão, Delsarte encenava, acompanhado ao piano por sua esposa Rosine, trechos retirados do repertório operístico, sobretudo Gluck, compositor de sua predileção. Não obstante a afonia que o impediu de debutar nas grandes salas de espetáculo, Delsarte era capaz de encarnar os mais diversos personagens da mitologia clássica, conduzindo a audiência ao arrebatamento. Delsarte não estava interessado nos louros de suas performances, mas em comprovar a veracidade de sua ciência destinada a comover, persuadir e convencer através do triplo aparato orgânico: a voz, a palavra e o gesto. O necrológio de François Delsarte pode ser revisitado como um comovente testemunho daqueles rituais mágicos: Escutei Pasta em Semiramide e em Tancredi, Malibran em todos os seus papéis, Pisaroni, Sontag, depois, ao lado delas, Lablanche, Tamburini, Rubini, o incomparável Rubini. Todavia, devo confessar que esses grandes artistas, esses virtuoses perfeitos, essas vozes maravilhosas jamais me comoveram, tocaram-me e transportaramme com uma potência comparável àquela desprendida de Delsarte quando, com sua voz surda e, durante três quartos do tempo, constipada, atacava a ária de Thoas de Ifigênia em Tauride ou o recitativo de Clitemnestra, ou a ária do Castore e Polluce Tristes apprêts, pâles flambeaux. Nunca a ilusão cênica foi levada tão adiante. Sem teatro, sem cenografia, sem figurino, atrás de si um piano e duas velas, ele evocava todos os heróis, todas as heroínas de Gluck e de Rameau com um tal fascínio e tamanha autoridade que eram eles mesmos, encarnados, a se apresentarem diante dos nossos olhos, para serem vistos e ouvidos. E, sobre esse aspecto, sua potência evocativa era tão impressionantemente grande que quando cantava, por exemplo, o admirável recitativo Le perfide Renaud me fuit, esquecíamos completamente o homem robusto de belo porte, sem gravata e flutuante numa sobrecasaca muito larga, que se encontrava diante de nós. Os olhos atestavam comovidos: era Armide em pessoa, a maga desafortunada, e quando bradava Mon lâche chœur le suit, sempre através da boca de Delsarte, o público, arrebatado em suas cadeiras, lançava gritos de admiração e dor (ADOLPHE GUÉROUT apud RANDI, 1993, p. 137).

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Delsarte era um cristão fervoroso. Sua obra carrega as marcas de sua devoção: “Nenhum artista jamais negou Deus” (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 150). Para ele, a arte é um território sagrado, uma manifestação divina responsável pela regeneração da alma até o seu estado original de pureza celestial. De onde vem a fecundidade vivificante da arte? De onde vem o soberano e irresistível domínio que exerce sobre os corações? De sua origem celestial. Sim, senhores, da sua origem celestial. A arte é divina no seu princípio, divina na sua essência, divina em sua ação, divina em seu fim. Qual seria, de fato, o princípio essencial da arte? Não seria, talvez, um conjunto indissociável do belo, do verdadeiro e do bom? Sua ação e seu fim seriam talvez algo diferente de uma tendência e incessantemente direcionada à realização destes três termos? Ora, o belo, o verdadeiro e o bom se encontram apenas em Deus. Então, a arte é divina no sentido de que ela emana da Sua divina perfeição, no sentido de constituir para nós a mesma idéia e, sobretudo, no sentido de que tende a realizar em nós, por nós, fora de nós, esta tripla perfeição que atinge a Deus. A arte é então, definitivamente, um agente misterioso, através do qual as sublimes virtudes operam em nós, pela via contemplativa, a insubjetivação das coisas divinas (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 148-149). A arte é uma relação concisa da beleza esparsa da natureza com um tipo superior e definido. É uma obra de amor, onde brilham o belo, o verdadeiro e o bom. É o símbolo dos misteriosos graus da nossa divina ascensão ou das sucessivas degradações sofridas durante a queda da alma. A arte, enfim, é a tendência da alma decaída em recuperar sua pureza original e o seu esplendor final. Em uma palavra, é a busca de um modelo eterno (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 156).

Em 1848, François Delsarte apresentou um esboço da Academia Universal de Belas-Artes, um projeto por ele concebido no qual os saberes da Antigüidade integravam-se organicamente às novas ciências. A base de sua escola de belas-artes apoiava-se sobre três disciplinas: a música, a plástica e a estética que se expandiam para outros domínios: história, filosofia, retórica, matemática, anatomia,

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solfejo, gramática, dicção, canto, composição, ontologia, dinâmica, simbolismo. O projeto quase foi materializado por Steele MacKaye (1842-1894), um ator estadunidense que atravessou o Atlântico para acompanhar as lições oferecidas por Delsarte em Paris, entre 1868 e 1869. Diante da lealdade de MacKaye, Delsarte considerava-o como um herdeiro espiritual. Ao retornar para casa, MacKaye deu início a uma calorosa correspondência com Delsarte que se tornou uma fonte capital para os historiadores. MacKaye empenhou-se em levantar todos os investimentos necessários para a construção da Academia Universal de Belas-Artes. Os dois, mestre e discípulo, partilhavam do mesmo desejo: criar uma escola de arte fundamentada numa autêntica espiritualidade artística, reunindo e unificando os saberes e reconstituindo a tradição místico-religiosa da arte dramática. A concretização do ambicioso projeto dependeria da vinda de Delsarte para os Estados Unidos onde, além de assumir a direção da Academia de Belas-Artes, ele encontraria todas as condições necessárias para divulgar as teorias da expressividade humana em todo país. O trecho que se segue é um fragmento da última carta escrita por MacKaye em Janeiro de 1871, meses antes da morte de Delsarte: Não temos muito tempo. É preciso que vós estejais aqui no próximo verão para organizar com vossas próprias mãos o vosso conservatório. Que Deus vos conceda a chance de fundar no novo mundo, entre um povo que se encontra ainda numa doce infância, a instituição que deverá conservar as grandes verdades reveladas a vós. Cumpri o vosso dever e concretizai esta nobre tarefa com todos vossos esforços de vontade, inteligência e energia vital. Assim, vossos olhos serão abençoados pela visão de uma obra imortal realizada pela glória de Deus e destinada à regeneração do homem. Guyard, que possui verdadeira veneração por vós, disse: “Delsarte tem a grande e sublime missão de realizar sobre a terra, a recuperação da primeira e mais potente arte entre todas as artes, a arte dramática”. Despertai todas as vossas forças. Sede fiel à sublime missão que carregais e mostrai ao mundo que vós viestes não apenas para recuperar a arte mas, sobretudo, para constituir um fundamento,

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uma ciência, e ainda para restaurar a grande fonte mística de toda potência: a religião (MACKAYE apud PORTE, 1992, p. 19-20).

A eclosão da guerra franco-prussiana impossibilitou a esperada viagem e obrigou Delsarte a se refugiar no interior da França. Em uma de suas últimas cartas destinadas à MacKaye, Delsarte revela a angústia de um homem celebrado e igualmente incompreendido por seus contemporâneos: Eu aqui vegeto, afastado de toda sorte de fontes, privado de roupas e de uma infinidade de objetos imprescindíveis nesta estação rigorosa. Aqueles que me encontram me menosprezam. Afinal, seguindo as palavras do Salvador, ninguém é profeta no seu próprio país. As pessoas, por aqui, são estimadas em função das fortunas que possuem. Eu, julgado pela minha aparência, sou reconhecido pela pobreza. Minha colocação e minha maneira de viver me lançam diretamente na miséria. Ninguém, durante os três meses que me encontro em Solesmes, teve a dignidade de me interrogar sobre qualquer coisa que fosse, sobretudo meus parentes! Quando eu chego a esboçar uma opinião, uma reflexão sobre as coisas que se oferecem ao meu exame, eles me calam imediatamente com um impertinente sarcasmo. De fato, que direito eu tenho de ser ouvido? Eu que sou apenas um pobre diabo cuja miséria parece apresentar aqui a medida de seu mérito. Que valor eu posso ter diante de homens enriquecidos às custas dos sofrimentos alheios? Fazer fortuna não seria para eles o único e verdadeiro talento? Ah! Se eu pudesse ser suficientemente hábil e igualmente canalha para me enriquecer através do detrimento alheio, especulando sua ruína; aos olhos deles, eu seria certamente um homem demasiado honrado! Pois finalmente eu seria rico e, por essa razão, digno do seu respeito. A estupidez e a presunção alcançam por aqui o apogeu de uma absoluta cegueira. Não importa o que seja feito, somos todos, eu e os meus familiares, desde o princípio, considerados como pessoas de muita sorte por termos recebido asilo de um vizinho. Contudo, esse vizinho não perde jamais a ocasião de observar que estamos vivendo às suas custas e que custamos bem caro! Eu deveria, em função das advertências e lições de moral do meu vizinho, abandonar sua casa. Porém... isso é o cúmulo da humilhação! Eu não posso imaginar como sobreviver nem para onde me refugiar! Assim, eu que possuía em Paris uma consideração tão alta e, ouso dizer, igualmente legítima; eu, a quem a elite do mundo elegante exaltou vigorosa-

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mente o talento, e a quem a imprensa acordou com unanimidade os títulos de sábio e célebre; eu, que fui procurado pelos homens mais considerados de nosso tempo que nunca deixaram de se entreter com minhas reflexões íntimas; eu, que fui ouvido e aplaudido por todas as academias em função dos meus ensinamentos; eu, que observei as Tulherias ganharem um ar de festa, iluminando-se com a minha chegada, recebendo afetuosos apertos de mão de três soberanos! Eu, a quem um rei, ainda hoje, considera como um amigo e a quem um príncipe de sangue real solicitou, junto ao seu soberano, fazer uma afetuosa intervenção. Eu, enfim, geralmente honrado pelo caráter bem como pelo talento, eu que acabei de receber das mãos de um ministro uma marca inequívoca de alta distinção, eu me vejo hoje... Oh! Aberração do destino, Oh! Quanto exagero nestas coisas terrenas! Eu me vejo lançado às mais duras humilhações: por não poder pagar sequer o pobre quarto que me serve de refúgio contra a dupla inclemência do tempo e dos homens. Estou reduzido ao desdenhoso abandono da sorte, objeto de sua miséria. A ignomínia que me cerca, a tristeza que provo de não poder fazer uso nem do meu talento nem de minha ciência e, o que é pior, de não poder contar sequer com o consolo de encontrar uma mente ou um coração que possa compartilhar comigo uma idéia ou uma cordialidade. Tudo isso e muitas outras misérias que seria infantil de minha descrever. Tudo isso, eu digo sem me desfazer em absoluto de minha coragem, alterou sensivelmente a minha saúde. Devo afirmar com franqueza que vossa carta atirou sobre minha gélida solidão um ardente raio de sol (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 8-10).

a estética aplicada: um sistema completo de educação do gesto

2 Delsarte teve contato com os preceitos de Jean-Georges Noverre (1727-1810) através do maître de dança e coreógrafo conhecido como Jean-Jacques Deshaye, que foi seu professor de mímica e balé de ação nos tempos do conservatório.

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Desde o instante em que deixou o Conservatório, Delsarte debruçou-se sobre os estudos da expressividade vocal e gestual. Movido por uma obstinação que muito claramente caracteriza a sua personalidade, Delsarte acabou por conceber uma teoria geral da expressividade humana, seus impulsos, fontes e mecanismos psicofísicos. Seu propósito era criar um sistema de educação da expressão tomando como ponto de partida as nas artes do canto, da recitação, da oratória e da mímica2.

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A Estética Aplicada pode ser compreendida como um aglomerado de ciência e arte, resultado de muitos anos de investigação e pesquisa: “Faz cerca de 30 anos que examino estas coisas. Não parti deste ponto de vista, mas fatalmente cheguei aqui” (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 71). Esse sistema é ao mesmo tempo uma prática e uma teoria, um método e um pensamento sobre a potência da arte e o devir do artista: Pois eu não chamo de estética aqueles lugares-comuns e aquela inocência que formam toda a base das conceituadas lições ambiciosamente publicadas sob este título. Arte? Contemplemos juntos esta potência soberana que se apropria dos corações provocando os sentimentos, potência que apazigua nossas aflições e multiplica os nossos prazeres. Potência irresistivelmente gentil, cujo domínio mágico não se estende apenas sobre os espíritos e corações, mas sobre toda natureza. Graças a ela, o artista transforma e anima os corpos inorgânicos, imprimindo sobre eles o caráter da sua vida, da sua alma e do seu espírito. Graças a ela, de passagem sobre esta terra, imperiosos traços do seu ser são deixados. Por esta razão, o artista fixa as coisas fugidias, dando permanência àquilo que é instantâneo, que já não mais existe (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 146).

Delsarte fundamentou suas teorias de modo empírico, analisando a gestualidade de homens, mulheres, crianças e velhos. Ele observou corpos vivos – caminhando pelas ruas, conversando nos cafés, dançando nos bailes da aristocracia – e também os corpos moribundos nos hospitais, manicômios e asilos. Delsarte compilou anotações precisas sobre a gestualidade humana em cada possibilidade de tensão física e emotiva: olhares, giros da cabeça, angulações das sobrancelhas, movimentos da boca, dos ombros, das mãos, do tronco, dos joelhos. Para ele, todo homem emocionado eleva os ombros numa proporção igual à intensidade da emoção, agindo como “termômetros da emoção” (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 62). Os modos de conduta da aristocracia, rapidamente assimilados pela burguesia, eram inteiramente preestabelecidos e controlados numa tentativa de dissimular e ocultar as paixões da alma.

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Ora, o que podemos concluir sobre a ausência do movimento dos ombros entre aqueles constituídos como nobres? Devemos acusálos indiscriminadamente de falsidade? Aqui poderei afirmar de imediato e sem hesitar: sim, todos os nobres mentem! O ambiente onde eles vivem, denominado belo mundo, é uma perpétua mentira. A própria civilização repousa sobre a mentira (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 239).

A condição da arte nesse ambiente de hipocrisia provocou em Delsarte muita revolta: “Nós somos instrumentos de um prazer efêmero... somos servidos após o café... é uma vida miserável” (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 108). Delsarte ousou discutir um assunto bem pouco científico – a linguagem poética do corpo – com os membros da Sociedade Real de Medicina, fórum máximo da reflexão acadêmico-científica oitocentista. O corpo, desprovido de sopro vital, já frequentava havia alguns séculos os anfiteatros das universidades. O corpo vivo, em estado de arte, contudo, não despertava qualquer interesse nos acadêmicos. Hoje nós desenvolveremos a fórmula que eu apresentei outro dia. Essa fórmula, como os senhores observaram, não era muito inteligível... Tentarei esclarecê-la... Alguns ouvintes lamentam- se sobre as fórmulas que apresento: “Mas o senhor intensifica tudo que diz com tantas coisas que não conseguimos chegar a qualquer conclusão. Não há clareza...” Outros me dizem: “O senhor não é suficientemente ilustrativo, o senhor é muito abstrato, não nos oferece exemplos suficientes...São os exemplos que interessam.” Eu compreendo bem tudo isso, mas eu quero vos oferecer algo melhor do que exemplos. Eu quero vos oferecer a luz destes exemplos, o meio para que usufruam deles, pois existem exemplos por toda parte... A natureza está sempre presente e nos oferece magníficas provas todos os dias. Nós não conseguimos fruir destas provas por não dispormos de qualquer fórmula, medida ou critério. É exatamente o que desejo oferecer... Não é um divertimento, mas será interessante para quem realmente desejar encontrar o conhecimento e a justa apreciação das coisas (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 93-96).

Delsarte não desejou separar a arte da ciência, tendo ainda costurado entre elas um eixo místico-religioso Delsarte concebeu princípios

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científicos impregnados de um caráter místico-religioso. As duas leis fundamentais da Estética Aplicada: a lei da Trindade e lei da Correspondência, leis que atuam em conjunto, simultaneamente: Existe um mistério repleto de profundos ensinamentos. Um mistério cujas divinas obscuridades ultrapassam toda luz, cujo esplendor nos ofusca devido a sua sobrenatural claridade e, nos dizeres de um grande santo: “Irradia com esplendorosos raios de luz e inunda de beleza destes fogos os espíritos cegos da cegueira da santidade”. Esse mistério, fora do qual tudo para o homem torna-se tenebroso e incompreensível, ilumina tudo e nos esclarece da causa, do princípio e do fim de todas as coisas. Esse fascinante mistério é o critério universal de toda verdade, é a ciência das ciências que se define por si mesma e que se denomina Trindade. Neste ponto, nós prevemos uma objeção sobre a qual desejamos responder imediatamente. Ficaríamos espantados em observar que um sistema declarado como infalível apóia-se sobre um mistério, e questionaríamos: em quê um mistério poderá colaborar numa questão meramente didática? Paciência, senhores, nada é mais evidente do que a luz, e mesmo assim, a luz é um mistério, o mais obscuro de todos os mistérios. Desta maneira, a luz escapa aos olhos que ela ilumina e eles não são capazes de ver aquilo que garante sua visibilidade. Ora, se a luz é um mistério, por que o mistério não pode revelar-se como luz? Observemos, em primeiro lugar, aquilo que a Igreja nos ensina a respeito desse mistério. Deus é uma palavra que serve de pretexto à todas ilusões, utopias e loucuras humanas. A Trindade é a negação absoluta de todas estas bobagens. Ela é capaz de remediar, preservar e corrigir todas estas incertezas. Subtraia de mim a Trindade e eu nada mais compreenderei sobre Deus. Tudo se tornará para mim obscuro e tenebroso, e eu não terei qualquer razão de esperar... A Trindade, base de todos os seres e coisas, é reflexo da majestade divina em Sua obra. Ela é uma reverberação sobre nós de Sua própria luz. A trindade surge nos menores compartimentos da obra divina e deve ser considerada, como nós já dissemos, como o meio mais fértil de investigação científica. A trindade é nosso guia nas ciências de aplicação sendo, ao mesmo tempo, luz e enigma. Causa, princípio e fim de toda ciência, ela é o critério infalível e é preciso partir dela como um axioma inabalável. Toda verdade é triangular e nenhuma demonstração responde a seu objeto a não ser por uma forma triplamente tripla (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 92-93).

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A Trindade, fundamento de tantas doutrinas religiosas, foi para ele um ponto de partida, desdobrando-se em princípios regentes da expressão dramática. A lei da Trindade, dentro de um movimento de fabricação da verdadeira expressão, estabelece o equilíbrio entre as três partes constitutivas do ser criado à imagem e semelhança de Deus: a vida, traduzida pela fisicalidade do corpo, pelas sensações e sentidos, pela emoção e pelas entonações e flexões, expressa pela voz; o espírito, representado pela intelectualidade, pelo mundo do pensamento e das idéias, expresso através da palavra; e a alma, centro da vontade divina, da moral e dos sentimentos, expressa no gesto. A Trindade, que para ele constituí-se como princípio regulador de todas as coisas, também regula as expressões humanas. O homem participa da tríplice natureza divina: corpo-intelecto-alma, correspondente ao triplo aparato orgânico-expressivo: voz-palavra-gesto. A vida é inicialmente sensitiva, e porque a vida empresta ao espírito, ela é habilidosa, e porque a vida empresta à alma, ela é afetiva. Nos domínios do espírito nós encontramos a mesma coisa: o espírito é essencialmente especulativo. Aí está sua essência. No tocante à vida ele é racional, no tocante à alma ele é reflexivo. A alma é essencialmente mística, esta é sua natureza, isso constitui a alma. Estas três bases de nosso ser nos lançam na direção de três estados perfeitamente distintos; inicialmente é importante constatálos, constatar suas origens, pois a arte não é uma coisa diferente deste triplo estado no homem. Existe então um estado sensitivo, um estado intelectivo e um estado moral. O estado sensível corresponde a três fenômenos: um fenômeno excêntrico, um fenômeno concêntrico e um fenômeno normal. Todas as expressões da vida se reduzem a estes três tipos: tipo excêntrico, tipo concêntrico e tipo normal. Em uma hipótese geral, aquilo que se insere no triângulo à esquerda indica a vida. O que se insere à direita se refere ao espírito e o que se insere na linha medial refere-se à alma. De maneira que cada fenômeno colocado individualmente apresenta estas três razões: razão seminal, razão especulativa e razão anímica. A alma se traduz em três atos: um ato repulsivo, um ato atrativo e outro expansivo. O espírito é impregnado de relações e ele pode ser traduzido pela expressão destas relações (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 97-98).

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A partir da Trindade, François Delsarte elaborou um critério que ele considerava infalível. As triangulações, presentes em todas as coisas, revelar-se-iam em 3 estados: excêntrico, normal e concêntrico. Para ele, cada coisa, objeto ou gesto possui um estado de quietude e equilíbrio, traduzido pelo estado normal; ao sofrer influências de ordem física ou emotiva, esse estado se deslocaria em dois sentidos opostos: o estado excêntrico, em que o gesto se dirige para fora, e o estado concêntrico, em que o movimento corporal se dirige para dentro. Por exemplo: as mãos relaxadas, desprovidas de qualquer tensão ou intenção emotiva, representam a qualidade normal do gesto; ao estendermos as mãos, ampliando o seu volume, dirigimos o movimento para fora do seu centro de normalidade ou quietude e, por conseguinte, indicamos uma alteração do estado psicofísico traduzida pelo estado excêntrico; se cerrarmos as mãos até o seu limite e elas, gravemente contraídas, indicarão o estado concêntrico do gesto. Aplicamos agora aos fenômenos materiais o mesmo gênero de procedimento. Experimentamos os fatos a partir de esquemas geométricos. O resto vocês poderão fazer sozinhos para os fenômenos materiais, para as formas, para os fenômenos fonéticos, dinâmicos etc. Encontraremos sempre fenômenos excêntricos, normais e concêntricos. Em geral, as expressões intelectualizadas possuem uma natureza concêntrica, ou seja, toda expressão racionalizada, recolhida e concentrada. Ao contrário, toda expressão essencialmente vital e veementemente excêntrico. Eis a razão pela qual os movimentos concêntricos tendem à exaltação (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 173).

Delsarte, professor de canto e recitação, também indicou uma aplicação fonética desse critério. Tomemos a vogal a como termo genérico. Essa vogal possui três estados intrínsecos: excêntriconormal-concêntrico. Para alterar o sentimento produzido pela pronúncia dessa vogal, bastaria inserir sobre ela um acento grave ou agudo. Imediatamente produziremos expressões de tristeza (á) ou amabilidade (à). Outro exemplo poderia ser aplicado no riso. O riso efetuado sobre a vogal o é sempre um riso forçado, afetado. Já o riso apoiado na vogal e, expressa um vazio de coração e alma. Se o riso for apoiado na vogal i, indicará zombaria.

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A partir desse criterium, Delsarte concebeu um quadro fundamental inspirado nas progressões harmônicas, em especial à tensão referente ao intervalo de nona, instituindo o Acorde de Nona (Accord de Neuvième): O Acorde de Nona é o critério universal das ciências e artes. Ele foi formulado por Deus juntamente com a criação dos anjos. Os anjos constituem o protótipo das coisas criadas, e qualquer um que houver meditado um pouco sobre a magnitude deste acorde, encontrarse-á iniciado a todos os acordes possíveis. Tudo que nós podemos visualizar no mundo não passa de uma reverberação deste magnífico acorde. Ora, o mundo é a imagem resumida no homem. Assim, podemos dizer, e isto já foi dito, que o homem carrega em si toda a Jerusalém celeste. Ela se reverbera nele. Ele se encontra numa afinidade direta com todos os coros que eu assinalei, e também com toda criação e com a matéria. O homem relaciona-se com a matéria e acaba por transportar seu espírito para ela. Ele espiritualiza a matéria e ele eleva-se através da voz desses espíritos (os anjos) com os quais ele se encontra em perfeita comunicação... Assim sendo, sem ir mais longe, isto constitui um acorde que eu denominei como Acorde de Nona. Qualquer um que queira estudar e experimentar o que quer que seja, encontrá-lo-á nesse Acorde de Nona, pois Deus encontra-se por toda parte em suas criaturas... Sua rubrica, sua adorável Trindade encontra-se por todo lado... Não apenas sua Trindade, mas sua circunsessão e, por conseqüência, este magnífico Acorde de Nona fora do qual é muito difícil estar suficientemente esclarecido sobre as coisas. É deste ponto que eu quis partir. É a partir dele que eu devo partir, é a ele que eu devo entregar todos os fenômenos da arte. Este acorde pode ser encontrado nas coisas mais simples, mais usuais, coisas que não parecem ressurgir dos fenômenos da inteligência, parecendo ser as mais convencionais (DELSARTE apud PORTE, 1992, p. 120).

Cada variação específica do critério excêntrico-normal-concêntrico indicará uma situação perfeitamente determinada. O estado normal, traduzido pelo sentimento de contemplação, de harmonia, de quietude, é o estado natural do ser. Toda característica essencialmente física e vital será manifestada por movimentos de caráter excêntrico, gestos amplos, dirigidos para o exterior. A intelectualidade e o pensamento, possui um caráter concêntrico, expressam-se nos

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movimentos mais refinados, mais sutis, dirigidos para o interior ou para o centro do corpo. Dentro dessa lógica, qualquer movimento humano, qualquer gesto, qualquer flexão de voz poderá ser analisada e compreendida. A triangulação manifesta como vida-alma-espírito possui aplicação relativa ao movimento e suas ordens excêntrico-normal-concêntrico. O Acorde de Nona define o gesto em 9 gêneros e 9 espécies fundamentais. Ao serem combinadas, resultarão num número de possibilidades equivalente a 81. Admite-se ainda mais um conjunto de 9 variações que, multiplicadas pelo o número anterior, produzirão um número total de 729 possibilidades de expressão presentes em cada gesto humano. A segunda lei fundamental, a Lei da Correspondência, expressa a relação do movimento interno da alma, imaterial e subjetivo, com o movimento do corpo, factível de observação: “Toda função espiritual tem correspondência numa determinada função corporal; a cada uma das funções do corpo, corresponde um ato espiritual (DELSARTE apud PORTE, 1992, p.259). As ações físicas e os gestos revelam as paixões da alma, do mesmo modo que os movimentos corporais provocam na alma alguma reação. A relação entre interioridade e exterioridade passa a ser indissoluvelmente colocada. Não existe verdade na expressão humana se não houver correspondência entre os estados físicos e anímicos. MacKaye proferiu em Boston, no dia 31 de março de 1871, uma conferência intitulada Uma Síntese do Sistema Científico de Expressão Dramática de François Delsarte, da qual foi extraído um instigante trecho: A verdade é que o sistema de Delsarte não tem nada de misterioso. Ele tem a simplicidade de uma ciência. A prática pode ser, certamente, rigorosa e delicada, formando uma realidade que pode não ser conveniente aos diletantes que contemplam uma cena como simples ocasião de exibição preguiçosa de suas preciosas e pequenas personalidades. Delsarte busca algo mais elevado e mais importante que a simples apresentação pública da individualidade de um ator. Ele procura transformar um ator num artista, ele procura torná-lo capaz de abdicar de sua própria personalidade, para que ele possa assumir o mais fielmente possível os diversos personagens e

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papéis. Os meios para atingir este fim, tantas vezes negligenciado, mas que desejamos ardentemente, são evidentes e tendem para resultados tangíveis. Ensinamos ao aluno como expressar uma paixão segundo as leis desta paixão. O gesto adequado, a atitude adequada, a expressão adequada do rosto, enfim, a justa e potente representação de um pensamento carregado de paixão. É esta a contribuição que Delsarte nos oferece, e muito mais! Ele nos ensina como conquistar a individualidade durante a expressão da emoção, e acrescenta: faça uso deste sistema de exercícios estéticos e aplique-o nos movimentos de todas as partes do seu instrumento (quer dizer, todo o corpo). Assim, as leis da expressão tornar-seão progressivamente inteligíveis, penetrando, pouco a pouco, sua natureza vital e assim, uma manifestação emotiva, científica e absolutamente precisa, tornar-se-á espontânea. Um rápido exame deste assunto poderá induzir certos espíritos na crença de que a arte dramática, sob a influência de um sistema como este, poderá tornar-se artificial. Bom, esta é uma opinião amplamente superficial. Imaginar que um profundo conhecimento da natureza humana e das leis que governam suas manifestações poderá prejudicar a arte ou o artista é tão absurdo quanto supor que a ciência de base, que é puramente matemática e técnica, poderia ser prejudicial ao gênio musical. É verdadeiro afirmar que o simples conhecimento das leis da harmonia na música não transformam um simples homem de negócios num Beethoven, mas este conhecimento foi primordial para despertar o gênio de Beethoven. Delsarte nos oferece um material equivalente, um dicionário, uma gramática da linguagem do gesto (MACKAYE apud PORTE, 1992, p. 30).

ressonâncias e permanências Em vida, Delsarte já havia conquistado um considerável reconhecimento, sobretudo entre os artistas. Depois de sua morte, os preceitos deixados ecoaram por territórios imprevistos. Logo após sua morte, em 1871, não era raro encontrar ressonâncias de seus ensinamentos nos campos da educação, da higiene, da moral, da religião, da ginástica, da educação física e, sobretudo, na construção de uma nova experiência em dança. Em Paris, alguns discípulos assentaram aquilo que o mestre deixara suspenso. Abbé Delaumosne, Angélique Arnaud e Alfred Gi-

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raudet publicaram respectivamente: Pratique de l’Art Oratoire de Delsarte (Prática da Arte Oratória de Delsarte), em 1874; François Del Sarte: ses découvertes en esthétique, sa science, sa méthode (François Del Sarte: suas descobertas em estética, sua ciência e seu método), em 1882; Mimique, Physionomie et Gestes: pratique d’après le Système de F. Del Sarte (Mímica, Fisionomia e Gestos: Prática a partir do Sistema de F. Del Sarte), em 1895. Steele MacKaye foi o primeiro a organizar o pensamento de seu mestre ser descartar o seu conteúdo dramático e místico-religioso. MacKaye desenvolveu os preceitos da Estética Aplicada e organizou um sistema de exercícios corporais e vocais que ficou conhecido como Ginástica Harmônica. O sistema de MacKaye orientou toda uma geração de artistas, pedagogos e oradores nos Estados Unidos. Não por acaso, afirma-se que: “a maior contribuição para a arte da expressão oferecida ao mundo é o método de François Delsarte; e graças ao seu apaixonado aluno Steele MacKaye, sabe-se mais na América do que na Europa” (SOUTHWICK apud RUYTER, 1990, p. 79). Entre o final do século 19 e início do século 20, foram publicadas nos Estados Unidos diversas obras e supostas traduções das teorias delsartianas. Esse material, excetuando-se o trabalho de MacKaye, é considerado pelos historiadores como uma fonte imprecisa, constituída de dados confusos e contraditórios: Delsarte foi muito difamado e talvez seu devido mérito não seja nunca reconhecido. Morreu sem deixar obras concretas que pudessem garantir sua reputação ao nível que se esperava. Delsarte registrou abundantemente as observações sobre suas teorias e seus experimentos, mas nunca publicou esses escritos. Como conseqüência, não estando presente para fazer objeções, seus alunos publicaram imediatamente manuais fortemente contraditórios. Sua filha, ao vir para a América nos anos de 1890, ficou horrorizada com as coisas que ensinavam em nome de seu pai (...) Seus alunos, distanciados da convivência com a vitalidade de sua pesquisa, foram incapazes de fundar um autêntico método de liberação do gesto; conseguiram apenas substituir um código arbitrário fundamentado em sólidos princípios por um código arbitrário fundamentado numa tradição morta (MARTIN, 1990, p. 40-41).

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Os preceitos dramático-religiosos de Delsarte acabaram sofrendo muitos desvios e mutações, sendo empregados como panacéia dos males morais e espirituais da sociedade estadunidense em plena construção de identidade, fundada sob a égide do puritanismo: Entre 1880 e 1900 não havia na América sequer uma escola de recitação, oratória, canto, ginástica, comportamento, que não se fundamentasse, correta ou incorretamente, sobre os ensinamentos pedagógicos de Delsarte, cujo sistema expressivo, mal compreendido, reinterpretado e reduzido numa panacéia para todos os males, formou o gosto estético da expressão vocal e gestual, na arte e na vida social de toda uma geração de americanos. Um florescimento de manuais ilustrados enriquecidos por exemplificações favoreceu a extensa divulgação dos princípios delsartianos na forma de escalas de exercícios ginástico-vocais graduados, capazes de consentir, não apenas aos atores, cantores e oradores diletantes ou não, mas a toda moça de boa família um comportamento harmonioso e fisiologicamente correto, uma gestualidade expressiva e convincente, uma voz educada e rica de tonalidades, um falar fluente e incisivo (ROPA, 1988, p. 107).

Geneviève Stebbins (1857-1926) contribuiu significativamente para a divulgação dos ensinamentos de François Delsarte, adquiridos com Steele MacKaye e Abbé Delaumosne. Enquanto MacKaye estava interessado na formação de atores, Stebbins concentrou seus esforços na educação corporal das mulheres do novo século, realizando a primeira aproximação desses ensinamentos ao universo da dança. As teorias de Delsarte são possivelmente a melhor fonte aproveitável para a aprendizagem dos gestos e pantomimas. A compilação desses conteúdos se deve a Geneviève Stebbins que teve grande influência sobre a dança moderna (ANATOLE CHUJOV apud LANGLADE e LANGLADE, 1982, p. 51).

Em sua escola, Stebbins aplicava um programa estético-corporal fundamentado nas teorias de Delsarte, no Yoga e no método ginástico de Ling. Esse programa estruturava-se da seguinte maneira: decomposição (relaxamento); postura e equilíbrio harmônico; respiração; exercícios para a desenvoltura das articulações e da coluna

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vertebral; movimentos das pernas; caminhadas; sucessão de movimentos em espiral; atitudes expressivas. Stebbins influenciou diretamente Isadora Duncan (1877-1927), Ruth Saint Denis (1879-1968) e Loïe Fuller (1862-1928), as três revolucionárias mulheres da virada do século, que fomentaram as primeiras discussões sobre o papel da mulher na sociedade, o direito ao voto, à arte, à educação, impulsionando o devir da dança novecentista. Para Isadora Duncan “o corpo e a alma crescerão juntos, tão harmoniosamente, que a linguagem natural da alma tornar-se-á o movimento do corpo (Apud SINISI, 1993: 109). A médica alemã Bess Mensendieck3 também foi aluna de Stebbins, assim como Hade Kallmeyer4. Ao retornar para a Alemanha, Mensendieck concebeu um método ginástico feminino largamente empregado na educação física higienista e estética das mulheres alemãs.

3 Não há referência sobre as datas de nascimento e morte desta autora. 4 Idem.

Rudolf Bode (1881-1971) herdou o legado de François Delsarte através de Hade Kallmeyer e das lições de Rítmica ministradas por Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) que, por sua vez, assimilou os preceitos da Estética Aplicada quando realizou estudos dramáticos em Paris no final do século 19. Bode desenvolveu a Ginástica Expressiva (Ausdrucksgymnastik) inspirado no sistema de Delsarte. Ao instituir a denominada unidade orgânica compreendida na tríade corpo-mente-alma, Bode recuperou o axioma central da Estética Aplicada, a Lei da Trindade: A partir da idéia de que toda experiência emocional é uma experiência de totalidade, nossa vida emocional reage especialmente na totalidade do movimentos corporais. Todas as formas de ginástica que não se aplicarem sobre a totalidade dos movimentos corporais incorrerão no mesmo perigo que um esporte centrado apenas nos resultados de pontuação. Desse modo, o organismo vivo tornar-seá um mecanismo morto (BODE, 1931, p. 42).

Grandes discussões sobre a obra de Delsarte foram realizadas no campo da dança em construção no início do século 20, especialmente nos Estados Unidos, o que causa um certo estranhamento pois:

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As questões colocadas por Delsarte nada tinham a ver com o campo habitual da dança. Por outro lado, ele questionava de maneira radical o papel do corpo e do movimento na relação com a função simbólica do sujeito (...) A ciência do gesto, uma certa leitura do corpo em movimento ligado à expressão, pertencia a uma outra época, por um certo número de questões. Por outras questões elas pertenciam a uma época que estava por vir. Delsarte, talvez sem saber, fez a relação (LOUPPE, 1997, p. 50).

5 Em 1914, Shawn fundou uma escola de dança juntamente com Ruth Saint Denis, sua esposa. A Denishawn School of Dance orientou a formação de toda uma geração de dançarinos e coreógrafos que modificaram definitivamente o panorama da dança no ocidente. Entre seus alunos mais famosos destacam-se Martha Graham e Doris Humphrey que responsáveis pela formação de Eric Hawkins, Merce Cunninghan, Paul Taylor e Jose Limón.

O responsável por essa inesperada e definitiva aproximação foi Ted Shawn (1891-1974), um dos artistas mais importantes no processo de elaboração de uma nova dança novecentista5. Ao investigar o material deixado por Steele MacKaye, Shawn encontrou os dados que o conduziram a conceber a denominada modern dance, concebida a partir dos princípios e leis da Estética Aplicada. Devido às inibições, aos adestramentos e influências advindos da escola e do lar, à prevalência dos esportes e jogos como única forma de educação física, o corpo adulto de uma pessoa comum no mundo ocidental de hoje não é capaz de produzir a pura sucessão da vontade. Esta é uma das razões pelas quais Steele MacKaye criou a Ginástica Harmônica, com a aprovação de Delsarte, no sentido de treinar e disciplinar o corpo, que se tornaria um responsável e sério instrumento através do qual cada movimento fluido poderia transpassar sem os obstáculos da dureza e inflexibilidade das articulações e músculos. O uso consciente da Lei das Sucessões foi um dos maiores princípios utilizados por Isadora Duncan, Ruth St. Denis e por mim mesmo, e que modificou completamente o quadro da dança americana neste século 20 (...) Eu incluirei uma miscelânea de várias observações, descobertas e discussões sobre os vários modelos de corpo e de suas expressões, retiradas de diversas fontes durante um período de vários anos – mas todos originados de François Delsarte. Algumas destas observações são retiradas diretamente das minhas recordações das aulas com a Senhora Hovey, outras foram levantadas a partir dos diversos livros que eu venho acumulando, ou ainda através das discussões feitas com outros professores que também acreditavam e utilizavam as leis de Delsarte em suas próprias carreiras, como performers ou professores (SHAWN, 1963, p. 49-50).

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Intenções, gestos e palavras desvinculadas das leis fundamentais da expressão tornar-se-iam falsas, convencionais, afetadas, como é possível observar nas observações de Ted Shawn: Eu me lembro de um jovem ator na Austrália interpretando um soldado grego durante uma cena de grande força emotiva. Suas expressões faciais, o tom e as inflexões do seu discurso, os gestos dos seus braços e mãos eram absolutamente admiráveis. Mas ao posicionar-se com os pés unidos e um joelho relaxado durante a cena de suposta veemência, tudo que estava sendo dito e executado era denotado de falsidade e fraqueza (SHAWN, 1963, p. 44).

Em 1954, Ted Shawn publicou a obra Every little Movement: a book about François Delsarte (Sobre a sutileza de cada gesto: um livro sobre François Delsarte), dedicada ao mestre François Delsarte e à professora Henrietta Hovey. Essa obra de referência foi organizada em quatro capítulos: I. François Delsarte: o homem e sua filosofia; II. Uma síntese das leis da ciência de Delsarte; III. A aplicação das leis da expressão na arte da dança; IV. A influência do delsartismo na dança dos Estados Unidos; seguidos de uma fervorosa conclusão: Novamente, como eu expus na introdução, é preciso encerrar expressando o vislumbre que tenho frente à vastidão deste sujeito, e afirmando a inadequação deste pequeno livro. Eu reluto em levar este manuscrito para a editora, pois há muito mais por ser feito, e que deve ser feito. No entanto, eu também sinto igualmente a necessidade de trazer esta ciência do esquecimento, da obscuridade e dos lugares secretos das mentes dos poucos mestres ainda vivos que a utilizam. Esta ciência é tão valiosa, tão desesperadamente necessária! Tenho a sincera esperança que este livro promova um impulso para a pesquisa, instigando professores num longo e completo estudo dos princípios e leis da ciência de Delsarte. Através de conhecimento, de um treinamento disciplinado, o sólido ensino destas leis beneficiará não apenas dança e as artes performáticas, mas também a educação física, a todo o campo educacional, a psiquiatria, a medicina psicossomática e, desse modo, sendo capaz de aperfeiçoar integralmente toda a humanidade (SHAWN, 1963, p. 127).

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Os manuscritos de François Delsarte encontram-se ainda dispersos. Parte substancial desse material encontra-se reunida – mas não catalogada – no Hill Memorial Library (Universidade Estadual de Louisiana, Departamento de Oratória), sob o título de Delsarte Collection. Numerosas obras, artigos teses foram publicadas sobre as teorias de Delsarte desde o final do século 19 até o presente momento. 6 Como as dissertações de mestrado de MADUREIRA, José Rafael. François Delsarte: Personagem de uma Dança (re) descoberta (2002), e ANDRADE, Carolina Romano de. O Gestual Humano e o Barroco Mineiro à luz dos estudos de François Delsarte (2006), ambas defendidas na Universidade Estadual de Campinas.

No Brasil, excetuando-se alguns trabalhos introdutórios6, François Delsarte permanece esquecido nas notas de rodapé ainda que a tradição por ele fundada, de um corpo vívido e expressivo, permaneça viva em muitos lábios. O esforço dos historiadores, acadêmicos e artistas em recuperar as memórias emudecidas de François Delsarte revela um desejo manifesto de resistência contra a banalização da gestualidade humana, num momento em que a o corpo vem sendo perversamente substituídos por valores de mercado, consumo, descartável. O homem carrega consigo inegáveis traços de uma grandeza fulgurosa. Não é possível que tenha saído tão mutilado das mãos do seu criador; não é possível que Deus o tenha mutilado, deformando desta maneira a semelhança com si mesmo (...) Seria possível que Deus não tivesse sido capaz de criar com perfeição sua obra preferida, ou que tivesse desejado, ao final da criação, mutilar a semelhança consigo mesmo? (DELSARTE apud RANDI, 1993, p. 53).

Resumo: O propósito deste artigo é apresentar a tradução de alguns fragmentos autobiográficos de François Delsarte (1811-1871), reconhecido pela historiografia do espetáculo (ROPA, 1988; PORTE, 1992; RANDI, 1993) como protagonista da refundação teatral novecentista, em especial no campo da dança. Langlade e Langlade (1982) também apontam Delsarte como grande inspirador dos métodos ginásticos modernos, na Europa como nos Estados Unidos. Delsarte desenvolveu uma vasta teoria sobre a expressividade humana – suas fontes e mecanismos psicofísicos – que culminou num sistema de educação do gesto denominado Estética

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Aplicada (Esthétique Appliquée) inicialmente destinado aos atores líricos e oradores e, algum tempo depois, revisitado pelo dançarino Ted Shawn (1891-1972), responsável pelo desencadeamento de uma nova tradição em dança. Palavras-chave: François Delsarte (1811-1871), Estética Aplicada, corpo, educação, arte.

Abstract: The purpose of this paper is to present the translation of some autobiographical fragments by François Delsarte (1811-1871), recognized by the historiography of theater (ROPA, 1988; PORTE, 1992; RANDI, 1993) as protagonist of the twentieth-century theater refoundation, specially in the field of dance. Langlade & Langlade (1982) also consider Delsarte the great inspirator of modern gymnastic methods, in Europe as well as in the United States. Delsarte has developed an extensive theory on human expressivity - its sources and psychophysical mechanisms - which has culminated on a gesture education system named Applied Aesthetics (Esthétique Appliquée).This system was initially intended for lyric actors and orators, but was later revisited by the dancer Ted Shawn (1891-1972)who wasresponsible for the beginning of a new tradition in dance. Keywords: François Delsarte (1811-1871), Applied Aesthetics, body, education, art.

Resumen: Este artículo tiene como finalidad presentar la traducción de algunos fragmentos autobiográficos de François Delsarte (1811-1871), que fuera considerado por la historiografía del espectáculo (ROPA, 1988; PORTE, 1992; RANDI, 1993) el protagonista de la refundación del teatro nove-

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centista, especialmente, en el ámbito de la danza. Además de haber sido señalado por Langlade y Langlade (1982) como el gran inspirador de los métodos gimnásticos modernos, en Europa y en los Estados Unidos. Delsarte desarrolló una teoría considerable sobre la expresividad humana – sus fuentes y mecanismos psicofísicos – que desembocó en un sistema de educación del gesto denominado Estética Aplicada (Esthétique Appliquée) dirigido, inicialmente, a actores líricos y oradores. Tiempo después, fuera retomado por el bailarín Ted Shawn (1891-1972), quien llegó a desencadenar una nueva tradición en la danza. Palabras clave: François Delsarte (1811-1871), Estética Aplicada, cuerpo, educación, arte.

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e-mail: rafadanse@hotmail.com

Recebido em 19/12/2008 Aprovado em 15/04/2009

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nietzsche e a arte como abrigo espiritual

Antônio Leandro da Silva Pesquisador do CNPq e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP

demolindo as religiões Friedrich Wilhelm Nietzsche1 tornou-se conhecido como demolidor de religiões, pois enquanto um gênio revolucionário colocou sob suspeita o modelo do pensamento judeu-cristão. Segundo ele, haveria duas religiões da decadência: o budismo e cristianismo2. Este porque “promete tudo, mas não cumpre nada”; aquele porque “não promete, mas assegura”. É essa postura cética que perparça as idéias nietzschianas diante da religião tradiconal. Filho de uma época em que a ciência positivista pensava dar resposta às angústias e “tragédias” humanas, Nietzsche rompeu com os paradigmas tanto dessa ciência quanto do absolutismo moral e religioso do cristianismo. Combateu radicalmente tal moral porque compreendera que ela estava imbuída de um ascetismo que levava o homem à miséria, à imundície e à conformidade. Segundo ele, o instinto teológico3 teria sido o responsável pela construção da visão de um “mundo verdadeiro”, ou seja, “fizera da realidade uma ‘aparência’; um mundo completamente forjado, o da essência, apresentando-se como realidade”4. Por isso, Nietzsche propõe solapar as bases estruturantes da cultura cristã. Ele próprio assegura: “Eu não sou um homem, sou dinamite (...). Eu não quero ser um santo, eu prefiro ser um maganão”5.

1 Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu no dia 15 de outubro de 1844 em Rocken (Baixa Saxônia) e morreu no dia 25 de agosto de 1900. 2 F. Nietzsche (2005). O anticristo, §s XX-XXIII, pp. 52-55.

3 F. Nietzsche (2005). O anticristo, § IX, p. 43.

4

Idem, § X, p. 44.

5 F. Nietzsche (2003). Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 1, p. 144.

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Essa perspectiva o põe numa postura diferente tanto dos ateus quanto dos agnósticos, pois embora estes tenham abominado a polarização entre o corpo e a alma – presente no cristianismo - terminaram analisando o papel do homem no universo a partir de um corpo epistemológico impregnado de idéias cristãs. Nietzsche, ao contrário, se propõe ir além desse pensamento porque sabia que somente surgiria o além do homem com a destruição, por completo, da cultura e civilização cristãs. Para ele, o cristianismo foi o maior empecilho da humanidade porque desprezou o corpo, negando conseqüentemente também a sua rendenção.

6 F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano. Prólogo, aforismo 1, p. 7. 7 F. Nietzsche (2003). “Por que sou um destino”. Ecce Homo, aforismo 1, p. 144.

F. Nietzsche (2005). Genealogia da Moral, aforismo 6, p. 12, grifo meu. 8

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano. Prólogo, aforismo 1, p. 7.

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Nietzsche, ao longo de todas as suas reflexões filosóficas, punha sob suspeita o sentido dos valores morais estabelecidos pela religião tradicional. O filósofo – além de mostrar o lado “trágico” da existência humana e a sua permanente busca de vivenciar a verdade – buscou destruir o quimérico mundo criado pelo pensamento ocidental cristão. Por isso, ele propõe a “inversão das valorizações habituais e dos hábitos valorizados”6. Disso resulta que a “Transvalorização de todos os valores”7 é ultrapassar um conhecimento centrado no Sujeito, porque este seria composto de forças reativas. Nietzsche postula um corpo de “muitas almas”, e não o domínio de um Sujeito unitário, formado de um núcleo fechado e estável. Sua postura é por demais clara: “Necessitamos de uma crítica dos valores morais, onde o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão”8. Com efeito, as mudanças sociais, culturais e religiosas, na última metade do século XX e início do XXI, tomam proporções jamais vistas em outro momento da história humana, pois os indivíduos, livres do “espírito de rebanho”, passaram a pôr reticências e até a desconfiar das normas socializantes tradicionais, sobretudo a moral religiosa. Assim, o homem, no dizer de Nietzsche, passou a suspeitar de tudo; ele passou a olhar o “mundo com profunda suspeita”, tornando até mesmo “inimigo e acusador de Deus”9. O autor, então, procura recuperar o corpo, trazendo o homem para terra, onde ele vive a tragicidade da vida, isto é, sujeito às vicissitudes do mundo. É na terra que o homem experimenta o embate dos impulsos contrários: o dionisíaco ligado à exarcebação dos sentidos, à embriaguez extática e mística e à supremacia amoral

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dos instintos cuja figura é Dionísio, deus do vinho, da dança e da música; e o apolíneo, face ligada à perfeição, à medida das formas e das ações, à palavra e ao pensamento humano (logos), representada pelo deus Apolo. Nessas duas forças, encontra-se a vitalidade da cultura e do homem grego. Por meio delas, surge a “tragédia”. Mas do pensamento socrático emerge o homem racional, o qual acabou vítima do cristianismo. Assiste-se assim ao fim do homem trágico. Segundo Deleuze, o que levou à “morte da tragédia” foram as três formas básicas de otimismo encontradas em Sócrates: “A virtude é um saber; só pecamos por ignorância; o homem virtuoso é feliz” (DELEUZE, 2001, p. 53). Partindo das idéias clássicas gregas, Nietzsche constrói sua perspectiva do mundo centrada em um indivíduo com todos os seus dramas humanos, sentimentos trágicos, ideais imaginários e desejos de solidão. Com efeito, se o século XVIII foi marcado pela objetividade, pelo Iluminismo e pela razão, o início do século XIX seria marcado pelo romantismo, pela subjetividade, pela emoção e pela auto-afirmação do sujeito. Contudo, Nietzshce ainda se distancia do ateísmo do século XIX, porque este serviu para minimizar o homem, metamorfoseando-o num objeto relevante para a exploração do modo de produção capitalista. Nesse sentido, pode-se dizer que, embora Nietzsche esteja marcado pelas idéias ateias, não obstante, ele se distancia delas porque os adeptos e defendores dessas idéias apenas postulavam a “não existência de Deus”, porém, sem negar o núcleo fundamental da civilização cristã, isto é, seus valores morais e culturais. Nietzsche, contrariamente, será o primeiro a colocar a importância de se negar não só ao Deus cristão, mas também aos fundamentos psicológicos da cristandade e sua fundamentação moral. Com isso, ele anuncia uma nova perspectiva de ver o mundo e o homem. E Zaratustra é, em parte, a base recorrente desse novo mundo cujas imagens expressam um conteúdo espiritual ausente de Deus e do pecado, mas com inúmeras profundidades. Essa espiritualidade não deve ser pensada com as categorias cristãs de espírito como unidade, como algo fechado e rígido, senão compreendida como um rio caudaloso cuja eficácia somente aparece quan-

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do a vontade de poder atua transformando o homem em uma fonte a partir da qual todo o rio pode se refletir.

a arte como abrigo e fonte criadora de valores

F. Nietzsche (1896). Crepúsculo dos Ídolos, p. 79.

10

11

Idem, p. 79.

F. Nietzsche (2005). Assim Falava Zaratustra. Prólogo § IV, P. 19.

12

Percebe-se a existência de uma espiritualidade nietzschiana através da via artística, pois, por meio da arte – O Nascimento da Tragédia (1871) -, ele resolve as contradições do conhecimento, contrariamente à moral religiosa que não libertaria o homem das amarras religiosas estabelecidas pelo cristianismo. A perspectiva de Nietzsche é de uma espiritualidade aberta cujo fundamento encontra-se em um devir que não dá resoluções prontas e definitivas ao homem, mas este, em meio às contingências e “tragédias”, utiliza-se de vias que lhe dão sentido à vida, basta ganhar as asas do além do homem. Por isso, Nietzsche compreende a arte como um “grande estimulante da vida”10. Por meio da arte, o homem teria a missão de “instaurar o mundo”, pois inerente a ele encontram-se forças para a criação de valores. Daí o autor defende a “arte pela arte”, isto é, sem nenhuma relação a um fim moralizante. Nietzsche era contra a “subordinação da arte à moral”. Ela não deve ter como fim “edificar e melhorar os homens”. E conclui: “antes não ter fim que ter um fim moral”11. Se há um universo sem Deus, portanto, não existe um sentido último da vida, porque esta não tem nenhum fim teleológico. Tudo que existe é absolutamente necessário. Nesse sentido, até o acaso é necessário. O além do homem é a junção da “imanência e do devir”. O homem não é um fim, mas uma ponte para algo maior que já está nele, in potentia. Diz Nietzsche: “A grandeza do Homem é que ele é uma ponte e não um fim! O que podemos amar no Homem é que ele é transição e perdição”12. Há no homem, portanto, um quanto de potência que o faz se expandir. É essa força ativa que o faz produzir valores a partir de si mesmo, diferentemente do ressentido que os produz de fora, a partir do outro. A figura de Zaratustra é recorrente porque ela traz, em seu próprio interior, esse conteúdo espiritual, de uma profundidade muito grande. Ele cultiva-o no relacionamento com o mundo, o corpo e

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a natureza. Há uma mística bastante elevada cuja concentração encontra-se na própria vida de Zaratustra. A experiência da montanha lhe dá um alimento para sua existência na terra. No alto, ele busca forças para partilhar com os homens. Ele basta a si mesmo. Interessante perceber que aos trinta anos, Zaratustra renuncia a sua própria pátria e parte para as montanhas. É na solidão que ele encontra o caminho da metamorfose. Isso ele reconhece ao perceber que seu coração mudara quando, em plena manhã, confrontase com uma nova luz. Aqui ressurge o “novo” homem que, tendo acumulado sabedoria, pode “descer às profundidades”, para levar sua “luz ao mundo subterrâneo”13. Não seria isso aquele processo de individuação trazido por Jung, mostrando a forma pela qual o indivíduo tenta se descobrir e assumir sua face? O olhar suspeitoso de Nietzsche levou-o à “procurar abrigo em algum lugar”14. A religião não seria o seu porto seguro existencial. Se “o homem está condenado a ser livre”15, como diz Sartre16, portanto, em suas mãos há o poder para construir seu próprio abrigo. E Nietzsche assegura que, não encontrando esse abrigo na moral religiosa e na metafísica cristã, teve que falsificar e criar o seu, daí encontrou refúgio na poesia, na literatura. É compreensível que o filósofo, por meio da poesia, tenha construído a “crença de não ser de tal modo solitário”17. Em outras palavras, por meio da literatura, Nietzsche manteve a “alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade)”18. Assim, o filósofo revela o lado trágico do ser humano em meio às suas contingências - doença, solidão, exílio, paixões, inatividade. Mas para que o homem possa permanecer com a “alma alegre”, exige-lhe encontrar um abrigo, e Nietzsche propõe a crença na arte como possibilidade de o homem não ser de tal modo solitário e nem se deixar sucumbir em meio a muitos males. Para ele, “os homens crêem na verdade daquilo que visivelmente é objeto de uma forte crença”19. Nesse processo espiritual há um componente de ligação que é inerente ao próprio processo - não tem como separar o real e o irreal na teia da subjetividade. “A transcendência é sempre um produto da imanência” (DELEUZE, 2007, p. 3).

F. Nietzsche (2005). Assim falava Zaratustra, Prólogo § I, p. 15.

13

14

Idem, aforismo 1, p. 7.

SARTRE, Jean-Paul (1973). O existencialismo é um humanismo. P. 11.

15

Jean-Paul Sartre foi um filósofo existencialista do século XIX.

16

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, Prólogo, aforismo 1, p. 8.

17

18

Idem, aforismo 2, p. 8.

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, “Capítulo II”, aforismo 52, p. 53.

19

Neste caso, a evolução espiritual dar-se-ia por meio de vias que dispensariam a religião. Mas essa transição não aconteceria de ime-

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F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, “Capítulo I”, aforismo 27, p. 34. 20

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Idem, aforismo 27, p. 35.

diato, porque “a passagem da religião para a concepção científica é um salto violento e perigoso, algo a ser desaconselhado”20. Por isso, Nietzsche está consciente de que, na “economia espiritual”, seriam “necessários, ocasionalmente, círculos de idéias intermediárias”. Daí ele afirma ser melhor recorrer à arte no processo transitivo, porque se valendo da arte “pode-se passar mais facilmente para uma ciência filosófica realmente libertadora”21. Isso se dá dentro de um permanente fluxo de rupturas e caos, isto é, entre desfechos, transições e mutações contínuas que não estão separadas por eventos distintos no tempo/espaço. Orientando-se por tal perspectiva, Nietzsche indica que o homem pode evoluir espiritualmente, sem necessariamente a mediação da religião tradicional. Assim, uma espiritualidade isenta do manto da religião organizada (igrejas/templos) daria ao homem a liberdade para cultivar e cuidar de sua própria alma por meio de práticas que transcenderiam às da religião organizada. O homem não estaria preso aos ritos, às normas, aos dogmas e preceitos pré-estabelecidos. Para Erich Fromm “não é verdade que temos de renunciar ao interesse pela alma se não aceitamos os princípios da religião” (Apud ELKINS, 1998). Em outras palavras, é possível a pessoa se interessar e cultivar a espiritualidade sem que seja preciso aderir aos princípios da religião; dessa forma, o desenvolvimento espiritual da pessoa independe de uma instituição religiosa estabelecida. Segundo Elkins (1998, p. 21), “a separação entre espiritualidade e religião é uma das maiores mudanças sociológicas de nosso tempo e está no coração da maior revolução espiritual no Ocidente desde a Reforma Protestante”. Essa postura encontra-se subjacente tanto em Nietzsche quanto na Reforma Protestante (século XVI), quando seus adeptos e protagonistas argumentavam que os cristãos tinham o direito de interpretar a Bíblia por si mesmos e de aproximarse de Deus diretamente, sem a interpretação do padre e da igreja (ELKINS, 1998, p. 23). Além disso, com o Renascimento há um “crescente sentimento de liberdade do indivíduo – a inebriante percepção de seu coração, em detrimento das ordens de qualquer instituição, é a última instância de apelação” (ELKINS, 1998, p. 23). E Nietzsche, portanto, elogia o Renascimento italiano, dizendo que através dele houve a “emancipação do pensamento, desprezo das

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autoridades, triunfo da educação sobre a arrogância da linhagem, entusiasmo pela ciência e pelo passado científico da humanidade, desgrilhoamento do indivíduo, flama da veracidade e aversão à aparência e ao puro efeito”22.

22

Idem, aforismo 237, p. 151.

a grande política – um novo homem A criação do “Super-Homem” é uma metáfora do homem livre e soberano em seus próprios desejos e sentimentos. O próprio “Super-Homem” responderia às necessidades psíquicas do homem contemporâneo; é o tipo do “novo” homem em cuja alma haveria uma grandeza transformadora. Ao homem atual bastaria apenas produzi-lo para quebrar as cadeias de uma metafísica que não o deixa livre. Com isso, ele se libertaria “de muitas concepções tormentosas; nada mais sentiria ao ouvir palavras como castigo do inferno, pecaminosidade, incapacidade para o bem: nelas reconheceria apenas as sombras evanescentes de considerações erradas sobre o mundo e a vida”23. A luta de Nietzsche contra o “espírito de rebanho” foi insistente e permanente, pois para ele, a “grande liberação” dá-se quando a alma, de súbito, é tomada pela suspeita de tudo que antes amara. Essa será a grande política, porque vencerão somente os de espírito forte. Assim afirma ele: Um clarão de desprezo pelo que chamava “dever”, um rebelde, arbitrário, vulcânico anseio de viagem, de exílio, afastamento, esfriamento, enregelamento, sobriedade, um ódio ao amor, talvez um gesto e olhar profanador para trás, para onde até então amava e adorava; talvez um rubor de vergonha pelo que acabava de fazer, e ao mesmo tempo uma alegria por fazê-lo, um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória24.

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano. “Capítulo II”, aforismo 56, p. 55, grifo meu.

23

24

Idem, aforismo 3, p. 9.

A vitória do homem sobre o “sentimento de pecado” deixou-o livre para dar forma à sua vida a partir das suas escolhas, cujas aspirações passam também pelas suas paixões. Esse lado trágico do homem encontra-se naquela aspiração ideal dos gregos que amavam as paixões, isto é, “colocavam-nas num plano muito alto, douravamnas e deificavam-nas; era bem evidente que se sentiam na paixão

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F. Nietzsche (1984). A Gaia Ciência, Livro III, § 139, p. 153.

25

F. Nietzsche (2005). O Anticristo, § II, nota de rodapé nº. 4, p. 39.

26

não só mais felizes, mas ainda mais puros, mais divinos, do que de costume”25. Parece-nos que a realidade atual dos indivíduos passa por uma aspiração ideal similar à dos gregos. No O Anticristo (1895), Nietzsche diz que o problema não é saber qual é o lugar do homem na escala dos seres senão qual tipo de homem que se deve criar. Diferentemente de uma visão religiosa em que o homem é colocado segundo uma escala de superioridade dentre os seres criados por uma força absoluta, exterior ao homem, Nietzsche faz uma inversão: ao invés de procurarmos o lugar devemos construir o tipo de homem. Na sua concepção, esse tipo vem munido da virtu, ou seja, de uma virtude desprovida de moralismos; o que se sobressaem são as suas próprias qualidades físicas e morais, os atributos viris tais como a coragem, a bravura, o vigor, a energia26. “O homem trágico afirma mesmo o mais duro sofrimento, de tal forma ele é forte, rico e capaz de divinizar a existência” (DELEUZE, 2001, p. 54). Essa é, portanto, a grande política nietzschiana: no homem encontra-se a imanência. Uma vida está por todos os lugares, por todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objetos vividos: vida imanente trazendo os acontecimentos ou singularidades que apenas se atualizam nos sujeitos e objetos. Essa vida indefinida não tem, ela mesma, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entretempos, entremomentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio em que se vê o acontecimento ainda porvir e já transcorrido, no absoluto de uma consciência imediata. (DELEUZE, 2007, p. 3)

27

Idem, § III, p. 39.

28

Idem, § VII, p. 41.

O homem nietzschiano é diferente daquele criado pelo cristianismo cujas qualidades seriam as de um “animal doméstico, do rebanho, a enferma besta humana – o cristão...”27. Para Nietzsche, o cristianismo havia disseminado “valores de decadência” através da doutrina da piedade que levou ao enfraquecimento das “paixões revigorantes” que aumentam a sensação de viver. Afirma ele que “a humanidade aprendeu a chamar a piedade de virtude, quando em todo sistema moral superior ela é considerada como uma fraqueza”28. É esse tipo de homem que o autor de Zaratustra combate radicalmente por meio de seus textos poéticos e filosóficos. Não é em vão

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quando diz: “Chegamos ao conhecimento de que a história dos sentimentos morais é a história de um erro, o erro da responsabilidade, que se baseia no erro do livre-arbítrio”29. Mas o homem idealizado por Nietzsche é de tipo superior porque tanto desconhece qualquer piedade doentia quanto não carrega o desejo do instinto de fraqueza30, pois esses seriam atributos do homem que não cria, porque é um tipo que apenas conserva normas e metafísicas já estabelecidas pela ordem. Com efeito, Nietzsche é um crítico implacável da moral religiosa porque, segundo ele, esta moral levou o homem tanto a negar quanto a desprezar a realidade, a natureza. A negação do “sentimento de prazer” seria a causa desta moral e religião fictícias31 que desprezam a terra, e, portanto, o corpo. Por isso, o filósofo irá mostrar que a contradição entre Dionísio e Cristo encontra-se nas diferentes formas de martírio. A causa do martírio de Dionísio, da sua destruição, da vontade de nada, está na “própria vida, na eterna fecundidade, no seu eterno retorno”; enquanto que no Cristo, “o sofrimento do “Crucificado inocente” testemunham contra a vida, condenam-na” (DELEUZE, 2001, p. 54, grifo meu). Não obstante a isso, Nietzsche afirma que Jesus é um “espírito livre” porque não guardou ressentimento32.

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, “Capítulo II”, aforismo 39, p. 45.

29

F. Nietzsche, (1984). A Gaia Ciência, V, § 347, p. 240.

30

F. Nietzsche (2005). Anticristo, § XV, p. 49.

31

32

Idem, § XXXIII, p. 66.

Mas Nietzsche chama a atenção para os riscos da moral que nega o prazer, quando diz: Eu vos exorto meus irmãos! Permanecei fiéis à terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres. São envenenadores, quer saibam ou não! São menosprezadores da vida! Moribundos que se envenenaram a si próprios, de quem a terra está cansada. Podem muito bem desaparecer!33

A postura de Nietzsche é não dar crédito àqueles que falam de coisas para além do homem terreno. Seria uma mentira absurda. Para ele, o tipo de homem da moral cristã traria um perfil de alguém depreciador da vida, doentio e envenenador. “O cristão nega até a sorte mais feliz na terra; é pobre, fraco, deserdado a ponto de sofrer com a vida sob todas as suas formas” (DELEUZE, 2001, p. 54). Por causa dessa moral, Nietzsche posiciona-se energicamente contrário à religião. Talvez esta seja uma política “pequena” que o autor

F. Nietzsche (2005). Assim falava Zaratustra, Prólogo, § III, p. 16.

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F. Nietzsche (2005). Anticristo, § V, p. 40.

34

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, Prólogo, aforismo 3, p. 10.

35

F. Nietzsche (1984). A Gaia Ciência, Livro V, § 347, p. 240.

36

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, Prólogo, aforismo 6, p. 12.

37

38

Idem, aforismo 5, p. 11.

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, Prólogo, aforismo 7, p. 13.

39

O orkut é uma comunidade virtual afiliada ao Google, criada em 22 de Janeiro de 2004 com o objetivo de ajudar seus membros a criar novas amizades e manter relacionamentos. Seu nome é originado no projetista chefe, Orkut Büyükkokten, engenheiro do Google. Sistemas como o adotado pelo projetista, também são chamados de rede social. Site: pt.wikipedia. org/wiki/Orkut. Pesquisado em 27 de agosto de 2007, às 11h40min. 40

O Censo de 2000 indica que 9.8% dos jovens entre 15 a 24 anos se declararam “sem religião”.

queira desmistificar, visto que ela “tomou partido de tudo o que é fraco, baixo, incapaz, e transformou num ideal a oposição aos instintos de conservação da vida saudável”34. Indiferente a tal política, ele propõe então a grande política! Nessa perspectiva, há duas qualidades de vontade de poder trabalhadas por Deleuze (2001, p. 61): “o instinto que degenera e que se volta contra a vida com um ódio subterrâneo (cristianismo, filosofia de Schopenhauer); e uma fórmula da afirmação superior, nascida na plenitude e da abundância, uma aprovação sem restrições à própria aprovação do sofrimento, até do erro, de tudo aquilo que a existência tem de problemático e de estranho”. A afirmação superior significa a erupção de vontade e força de autodeterminação, de determinação própria dos valores, uma vontade de livre vontade35. Com efeito, Nietzsche reconhece o homem como criador do seu próprio ideal do qual deduz a sua lei, os seus prazeres e os seus direitos. Ele é soberano, legisla por si mesmo. Ele é um “espírito livre”, portanto, criador de “religiões, metafísicas e convicções de todas as espécies”36. Encontra-se aqui um sujeito protagonista de suas próprias normas. Ele “deve tornar-se senhor de si mesmo, senhor também de suas próprias virtudes”37. Um tipo de homem que, mesmo em estado de convalescença, pode se aproximar da vida; em sua volta pode haver mais calor; sentimento e simpatia se tornam profundos; todos os ventos tépidos passam sobre ele38. Segundo Deleuze, a vida é feita de “virtualidades, acontecimentos e singularidades”. O “virtual não é algo a que falta realidade, mas que se engaja num processo de atualização seguindo o plano que lhe dá sua realidade própria. O acontecimento imanente se atualiza num estado de coisas e num estado vivido que faz com que ele ocorra” (DELEUZE, 2007, p. 3). Diz Nietzsche que “Nosso destino dispõe de nós, mesmo quando ainda não o conhecemos”39. Similarmente ao pensamento de Nietzsche, encontramos no orkut40 diversas descrições de comunidades que se declaram “sem-religião”41. Uma dessas comunidades se auto-intitula: “É possível viver sem religião!”. Diz a descrição:

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Esta comunidade é destinada aos que vivem (e muito bem) sem religião! Aos que jogaram na lata de lixo toda a lavagem cerebral

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imposta pelos profissionais da fé. Para aqueles que não toleram que suas vidas sejam dominadas por fanáticos religiosos ou que acreditam que, em pleno século XXI, não há mais espaço para pastores, padres, “servas ou servos” de Deus guiar rebanhos... Para os que já perceberam o grande circo montado “em nome de Deus”, para controlar suas vidas, essa comunidade foi criada 42.

O conteúdo da descrição indica o fim da religião institucional. Não foge muito do pensamento de Nietzsche. Segundo Elkins, no contexto atual, assistimos ao “colapso da religião ocidental e à revolução espiritual” (ELKINS, 1998, p. 25). O autor argumenta que, em decorrência desse colapso, os indivíduos deixaram de considerar a sua própria tradição religiosa como a única verdadeira, passando a acreditar que todas as religiões têm algo a oferecer e que todas são caminhos legítimos para tratar dos anseios espirituais dos seres humanos (ELKINS, 1998, p. 25). Por conseguinte, ele conclui que a relativização da própria tradição e abertura dos indivíduos para outras perspectivas são os primeiros passos “em direção à maturidade espiritual”. Em seguida, aponta um segundo passo, o qual rompe com o “invólucro da própria religião” ao afirmar a concepção de que “espiritualidade não é sinônimo de religião e que existem muitos meios de cultivar a alma que nada tem a ver com a religião” (ELKINS, 1998, p. 25).

Comunidade chamada “É possível viver sem religião”. Criada no dia 10 de novembro de 2005. Número de participantes: 131. Pesquisado no dia 18 de junho de 2007.

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O autor afirma que há, além da religião, outros meios de se cultivar a espiritualidade. Um destes meios apontados por Elkins é o movimento “Em Direção à Alma”. Nascido nos EUA, na década de 1990, o movimento, segundo o autor, é parte de “um Zeitgeist cultural muito mais amplo, que vem reunindo forças durante séculos e agora está varrendo a sociedade ocidental em direção a um novo mundo, a um novo tipo de espiritualidade” (ELKINS, 1998, p. 30). Nesse contexto, entende-se por ‘espiritualidade’ “um modo de ser e de sentir que ocorre pela tomada de consciência de uma dimensão transcendente, sendo caracterizada por certos valores identificáveis com relação a si mesmo, aos outros, à natureza, à vida e ao que quer que se considere o Último” (ELKINS, 1998, p. 42). A própria pessoa está livre para escolher este “Último”, como valor para sua vida. Como vimos acima, Nietzsche escolheu como “Último” a arte. Esta foi o seu “abrigo” por meio do qual manteve a “alma

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alegre em meio a muitos males”. O que o “desencantamento do mundo” (Max Weber, 1999) trouxe foi um novo paradigma de interpretação do mundo; aquilo que os românticos alemães chamaram de “visão de mundo” (Weltanschauung). De forma que, ao longo dos últimos dois séculos, percebe-se a construção de um conjunto de idéias, filosofias, humanismos que ajudaram na construção desse novo paradigma. O que antes era interpretado pelo paradigma religioso, hoje é feito por meio dessas idéias; por elas, os sujeitos pensam as coisas, o mundo, o homem e Deus. Há um subjetivismo moral muito presente na sociedade contemporânea. As idéias secularizantes marcaram as últimas gerações de jovens, colocando em xeque as antigas formas de socialização dos indivíduos. A doutrina judaico-cristã foi confrontada com uma outra Weltanschauung cujo humanismo crítico teve uma contribuição elementar na transformação do pensamento religioso sobre o mundo e na transvalorização dos valores tradicionais. Foi isso que marcou a secularização da visão de mundo. Nietzsche é crítico de uma sociedade em que os homens são “pequenos”. Talvez esta seja a sociedade do espetáculo, onde os homens são alienados e vivem em conformidade com tudo que pensam dar sentido às suas vidas. Na sociedade de consumo, eles são embalados por momentos produtores de “felicidade”: carnaval, futebol, filmes, telenovelas, teatros, shows; na outra ponta, as vitrines especialistas em jóias, calçados, roupas, bijuterias, brinquedos, automóveis, eletrodomésticos, eletroeletrônicos despertam-no para as necessidades de consumir. Passam por um tempo de “deslumbramento” e das sensações oferecidas por meio do marketing das propagandas. O termo embriaguez foi tomado de emprestado de Nietzsche (2005) quando interpreta a vida a partir da “visão dionisíaca do mundo”.

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F. Nietzsche (2005). A visão dionisíaca do mundo, § 1º, p. 15.

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Mas Nietzsche indica um tipo de homem que se deixa embalar por um tipo de “embriaguez”43, isto é, que o faz produzir sentimentos que o transborda. Como disse: “Esse é um mundo totalmente encantado, a natureza celebra sua festa de reconciliação com o homem”44. Assim, há um conjunto de pensamentos e coisas conduzindo e seduzindo não só os jovens de hoje, como também homens e mulheres, que os deixam seguir “sempre mais além”. Com efeito, distanciamse cada vez mais daquele ceticismo moral cristão ensinado pelo Apostolo Paulo, segundo o qual as paixões seriam coisas sujas, impuras porque desfiguram e destroem os corações. Mas o que se

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vê é a manifestação de um “espírito” dionisíaco bem mais patente na sociedade contemporânea cujos “últimos” dão sentido às vidas dos indivíduos. O ceticismo moral cristão pensou em envenenar a moral dos antigos, como Sêneca, Epicuro e Epíteto, mas parece que a dose foi por certo homeopática, que não a matou, e agora sentimos seu retorno, colocando sob suspeita e desconfiança todas aquelas antigas formas moralizantes. As coisas, no dizer de Nietzsche, estão sendo repintadas de novo, aliás, “nunca as deixamos de repintar”, diz ele, até porque não podemos ir contra o “esplendor dos coloridos dessa antiga virtuosidade”45. O homem, no dizer de Sartre (1973), é livre porque ele mesmo pode, livremente, decidir o seu próprio comportamento, escolher os seus valores, elaborar os próprios projetos e, deste modo, assumir uma determinada atitude em relação ao seu próprio presente e futuro. Como resultado, “o homem está condenado a ser livre”, porque não há nenhuma vontade a priori; “nenhuma moral estabelecida pode dizer a ele o que há a fazer; não há sinais no mundo”46. O próprio homem deve criar os sinais, porque ele está lançado ao mundo das suas próprias decisões. Ou seja, em suas mãos traz a responsabilidade para escolher tanto para si quanto para os outros. Esse é o ethos que perpassa o “espírito do tempo”47.

considerações finais Portanto, este breve artigo indicou alguns pontos que nos fizeram perceber uma possível revolução espiritual em Nietzsche, sobretudo, quando escolhe a arte como o “Último” para sua vida, pois por meio dela encontrou alegria e sentido de viver, mesmo diante da doença; depois, ele fala da importância da benevolência. Segundo o pai de Zaratustra, “entre as coisas pequenas, mas bastante freqüentes, e por isso, muito eficazes, às quais a ciência deve atentar mais do que às grandes e raras, deve-se incluir também a benevolência”. Em seguida, ele explica a razão dessa afirmativa, descrevendo as qualidades do sentimento de benevolência: “as expressões de ânimo amigável nas relações, o sorriso dos olhos, os apertos de mão, a satisfação que habitualmente envolve quase toda ação humana”48.

F. Nietzsche (1984). A Gaia Ciência, Livro III, § 152, p. 160.

45

SARTRE, Jean-Paul (1973). O existencialismo é um humanismo. Pp. 16-17.

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O termo “espírito do tempo” remete ao livro de Edgar Morin Cultura de massa no século XX: o espírito do tempo I – neurose. Mas neste artigo compreendese a existência de um ethos, isto é, um modo de vida em que se vive conforme os gostos e desejos ditados pelos próprios indivíduos.

47

F. Nietzsche (2005). Humano, demasiado humano, “Capítulo II”, aforismo 49, p. 50, grifo meu.

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Apontamos também como Nietzsche construiu um pensamento em relação à vida cuja busca pela “verdade” encontra-se no processo constante do homem de ir ao encontro da imanência e do devir. Aqui se percebe o escopo dessa revolução espiritual cujos efeitos se encontram em curso através de uma espiritualidade que toma cada vez mais forma na vida dos jovens brasileiros “sem-religião”. Eles, estando fora da instituição religiosa tradicional, dão sentido às suas vidas por meio da crença em algum outro “Último”, que pode ser até o próprio Cristo, porém, purificado dos dogmas cristãos. Finalmente, Nietzsche é, na verdade, um “maganão”, um autêntico provocador e zombador daqueles que ainda vivem sob o mando da moral religiosa. Ele mexe com os sentimentos dos leitores. Mas não podemos negar que acordar os indivíduos do torpor do sono - ao qual estão sucumbidos pelas normas estabelecidas - foi seu papel enquanto filósofo e poeta. Então, em que lugar o Deus cristão se situará na vida dos indivíduos do século XXI? É possível pensarmos em uma era pós-cristã?

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Abstract: This article has as a goal to argue about art as a spiritual shelter to the existing life of Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), therefore it becomes recurrent the author while source through which he tries to give answers to his Metaphysical investigations. The influence of this spirituality manifests currently in a great parcel of the Brazilian population that has been declaring themselves “without-religion” , over all an expressive index of young people from the year 2000 (Census of IBGE, 2000). In creator’s thoughts path of the book Thus spoke Zarathustra (1881) it will be searched to browse inside the philosopher’s “suspicion school”, objectifying to find an understanding on this laical spirituality. Furthermore, it will also be analyzed as his position, of “touching the theological instinct” - announcing “God’s death” -, it re-echoes nowadays in Brazilian social mosaic. Keywords: Nietzsche, spiritual shelter, spirituality, art.

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a arte como abrigo espiritual para a vivência existencial de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), pois ela torna-se recorrente ao autor enquanto fonte através da qual ele busca dar respostas às suas indagações metafísicas. A influência dessa espiritualidade manifesta-se atualmente em uma grande parcela da população brasileira que vem se declarando “sem-religião”, sobretudo um índice expressivo de jovens a partir de 2000 (Censo do IBGE, 2000). Assim, na esteira do pensamento do criador da obra Assim falou Zaratustra (1881), buscar-se-á navegar na “escola da suspeita” do filósofo, objetivando encontrar uma compreensão sobre essa espiritualidade laica. Ademais, analisar-se-á também como a sua postura, de “esbarrar o instinto teológico” - anunciando “a morte de Deus” -, repercute hoje no mosaico social brasileiro.

Resumen: Este artículo tiene como meta discutir sobre el arte como abrigo espiritual para la vivencia existencial de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), por lo tanto torna a ser recurrente el autor mientras que la fuente con la cual él intenta dar respuestas a sus investigaciones metafísicas. La influencia de esta espiritualidad manifiesta actualmente en un gran paquete de la población brasileña que declara “sin-religión”, sobre todo un índice expresivo de jóvenes a partir del año-2000 (censo de IBGE, 2000). En los pensamientos del creador del libro Habló así Zarathustra (1881) que serán buscados para navegar dentro de la “escuela de la suspicacia” del filósofo, objetivando encontrar una comprensión en esta espiritualidad laica. Además, también será analizada como su posición, del “ tacto del instinto” teológico; - anunciando la “Muerte de Dios; -, repercute hoy en día en mosaico social brasileño.

Palavras-chave: Nietzsche, abrigo espiritual, espiritualidade, arte.

Palabras clave: Nietzsche, abrigo espiritual, espiritualidad, arte.

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e-mail: modjumbaxe@ig.com.br

Recebido em 06/07/2008 Aprovado em 15/10/2008

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enthousiasmós * - entusiasmo Deborah Matheus Psicóloga e Artista Plástica (SP)

natureza humana Na verdade, a doença pode ser saúde interior e vice-versa. A saúde é coisa pessoal; é aquilo que pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para outros signifique doença...Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade. (Nietzsche)

*Consulta feita ao dicionário Aurélio Buarque de Holanda. Entuasmo [Do gr. Enthousiasmós, pelo fr. Enthousiasmós]. S.M. 1. Na antiguidade, exaltação ou arrebatamento extraordinário daqueles que estavam sob inspiração divina, como as sibilas, etc.; transe, transporte. 2. Veemência , vigor no falar ou no escrever; flama. 3. Exaltação criadora; inspiração; estro. 4. Admiração, arrebatamento: O desempenho do artista provocou o entusiasmo do público. 5. Dedicação ardente, ardor, paixão: Grande era o entusiasmo do advogado pela causa que abraçava. 6. Viva alegria; júbilo: Recebeu com entusiasmo a notícia do prêmio.

o conceito de natureza humana Ao nos colocarmos a examinar a filosofia, percebemos que ela é quem enuncia este conceito, e cabe à psicologia as interpretações. A psicologia é mais uma ciência que surge a partir da filosofia. Foi no século XIX, através de Wilhelm Wundt, que funda o primeiro laboratório de psicologia em 1879, na universidade de Leipzig, Alemanha,que a psicologia se torna uma ciência independente. Descartes abre o caminho para as ciências ao fornecer um método. A psicologia se torna independente por este mesmo caminho aberto

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pelo método cartesiano, trazendo consigo alguns paradigmas como a cisão entre alma e corpo, entre a razão e a substância sensível, paradigmas estes que acompanham as ciências que estudam a mente humana, como a psicanálise e a psiquiatria. A razão como conceito de natureza humana é inaugurada por Descartes, que, por sua vez, abre caminho à subjetividade na filosofia. Seu cogito “Eu Penso, Logo Existo”, já implica na distinção das substâncias pensante e corpórea, ou seja, na separação da alma, que corresponde ao próprio pensar, e do corpo que corresponde à parte sensível, das sensações. Para Descartes o homem possui uma luz natural, que em suas próprias palavras nos define como “Tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para discernir o verdadeiro do falso (...)” (Descartes, 1983a); “(...) o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou razão (...) (Descartes, 1983b), essa luz natural ou razão comum a todos os homens, nos garante Descartes, é a faculdade que bem conduzida nos impede de errar, pois os erros “descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolha...isto é de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade (...)” (Descartes, 1983c). O entendimento tanto para Descartes como para filosofia se refere à razão, assim como compreender está ligado aos sentidos, e a vontade se refere ao livre arbítrio do uso de nossas faculdades. Por outro lado, se fizermos uso de nossa substância corporal, nos traria ao pensamento a “percepção dos sentidos”, que para Descartes “é muito obscura e confusa em muitas coisas”(Descartes, 1983c), então ao não combinarmos razão e vontade podemos errar. O erro ou a imperfeição provém do nada, que se torna um princípio metafísico na concepção cartesiana, ou melhor, o nada seria “uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir” (Descartes, 1983c), e não o tenho porque faço mal uso de minhas faculdades, com isso participo do “Nada ou não-ser”. René Descartes é um filósofo do século XVII, começo do modernismo, e é considerado o pai da filosofia racionalista. Ele nos fornece um conceito de natureza humana moderna, no qual o homem tem sua subjetividade cindida, ao acreditar que eliminando os nossos

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sentidos, paixões, desejos, poderíamos construir um conhecimento racional, visando não errar mais; ganhamos um método com esta intenção, o Discurso do Método “Para Bem Conduzir a Própria Razão e Procurar a Verdade nas Ciências.”, um método com fundamentos matemáticos. Descartes está preocupado com as ciências na realidade, mas tencionando alcançar o domínio de toda Natureza. Não só nos deparamos aqui com o conceito de natureza humana voltada à razão, como temos um método introspectivo para alcançarmos o controle da natureza, inclusive da própria natureza humana, que tem de ser bem conduzida a fim de evitar errar. Então a partir da razão comum a todos, fica possível pela legalidade da natureza que todos os homens são iguais. O racionalismo teve sua composição e aplicação prática no iluminismo, o pressuposto lógico da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. As diferenças a partir deste acontecimento se tornam moral, inaceitáveis, porque significam errar ou mesmo conduzir o livre arbítrio erradamente. A liberdade ou doutrina moral, surge com a casta sacerdotal, inventaram a noção de vontade livre, queriam arrogar-se o direito de infligir punições. Ao conceberem o homem como livre ganha-se o poder de condená-los, julgá-los, por não terem feito bom uso de seu livre arbítrio pagaram o preço social, pois a coletividade permite ao indivíduo fazer suas escolhas, assim submeter-se às convenções para garantir e ocupar seu lugar na comunidade. (MARTOON, 1990, p. 85).

Agora ganha-se o consentimento à reclusão, à negação das diferenças, à negação a uma natureza humana que não se apoie na razão, agora é fruto da loucura, erro, falha, desvio... Ao compreendermos até aqui, estaremos simplesmente enxergando a ponta de um “iceberg”, onde a natureza humana é cindida entre mente e corpo, como é também preciso, a fim de evitar o erro, negar a parte sensível; a razão tem o privilégio do certo. A base deste “iceberg” está na antiga Grécia, aonde temos o conceito de natureza humana anterior à filosofia, e, portanto, antes da existência do “homem metafísico”, ou seja, o homem na natureza com a existência neste mundo e não em um além imortal. Na Grécia antiga a loucura era vista ou tida como algo inerente a todos os

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homens, e não como existindo uma contradição, controvérsia entre loucura e razão. A loucura fazia parte do legado humano, enquanto o conceito de natureza humana não estava pautado na razão, ou na filosofia. Antes da filosofia existia uma relação entre: mitos, artes, e tragédias, a forma como este povo problematizou sua existência, transparece sua natureza.

mito, arte e natureza. Na grande teia da existência, o homem é a grande presa, por saber da sua condição de refém da Natureza. O medo e a morte tecem seus pequenos fios lentamente; enquanto ser vivente só lhe resta à ilusão de fugir, mesmo que por alguns instantes, desta condição de viver para morte. Nesta fuga tenta esconder à visão horrível da Natureza, criando a ilusão da civilização, da ciência, da arte, do mito. Nesta teia cria seu mundo, sua cidade, sua casa. “Os Gregos tiveram o senso inato do que significa ‘natureza’. O conceito de natureza, elaborado por eles em primeira mão, tem indubitável origem na sua constituição espiritual.” (JAEGER, 1995, p.11). Para os gregos antigos a existência do mundo, e a própria existência humana, se legitimava somente como fenômeno estético. “O estilo e a visão artística dos gregos surgem, em primeiro lugar, como talento estético.” (JAEGER, 1995, p.11). Assim desenvolveram uma adaptação, com o olhar posto à beleza; viver torna-se possibilidade de contemplação de si mesmo, da natureza. Desta relação, é o espírito criativo que se fortalece e é fortalecido. Os mitos foram criados para ordenar o desconhecido na natureza. Os gregos criaram os deuses e os colocaram para governar as forças da natureza: os oceanos, o céu, a terra, etc.Os deuses eram representados nas formas humanas; nas tragédias estes deuses permeavam as ações e o destino em suas vidas. Na arte, representavam seus deuses, suas tragédias. Para Aristóteles a arte é imitação da Natureza, uma forma de contemplar e imaginar o homem e o seu mundo na Natureza: O poeta é um imitador, como o pintor e qualquer artista. E imita necessariamente por um dos três modos: as coisas, tal como eram ou

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são; tal como os outros dizem que são, ou que parecem; tal como deveriam ser. (ARISTÓTELES, 1999: XXV, 161).

Assim, com os deuses e a arte, criaram uma visibilidade para o homem grego, tornando a existência compreensível e justificável. Mais que um fenômeno estético, a arte possibilitou a existência junto à Natureza. Nietzsche nos coloca que os gregos simplesmente para poderem existir, suportarem o sofrimento existencial ante as forças titânicas da Natureza, necessitavam de seus deuses olímpicos – estes legitimavam a vida humana vivendo eles mesmos esta vida –, e de sua arte, onde sentiam a torrente e o transbordamento de seu próprio bem-estar e saúde. Gostavam de ver sua perfeição mais uma vez, fora de si, sendo que o gozo de si é que os levava à arte. O espírito de um povo que tem na sua obra o homem como centro. Esta cultura não via o homem fora da Natureza, tinha coragem, espírito criativo, contemplava seu próprio destino. O olhar Grego à Natureza foi no sentido de problematizar a sua própria existência, e o resultado foi à criação de seus deuses e de sua arte.

“impulsos artísticos da natureza” ou na natureza dos homens Nietzsche em “O nascimento da tragédia” escreve que o artístico no ser humano é um impulso da natureza; “que se dá pelas manifestações fisiológicas em contraposição do sonho e da embriaguez.” (1991, p. 28). O sonho e a embriaguez se manifestam independentemente da nossa vontade. A natureza da qual fazemos parte, ou a natureza em nós, acontece, se efetiva; mesmo quando desejamos acordar de sonho ruim ou interromper um estado embriagado de paixão, dificilmente conseguimos.

os sonhos Nos sonhos, ou na experiência onírica, temos a ilusão da aparência, das imagens, é como um filme que somos forçados a imaginar,

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às vezes, de forma agradável, e outras vezes, ruim. Só lembramos quando acordamos ou quando um fato nos traz a lembrança de ter sonhado. Como diz Nietzsche, é o mundo da aparência, da bela aparência: A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também como veremos, de uma importante metade da poesia. ... sob esta realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra , inteiramente diversa, que portanto também é uma aparência: e Schopenhauer assinalou sem rodeios, como característica da aptidão filosófica , o dom de em certas ocasiões considerar os homens e todas as coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas.” (1992, p.28).

O sonho é um impulso artístico da natureza. Alguns homens, mesmo acordados, possuem o dom de ver todas as coisas como em um sonho, o que os torna artistas, poetas e filósofos; através da imaginação, sonham acordados e assim interpretam a vida. Este olhar que observa a Natureza produz a obra de arte. As imagens vêm de fora, só se dão a partir do olhar, que nos garantem a existência delas. No entanto, em nossos sonhos estamos com os olhos fechados, o que nos leva a concluir que as imagens certamente vêm de fora, mas as que sonhamos já estão dentro de nós, é uma memória peculiar com detalhes que não observamos quando despertos, que ativam a imaginação produzindo os sonhos. Bachelard descreve a imaginação como a faculdade de formar imagem, e argumenta: (...) que a imaginação é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo, a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens ... O vocabulário fundamental que corresponde à imaginação não é a imagem, mas imaginário. (1990, p. 1).

Sonhar é o encontro com as imagens em outra dimensão, talvez a quarta ou a quinta, e esta percepção em outra esfera, onde não há ordem moral, ética, lógica espacial e temporal, é a garantia de estarmos sob o domínio da Natureza.

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a embriaguez Para la psicología del artista – Para que haya arte, para que haya algún hacer y contemplar estéticos, resulta indispensable una condición fisiolológica previa: la embriaguez. La embriaguez tiene que haber intensificado primero la excitabilidad de máquina entera: antes de esto no se da arte ninguno. Todas las especies de embriaguez, por muy distintos que sean sus condicionamientos, tienen la fuerza de lograr esto: sobre todo la embriaguez de excitación sexual, que es la forma más antigua y originaria de embriaguez . Asimismo la embriaguez de que van seguidos todos los apetitos grandes, todos afectos fuertes; la embriaguez de la fiesta, de la rivalidad, de la pieza de virtuosismo, de victoria, de todo movimiento extremado; la embriaguez de la crueldad; la embriaguez en la destrucción; la embriaguez debida a ciertos influjos meteorológicos, por ejemplo la embriaguez primaveral; o de debida al influjo de los narcóticos; por fin, la embriaguez de la voluntad, la embriaguez de una voluntad sobrecargada e henchida. Lo esencial en la embriaguez es el sentimiento de plenitud y intensificación de las fuerzas…” (NIETZSCHE, 1989, p. 90).

Temos vários exemplos de tipos de embriaguez, não se restringindo apenas à ingestão de bebida alcoólica, como vem à mente ao ouvirmos sobre a embriaguez. Esta manifestação psíquica traz o auto-esquecimento; rompendo com a realidade cotidiana, a noção de individualidade é rompida, proporcionando um encontro com o Uno-Primordial, no coração da Natureza; homem e Natureza se reconciliam. Neste estado inconsciente os instintos se intensificam e a inspiração se faz. Transcrevo Nietzsche: ..., sem a mediação do artista humano, irrompem da própria natureza, e no quais os impulsos artísticos desta se satisfazem imediatamente e por via direta: por um lado, como o mundo figural do sonho, cuja perfeição independe de qualquer conexão com a altitude intelectual ou a educação artística do indivíduo, por outro, com realidade inebriante que novamente não leva em conta o indivíduo, mas procura inclusive destruí-lo e libertá-lo por meio de um sentimento místico de unidade.” (1992, p.32).

Estes impulsos configuram o domínio da Natureza sobre os homens, portanto, sua própria natureza. Os impulsos artísticos pert-

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encem à natureza humana, assim como a arte. Este brincar e imaginar, podemos afirmá-los como natureza humana, pois são comuns a todos os homens, independente da ordem temporal ou espacial. A necessidade de educação artística e mesmo de intelectualidade são exigências postuladas pela filosofia ou pela técnica e teve seu inicio na filosofia socrática.

“os dois deuses da arte”, razão e instintos, consciência e inconsciente. Nietzsche descreve os dois deuses da arte: Apolo o deus dos sonhos, “arte do figurador plástico”, “deus dos poderes configuradores, é ao mesmo tempo o deus divinatório, a divindade da luz”. O deus Apolo que nos traz os sonhos, é também a imagem do principium individuationis, princípio de individuação, conceito de Schopenhauer compartilhado por Nietzsche; é a individualidade, a ilusão do “eu” na Natureza, a consciência, as formas, medidas, a divindade individual, a técnica, a beleza. E o deus Dionísio, é o deus da embriaguez, “Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem.” (NIETZSCHE, 1992, p. 30). Essa experiência vai selar o laço que une pessoa a pessoa, eliminando todas as diferentes, individualidades. Podemos constatar em nós, com efeito da embriaguez, o auto-esquecimento e a desmedida no coração da natureza, o esquecimento do “eu”, o nivelamento com a Natureza, a inspiração pela intensificação máxima de todas as suas capacidades simbólicas. Dionísio simboliza as forças obscuras da Natureza, o irracional, que emergem do inconsciente, aniquila o indivíduo, o deus do vinho, da dança, o impulso do exagero, da fruição, da libertação dos instintos, o eterno devir. O que mostra a finitude humana, não requer o véu da ilusão, pois Natureza e homem são a mesma coisa. A descrição desses deuses nos revela estados psíquicos que existem na natureza do homem, e não deixa de ser interessante comparar às formulações psicológicas dos fenômenos Apolo e

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Dionísio, como dois estados psicológicos contrários, factuais: o individualismo, a medida ou senso, a razão, o consciente, e seu oposto, o auto-esquecimento ou aniquilação do “eu”, a desmedida ou a falta de senso, a loucura, o inconsciente. Heráclito vê a unidade na oposição, tudo flui, nada é constante, assim também é a subjetividade humana, não é contradição, é unidade, é o vir a ser. Estes estados psíquicos nos desvelam os segredos da vida, um existir sem além da morte, pleno, inteiro, presente. A representação desses estados psíquicos nos mitos de Apolo e Dionísio, justificase pela necessidade que o homem tem de contemplar a si mesmo. A natureza no homem é evocada pela entrada de um deus dentro de si, são impulsos da Natureza. Tais representações conferem e inscrevem esses estados psíquicos na ordem do sagrado, devendo ser respeitados, adorados e cultuados.

filosofia e tragédias gregas, os acontecimentos foram maiores ... As tragédias gregas demonstram o sofrimento humano frente às forças do destino. Essa visão confortava e conscientizava o homem de sua condição, por isso, as tragédias eram tão apreciadas pelos gregos, e ainda hoje reconhecemos a sabedoria ali encontrada. Temos três grandes autores de tragédias: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Escrever sobre as tragédias seria um longo assunto, teríamos também que ressaltar o coro e sua importância, assim como suas transformações ao longo dos períodos da civilização grega. Aqui nos interessa especialmente a tragédia: As Bacantes, de Eurípedes, que é sobre Dionísio, em que podemos verificar a existência do sofisma como influência da filosofia socrática: Não raciocineis a respeito dos deuses. Temos as tradições de nossos pais, velhas como o próprio tempo. Nenhum argumento pode derrubá-las, por mais inteligente que seja o sofisma , por mais agudo que seja o juízo. (...)

Esta é uma fala de Tirésias um profeta tebano velho e cego, quando vai chamar Cadmo, o fundador e depois rei de Tebas, para os fes-

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tejos à Dionísio, e este o questiona. Sócrates e Eurípedes, além de contemporâneos, eram amigos. A filosofia socrática influencia as tragédias euripideanas, ocorre uma mudança no herói dionisíaco. Nietzsche pontua esta mudança: É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio, e que por longo tempo o único herói cênico aí existente foi exatamente Dionísio. Mas com a mesma certeza cumpre afirmar que jamais, até Eurípedes, deixou Dionísio de ser o herói trágico, mas ao contrário, todas as figuras afamadas do palco, Prometeu, Édipo e assim por diante, são tão-somente máscaras daquele protoherói, Dionísio. (1992, p.69).

A decadência dionisíaca na arte influenciada pela filosofia socrática traz toda uma nova forma de se relacionar com a Natureza. As primeiras filosofias não problematizam o homem, ele não era o centro; os filósofos se voltam para a Natureza e querem achar uma fonte originária, uma gênese, para existência da Natureza. Este período recebeu o nome de Naturalista, ou pré-socráticos, primeiro período na filosofia grega, aonde temos Tales e a gênese da água, Anaximandro e o principio originário apeíron, etc. No segundo período, o período Socrático, a forma de conhecer muda. E escreve Nietzsche a esse respeito: Mas a palavra mais penetrante desse culto novo e inaudito ao saber e ao entendimento, foi Sócrates quem a disse, quando constatou ser o único que confessa nada saber, enquanto, em sua perambulação crítica por Atenas, visitando grandes estadistas, oradores, poetas e artistas, encontrava por toda parte a fantasia do saber. Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades não tinham um entendimento correto e seguro nem mesmo sobre sua profissão e a exerciam apenas por instinto. ‘Apenas por instinto’: com esta expressão tocamos o coração e o centro da tendência socrática. Com ela o socratismo condena tanto a arte vigente quanto a ética vigente: para onde dirige seu olhar inquisidor, lá ele vê a falta de entendimento e a força da ilusão, e conclui dessa falta que o que existe é intrinsecamente pervertido e repudiável. A partir desse único ponto acreditava Sócrates ter de corrigir a existência. A sabedoria instintiva só se mostra, nessa natureza inteiramente anormal, para

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contrapor-se aqui e ali ao conhecer consciente, impedindo-o, enquanto em todos os homens produtivos o instinto e precisamente a força criadora-afirmativa e a consciência se porta como crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se torna crítico e a consciência, criadora. (1992, p. 12-13).

Jaeger em Paidéia no capítulo “Sócrates” (Nietzsche e Sócrates), Aristóteles em sua Poética, todos colocam um ponto de vista sobre as tragédias Euripidianas e a filosofia socrática. O problema da existência na filosofia grega chega a seu ponto sensível de decadência, pois onde os gregos criaram os deuses míticos, a arte, para dar “sentido” à existência, agora é tomado por “ideal ascético”, negando o instinto A razão entra em cena através da representação do “espírito apolíneo” que antes era parceiro de Dionísio. Agora Apolo, o deus da estética, o bom, o belo, passou a significar oposição ao “espírito dionisíaco”. Os dois deuses eram parceiros inseparáveis, assim como consciente/inconsciente, inconsciente/consciente, ou seja, o “espírito dionisíaco” passou a ser máscaras como nas tragédias, e Apolo consagrado como ideal; assim como Sócrates irá se tornar também, quando morre tomando cicuta, um novo ideal para a juventude grega. Aqui o pensamento filosófico cresce com mais viço do que a arte e obriga-a a se agarrar ao caule da dialética. No esquematismo lógico a tendência apolínea transformou-se em crisálida: assim como em Eurípedes podíamos perceber algo correspondente e, além disso, uma transposição do dionisíaco em sentimento natural, Sócrates, o herói dialético do drama platônico, lembra-nos, por afinidade de natureza, o herói euripidiano, que tem de defender suas ações com argumentos e contra-argumentos e por isso tantas vezes corre o perigo de perder nossa compaixão trágica: pois quem seria capaz de desconhecer o elemento otimista na essência da dialética, que em cada conclusão comemora seu jubileu e somente em fria clareza e consciência pode respirar: o elemento otimista que, uma vez inoculado na tragédia, há de infeccionar pouco a pouco suas regiões dionisíacas e levá-la necessariamente à autodestruição – até o salto mortal no espetáculo burguês. Basta ter em mente as conseqüências das proposições socráticas: “Virtude é saber; só se peca por ignorância; o virtuoso é o feliz”: nessas três fórmulas básicas do otimismo está contida a morte da tragédia. Pois agora o

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herói virtuoso tem de ser dialético, agora é preciso que haja entre virtude e saber, fé e moral, um vínculo necessário e visível, (...). (Nietzsche,1983, p.13).

Nietzsche nos mostra o fim da tragédia e o começo da moral como forma de pensar o problema da existência, por isso mesmo, um método voltado para si mesmo. Sócrates pronuncia “conhece-te a ti mesmo”, e renuncia a tuas paixões, desejos, instinto; para alcançar o mais alto de tua espiritualidade, e com isso obter o valor de virtude (virtude é saber). O conhecimento passa não mais pelo instinto, mas pela virtude. O homem racional sacrifica seu desejo de sucumbir à Natureza, submetendo-se a si mesmo. Agora possui o conhecimento para se defender dos Mistérios da Natureza.

a decadência dionisíaca na arte. A decadência dionisíaca na arte, por negação a este sentir humano, traz como conseqüência a valorização da técnica, sendo que para uma arte maior, é necessário tanto a técnica como a inspiração. Alfredo Bosi em “Reflexões sobre a Arte”, nos coloca o mesmo fenômeno dionisíaco. O autor está tratando da liberdade e as técnicas na construção da arte: Um dos mais fortes relativisadores do puro tecnicismo foi - e tem sido - o postulado romântico da inspiração, ou estro, que deita raízes no pensamento platônico e em tradições arcaicas de origem dionisíaca. O poeta e o músico aparecem, no Íon de Platão, como seres habitados por energias divinas: essa é a definição do termo enthousiasmós, com que os gregos nomeavam o estado da alma da sibila de Delfos quando proferia os seus oráculos. Entusiasta: aquele que recebeu um deus dentro de si. (1989, p. 19).

Camille Paglia em “Personas Sexuais”, também se refere ao mesmo fenômeno: “ Nossa palavra entusiamo vem do dionisíaco enthousiamós, um estado louco de santa inspiração. O devoto era entheos, ‘cheio de deus’. Fundiam-se homem e deus” (1992, p. 98). Os autores se referem ao mesmo fenômeno, valendo se da im-

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portância do mito dionisíaco no processo criativo, relativizando a técnica , por ser inspiração. Escreve Aristóteles em sua poética: “... Por esse motivo a arte poética inspira o talentoso ou o entusiasmado; o primeiro porque têm natureza criadora, e o segundo porque se deixa levar pelo arrebatamento” (1999: XVII, 100). A inspiração é parte importante do processo criativo, mas agora, para criar, é necessário o valor de virtude (virtude é saber), a priori de qualquer feito na arte, nos trabalhos, no conhecimento, etc. O conhecimento passa não mais pelo instinto, mas pela virtude. Logicamente que o Entusiasmos não pode ser um paradigma da estética, pois a criação não passa mais pelo instinto, mas pelo conhecimento racional e pela técnica. Quem perde é arte, pois perde parte importante no processo criativo, Dionísio e Apolo, tem de estar emparelhados para um fazer artístico maior. Agora são lacunas que o conhecimento racional necessita justificar com técnicas, vocação, conhecimento artístico. Se os impulsos artísticos da natureza são apenas reconhecidos em um de seus pólos, sendo que o outro entrou em decadência e se perdeu no passado, podemos concluir que a arte está enfraquecida, pois perde metade de sua força criadora. O mesmo acontece à natureza humana que perde parte de sua força criadora e instintiva.

filosofia: racionalidade contra os instintos. Na filosofia, temos a negação de Dionísio, assim como a negação do instinto, ou seja, todo movimento de negação do próprio corpo. Nosso entendimento, que, quando embevecidos em estado dionisíaco, não temos medo de ver o fim, a morte. O pessimismo apontado pela filosofia é demonstrado pela finitude humana ou o dilaceramento de Dionísio. Relacionamos este dilaceramento com a filosofia heraclitiana. A transformação em ar, fogo, terra, água, que sofre Dionísio é o mesmo que na doutrina de Heráclito se relaciona o devir do ser, o fogo eterno que tudo queima, que destrói, a água, terra e o ar constrói; este é o movimento: destruição e construção, causando o sofrimento, dor. O ser filosófico não pode ser diferente, múltiplo; ele têm que ser homogêneo, constante, permanente, ter uma identidade, estar sempre consciente, de si e dos outros, de

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seus direitos e deveres, ter um “Eu” e principalmente ser racional. Dionísio é incorpóreo, é fluído, não tem forma como Apolo, nossos sentidos são fluídos, e eles não podem ser capturados como objetos de estudo. No entanto, a alma possui forma, é indivisível, e eterna, por isso, merece toda atenção, e com isto, e pela “vontade”, os filósofos se apegaram ao “espírito”, ele é imortal. É aí que a filosofia se torna otimista, criando um tipo de racionalidade pautada no método matemático. Platão, idealizando o mundo perfeito das idéias (a alma), o inteligível, coloca o mundo material como aparência porque é finito. Dessa maneira, não pode ser perfeito e merece nosso descaso. Colocando assim a vida na transcendência espiritual, nosso corpo se torna um empecilho, e através do “ideal ascético” temos que renunciar a ele. O instinto passa ser coisa menor e que teve de ser rejeitada não só na natureza humana, como na forma de conhecimento. Para os filósofos contemporâneos o ser ou não ser ainda é uma questão; a razão em crise esta longe de abranger a subjetividade humana. Neste momento, a psicologia está muito mais capacitada, porque não lança um olhar somente através da razão para compreender essa subjetividade, ou seja, as propriedades da natureza humana, se deparando com uma subjetividade ainda maior. Necessitamos pensar o ser, ou o homem de forma integral, na sua natureza e na Natureza.

a psicologia herdeira dos paradigmas A psicologia como herdeira dos paradigmas filosóficos necessitou de várias rupturas paradigmáticas. Uma delas foi próprio Freud que, quando cria seu método psicanalítico, propõe pela primeira vez na história das ciências ouvir este homem dotado de sua natureza, contemplando um universo disforme, produto da sua razão civilizatória/moral e instintos, e admite que a natureza do homem é desejante, que a sexualidade é pungente e, portanto existir é doloroso, refazendo o mesmo caminho de sabedoria e conhecimento dos Gregos posto nas tragédias; com seu complexo de Édipo vem comprovar isto. Nesse momento inaugura um método investigativo acerca da natureza humana, oferecendo uma nova técnica, dotando a psicologia de um método científico.

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Após Freud inaugurar sua psicanálise, verificamos vários exemplos de seu método de investigação da natureza humana. Podemos citar D.W. Winnicott , que produziu uma obra intitulada Natureza Humana: “Minha tarefa é o estudo da natureza humana. No momento em que começo a escrever este livro, percebo-me mais do que consciente da vastidão do empreendimento. A natureza humana é quase tudo que possuímos.” (1990, p.20).

Temos também Guatarri e Deuleuze com a esquizoanálise, junção da psicanálise e filosofia, que vai apontar para uma subjetividade não só dual, mas múltipla: “ Certamente , o Eu é a diversidade, a multiplicidade, a destruição das identidades ...” (Deleuze, 1992, p. 60). Na esquizoálise o ser nunca é, sempre está sendo. Sem falar da psicologia existencialista. São muitas as psicologias, muitos novos caminhos propostos desta ciência que ainda é criança, nova, por isto mesmo seria necessário um outro artigo para abordá-las. Uma trajetória de herdeira à revolução paradigmal, esta seria a trajetória a percorrer. Temos que questionar e formular os conceitos de natureza humana. Este deve ser o lugar da psicologia: a ciência que estuda a natureza humana.

Resumo: Este artigo pretende levantar algumas questões acerca do conceito de natureza humana. Este conceito está voltado para a idéia de utilidade, implica em uma natureza cindida, natureza que deve controlar, dominar e sublimar seus instintos , desejos e paixões. Isto afeta a economia fisiopsiquíca do homem que trava uma batalha com sua própria natureza. A investigação do conceito de natureza humana passa e se aplica a arte, a filosofia, e a psicologia. A arte pensada como um impulso da natureza justifica seu fascínio e importância na existência humana, à criação artística pertence à natureza do homem; a filosofia enuncia o conceito de natureza humana; e a psicologia vai ser herdeira do paradigma filosófico. Acerca deste conceito devemos considerar

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estas ciências, e cabe à psicologia a tarefa de reivindicar o domínio do estudo da natureza humana. Palavras-chave: natureza humana, psicologia, filosofia, arte, Natureza.

Abstract: This paper aims to raise questions about the concept of human nature. The concept of human nature is associated with the idea of utility, and implies in a divided nature: a nature that must control, dominate , sublimate its desires and passions. This affects the human physio-psychological balance which battles against its own nature. The investigation as well as the concept of human nature are part of and apply to the fields of art, philosophy, and psychology. Understanding art as an impulse of nature justifies its fascination and relevance in the human existence, artistic creation belongs to the human nature; philosophy enunciates the concept of human nature; and psychology will inherit the philosophical paradigma. Although the concept of human nature is related with these sciences, psychology must claim to its domain the study of the human nature.

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cología. El arte imaginada como un impulso de la naturaleza prueba su encanto y la importancia de la existencia humana., la creación artística pertenece a la naturaleza del hombre; la filosofía define él concepto de naturaleza humana y la psicología es herdera del ejemplo filosófico. Sobre esto debemos considerar las ciencias, cabe a la psicología la tarea de reivindicar el dominio del concepto de la naturaleza humana. Palabras clave: naturaleza humana, psicología, filosofía, arte, Naturaleza.

bibliografia ARISTÓTELES. Poética In: Obras Incompletas. [Tradução Baby Abrão]. São Paulo: Abril Cultural, 1999, Col. Os Pensadores XXV, 161. _____________. Poética. In: Obras Incompletas (Col. Os Pensadores). [Tradução Baby Abrão]. São Paulo: Abril Cultural, São Paulo, 1999, XVII, 100. BACHELARD, G. O Ar e os Sonhos. Ensaio sobe a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BOSI, A. Reflexões sobre a Arte. São Paulo: Ática, 1989.

Keywords: human nature, psychology, philosophy, art, Nature.

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Resumen: Este artícolo pretende alzar algunas cuestiones sobre el concepto de naturaleza humana. Es un concepto que está alrededor de la idea de utilidad, que envuelve la naturaleza cindida, naturaleza que se debe controlar, dominar, y purificar sus instintos, deseos y pasiones. Esto afecta la economía físico-psíquica del hombre y traba una batalla personal con su naturaleza. La investigación del concepto de la naturaleza humana pasa y aplicase a él arte, filosofía y psi-

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___________ Discurso do Método, In: Obras Incompletas (Col. Os Pensadores). Abril Cultural, 1983b, primeira parte. ___________ Terceira Meditação Metafísica, In: Obras Incompletas (Col. Os Pensadores). Abril Cultural, 1983c. JAEGER, W. Paidéia – A Formação do Homem Grego. (3ºed.). São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1995.

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e-mail: deborahmatheus@hotmail.com Recebido em 28/02/2007 Aprovado em 06/03/2008

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rupigwara: a relação primeva do índio kawahib com o princípio da depredação1

José Osvaldo de Paiva Universidade Federal de Rondônia

1. a cosmologia dos kawahib de acordo com uma das partes do seu universo ficcional

1 Este trabalho é um excerto da minha tese de doutorado intitulada: Rupigwara: o índio kawahib e o conhecimento ativo nas diversas áreas de consciência. Sob orientação de Maria Luisa Sandoval Schmidt (Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).

1.1. o meio universo Todo o universo dos Kawahib é dividido em metades que se completam. Para eles, uma condição a que todo o universo está submetido. Tanto o indivíduo quanto a sua sociedade são completados pelas suas metades correspondentes. Esta é a visão cosmogônica dos Kawahib, nada é completo, tudo necessita da sua metade correspondente para realmente ser na sua amplitude. Processo que se inicia, na sua sociedade, com a divisão clânica do seu povo em duas metades, que se complementam mutuamente através do casamento. A sociedade kawahib, de uma maneira geral, se forma com duas metades.

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2 Nanguera = ndgwera é composto por: nd que é uma desinência pronominal que indica a primeira pessoa do plural “nós”, por: gwera que é um circunstancial temporal que indica “o tempo antigo”. O que literalmente significa: “nós do tempo antigo”, ou “o povo de origem”. Em respeito a essa consideração é que resolvi aplicar o termo de “primeira metade” aos Mutum e aos demais o de “segunda metade”.

3 Moure (2005: 90) em sua tese “Saudades da Cura” nos resgata essa relação com essa observação: É o espírito da planta que permite abrir os sentidos verdadeiros para entrar em contato com os mundos originais. A visão derivada do espírito da planta não pertence, então ao paciente, mas provém desse outro mundo. É nesse sentido que afirmo que o espírito da planta sonha o paciente.

Em relação aos Uru-Eu-Wau-Wau, uma metade que designa o grupo Mutum Nhangwera,2 considerados os da primeira metade, e outra sendo a segunda metade denominada por eles Vyragwara, Arara.

existência no indivíduo, precisa ser conquistada e mesmo domada, essa metade complementar seria o rupigwara, “o que guia, o que mostra, o que é o espírito”.4

Em entrevista com o líder Kwahã dos Tenharim, cujas metades são Mutum e Arara Taravé, ele fez questão de observar que não só existe a divisão social em metades, mas também a das demais espécies: animal e vegetal e enumerou as espécies animais em uma longa lista organizada em metades correspondentes às dos Mutum Nhangwera e as dos Arara Taravé. (Entrevistado em 22/10/2001).

Esse termo (rupigwara) pode receber o afixo “ji”, “meu ou eu”.

As espécies estendem-se a um campo sobrenatural submetido ao domínio de um ser de espécie não-orgânica, o anhangahum, chefe das visage, que pode propiciar o jihuva’ga, o espírito que tornará um indivíduo em um pajé, o Ipajigaéa, aquele que pode. Em relação às espécies dos vegetais, aquele que detém o seu conhecimento também é o Ipajigaéa que, para chegar a uma sofisticada classificação, teve que auhu’aé’ga’raha, sonhar com isso, com a determinação de descobrir. Em suma, a via que propiciou a classificação das espécies vegetais foi o ato de sonhar a tarefa que, muitas vezes, é expressa de maneira sumária: a planta é que me fala!3

1.2. O meio indivíduo Se por um lado é uma sociedade composta por duas metades, neste caso também, o indivíduo tal como é percebido, pelo senso comum, seria apenas uma metade, se o considerarmos como uma unidade de consciência. Esta metade poderia ser nomeada como ga’ra’o: termo de designação comum tanto para o corpo quanto para a alma do indivíduo. O que significa que embora nós, não índios, vermos isso como duas partes, para eles apenas compõe uma só parte, uma mesma unidade e é ainda considerada apenas uma metade, embora consciente e funcional no dia-a-dia. Mas este ga’ra’o, essa metade (corpo e alma) goza a prerrogativa de se complementar ao conquistar uma sua outra metade como indivíduo, que é consciente e atuante e que, apesar da sua sempre

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4 Definição do Tangarei Karipuna.

Numa menor forma “o meu”, então ji- rupigwara seria “o meu rupigwara”. Numa forma ampla o “meu eu rupigwara”. Pode também receber o afixo “ga” que na menor forma significa “o rupigwara dele”. Na forma ampla significa “o ele sendo”, o que poderia amplamente ser compreendido como “ele sendo rupigwara”. Como demonstração, se “ga-rupigwara”, na sua forma ampla, poderia significar “ele sendo um rupigwara”, e na forma menor ele “tendo um rupigwara”, também, de forma menos consciente ele poderia não ter consciência dessa sua outra parte, como se pode ilustrar por um caso contado por Tari: sendo uma história de um kawahib, um, taukaranhy, uma outra gente, que estava fazendo tocaia no mato e ele flechou o rupigwara dele mesmo. Narrou este episódio enquanto estávamos na casa do seu irmão Arino, no Alto Jamari, juntamente com Kwari filho deste, seu sobrinho. Na ocasião estávamos comendo nhambihira, uma farofa de farinha de mandioca com castanha. Tari começou a contar: Iramonharipawa-éia foi ao mato fazer tocaia e flechou o rupigwara dele mesmo, chegou em casa e contou que flechou gente. Kwari quis continuar o relato: Essa eu posso contar: ele acertou o rupigwara dele mesmo, apareceu e ele pensou que era gente. Era um monte de rupigwara que apareceu, mas ele flechou só um mesmo. Ele flechou pensando que era um amondawa, não era um amondawa, era um rupigwara mesmo, era um jupa-u mesmo, ele se encontrou ali na cabeceira dos Pakaas Novos, era um taukaranhy – outro kawahib. (Entrevista em 15/07/2004).

Amondawa é um grupo Kawahib muito parecido com os Jupa-u (autodenominação dos Uru-Eu-Wau-Wau) e que ocasionalmente mantinham ligações, ora por casamentos, ora por hostilidades.

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Kwari é um dos meus ensinadores da Aldeia do Alto–Jamari e a seguir contou-me uma história inversa ocorrida com ele ao chegar de uma espera na tocaia, (t’okaia): “Aí quando cheguei, eu pulei na rede assustando eu mesmo que estava deitado lá, aí eu tava acordado e eu queria ver a imagem de mim e não consegui mais ver”. Ou seja, seu (ga)-rupigwara, que poderia ser entendido aqui como seu corpo do sonho, logo, ao retornar viu seu corpo real (ga’ra’o) deitado na rede.

2. o conhecimento ativo ‑ o conhecimento veiculado ao ensino através da prática ou da ação 2.1. o conceito de rupigwara Estou partindo do conceito de que rupigwara também pode ser o corpo do sujeito no sonho, ou, melhor dizendo, o corpo sonhador na sua forma constituída e sob controle, consciente e atuante e que para chegar a tal ponto precisa ser mbojipokwahav, domado – amansado‑ se utilizarmos a terminologia desses grupos indígenas. Para esse processo ser demonstrado, poderemos utilizar como recurso didático a descrição de um arquétipo desse sujeito com a sua história ficcional para expor tal conceito. Desenvolvido a partir da concepção de Jung (1987, p. 61) de que os maiores e melhores pensamentos da humanidade são moldados sobre imagens primordiais, como a planta de um projeto (1987, p. 61). Pressupõe que esses arquétipos ou imagens primordiais sejam sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade, Jung qualifica como imagem primordial quando esta é possuidora de caráter arcaico, e sómente a considera de caráter arcaico quando ela apresenta uma concordância explícita com motivos mitológicos conhecidos. Considera a imagem primordial como um segmento mnêmico surgido de condensações de processos semelhantes entre si, no sentido que o sedimento é uma forma típica fun-

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damental de certa experiência psíquica que sempre retorna (1991, p. 418-19).

2.2. a validação do conceito de rupigwara Para validar qualquer conceito de rupigwara, o melhor recurso encontrado foi procurar a ação do rupigwara através de marcas textuais nos depoimentos em forma de narrativas, contidas nos ensinamentos que os kawahib se dispuseram a me prestar. O mesmo recurso foi utilizado, por ocasião do meu mestrado ao levantarmos a história do Bahira, herói mítico e civilizador, que instaurou a divisão segmentária em metade, aos Kawahib. Bahira é considerado o primeiro ipaji-ga, pajé dos kawahib, portanto a figura arquetípica do pajé kawahib. Mas sentimos o diferente sabor do momento. É que, agora, não declinamos diante de uma entidade maior como o Bahira, mas fazemos parte dessa história, todos temos nosso rupigwara, nós tapy’yn (os não índios) e os kawahib (povo, gente indígena). Nós, outra gente, podemos também ter a oportunidade de domesticar, ou adestrar nosso ji-rupigwara, ou como bem poderia nos convir: configurarmos essa nossa outra unidade de consciência e nos relacionarmos com os demais rupigwara, como fazem os kawahib, na forma de expressão que preferem: amansarem o seu (ga)-rupigwara e os demais rupigwara.

3. a descrição do arquétipo de um sujeito com rupigwara

3.1. o tipo ideal5 O sujeito ao nascer só tem como instrumento de percepção o seu próprio corpo que também é a sua alma: ga’ra’o. Essa foi a constatação do observador kawahib: o sujeito vê o mundo com os olhos do seu corpo, ouve com esse corpo, pega os objetos

5 Aqui o emprego do termo tipo ideal é no sentido atribuído por Max Weber (1993: 138139) que desenvolveu o modelo tipo ideal, sobre o qual afirma: Qual é a significação desses conceitos do tipo ideal para uma ciência empírica, tal como nós pretendemos praticá-la? Queremos sublinhar desde logo a necessidade de que os quadros “ideais” em sentido puramente lógico, sejam rigorosamente separados da noção do deve ser, do “exemplar”. Trata-se de relações motivadas para a nossa imaginação e, conseqüentemente, “objetivamente possíveis”, e que parecem adequadas ao nosso saber nomológico. Mais adiante ele reforça a idéia: Se quisermos uma definição genética do conteúdo do conceito, restar-nos-á apenas a forma do tipo ideal, no sentido anteriormente estabelecido. Trata-se de um quadro de pensamento, não da realidade histórica, e muito menos da realidade “autêntica”, não serve de esquema em que possa incluir a realidade à maneira de exemplar. (140). Dada a contemporaneidade de Max Weber com Jung que criou a figura arquétipica, o grande típico, vê-se que há confluências nessas formas de pensamentos.

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com a mão desse corpo e anda com as pernas desse corpo, enfim, além da sua constituição locomotora, tudo o que percebe é com os sentidos do seu corpo, desde a mais tenra infância. É tão dependente desse corpo que, quando sonha, é incapaz de interagir no ambiente do sonho sem o auxílio desse seu corpo físico, com o qual também pratica todas as ações perceptivas do sonho, inclusive o pensar. Em suma, o corpo é o seu instrumento sensorial e perceptivo completo. A partir dessa percepção, o observador pôde notar que também no sonho esse corpo obedecerá aos seus limites físicos naturais ou nele instalados nas suas adesões do dia-a-dia. Por exemplo: se nas práticas cotidianas o indivíduo teme atravessar uma passagem formada por um único tronco de árvore, em grandes alturas, para transpor um curso d’água ou uma depressão formadora de um abismo profundo, por certo irá sentir o mesmo temor ou a impossibilidade dessa travessia, caso essa mesma situação ocorra num sonho. Assim sendo, também, todos os outros temores permanecerão intactos nos eventos do sonho. Isso também poderia ocorrer nas situações de prazer ou em quaisquer outras formas de afeto. Essa mesma dependência atinge uma complexidade semelhante à do mundo ordinário, o sonhador é tão dependente desse corpo que o seu sonho irá obedecer aos mesmos limites impostos a esse corpo, semelhantes aos das suas ações cotidianas. Essa constatação do observador kawahib foi fundamental, pois acabou proporcionando a constituição de um marcador textual dos relatos oníricos dos grupos. Os relatos denotavam que as situações de extremas tensões vinham à tona mais facilmente nas rememorações, isso porque estas se inscrevem mais profundamente na consciência do indivíduo. Ora, sendo o Kawahib fundamentalmente um guerreiro, um apitihara’ga, ele levou aos extremos o intuito de colocar sob o seu domínio essa situação. Para isso, valeu-se dos seus talentos de caçador, okahua’ga, e em cada recorrência no sonho armou uma paciente espera, a ponto de

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fazer uma tocaia, ae’t’okaia, no sonho6. Isso significa que ele passou a vigiar com insistência o momento em que estava sonhando, com o intuito de capturar esse tipo de atenção e com o propósito de inserir sua consciência usual, com seus atos voluntários de estado de vigília, em seu momento de sonho.

6 Tocaia: t’okaj, é um cercado coberto de palha no qual o caçador se oculta para esperar a caça, ou no caso de um xamã, para esperar a manifestação dos poderes extra-humanos.

Com isso, percebeu alguns elementos essenciais: primeiro a tocaia o levou a perceber que precisaria fazer uma espécie de silêncio mental de vigilância, pois qualquer pensamento sobre o fato de estar sonhando o faria acordar imediatamente, pelo simples fato de que habitualmente esse tipo de consciência pertence ao âmbito da razão que usualmente é utilizada em estado de vigília. Ora, não bastou muito para perceber na sua tocaia que toda vez que tinha consciência dentro de um sonho ‑ a de que de fato estava sonhando ‑ iria acontecer que na hora em que focasse o seu corpo do sonho, inevitavelmente acabaria sendo remetido à percepção do seu corpo físico, adormecido e instantaneamente acordaria neste corpo. Isso se tornou um fato recorrente, portanto de extrema utilidade para um caçador habituado a observar todos os hábitos e rotinas dos animais. O segundo elemento essencial decorreria daquele primeiro após contínuas observações: se toda a vez que focasse o seu corpo “do sonho”, apesar dessa ação intensificar todas as imagens oníricas, ele depararia com a efemeridade do momento, já que, imediatamente, voltaria ao seu corpo real, acordando acidentalmente, ou propositalmente, mas sempre de maneira inevitável. Após observar estas muitas recorrências, notou que se observasse os demais itens do sonho, que não somente o seu corpo, ele não acordaria, mas depararia com uma inconveniência: os itens eram por demais absorventes e ele acabaria perdendo sua voluntariedade e toda espécie de domínio e controle. Ainda havia mais, o sonho voltaria a se constituir como um sonho comum em toda sua constituição caótica com eventos que ele nem sequer recordaria. Como elaborar essas duas constatações? Uma: de que se olhasse o seu “corpo do sonho” isso intensificaria, muito, as imagens, mas também um tipo de consciência física que logo o faria retornar ao seu corpo físico, despertando-o. Outra: se focasse os demais itens

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do sonho estes o absorveriam e cairia num sonho comum no qual não poderia estabelecer o mínimo controle e teria grande dificuldade mnemônica relativa às coisas do sonho. 7 Termo no seu amplo sentido léxico: PULSÃO, Erupção instintiva energética motora, que induz o organismo a um fim, fazendo realizar ou reprimir certos atos. (Silveira Bueno, 1986) Ou na sua definição psicanalítica: PULSÃO, Processo dinâmico que cônsiste numa pressão ou força (carga energética, fator motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. (Laplanche, 1992. p.394).

Mas em contrapartida pôde observar que se abstivesse de ter a mínima intervenção, uma pulsão natural7 o conduziria naturalmente, de forma alternada, a focar ora em seu corpo do sonho ora nos demais itens do sonho numa espécie de movimento em zig-zag do sensorial à percepção do objeto, o que o faria manter suficiente controle, a ponto do sonho atingir um status de sonho consciente.

3.2. a história ficcional do rupigwara do kawahib Aqui começaria uma nova etapa. O fato de estar consciente tanto poderia impor quanto o levar a transpor algumas barreiras funcionais, pois pelo histórico de todos os seus sonhos comuns, anteriores, esse observador já tinha participado de muitas ações inusitadas ‑ como qualquer um de nós indivíduos em nossos sonhos ‑ assim, deparou com novas possibilidades de realização e de aprendizagem. Uma, muito atraente, é a de que pelo fato de estar consciente de que seu corpo no sonho, embora sensível e fosse um corpo virtual e, que, seu real corpo verdadeiro estivesse protegido no seu leito ou no local da sua tocaia, ele poderia, por exemplo, deixar-se cair a grandes alturas ou fazer outras manobras igualmente radicais vencendo limites e mantendo-se consciente em velocidades e movimentos não concebíveis nos seus estágios anteriores. O que se tornou o pré-requisito necessário não para imitar, mas sim para transformar-se em outros seres com aptidões não comuns aos seres humanos, como as dos pássaros, dos jaguares e outros, uma nova categorização que poderia ser classificada como um dos artifícios necessários, até então, para a aquisição de um novo rol de realizações, que para isso teve que desenvolver um firme propósito, não para sonhar, mas para sonhar-se. Assim explica-se a crença entre os povos indígenas em geral de que os seus pajés podem transformar-se nos mais variados animais.

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A antropóloga Florinda Donner expõe de maneira muito peculiar sobre a origem dessa crença através das palavras de uma informante sua, possivelmente um arquétipo utilizado por ela: (...) Ela disse que as origens da sabedoria dos feiticeiros só poderiam ser entendidas em termos de lendas. Um ser superior, apiedando-se do terrível destino do homem – ser movido como um animal para a alimentação e reprodução ‑, deu-lhe o poder de sonhar e lhe ensinou a usar os seus sonhos.‑ Naturalmente, as lendas contam a verdade de modo oculto – explicou. – O seu sucesso em esconder a verdade reside na convicção de que são apenas histórias. As lendas dos homens se transformando em pássaros ou em anjos são relatos de uma verdade oculta. (...) As mulheres são sonhadoras insuperáveis, garantiu Esperanza. – As mulheres são extremamente práticas. A fim de manter um sonho é preciso ser prático, porque o sonho deve pertencer a aspectos práticos de uma pessoa. O sonho preferido de minha mestra era sonhar-se falcão. O outro era sonhar-se coruja. Assim dependendo da hora do dia, ela podia sonhar ser um ou outro, e como estava sonhando desperta, era real e completamente falcão ou coruja. (DONNER 1993, p. 54)

3.3. mbojipokwahav “amansando o ji-rupigwara” Para a ação de mbojipokwahav que é a do rupigwara ser amansado, civilizado, domado, isto é, ser especializado, será preciso validar o termo mbojipokwahav como um conceito e para tanto precisamos retroceder a alguns aspectos do conceito de rupigwara, sendo que para isso é conveniente recorrer aos estudos de outros pesquisadores do povo Kawahib. Podemos iniciar com a observação do Waud Kracke, pesquisador do grupo Kawahib Parintintin, a respeito do controle destes sobre o sonho. Embora ele pouco tenha se aprofundado neste aspecto chegou a notar esse tipo de controle: Assim o assunto fica numa posição ambígua: de um lado, o sonho é o domínio especial do pajé, de pessoa que através do rupigwara consegue dominar e controlar o poder do sonho. Mas de outro, o sonho é uma experiência de todo o mundo, e, como tal, oferecer a to-

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dos a possibilidade de compartilhar o poder do pajé – poder curativo, e o poder de entrar em contato com os outros seres, não humanos, que habitam o mesmo cosmos conosco. (KRACKE 1989, p.15).

O que deverá ser enfatizado na declaração de Waud Kracke é de que “a pessoa através do rupigwara consegue dominar e controlar o poder do sonho.”

8 Os jupa’u pronunciam com uma variante: mbopukuahaka; também é muito utilizado por eles o sinônimo mboruka

Se quisermos fazer uma completa apreciação sobre esse processo, melhor será recorrer ao aspecto etimológico do conceito mbojipokwahav, para uma ação de transposição dos elementos significativos desse termo para a sintaxe portuguesa.8 Portanto mbojipokwahav anteriormente traduzido por domar, amansar, civilizar; é uma palavra composta cuja estrutura principal tem dois radicais que possuem as formas cognatas: -mbo = é um afixo na forma de prefixo, circunstancial que indica o causativo; torna transitivos os verbos intransitivos e descritivos verbalizando os substantivos e outros morfemas; -pokwahav = acostumar, fazer gostar, assimilar a cultura dos outros. Há também o desinencial ji:

9 (Betts, 1981)

ji9 = “eu” forma pronominal livre da primeira pessoa do singular que serve como sujeito dos descritivos. Então mbo’ji’pokwahav seria “acostumar comigo”, “fazer gostar de mim”, etc.

Existe também a forma Mboko: -mboko = criar bem os filhos dos outros ou filhotes dos animais.

A partir daqui já se poderá afirmar que ele pode criar o seu “eu” ji’rupigwara e poderá amansá-lo ou acostumá-lo às assimilações possíveis contidas em um sonho. Ele poderá, também, de fato, dominar e controlar o outro: o “ga”, ou seja, amansar o rupigwara do outro que é o ga’rupigwara e assim poderá ter o poder de controlar os elementos do sonho, a si próprio e a outros sujeitos. A partir do seu universo onírico, bem entendido!

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O antropólogo Lévi-Strauss (1996, p. 294) percebeu que o Kawahib tem o poder de desdobrar-se em outro. Ao entrar em contato com essa cultura, considerada por ele ainda intacta, deixou transparecer em seu texto que os Kawahib tinham essa relação “com o seu outro eu”, e isto pode ser percebido através de uma marca textual numa observação sua, vejamos: “A esse respeito, os Nambiquara diferem de seus vizinhos do Noroeste, os Tupi-Cavaiba, para todos os quais o chefe é também um xamã dado aos sonhos premonitórios, às visões, aos transes e aos desdobramentos.” Uma ênfase maior terá que ser dada ao termo “desdobramento”, utilizado por ele. No seu extenso trabalho etnográfico, ele estava interessado em diversas etnias e pelos diversos aspectos culturais das mesmas. Contudo, conseguiu observar uma característica do xamã kawahib, que é a de “desdobrar-se”, o que neste estudo significa agir através do “seu” ga-rupigwara. Assim, com o reforço desses dados etnográficos, fica mais fácil demonstrar que para o ipaji’ga kawahib atingir essa extensão do seu “eu”, o seu ga-rupigwara, este precisa mais do que ser criado, pois é fácil perceber a sempre existência desse nosso corpo, nos sonhos de cada um de nós, será mais conveniente dizer que o kawahib passou a aprimorar uma nova formatação desse corpo, ou seja, pôde conceber-se numa nova configuração que era a do sonhar-se, o que lhe permitiu que ultrapassasse alguns limites condicionados impostos, principalmente, em relação à forma, posições e movimentos, considerando que a percepção espacial era a mais prestigiada por esse sujeito kawahib, pelo simples motivo dele procurar uma estreita relação com os outros seres mais especializados que ele em determinadas funções.

4. Ae’t’okaia – fazendo a tocaia 4.1. o ambiente ideal A tocaia é o ambiente ideal criado para as ações do poder xamanístico dos Kawahib. No Tupi-Kawahib, o termo t’okaia é usado para

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10 Estabeleci essa forma de grafar oamongó em respeito ao Tangarei Karipuna, que fez questão que assim se pronunciasse, e por ele ter sido o primeiro Kawahib a me fazer menção desse termo. Contudo o kawahib Leo Tenharim sugeriume que a melhor tradução do termo oamongó para o Português seria: “deixar reservado”.

designar uma casa temporária de palha, utilizada pelo caçador para realizar as esperas para a caça, ou pelo pajé para relacionar-se com os poderes. É um termo cognato de okaia, que nessa forma simples, significa apenas cercado e há um outro termo cognato que é hokaia, que significa arapuca, armadilha para capturar animais. Todos esses locativos nos remetem à idéia (de estar dentro) de um local temporário para realizar-se determinada função de uma atividade predatória que caracteriza o okahu’ka, o caçador. Por isso, em termos de atitude, ele comporta-se como um caçador, tanto é que ele precisa fazer oamongó10 – sonhar a presa, ou precisamente prendê-la, amarrá-la no sonho, transformar em presa ‑, termo que num sentido mais literal significa: pendurar, suspender (ae’mongó, pendurar qualquer coisa). A síntese seria “pendurar a atenção” (em qualquer coisa). Essa tocaia proporciona o isolamento necessário ao ipagi’ga Kawahib, ela pode ser construída dentro da casa grande, a oka’hua, no terreiro, ou num ambiente distante. O importante é ele fechar um ambiente que esteja inteiramente sob o seu controle. Uma constatação de que esse sujeito kawahib teve, é que o início do sonho é tematizado. Isto significa que há a necessidade da ação da escolha. Vejamos mais um recorte do estudo de Kracke (1989, p. 7): O pajé dentro da tocaia, ‑ ou o espírito dele, ga rupgwara – saía em busca de um espírito, convidava o espírito para dentro da tocaia, e o espírito se identificava para os ouvintes através de uma canção característica da espécie que ele representava – seja de peixe, ave ou animal, seja de anhãng da mata, ou outro espírito qualquer. [Os termos foram grifados por ele].

Acima, vimos que a canção é um dos instrumentos para invocar um ser, mas também é utilizada para criar um tema indutor a uma especificidade de sonho. A partir daqui podemos ir além. Através do poder de chegar ao “seu” ga-rupigwara, o pajé percebeu a necessidade da tocaia, não só como uma necessidade exigida no seu plano físico, ou seja, um lugar para deixar seu corpo físico bem resguardado, o que o eximiria das preocupações de qualquer molestação por parte do seu ambiente físico, mas também de se propiciar um silêncio mental imprescindível.

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De tanto repetir a ação de se chegar ao rupigwara, o kawahib obteve este controle através do conhecimento ativo que é o aprendizado pela prática. Maneira que lhe foi ensinada pelos seus antecessores que simplesmente lhe ensinavam como repetir uma ação visando mais os resultados do que entendê-la propriamente. Um conhecimento que tinham adquirido através das sucessivas práticas. Essa consideração é essencial para observar os métodos práticos de aprendizagem para a ação na tocaia. Para estabelecer os métodos é necessário constatar que o sonho na tocaia pertence à categoria dos sonhos voluntários e o isolamento silencioso é um requisito essencial. O silêncio é tão fundamental que há relatos de que quando o pajé estava numa tocaia construída dentro da própria aldeia era necessário, às vezes, ordenarem às crianças para pararem de brincar e mesmo aos demais ficarem quietos. Não tanto a questão dos ruídos das vozes é que o atrapalhavam, pois tal não acontecia com os rumores da mata, mas sim o fato do conteúdo trazer uma realidade simbólica contida nos discursos. Onde quero chegar é que o isolamento pretendido por ele é o isolamento mental. Isto porque os processos mentais são a maior forma de oposição para chegar-se ao rupigwara. Explica-se: para chegar a um propósito único, precisava livrar-se dos outros contidos nos milhares de signos que o saturavam com representações de ordem social, que geravam funções inibidoras de um outro aspecto cognitivo primário que poderia ser categorizado como a visão-direta-não-descritiva, onde o universo era percebido logo no primeiro passo, sendo que, por outro lado, as representações obrigavam-no a descrever primeiro o objeto para depois reconhecê-lo, o que exigia dois passos: um em que a percepção funcionava simplesmente como um refletor que sobrepunha eventos mnemônicos à observação direta dos objetos, outro que precisava ae’mongwam, peneirar ou coar essa intrusão de eventos saturados de mnese para poder aterse à percepção direta, o que exigia um ônus de energia da qual ele não poderia dispor caso quisesse concretizar o seu propósito. Como os signos são, no caso, lingüístico e uma representação simbólica da realidade, são eles percebidos por essa cultura oral ape-

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nas pelo seu significante sonoro, o que, em decorrência, privilegiará a sua faculdade auditiva que preponderará sobre todas as outras.

4.2. a’angavahepiakav: a sombra da realidade 11 É interessante observar que a palavra espelho que tem muitas variáveis na língua TupiKawhib, só pelos juap’u temos os termos aerepiakara e o cognato aereangaba que como a forma a’angavahepiakav são cognatos de a’ang que significa sombra e de anhan’ga que é um espírito mas também significa a sombra dele.

12 Há uma variante lingüística usada pelos jupa’u para designar o termo pensar que é akuahaka.

13 Os jupa’u têm preferência para designar o termo ficar quieto a forma ae’pykatu.

Essa preponderância do a’angavahepiakav11, espelho da realidade ‑ que tem como cognato a forma a’ang, a sombra que então podemos traduzir como a sombra da realidade ‑ terá que ser neutralizada. Espelho que será quebrado com a não verbalização, o parar de pensar ‑ parar o ae’pyaka. Aqui é que terá que se ter cuidado com as traduções, pois a construção desses sentidos não se presta à mesma sintaxe na língua portuguesa, caso em que teremos que ir à origem etimológica da palavra: Apyakwar: significa ouvido, ou o buraco do ouvido, que é um termo cognato de ae’pyaka12, termo que por analogia remete ao significado: pensar, ouvir a sua própria voz. Ou seja, a carga significativa de maior adequação a ser transposta ao português seria a de ouvir-se ou pôr no ouvido.

O estado para chegar a essa função de praticar o silêncio mental, ou seja, não se ouvir, tem um termo designativo Yvyapi – um verbo intransitivo que significa: ser quieto, ter inércia ou falta de ação.13 Esse é o ideal estado do indivíduo, cujo isolamento na tocaia., oferece a condição ideal para chegar-se ao rupigwara. Isso virá implicar que, por adesão social, reforçamos nossa atenção, usualmente, na freqüência sonora, ou seja, nós a ajustamos ao pensamento, que pela sua constituição verbal que estabelece uma relatividade desta atenção com a velocidade do som, uma velocidade muito menor em relação à velocidade da luz, em vista disto, poderemos considerar que instalamos os nossos processos mentais de maneira a priorizar a nossa acuidade auditiva em prol dessa atenção. O que o kawahib procurará fazer na tocaia é provocar a interrupção dessa atenção lenta, com a sua desinstalacão através do silêncio mental, que é parar o ae’pyaka, ”o falar o pensar”, em favor do ver

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as visage, aparição constituída numa espécie de brilho ou energia vera’vi, que estará numa freqüência inusual. Sua velocidade relacional é muito maior, comparada a da luz, ver a visage como endi, luminescente, é uma visão desestabilizadora por sua característica não habitual que, por ser energia, é sempre conjuntamente sentida com o ga’ra’o o corpo e coada, mongwam, através do rupigwara e é causadora de um tremor, hyhyi, principalmente na parede interna do tórax, na cavidade cingida pelas costelas, ynarukan’ga, estado em que o indivíduo se não estiver orientado pelo seu antecessor poderá confundir com estar desamparado. Este estado em que é remetido poderia ser interpretado pelo observador da cultura não indígena como um estado de transe. O parar o ae’pyaka, parar a fala do pensamento, é um ato que acarretará uma suspensão de julgamento, não só poderá, como dissipará toda a sustentação psíquica do indivíduo mantida pelo seu apoio à adesão à verbalização, a uma freqüência sonora. Isto provocará nele total desestabilização, o que poderá o levar, por não estar habituado ao apoio energético - numa velocidade relacional a da luz -, a um desfalecimento. Esse estado pode ser interpretado no sentido de afeto como um estado de total desamparo, que perdurará durante toda a sua transição para uma alternativa de sustentação não mental, mas sim energética – sensorial, observável em si e em volta, pelo kawahib. A partir desse momento, estará em um estado interativo em que as suas ações já estarão determinadas pelo “seu” ga- rupigwara.

5. relações com os outros seres não orgânicos 5.1. As visages Uma nova fase do processo é estabelecer relações com os outros seres. Um processo descrito por Kracke anteriormente: “(...) o poder de entrar em contato com os outros seres, não humanos, que habitam o mesmo cosmos conosco”. Os kawahib além de terem estabelecido uma classificação aos seres inorgânicos por espécies, também recorreram ao emprego

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de uma nomeação de maneira genérica a esses seres, tais como: anhan’ga, rupigwara e visage, este último termo é uma aquisição vocabular que os grupos indígenas tiveram da língua portuguesa na forma da dialetação cabocla, que é uma variante da língua portuguesa do Brasil utilizada pela sociedade circunvizinha dessas nações indígenas.

5.2. a relação consigo mesmo e com o outro A primeira constatação que o observador kawahib tem sem nenhuma dúvida, é que a visage não pertence ao seu âmbito de relações com o mundo humano orgânico. Para efeito de classificação, o âmbito maior dos seres não orgânicos é o do rupigwara, podemos entender também que o rupigwara pode ser um estágio evolucionário dos seres orgânicos, se entendermos que é uma consciência que pode transcender a própria morte física do ser. É o que intermedia suas relações conosco, a princípio, através do sonho. Às espécies vegetais também se pode atribuir um rupigwara. Em relação às espécies vegetais devemos entender aqui que a cura por intermédio de plantas, no xamanismo, não se processa através do princípio ativo da planta, mas através de uma relação ontológica, donde a eficácia dependerá também de uma relação com a tradição, com a qual o xamã deverá estar vinculado. No seio das terapêuticas de tradição indígena, a compreensão de que seja o sonho e o sonhar é completamente diferente. Como vimos, nessas terapêuticas, o sonho é onde a cura acontece. O sonho é o modo pelo qual se penetra no (ou melhor, se é penetrado pelo) mundo primevo, e o lugar de onde o espírito da planta opera a cura. Esse sonho, então pertence ao mundo primevo, de modo que não é privativo do homem. Na cura, a planta é que sonha o homem, e ali acontece o que nós entendemos por revelação-ensinamento: uma experiência originária (e corporal) é ofertada ao homem. Penso que agora se torna mais inteligível para o leitor o que quero dizer quando afirmo que a tarefa do xamã consiste em colocar a planta e o espírito da planta na corporeidade do paciente. Ele literalmente introduz o paciente no mundo originário da cultura. (MOURE, 2005, p.190).

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Se pensarmos na ação da t’okaia, o ipaji’ga, o pajé, coloca o rupigwara na sua corporeidade. Pois todo ser consciente poderá ter o seu rupigwara que é a sua extensão não orgânica, inclusive, há exemplos, de que os não índios numa guerra contra os kawahib poderiam sofrer a ação do ipají, o oamongó tapy’yn (prender o branco pelo sonho), para matar um branco, ou em outros casos, como para a caça, estabelecer uma aliança, segundo a informação abaixo colhida por Waud Kracke: Nos tempos antigos de guerra, o ipají também sonhava com a morte dos inimigos, uma função também designada pelo verbo amongó. A função de ahãmongó tapy’yn antes de uma exposição guerreira era essencial para o êxito da incursão, ou, (...) Um pajé X – Igwaká sonha que um espírito qualquer (um macaco, por exemplo, ou um morcego, ou um dos Yvaga’nga) vem a ele e pede para nascer. O pajé indica uma mulher e o espírito entra nela. Este espírito que é o jihyva’ga do pajé. (KRACKE, 1989, p. 9).

O depoimento no texto retomado acima demonstra a variedade de rupigwara ou visage que recebe classificações pelos kawahib e que se entendendo de que rupigwara é uma forma de consciência, poderia se definir em dois aspectos: um sobre a ação da própria consciência e o outro sobre a ação na consciência do outro. Esse dialogismo é uma constante na cosmologia dos kawahib, como já foi apresentado anteriormente sobre o aspecto dual dessa sociedade. Retornando a esse aspecto, nos estudos feitos por Kracke, ele apresenta duas ações do xamã que servem de elo de conexão com o rupigwara: “A canção é a via principal de comunicação do pajé com os seus rupigwara, no rito da tocaia; mas existe um outro meio mais geral do pajé exercer o seu poder: através do sonho.” (1989, p. 8). Estas duas ações são elementos essenciais para aprofundarmos essa pesquisa sobre os kawahib. Partindo desses elementos, as duas ações observadas acima por Kracke também estão sujeitas a outras interpretações e para elas é necessário abrir o seguinte item, sobre a segunda ação, a do sonho.

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5.3. o arquétipo do outro lugar: ae’T’okaia

5.3.1. a outra Tocaia Necessariamente, não é preciso dissociar o sonho da tocaia. De fato se efetua um sonho durante a tocaia, se considerarmos a visão de um animal evocado, dentro da tocaia, como uma categoria de sonho voluntário. Veja a descrição a seguir do kawahib Tangarei Karipuna: Para ir ao céu, a catinga do porco do mato é muito forte, tem que ter um peito muito forte para tocaiar os queixadas. Escolhe um porco e começa a dançar sendo assim que eu estou dormindo e sem que o porco perceba, eu corto o pêlo do porco, mesmo assim ele percebe e, quando ele percebe, eu acordo assustado e começo a ter disenteria e febre, mas para isso eu preciso ter um poder grande para poder ir à casa dos queixadas. Após cinco dias a caça ficará mansa para a pessoa que eu amarrei e o caçador vai e mata, mas para isso terá que ter boa pontaria. (Em 01/01/2004).

Nesta entrevista que me concedeu o kawahib Karipuna, é fácil notar as sobreposições de lugares observados durante a tocaia, como a referência para ir ao céu, ou na casa dos queixadas. A percepção física torna-se, também, muito acentuada, daí o fato de sentir-se o odor, o cheiro dos porcos. Mas outro aspecto tem que ser considerado, o conceito ae’tokaia tem uma abrangência muito maior do que a de um simples abrigo físico de palha. Poderá ser qualquer outro lugar, o lugar do artifício para iniciar-se o sonho, ou melhor, o das ações do rupigwara. As ações das práticas do pajé demonstram que para dissociar o corpo físico ga’ra’o do corpo energético ga’rupigwara, é preciso dissociar os dois espaços: o do lugar em que está o corpo físico e o do sonho. Isso se explica da seguinte forma: o espaço ou a geografia do sonho é um local tematizado que é evocado, primeiro, por canções se o sujeito tiver a verbalização como predileção, ou por ima-

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gens que também, quase que invariavelmente, são sugeridas pelas canções. Somente depois é que são evocadas as personagens. Então, a explicação simples da ação prática será: ainda no estado de vigília, antes de começarmos a dormir ‑ e portanto a sonhar ‑ devemos do lugar em que estamos imaginar que estamos em outro lugar. Por força do hábito este local era sempre imaginado pelo antigo ipaji’ga, o pajé kawahib, como uma tocaia já arquetipizada. Mas funcionará em qualquer ambiente considerado por nós como local seguro e agradável e, ainda, se tivermos uma boa gama de artifícios, poderemos nos imaginar num ambiente mais aberto, em plena natureza, mas consciente o tempo todo dessa nossa duplicidade e de que por motivos óbvios, por ser aquele corpo o do sonho, ele estará além de qualquer molestação: por insetos ou por qualquer desconforto climático. Essa prática demonstrará que se começarmos a sonhar desse outro lugar imaginário (dessa tokaia) haverá um dispositivo natural que aumentará a probabilidade de nos manter conscientes durante o processo de sonhar, pelo simples fato de se estar à espera de um sonho concebido em outro lugar. Fato que manterá nossa atenção desdobrada do referencial físico do local originário para o local imaginário. Esse é um dos aspectos sofisticados da tematização. Mas não podemos desprezar a longa prática e a experiência do pajé kawahib que o induz a evitar a iniciar qualquer ação em local aberto. Se ele escolheu a tocaia como local ideal para suas ações é que ao longo da prática, percebeu que a delimitação do espaço restrito da tocaia era também a representação geográfica da sua consciência, o próprio dispositivo do seu autocontrole e, que, sem isso ele perder-se-ia na vastidão do infinito ‑ mesmo na infinitude da segmentação da consciência ‑ onde correria o risco de ver-se destituído de qualquer tipo de memória ou da própria referência física, o que nele despertará o temor de ter sua identidade dissipada (o seu ser), ou de se assemelhar às pessoas dementes que andam falando sozinhas por aí. Entendendo aqui que o que o pajé simplesmente se atém ao conhecimento originário da sua cultura. Sua guarnição é a sua tradição xamânica, ofertada pelo mundo originário que como o sonho, pertence ao mundo primevo, aqui transcrevendo Moure (2005, p. 30),

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O que o kawahib percebe como energias conscientes é o que ele considera como energias delimitadas (seres) em estado ativo de inter-relações com fontes originárias e originadas. A consciência de um ser orgânico, por exemplo, de um animal propriamente dito, pelo ponto de vista do observador kawahib, poderia ser definida pelo mesmo conceito de rupigwara, mas com a ressalva dele manter elementos de coesão com a sua própria referência física ou seja, o seu estado orgânico. Por isso, é algo temerário um neófito iniciar o seu sonho num campo aberto, embora ele ainda tenha as linhas do horizonte ‑ se ele se ater apenas ao espaço geográfico ‑ como a representação da moldura ou das bordas da sua própria consciência. Em um ambiente aberto, se depara com um campo de ação mais amplo, sem o amparo de um lastro originário de uma tradição. É uma ação de risco, porque com o sonho atingindo um status de sonho consciente, o indivíduo pode perder, o que se pode chamar de artifício natural de acordar de imediato e naturalmente, em um momento em que poderia se entender como o de um extremo perigo. Mas, mesmo para o pajé kawahib acostumado ao embate, sendo maior o campo, será menor a possibilidade de evitar um confronto com outras consciências, como as visages e os ga’rupigwara; em que correrá o risco de estar sujeito às suas determinações, que para ele já são pré-concebidas por relações de transcendência ao mundo primevo. Sua prudência e experiência o aconselhavam apenas a evocação desses seres para um espaço sob o seu controle, a ae’tokaia. Trazer todos os rupigwara para esse seu ambiente. E no caso de querer aventurar-se pela vastidão do universo, teria o seu dispositivo de segurança, que seria deixar o seu ga’ra’o, corpo físico, bem resguardado na tocaia com uma atenta conexão com o seu corpo do sonho, o do ga’rupigwara que, por sua vez, teria a tocaia imaginária como sua base, sempre inaugurada pela sua tradição xamânica, para a sua proteção, que se estende até ao outro mundo, para iniciar a sua aventura. Daí também a preferência de sempre se iniciar o trabalho com dois indivíduos, um dentro da tocaia e outro fora. O que está fora é o

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que eventualmente poderá resgatar o que está dentro (servirá de lastro), caso seja apoderado por alguma coisa, ou se perca nas vastidões, ou apenas para lembrá-lo da sua tarefa com o doente, nos casos mais corriqueiros.

5.4. No universo ficcional de um rupigwara os riscos que pode correr o sonhador. Quando se trata de riscos, os kawahib raramente se referem às visages como rupigwara, mas usam o termo anhan’ga, que assim fica mais de acordo com a definição de Waud Kracke de que “o anhang é um espírito maléfico e assinala a sua presença na proximidade do sonhador com pesadelos. O indício destes não seria tanto o conteúdo do sonho e sim o afeto de angústia que acompanha o pesadelo.” (KRACKE 1989, p. 4-5). Devido a isso, os kawahib do grupo Jupa’u, os Uru-EU-Wau-Waau, raramente usam o termo ga’rupigwara e sim anhan’ga, tanto é que a partir deles e a partir desse trabalho é que foi estabelecido, em consenso, aplicar o termo rupigwara para designar um anhan’ga manso, o que o torna um aliado ou espécie de guia. Esse critério estende-se aos demais kawahib que não viram nenhuma restrição em adotar esse tipo de interpretação. Esse consenso não se estabeleceu aleatoriamente, mas a partir de que a relação do ser não orgânico com o orgânico, invariavelmente, partia do princípio da depredação. Daí que a relação inicia-se a partir da tocaia, que tem a sua origem na atividade da caça, que estabelece em termos de atitude uma relação depredatória que, no mínimo, poderá estar determinada e sob o controle do ipaji kawahib, mas sempre levando a um ato de apoderação. A declaração em que Kracke, assinala que um anhang não está interessado no conteúdo de um sonho mas sim no afeto de angústia que acompanha o sonho (no caso um pesadelo) demonstra que há este interesse específico, o do anhan’ga querer nutrir-se do afeto da pessoa, agora se demonstra de maneira efetiva: o nutrir-se nos remete à idéia de um elemento de troca que é o alimento.

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O pesquisador percebeu, naquele ponto fundamental, algo que poderia passar despercebido a outros. Tal ação nos permite desenvolver esse ponto e vários outros a que ele nos remete como, por exemplo, a existência de uma relação recíproca de interesse entre o anhan’ga e o sonhador. Aqui também se denota a argúcia do antigo observador em oferecer o seu afeto – em dosagens sob o seu controle (ao produzir afetos voluntariamente) ‑ como elemento de troca para efetuar a domesticação do rupigwara na sua tocaia. Se o interesse do anhan’ga está concentrado em alimentar-se do afeto, a maneira que o observador kawahib encontrou para perceber isso foi através das recorrências, hábito, como já foi observado antes, inscrito nele através da contínua observação das rotinas da caça. Percebeu quando já estava habilitado nas ações do seu ga’rupigwara que quando se está sonhando, afrouxa um tipo de atenção que poderíamos designar como a atenção operacional do cotidiano. Da sua vigília, é preciso ficar claro!

14 Esse tipo de atenção poderia ser também chamada: “a vontade do corpo”; logo, a barreira funcional causadora da dificuldade para manter-se consciente num sonho não seria de ordem psíquica, mas pelo fato do corpo não ter essa vontade e, em decorrência disso, essa vontade ainda não estaria disponibilizada, também, ao corpo do sonho.

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Se ele não for dotado da capacidade de efetuar uma ação voluntária no sonho será incapaz de construir um novo tipo de atenção específica para a prática do sonho consciente.14 Nesse caso, a simples proximidade de um ser não-orgânico em seu estado energético só poderia ser pressentida por ele, ou melhor, sentida de certa forma como um estado de desestabilização sensorial. Por não compreender nada, tudo que um eventual sonhador comum percebe tem uma correlação com o seu universo percebido no cotidiano, que é profundamente inventariado na sua materialidade e nas suas ações. Se não pode perceber algo como energia terá que elaborar instantaneamente uma decodificação, que seria transformar tudo em imagens tridimensionais para elaborar as representações físicas e se ele for de temperamento susceptível ao temor, terá que ‑ para justificar tal medo ‑ construir no seu sonho um texto onírico revestido de ações de extrema tensão ou perigo com toda a sua complexidade de cenários, personagens e continuidade.

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O anhan’ga, no caso como a representação desse ser não-orgânico para o kawahib, poderia se revestir da aparência de qualquer elemento depredador propenso a provocar temor nesse eventual sonhador. O anhan’ga teria a aparência de qualquer referência inamistosa para um kawahib: um predador da floresta, um ser mítico, ou de um inimigo tribal. Mas se o alimento do anhan’ga é a emoção, também não demorou muito para o antigo observador kawahib notar que em uma intensa descarga emocional, desprendida, poderia não representar, para o anhan’ga, em termos energéticos, haver para ele qualquer distinção entre um terror intenso ou um amor intenso. A oferta energética seria a mesma. Se ocorresse a proximidade desestabilizadora na ação de um ser energético no seu momento de sono, sendo ele propenso mais à excitação do que ao terror, seguramente, quanto ao conteúdo do sonho, ele teceria um texto onírico extremamente atrativo onde o anhan’ga se transformaria numa personagem extremamente querida ou em um objeto ou local desejável. É nesses casos em que há a preferência de adotar-se o termo rupigwara ao invés de anhan’ga. Aqui já se têm elementos suficientes para demonstrar como o antigo observador kawahib desenvolveu seus recursos para o processo de mbojipokwahav, de amansar o ga’rupigwara. Através de um contrato de puro afeto, ou seja, sabia produzir o afeto necessário às necessidades do ga’rupigwara. Em troca obtinha o seu favorecimento nas suas deslocações para dominar novas áreas de consciência. Que poderia ter a representação de ser transportado para outros lugares ou adquirir novas formas.

Resumo: Este estudo apresenta um aspecto da cultura tradicional Kawahib, com o qual espera-se abrir espaço para novas reflexões aos que atuam em cursos de formação indígena. Foi realizada uma pesquisa etnográfica aplicando-se métodos qualitativos através da observação participante, a partir da qual procurou-se demonstrar a visão cosmogônica dos Ka-

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wahib sobre um universo dividido em metades, no qual nada é completo, resultando as metades sociais que se completam no casamento. Se para o Kawahib há uma concepção de meio universo, também se abre a do meio-indivíduo, considerado como uma unidade de consciência, denominada ga’ra’o. Designação tanto para o seu corpo quanto para a sua alma, ainda assim considerado uma metade, mas tendo a prerrogativa de conquistar sua outra metade, o rupigwara. O conceito de rupigwara é o do corpo do sujeito no sonho, consciente e sob controle, que precisa sofrer o processo de mbojipowahav, ser amansado, configurado. O recurso para expor tal conceito, foi o da descrição de um arquétipo do sujeito xamã kawahib, com seus sonhos conscientes através do procedimento da ae’Tokaia, como local para efetuar seus processos de realização de cura e aprendizagem, durante as suas visitas em “outros mundos”, por intermédio do seu rupigwara. Palavras-chave: índios kawahib, sonhos conscientes, educação indígena, rupigwara, Uru-Eu-Wau-Wau.

Abstract: This work presents an aspect of Kawahib culture. We hope to offer new ideas for those who want to work with Indigenous education. We developed an ethnographical research project as we applied qualitative method through participatory observation, from which we show Kawahib´s cosmogonist vision of the universe, which is divided into halves, nothing being complete, in the same way that the social halves are constituted and completed through marriage. If for the Kawahib people there is a conception of half universe, the half-individual also opens itself, although this may be considered as a unity of consciousness, which is called ga’ra’o. This is a term applied both to the body and to the soul, even being just a half. This half can conquer the other half that is the rupigwara. The concept of rupigwara is that of the subject´s body when in dream, under control; conscious and active

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needing to go through mbojipowahav process, to be tamed and set up. The resource is the archetype of the shaman Kawahib, who, with his conscious dream through the procedures of ae’Tokaia, which works as the local to effectuate the processes of achievement of cure and learning during his visits to the /’ other worlds” through his rupigwara. Keywords: indians kawahib, conscious dream, indigenous education, rupigwara, Uru-Eu-Wau-Wau.

Resumen: Este trabajo presenta un aspecto de la cultura de Kawahib. Esperamos ofrecer las nuevas ideas para los que desean trabajar con la educación indígena. Desarrollamos un proyecto de investigación etnográfica mientras que aplicamos método cualitativo con la observación participante, de la cual demostramos la visión del cosmogonista de Kawahib´s del universo, que se divide en mitades, nada que era completo, de la misma forma que las mitades sociales están constituidas y terminadas con la unión. Si para la gente de Kawahib hay un concepto del medio universo, el mitad-individual también se abre, aunque esto se puede considerar como unidad del sentido, que se llama ga’ra’o. Esto es un término se aplicó al cuerpo y al alma, incluso siendo justo una mitad. Esta mitad puede conquistar la otra mitad que es el rupigwara. El concepto del rupigwara es el del cuerpo de los subject´s cuando en sueño, bajo control; el necesitar consciente y activo pasar con proceso del mbojipowahav, ser domesticado y ser instalado. El recurso es el arquetipo del Kawahib shaman, que, con su sueño consciente con los procedimientos del ae’Tokaia, funciona como el local para efectuar los procesos del logro de la curación y de aprender durante sus visitas a los/’otros mundos “ con su rupigwara. Palabras clave: los indios de kawahib, educación indígena, sueño consciente, rupigwara, Uru-Eu-Wau-Wau.

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e-mail: osvaldo@unir.br Recebido em 06/02/2008 Aprovado em 10/09/2008

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corridas de aventura: o mito do herói, a aventura e a representação mítica da natureza

Luiz Fabiano Seabra Ferreira1 Centro Universitário Unimódulo – Caraguatatuba – SP

introdução

Este artigo é parte de uma dissertação de mestrado intitulada: Corridas de Aventura: construindo novos significados sobre corporeidade, esportes e natureza, apresentada na Faculdade de Educação Física da Universidade de Campinas – UNICAMP.

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Na atualidade, há uma grande ênfase nas discussões abordando as questões que envolvem os ambientes naturais e artificiais, pois vivemos sob uma forte aceleração das transformações tecnológicas e sócio-culturais. Pode-se observar diversas mudanças que se referem às atividades realizadas pelos homens em relação aos espaços que ocupam. Estão se delineando diferentes maneiras de o homem interagir com o ambiente e transformá-lo, construindo novos significados sobre a temática envolvendo o homem e a natureza. Adotou-se a definição de natureza que, segundo Carvalho (1994, p. 26), exprime uma totalidade, em princípio abstrata, que os homens concretizam na medida em que preenchem com suas visões de mundo. Buscando elaborar uma reflexão sobre a atualidade, Sevcenko (2001), por meio de uma metáfora em que utiliza a montanha-russa como exemplo, diz que, na contemporaneidade, vivemos uma síndrome do loop em razão de uma extrema aceleração das transformações tecnológicas que nos desorienta e nos submete a uma sensação de passividade e irreflexão. A questão central é justamente

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o ritmo em que as mudanças se processam, pois mal se assimila uma determinada mudança ou mal se reflete sobre ela e, logo em seguida (ou, ao mesmo tempo), surgem novas transformações. O autor prossegue dizendo que a crítica é necessária e, para realizar tal empreendimento, deve-se desprender criando um distanciamento em relação a essa aceleração das mudanças. Pode-se observar o surgimento de novas práticas corporais e novas formas de relacionamento entre os seres humanos, delineadas a partir dessas práticas. Refletir sobre os sujeitos e os novos significados elaborados pela interação advinda dessas práticas corporais mostra-se como uma possibilidade de compreender o fenômeno em questão, levando em consideração novos processos de sociabilização. Nessa reflexão, essas práticas corporais serão designadas por esportes de aventura que, organizadas em forma de competição, originaram as corridas de aventura. A mídia tem realizado uma grande exploração sobre essas novas atividades, porém são poucos os estudos acadêmicos que interrogam e investigam esse assunto. De acordo com Betti (1998), a valorização social das práticas corporais de movimento legitimou o aparecimento da investigação científica e filosófica em torno do exercício e da atividade física, da motricidade ou do homem em movimento. Este artigo tem por objetivo, realizar reflexões pautadas nos imaginários revelados pelos atletas participantes de corridas de aventura, no caso a Expedição Mata Atlântica (EMA). Essas vivências revelam subjetividades carregadas de imagens, símbolos e significados relacionados à percepção mítica da natureza e do mito do herói. O que se propõe são olhares criativos, amparados por uma antropologia crítica, procurando observar além dos aspetos competitivos, outras características relacionadas às subjetividades ocorridas entre os participantes desse evento esportivo. Foram utilizados vídeos produzidos pelos organizadores da EMA e para a coleta dos dados foi empregada a entrevista semi-estruturada registrada com auxílio de um mini gravador. Foi empregada a análise de conteúdo dos dados, proposta por Chizzotti (1991, p. 98), cujo objetivo é “compreender criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas”.

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As entrevistas obtidas com os sujeitos possibilitaram construir uma descrição sobre os significados atribuídos às diversas vivências ocorridas no decorrer da competição (EMA). De acordo com Maffesoli (2001): (...) durante as descrições pouco se importa com a ilusão da verdade, que não propõe um sentido definitivo das coisas e das pessoas, mas que se empenha sempre em manter-se a caminho. O próprio da descrição é justamente, o respeito ao dado mundano (...) metodologicamente, sabe-se que a descrição é uma boa maneira de perceber, em profundidade, aquilo que constitui a especificidade de um grupo social (p. 113 - 123).

Os escritos de Roger (1999, p. 89) enfatizam a necessidade de uma antropologia complexa que possibilite uma nova visão sobre fenômeno humano. Nesse sentido, o autor expõe que a velha antropologia operava a partir de uma visão simplista, reducionista e dicotomizada sobre o humano. A antropologia complexa baseia-se no método proposto por Edgar Morin, no qual se delineia um novo caminho epistemológico, a partir de uma abordagem complexa sobre o fenômeno humano. A idéia de uma epistemologia da complexidade diz respeito a todos os níveis do real: físico, biológico, antropológico, sociopolítico. As complexidades antropológica, sociológica, ética, política, histórica – pois estes são os níveis mais importantes em que o homem encontra o seu modo de estar no mundo – devem ser entendidas como diferentes faces de uma mesmo fenômeno: o fenômeno humano.

as corridas de aventura De acordo com Paterson (1999), o termo corridas de aventura surgiu no início dos anos 80 na Nova Zelândia. Este termo designa uma nova forma de competição, em que o homem utiliza obstáculos naturais (rios, montanhas, florestas e outros ambientes naturais) para a prática de atividades físicas, como: moutain biking, rafting, canoagem, trekking com orientação2, técnicas verticais3 e natação. As origens das corridas de aventura estão ligadas à corrida multi-esportiva (corrida em montanha, canoagem e mountain biking)

2 Orientação pode ser definida como a arte de caminhar por terras desconhecidas com o auxílio de um mapa e uma bússola. Não é errado associar a Orientação a uma espécie de enduro realizado em regiões desconhecidas, onde, na hora da partida, o competidor recebe um mapa no qual está marcado o percurso que deve ser realizado no menor espaço de tempo possível. Durante a prova, o orientador deverá encontrar os pontos de controle que são representados no terreno por prismas (uma espécie de bandeirola vermelha e branca) cuja área de localização está representada por um círculo no mapa. A essência da Orientação é que a escolha da rota entre um ponto de controle e outro é definida pelo próprio atleta, que deverá levar em consideração as facilidades e dificuldades existentes entre as várias rotas possíveis (Texto sobre corrida de orientação, 2002). 3 As técnicas verticais são: rapel (descida de um paredão com auxílio de equipamentos de segurança), ascensão com equipamentos e tirolesa (travessia aérea entre dois pontos, utilizando equipamentos de segurança).

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realizada na Nova Zelândia, chamada Coast to Coast. A primeira edição aconteceu em 1980 e foi o primeiro evento multi-esportivo realizado em ambiente natural. O desenvolvimento das corridas de aventura se deu a partir da criação da Coast to Coast e de outra corrida conhecida como Alpine Ironman. Logo depois os americanos lançaram o Alaska Mountain Wilderness Classic, com início em 1983. Enquanto o Coast to Coast se tornou um dos mais prestigiados eventos multiesportivos, o Alaska Mountain Wilderness não ficou muito conhecido. O passo seguinte para o crescimento da popularidade das corridas de aventura foi a criação do Raid Gauloises (comumente conhecido como Raid), realizado pela primeira vez na Nova Zelândia, em 1989, a primeira corrida multiesportiva de longa duração, quando foi exigida a formação de equipes mistas. A criação dessa corrida foi um marco para a transformação do esporte, pois envolvia, numa mesma competição, homens e mulheres, criando assim um novo significado para as corridas de aventura. A possibilidade da mulher competir numa mesma equipe em que homens competem caracteriza uma nova forma de organização esportiva. Criado por Gerard Fusil, o Raid rapidamente popularizou as corridas de aventura na Europa (principalmente na França, país de Fusil), Austrália e Nova Zelândia, por meio do marketing da empresa de Fusil. Para muitos, o evento foi visto como o maior teste de resistência humana. O Raid Gauloises passa por locações diferentes em todo o mundo, anualmente. Apesar de ser bastante conhecido e ter um rápido crescimento na Europa, Austrália e Nova Zelândia, essas atividades eram praticamente desconhecidas na América do Norte, até o momento em que Mark Burnett, empresário e competidor de duas edições do Raid Gauloises criou o Eco-Challenge e firmou parceria com o Discovery Channel para transmitir o evento em todo o mundo. A primeira corrida aconteceu em Utah em 1995 e conseguiu alcançar o mesmo status do Raid. Desde então, muitas corridas surgiram em todo o mundo, principalmente os eventos com um e dois dias de duração. No Brasil, a primeira corrida de aventura foi realizada no ano de 1998 e se chamou Expedição Mata Atlântica (EMA), tendo como organizador o empresário paulista Alexandre Freitas. De acordo

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com a Expedição Mata Atlântica (2002), o conceito da EMA, é unir o esporte, a aventura e a preocupação com a preservação ambiental. Para isso acontecer, os organizadores desenvolvem, no período da corrida, um projeto sócio-ambiental envolvendo os atletas e as comunidades que estão no entorno da área percorrida. Observando o conteúdo de tais projetos, pode-se perceber que possuem uma característica assistencialista de curta duração. Eles são de pequeno porte, mas já significam um avanço no que se refere ao desenvolvimento de projetos sociais que possibilitem, minimamente, um contato entre os diversos atores sociais. A Expedição Mata Atlântica é uma competição, na qual participam atletas organizados em equipes de ambos os sexos (equipes mistas), dispostos a realizarem diversas atividades para alcançarem um objetivo no menor tempo, exigindo o máximo de suas resistências físicas e mentais. Orientam-se por bússolas e mapas, por dias e noites ininterruptos, em regiões pouco exploradas pelo homem. O objetivo das equipes é realizar o percurso definido pela organização e, para isso, devem alcançar os postos de controle (PC) e/ou áreas de transição (AT), espalhados ao longo do percurso. Os postos de controle (PC’s) são locais nos quais as equipes devem confirmar sua passagem através de registros realizados pela organização da prova, já a área de transição (AT) é o local onde estão os equipamentos das equipes. Nesse local os participantes realizam troca de modalidade esportiva, dão manutenção em equipamentos e carregam as mochilas com suprimentos. Os atletas também podem descansar nas áreas de transição. Vale frisar, que os atletas participantes da EMA devem realizar um projeto sócio-ambiental de pequeno porte. Segundo a Expedição Mata Atlântica (2002), os projetos sócio-ambientais têm como objetivo alertar e informar sobre diversos temas (saúde, educação ambiental, entre outros) colaboradores de toda sorte e, principalmente, as comunidades próximas ao percurso da prova. As corridas de aventura se originaram numa época em que algumas pessoas estavam procurando um contato por meio de atividades físicas com ambientes que possuíssem características (naturais) diferentes daquelas encontradas em ambientes urbanos (artificiais). Essas atividades físicas realizadas em ambientes não artificializados representavam um rompimento com o chamado esporte tra-

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dicional institucionalizado, pois as mesmas não necessitavam de regras nem espaços demarcados ou cronometragem. As pessoas que, na atualidade, participam de corridas de aventura, de certa forma, já possuíam, antes, algum contato com atividades outdoor. Betrán & Betrán (1995) analisam essas novas atividades da seguinte forma: Cada sociedade, em cada época, tem sua própria cultura corporal relacionada aos seus parâmetros ideológicos, técno-econômicos, sociais e, é claro culturais. A idéia de corpo, os usos, hábitos e costumes, movimentos que suscitam, práticas corporais e atividades físicas recreativas que aparecem neste período se inscrevem na mentalidade da época (p. 15).

A busca por ambientes naturais e as criações de novas atividades físicas que possuíssem características diferenciadas dos esportes tradicionais modernos também estavam ligadas à busca de uma aventura selvagem, por meio da procura interminável pelo desafio e conhecimento dos limites humanos. Essas atividades que ligam o homem à ambientes naturais possuem características que denotam possibilidades de se viver uma aventura, pois a incerteza, o risco e a aceleração são características predominantes em algumas dessas novas práticas. Nas corridas de aventura o risco está presente de forma controlada e minimizada pelos organizadores da prova. Esta forma de risco está associada a uma possibilidade de experimentar fortes emoções, porém sem oferecer grande perigo para os sujeitos que vivenciam estas atividades. Há um desafio em relação aos riscos e ao medo, enfatizando sensações prazerosas que emergem a partir dessa combinação. Dessa forma, os atletas constroem imagens e significados de acordo com as experiências vivenciadas. O aumento na percepção dos riscos pode estar relacionada à instabilidade vivida na atualidade, pois se observa um rompimento com os conceitos disseminados na modernidade. Para Maffesoli (2004) a atualidade pode ser compreendida a partir da antinomia de valores que afetam toda estrutura social. Nessa perspectiva o risco e a insegurança são características marcantes da atualidade, pois podem ser observados a partir das transformações sócio-culturais

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que se delineiam, com uma forte presença em diversas instâncias, como, por exemplo, na política, na economia e no próprio cotidiano das grandes cidades. Nesse contexto, estão emergindo novas formas de se compreender os valores, a ética, a ciência e o próprio ser humano. De acordo com Giddens (1991), vivemos num momento em que “muitos de nós temos sido apanhados num universo de eventos que não compreendemos plenamente, e que parecem em grande parte estar fora de nosso controle” (p.12). Outra característica que emerge com grande força na atualidade é o ambientalismo surgido a partir das contestações ocorridas nas décadas de 60 e 70. Esse movimento visava a uma ruptura com o paradigma proposto pela modernidade, que enfatizava os desenvolvimentos técnicos, científicos e econômico sem limites. Nessa época eclodiram diversas manifestações que tinham por objetivo expor à sociedade os problemas desencadeados a partir do uso excessivo de uma racionalidade técnico-científica. Dentre elas, podemos destacar o movimento de contra cultura que tinha por objetivo romper com a cultura de massa que se desenvolvia naquele momento histórico. Outra característica que se expressa concomitantemente com o movimento ambientalista é o movimento feminista que visava contestar e romper com os papéis sociais impostos pela racionalidade moderna. Também se pode observar que há um movimento entre as pessoas direcionando suas energias e procurando construir um espaço de troca, no qual há encontros para vivenciar experiências em comum. Maffesoli (1998) chama esse movimento de tribalização que é caracterizado pela busca de novas formas de sociabilização. As corridas de aventura demonstram ser um potencial espaço de intercâmbio cultural e afetivo. Esse compartilhar denota uma possibilidade de transformação no que se refere às formas de relacionamento entre as pessoas. Nesse contexto, cabe ressaltar o surgimento das corridas de aventura como uma forma diferenciada de se conceber o esporte, a competição, o corpo e o ambiente natural. De acordo com Beal et ali (apud KAY & LABERGE, 2002), os discursos relacionados a essa nova cultura esportiva tendem a rejeitar os valores disseminados pelos esportes tradicionais (competição, mensuração e regras) em

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favor de valores menos rígidos caracterizados pela experimentação de sensações que favoreçam o autoconhecimento. A partir da primeira edição da EMA, iniciou-se uma transformação no “cenário esportivo nacional”: várias outras corridas de aventura foram organizadas, e as atividades envolvidas nessas competições ganharam uma grande popularidade num pequeno espaço de tempo. Um dos motivos para o rápido crescimento desse novo segmento é a grande diversidade de locais propícios para as práticas.

o espaço que possibilita a realização das corridas de aventura: a aventura, “o mito do herói” e a representação mítica da natureza Da Silveira (1996) diz que os mitólogos modernos vêem no mito a expressão de formas de vida, de estruturas de existência, ou seja, de modelos que permitem ao homem inserir-se na realidade. São modelos exemplares de todas as atividades humanas significativas. Os escritos de Durand (1988) ressaltam a importância contida na imaginação simbólica, que representa um fator de equilíbrio biológico, psíquico e sociológico. O autor expõe que existem duas formas de a consciência representar o mundo. Uma, direta, segundo a qual o objeto parece estar presente na própria consciência, como na percepção ou na simples sensação. A outra, indireta, em que o objeto não se doa à consciência, pois não está presente “em carne e osso”. Como exemplo, cita-se a imaginação de algo ou as lembranças de algum acontecimento do passado. O objeto que não está acessível à percepção e aos sentidos “é representado por um signo eternamente privado do significado, e veremos que esse signo longínquo nada mais é do que o símbolo” (p. 12). O símbolo é a representação de algum significado acessível à imaginação, mas não é passível de ser reduzido apenas a uma descrição lingüística. O autor se apóia nas idéias de Jung, definindo o símbolo como “a melhor figura possível de uma coisa relativamente desconhecida que não se saberia logo designar de modo mais claro ou característico” (p. 14). Mais a frente ele diz que o simbolismo se relaciona ao não-sensível, ao inconsciente, metafísico ou ao supra-real, pois

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é difícil perceber as “coisas ausentes” ou que “não enxergamos”. O símbolo “tem valor para si próprio”, pois ele nos remete a uma representação concreta, admitindo um valor abstrato que não pode ser confirmado pela percepção. O símbolo enquanto signo que remete a um indizível e invisível significado, sendo assim obrigado a encarnar concretamente essa adequação que lhe escapa, pelo jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação (p. 19).

O símbolo conduz a um conhecimento que jamais poderá atingir a objetividade científica, dado o seu significado imerso na imagem representativa, apreendida numa subjetividade mergulhada no simbolismo. Nesse sentido, evidencia-se que, nos mitos, a subjetividade sofre influências sócio-culturais. Pode-se ressaltar o compartilhar de imagens e símbolos pelos atletas participantes da EMA, pois no decorrer da corrida os sujeitos estão imersos em ambientes naturais no quais os significados mitológicos da natureza vão se manifestando de acordo com as vivências dos atletas. O contato com a floresta, o mar, os rios e outros elementos naturais, despertam arquétipos mitológicos que se manifestam na consciência, e a partir desse desvelar se cria a possibilidade de reconhecer essas manifestações numa profunda contemplação do ser, do natural, da existência e da vida na sua plenitude percebida como um todo indissociável . Nesse contexto, são reveladas estruturas primordiais que habitam a consciência humana. Para Crippa (1975) os mitos não são uma forma simbólica, mas, sim, o campo onde surgem as formas simbólicas. O arquétipo ou uma proto-forma seria uma forma possível de conceber o mito. “Somente a partir da Literatura e da Filosofia, que separam o mundo aparente do mundo real, tornou-se possível reduzir o mito a uma forma simbólica” (p.35). Antes da reflexão especulativa, há um encontro direto e emocional com o mundo e a realidade. Dessa forma, a apreensão da experiência mítica antecipa a reflexão sobre esse momento. A experiência mítica não desapareceu, e os mitos sobrevivem diante do progresso da reflexão e da razão teórica:

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Ainda hoje podemos ver as coisas de maneira direta, imediata, emocional e profundamente simpática, tomando parte nos sentimentos e emoções da vida cotidiana (p. 37).

O autor prossegue dizendo que o mito é uma manifestação de uma totalidade indefinível. As definições apenas justificam-se enquanto tentativas de aproximação visando o esclarecimento de uma realidade fundamental que deseja compreender. Nesse contexto, torna-se evidente que as questões mitológicas extrapolam a dimensão racional humana, pois atinge outros níveis de consciência que estão além da razão. Cabe ressaltar, algumas manifestações sensíveis demonstradas pelos participantes da EMA como exemplos de percepções da realidade a partir de uma “razão sensível”, ou melhor, de uma sensibilidade intuitiva que ainda não foi contaminada pela dimensão mental ordinária, racional, formal, e lógica, pois as experiências sensoriais captam as sutilezas que a racionalidade toma como referência para elaborar os pensamentos, as idéias ou outras formas pré concebidas da realidade. Aqui o mito do herói surge com intensidade na consciência de alguns atletas, pois eles se deparam com os desafios inerentes a EMA, necessitando muito mais do que a razão lógica para superar tais obstáculos. Nesse contexto, os mitos surgem como arquétipos atuando nas estruturas psico-mentais dos atletas. Se faz necessário o estudo aprofundado dessas estruturas. As questões mitológicas (desde a Grécia Antiga até a atualidade) sempre estiveram presentes nas pesquisas históricas (mitopoeta – Joseph Campbell), psicológicas (arquétipos – inconsciente coletivo – Carl G. Yung), ou antropológicas (A estrutura dos mitos – Claude Lévi-Strauss). Esses são apenas alguns exemplos para ilustrar o interesse nos estudos sobre o mito. Os mitos podem ser entendidos como um ingrediente vital para os humanos, representando uma realidade viva e carregada de significados. Neste estudo, vale salientar que se privilegiam duas abordagens sobre os mitos: uma primeira relacionada à concepção mitológica de Joseph Campbell, e a segunda relacionada à compreensão junguiana sobre o tema.

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Patai (1974) diz que os estudos mitológicos de Campbell estavam voltados para a história das religiões do homem primitivo, oriental, ocidental, antigo e contemporâneo. Campbell é consagrado pelos seus estudos sobre o mito do herói. Suas pesquisas tinham por objetivo tentar compor num quadro só, as novas perspectivas que se abriram nos campos do simbolismo, da religião, da mitologia e da filosofia comparadas pela erudição dos últimos anos (CAMPBELL apud PATAI, 1972, p. 60 - 61).

Jung (1964) constrói uma simbologia relacionada aos temas mitológicos. Os mitos formariam os “arquétipos” que são energias psíquicas que inspiram e influenciam os comportamentos e as idéias. São grandes modelos de expressão que estruturam imagens contidas nas artes, na literatura e outras manifestações culturais que se manifestam no inconsciente4 tanto individual, quanto coletivo. Essas manifestações estariam contidas nos sonhos e, por meio deles, poderíamos ter acesso a esse material que emerge do inconsciente. Um colaborador de Jung, chamado Joseph L. Henderson (1964), diz que, tanto nos mitos antigos (Grécia e Roma) quanto nos homens modernos, podemos perceber a manifestação do mito do herói. Esse mito é o mais conhecido em todo mundo. O mito do herói tem um poder de sedução dramática e flagrante e, apesar de menos aparente, uma importância psicológica profunda (...) é atribuição essencial do mito heróico desenvolver no indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas – de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor ( p. 110 - 112).

4 Jung (1964, p. 32 - 37) ressalta a importância do inconsciente dizendo que uma parte deste, “consiste numa profusão de pensamentos, imagens e impressões provisoriamente ocultos, apesar de terem sido perdidos, continuam a influenciar nossas mentes conscientes (...) o inconsciente não é apenas um simples depósito do passado, mas está também cheio de germes de idéias e de situações psíquicas futuras”.

Da Silveira (1996) explora as concepções de Jung e utiliza-se do mito do dragão-baleia para exemplificar a aventura do herói numa batalha de vida ou morte. De acordo com a autora: O herói, respondendo ao apelo da aventura, desvincula-se dos laços da família e das rotinas fáceis da vida cotidiana. Enfrenta perigos terríveis. Acaba sendo devorado por uma baleia monstruosa, o que significa mergulhar no inconsciente, no mundo ardente dos desejos, das emoções, dos instintos, onde coexiste toda sorte de escórias junto a valores preciosos. Aí dentro ele faz ‘a travessia ma-

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rítima noturna’. A saída do herói através da goela da baleia simboliza sua libertação das trevas da inconsciência. Ele consegue escapar do redemoinho dos desejos e das emoções. Poderá tomar alguma distância dos tumultuosos acontecimentos que antes o arrastavam como um autômato. Pensa, raciocina, renasce num nível superior de consciência. O mito encarna o ideal de todo ser humano: a conquista da própria individualidade (p. 140).

Pode-se encontrar a manifestação do arquétipo do mito do herói nos atletas da atualidade. Essa manifestação mitológica pode ser observada desde a antiguidade, até os dias de hoje, nos esportes modernos. Crippa (1975) diz que há uma consciência mítica que sobrevive no tempo e antecipa todas as formas de consciência, pois os eventos míticos possuem uma atemporalidade. Dessa forma, diz-se que as questões mitológicas “atravessam o tempo” sem perder sua força e significado. Nesse contexto, podemos perceber que diversos mitos se manifestam na atualidade. Nesse sentido, muitos atletas já incorporaram e vivenciaram o mito do herói. Observa-se uma notória expressão de superioridade naqueles incorporam o mito do herói, pois aquele que realiza um grande feito “esportivo” logo é considerado um exemplar de dedicação, perseverança, confiança e expressão de poder. Nas corridas de aventura o atleta que supera as adversidades decorrentes do evento esportivo é considerado herói pelos meios de comunicação que veiculam imagens de superação, dor, sofrimento expondo as mazelas vividas pelos participantes. Nesse contexto, a imagem de herói é super valorizada pela mídia. Rubio (2001) enfatiza que o imaginário esportivo contemporâneo está repleto de exemplos de atletas que vivenciaram, ou vivenciam o mito do herói, como exemplo, a autora cita uma série de atletas que vivenciaram essa mitificação: Adhemar Ferreira, Zico, Ayrton Senna, Pelé. O herói é aquele que consegue realizar algum feito que um ser humano “comum” não conseguiria. Nos esportes de rendimento isso se torna visível no decorrer da carreira esportiva: muitos atletas saem do anonimato e ocupam um lugar na mídia e no imaginário

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coletivo de acordo com suas realizações. Essa ascensão está condicionada aos resultados que o atleta obtém. Quanto maiores forem os resultados (medalhas de ouro, quebra de recordes, troféus, títulos, entre outros), maior será sua aparição no meio esportivo e na sociedade como um todo. Rubio (op. cit.) indica que a construção desses mitos é facilitada pela espetacularização do esporte. A mídia de massa seria responsável pela divulgação das imagens sobre essas personalidades que ocupam o cenário esportivo nacional e internacional. Helal (apud RUBIO, op. cit) diz que: Um fenômeno de massa como o esporte não consegue se sustentar por muito tempo sem a presença de “heróis”, “estrelas” ou “ídolos”, uma vez que eles levam as pessoas a se identificarem com aquele evento (p. 97).

Na atualidade, as corridas de aventura representam uma nova categoria de competição esportiva em que emergem diferentes tipos de imagens sobre os atletas que participam destas atividades. Nessas competições, os participantes se vêem diante de uma série de desafios que exigem elevado empenho e sacrifício para superálas. Dessa forma, evidencia-se que, ao enfrentar tais desafios, os atletas incorporam o mito do herói, pois há uma série de provas que têm que realizar para chegar ao objetivo final. Como exemplo, cita-se a longa distância a ser percorrida na EMA. Nesse trajeto os participantes vivenciam situações extremas, exponde seus corpos e mentes aos limites. O discurso do atleta Alexandre, estudante de pós-graduação em Ciências Biológicas e participante da EMA 2000, evidencia este desgaste. (...) Você está lá naquele “‘perrengue”5 real, o negócio é real, você está realmente mal, de cansaço, de tudo. Não interessa, você, aí to mal, chama o (...), não, eu vou pra casa (...), não existe isso, porque os caras que já vão para isso, e termina pelo menos uma corrida dessas, já tem essa índole, de ir e ter um objetivo final, é isso aí, eu vou, e não interessa o que seja, mais isso não é uma coisa suicida, esse é o ponto.

5 Gíria utilizada para designar uma situação difícil, penosa.

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Algumas declarações de atletas indicam uma reflexão sobre a motivação que os levava a participar desse tipo de prova. A questão da auto-superação, do auto-conhecimento e do prazer de realizar determinadas tarefas para concretizar o objetivo de terminar a prova são notórios em alguns discursos coletados. (...) Tive que aprender muita coisa para participar (orientação, preparo físico), é muita coisa legal, corridas de aventura em si é uma das coisas mais legais que tem, de intensidade de coisas para fazer, sabe !? De coisas que acontecem na sua vida, pô, você vê a EMA por exemplo ! Você fica seis dias, pelo menos o que eu fui, fiquei de segunda até sábado, pô (...) você fica “paste” durante dois meses depois que você volta, você fica “maluco”, você vê tanta coisa, é tanta coisa, acho que você fica acordado por tanto tempo, vendo tanta coisa nova e fazendo tanta coisa, que você pira um pouco, por isso que atrai muito a galera, pode perceber, nego fica louco para fazer a corrida, o cara faz uma e logo quer fazer outra, é igual a um vício, o cara fica alucinado com a corrida, porque é um bagulho que choca mesmo, sai daquele esquema, você está acostumado com a sua vida inteira (...), quando que na sua vida você vai passar cinco dias por exemplo, com um objetivo que não é muito lá (...), não é um objetivo que vai engrandecer sua vida inteira, mais é uma coisa do tipo que você tem que chegar, você tem que fazer, não existe problema pra isso, você tem que ir eliminando, você está cansado você vai, se dorme andando, se para, onde você para, você “capota” dormindo, você fica perdido porque você está completamente maluco, você não consegue nem raciocinar direito no mapa (...), quando eu fiz o EMA eu uma experiência muito baixa, pouca experiência em navegação. (Alexandre, estudante de pós-graduação em Ciências Biológicas e participante da EMA 2000).

Esses desafios se constituem num “ritual de passagem” em que os atletas percorrem um caminho até finalizar sua trajetória realizando o feito heróico (neste caso, a finalização da prova). Nesse sentido, a EMA pode ser entendida como uma odisséia heróica, visto que exige o sacrifício para superar os obstáculos, caracterizando a ascensão do herói alcançando o local sagrado e místico. O “impossível” é atingido apenas pelos deuses. Dessa forma, os atletas se aproximam destas entidades por realizarem feitos heróicos.

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Esse exemplo demonstra que o ritual precede o mito, pois, para incorporar o mito do herói, o atleta tem que se submeter ao ritual que se finaliza na imagem do mito heróico. De acordo com Patai (1974), alguns mitólogos (Gilbert Murray e A. B. Cook, entre outros) formam a escola do mito e do ritual. Esses pesquisadores afirmam que os rituais têm fortes ligações com os mitos, eles dizem que os ritos dão origem aos mitos. Cabe ressaltar que, no processo ritual, há a construção de imagens relacionando o rito ao mito. Nas corridas de aventura, as imagens que os atletas e os telespectadores formam se aproximam do homem “aventureiro”. A aventura parece ser um signo muito difundido em nosso cotidiano, possuindo um elevado valor simbólico no imaginário social. Na atualidade, o adjetivo “aventureiro” está relacionado a um estilo de vida que denota um sentido de liberdade para o sujeito que vivencia a aventura. Esta liberdade estaria condicionada à exceção da lógica do cotidiano, buscando novas vivências, principalmente em contato mais próximo com a natureza na sua forma original, com poucas modificações feitas pelo homem. Nesse contexto, o sujeito incorpora o papel de aventureiro. As declarações do atleta Marcos, participante da EMA 2000 e 2001, apontam para a saída do cotidiano buscando vivenciar situações que possibilitem novas emoções, pois o dia-a-dia é caracterizado como rotineiro e “pasteurizado”. Ele diz que a aventura (corridas de aventura) é uma possibilidade de vivenciar a liberdade. Costa (2000), apoiando-se nas idéias de Zuckerman, diz que existe uma construção social do aventureiro. São personalidades com pré-disposições biológicas para receber estímulos máximos, como pessoas que têm a necessidade de sensações e de experiências novas, complexas e variadas, e o desejo de correr riscos físicos e sociais por prazer; e visto por outros membros da sociedade como excêntricos, como loucos, eles vão construindo a identidade de caçador de emoções, da ausência de comprometimento com qualquer situação e da prevalência da sensação de imortalidade (p. 38).

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Ainda segundo a autora, a aventura pode ser entendida como uma “arte de viver”, pois o aventureiro possui características singulares que o diferenciam dos demais indivíduos na sociedade.

A EMA é uma corrida muito gostosa de correr, uma corrida muito prazerosa de correr, dificilmente você encontra uma corrida tão gostosa de correr. As outras corridas são legais de correr, mais como elas são curtas você vê o final da corrida. Na EMA você não vê o final, você corre e é como se você tivesse virado um bicho, e aquilo lá é sua vida, então, depois do terceiro dia e você sabe que ainda faltam uns três dias pela frente, você corre sem pensar em parar, sem pensar no final, você corre para sobreviver, as tarefas são essas, vamos ter que fazer isso e vamos embora. Você está totalmente focado na corrida, a corrida é sua meta de vida, e você não traz preocupações de fora, esse é um lance interessante. A corrida é longa, então, você tem muito tempo para se distrair da vida real. É muito chocante, e você fica muito bitolado naquilo ali.

Aventurar-se é, acima de tudo, viver situações em que o risco e a imprevisibilidade estão presentes; é o desafio do auto-conhecimento e da transcendência dos próprios limites em busca de um desenvolvimento pessoal, uma vez que exige coragem e audácia para superar os obstáculos. O envolvimento com as situações vivenciadas nas corridas de aventuras fica explícito nos depoimentos coletados: os atletas sentem-se atraídos pela possibilidade de exceder o cotidiano, vivendo, assim, uma espécie de transe (o fluir), que os coloca em outra dimensão com características muito peculiares. O corpo como primeiro referencial está imbuído de diversas sensações que dificilmente são vivenciadas no âmbito urbano, como a liberdade para expressarse não se preocupando com regras, normas, ou como diz a atleta Karina (estudante de Educação Física, participante da EMA 2000 e 2001) ser amoral, fugir dos padrões, libertar-se de todos os papéis que somos obrigados a representar na sociedade cosmopolita. Talvez essas palavras forneçam indícios para uma reflexão sobre a opressão vivenciada nos grandes centros urbanos. A aventura está ligada ao “mundano”: nesse sentido, ela significa a possibilidade de um “renascimento”, uma “ressignificação” da corporeidade e da subjetividade num contato mais íntimo com a própria existência. As sensações experimentadas durante os momentos de aventura provocam uma satisfação interior e instigam o sujeito a compreender seus próprios limites, medos, inseguranças, prazeres e outros sentimentos possivelmente experimentados nesses momentos. Assim, as corridas de aventura representam uma possibilidade para os sujeitos estarem vivenciaram situações de aventura. Os depoimentos de Karina, estudante de Educação Física, participante da Ema 2000 e 2001, evidenciam a satisfação decorrente da vivência dessa “experiência máxima”. Segundo a atleta:

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O atleta Carlos, competidor de Moutain Bike - participante da EMA 2000 e 2001, relata que: A experiência de participar da EMA é inacreditável, acho que é uma das coisas mais legais que eu já fiz do ponto de vista da intensidade emocional. Você fica fora do ar e, depois da corrida, rola uns fragmentos do que acontecia no “meio do nada”, da noite, acontecia uns negócios “muito loucos”.

Para Alexandre, estudante de pós-graduação em Ciências Biológicas e participante da EMA 2000, participar de uma corrida de aventura possibilita um prazer muito intenso. Ele descreve suas vivências da seguinte forma: Você curte muito a corrida, é absurdo (...). A curtição é você estar no meio do mato com a galera que você gosta, a nossa equipe é muito unida, nós sempre competimos juntos (...) É gostoso ir conversando na mata, estar no meio da natureza. A gente sabe que vai bem quando está unido, curtimos o meio ambiente, faz parte dele (...). Saber que uma minoria participa desse tipo de atividade, são poucos que se propõem a fazer uma coisa assim, e desses que se propõem, poucos são os que conseguem chegar ao final.

Simmel (1988) explora o sentido de aventura dizendo que, fora do contexto que caracteriza o cotidiano, ocorre a possibilidade da aventura em novos contextos.

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O que caracteriza o conceito de aventura e o distingue de todos os fragmentos da vida (...) é o fato de que algo isolado e acidental possa responder a uma necessidade e abrigar um sentido. Algo assim somente se converte em aventura quando entra em jogo essa dupla interpretação: que uma configuração claramente delimitada por um começo e um final incorpore, de alguma maneira, um sentido significativo e que, apesar de toda a sua acidentalidade, de toda a sua extraterritorialidade frente ao curso contínuo da vida, vincule-se com a essência e a determinação de seu portador em um sentido mais amplo, transcendente aos encadeamentos racionais da vida e com uma misteriosa necessidade (p. 14).

Feixa (1995) apresenta uma visão funcionalista sobre os esportes de aventura, dizendo que as pessoas ao procurarem praticar atividades físicas em ambientes naturais, têm como objetivo fugir da rotina dos grandes centros urbanos, realizando atividades que não façam parte do cotidiano e buscando uma reaproximação com os elementos da natureza. Para refletir sobre o significado de aventura na Expedição Mata Atlântica (EMA), é preciso situá-la enquanto possibilidade de ocupação dos espaços naturais. Essas competições privilegiam ambientes que sofreram poucas modificações causadas pelas ações humanas. Os organizadores da prova procuram locais de difícil acesso, onde haja poucas atividades humanas. Dessa forma, os locais escolhidos para a realização das corridas visam a um rompimento com a imagem dos ambientes urbanos, artificiais, controlados e demarcados. Essa busca pelos locais de difícil acesso está ligada à imagem de aventureiro, de desbravador dos competidores e, conseqüentemente, faz com que os sujeitos evidenciem um sentimento de liberdade (rompimento com o cotidiano) expresso nessas vivências. Nas corridas de aventura, a natureza é entendida como um pano de fundo em que se desenrolam diversas atividades. De acordo com Marinho (1999), a natureza ficou reduzida a um cenário teatral à frente do qual os protagonistas se empurram para seus limites físicos. A natureza tornou-se metáfora para os obstáculos e dificuldades que ocorrem na “vida real”, representando, com essa definição, a superação de limites ou lições de vida para indivíduos ou grupos, através da prática esportiva (p. 37).

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Há uma reificação da natureza enquanto espaço de celebração e contemplação da vida. Dessa forma, a mitificação da natureza está presente na simbologia construída pelos atletas da EMA. A contemplação da beleza estética está presente nos discursos dos atletas. Há uma valorização das paisagens. Nos vídeos produzidos pelos organizadores da EMA, são mostrados, com grande ênfase, a beleza das paisagens naturais, a floresta, os rios, o mar, a fauna e a flora. Olha! Esse lugar é maravilhoso! Eu vim aqui para ver coisas bonitas! [Observação feita por uma atleta (não identificada) participante da EMA Amazônia 2001].

Outro atleta (não identificado), participante da EMA Parati – Ubatuba 2000, diz: A paisagem é impressionante! O mar, os rios, a floresta, uma pequena prainha em Parati. Teve lugares que a gente passou que a memória parecia uma câmara fotográfica digital! Registrava tudo!

Buscando refletir sobre a beleza estética das paisagens naturais, Ribon (1991) diz que “o que nos emociona na beleza natural é a consciência confusa de que haveria entre o espírito e a natureza não estranheza ou separação radicais, mas uma secreta conivência” (p. 27 - 29). O autor prossegue dizendo que o prazer relacionado a esse tipo de contemplação é desinteressado, desligado de qualquer interesse prático ou utilitário, pois não possui outro objetivo senão aquele contido na apreensão sensível do objeto contemplado. Assim, quando julgamos bela uma coisa, nunca é em razão do conceito dessa coisa ou de sua significação; a contemplação estética não visa nenhum conhecimento objetivo, isto é, o conhecimento que, num conceito, é determinado pela união da imaginação (a faculdade sensível) e do entendimento (a faculdade dos conceitos), dentro da qual aquela está submetida à jurisdição desta (p. 27 - 29).

Fica evidente em alguns discursos a idéia de que a natureza é entendida como um “santuário sagrado”, dentro do qual os atletas tendem a procurar uma reaproximação dos elementos primordiais que constituem essa natureza (água, ar, céu, flora e fauna). A busca

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pela natureza revela-se como uma possível reconciliação entre o espírito e a materialidade, resgatando a harmonia nas relações do homem consigo mesmo (sua própria natureza) e com os ambientes naturais, evidenciando um misticismo. 6 De acordo com Eliade (1989, p. 110) o termo hierofania “não exprime nada mais que aquilo que está implícito no seu conteúdo etimológico, a saber, que qualquer coisa de sagrado nos é mostrada, nos é manifestada (...) Por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra, uma árvore (...) No plano da estrutura, encontramo-nos perante o mesmo ato misterioso: a manifestação de algo de <<totalmente diverso>> – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – nos objetos que fazem parte integrante dele, enquanto <<natural>>, <<profano>>”.

Eliade (1989) diz que o sagrado manifesta-se como uma força, um poder. Ele utiliza o termo hierofania6 para indicar o ato da manifestação do sagrado. O autor afirma que, no mundo ocidental, as pessoas têm dificuldades para compreender e aceitar determinadas manifestações do sagrado. O ocidental moderno experimenta um certo mal-estar perante inúmeras formas de manifestação do sagrado: é-lhe difícil de aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se nas pedras ou nas árvores, por exemplo. Mas é preciso não esquecer que não se trata de uma veneração da pedra em si mesma, de um culto a árvore por si mesma; a pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas enquanto pedras e árvores, são-no justamente porque constituem ‘hierofanias’, porque <<mostram>> algo que já não é pedra nem árvore, mas sagrado, <<ganz andere>> (p. 110) .

Estar em ambientes naturais representa uma exceção à vida cotidiana dos grandes centros, criando a possibilidade de vivenciar os elementos naturais percebidos num processo de contemplação, provocando diversos sentimentos como o prazer, a emoção e a liberdade de estar num espaço onde esses sentimentos são vivenciados e compartilhados. Nesse contexto, a aventura pode ser entendida como um êxtase, um estado sublime, um gozo. De acordo com as declarações de Marcos, participante da EMA 2000 e 2001, as corridas de aventura possibilitam a vivência de momentos de grande satisfação não encontrados no dia-a-dia, pois: (...), durante a corrida você tem a oportunidade de resgatar um pouco da sua liberdade “primal”.

Esses momentos são percebidos como a concretização de algo para o qual a razão, muitas vezes, não possui explicação, pois o racionalismo inibe o sagrado. É como se houvesse uma harmonia e uma comunhão entre o ser e o cosmos, uma interação profunda entre os elementos naturais e a existência humana. Nesse sentido,

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a aventura é entendida como uma experiência sensível que aproxima o homem de si mesmo, num contexto de religiosidade, expresso num religamento. Ao assistir o vídeo da EMA 2000, observou-se a fala de uma atleta (não identificada) no decorrer da competição evidenciando as características descritas acima. A prova é estonteante. Toda hora o pessoal ia à frente. Eu ficava para trás e olhava, olhava o céu, é muito lindo esse lugar. Ontem teve um momento lá que eu falei: gente esse é um momento sagrado, a gente entrou na mata muito escura fechada, muito fechada, daí a trilha, foi umas 4 horas de trilha e a gente chegou no final, era um rio muito grande, umas árvores grandes, o céu muito estrelado, a gente molhou a cabeça, bebeu água e eu falei: gente isso é uma dádiva de Deus.

De acordo com essas declarações, pode-se dizer que a mitificação da natureza e a sensação de estar em contato com alguma entidade superior (sagrada), fazem-se presentes nas vivências ocorridas no interior da Mata Atlântica. Essas manifestações indicam que apesar de toda a descrença e desmistificação da natureza7 encontradas na sociedade contemporânea (principalmente nos grandes centros urbanos), observa-se que há formas de resistência e uma busca por uma espiritualidade que estariam ligadas à contemplação dos ambientes naturais. Nesse contexto, evidencia-se um significado sobre a natureza que transcende a idéia “objetivante e coisificante” que a fragmenta, buscando construir uma compreensão embasada no sentido de “phisys” (totalidade), originado dos gregos. De acordo com Crippa (1975), o homem primitivo possuía uma consciência mítica e sagrada dentro de uma visão de conjunto através da qual compreendia a natureza na sua totalidade. Não havia dissociação entre Teologia, Ciência, Arte e Filosofia. Já o homem moderno (civilizado) compreende a natureza a partir de leis físicas que a decompõem e fragmentam, causando um reducionismo que tenta explicar os fenômenos a partir de uma visão objetiva (científica), amparada pela estabilidade das leis.

7 Muitos autores (Jaspers, 1973; Japiassu, 1996; Morin, 1977) abordam e discutem a questão do desencantamento e da desmistificação da natureza. Se hoje o mundo está dessa forma (desencantado) é porque anteriormente ele era o contrário (encantado). O mundo encantado era povoado por mitos e outros seres misteriosos, mágicos e miraculosos que organizavam e regiam a vida na terra. O homem possuía uma concepção “encantada” do mundo, pois ele era regido apenas por imperativos religiosos, míticos e místicos. O desencantamento do mundo veio a partir do advento da Ciência Moderna (século XVIII). Com a criação da Física moderna, o mundo e a vida passam a serem concebidos a partir de uma visão mecanicista e determinista, privilegiando a experimentação e a medição, por meio do método científico racional cartesiano. Nesse sentido, o único conhecimento que tem valor é o conhecimento “objetivo racional” em que se manifesta toda uma estrutura hierárquica de poder. Segundo esse pensamento, o mundo desencantado não possui espaço para outros tipos de crenças (irracionais), pois agora ele é predominantemente habitado pela crença do desenvolvimento humano pela Ciência (racionalidade técnicoinstrumental).

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Buscando ultrapassar as fragmentações e construir uma compreensão de totalidade (mesmo que de forma precária), pode-se observar que alguns atletas em contato com os ambientes naturais constroem um significado de pertencimento a algo maior (Cosmos), o que lembra Campbell (2002), numa bela exposição sua sobre o mito da floresta: Creio que é Cícero que diz que, ao penetrar num bosque alto e cerrado, a presença de uma deidade se manifesta a você. Há bosques sagrados por toda parte. Lembro-me de ter ido a uma floresta, quando menino, e ficar reverenciando uma árvore, uma enorme e velha árvore, enquanto pensava: ‘Ah, o que você conheceu, o que você tem sido!’ Acho que essa sensação da presença da criação é uma tendência básica do homem. Mas hoje vivemos em cidades. É tudo pedra e rocha, manipuladas por mãos humanas. Você vive outro tipo de realidade quando cresce lá fora, no meio da floresta, ao lado dos pequenos esquilos e das grandes corujas. Todas essas coisas estão ao seu redor como presenças, representam forças, poderes e possibilidades mágicas de vida, que, embora não sejam suas, fazem parte da vida e lhe franqueiam o caminho da vida. Então você descobre tudo isso ecoando em você, porque você é natureza. Quando um índio sioux apanha o cachimbo da paz, ele o empunha com o bocal apontando para o céu, para que o sol dê a primeira baforada. Em seguida ele o apontará nas quatro direções, sempre. Com a mente assim constituída, quando se dirige ao horizonte, ao mundo onde você está, você percebe que ocupa o seu lugar no mundo. É uma maneira diferente de viver (p. 98).

Nessas reflexões, os escritos de Oliveira (2000) vêm como auxílio quando relata sobre o encontro entre o montanhista e a montanha, transcendendo a exploração do mundo físico e conhecido, tornando-se uma exploração do desconhecido, envolvendo nossas próprias almas e mentes. Na natureza, sempre que deixar terreno conhecido e adentrar um novo lugar, haverá, junto a sentimentos de curiosidade e excitação, a presença do medo. É o medo ancestral do desconhecido, é também o seu primeiro laço com o mundo selvagem que penetra. O que estarás fazendo é explorando (BERRY apud OLIVEIRA, op. cit., p. 114).

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Essas manifestações do “inexplicável” constituem-se a partir de uma percepção mais intensa sobre os elementos (físicos, psicológicos e sociológicos) que compõem os significados da nossa existência. Nesse sentido, ao observar esses sentimentos vividos e compartilhados com seus pares, compreende-se um hedonismo muito valorizado por alguns indivíduos ou grupos específicos, que buscam vivenciar essas situações na atualidade. O presente trabalho compartilha com Maffesoli (1998), a idéia existente em nossa sociedade de uma busca por um hedonismo vivenciado de diversas formas. As corridas de aventura representam uma possibilidade de vivenciar e compartilhar sentimentos, ações e significados, buscando satisfação e realização interior. Além disso, os participantes compartilham um imaginário simbólico despertado no decorrer do evento esportivo.

considerações finais Os participantes de corridas de aventura evidenciam uma percepção mítica dos ambientes naturais, demonstrando que existem símbolos sagrados presentes nesses locais. Os ambientes “selvagens” remontam a uma humanidade ancestral caracterizada pela íntima relação entre os homens e os ambientes naturais, nesse sentido, o homem sentia-se integrado a “natureza” formando uma totalidade “physis” na qual aconteciam suas vivências. É primordial no homem a percepção de que ele faz parte de algo maior (cosmos), no entanto o pensamento racional moderno (antropocentrismo) reduziu as possibilidades de interpretações das inter-relações ocorridas entre os seres humanos e os ambientes, sejam eles naturais ou artificiais. Nesse contexto, a espiritualidade ficou reduzida ao que as religiões determinam como “verdades universais”, os dogmas. A busca por uma espiritualidade está relacionada ao “religare” e pode ser percebida em momentos nos quais os atletas contemplam sua existência, bem como os ambientes naturais pelos quais vão transitando no decorrer das corridas de aventura e assim “re-constroem” as ligações rompidas pelo excessivo racionalismo. A experiência sensível institui uma aproximação entre o natural, o cultural e o corporal, constituindo uma multiplicidade de significados marcando os corpos

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e permitindo idiossincrasias ao mesmo tempo em que as vivências são compartilhadas coletivamente. Dessa forma, os sujeitos tem vivências singulares representando amplas possibilidades de autoconhecimento e transcendência dos limites impostos pela racionalidade dominante, adentrando num infinito universo simbólico revelado pelos arquétipos que habitam a consciência humana.

tive research aided by the complex anthropology with the goal of reflecting about hero’s myth and for mythicizetion of nature found in the speeches of the participants of adventure races. The data analysis allowed to build a web woven with athletes’ speeches and the theories, forming a spiral in which the field research (interview semi-structured – contents analysis) is interlaced the theoretical research, constituting a totality. The results evidence that from the existences occurred during the adventure races the athletes expose symbolisms related to mythicizetion of nature, as well as the hero myth incorporation in several found contexts in these sporty events.

Resumo: As corridas de aventura são eventos esportivos que possuem características peculiares e seus participantes evidenciam subjetividades distintas daquelas encontradas nos atletas participantes dos esportes tradicionais. Foi realizada uma pesquisa qualitativa amparada pela antropologia complexa com o objetivo de refletir sobre o mito do herói e a mitificação da natureza encontrados nos discursos dos participantes de corridas de aventura. A análise dos dados permitiu construir uma teia tecida com os discursos dos atletas e as teorias, formando uma espiral na qual a pesquisa de campo (entrevista semi-estruturada – análise de conteúdos) está entrelaçada à pesquisa teórica, constituindo uma totalidade. Os resultados evidenciam que a partir das vivências ocorridas no decorrer das corridas de aventura os atletas expõem simbolismos relacionados à mitificação da natureza, bem como a incorporação do mito do herói em diversos contextos encontrados nesses eventos esportivos. Palavras-chave: esportes, mitologia, heróis, aventura, natureza.

Abstract: The adventure races are sporty events that own peculiar characteristics and your participants evidence distinct subjectivities from those found in the participants athletes of the traditional sports. It was accomplished a qualita-

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Keywords: sports, mythology, heroes, adventure, nature.

Resumen: Las carreras de aventura son los acontecimientos deportivos que poseen características peculiares y sus participantes evidencian subjetividades distintas de las que se encuentran en los atletas participantes de los deportes tradicionales. Se realizó una investigación cualitativa ayudada por la antropología compleja con el objetivo de reflexionar sobre el mito del héroe e la mitificación de la naturaleza encontrado en los discursos de los participantes de carreras de aventura. El análisis de los datos permitió la construcción de una red tejida con los discursos de los atletas y las teorías, formando una espiral en que la investigación de campo (entrevista semi-estructurada - análisis de los contenidos) es entrelazado la investigación teórica, lo que constituye una totalidad. Los resultados evidencian que los atletas realizan la producción de simbolismos relacionados con la mitificación de la naturaleza, así como la incorporación del mito del héroe en varios contextos encontrados en estos eventos deportivos. Palabras clave: deportes, mitología, héroes, aventura, naturaleza.

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e-mail: seabrafabiano@hotmail.com Recebido em 15/05/2008 Aprovado em 24/10/ 2008

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mosaico e pesquisa qualitativa: combinando fragmentos na tarefa de análise dados Carla da Silva Santana Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP. Docente do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP.

Maria Júlia Kovács Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP. Docente do curso de Psicologia do Instituto de Psicologia da USP.

introdução Quebrar as peças, recolher os fragmentos, ajeitar o plano de fundo, fazer a argamassa, unir os fragmentos estabelecendo uma relação entre eles, limpar o trabalho e olhar para o mosaico são tarefas do pesquisador que se lança na leitura dos dados da pesquisa qualitativa. O trabalho de análise de dados na perspectiva da pesquisa qualitativa tem um substrato comum ao do artesão que compõe sua obra. Combinar cada elemento, juntando as peças e extraindo delas o melhor desenho possível são tarefas extremamente importantes na composição da obra. O uso da metáfora do mosaico permite uma alusão a este trabalho de compreensão que lida com a tentativa de um desenho singular a partir de fragmentos múltiplos. O mosaico consiste em peças recor-

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tadas, que coladas próximas umas das outras, produzem um determinado efeito visual, como um desenho ou imagem. “Ele é um embutido de pequenas pedras ou de outras peças (pequenos bocados de vidro, mármore ou cerâmica) formando determinado desenho. O objetivo do mosaico é preencher algum tipo de plano, como chãos e paredes, com os ladrilhos”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Mosaico). Na busca de novas imagens para se pensar esta dinâmica teia de inter-relações que se constrói e que também vai sendo construída, e que aos poucos vai se estabelecendo com o sentido daquilo que foi anteriormente problematizado e pensado como objetivo de estudo; encontramos na metáfora do mosaico, um meio de vislumbrar arranjos de desenhos inusitados e significativos. Estes auxiliariam na compreensão do que está servindo de amálgama nas possíveis relações que se estabelecem na análise de dados de estudos que utilizam a narrativa como coleta de dados. O uso dessa metáfora está associado ao desejo de re-significar o olhar, ouvir o que dizem essas vozes nas entrelinhas dos relatos e tentar estabelecer novas e inesperadas relações a partir do que tem sido apresentado nessa trajetória tão permeada de significações e aprendizagem.

a metáfora do mosaico Instrumento que também contém sobras e pedaços por meio dos quais se realizam arranjos estruturais. Os fragmentos são obtidos num processo de quebra e destruição, em si mesmo contingente, mas sob a condição de que seus produtos ofereçam entre si certas homologias: de tamanho, de vivacidade de cor, de transparência. Eles não têm mais um ser próprio em relação aos objetos manufaturados que falavam uma “linguagem” da qual se tornaram os textos indefiníveis; mais sob um outro aspecto, devem tê-lo suficientemente para participar de maneira útil da formação de um ser de tipo novo: este consiste em arranjos nos quais, por um jogo de espelhos, os reflexos equivalem a objetos, vale dizer, nos quais signos assumem o lugar de coisas significadas. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 52).

Cada composição em mosaico é única: o corte de cada pedaço (o delineamento do estudo, a escolha do referencial teórico, da meto-

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dologia de coleta de dados) é feito artesanalmente e o desenho do estudo alcança formas e recortes muito difíceis de se repetir.

nos bastidores do atelier Estas reflexões que aqui apresentamos, foram frutos de um estudo sobre narrativas de idosos sobre o tempo e a velhice, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da USP. Neste estudo, utilizamos relatos de história oral de vida como opção metodológica de coleta de dados, a escuta como escolha e a disponibilidade de ouvir histórias de velhos asilados e não asilados. No entanto, este escrito não trata dos dados da pesquisa, hoje se apresenta com a leitura da tarefa de análise dos dados, que só foi percebida ao longo dos anos posteriores à elaboração do trabalho final. No instante da composição do mosaico, havia um compromisso de recortar a cerâmica com formatos predeterminados, torcendo por não quebrar demais, cuidando para que as peças fizessem um desenho adequado ao proposto no projeto de estudo. Hoje, o convite é para olhar a combinação dos fragmentos e refletir sobre o processo artesanal de fazer pesquisa com pessoas. A pesquisa nasce do incômodo, não obstante ser este incômodo algo ruim, pelo contrário, algo que nos tire do estado de inércia e nos ponha a dialogar com a realidade. Diria até que o tema nasce da nossa capacidade de sensibilização, de implicação com as nossas questões interiores. Quando buscamos pesquisar algo o fazemos inicialmente por meio de perguntas, questionamentos que nos invadem e nos tiram o sossego. Nesse começo há perguntas e idéias. Problemas a solucionar e hipóteses. Minayo (2004) afirma que o começo é ‘perguntas-problemas’, idéias mais ou menos pré-concebidas que podem funcionar provisoriamente como respostas às perguntas feitas, um sistema de pontos de vista, teses e proposições feitas por nossos pares bem antes que nos incomodassemos com tal assunto (a teoria), e os caminhos que cada um vai construir para se aproximar do tema (os métodos ou procedimentos metodológicos). Não é possível fazer ciência sem método.

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No entanto há aqui uma proposta de dialogismo nos moldes mais bakthinianos possíveis. Isto se refere ao pensamento de Bakhtin quando afirma que a alteridade define o ser humano, e que é impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro. O pesquisador é um homem em relação com o seu outro. (BARROS, 2001) Assim, o dever da pesquisa é abrir uma interlocução entre o sujeito-pesquisador e o sujeito-pesquisado, embora nem sempre seja assim. A possibilidade de pensar o “sujeito-pesquisador” como sujeito da pesquisa é interessante porque nos coloca diante da tarefa que este tem para continuar a ser sujeito perante as demandas acadêmicas de prazos a cumprir, de falta de verbas, às dificuldades relacionadas à relação orientador-orientado, entre outras. Não perdendo de vista a dificuldade de dar conta das mais diversas ocupações permeadas pelo entrelaçamento de inúmeras circunstâncias de nossas vidas pessoais, tendo em vista a possibilidade de nem sempre haver sintonia entre as demandas acadêmicas e as do nosso mundo interno. É preciso atentar-se também para o fato que quando nos inscrevemos neste mundo-problema-pesquisa o fazemos por demandas do nosso mundo interno, e isto implica em sermos sujeitos também nesta relação. E por conta desta forma de nos inscrevermos nessa relação é que escolhemos os materiais adequados (métodos de coleta, de análise, etc.). Isto se aplica ao tipo de estudo que fazemos assim como ao sujeito-pesquisador que o desenvolve. Por outro lado, há de se saber que toda pesquisa é um trabalho de inscrever o outro em nosso universo de questões, e torná-lo a objeto de estudo, quer por estranhamento como referem as teorias estruturalistas, quer por semelhança, como afirma a fenomenologia. Pelo sim, pelo não, há sempre a questão ética de permitir que este outro continue sendo sujeito-colaborador, parceiro de pesquisa (e não objeto). Todo trabalho de pesquisa é sempre a busca do encontro com um outro, “não há trabalho de campo que não vise ao encontro com um outro, que não busque um interlocutor.”(AMORIM, 2001, p. 16) O que nos motiva à prática da pesquisa são inquietações internas acerca de determinada temática, e por si só podemos considerar o imbricamento entre aquilo que pertence ao sujeito pesquisador e a realidade que lhe é posta, e o mobiliza, por isso lhe aparece como um problema de pesquisa.

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Assim, cada momento de encontro, de fala e escuta é único, acontece ali uma interação entre o entrevistador e o entrevistado, que ocorre diferenciadamente para cada indivíduo, uma vez que lidamos com pessoas diferentes, em ambientes diversificados e este momento de partilha e descobertas é singular. Assim, acreditamos que o resultado desta interação seja único em cada momento. Para Bleger, “Cada situação humana é sempre original e única: portanto, a entrevista também o é. (...) Esta originalidade de cada sucesso não impede o estabelecimento de constantes gerais, a saber, das condições que se repetem com mais freqüência.”(BLEGER, 1974, p.20). Não existe neutralidade no lidar com o outro igual. Estar neutro a algo ou a alguma situação significa ser imparcial, indiferente e esta condição é ilusória no que se refere à pesquisa qualitativa, diria até que fantasiosa quando se trata da subjetividade do pesquisador em relação ao seu objeto de estudo. Isto porque partimos do pressuposto de que há uma identidade entre sujeito e objeto. Minayo (1994) diz que a pesquisa que trabalha com seres humanos tem um substrato comum de identidade entre o objeto pesquisado e o investigador, uma vez que ambos estão ligados por razões culturais, de classe, de faixa etária, ou por qualquer outro motivo; e este elo torna-os solidariamente imbricados e comprometidos. Como refere Lévi-Strauss: “numa ciência, onde o observador é da mesma natureza que o objeto, o observador, ele mesmo, é uma parte de sua observação”. (LÉVISTRAUSS, 1975, p.215). Paradoxalmente, para as teorias estruturalistas, esta chamada ‘reflexividade’ não aparece tão transparente assim, ao contrário, a leitura que o estruturalismo faz não é de uma reflexividade em relação ao sujeito, mas de estranhamento, aliás o sujeito no estruturalismo não tem voz, ele é objeto. Lévi-Strauss diz que toda sociedade diferente da nossa é objeto, todo grupo de nossa própria sociedade ao qual não pertencemos é objeto, todo costume desse mesmo grupo ao qual pertencemos, mas ao qual não aderimos, é objeto1. O pressuposto é de que não haja este território comum entre o outro e eu. E é neste território (que não há) que o objetivo e o subjetivo se encontram, é este o lugar de estranhamento e humanidade comum. Porém, os princípios fenomenológicos reiteram o imbrincamento entre sujeito e objeto, pressupõe um envolvimento pessoal do pesquisador no mundo-vida dos sujeitos da pesquisa.

1 LÉVI-STRAUSS (1968) apud AMORIM (2001) p. 69. C. Introdution à louvre de Marcel Mauss In: Mauss, m. Sociologie et antropologie, Paris, PUF, 1968

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O sujeito investigador é um ser no tempo-espaço e a sua pesquisa é a manifestação deste ser no mundo. Lüdke & André (1986), nos atentam para a importância de que como atividade humana, a pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga de valores, preferências, interesses e princípios que orientam o pesquisador. Assim, o trabalho do pesquisador vem carregado e comprometido com todas as suas peculiaridades, inclusive com as suas definições políticas. Desta forma, não há possibilidade de se estabelecer uma separação nítida e asséptica entre o pesquisador e o que ele estuda e também os resultados do que ele estuda. E como representante deste tempo-espaço social, o investigador socializa a sua visão do mundo, os pontos de onde parte e os fundamentos que utiliza para estabelecer a sua compreensão. Segundo André, como o pesquisador é um ser humano, da mesma natureza do seu objeto, as observações e análises vão estar sendo filtradas pelos seus pontos de vista filosóficos, políticos e ideológicos. E não poderia ser diferente. Quando começa um trabalho de pesquisa, o pesquisador não pode deixar de lado os seus valores, as suas crenças e os seus princípios (ANDRÉ, 1995, p. 51). Por outro lado, Deslandes & Assis (2002) consideram que mesmo admitindo como Dilthey, que o homem não é estranho ao outro homem – condição esta que nos habilita à interpretação -, não poderia ingenuamente crer que essa condição universal é suficiente, pois o outro também é um território desconhecido, seja por possuir distintivos que socialmente nos separam (de status, de classe, de etnia, de formação cultural e profissional, de capital simbólico), ou pela impossibilidade do próprio projeto de uma suposta transferência psíquica. Por outro lado a semelhança nos dá identidade como parte integrante da coisa e paradoxalmente nos torna estrangeiros, posto estarmos em outra situação, no caso, de pesquisa com outra possibilidade de interlocução. Isso nos convida a pensar que a tarefa de preparar o lugar, reunir os elementos implica inevitavelmente na quebra e reorganização dos próprios elementos do pesquisador, traduzindo na coexistência da comutação de lugares entre sujeito que pesquisa e que é pesquisado. Este fato nos atenta para a questão ética que permeia a compreensão dos dados. O pesquisador deve estar ciente e sensível a como

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ela afeta ou pode afetar os dados. E evitar produzir tendenciosidades e falsas verdades. Identificar o que pertence à subjetividade do pesquisador traduz-se como um cuidado com o outro na tarefa de análise de dados. Acreditamos ser o registro no caderno de campo, um importante meio pelo qual emoções, sentimentos, contrariedades e toda sorte de impacto sofrido (e percebido) no ambiente de pesquisa possa ser identificado; para posteriormente ser revisitado e refletido. Para Critelli, o investigador é a testemunha daquilo que lhe é revelado (enquanto dado), mas ele não exerce o papel de mero receptor de uma mensagem, ele é o seu co-elaborador. Ele é a possibilidade deste algo se mostrar. A função comunicativa da fala exibe a condição em que algo é desocultado – a coexistência. Para a autora, há uma simultaneidade entre o desvelamento/revelação de algo e de nós mesmos como compreensores. “Cada vez que algo é trazido à luz (compreendido) por alguém, este alguém nasce junto (outra vez) com aquilo que compreendeu. Portanto, nasce/vem-a-ser junto com o que através dele veio ao mundo.”(CRITELLI, 1996, p. 79). Mas os dados não se revelam diretamente aos olhos do investigador. Eles são gestados, processados a partir do impacto causado neste. Pesquisador e objeto coexistem e revelam-se ao mundo pela pesquisa.

a diversidade dos elementos: fragmentos das falas dos sujeitos Assim, criar algo novo exige um olhar sensível para a questão da interdependência entre observador e observado. O novo se desvela a partir da quebra e da destruição de pressupostos anteriores e nos remete ao confronto daquilo que se revela com os nossos modos característicos de pensar, muitas vezes, tão resistentes quanto permeados de preconceitos. E estes elementos se revelam como fragmentos, pedaços de falas e gestos muitas vezes sem sentido, que somente se revelará interdependente quando nos debruçamos incansavelmente sobre eles, muitas vezes numa atitude insana de encontrar alguma relação entre eles. Insana porque nem tudo é interdependente e não são poucas as vezes, que na tarefa de pesqui-

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sador, assumimos a missão (impossível) de dar conta de tudo como super heróis acadêmicos. O estreitamento entre o visto e o revelado é único. Um desenho de autoria única, pois nasce da interação entre sujeito e pesquisador. As possíveis combinações dos ditos “fragmentos” (pedaços de vidro e cor – frases ditas e silenciadas) requerem um certo recurso “zoom” na câmera do olho, um aproximar e afastar, para se tentar ver o todo e formar uma imagem possível apoiada num pano de fundo com ingredientes previamente estabelecidos, e que não obstante vai sendo acrescido de novas combinações. De forma alguma ela tenciona ser expressão da verdade ou da totalidade, pois a análise de dados é sempre aproximativa, são possibilidades de leitura do pesquisador, que se reduzem ao sujeito que olha e empresta o seu olhar, ao meio que determina as possíveis janelas de onde parte tal olhar. Isto sempre nos remete a uma velha e contundente questão: a da neutralidade do pesquisador. O encontro com o outro em situação de pesquisa acontece dentro de uma perspectiva de múltiplos aspectos. O primeiro diz respeito ao fato de que todo objeto de pesquisa é construído e não imediatamente posto. Na dinâmica provocativa sobre o pesquisador engendra, neste ínterim, o estabelecimento de lugares: o de sujeito pesquisado e do pesquisador. Segundo Amorim (2001), colocar esse sujeito no lugar de objeto de estudo instaura entre o sujeito cognoscente e o sujeito a conhecer uma relação de alteridade fundamental que emerge de uma diferença de lugar na construção do saber. O outro se torna estrangeiro para que eu possa estudá-lo. (p.31) Eis aí o primeiro fragmento: os lugares. Algo que é preciso ressaltar é o fato de que, neste tipo de pesquisa, estamos lidando com a multiplicidade dos grupos, com a pluralidade de elementos diversos coexistindo nas histórias de vida desses sujeitos, que ao mesmo tempo tanto pertencem ao universo individual quanto à esfera coletiva. São pessoas com histórias e trajetórias de vidas diferenciadas e isto já abre um enorme leque de possibilidades de compreensão, o que poderia estar trazendo um alargamento do espaço teórico possível como substrato que vai dar referência nesta tarefa de olhar para os dados. O segundo fragmento: a diversidade.

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Por mais que estabeleçamos determinadas categorias que venham a facilitar e possibilitar a tarefa de organização metodológica da análise, este trabalho não passa de uma organização previamente determinada (e necessária), mas é preciso não perder de vista que os dados se revelam independentemente daquilo que nos prestamos a ver. Ou seja, sobre o eixo temático principal da pesquisa perpassam eixos secundários muitas vezes não delimitados anteriormente, mas construídos ao longo do trabalho de organização dos dados. Mesmo que busquemos padrões de comportamentos e aspectos comuns nos sujeitos, quer estes estejam relacionados à questão de gênero, à faixa etária, ao meio sócio econômico no qual a pessoa participa, à escolaridade, entre outros, é preciso levar em consideração que a tarefa de compreensão, ao mesmo tempo em que se objetiva, para que não percamos de vista aquilo que nos propomos a ver objetivamente, também se alarga a partir do fato de estarmos lidando com sujeitos originais, singulares e heterogêneos enquanto seres. E neste sentido, o entendimento do dado é construído. Isto se refere à possibilidade de se reunir um maior número de elementos para a tarefa de compreensão, tanto as características comuns quanto aquelas mais inesperadas possíveis. São vieses que se criam nesse grande encadeamento de possibilidades. Faz-se mister um olhar diferenciado para cada sujeito, para cada grupo, uma vez que a dinâmica da tarefa de olhar para determinados dados de pesquisa se constrói pela diversidade. É claro que se estivermos lidando com um grupo mais homogêneo de sujeitos, todos do meio rural, ou do meio urbano; casados ou solteiros, todos homens ou mulheres; talvez encontremos uma certa linearidade de características ligadas estruturalmente a estes grupos, mas de forma alguma estaríamos garantindo uma forma diferenciada e única de apreender o sentido daquilo que nos é mostrado. Talvez a linearidade garanta uma constância mais geral de dados, um recorte mais aproximado. Mas nem por isso haveria uma forma que garantisse uma captura do que se poderia chamar de significação verdadeira.

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o referencial teórico como plano de fundo Um outro aspecto importante a saber, é que toda reflexão se inscreve num sistema teórico. Diria que teórico-metodológico. Pois a fundamentação teórica também é atravessada pelas questões metodológicas da pesquisa. Elas coexistem e se significam. A definição da literatura que vai servir de pano de fundo ao eixo temático principal é bastante importante, principalmente para nortear de qual janela olha o observador e também serve de apoio para a discussão do tema. É preciso ter em mente que a reflexão sobre os dados deve ser feita sabendo que eles não existem por si. Eles são construídos a partir de um questionamento que fazemos baseado na fundamentação teórica. Através da leitura cuidadosa e repetida dos textos, tentar estabelecer interrogações a fim de que se possa identificar o que é impactante nesse olhar para os dados, o que nos salta aos olhos a partir dos objetivos de pesquisa que foram traçados anteriormente. Muitas vezes, a fundamentação do estudo acaba constrangendo a reflexão proposta principalmente pelo fato de apresentar uma noção sincrética da teorização. Não obstante é possível oportunizar o diálogo com as mais variadas teorias, porém o conhecimento acerca destas possibilita a identificação de onde parte este “olhar”. São os pressupostos teóricos que permeiam determinado pensamento e, ao contrário do que se possa pensar, o referencial teórico-metodológico não deve engessar a compreensão do tema, mas traduzir-se em liberdade. A fundamentação teórica aliada aos procedimentos, à voz que se dá ao sujeito estudado e a possibilidade de diálogo com este configuram-se nos fios que vão dar identidade a esta trama. No caso deste ensaio, o uso de teóricos controversos, baseados na teoria estruturalista, acaba entrando em oposição ao referencial fenomenológico no qual o estudo mencionado se fundamenta. No entanto, o convite à leitura do referencial teórico não se faz tão somente pelos autores, mas também pelo espaço e voz que é dado a este sujeito. Por isso a tentativa de oferecer o mosaico - um instrumento que traduz em instância primeira a pluralidade. A possibilidade de reunião dos ditos fragmentos (que sozinhos são tão somente fragmentos) para se compor uma nova imagem, a cada combinação uma nova imagem. Outra vez, pensar de maneira plural de modo

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em que não se perca “a janela da qual se olha” mas também que não vire refém da teoria, daí o engessamento.

a argamassa unindo os elementos Acreditamos que o objeto de estudo possa constituir-se e revelarse a partir do momento em que se vai ao campo de pesquisa, pois só assim será possível a aproximação com os sujeitos, parceiros de pesquisa; o conhecimento da realidade em que vivem, tanto no que se refere ao ambiente em que circulam como também ao espaço social por eles habitado. Muitas vezes aparecerão dados não esperados nos depoimentos, o que possibilita o um novo olhar ao que perpassa o eixo temático principal, e que gradativamente mapeia o campo de abordagem. Na verdade é aí que reside a aparição dos fragmentos, quando saltam aos olhos do pesquisador vieses com o qual ele não contava, elementos que se somaram àqueles previamente definidos. Uma última consideração se impõe. A utilização da metáfora do mosaico como proposta de compreensão das inúmeras falas dos sujeitos em seus relatos nos remete às seguintes proposições: 1) a pesquisa é sempre um encontro em primeira instância com o sujeito colaborador e em segunda com a comunidade científica; 2) o encontro com o sujeito, de fala, escuta e escrita, pressupõe diálogo; 3) compreender não deve excluir a possibilidade de mudança de seu próprio ponto de vista. O ato de compreensão supõe um combate onde o que está em jogo reside numa modificação e num enriquecimento recíprocos2; 4) trabalhar na perspectiva da diversidade é a possibilidade de comungação dos diferentes elementos sem fragmentá-los, quando por si mesmos já nos aparecem como fragmentos. Pressupõe um olhar plural. 5) O referencial teórico metodológico permite diálogo entre as diversas teorias, não obstante deve-se ter claro que os pressupostos teóricos dão sentido a um determinado olhar, e esta teoria está além da empatia temática, a abrangência repousa nos limites de seu próprio quadro de compreensão.

2 BAKHTINE, M. Estehétique de la création verbale, op. Cit. P. 384 In: AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo, Musa Editora, 2001, p. 192.

O objeto das Ciências Humanas não é dado de modo imediato; é sempre construído, recolhido e transmitido em discurso (quer nas

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narrativas de história oral, quer escrito em texto), o que lhe confere seu caráter caleidoscópio (que remete a diferentes imagens a partir das combinações feitas dos elementos disponíveis), jamais se configura numa única possibilidade de compreensão. Ele é o próprio discurso e, enquanto tal, não há transparência possível.

Resumo: Este estudo discute a análise de dados na pesquisa qualitativa utilizando a metáfora do mosaico como possibilidade de trabalho com fragmentos de dados. Discute os lugares do referencial teórico, a relação sujeito-pesquisador e sujeito-pesquisado e a diversidade dos elementos envolvidos nesta relação. Fundamenta-se na teoria fenomenológica embora discuta o lugar do sujeito na teoria estruturalista. Palavras-chave: pesquisa qualitativa, análise de dados, mosaico, fragmentos.

Abstract: This study discuss of data in the qualitative using the metaphor of a mosaic as possibility of work with fragmentos of data. It aproach the places of the referencial theoretical, the relation citizen-researcher and citizen-searched and the diversity of the involved elements in this relation. It is based on the fenomenológica theory even so argues the place of the citizen in the estruturalista theory. Keywords: qualitative research, analysis of data, mosaic, fragmentos.

Resumen: Este estudio que el análisis de datos en la investigación cualitativa discute con la metáfora del mosaico como posibilidad de trabajo con fragmentos de datos. Discute los

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lugares del teórico referencial, del ciudadano-pesquisador de la relación y ciudadano-buscado y la diversidad de los elementos implicados en esta relación. Se basa en la teoría del fenomenológica incluso así que discute el lugar del ciudadano en la teoría del estruturalista. Palabras clave: investigación cualitativa, análisis de los datos, mosaico, fragmentos.

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e-mail: carlasantancastro@terra.com.br; mjkoarag@usp.br. Recebido em 02/03/2007 Aceito em 19/04/ 2008

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um exercício de alteridade: aproximações e afastamentos entre jung e reich1

Laura Villares de Freitas

1 Este artigo é uma versão adaptada do capítulo 13 do livro: ALBERTINI, P. e FREITAS, L.V. Jung e Reich: articulando conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 2009.

Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Paulo Albertini Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

O objetivo deste artigo é destacar aproximações e afastamentos entre os referenciais construídos por Carl Gustav Jung e Wilhelm Reich. Buscamos, sobretudo, um diálogo entre diferentes, e não uma integração, algo que almejasse unir as duas perspectivas num todo coerente, o que, a nosso ver, violentaria a identidade de cada uma. A fim de cumprirmos tal proposta, percebemos a necessidade de realizar um esforço de descentramento que ultrapassasse o conforto ilusório do uso dos jargões de cada abordagem. Uma dificuldade ao falar desses dois autores diz respeito a como sintetizar posições que foram sendo elaboradas e reelaboradas ao longo de décadas. Num sentido estrito, não há a teoria junguiana ou a teoria reichiana, mas duas construções vivas, em permanente movimento. Isto posto, qualquer conceito considerado tem que ser localizado no tempo (dimensão vertical) e no contexto da obra naquele momento (dimensão horizontal). Por exemplo, no caso de Reich, as elaborações presentes no livro Psicologia de Massa do

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Fascismo, de 1933, só adquirem pleno sentido quando vinculadas ao fato de que o autor estava vivendo um processo de separação da instituição psicanalítica, em frontal discordância com a teoria cultural freudiana do período, e associado ao Partido Comunista Alemão no combate ao nazi-fascismo. Já na outra edição de Psicologia de Massa do Fascismo, publicada em 1946, com Reich distante da psicanálise, totalmente imerso na construção de sua própria abordagem e apartado do enfoque comunista, o texto original sofreu importantes alterações, deixando de carregar o prisma de cunho freudo-marxista, intensamente presente na obra de 1933.

ser humano. É inevitável que acabemos por frustrar tal busca. No entanto, com essa postura acreditamos que, além de propiciar o contato com as idéias de Reich e Jung, colaboramos para a formação de um psicólogo que seja capaz de interlocução e não se encapsule em algum feudo teórico.

Algo análogo pode ser observado no desenvolvimento do conceito de energia psíquica ao longo da obra de Jung. Em 1913, no então Metamorfoses e Símbolos da Libido, este autor utilizou o termo libido, buscando tomar e ampliar essa noção freudiana, mas não a reduzindo a uma necessária conotação sexual. Em resposta ao ataque de Freud ao livro e a tal proposta, Jung passou a desenvolver a concepção de energia psíquica, que, no entanto, ainda seria, ao longo de anos, bastante elaborada, quando cotejada com contribuições da física contemporânea (que naquele período ousava transcender o mecanicismo e o atomismo e desenvolvia a questão da energia), da antropologia (que descrevia rituais tribais ao redor da idéia da manipulação de uma energia básica, o mana), e, a partir da década de 1920, também da alquimia (que, ao almejar transformar a matéria, promovia também transformações na personalidade do alquimista). E, além da inspiração em outras áreas do conhecimento, é preciso considerar o conceito junguiano de energia psíquica no contexto de outras noções que foram sendo construídas, como as de símbolo e sincronicidade, e a proposta de uma abordagem teleológica.

No que diz respeito aos aspectos históricos, procuramos articular os contextos de vida e obra dos dois autores, a partir de dados da época em que viveram, formação básica de cada um, interesses pessoais e pertinência ao movimento psicanalítico. Não nos consta que eles tenham se conhecido pessoalmente, nem estabelecido contato por correspondência. Com essa mesma linha de entendimento, Conger (1993, p.11) afirma que Jung e Reich “nunca se encontram ou se comunicaram”. Contudo, ao investigarmos o assunto, verificamos a existência de algumas referências, em geral críticas, do primeiro ao segundo, que aqui discutiremos. Ainda nesse domínio histórico, outro ponto que destacaremos é o tocante à relação que Jung e Reich tiveram com Freud, considerando o que houve de influência, dependência, aliança, continuidade e ruptura.

Com os exemplos acima, enfatizamos a nossa perspectiva de sempre situar qualquer conceito específico no contexto da desenvolvimento da obra do autor. Temos consciência das dificuldades e limitações inerentes à nossa empreitada, mas este é o método que consideramos adequado para estabelecer as bases de um diálogo fértil entre duas abordagens tão dinâmicas e complexas. Usamos também nossa experiência em sala de aula, onde freqüentemente somos instigados pelos alunos a criar uma competição sobre, afinal de contas, qual é a teoria que dá conta da natureza do

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Cientes de que não esgotaremos todas as possibilidades de consideração, optamos por destacar alguns pontos, de acordo com três eixos norteadores: o histórico, o teórico-conceitual e o da intervenção. Vale lembrar que eles, no entanto, não são estanques e, assim, aparecerão, em vários momentos, entremeados.

Em relação à dimensão teórico-conceitual, buscaremos, num primeiro movimento, um diálogo que promova a articulação entre as visões de ciência e as noções de inconsciente, autorregulação e sexualidade. A seguir, enfocaremos as concepções de desenvolvimento, saúde e doença. O conceito de energia, que permeia de maneira central as duas abordagens, é comentado no tópico referente à perspectiva histórica. Quanto às formas de intervenção, a interlocução se dará frente às propostas voltadas para o contexto sociocultural, sobretudo no campo da clínica, educação, política, religião e arte. Compartilhamos, neste momento, uma dificuldade que deparamos ao estabelecer as três linhas de comparação entre os autores. Trata-se da linguagem a adotar. Cada abordagem tem seu jargão, afi-

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nado com sua maneira de entender e expor os fenômenos. Como encontrar termos que dêem conta de ambas? Por exemplo, faz sentido para a psicologia junguiana utilizar a palavra psique, que no campo reichiano sugere uma redução a uma esfera possível. E o próprio termo autorregulação, sistematicamente utilizado por Reich, alterna-se, em Jung, com expressões como equilibração ou compensação psíquica. Precisamos criar um campo de negociação para chegarmos a termos que minimamente respeitassem o sentido de cada abordagem.

aspectos históricos Jung era quase 22 anos mais velho do que Reich - o primeiro nasceu em julho de 1875 e o segundo em março de 1897. Isso implicou, por exemplo, que na mudança de século, enquanto Reich tinha apenas dois anos de idade, Jung se formava na faculdade de medicina. Ele integrou a primeira geração de psicanalistas, na primeira década do século, enquanto Reich chegou a esse movimento em 1920, época em que a psicanálise, já não tão concentrada em Viena, estava mais internacionalizada. Uma aproximação que salta à vista diz respeito ao fato de que ambos, um na Suíça e outro no império austro-húngaro, cresceram em meio rural, em contato direto com animais e a natureza em geral, em seus ciclos e sua exuberância. No entanto, do ponto de vista socioeconômico, as famílias de origem diferiam, sendo a de Jung economicamente modesta e a de Reich abastada, proprietária de uma grande fazenda produtiva. Ambas tinham prestígio social, mas com tônicas diferentes, já que a de Jung, apesar de não se destacar economicamente, galgava prestígio pelo fato de seu pai ser pároco na aldeia. Em termos da educação formal, percebemos diferenças marcantes, uma vez que Jung freqüentou a escola local e Reich, até os onze anos, recebeu instrução em casa, ministrada por tutores que, por períodos, moravam na fazenda e propiciavam-lhe uma educação refinada, que incluía ensino de francês, música e dança, além das disciplinas regulares. Por sua vez, Jung em seu livro de memórias (JUNG, 1961/1992) questiona o preparo do corpo docente, relata

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vários períodos de enfado nos bancos escolares e uma ocasião em que foi acusado de plágio por um professor, que considerou uma redação sua sofisticada demais para um garoto de sua idade. Já Reich notabilizava-se por ser um bom aluno; contudo, deixou registrado em Paixão de juventude (1988/1996) seu incômodo frente às altas exigências do pai quanto ao seu desempenho na aprendizagem. Quanto à formação religiosa, enquanto Jung teve uma educação cristã protestante, com a forte presença do pai pastor da igreja local e de alguma maneira cotejada pela mãe vinculada ao espiritismo, Reich recebeu uma formação judaica não ortodoxa, matizada pela linhagem paterna. Chama a atenção também o fato de que os dois deixaram registrado um enorme desconforto e discordância em lidar com a rigidez paterna. Jung critica a atitude fechada do pai, sem admitir questionamentos, em defesa dos dogmas cristãos, quando interpelado por ele. Reich, por sua vez, relata as explosões emocionais, posturas severas e de autoridade “feudal” do pai. No que diz respeito à Primeira Guerra Mundial, tratou-se de um período importante para ambos, embora vivido de maneiras diferentes. Jung, na Suíça, país cujo território não foi disputado e que assumiu uma posição de neutralidade política, estava vivendo um momento crítico após o rompimento com Freud e enfrentou intensamente o desafio de refutar ou reforçar suas próprias idéias. Buscou uma síntese pessoal do que tinha amadurecido teoricamente na experiência profissional, tanto como clínico quanto como pesquisador em hospital psiquiátrico, levando em conta também sua interlocução com Freud e com o primeiro grupo de psicanalistas. Os anos de 1913 a 1920 foram aqueles em que Jung chegou a suas próprias formulações, as quais passou a aprofundar e depurar no resto de sua trajetória. Especificamente com relação à atividade militar, segundo Hannah (2003) Jung não esteve em campo de combate, mas chegou a afirmar que uma das âncoras de sua identidade era o fato de ser médico e capitão do exército suíço, e teria lamentado estar velho demais para prestar o serviço militar na 2ª Guerra. Muitas vezes sentava praça em Gotthard Pass, onde escreveu A Função Transcendente. Num período mais extenso entre 1917 e 1918, Jung foi comandante na

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Região Inglesa dos Internados de Guerra em Château-d’Oeux, para onde, território suíço neutro, fugiam os prisioneiros de guerra em busca de abrigo e cuidados médicos. Relata que nessa ocasião viuse impelido, todas as manhãs, a registrar num caderno de desenhos a sua situação subjetiva, e que, ao refletir sobre aqueles desenhos circulares, descobriu a importância das mandalas (HANNAH, 2003). Reich, de maneira diversa, sofreu diretamente os efeitos do conflito bélico, pois tinha 17 anos quando, em 1914, estourou a I Guerra e, em busca de proteção, alistou-se como voluntário no exército austríaco, já que, na região em que morava – Bukovina, o lado germano-ucraniano da Áustria - a vida civil corria enorme risco frente à presença invasora russa. Na esfera pessoal, 1914 é também o ano da morte de seu pai, que se deu três anos e meio após o suicídio de sua mãe. Ao voltar da guerra, em 1918, admitiu-se intelectualmente faminto e, de início, envolveu-se com as idéias do filósofo francês contemporâneo Henri Bérgson e, em seguida, interessado pelo tema da sexualidade, aproximou-se de Freud. Chamam a atenção nesse contexto o conjunto de eventos, sociais e pessoais, que atravessaram a vida de Reich ainda tão jovem, e a intensa movimentação por ele desenvolvida a fim lidar com a avalanche de acontecimentos. A relação de cada um deles com a psicanálise freudiana deu-se em períodos, durações e características diferentes. Para fins didáticos, consideramos, no que diz respeito a Jung, os anos entre 1906 e 1913 – portanto, sete anos, e numa fase em que a psicanálise estava incipiente, girando ao redor da primeira tópica, buscando identidade como grupo profissional e ampliação do reconhecimento social para além das fronteiras austríacas. No que se refere a Reich, o período entre 1920 e 1934, compreendendo 14 anos, nos quais a psicanálise, já sedimentada enquanto instituição e com uma considerável inserção internacional, dedicava-se à elaboração de uma concepção centrada na segunda tópica. Jung inaugura o contato pessoal com Freud em 1906, época em que, aos 31 anos, tinha experiência profissional psiquiátrica, sobretudo em duas vertentes: o contato cotidiano com pacientes psicóticos e os experimentos de associação de palavras, que desenvol-

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veu inicialmente sob a orientação de Eugen Bleuler. Já escrevera a respeito da personalidade de uma jovem médium, da psicogênese da doença mental e do conteúdo das psicoses, além de conclusões próprias relacionadas aos experimentos de associação, em que se destaca seu conceito de complexo de tonalidade afetiva. E, após ler em 1900 e reler dois anos depois o texto freudiano A Interpretação dos Sonhos, passou a cultivar a idéia de contatar Freud, pois se sentira impactado pela maneira como a noção de inconsciente era ali empregada ao abordar os sonhos e o ser humano na vida cotidiana. Procurou-o em 1906 e iniciaram um contato pessoal, que envolveu intensa troca de correspondência, visitas e uma viagem de navio aos Estados Unidos. Em 1910, Jung estava tão integrado ao movimento psicanalítico que foi o primeiro presidente, eleito pelo próprio grupo, da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), então fundada. Reich, por sua vez, foi aceito como membro da instituição psicanalítica em 1920, aos 23 anos, ainda estudante de medicina em Viena. Em termos sintéticos, alguns focos de interesse mobilizavam o jovem acadêmico, mas já veterano de guerra: aproximar-se uma abordagem terapêutica destinada ao cuidado do sofrimento psíquico e investigar cientificamente os assuntos sexualidade e energia vital. Para o acervo psicanalítico, merecem destaque as contribuições reichianas voltadas à esfera da técnica analítica, mais especificamente os artigos publicados sobre a análise do caráter, algo que alcançou reconhecimento no próprio meio psicanalítico2. Parece-nos que para ambos a relação com a psicanálise freudiana, entendida como pertinência e ruptura, implicou na busca de elaboração de temas de interesse que iluminaram aspectos centrais das visões de ser humano que cada um acabou por desenvolver. Com isso queremos dizer que entendemos que houve um período de fertilização de idéias no locus psicanalítico, o qual, porém, esgotouse e a ruptura foi necessária para que não se tolhesse o movimento próprio de cada autor. No caso de Jung, destacamos sua investigação do inconsciente supra-individual e da religiosidade como função psicológica, o desenvolvimento de uma abordagem também teleológica, a consideração do aspecto criativo da psique, além do patológico, e a busca de um embasamento filosófico mais amplo,

2 Ver sobre o assunto Briehl (1981).

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3 São de interesse, neste tópico, os dois textos de Jung a respeito de Freud, que se encontram no volume 15 de suas obras compiladas (Jung, 1987), escritos em 1932 e 1939.

que transcendesse a prática clínica, para as formulações teóricas3; no de Reich, a luta por transformações sociais visando contribuir para a prevenção da doença mental, a inclusão do corpo na cena psicoterapêutica e a pesquisa da energia vital.

sem exceção, caracterizaram-se pela negação da sexualidade. Com Jung a libido tornou-se um conceito sem sentido, místico, todo alma, o melhor dos terrenos para a posterior Gleichschaltung no Terceiro Reich” (HIGGINS & RAPHAEL, 1967/1979, p. 229).

Além disso, o fato de terem se dedicado profundamente a esses temas, assumindo o enraizamento em suas histórias e dinâmicas pessoais, propiciou a elucidação de aspectos do ser humano de maneira geral. Salta-nos à vista o quanto o ato de escrever, explicitando suas paixões e vicissitudes pessoais entremeadas às formulações teóricas, fez parte da vida de cada um deles, o que pode ser constatado a partir de suas produções.

Já em 1942, em A função do orgasmo (REICH, 1942/1978), o conteúdo dessa mesma linha crítica é repetido. Nas palavras do autor: “Jung generalizou a tal ponto o conceito de libido que este perdeu completamente a sua significação de energia sexual. Acabou no ‘inconsciente coletivo’ e com isso no misticismo, que mais tarde representou oficialmente como nacional-socialista” (p. 135).

Sobre as apreciações formuladas por Reich em relação a alguns conceitos e atitudes de Jung, focalizaremos, a seguir, aquelas encontradas em quatro referências: 1) no artigo Os conceitos de pulsão e libido de Forel a Jung (REICH, 1922/1975); 2) numa carta de felicitações a Freud pela ocorrência do octogésimo aniversário do psicanalista em 1936 (HIGGINS e RAPHAEL, 1967/ 1979); 3) no livro A função do orgasmo (REICH, 1942/1978); 4) na entrevista a Kurt Eissler, representante dos Arquivos Sigmund Freud, concedida em 1952 (HIGGINS e RAPHAEL, 1967/1979). 4 Apresentado por Reich em 1919, nos Seminários de Sexologia, evento promovido pelos estudantes de medicina da Universidade de Viena.

No artigo Os conceitos de pulsão e libido de Forel a Jung, curiosamente o primeiro trabalho científico de Reich4, onde, de forma inaugural, investiga um interesse central de sua abordagem, a noção de energia -, o autor, nas últimas páginas do texto, compara as concepções de libido propostas por Freud e Jung. Por meio de uma exposição detalhada dos dois enfoques teóricos, Reich conclui que Jung, ao postular uma espécie de impulso contínuo de vida, não mais fundado apenas no domínio sexual, teria promovido um alargamento do conceito freudiano de libido. Mesmo não negando uma possível fertilidade contida na visão do analista suíço, Reich filia-se à perspectiva freudiana. A valorização desse mesmo prisma centrado na sexualidade, acrescido de uma acusação de que a noção de libido formulada por Jung teria contribuído para a ocorrência de um campo de idéias que depois foi utilizado pelo nacional-socialismo, aparece, de forma enfática, em 1936, no seguinte trecho de um escrito em comemoração aos 80 anos de Freud: “Todos os desvios da teoria de Freud,

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Por fim, na entrevista a Kurt Eissler, dada em 1952, portanto cinco anos antes de sua morte, Reich menciona Jung em duas passagens. Na primeira, em síntese, afirma que analistas como Adler, Stekel e Jung construíram abordagens desprezando a ênfase à sexualidade presente no enfoque freudiano (HIGGINS & RAPHAEL, 1967/1979). Portanto, nessa observação inicial sobre Jung, nada de novo, apenas a repetição da crítica voltada para o assunto sexualidade. Contudo, numa segunda passagem, ao responder se havia discutido com Freud a respeito dos movimentos independentes ocorridos na psicanálise, sobre a perspectiva junguiana teceu uma série de considerações que, devido à originalidade presente e riqueza em detalhes, merece citação literal: Jung? Não, não me lembro de nenhuma discussão especial a respeito desse conflito. Oh, sim! Oh, sim? Houve uma coisa, e nisso Freud estava errado, também. Jung referia-se a algo muito importante. Sabe ao que ele se referia? Referia-se verdadeiramente à energia no universo, uma libido universal. Freud disse que não era científico. Não podia ser medido num contador Geiger, como eu posso fazer agora5. Além disso, era de concepção mística. Por isso Freud tinha razão em rejeitá-lo naquela forma. Ele também não gostava do anti-semitismo que continha (p. 89).

5 Contador Geiger-Müller, aparelho utilizado por Reich com o objetivo de medir a energia orgone presente na atmosfera.

Na seqüência, Reich, recordando outro debate conceitual, afirma: Oh, sim. Agora me lembro em que ponto dos debates se falou de Jung. Na altura, eu inclinava-me para a unificação da teoria do ins-

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tinto. Isso significa que os muitos instintos que temos – oral, anal, etc – teriam algumas raízes comuns, ao passo que em Freud se mantêm como pilares isolados. Eu já estava a caminho daquela unificação dos instintos parciais num princípio biológico comum. Mas tinha que me proteger contra Jung porque ele tinha mistificado toda a questão. Freud persistia no seu dualismo. Dizia que devem existir duas forças separadas, opostas (p. 89).

Quanta novidade. “... Freud estava errado... Jung referia-se a algo muito importante...”. Vamos por partes. Nesses dois fragmentos, Reich, de maneira cristalina, posiciona-se ao lado de Jung em prol de uma visão que supõe a presença de uma energia única e contra o dualismo freudiano centrado em forças que, inevitavelmente, se opõem. De acordo com o aqui exposto sobre o primeiro artigo científico de Reich, podemos formular a seguinte questão: estaria vinculada a essa leitura monista a possível fertilidade da noção de libido junguiana apontada naquele trabalho inaugural? Pelos dados aqui arrolados, entendemos que sim. Para dialogar com as observações de Reich ao pensamento junguiano, identificamos os seguintes aspectos. Jung, segundo Reich, teria negado a sexualidade ou, no mínimo, desprezado a ênfase freudiana nela. Outro ponto: Jung defenderia o misticismo, algo não científico. Tal postura atribuída a Jung teria levado à formulação de conceitos que finalmente embasariam o nazi-fascismo. E, por último, há um posicionamento de Reich que, ao longo dos anos, caminha da consideração de uma pluralidade para uma visão unificada dos instintos.

6 Entre os dissidentes de Freud, Jung comentou mais profundamente apenas as divergências apresentadas por A. Adler, que o estimularam inclusive a formular suas idéias sobre as disposições psíquicas e a tipologia (JUNG, 1916/1978).

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Passaremos a comentar estes aspectos, lembrando que se tratam de conjecturas e observações a partir dos dados disponíveis. Não encontramos em lugar algum qualquer referência de Jung ao trabalho de Reich6, o que nos leva, ainda com mais ênfase, para o campo das hipóteses no que diz respeito às diferenças entre eles. As questões a que ora nos dedicamos dizem respeito à esfera das idéias e também a Jung como homem de sua época. As duas guerras mundiais, a eclosão do nacional-socialismo, a prática profissional na Suíça e a inauguração da psicologia como área de conhecimento reconhecida pela ciência vigente são fatores a ter em mente.

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Não é o mesmo viver, trabalhar e produzir conhecimento em tempos de paz ou de intensos conflitos sociais, como na guerra, em que as disposições são mais radicais, as visões mais polarizadas. A nacionalidade suíça de Jung a princípio o garantiria relativamente imune a tais catalogações; mas sua relação pessoal com Freud no início do século e sua participação na fundação do movimento psicanalítico parecem ter acabado com qualquer possibilidade de isenção de julgamento. Apoiando-nos em Samuels (1991), Hyde e McGuinness (1999), Hannah (2003), Bair (2006), Wahba (2004), Cavalcanti (2007) e Valente (2007), abordaremos primeiramente alguns dados históricos, para depois apresentar considerações sobre aspectos teóricos. No início do regime nazista, em 1933, Jung assumiu a presidência da Sociedade Médica Geral Internacional de Psicoterapia, tendo ali permanecido até 1939, e esse fato parece ter sido decisivo para que ele fosse acusado de anti-semita. A Sociedade era internacional e publicava o periódico Zentralblatt für Psychotherapie, mas sediava-se na Alemanha. Quando os nazistas tomaram o poder, o presidente da Sociedade era Kretschmer e Jung, o vice-presidente. Kretschmer renunciou em junho de 1933 e os membros mais proeminentes da Sociedade então pediram a Jung que assumisse a presidência, para impedir que ela se tornasse nazificada. Sendo suíço, Jung dispunha de liberdade intelectual e política, além de gozar de bom prestígio. No que tem sido considerado pelos diferentes autores como uma tentativa de manter a psicanálise ativa na Alemanha e apoiar analistas alemães, especialmente os judeus, Jung aceitou a presidência e tornou-se também editor do Zentralblatt. Imediatamente, modificou o regulamento da Sociedade para torná-la efetivamente internacional, criando alas para as diferentes nações. Tornou-se também presidente da ala suíça. Em setembro de 1933, criou-se uma ala alemã, presidida por M.H. Goering, primo do marechal nazista Hermann Goering - era o grupo nazificado da Sociedade internacional. As novas regras propostas por Jung foram aprovadas oficialmente pela Sociedade em maio de 1934, com a declaração formal de Jung de que ela deveria manter-se neutra em termos de política e de credo (HYDE & McGUINNESS, 1999).

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Mas a perseguição nazista só aumentou desde então e essas novas mudanças constitucionais caíram num vazio. Em 1939 os alemães criaram outras alas nacionais, como a japonesa e a húngara, e as forçaram a adequar-se à ideologia nazista. Jung, então, renunciou à presidência. Mesmo assim, quando terminou a guerra, foi alvo de críticas e ataques diretos. 7 Zentralblatt für Psychotherapie und ihre Grenzgebiete VII/1, Leipzig, 1934.

8 Wotan é a principal divindade da mitologia nórdica, de natureza tanto poética e inspiradora, quanto belicosa e furiosa.

Houve também episódios relativos ao periódico Zentralblatt. Em 1934, foram publicados no mesmo número7 um artigo de Jung, A Situação Atual da Psicoterapia (JUNG, 1934/2000a), e outro, de um grupo alemão pró-nazista. Jung, buscando implementar a teoria dos arquétipos, no seu artigo trabalhou com a hipótese de que haveria diferenças psicológicas entre as raças ou nações, e estabeleceu um paralelo entre Hitler e Wotan8, sugerindo que a Alemanha estaria naquele período buscando compensar um sentimento de inferioridade. De maneira arriscada e muito inadequada se consideramos a época e o contexto da publicação, naquele artigo considerou a Alemanha uma entidade psicológica fechada e negligenciou fatores econômicos, históricos, sociais e políticos, numa postura que, até hoje, traz dificuldades de interpretação (SAMUELS, 1991; BAIR, 2006; CAVALCANTI, 2007). Outro dado histórico é que M.H. Goering em 1939 tornou-se coeditor da Zentralblatt. Jung e o editor suíço, C.A. Meier, continuaram a publicar textos de autores judeus e revisões de seus livros, apesar das tentativas contrárias de Goering. Mas isso não durou muito tempo, pois, depois da renúncia de Jung, Goering em 1940 inconstitucionalmente declarou-se presidente da Sociedade Internacional e definitivamente nazificou a Sociedade. Em 1940, os escritos de Jung foram proibidos na Alemanha e seu nome posto numa lista negra (HYDE & McGUINNESS, 1999). Há registros de duas declarações públicas de que Jung não era anti-semita, uma do rabino Leo Baeck, que conhecera Jung antes da guerra, fora professor de religião em Berlim e sobrevivente do campo de Theresiendstadt e o reencontrou em 1946, e outra de Gershom Scholem (HYDE&McGUINNESS, 1999). Hannah (2003) relata que Jung comentara, já na década de 20, temer que se rompesse o tênue verniz cristão da Alemanha, levando em conta suas vigorosas raízes pagãs. Segundo essa autora,

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Jung teria escrito Wotan (JUNG, 1936/1946/1988) com o objetivo de tentar trazer tal perigo à consciência das pessoas, em especial dos alemães. Ela o acompanhou numa viagem a Berlim em 1933 e relata que ele então tentava alertar o maior número de pessoas possível, tanto em conversas pessoais quanto em palestra, sobre a tensão que percebia na coletividade. Era de seu estilo aludir à vida psíquica interior e ao risco de o indivíduo ser apanhado numa participação inconsciente coletiva e massificada, sem se referir às circunstâncias políticas do país. Valorizava cada pessoa e falava contra qualquer “...ismo”, que considerava rebaixar a possibilidade de desenvolvimento individual. A mesma autora relata, ainda, um fato que se deu em 1938. Quando os alemães invadiram a Áustria, Riklin e Jung tentaram trazer Freud à Suíça, mas ele teria recusado a oferta, dizendo que não aceitaria ajuda dos inimigos. E ela considera um tanto irônico que Freud mais tarde tenha conseguido sua residência em Londres graças à ajuda de um junguiano, E. Bennet. Valente (2007) aponta o que considera terem sido erros políticos de Jung, alinhando-se à postura assumida por Samuels, em congresso junguiano internacional e em publicações, na década de 90. Esse autor afirma que o posicionamento de Jung nos anos 30 requer algum tipo de reparação. Apesar de não ter, em momento algum, defendido a perspectiva nazista, Jung foi alvo de muitos mal-entendidos e acusações de anti-semitismo, que parecem ter-se embasado sobretudo em omissões políticas e falta de clareza, de sua parte. Jung não defendeu a expulsão ou matança de judeus, chegou a indicar a patologia que, como analista, reconhecia na Alemanha, mas não denunciou a perversão presente nas idéias e ações dos nazistas, os quais, a partir do que identificavam como diferenças, estabeleciam hierarquias e, em seguida, critérios para exclusão e extermínio, passando, em seguida, às vias de fato. Jung tampouco assumiu as noções, comuns em sua época, de que a miscigenação levaria a uma degeneração, que seria responsável inclusive pela doença mental. Mas não se expressou contra elas, ao menos com a clareza necessária ao contexto de sua época (VALENTE, 2007). Outro ponto, identificado pela mesma autora como erro político de Jung, diz respeito, ainda, aos critérios de exclusão estabelecidos

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pelos nazistas. Além dos judeus, foram perseguidos homossexuais, ciganos, artistas, intelectuais modernistas e doentes mentais. No caso desses últimos, pacientes psiquiátricos internados, a alegação nazista era de degeneração por miscigenação racial, e médicos davam apoio aos atos de exclusão, através de laudos diagnósticos e da defesa de uma higiene racial. Valente (2007) levanta as seguintes questões: Jung, então presidente da Sociedade Médica Geral Internacional de Psicoterapia, não sabia do que estava ocorrendo nos hospitais psiquiátricos alemães? Por que não disse nada? Quem foi contra tais medidas, e pressionou o governo alemão, foi a Igreja Luterana. A autora questiona, ainda, por que a acusação que recai sobre Jung é apenas de anti-semitismo e não engloba outros aspectos, também terríveis, do nazismo. Os últimos parágrafos apresentam fatos que revelam o tipo de envolvimento de Jung com o nacional-socialismo. Reich, nas passagens referidas acima, chega a afirmar, embora em poucas palavras e numa passagem que nos parece demasiadamente rápida, que as noções junguianas de libido e de inconsciente coletivo teriam caráter místico e, mais, teriam colaborado para o embasamento daquele movimento. Seria Jung um místico? E o que significa isso? A nosso ver a restrição que Reich faz em relação à concepção junguiana de libido – para ele algo vago, místico –, deve ser entendida a partir do prisma de um autor que se coloca como um cientista que supõe a existência de uma energia concreta e passível de ser medida. Possivelmente essa diferença entre as duas abordagens diga respeito às polaridades concretude-abstração, cada uma priorizando mais uma delas. A maior ênfase pela perspectiva da ciência natural, por parte de Reich, acarreta uma busca pela objetivação dos fenômenos, por exemplo, resultados num contador Geiger. Jung, embora tenha iniciado sua carreira com pesquisas em laboratório de medidas fisiológicas quantitativas, passou depois a valorizar muito a fantasia e a imaginação, o símbolo e a metáfora, e talvez considerasse excessivamente parcial e literal ater-se, sobretudo, aos dados objetiváveis na abordagem aos fatos psíquicos, pois, para ele, afinal, todas as polaridades presentes num símbolo são igualmente importantes.

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Jung reconhecia de fato uma função religiosa na psique. Interessava-se pelas diferentes religiões enquanto conjunto de mitologias e práticas. Via na fé uma função de envolver a consciência na vivência simbólica. Além disso, reconhecia funções irracionais na consciência – a sensação e a intuição, e buscou maneiras de favorecer seu exercício no dia a dia. Se admitir no psiquismo funções outras além da razão e buscar compreendê-las consiste em ser místico, então talvez Jung mereça tal adjetivo. Ocorre que para ele não se trata de uma exclusão entre funções irracionais e racionais, mas de uma necessária complementaridade, em se tratando do ser humano, sobretudo se tomado do ponto de vista de uma psicologia que leva em conta o inconsciente. Para ele, a psique vive apoiando-se tanto no que é luminoso quanto no que é numinoso; busca compreensão racional e também sofre, e causa, impacto emocional; apóia-se no princípio da causalidade e no da sincronicidade. Jung procurava manter-se a par dos avanços da ciência de sua época e aplicar seus conhecimentos e, por outro lado, dedicava-se ao desenvolvimento de faculdades intuitivas, também. Destacamos abaixo um trecho de carta de Freud a Jung, de 12 de maio de 1911, antes da ruptura entre eles. Freud ali reconhece ambas as facetas em Jung, o místico e o cientista. Caro amigo, ... Sei que você tem obedecido à sua profunda inclinação pelo estudo do ocultismo, e não duvido que por ai poderá colher abundantes frutos. Nada há a fazer contra isso e cada qual tem razão de obedecer ao encadeamento de seus impulsos. A fama adquirida através de seus trabalhos sobre a demência precoce resistirá por muito tempo à acusação de “místico”. (...) Cumprimento-o muito cordialmente e espero que também me escreva dentro em breve. Seu amigo fiel, Freud (JUNG, 1961/1992, p. 320).

E ao final da vida, em seu livro de memórias, Jung reconhece o misticismo de Freud em seu fascínio pelo tema da sexualidade, o que, por outro lado, não impediu que ele abordasse o tema de maneira exaustiva e rigorosa.

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Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessaram a Freud: o dos “resíduos arcaicos” e o da sexualidade. Espalhou-se o erro de que não vejo o valor da sexualidade. Muito pelo contrário, ela desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão fundamental – mas não a única – da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial era, no entanto, aprofundar a sexualidade, além de seu significado pessoal e seu alcance da função biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse. (JUNG, 1961/1992, p. 150)

O trecho acima também pode ser utilizado como uma resposta a Reich, quando este afirma que Jung negou a importância da sexualidade. Embora Reich não tenha, nas fontes que encontramos, explicitado qual a relação direta que estabelece entre conceitos como energia psíquica e inconsciente coletivo e o embasamento ideológico do nacional-socialismo, levantamos aqui uma tentativa de compreensão. Jung debateu-se praticamente o tempo todo, ao longo da elaboração de suas idéias, entre duas polaridades: o foco em um indivíduo como único, com identidade e subjetividade próprias, construídas ao longo da vida, a partir, por um lado, de disposições inatas, influências do ambiente e da cultura, e aspectos de livre arbítrio, e, por outro, da dimensão daquilo que é comum ao ser humano. Utilizando poucas palavras e buscando conceitos fundamentais em Jung para falar dessas polaridades, podemos dizer que ele almeja uma articulação entre o inconsciente coletivo e o processo de individuação, procurando manter-se no campo dinâmico que define o humano e é balizado por esses aspectos. No conjunto de sua obra, vemos o grande esforço em não isolar nem o aspecto coletivo nem o individual, mas valorizar o campo da vivência, a constituição dos complexos e o processo de individuação enraizado nos arquétipos e realizado no mundo concreto de maneira singular. Com esse entendimento global da construção junguiana, a nosso ver, a crítica de Reich, referida acima, está centrada apenas em uma faceta do pensamento desse autor, a do inconsciente coletivo, e, com isso, não faz jus à abordagem junguiana com um todo.

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De outra parte, cabe registrar que, afinal e ao final da obra, Reich concorda com Jung ao admitir uma visão unificada dos impulsos, discordando da abordagem dualista de Freud, no que diz respeito à questão nodal do instinto e da energia. Com base nesse sinal de convergência, é possível afirmar que as posições desses dois autores também revelam um fértil campo de aproximações. Assim, por exemplo, em solo brasileiro, por essa trilha da afinidade teórica, no domínio das chamadas psicoterapias corporais, duas formas de intervenção merecem ser citadas: a vertente do trabalho de Pëtho Sándor, que se fundamenta, sobretudo, na psicologia junguiana e recebeu influência do pensamento de Reich e, também, a orientação desenvolvida por José Ângelo Gaiarsa, um pioneiro da área, que articula idéias tanto de Reich quanto de Jung.

dimensão teórico-conceitual Quanto à visão de ciência, Jung iniciou sua carreira em pesquisas de laboratório que envolviam mensurações objetivas de dados fisiológicos, durante os experimentos de associação, e, em vários momentos de sua obra encontramos uma preocupação com aspectos quantitativos, biológicos e observáveis. No entanto, ele caminhou sobretudo no sentido decisivo de acabar por entender que o pensador, pesquisador ou clínico, está sempre pessoalmente implicado no seu fazer profissional. Como conseqüência, não considerou possível alcançar qualquer neutralidade ou isenção no trabalho. Para a psicologia analítica, sujeito e objeto estão necessariamente entrelaçados e, mesmo que se procure delimitar suas manifestações específicas, é necessário considerar que um novo campo se configura a partir da interação entre eles e seus contextos. Além disso, toda a experiência vivida, com suas tonalidades emocionais, intuitivas e corporais, que ultrapassam a razão e o pensamento, deve ser levada em conta. Em seu processo de busca de definição do campo da psicologia, Jung percorreu áreas como a biologia, a física, a filosofia e a história das religiões, entre outras. Acabou por formular que o psíquico localiza-se entre o físico e o metafísico, o que implica numa postura científica própria, não redutível à dimensão física e nem à espiritual, embora as tangencie.

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A psique para Jung é inapreensível enquanto unidade, podendo apenas ser circunscrita e intuída quando se observam suas manifestações e se considera seu contexto e suas relações com o que a circunda. Embora reconheça nela uma pluralidade, Jung não a fragmenta, buscando sempre apreender processos em movimento dentro de uma totalidade. Ademais, sem desprezar uma perspectiva que busca no passado e na história as causas do que se manifesta, Jung enfatizou o ponto de vista finalista ou teleológico, que permite identificar direções ou caminhos a serem percorridos no futuro. Jung abordou enorme amplitude de temas, pois considerava que o que interessa ao ser humano interessa a uma psicologia que fale dele. Assumiu a influência que recebeu de Nietzsche, a quem admirava como o maior combatente de falsos dogmas e ilusões e, conseqüentemente, o inaugurador de uma renovada visão de ser humano. A própria ciência, para Jung, é considerada um produto da cultura, tomada como um símbolo quando enfatiza sua dimensão criativa, enraizada na história do pensamento da humanidade e da busca de conhecimento objetivo. Outras vezes, ela é considerada como um sintoma, por expressar distorções e inadequações da época. A ciência teria um status análogo ao da arte e da religião, enquanto produção humana. Jung afilia sua psicologia à tradição médica por um lado, e à tradição religiosa, por outro. Reich, por sua vez, vinculado a uma perspectiva claramente iluminista, apostou na primazia da ciência para lutar contra os entraves a uma vida plena. Longe de uma postura indiferente às mazelas que enredam o ser humano, entendeu que boa parte das barreiras ao exercício de nossas potencialidades poderiam ser evitadas, já que teriam sido geradas por condições sociais adversas. Como um combatente cultural produziu uma ciência militante, marcada por um forte vínculo entre teoria e prática, elaboração conceitual e propostas de intervenção. Dessa forma, por exemplo, ao considerar que o cerceamento sexual, sobretudo de crianças e adolescentes, acarreta sérios danos à formação da personalidade, além de publicar textos sobre o assunto com linguagem acessível ao grande público, criou organizações - como a Sexpol, ligada ao Partido Comunista Alemão - voltadas para o combate às visões negativas a respeito da sexualidade.

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Em linhas gerais, a perspectiva científica de Reich é fruto de uma articulação que se valeu de diferentes correntes, resultando numa elaboração própria, inusitada e peculiar. Nessa construção vislumbramos a presença de quatro influências básicas: a) a sua formação médica na Universidade de Viena, moldada de acordo com o enfoque da ciência natural, algo que Reich sempre valorizou e que, a nosso ver, marcou sua identidade enquanto pesquisador; b) a decisiva presença das idéias de Henri Bergson, por exemplo com o postulado de que a vida é regida por um princípio vital criativo; c) uma leitura de base psicanalítica do ser humano, que o levou à construção de técnicas voltadas para a apreensão da dimensão inconsciente dos fenômenos; d) sua aproximação do pensamento de Karl Marx, autor que o marcou a ponto de gerar um empenho teórico em buscar articular a psicanálise e o marxismo, o que ficou conhecido na história das idéias como freudo-marxismo9. Essa construção científica peculiar resultou na elaboração de uma abordagem que não separa mente e corpo, gerando, como conseqüência, uma crítica a enfoques dualistas e/ou racionalistas. Cabe apontar que a posição que advoga a existência de uma unidade somatopsíquica, nos dias atuais, tem sido confirmada em pesquisas de autores da área da neurobiologia, como Antônio Damásio, Humberto Maturana e Francisco Varela. Atentos a esses achados, estudiosos do pensamento reichiano (REGO, 2005, 2008 e BARRETO, 2007) vêm realizando trabalhos em que o foco recai sobre possíveis aproximações entre a visão adotada por Reich e a de atuais investigadores da neurobiologia.

9 De acordo com a compreensão de Roudinesco e Plon, Reich foi “o criador do freudomarxismo” (1988, p. 651).

Para o domínio da investigação científica, merece destaque uma decorrência interessante da visão de caráter formulada por Reich (1949/1995). Em poucas palavras, a necessidade de adaptação às circunstâncias externas gera a organização de uma estrutura de caráter, uma forma pessoal e típica de atuar no mundo. Imaginando uma linha contínua, que tem um pólo em cada extremidade, quanto mais próximo da extremidade neurótica, maior o grau de cronicidade do caráter; de outra parte, quanto mais próximo do pólo da saúde, maior o grau de flexibilidade da estrutura. Como, na prática, há sempre alguma mescla entre saúde e doença, estamos todos – de alguma maneira e em algum grau – presos à nossa estru-

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tura automatizada e repetitiva. Além disso, entendendo que cada caráter tende a configurar uma determinada forma de percepção, concluímos que a leitura do mundo vai ser sempre marcada por essa estrutura. De posse dessa compreensão, cai por terra qualquer ilusão a respeito de uma suposta neutralidade do pesquisador, pois a percepção do objeto estará sempre permeada pelos óculos pessoais do investigador. Nessa linha de raciocínio, é interessante observar que Jung, em 1916, publicou A Psicologia do Inconsciente (1916/1978), onde compara as posturas teóricas de Freud e A. Adler, reconhecendo que as diferenças entre elas refletem aspectos intrínsecos à personalidade de cada pensador. Para ele, Freud construía uma teoria extrovertida, enquanto Adler, uma introvertida. Tais considerações lhe permitiram posicionar-se frente a cada uma delas sem rejeitar nenhuma, mas buscando assumir um terceiro ponto de vista, que levasse ambas em conta. Esse texto é também considerado o primeiro esboço da teoria dos tipos psicológicos, que Jung viria a publicar em 1921 (JUNG, 1921/1991). Buscando identificar semelhanças e diferenças entre os prismas aqui estudados, no tocante à visão de ciência e método de trabalho, destacamos o que segue. Para ambos, o pesquisador está inevitavelmente implicado em todas as dimensões da investigação, desde a escolha e delimitação do tema, a maneira de abordá-lo, até a interpretação dos resultados. E tanto Jung quanto Reich professaram uma afiliação à ciência natural, inclusive no sentido de buscar mensurações quantitativas dos fenômenos que estudavam; contudo desenvolveram percursos peculiares nesse domínio. Jung iniciou sua carreira em um laboratório experimental dentro de um hospital psiquiátrico, realizando mensurações de dados fisiológicos. Ao refletir sobre os resultados que encontrava nesses experimentos de associação de palavras, chegou à formulação do conceito de complexo, que posteriormente incrementou com a noção de inconsciente coletivo e acresceu com as perspectivas simbólica e teleológica, para a consideração das manifestações psíquicas. Ainda assim, Jung não pretendia abandonar a postura da ciência natural e apoiou-se num paralelismo fisiopsíquico, afirmando, por exemplo, que o sonho é um pedaço da natureza e que o arquétipo é

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para a psicologia algo análogo ao que o instinto é para a biologia, e manifestando a esperança de que os avanços da biologia levassem ao estabelecimento de maiores relações entre as duas áreas. Reich, desde o início de sua atuação profissional, esteve vinculado a uma inserção dupla: a psicanálise freudiana e a psiquiatria. Quanto à segunda, menos conhecida, cabe registrar que ao formar-se como médico iniciou uma especialização de dois anos numa clínica de neuropsiquiatria dirigida pelo neurologista Julius Von WagnerJauregg, prêmio Nobel em 1927 por seus estudos sobre a paralisia mental progressiva (BEDANI, 2007). Atentos ao fato de que Reich deu seus primeiros passos profissionais com pés, digamos, em duas canoas – uma mais afeita ao universo psíquico e outra mais voltada para o campo das afecções neurológicas – podemos compreender melhor a sua tentativa de aproximar o domínio qualitativo do quantitativo, desafio que procurou resolver por meio da noção de energia, chegando a realizar trabalhos ligados aos campos da biogênese e física10. Segundo a nossa leitura, ambos os autores voltaram-se para as ciências humanas na tentativa de tanto criar quanto fundamentar suas concepções teóricas. É notória em Jung sua busca de elementos comuns na cultura de diferentes épocas e povos, os quais relacionava também à produção de seus pacientes - onírica, simbólica e mesmo delirante. Autores cujas idéias adotou como apoio nessas vertentes, são, dentre outros, Bachofen e LévyBrühl. Johann Jakob Bachofen (1815–1887), antropólogo e sociólogo suíço, pesquisou primatas e hominídeos, concluindo a existência de sociedades matriarcais antes da vigência do patriarcado. Seu livro (BACHOFEN, 1967) Mother Right: An Investigation of the Religious and Juridical Character of Matriarchy in the Ancient World, de 1861, teve influência seminal, ao apresentar uma visão radicalmente nova do papel da mulher e demonstrar que o matriarcado é a fonte da sociedade, religião e moralidade humanas. No meio junguiano, suas idéias foram tomadas e desenvolvidas sobretudo por Erich Neumann (1973, 1991) e Carlos Byington (2004). Friedrich Engels, no Prefácio à 4ª edição (ENGELS, 1891/1979) de A origem da família, propriedade privada e do estado, afirma que a história da família iniciou-se com Bachofen. Por sua vez, Lucien Lévy-Brühl (1857-1939), filósofo e sociólogo francês, identificou nas socieda-

10 Ver, em Reich (1973), os textos Éter, Deus e o diabo e Superposição cósmica.

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11 A este respeito, ver os volumes 6, 8, 9ii, 11,13, 15, 16 e 18 das obras compiladas de Jung.

des não-industrializadas uma mentalidade não orientada pela lógica ou pelo princípio de causalidade, e baseada em representações míticas. Suas noções de pensamento primitivo e de participation mystique, expostas em 1925 e 1927, são tomadas por Jung para fundamentar uma gama de possibilidades de formas de relações psicológicas11.

dimensões concretas e abstratas, ao passo que Reich volta-se, sobretudo, para as manifestações corporais.

E Reich também se muniu de estudos do campo da antropologia. Tal recurso pode ser observado no livro A irrupção da moral-sexual repressiva (1932/s.d.), no qual, fundamentado em estudos desenvolvidos pelo antropólogo inglês Bronislaw Kasper Malinowski (1929/1983) sobre a organização matriarcal dos habitantes das ilhas Trobriand e por Friedrich Engels, também em A origem da família, propriedade privada e do estado (ENGELS, 1884/1979), procura refutar a tese freudiana da universalidade do complexo de Édipo. Nesse campo das orientações de cunho antropológico, um aspecto que chama a atenção diz respeito ao fato de que tanto Jung quanto Reich alicerçaram suas construções teóricas numa visão de matriarcado inicial – a nosso ver, um fértil mote para futuras pesquisas sobre, por exemplo, as implicações desse entendimento nas abordagens de cada autor.

Para Jung a psique vive um processo constante de equilibração, contando para isso com o movimento da energia psíquica, capturada nos símbolos, que geralmente a distribuem em polaridades. A qualidade de consciência ou inconsciência cria um par de opostos, que buscam se compensar continuamente. A autorregulação pode se dar de inúmeras maneiras, em movimentos de progressão e regressão, abrangendo as dimensões da vida humana: desde manifestações corporais criativas ou sintomáticas, até idéias, emoções, sonhos e a consideração de sincronicidades, relacionamentos e formas de participação social, entre outros. Jung formulou o conceito de função compensatória para se referir à dinâmica relação entre a consciência e o inconsciente. Ela dá-se espontaneamente, por meio da autorregulação psíquica e pode, também, ser fomentada por certas práticas, como a consideração dos sonhos, a reflexão e a elaboração dos símbolos, ao longo da vida. Nesse sentido, a função compensatória guarda certa analogia com a função respiratória, que opera naturalmente e pode, por outro lado, submeter-se a algum controle voluntário.

Observamos também em ambos a busca daquilo que seria o mais elementar e estrutural à vida. Em alguns momentos, constatamos uma perspectiva evolucionista, que define o ser humano como o organismo mais complexo, o que no entanto não permite que seja considerado desvinculado do mais simples. Assim, por exemplo, em Reich o estudo comporta também a ameba que, tal como o homem, apresenta os movimentos de expansão e contração. Jung, por sua vez, com o conceito de arquétipo e de psicóide (JUNG, 1947/1954/1955/2000b) buscou definir a natureza humana como embasada num substrato pré-psíquico e comum a toda forma de vida. Quanto ao inconsciente, cabe pontuar que, grosso modo, para ambos tal conceito abarca uma dimensão inata e fundamental, uma espécie de valiosa fonte natural, sem a qual o ser humano vê-se apartado de suas raízes fecundas. Nesse ponto, observamos um aspecto que aproxima os dois autores e, simultaneamente, afasta-os de Freud. No entanto, notamos que para operacionalizar o inconsciente, Jung desenvolve o conceito de símbolo, que abarca

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Se há um princípio que permeia de maneira semelhante a obra de ambos é o de autorregulação. Jung e Reich falam de uma competência espontânea e criativa do self (numa linguagem junguiana) ou da vida (numa linguagem reichiana) para encontrar seus caminhos.

Em Reich, o postulado da autorregulação sugere, tal como em Jung, a existência de uma espécie de sabedoria primária, inerente à vida. Com uma leitura de prisma bergsoniano a respeito das formulações reichianas, entendemos esse acervo básico como algo dinâmico, na verdade um processo constante de criação de formas, sempre em função das relações que se estabelecem com o meio ambiente, o que aponta para a plasticidade e não para a mera repetição. Segundo Reich, numa posição diferente da freudiana, que se funda na tese do conflito interno inevitável e estruturante, essa dimensão natural que busca expansão, sob pena de perda da vitalidade e da alegria de viver, não deve ser tolhida pelos processos educativos. De maneira geral, podemos dizer que tanto no ofício da clínica quanto na esfera das atuações voltadas para a sociedade como um todo,

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a aposta na capacidade autoregulatória alicerça o intenso combate reichiano às formas autoritárias e heterônomas de determinação. Quanto à sexualidade, de acordo com o enfoque reichiano, ela constitui uma espécie de matriz básica das demais reações perante a vida. Para o autor, a repressão à sexualidade prepara o campo para a aceitação dos demais cerceamentos, daí a sua importância e centralidade nas organizações sociais. Deve-se registrar que essa tese já está presente no texto freudiano de 1908, Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna, quando o psicanalista escreve que o comportamento sexual constitui o protótipo das demais reações perante a vida. De posse dessa assertiva, pode-se concluir que a restrição à expressão sexual tende a gerar, por exemplo, algum grau de inibição intelectual e, em última instância, uma postura marcada pela impotência perante a vida. Alicerçado nessa tese, Reich investe massivamente, por meio de extensa elaboração teórica e da organização de projetos de intervenção social, no combate às múltiplas formas de repressão da sexualidade. De outra parte, ainda na esfera da sexualidade, entendemos que não mais se sustenta o enfoque reichiano centrado na visão de que seja possível haver indivíduos potentes. A nosso ver, alicerçados numa orientação voltada para o domínio das relações humanas, o que pode ocorrer, isso sim, são encontros potentes, (ALBERTINI, 1997, p. 62), nos quais o campo que se estabelece favorece a expressão dos amantes. Jung, em seu livro de memórias no final da vida, afirma que considera a si próprio o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessaram a Freud: o dos resíduos arcaicos e o da sexualidade. Contribuíram para tal aprofundamento seus estudos sobre a cultura do oriente e a alquimia. Considera a sexualidade como uma expressão fundamental da vida, embora não a única, e procura nela os lados espiritual e numinoso. Pelo menos duas de suas grandes obras, Psicologia da Transferência (1946/1999) e Mysterium Coniunctionis (1954/1997), valem-se fartamente do simbolismo sexual, na medida em que considera a relação sexual como expressão profunda e íntima do possível encontro entre opostos, configurando-se assim uma totalidade. As polaridades aqui aludidas dão conta da ampla gama de pares em oposição, tais como

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o espiritual e o físico, o masculino e o feminino, a imanência e a transcendência. Jung ressalta o quanto alguns sistemas orientais valorizam a sexualidade como expressão da interação máxima entre polaridades. Esse encontro é sempre tomado num campo que o contextualiza e pode ser focalizado tanto nas relações interpessoais e na relação terapeuta-paciente quanto, intrapsiquicamente, na interação entre consciência e inconsciente. Pode-se afirmar, portanto, que a sexualidade constitui um tema relevante nas duas abordagens. Enquanto Reich dedicou-se, em termos teóricos e práticos, ao combate às várias formas de repressão sexual, entendendo que, com isso, trabalhava em prol da plena realização das potencialidades humanas, Jung considerou a sexualidade como expressão máxima da possibilidade de interação entre opostos e da criação de um fruto novo. A questão do desenvolvimento para Jung centra-se no conceito de processo de individuação e na relação entre a consciência e o inconsciente, responsável pela elaboração da identidade pessoal, a partir do que é vivenciado. Há autores junguianos atuais que julgam importante não enfatizar uma visão longitudinal mas, por outro lado, ressaltar e assumir, para intervenção prática, uma abordagem centrada nos arquétipos em suas manifestações pontuais. Parece-nos interessante manter a avaliação de como está se dando, a cada momento, a relação entre ego e self, que pode apresentar diferentes características e que permite aferir a maturidade psíquica. Por outro lado, valorizamos em Jung a ênfase da pluralidade presente no self, o que nos conduz a não nos atermos apenas ao ego, mas, pelo contrário, contar com ele inclusive para acessar outras dimensões da personalidade. O trabalho de imaginação ativa, por exemplo, favorece o contato egóico com diferentes aspectos arquetípicos. Abordar o desenvolvimento, a saúde e a doença na visão junguiana implica em considerar uma raiz comum, o contexto sendo vivido e, também, avaliar o grau de abertura da consciência ao novo e de flexibilidade para com ele interagir, permitindo sua própria ampliação e a descoberta de novas maneiras de lidar com as situações. Além disso, o inconsciente, concebido também como criativo e não apenas fruto de recalque, permite vislumbrar aspectos prospectivos e prognósticos nos sintomas que se apresentam, e leva, também,

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a uma concepção de movimentos regressivos e progressivos da libido, não necessariamente vinculados à patologia. Por exemplo, uma regressão, nessa perspectiva, pode ser considerada uma busca de reconexão com a dimensão matricial e coletiva da psique, necessária a um posterior movimento de progressão, e não, necessariamente, um retorno e subsequente fixação em um padrão de resposta infantil ou menos amadurecido. Ao falar, de maneira geral, sobre as noções de desenvolvimento, saúde e doença na abordagem reichiana, algumas orientações centrais devem ser mencionadas. Uma delas diz respeito ao fato de que Reich foi um autor extremamente sensível às formas adaptadas de psicopatologia, com isso contribuindo para questionar uma visão tradicional, de base psiquiátrica, que tende a ver as doenças psíquicas sob o registro do desajustamento ao meio social. Esse prisma, que aponta para o estudo das patologias da normalidade, pode ser observado, sobretudo, em escritos como Psicologia de massa do fascismo (1933/1974), Análise do caráter (1949/1995), Escuta, Zé ninguém! (1948/1974), e O Assassinato de Cristo (1953/1982). Nesses trabalhos, de maneira exaustiva, Reich discorre sobre as limitações - em especial o medo à liberdade e a tendência a atacar manifestações vitais profundas - presentes em estruturas de caráter plenamente adaptadas ao cotidiano social. No referencial junguiano, falar em adaptação ou ajustamento implica em considerar o tema da persona, estrutura a partir da qual é abordada a relação do indivíduo com seu meio. A persona é pouco estudada pelo próprio Jung, mas tem merecido maior destaque ultimamente. A ela cabe a dupla função de garantir uma inserção que, simultaneamente, seja reconhecida e valorizada pelo contexto e, por outro lado, expresse, o melhor possível, a singularidade e favoreça o desenrolar do processo de individuação. O risco de massificação e conformismo a padrões oferecidos pelo meio, com algum grau de traição da própria subjetividade, é grande, como denunciou Jung em vários momentos de sua obra. Trabalhos que visem à conscientização e a exploração da persona, entendida como o repertório de possibilidades de interação, são necessários e campo fértil de intervenção, em nosso contexto atual. (VILLARES DE FREITAS, 1990, 1995 e 2005).

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Uma outra baliza nesse tema está vinculada ao fato de Reich ter produzido um vasto material não só sobre a esfera da patologia, mas também a respeito do domínio da saúde. Nesse caso, não adotando um posicionamento afinado ao de Freud, que entende não haver diferença qualitativa, mas somente quantitativa, quer dizer apenas de grau, entre os estados de saúde e de doença mental, Reich procurou identificar aspectos especialmente associados ao território da saúde. Um conceito fundamental nesse campo, formulado com o objetivo de indicar o ideal de saúde, é o de caráter genital, grosso modo, um modelo que aponta para uma estrutura flexível, com possibilidade de alternância entre satisfação sexual genital e sublimação, e para uma orientação predominantemente não marcada pela destrutividade12. Essa formulação reichiana, caráter genital, dada a presença do critério da satisfação sexual sob o primado da genitalidade, sugere um tom normativo. No entanto, mais ao final de sua trajetória teórica, especificamente no ano de 1953, no livro O assassinato de Cristo, Reich tece uma apreciação que dá margem à elaboração de uma nova visão sobre o seu ideal de saúde e, num sentido mais amplo, de postura na vida. Em suas palavras:

12 Sobre o assunto, consultar o capítulo O caráter genital e o caráter neurótico do livro Análise do caráter (REICH, 1949/1995).

O abraço natural pleno assemelha-se a uma escalada; ele não se distingue essencialmente de qualquer atividade vital, importante ou não. Viver na plenitude é se abandonar ao que se faz. Pouco importa que se trabalhe, que se fale com amigos, que se eduque uma criança, que se escute uma conversa, que se pinte um quadro, que se faça isso ou aquilo (1953/1982, p. 32).

No trecho acima, o olhar do autor aponta para uma perspectiva ampla, que abrange domínios além da sexualidade propriamente dita, e que está afinada com o que chamamos de ética da intensidade (ALBERTINI, 1997, p. 63), uma maneira de viver que busca plena presença e entrega ao que estiver sendo realizado. Tal enfoque, avesso a qualquer direção pré-determinada, é marcado pela idéia de singularidade, pelo respeito aos caminhos humanos pessoais e idiossincráticos que favoreçam, nos múltiplos âmbitos da vida, a ocorrência de encontros potentes (ALBERTINI, 1997, p. 62).

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Com essa visão, de acordo com uma apreensão de prisma bergsoniano, em especial a presente em A evolução criadora (BERGSON, 1907/1964), sugerimos que as idéias de desenvolvimento, saúde e doença no atual campo reichiano sejam norteadas não por conteúdos específicos, sempre geradores de normatizações, mas pelo entendimento de que a vida consiste num processo constante de criação de formas, com o sentido de ampliar o grau de liberdade de uma estrutura, isso em oposição à cristalização, o estabelecimento de posturas automatizadas, involuntárias e encouraçadas.

13 Sobre a noção de contato no enfoque reichiano, ver o capítulo Contato psíquico e corrente vegetativa, do livro Análise do caráter (Reich, 1949/1995). 14 Ver os volumes 7 e 8 das obras compiladas de Jung, onde são abordadas a relação entre o eu e o inconsciente, a função transcendente e a imaginação ativa.

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proposta de intervenção, no panorama científico e cultural do século XX, com conseqüências até os dias atuais.

Refletindo sobre aspectos junguianos e reichianos no que diz respeito às noções de desenvolvimento, saúde e doença, encontramos em ambos a ênfase nos processos e num dinamismo que busca sempre acompanhar e potencializar os ritmos da vida. Os movimentos de progressão e regressão são considerados inerentes ao desenvolvimento, e a estagnação alerta para uma possível patologia. Quando cronificada, ocorre o adoecimento do indivíduo que, por sua vez, pode tender a uma ação destrutiva em seu meio. Com essa perspectiva, encontramos em ambos os autores a identificação e a denúncia de aspectos psíquicos que alimentam a adesão e manutenção de movimentos reacionários de massa.

Jung, por exemplo, ao enfatizar a noção de uma totalidade complexa em que cada componente encontra seu sentido na relação com os demais, de alguma maneira está presente em idéias atuais como holismo e transdisciplinaridade. Além disso, sua consideração da vida psíquica, como abrangente desde o nascimento até a morte, contribui para que não se reduza o desenvolvimento à esfera infantil e embasa uma visão mais completa do período adulto e da chamada terceira idade. O mesmo pode ser dito em relação à importância que atribui à criatividade, cotejando-a com a patologia. Sua consideração dos aspectos irracionais da psique e da sincronicidade também pode ser considerada bastante presente nos dias de hoje. A consideração de aspectos plurais e coletivos em cada indivíduo permite que se pense um ser humano que possa funcionar em alteridade, aberto e respeitoso ao outro, preocupado constantemente, a cada situação sendo vivida, com o reconhecimento e a transformação dos aspectos sombrios. Identificamos, por exemplo, atualmente uma relação entre essas idéias junguianas e o tema da inclusão, tão presente em nossa cultura.

Além disso, encontramos tanto em Jung quanto em Reich um dedicado empenho em formular idéias e critérios para a esfera da saúde. Ambos usufruíram da ampla e detalhada visão freudiana a respeito do universo da psicopatologia; no entanto, ali não permaneceram, partindo, cada um a seu modo, para identificar aspectos qualitativos que pudessem ser associados à saúde emocional. A ênfase recai na flexibilidade e abertura para interação, entendida como contato13 (numa terminologia reichiana) ou diálogo14 (numa linguagem junguiana).

Outro aspecto que merece destaque é a importância atribuída por Jung à vivência. Mais do que tomar os aspectos intelectuais isoladamente, a dimensão da experiência sendo vivida, considerada nos conceitos tanto de complexo quanto de símbolo, é enfatizada em seu potencial de transformação e elaboração da energia psíquica. Essa postura embasa a possibilidade de uma variedade de trabalhos psicológicos, valendo-se por exemplo de recursos expressivos, plásticos e corporais, e inseridos em diferentes contextos – individuais, grupais, comunitários ou institucionais.

formas de intervenção Entendemos que as intervenções num determinado contexto social estão necessariamente enraizadas na perspectiva teórico-conceitual de cada autor. Destacaremos agora, em Jung e Reich, alguns aspectos em que se evidencia a articulação entre posição teórica e

Percebemos a influência junguiana em um conjunto de propostas de trabalho com a imaginação, atualmente. Aliás, talvez o recrudescimento da violência na sociedade atual aponte justamente para uma literalização excessiva e deslocada dos impulsos agressivos, que conduz o indivíduo inadequadamente à ação concreta em momentos em que o melhor, do ponto de vista psíquico e social, seria a consideração da própria agressividade no domínio da imaginação, onde qualquer conteúdo pode ser elaborado de maneira que se ar-

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ticule à consciência. Tal concepção enfatiza a reflexão e o trabalho com as imagens psíquicas, estando presente o ego em todas as suas formas de funcionamento, que incluem a razão, a emoção, a intuição e a sensação. Assim, pode-se exercer uma ética de alteridade que, tendo a possibilidade de considerar e lidar com os impulsos agressivos antes da ação, permite que esta deixe de ser compulsiva ou imediata, uma vez que as próprias necessidades e desejos, assim como as do outro, a cada situação vivida, são consideradas. Além disso, a postura aberta de Jung quanto aos símbolos que se apresentam – desde que tocasse de alguma maneira a consciência, o tema para ele era considerado de interesse da psicologia – permite inspirar uma atitude de tolerância e busca de interação, que nos parece fundamental nos dias de hoje. Sua humildade enquanto cientista, ao afirmar que suas idéias não refletiam verdade absoluta alguma, mas antes a sua equação pessoal, isto é, sua maneira de entender e vivenciar os fatos, é fomentadora de uma atitude de respeito. Ao mesmo tempo em que é necessário que cada um se afirme e busque a expressão mais precisa de suas verdades, urge o encontro e a interação com o outro e as diferentes perspectivas.

15 Em São Paulo, destaca-se a produção em pesquisas com referencial junguiano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica. 16 Por iniciativa conjunta da IAAP – International Association for Analytical Psychology e da IAJS – International Association for Jungian Studies, aconteceram, até 2008, três encontros internacionais acadêmicos: em Essex, Reino Unido, em 2002; no Texas, E.U.A., em 2005, e em Zurique, Suíça, em 2008.

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Profissionais que podem ser considerados alinhados à perspectiva junguiana atualmente buscam maneiras de levar em conta tanto a dimensão espiritual quanto a corporal, num trabalho psicológico pautado em princípios como o de individuação e o da autorregulação psíquica. Por exemplo, parece-nos significativo o aumento de educadores que têm buscado apoio, inspiração e interlocução nas idéias de Jung. E merece atenção, também, o movimento de valorização crescente do pensamento junguiano no meio universitário, iniciado há poucas décadas e expresso sobretudo em pesquisas15 de mestrado e doutorado e em encontros acadêmicos16. Em suma, Jung caracteriza-se por uma preocupação em refletir sobre a natureza humana, na diversidade e pluralidade de seus aspectos, e formular seus pensamentos de maneira que se articulem ao conhecimento humano em geral, à cultura da época, ao papel da imaginação e também à vida cotidiana. Chama a atenção sua dedicação a buscar diálogo com outras áreas do conhecimento e a contribuir para a ocorrência de encontros significativos.

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Como já explicitado, Reich produziu uma ciência marcada por um estreito vínculo entre teoria e prática. Se seguirmos o percurso desse cientista militante, veremos que o seu sistema conceitual, algo vivo, em constante processo de elaboração, é frequentemente acompanhado por correspondentes propostas de intervenção social. Mencionaremos, como exemplo, duas organizações que contaram com a participação de Reich. Nos anos finais da década de 1920, Reich ajudou a fundar, em Viena, a Associação Socialista para Consulta e Investigação Sexual e, no início dos anos 1930, em Berlim, junto ao Partido Comunista Alemão, criou a Associação Alemã para uma Política Sexual Operária (Sexpol). Tais entidades estão sintonizadas com o momento da trajetória reichiana marcado pela produção de uma articulação teórica entre a psicanálise e o marxismo. Além disso, deve-se também notar que essas duas organizações são conceitualmente ancoradas numa elaboração que vislumbra a possibilidade da ocorrência de algum grau de prevenção de doença mental, o que aponta para uma divergência teórica de fundo em relação à construção freudiana do período. Ainda no campo da prevenção, cabe ressaltar que Reich, ao longo de sua carreira, dedicou-se com regularidade ao domínio educacional, sobretudo à dimensão sexual da formação de crianças e adolescentes. Essa atenção resultou num considerável acervo de textos17, muitos deles intencionalmente escritos com linguagem não técnica a fim de se tornarem acessíveis ao grande público, o que não deixa de ser uma maneira de intervenção social. O investimento preventivo reichiano endereçado à educação, entendida em seu sentido amplo, algo próximo do termo criação, resultou, no ano de 1950, na organização de um projeto denominado Crianças do Futuro, uma atividade de cuidado infantil que incluía medidas a serem tomadas na gestação, parto e primeiros anos de vida da criança (REICH, 1950/1984).

17 Sobre o tema, ver Matthiesen (2003).

Na esfera das intervenções sociais, também merece registro o fato de que boa parte da produção reichiana efetuada a partir dos últimos anos da década de 1930 esteve vinculada ao estudo das características e possíveis usos da energia orgone. Tal período da obra do autor, ainda pouco pesquisado, contém propostas de intervenção

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18 Um acurado levantamento sobre o assunto pode ser consultado em Matthiesen (2007).

19 Sobre o assunto, ver: Câmara (1999), Ramalho (2001) e Albertini et al (2007).

que não se restringem mais ao domínio da medicina ou psicologia, mas passam a abranger, sobretudo, fenômenos do campo da física. Além disso, no que diz respeito ao universo acadêmico nacional, de forma semelhante ao já apontado para o referencial junguiano, deve-se notar a crescente realização de trabalhos de pós-graduação, mestrados e doutorados, dedicados à investigação e discussão do pensamento reichiano18. Por fim, um aspecto geral a comentar sobre as intervenções sociais é o quanto Reich investiu - em diferentes momentos de sua trajetória e de diversas formas - em propostas voltadas para a coletividade e que almejavam promover algum grau de prevenção das doenças mentais. A nosso ver, esse enfoque o aproxima de uma abordagem característica da área de saúde pública19. O registro de nosso diálogo entre as abordagens de Jung e Reich está posto – um trabalhoso, mas também prazeroso, exercício de explicitação sintética de posições e, ao mesmo tempo, abertura para o diferente. Tal empreitada promoveu movimentos de aproximação e afastamento, gerando um campo onde permanecemos inquietos e reflexivos, na busca de rigor conceitual e desdobramentos teórico-práticos.

Resumo: Nosso objetivo é apresentar o exercício que consistiu em identificar movimentos de aproximação e afastamento entre as abordagens teórico-práticas desenvolvidas por Carl Gustav Jung e Wilhelm Reich. No que diz respeito ao método, procuramos contextualizar os conceitos no conjunto da obra de cada autor, assim como respeitar as linguagens específicas. A fim de cumprirmos o objetivo proposto, elegemos três eixos norteadores: aspectos históricos, dimensão teórico-conceitual e formas de intervenção. Quanto ao primeiro, aspectos históricos, focalizamos os contextos de vida e obra dos dois autores, destacando também suas relações com Freud. Em relação à dimensão teórico-conceitual, cotejamos, sobretudo, as noções de ciência, inconsciente, autorregulação, sexualidade, desenvolvimento, saúde e doença.

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Finalmente, a interlocução sobre as formas de intervenção se deu frente às propostas voltadas para o contexto sociocultural, em especial nos campos da clínica, educação, política, religião e arte. Consideramos que este artigo, ensaio de um diálogo respeitoso entre os enfoques de Jung e Reich, pode contribuir para um mundo onde as diferenças, longe de impedirem o contato criativo, sejam vistas como uma valiosa oportunidade para rever e amadurecer posições. Palavras-chave: Carl Gustav Jung (1875-1961), Wilhelm Reich (1897-1957), teorias da personalidade, articulação entre teorias da personalidade.

Abstract: Our aim here is to present the exercise of identifying movements of convergence and divergence in the theoretical and practical approaches developed by Carl Gustav Jung and Wilhelm Reich. As to the method, we attempt to contextualize the concepts considering the whole set of works of each author, as well as to respect their specific languages. In order to achieve our aim, we have elected three main guidelines: the historical aspects, the conceptual and theoretical dimension, and the forms of intervention. As to the first – the historical aspects –, we focus on the contexts of life and work of both authors, also underlining their relations to Freud. As to the second, we compare, mainly, the notions of science, unconsciousness, self-regulation, sexuality, development, health and disease. Finally, the consideration on the forms of intervention takes place by the light of the propositions linked to the social and cultural context, particularly in the fields of clinic work, education, politics, religion and art. We hope that this paper, attempting to produce a respectful dialogue between the perspectives of Jung and Reich, may contribute to a world where the differences, far from preventing a creative contact, can be seen as a good opportunity to review and ripen our positions.

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Keywords: Carl Gustav Jung (1875-1961), Wilhelm Reich (1897-1957), personality theories, linking the personality theories.

Resumen: Nuestro objetivo es presentar un ejercicio que ha consistido en identificar movimientos de acercamiento y alejamiento entre los planteamientos teórico-prácticos desarrollados por Carl Gustav Jung y Wilhelm Reich. Respecto al método, buscamos contextualizar los conceptos en el conjunto de la obra de cada autor, además de observar sus lenguajes específicos. A fin de cumplir el objetivo propuesto, elegimos tres ejes directivos: aspectos históricos, dimensión teóricoconceptual y formas de intervención. En cuanto al primero, aspectos históricos, focalizamos los contextos de vida y obra de ambos autores, destacando también sus relaciones con Freud. En lo que corresponde a la dimensión teórico-conceptual, cotejamos, principalmente, las nociones de ciencia, inconsciente, autorregulación, sexualidad, desarrollo, salud y enfermedad. Finalmente, la interlocución sobre las formas de intervención se hizo a partir de las propuestas asociadas al contexto sociocultural, especialmente en los campos de la clínica, la educación, la política, la religión y del arte. Consideramos que este artículo, ensayo de un diálogo respetuoso entre los enfoques de Jung y Reich, puede contribuir hacia un mundo en que las diferencias, lejos de estorbar el contacto creativo, se vean como una valiosa oportunidad para rever y madurar posiciones. Palabras clave: Carl Gustav Jung (1875-1961), Wilhelm Reich (1897-1957), teorías de la personalidad, articulación entre teorías de la personalidad.

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e-mail: lauvfrei@usp.br; palbertini@usp.br. Recebido em 29/06/2009 Aprovado em 14/10/2009

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ética na pesquisa com crianças

Ana Cristina Garcia Dias Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – RS

Maria Isabel da Silva Leme Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) Professora associada do Instituto de Psicologia da USP (IPUSP)

Silvia Helena Koller Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

introdução Este ensaio visa a trazer algumas reflexões realizadas pelo grupo Pesquisa com crianças no Seminário de Ética nas Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na Saúde, realizado em 2007, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Busca avançar e contribuir para a discussão sobre o tema, a partir da análise de

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documentos já referendados pela comunidade científica, da leitura de artigos científicos e da própria reflexão crítica da prática de pesquisa desenvolvida pelos membros do grupo. A ética em pesquisa com seres humanos é um tema que vem sendo amplamente debatido no contexto científico e acadêmico. As discussões ocorrem em torno de questões e dilemas que emergem do dia a dia, principalmente de investigadores das áreas das Ciências Humanas e Sociais. Observa-se que lidar com pessoas é sempre um tema delicado, sendo que tal condição pode se tornar mais complexa e sensível quando os indivíduos em questão são crianças e adolescentes. De fato, não é apenas a população alvo do estudo que define a complexidade e vulnerabilidade de um estudo - os assuntos tratados também devem ser considerados. Temas delicados em pesquisa têm sido definidos como aqueles que apresentam algum tipo de ameaça aos atores envolvidos no processo de desenvolvimento do estudo. Assim, diferentes cuidados éticos e técnicos devem ser tomados no sentido de proteger e garantir os direitos dos participantes e dos membros da equipe de pesquisa, durante todo o processo de desenvolvimento e divulgação da mesma. Os riscos associados ao desenvolvimento de um estudo envolvem desde os custos psicológicos para os participantes, que podem se sentir tocados por algum aspecto mais sensível suscitado pela pesquisa, até conseqüências físicas e materiais inesperadas, que não estavam inicialmente previstas pelos pesquisadores. Lee e Renzetti (1990) descreveram quatro critérios que influenciam na avaliação do quão sensível um tema de estudo com seres humanos pode ser, para eles: 1) a intromissão na esfera privativa e em experiências íntimas; 2) a abordagem de temas desviantes ou que requerem controle social; 3) os interesses de poderosos ou do exercício de coerção e dominação; e 4) o envolvimento com o que é secreto e sagrado, determinam o quão sensível e delicada pode ser a questão de pesquisa investigada. Na pesquisa com crianças e adolescentes, os pesquisadores devem levar em conta o pressuposto do melhor interesse da criança preconizado oficialmente tanto pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança (OHCHR, 1990) como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca; Brasil, 1990), antes de simplesmente se

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preocuparem com os critérios expostos por Lee e Renzetti (1990). Nesse sentido, a proteção, provisão e participação da criança ou dos adolescentes que possuem direitos de uma vida de qualidade devem ser tomadas em conta quando se realiza uma pesquisa ou qualquer outro trabalho com essa população. Apesar dos documentos oficiais descritos não efetuarem nenhuma menção ou normatização sobre a pesquisa científica realizada com esta população, eles são fundamentais para balizar as pesquisas. Eles preconizam que todo ser humano deve desenvolver uma atitude de proteção integral à criança e ao adolescente. De fato, crianças e adolescentes são cidadãos de direitos, especialmente aqueles considerados fundamentais à condição humana. Assim, o grupo sobre Pesquisa com crianças do Seminário de Ética nas Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na Saúde compreende que a pesquisa deve se desenvolver considerando esses pressupostos que abordam a questão da proteção e promoção do desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social da criança e adolescente, com liberdade e dignidade.

o termo de consentimento livre e esclarecido O consentimento livre e esclarecido é a expressão ou a representação do princípio do respeito à autonomia ou liberdade de escolha dos participantes, preconizado pela Bioética, juntamente com o da justiça e o da beneficiência ou não maleficiência. Tais princípios, derivados da Filosofia Moral, visam a orientar a conduta dos pesquisadores, no sentido de proteger os direitos dos participantes da pesquisa, nem sempre respeitados no passado, como mostra o trabalho de Neiva-Silva, Lisboa, & Koller (2005), realizando uma análise histórica desta questão. A exigência do uso de um termo de consentimento livre e esclarecido em pesquisas com seres humanos é explicitamente recomendada na Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, e também na Resolução n. 016/200 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). A inclusão da perspectiva psicológica na análise da Ética de pesquisa com crianças e adolescentes se justifica em função desta ser uma disciplina que realiza extensiva pesquisa com par-

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ticipantes nesta faixa etária. Além disto, Psicologia é uma área de conhecimento que particularmente aponta para a complexidade do fenômeno humano, uma vez que está locada junto a disciplinas da área de Saúde e de Ciências Humanas. Neste sentido, a Psicologia pode contribuir para a discussão acerca do tema da ética ao trazer uma perspectiva mais multifacetada do que outras disciplinas de domínio mais específico.

concordância seja assinado pelos dirigentes para que os pesquisadores tenham acesso às dependências e aos freqüentadores das mesmas. Finalmente, se não for possível obter o consentimento, ou mesmo, for necessário restringir essas informações iniciais aos participantes em função do mérito da pesquisa, os pesquisadores devem informar e justificar estas impossibilidades ao Comitê de Ética ao qual submeteu o projeto.

As recomendações feitas na Resolução n. 196/96 a respeito da aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido consistem em apresentar o mais completamente possível aos participantes os objetivos do estudo, justificativa, procedimentos a serem utilizados, bem como as decorrências destes em termos de desconforto, riscos e benefícios. Também deve ser especificada no termo a existência de métodos alternativos, de acompanhamento e assistência. Outros esclarecimentos a serem prestados no termo são: a pertinência dos participantes ao grupo experimental ou de controle; a liberdade para abandonar o estudo a qualquer momento; garantia de sigilo; formas de ressarcimento de despesas decorrentes da participação; e mesmo indenização no caso de eventuais danos ocasionados pela pesquisa. Para ser considerado válido, o termo deve ser elaborado pelos pesquisadores, aprovado pelo Comitê de Ética ao qual foi submetido o projeto, assinado ou identificado pela digital dos participantes ou de seu representante legal, devendo uma via permanecer em seu poder e a outra com o responsável pela pesquisa.

O Conselho Federal de Psicologia recomenda que o termo garanta, de maneira clara, o caráter voluntário da participação. Além disso, as informações prestadas aos participantes devem ser compreensíveis, abrangendo objetivos, procedimentos, possíveis conseqüências do estudo (riscos e benefícios), cuidados quanto à confidencialidade, guarda dos materiais, a fim de que estes possam, uma vez de posse destas informações, decidir acerca da participação ou não no estudo. É recomendado, da mesma forma pela Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que o termo seja assinado pelos representantes legais daqueles incapacitados pela lei, por condições cognitivas ou emocionais, bem como de crianças e adolescentes. A estes últimos, mesmo que autorizados pelos pais ou responsáveis, devem ser prestadas todas as informações relevantes sobre a pesquisa, sendo garantido o caráter voluntário da sua participação.

No caso de crianças e adolescentes ou de participantes que não estiverem em plena capacidade de decisão, sua participação na pesquisa deve ser justificada e o consentimento formal deve ser dado pelos seus representantes legais. No caso de participantes diferenciados pela natureza da gestão de autoridade na instituição em que é realizada a pesquisa, como por exemplo, exército, escolas ou outros, o direito à participação voluntária deve ser especialmente enfatizado. Além disso, em comunidades diferenciadas pela gestão de várias instâncias, como as indígenas, a anuência dos líderes da comunidade deve ser obtida antecipadamente e, se possível, o consentimento individual dos membros deve ser solicitado. Para participantes que estão abrigados ou sob a tutela, ainda que não legal de alguma instituição, é necessário que um termo de

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A Resolução n. 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia apresenta diferenças em relação à Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, pois especifica as situações em que os pesquisadores da Psicologia estarão desobrigados de obter o consentimento informado. A Resolução n. 016/2000 considera que o termo pode ser dispensado em situações em que não há risco de violar a privacidade, nem causar constrangimento aos participantes, como observações naturalísticas em locais públicos, pesquisas em fontes secundárias, a exemplo de bancos de dados, re-análise de dados já coletados, e outras situações similares. Contudo, especifica que o Comitê de Ética ao qual foi submetido o projeto de pesquisa deve analisar e determinar a necessidade de utilização de um termo de consentimento livre e esclarecido ou não nestas situações. Estas especificações abordadas na Resolução 016/2000 do CFP valem ser mencionadas, pois como se verá a seguir, a pesquisa

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em Psicologia aborda uma série de peculiaridades, tais como os processos psicológicos de atribuição de sentido e a dinâmica das relações sociais, que envolvem as atividades de pesquisa. Assim, considera-se que refletir sobre como as informações são fornecidas ou não pelos pesquisadores aos pesquisados pode interferir no comportamento dos mesmos, e mesmo nos resultados da pesquisa. Essa reflexão é particularmente pertinente no que se refere à aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido. As questões envolvidas na obrigatoriedade da obtenção do termo de consentimento livre e esclarecido por escrito foram retomadas e discutidas de modo explícito no relatório da Reunião sobre Ética em Pesquisa Qualitativa em Saúde, realizada no Guarujá/SP, em agosto de 2006, em função de implicações mencionadas. A forma de obtenção por escrito é discutida na especificidade das situações de pesquisa de campo, uma vez que estas são consideradas como muito variáveis, em função do caráter dinâmico envolvido no desenvolvimento desses estudos. Lembra-se que tanto a complexidade como a dinâmica das pesquisas de campo podem impossibilitar a antecipação e, portanto, informação prévia de todas as condições e procedimentos possíveis de serem levado a cabo nessa espécie de estudo. Além disso, as variações em características sociais, econômicas e culturais peculiares a um dado grupo necessitam ser consideradas pelos pesquisadores no decorrer da pesquisa. A aplicação prévia do termo pode ser desnecessária, ou mesmo contraproducente, pois formaliza uma relação de pesquisa que deve se dar de modo espontâneo e suscitar confiança mútua entre pesquisadores e pesquisados. Para populações com menor escolaridade este pode inclusive representar uma ameaça, no sentido de que o entendimento do teor do documento nem sempre é fácil. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido escrito pode concretizar, de certa forma, as relações de poder culturalmente presentes na sociedade entre aqueles que possuem um bom nível de escolaridade e aqueles que não o possuem. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido escrito pode despertar sentimentos de vulnerabilidade e mesmo desvalia nos participantes, tendo em vista o que pode representar a assinatura de um documento para uma pessoa que não se encontra muito familiarizada com a escrita.

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Por outro lado, se a garantia de respeito aos participantes se traduz apenas na aplicação do termo, que acaba, por vezes, se constituindo em uma mera formalidade para os pesquisadores, a sua importância torna-se algo relativo. O relatório de Guarujá considera que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deve expressar a capacidade dos pesquisadores se comunicarem de modo claro e efetivo com os participantes. Tal comunicação é parte integrante do processo de pesquisa, uma vez que explicita as intenções e diretrizes da pesquisa qualitativa e sua dinâmica processual. Considerase, portanto, que a comunicação no que se refere ao esclarecimento e consentimento de participação pode assumir diferentes configurações. Pode ser feita de forma oral, de maneira processual pela qual se busca gradualmente verificar a compreensão e esclarecer os participantes, ou mesmo pode ser realizada em um momento posterior à coleta, se o objetivo for evitar alterar os dados a serem coletados (debriefing). Considera-se que é importante a garantia do caráter voluntário de participação, pois não deve haver qualquer forma de dominação, decorrente de informações pouco acessíveis, omissão de dados relevantes à decisão de participação ou não, ou mesmo por serem os participantes beneficiários de algum tipo de serviço na instituição em que se está desenvolvendo o estudo, e temem perdê-lo se não aderirem à pesquisa. No caso de assinatura do termo pelos responsáveis pelas crianças, adolescentes ou pessoas relativamente incapazes, outras considerações devem ser feitas. Algumas situações especiais suscitam reflexão: como proceder com aquelas crianças e adolescentes sem responsáveis, a exemplo das crianças em situação de rua? Ou ainda, como trabalhar com sujeitos coletivos, como no caso das Organizações Não Governamentais (ONGs)? Como desenvolver pesquisas que tratem de temas sensíveis, como por exemplo, casos de violência e abuso contra as crianças, sendo que os perpetradores desses abusos podem ser os responsáveis e esses não desejam revelar essa situação? O grupo considera que é mais importante a garantia de um compromisso ético dos pesquisadores com os possíveis participantes do estudo, do que o cumprimento apenas formal de um documento escrito e assinado, que nem sempre respeita efetivamente os direitos dos participantes.

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Muitas considerações são extremamente pertinentes quando tomada a situação de crianças e adolescentes, que consistem em uma população especialmente vulnerável a situações como as mencionadas. Desta forma, após uma ampla discussão, o grupo Pesquisa com crianças tece algumas considerações. A assinatura do termo apenas pelo responsável pelas crianças ou adolescentes pode não representar o esclarecimento destes indivíduos, nem o desejo real dos mesmos em participar do estudo. Por isso, o grupo considera essencial que os pesquisadores informem às crianças e aos adolescentes os objetivos e procedimentos do estudo, solicitando explicitamente o assentimento dado pelos próprios participantes antes da realização da coleta de dados. Estas medidas visam a garantir a autonomia e o caráter voluntário da participação, para que esta não seja fruto de pressões familiares, ou da possível coação de qualquer outra figura de autoridade, como pode ocorrer em instituições como escolas, abrigos, etc. O grupo considera que é importante ainda que os pesquisadores procurem verificar junto aos participantes a compreensão que os mesmos possuem das condições de pesquisa e dos direitos que lhe são assegurados. Observa-se que alguns aspectos fundamentais do processo de pesquisa, tais como os objetivos, o desenvolvimento de alguns tipos de procedimentos aos quais os indivíduos serão submetidos, o direito à confidencialidade e o direito de desistência de participação a qualquer momento podem não ser bem compreendidos por crianças, principalmente antes dos dez anos. Mesmo em faixas superiores a esta, a compreensão dos direitos à confidencialidade só é plenamente garantida depois do esclarecimento pósexperimental (debriefing). Esse procedimento, que visa a minimizar a incompreensão dos participantes acerca dos objetivos e procedimentos do estudo, parece apresentar uma correlação positiva com a idade. Observa-se que uma parcela significativa de crianças mais jovens não obtém os mesmos benefícios do debriefing que as crianças mais velhas (HURLEY & UNDERWOOD, 2002). Nesse sentido, considera-se que é possível que não seja muito claro para crianças o que seja o direito à confidencialidade, pois elas não usufruem da privacidade, da mesma forma que adultos. Percebe-se que tanto os pais como a escola, além de profissionais de saúde, se comunicam

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rotineiramente, trocando informações a respeito das crianças, sem pedir seu consentimento, ou mesmo se dirigindo a elas próprias. Esta ausência de experiência e desconhecimento do que seja garantia de sigilo pode inclusive influenciar sobre os resultados obtidos, levando, por exemplo, as crianças a omitirem informações, ou mesmo responderem de acordo com o que consideram que seria desejável. Outra intercessão sobre os resultados do estudo pode ser ocasionada pela forma como ocorre a aplicação do termo de consentimento, principalmente em instituições como as escolas. Nessas instituições observa-se frequentemente que os termos são distribuídos em dias anteriores à coleta de dados, sendo solicitado às crianças ou adolescentes que comuniquem aos pais sobre a pesquisa, e se encarreguem de trazê-los assinados por estes. No caso dos participantes que não trazem o termo assinado pelos responsáveis na ocasião da coleta de dados, algumas questões importantes se colocam que necessitam ser revisadas. Essas crianças, em geral, não participam da pesquisa, devido à ausência do termo assinado. Essa situação pode gerar um constrangimento para elas, assim como para os pesquisadores, uma vez que, muitas vezes, há interesse e motivação para participar do estudo. Contudo o desejo de participação é cerceado devido a não autorização dos responsáveis. Outro aspecto a ser considerado são as crianças que esquecem o termo e podem se constituir em um grupo especial, ou seja, essas podem apresentar características peculiares que as distinguem das demais da amostra. Desta forma a sua não participação pode provocar um viés nos resultados, como por exemplo, diferenças em habilidade social entre crianças que trazem ou não o termo de consentimento assinado por seus pais, segundo colegas e professores (NOLL, ZELLER, VAMATA BUKOWSKI e DAVIES, 1997). Vale lembrar que Rosenthal (1970) alertou que existem riscos de interferência de variáveis não previstas na composição de uma amostra. Relata resultados de investigações que mostram que participantes que se apresentam como voluntários para uma pesquisa podem diferir, em diversos aspectos, daqueles que declinam de participar nos estudos. Observa, ainda, que maior necessidade de aprovação social, maior sociabilidade e menor conformismo podem ser algu-

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mas das características especialmente distintivas de participantes voluntários quando comparados a não voluntários. A motivação em participar de um estudo também pode se constituir em uma outra variável importante. Aqueles que se prontificam a participar de um estudo, em geral, o fazem em pesquisas que abordam aspectos de sua vida, ou que investigam características pessoais, nas quais há uma boa probabilidade de passar uma imagem favorável de si mesmo para os pesquisadores. Verifica-se aí uma das peculiaridades da pesquisa psicológica e das possíveis implicações que as informações sobre os objetivos do estudo, contidas no termo de consentimento, podem trazer para os seus resultados. Tal situação não é fruto apenas das informações prestadas no termo, que determinam a adesão ou não a participação no estudo. Guardadas as devidas proporções, pois os dados citados por Rosenthal (1970) referem-se a jovens adultos universitários e não às crianças, é provável que aqueles que lembram de levar o termo de consentimento livre e esclarecido solicitado para os responsáveis assinarem e o trazem de volta à escola em tempo hábil, podem diferir daqueles que o esquecem. É razoável supor que tais diferenças ocorram em função de variáveis como cooperação, desejabilidade social, interesse pela escola, entre outras. Essas diferenças podem ocorrer quando os pesquisadores esclarecem que, apesar do consentimento dos pais, as crianças são livres para decidirem se desejam participar ou não. Uma forma de minimizar essas possíveis situações pode ser o desenvolvimento de estudos naturalísticos. Nestes casos, não há necessidade de prestar informação sobre os objetivos da pesquisa. Contudo a dispensa do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido só ocorre quando o Comitê de Ética entende que os ganhos da coletividade em termos do conhecimento a ser adquirido é significativo, e a pesquisa não fere os princípios elementares da ética, beneficência, não maleficência, privacidade, entre outros. Este último aspecto citado deve ser mais bem analisado. Alguns pesquisadores naturalizam esta prática de não informar aos participantes sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa, pois consideram que o simples fato de estar realizando uma investigação científica é meritório por si mesmo. Para eles, isso justificaria em última análise privar os participantes de informações, prescindir de

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seu consentimento, não prever riscos/benefícios, ou mesmo não informar questões envolvidas na proteção dos participantes. Em geral, tal concepção de investigação, e mesmo de ciência, está tanto associada a uma formação científica deficitária como a objetivos de pesquisa muito ambiciosos (ROSENTHAL, 1995). Cabe aos orientadores, pesquisadores ou mesmo aos Comitês de Pesquisa e de Ética desenvolverem uma análise cuidadosa sobre a utilidade do estudo, ou seja, avaliarem os custos e benefícios envolvidos no desenvolvimento da pesquisa em questão. Custos referem-se ao nível de proteção dado aos participantes e benefícios aos avanços potenciais envolvidos naquela investigação. Se os avanços são julgados triviais pelos especialistas, aumentam os riscos ou outros custos, mesmo que pequenos, e a pesquisa deve ser repensada ou até abandonada (ROSENTHAL, 1995). Decorre ainda destas considerações, contemplar a formação de futuros pesquisadores não só do ponto de vista dos conhecimentos científicos, mas também a reflexão sobre a ética na prática de pesquisa, enfatizando a relevância da adesão a princípios abrangentes e não regras apenas. A limitação destas últimas a situações específicas tira a autonomia dos pesquisadores quando as circunstâncias encontram-se mudadas e não mais se aplicam. Já os princípios, se assumidos como compromisso ou dever, guiarão a conduta mesmo em situações diferentes daquelas previstas inicialmente, por ocasião do planejamento da pesquisa.

Resumo: O artigo discute questões éticas envolvidas na pesquisa psicológica com crianças, focalizando mais detidamente a obtenção do termo de consentimento livre e esclarecido em vista das especificidades desta população. Nesta perspectiva, são analisados os cuidados para a obtenção da autorização dos responsáveis e discutidos os limites impostos ao pesquisador nesta tarefa. Também são analisadas discussões anteriores sobre a autorização dos responsáveis, diferenças nas recomendações preconizadas por diferentes

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entidades e implicações para a pesquisa decorrentes da aplicação do termo.

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Abstract: This essay discusses ethical issues involved in doing research with children, focusing more closely informed consent, due to the specificities of this population. In this perspective, we analyze some precautions to obtain parent’s consent, discussing at the same time some restrictions imposed to the researcher at the task. We also analyze past discussions about informed consent, differences in the recommendations about it made by different comities and implications for research resulting from obtaining consent. Keywords: Ethics, research, children, informed consent.

Resumen: Este artículo analiza las cuestiones éticas implicadas en la investigación psicológica con niños, centrándose principalmente en la obtención del consentimiento informado de los responsables, teniendo en cuenta las especificidades de la población. Desde esta perspectiva, son analizados los cuidados necesarios para la obtención de la autorización de los responsables y son discutidos los límites impuestos al investigador en esta tarea. También son analizadas las discusiones anteriores sobre esta autorización de los representantes, las diferencias entre las recomendaciones prepuestas por diferentes entidades y sus implicaciones para las investigaciones que utilizan estas autorizaciones.

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Palabras-clave: ética; investigación; niños; autorización, consentimiento informado.

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e-mail: cristcris@hotmail.com; belleme@usp.br; silvia.koller@pq.cnpq.br, silvia.koller@gmail.com.

Recebido em 12 /12/2008 Aprovado em 17/02/2009

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orientação editorial e normas para publicação

I - linha editorial A proposta editorial da revista Imaginário parte do reconhecimento da importância, cada vez maior, da interdisciplinaridade na produção de conhecimento contemporâneo. A apreensão das tramas sócio-culturais que fazem a complexidade atual pede uma outra abordagem capaz de construir e transmitir o conhecimento, conciliando ciência, política, ética e estética. A revista Imaginário tem como intenção propiciar o diálogo entre disciplinas, tais como, Antropologia, Geografia, História, Letras, Psicologia, Sociologia, Terapia Ocupacional, Direito, entre outras e, ao mesmo tempo, incorporar a contribuição das artes para o debate interdisciplinar. Como resposta a este propósito de abrigar a interdisciplinaridade publica artigos, ensaios, relatos de pesquisa, relatos de experiência, resenhas e expressões artísticas em imagens ou textos, articulados em números temáticos. Todos os textos apresentados à revista devem ser originais. II - normas para publicação A apresentação dos manuscritos deve seguir as recomendações abaixo citadas. A revista Imaginário tem como base, para apresentação das citações no texto e referências bibliográficas, norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, da seguinte forma: (a) para as citações no texto e notas de rodapé a NBR 10520, (b) para a elaboração de referências bibliográficas a NBR 6023/2002 e (c) para as abreviaturas deve seguir a NBR 10522. apresentação gráfica / endereço para entrega Os textos originais deverão ser encaminhados em uma (1) via digitada em espaço 1,5, fonte times new roman, tamanho 12, máximo de 25 páginas, e uma via em disquete ou CD-rom (word 6.0 ou Rich Text Format) para o seguinte endereço:

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orientação editorial e normas para publicação

Instituto de Psicologia - USP

referências bibliográficas

Laboratório de Estudos do Imaginário – LABI

As referências bibliográficas, com todas e apenas as obras citadas no texto, devem constar ao final do trabalho, seguindo as normas da ABNT (NBR 6023/2002). Exemplos:

Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco G, Sala 19 E CEP 05508-030 – Cidade Universitária – São Paulo – SP os manuscritos devem apresentar a seguinte ordem: •

Folha de rosto:

• Título em português, inglês e espanhol

• Título abreviado para cabeçalho

• Nome de cada um dos autores, seguido por afiliação institucional de cada um. • Endereço completo do(s) autor(es) para correspondên cia, incluin- do CEP, telefone, fax e e-mail. • O texto inteiro deve ser digitado em uma única fonte (Times New Roman).

• Não utilizar sublinhado ou itálico para títulos e seções.

• Não utilizar caixa alta (todas as letras em maiúscula) para títulos, seções e ênfases. • Para dar ênfase ou destaque utilize o itálico, nunca sublinhado ou negrito.

BRAIT, B. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, D. L. P. & FIORIN, J. L. (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999. p. 11-27. citações Devem aparecer no corpo do texto, conforme normas da ABNT (NBR 10520): • Citações com até 3 linhas, no corpo do texto, entre aspas, seguidas pela referência, sobrenome do autor, data, página, entre parênteses. Ex.1: (SOUZA, 2004, p.37), quando o autor não faz parte do texto. Ex.2: Souza (2004, p.37) ensina..., quando o autor fizer parte do texto. • Citações com mais de 3 linhas, em novo parágrafo com recuo de 4 cm, espaço simples, tamanho de letra um ponto menor, sem itálico, seguidas pela referência, sobrenome do autor, data, página, entre parênteses. Usar o sobrenome do autor em caixa alta, somente no final de citações que estiverem entre aspas e dentro de parênteses, o que equivale dizer que no texto, quando aparecer citações de autores, devem ser escritos somente com iniciais maiúsculas.

• Assinalar o parágrafo com um único toque de tabulação.

• As notas de rodapé devem ser indicadas por algarismos arábicos e listadas ao final do texto, com o título de “Notas”. resumo/palavras-chave e abstract/key words Os artigos devem ser acompanhados de resumo de no mínimo 100 palavras e no máximo 200 palavras, em português, inglês (abstract) e espanhol (resumen), palavras-chave em português, inglês (key words) e espanhol (palabras-clave), até o máximo de 5 palavras-chave. O resumo deverá informar o objetivo, o método de análise, o referencial teórico e a conclusão.

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VESCHI, J. L. Nas espumas do tempo. Rio de Janeiro: Butiá, 1996.

Ex.: Conforme Souza (2004), ...

• Empregar itálico somente para títulos de obras. • Informações obtidas na internet, cita-se o endereço eletrônico em que foi feita a pesquisa, de preferência entre parênteses após a informação. Exemplo: (www.ip.usp.br/laboratorios/labi).

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orientação editorial e normas para publicação

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ilustrações/Gráficos/Fotografias/Desenhos

IV – direitos autorais e responsabilidade

Só serão publicadas imagens em preto e branco. Com título conciso e/ou legenda. Devem ser mencionados os pontos exatos de suas apresentações. Seus arquivos originais devem ser enviados separadamente. As fotografias devem oferecer boa resolução. No caso de utilização de imagens de terceiros, o autor deverá providenciar com o detentor dos diretos sua respectiva autorização de uso.

O direito autoral dos artigos publicados não está sendo cedido à Revista Imaginário, e, portanto, pertence aos seus autores. Caso esses artigos venham a ser publicados em outros veículos, recomenda-se que a primeira publicação no Imaginário seja mencionada.

alterações A comissão editorial se reserva o direito de introduzir correções gramaticais e de erros de digitação com o objetivo de manter a homogeneidade e a qualidade da publicação, mantendo o estilo e as idéias do(s) autor(es).

III – apreciação dos manuscritos para publicação

A Revista não se responsabiliza pelo conteúdo dos artigos, assumindo o autor total responsabilidade quanto à propriedade intelectual e pelas informações veiculadas nos mesmos.

V – pedidos avulsos de exemplares da revista

Para solicitar exemplar da revista Imaginário, entrar em contato via telefone ou e-mail. Os telefones de contato são: (11) 3091-4175 (PSA - Tratar com Maria Luisa Schmidt ou Tatiana F. S. Neves). E-mail: labi@usp.br, maluschmidt@ terra.com.br ou taneves@usp.br.

Os manuscritos e imagens recebidos pela revista serão apreciados por pesquisadores qualificados e submetidos a aprovação do Conselho Editorial. Caso seja necessário, os originais serão enviados a consultores ad hoc. Caso os textos enviados não estejam de acordo com as normas para publicação, estes não serão aceitos pela Revista. Os relatores de parecer não terão conhecimento da identidade dos autores ou de sua afiliação institucional, assim como os autores não terão informações a respeito da identidade dos relatores. Os autores serão avisados sobre a aceitação, necessidade de modificações ou recusa do original. O Conselho Editorial informará os autores o mais rápido possível sobre o parecer final e possível data de publicação. Os originais e as cópias dos trabalhos enviados não serão devolvidos. Por esse motivo, recomenda-se aos autores guardar cópias de seus textos. Todos os autores receberão exemplar do número da revista em que seu artigo foi publicado.

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edições anteriores revista imaginário revista Imaginário nº 16 - arte e imaginário Pina Bausch e Ítalo Calvino: uma cartografia do imaginário Solange Pimentel Caldeira O cinema de ficção científica e a questão do imaginário social Alice Fátima Martins A improvável mistura: Nietzsche, Fedorov, misticismo e ciência na formação do imaginário das vanguardas russas/soviéticas Jair Diniz Miguel Mídia indígena: contrato faustiano ou vila global? Naor Elimelech O meu lugar no mundo Paride Bollettin Sobre a arte e a música na Recherche Bernardete Oliveira Marantes Graffiti: cores desejantes de uma micropolítica Gesianni Amaral Gonçalves Em torno do olhar. Psicanálise e crítica de arte Gustavo Henrique Dionisio Coisa de homens: relatos de uma intervenção fílmica sobre menopausa no centro de São Paulo Rafael Tadashi Miyashiro Belkis Trench Homens idosos avôs: significado dos netos para o cotidiano Aline da Silva Pedrosa Ruth Gelehrter da Costa Lopes

revista Imaginário nº 15 - arte e imaginário ensaio Theatrum Mundi: filosofia e canção Olgária Matos artigos originais Os tambores e as flechas de São Sebastião do Rio de Janeiro João Batista Ferreira de Mello

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edições anteriores - revista imaginário

Xilocidade: memória urbana gravada Manoela dos Anjos Afonso Memória da casa como memória da infância Marandulina Maria Moreira Azevedo “O barco silvestre”: as múltiplas viagens de Richard A. Bermann Helga Dressel Freud, Proust e Benjamin: aproximações Alessandra Affortunati Martins Parente Lezama, a imagem e o imaginário Christoph Singler A confusão dos sofrimentos (A poesia de Silvia Plath e a tensão entre a provação histórica e individual) Alcebiades Diniz Miguel

O deslocamento das cidades, uma tradição hispano-americana? O caso de Parangaricutiro (México, 1944) Alain Musset A integração dos imigrantes italianos à política sul-rio-grandense na ex-colônia Silveira Martins Jérri Roberto Marin Regiões culturais no Rio Grande do Sul: estudo comparativo Ilva Maria Boniatti O território do sujeito contemporâneo e a máquina do mundo (50 anos de Eros e Civilização) Ricardo Toledo Neder Cadernos de fotografias: “Entre olhares” Maria de Lourdes Beldi de Alcântara

Carmen Miranda, Zé Carioca e manuais escolares Walnice Nogueira Galvão

Por que eu gosto de morangos ? Regina Toledo Sader

Um corpo que cai Claudia Renault

Retrato do fim do século: homem, terra e trabalho em Nova Ponte/MG e a problemática dos deslocamentos Vicente de Paulo da Silva

Medéia: tão distante e tão próxima Sonia Regina Vargas Mansano O trabalho com arte, o fazer psicológico e o compromisso social Christina Cupertino Claudio de Rezende Barbosa Gustavo Faleck Quem tem medo do Lobo Mau? Depressão, arte e envelhecimento Gabriela Serejo Martins da Silva A encruzilhada de Narciso: encontrar a própria imagem e morrer de amor Francisco R. de Farias

revista Imaginário nº 14 - deslocamentos As estações de um autor: o work in progress de João Almino João Cezar de Castro Rocha Mauschwitz: deslocamentos imaginários Suely Aires Pontes Freud e Nietzsche : tragicidade e poesia Ana Maria Loffredo Os textos literários sobre Eva Perón. Apropriações, representações e deslocamentos do imaginário popular Nidia Burgos Primeira impressão: o Rio de Janeiro visto por quem a ele chegou de navio Zoy Anastassakis

Estudantes moçambicanos no Rio de Janeiro, Brasil: sociabilidade e redes sociais Carlos Subuhana A escolarização dos jovens migrantes brasileiros: problemas e perspectivas Gláucia de Oliveira Assis / Natália Cristina Ihá Mulheres transnacionais Loreley Garcia A integração de imigrantes brasileiras em Roma: conquistas e dificuldades Isabela Cabral Félix de Sousa Projeto migratório feminino: motivações e sofrimentos entre sonho e realidade Laísa Fernandes Tossin / Terezinha Lúcia Santín Memórias de pesquisa: a experiência de uma psicóloga no interior de uma prisão feminina Rosalice Lopes O interjogo consciente-inconsciente Ione Aparecida Xavier Eros invicto combatente Ana Maria Portugal Rabiscando para ser: do si mesmo para o papel Beatriz Pinheiro Machado Mazzolini Pacientes oncológicos: um olhar sobre as dificuldades vivenciadas pelos familiares cuidadores Flávia Sordi Volpato / Gilcinéia Rose S. dos Santos

Permanências e mudanças no imaginário francês sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII) Carmen Licia Palazzo

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revista imaginário n° 13 - deslocamentos As imagens do deslocamento nos espaços e os espaços para o deslocamento nas imagens André Mendes

Cultura festiva. Lo imaginário disloca Io cotídiano Enrique Carretero Pasín

100% negro, camisetas, insígnias e utopias sociais Luiz C. Borges

RESENHA - Expropriados terra e água: o conflito de Itaipu - Guiomar Inez Germani, por Ely Souza Estrela

Música rap: narrativa dos jovens da periferia de Teresina - PI António Leandro da Silva

revista imaginário n° 12 - juventude

Os automóveis e seus donos Renato da Silva Queiroz

Infância, Juventude e vivências nas ruas: entre o imaginário da instituição e do direito Ana Paula Serrata Malfitano / Rubens de Camargo Ferreira

Ensaios sobre o desemprego: qualidades de um “novo” trabalhador? Tatiana Freitas Stockler das Neves Uma inserção dos migrantes nordestinos em São Paulo: o comércio de retalhos Sueli de Castro Gomes Os deslocamentos entre o imaginário do trabalho e do lazer na poesia de Chico Buarque de Hollanda - O lado contrário da vida, o lado contrário da dor Eloiza da Silva Gomes de Oliveira / Jonaedson Carino O romance em Angola: ficção e história em Pepetela Giselle Larízzatti Agazzi Representação do imaginário no conto oral: uma leitura dos contos coletados no Vale do Juruá José Júlio César de Araújo / Jordeanes Araújo O imaginário nos conflitos sociais: sagrado versus profano Claricia Otto El culto de Santiago entre Ias comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nueva realidad espiritual Anna Sulai Capponi Deslocamentos - uma proposta de integração por meio da arte Marie Ange Bordas Corpo e imagem: excessos em deslocamento Ana Lúcia Mandelli de Marsillac / Edson Luiz André de Sousa Imaginário e deslocamentos nas representações de brincadeiras Renata Sieiro Fernandes Poesia infantil contemporânea: dimensão linguística e imaginário infantil Maurício Silva O hospício e a cidade: novas possibilidades de circulação do louco Audrey Rossi Weyler O caminho do doente mental entre a internação e a convivência social Mariana Moraes Salles / Sônia Barros Pratique à plusieurs: relato de uma experiência na instituição belga Lê Courtil Kelly Cristina Brandão da Silva

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Expressões latinas e a constituição do imaginário em “O barril de Amontillado” Evandro Lisboa Freire

Transgressão e Juventude Encarcerada: outras versões a partir do Plantão Psicológico em unidades de internação da FEBEM/SP Heloisa Antonelli Aun / Henriette Tognetti Penha Morato / Natalia Felix de Carvalho Noguchi / André Prado Nunes Projeto de vida de adolescentes de escolas públicas: um estudo psicossocial sobre suas representações Ivany Pinto Nascimento O jovem e o mundo do trabalho: consultas terapêuticas e orientação profissional Yvette Pina Lehman / Maria da Conceição Coropos Uvaldo / Fabiano Fonseca da Silva Retrato de deficiente na escrita do jovem: o imaginário que desfoca sua face Cláudia Alaminos / Claudia Rosa Riolfi Um minuto de grito, um lugar de paz: mulheres jovens e o direito à palavra Samantha Freitas Stockler das Neves Jovens pobres na favela: múltipla escolha para quê se no final nada dá em nada? Maria Inês Caetano Ferreira Alice no país do espelho: O MUD - jogo e realidade virtual baseada em texto Ivelise Fortim Cooperjovens: uma experiência juvenil de cooperativismo solidário na região sisaleira da Bahia Jailton do Espírito Santo / Joseane Souza Silva / Tatiana Ribeiro Velloso / Emanoel José Mendonça Sobrinho Juventude: apostando no presente Maria Cristina Rocha Cultura hip hop: um lugar psíquico para a juventude negro-descendente das periferias de São Paulo Guilherme Scandiucci O movimento hip hop: a anticordialidade da República dos Manos e a estética da violência Rafael Lopes de Sousa PARTE II Anequara: desenhos de um lugar na Amazônia Magali Franco Bueno

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Construindo o “nós”: o trabalho de uma equipe - na Reserva Indígena de Dourados - MS por uma antropologia das negociações culturais M. Sc Simone Anselmo Girão / Mercolis Alexandre Ernandes A percepção do tempo/memória entre os jovens indígenas da Reserva de Dourados Maria de Lourdes Beldi de Alcântara PARTE III Gestão de identidades de marca Maurício Trindade da Silva Experiência poética na alquimia do fetiche: deslocando sensualidade e transcendência no poema Beleza de Charles Simic Stephan Arnulf Baumgãrtel Lineamientos para una aproximación al imaginário social Angel Enrique Carretero Pasín Hibridismo religioso na literatura brasileira Walnice Nogueira Galvão La intransigência católica mexicana al acecho de los médios de comunicación Renée de Ia Torre

revista imaginário n° 11 - juventude PARTE I Construção histórica da noção de adolescência e sua redefinição na clinica psicanalítica Eliane Rivero Jover/Maria Lúcia Tiellet Nunes Adolescência: do mito coletivo ao mito individual Gislene Jardim Identidade e violência: a política de juventude em Ijebu-Remo, Nigéria Insa Noite Violência e adolescência: uma experiência com adolescentes internos da FEBEM/SP Gabriela Balaguer O que os jovens têm a dizer sobre as altas taxas de mortalidade na adolescência? Cláudia Fernanda Rodriguez/Maria Julia Kovács Acompanhamento psicológico individual na FEBEM/SP: um convite a cuidar de si Henriette T. P. Morato / Lucas S. de Carvalho / Maria Gertrudes V. Eisenlohr / Natália F. C. Noguchi / Sáshenka M. Mosqueira Consórcio Social da Juventude de São Paulo: tecendo considerações sobre as escolhas e as perspectivas de inserção no mundo do trabalho das juventudes António José Rollas de Brito Participación ciudadana y exclusión juvenil: crítica práctica y alternativas políticas para construir una democracia radical José Miguel Abad

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Construindo a Educomunicação: relatos de experiências do Projeto Educom.rádio Alessandra Campos /l zabel Leão /Lara Deppe / Nina Nazario Ouvir e contar histórias Maria Alice Oliva de Oliveira Juventude, música e ancestralidade na comunidade jongueira do Tamandaré Guaratinguetá/SP Carolina dos Santos Bezerra Perez Culturas juvenis na FEBEM Rosane de L. S. Vianna PARTE II Ensaio visual Paula Morgado Jovens do bairro da Pedra do Papagaio: notas sobre uma oficina de fotografia Projeto Casa Rosa Talita Vecchia/Denise Dias Barras / Miki Sato PARTE III Sartre e a questão do preconceito Maria Luisa Sandoval Schmidt RESENHA - Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (Franklin Leopoldo e Silva) - Qual o território do sujeito contemporâneo? por Ricardo T. Neder

revista Imaginário n° 10 - áfricas Poemas de Ruy Duarte de Carvalho: um homem dos desertos Kelly Araújo Academia Africana de Línguas - ACALAN Adama Samassekou A língua portuguesa em Angola - língua materna versus língua madrasta José Eduardo Agualusa Algumas reflexões sobre o legado brasileiro no Daomé Elisée Soumonni Os Akan-Agni Morofoé da Costa do Marfim (África do Oeste) frente à emergência e à disseminação do hiv/aids Acácio Sidinei Almeida Santos Medicina negro-africana: institucionalidade, saberes e sentidos do adoecer e da loucura na África do Oeste e no Mali Denise Dias Barros Minha gente, minha terra: as atribuições sociais da emigrante em Cabo Verde lolanda Maria Alves Évora

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PARTE II A arte contemporânea e o Benin André Jolly (os artistas: Georges Adeagbo, Romuald Hazoumé, Dominique Zinkpè, Gérard Quenum, Tchif, Aston, Edwige Akplogan). Arte na vanguarda - arte contemporânea africana: o mito do referente cultural Edwige A. Aplogan Fotografia na África André Jolly PARTE III O cavaleiro e sua estrela Sylvia Leser A casa como poesia Elaine Pedreira Rabinovich Práticas da escritura de campo: os cadernos de Roger Bastide Maria de Lourdes Patrini Charlon “Como filhos de marreca”: a experiência dos “beraderos” sanfranciscanos após a construção da barragem de Sobradinho - Bahia Ely Souza Estrela Mulheres que sonham - visionárias e convertidas (Reduções jesuítico-guaranis, século XVII) Eliane Cristina Deckmann Fleck

revista imaginário n° 9 - diversidade cultural transdisciplinaridade Editorial - interdisciplinaridade e transdisciplinaridade Maria de Louders Beldi de Alcântara / Maria Luisa Sandoval Schmidt / Tatiana Freitas Stockler das Neves Participação emancipatória: reflexões sobre a mudança social na complexidade contemporânea Eda Terezinha de Oliveira lassara e Ornar Ardans dossiê: fórum social mundial O que vem a ser o Fórum Social Mundial Márcia Maria Cabreira Desalinhamentos? Tatiana Freitas Stockler das Neves O mesmo e o outro no sertão Walnice Nogueira Galvão Sertão, sertões: diferentes olhares sobre a paisagem Magali Franco Bueno/ Maria Regina Cunha de Toledo Sader

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Pesquisa qualitativa, alteridade e comunidades interpretativas Maria Luisa Sandoval Schmidt questão indígena Fragmentos de diálogos Maria de Lourdes Beldi de Alcântara Para uma ontologia do tempo em um recorte Guarani Mbyá Luiz C. Borges Yvára rendupa - notas sobre o ouvir no aprendizado guarani Amilton Pelegrino de Mattos A educação escolar entre os Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul Veronice Lovato Rossato A educação de jovens e adultos com os povos Kaiowá, Nandéva e Terena Lélio Loureiro da Silva Ugwi avkwéra, iheka vaierãgwe ojapo hagwã antropologia/ Consequências de um mau estudo Micheli Alves Machado Nee pohãrehegua / receitas de remédios Zélia Regina Benites meada Leila de Sarquis A imagem da Amazônia na mídia impressa brasileira Magali Bueno Confecção de mapas para o turismo: a “leitura” e as expectativas do público alvo Sérgio Ricardo Fiori A 25 de março e a imigração síria e libanesa em São Paulo Márcia Maria Cabreira Caboclas de aruanda: a construção narrativa do transe José Francisco Miguel Henriques Bairrão “Cabralzinho” e o imaginário republicano: de agitador monarquista a herói nacional, a trajetória de um aventureiro, nas fronteiras da Amazónia Jonas Marcal de Queiroz

revista Imaginário n° 8 - religião Interdisciplinaridade e instituições académicas: reflexões sobre o 1° Seminário Internacional de Teoria e Método do NIME/LABI / Interdisciplinarity and academic institutions: reflections on the First International Seminar of NIME/LABI on Theory and Method Maria Luisa Sandoval Schmidt Um outro olhar sobre o estudo das manifestações religiosas: uma abertura do debate / Another look on the studies of religious manifestations: a debate overture Maria de Lourdes Beldi de Alcântara

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Mudanças epistemológicas e os estudos da religião / Epistemological changes and religion studies Otávio Velho Anotações sobre religião e globalização / Notes on religion and globalization Renato Ortiz La función de los extremos en Ia constitución de Ia religion / The role of extremes in the constitution of religion Gustavo Benavides Pequenos fatos e grandes questões / Small facts and large issues Willem Hofstee A pele, o sujeito e o território dos estudos da religião / The skin, the subject, and the territory offeligious studies Mary Keller Estampas / Stamps Hibridismo/Hybridism Coca Rodriguez Um documentário, por um triz, uma crónica /A documentary, almost a short story Miriam Chnaiderman Escravos para consumo interno / Slaves for internai consumption Mia Couto

Entre a fluidez e a unidade: o que é local no hip-hop brasileiro? Goetz Ottmann Atravessando fronteiras: movimentos migratórios na história do Brasil Helenilda Cavalcanti / Isabel Guillen Como Era Gostoso o Meu Francês: um marco na representação do índio no longametragem de ficção Ana Lúcia Lobato Depoimento de artista Coca Rodriguez Coelho Frida Kahlo: personagem de si mesma Ligia Assumpção Amaral El discurso de los lideres espirituales de Abya Yala (América) Gloria Alicia Caudillo Félix Desde Ia memória ai registro en los relatos zapatistas Ezequiel Maldonado Reconhecimento do papel da afetividade na ação zapatista Laura Beatriz Ramírez Garcia Trujillo: mito y emblemática de una dictadura Paola Torres de Ia Cruz Itinerários creyentes dei consumo neo esotérico Renée de Ia Torre / José Manuel Mora

Estudos das religiões: campo de provas da interdisciplinaridade / Study of religions: a test field for interdisciplinarity Walnice Nogueira Galvão

La construcción simbólica de Ias ciudades y los sexos. Hombres y mujeres en Ia génesis de Ávila y Évora Maria Cátedra Tomas

Literatura e religião na sociedade contemporânea / Literature and religion in contemporary society Pablo Semán

A metáfora do nacional lolanda Maria Alves Évora

Uma antropologia da peregrinação e do turismo religioso / An anthropology of pilgrimage and religious tourism Carlos Alberto Steil

El reconocimento y Ia identidad humana Mijail Malishev

revista imaginário n° 6 - percepção/bricolage

Jogos divinatórios: temporalidade, imaginário e vivência mítica l Divinatory games: temporality, imaginary, and mythic living Silas Guerriero

Releitura Levi-Strauss-Bricolage Fernanda Amalfi

Dilemas y retos metodológicos para dar cuenta de Ia diversidad religiosa en México / The methodological problems of assessing religious diversity in México Renée de Ia Torre

O céu da História: sobre alguns motivos judaico-benjaminianos Olgária Chaim Fores Matos

O estudo das religiões na Dinamarca / The study of religions in Denmark Tim Jensen Teorizando a violência religiosa e o outro religioso / Theorizing religious violence and the religious other Rosalind l. J. Hackett Resenhas / Reviews

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revista imaginário n° 7 - américa latina

O jogo de ajuntar coisas e a arte da descontinuidade Sérgio Lima Le lien social Leslie Kaplan A oralidade: a escrita da memória Elizabeth Ceita Vera Cruz

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Percursos da Etnografia: loucura e imaginário Dogon Denise Dias Barros Considerações sobre justiça e violência - o camponês paraibano como bricoleur Marcelo Gomes Justo Religiões transnacionais. A Igreja Católica romana no Brasil e a Igreja Ortodoxa na Rússia Ralph della Cava A espada e a lagoa: duas versões do fim do mundo Carlos Alberto Steil La Virgen de Luján: el milagro de una identidad nacional católica Eloisa Martin La nueva era en Posadas. Viejos escenarios, nuevas miradas Maria del Rosário Contepomi

revista imaginário n° 5 - diferença O ébrio apaixonado: perfis de gênero no imaginário da MPB - 1930-1950 Maria Izilda Santos de Matos De Ia fama y el exílio: el cartero de Neruda Rob Rix A iconografia medieval da natividade transformada em poesia por João Guimarães Rosa Tereza Aline Pereira de Queiroz Sobre alguns temas em Anselm Kiefer Liana Cardoso Soares / Maria Luisa Sandoval Schmidt Paisagem e cultura Maria de Lourdes B. de Alcântara / Regina T. Sader Le lien social Leslie Kaplan Não há lugar como nosso lar: antropologia, multiculturalismo e novas tecnologias Aleksandar Boskovic Identidade, invisibilidade social, alteridade: experiência e teoria antropológica no centro das práticas curativas Francine Saillant Cultura nativa e globalização: Terena em Campo Grande; (re)significando o real Paula Caleffi Espaço simbólico Jane Bittencourt Human adaptability research into the beginning of the third millennium Michael A. Little and Ralph M. Gárrulo

revista imaginário n° 4 - palavra A trajetória latino-americana para a modernidade Jorge Larrain Huxley sobe o morro e desce ao inferno. A umbanda no discurso católico dos anos 50 Artur César Isaia Catarina come-gente Sandra Jatahy Pesavento Um diálogo com Monteiro Lobato Margareth Yayo Gimbo Melero e Maria Alice Oliva de Oliveira Brasília, cidade arcaica Luis Alberto Brandão Santos O silêncio como motor da opinião pública Delia Crovi Druetta Um caso de “imaginário coletivo”: a procura do eldorado no século XVI Gilberto Mazzoleni Islamismo, imigrantes e Estado: religião e política cultural na Austrália Michael Humphrevy

revista imaginário n° 3 - natureza Natureza e naturalistas Míriam Lifchitz Moreira Leite Viajando pelo mundo dos museus: diferentes olhares no processo de institucionalização das ciências naturais nos museus brasileiros Maria Margaret Lopes Introdução à herpetologia do Brasil: o contexto científico e político da expedição bávara ao Brasil de Johann Baptist von Spix & Johann Georg Wagler Paulo E. Vanzolini Ecologia polissêmica Marilia Coutinho Indígenas e camponeses: uma relação de conflitos Regina de Toledo Sader As felizes culpas do ocidente Dario Sabbatucci O sonho indiano: uma metáfora iniciática na literatura de viagem dos séculos XV e XVI Adone Agnolin Matraga seu pai, seu filho Renato da Silva Queiroz Meditações sobre a desordem Goffredo Telles Jr. Entrevista: Profa. Marlyse Meyer

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revista imaginário n° 2 - memória Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994) Míriam Lifchitz Moreira Leite O objeto, o colecíonador e o museu Maria Cristina Castilho Costa Imagens da memória: na prova de Rorschach e na obra de Proust Lúcia Maria Salvia Coelho Travessias, ausências e lembranças: imaginário e memória de navegantes Sheila Maria Doula O passado, o mundo do outro e o outro mundo: tradição oral e memória coletiva Maria Luisa Sandoval Schmidt

edusp – editora da universidade de são paulo Av. Prof. Luciano Gualberto – travessa J 374/208 Cidade Universitária 05508-900 – São Paulo, SP tel.: (11) 3091-4150

Memórias de um mocambo na Amazônia. História vivida e história contada . Euripedes António Funes

casa do psicólogo R. Simão Álvares, 1020 – Vila Madalena 05417-020 – São Paulo, SP tel.: (11) 3034-3600

De magia, tempo e memória (De uma aula de Ruy Coelho) Jerusa Pires Ferreira

livrarias cultura

O fazer poético e a memória para um grupo de velhos imigrantes japoneses Mário Yasuo Kikuchi Pascoval.

Entrevista: Jean Duvignaud - por François Laplantine

revista imaginário n° 1 - dinâmica do simbólico Da antropologia simbólica à antropologia cognitiva Ruy Coelho Afinal o que é cognitivismo Lúcia Maria Salvia Coelho Um breve estudo sobre cognição e simbolização Maria de Lourdes Beldi de Alcântara et al. Convergência e conflitos de interpretação do real: a festa de Corpus Christi como representação paradigmática da diversidade cultural Liana Salvia Trindade As três vozes do imaginário François Laplantine A caminho de Bakororo: alguns aspectos das representações da vida pós-morte dos índios Borono do Brasil Central Renate Brigitte Viertler

Conjunto Nacional – SP Av. Paulista, 2073 tel.: (11) 3170-4033 Shopping Villa Lobos – SP tel.: (11) 3024-3599 Market Place Shopping Center – SP tel.: (11) 3474-4033 Bourbon Shopping Country – Porto Alegre – RS tel.: (51) 3028-4033 Paço Alfândega – Recife – PE tel.: (81) 2102-4033 Casa Park Shopping Center – Brasília – DF tel.: (61) 3410-4033 livraria da vila Rua Fradique Coutinho, 915 Vila Madalena - São Paulo, SP tel.: (11) 3814-5811

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pedido de assinatura e de exemplares avulsos revista imaginário núcleo interdisciplinar do imaginário e memória – nime laboratório de estudos do imaginário – labi universidade de são paulo/ instituto de psicologia

Para solicitar uma assinatura ou qualquer exemplar avulso envie a ficha abaixo e um cheque nominal ao Instituto de Psicologia-USP para:

Instituto de Psicologia da USP Laboratório de Estudos do Imaginário – LABI/NIME A/C Maria Luisa Schmidt / Tatiana Neves Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco G, sala 02 05508-030 Cidade Universitária - São Paulo – SP Tel.: 3091-4475 (PSA) Periodicidade: anual a partir de 2009 Números esgotados: 2, 8, 9 e 10. O livro: O Graffiti na cidade de São Paulo e sua vertente no Brasil também encontra-se esgotado. Observação: Pedimos que antes do envio das fichas abaixo preenchidas e do cheque nominal, entre em contato com a Sra. Maria Luisa Schmidt (telefone acima ou email: maluschmidt@terra.com.br ou taneves@usp.br) para confirmação dos valores atualizados.

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Tipologia: Arial, Courier New, Trebuchet MS Papel: Couchê Fosco 95 g/m2 (miolo) Off-set 350 g/m2 (capa) Arte: Liana Soares Impressão da capa: Quadricromia com

Instituição:

laminação fosca e verniz de reserva

Endereço:

Cep:

Cidade:

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Data:

Mancha: 105 x 165 mm

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Número de páginas: 532 Tiragem: 300 exemplares

Impresso em março de 2011 por: PROL Editora Gráfica Ltda. Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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