Revista E - dezembro/2021

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mensal

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nº 6 |

ano 28

/sescrevistae sescsp.org.br/revistae

revistae@sescsp.org.br | Distribuição gratuita

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Venda proibida

DE PORTAS ABERTAS | JUVENTUDES CONECTADAS | LOTUS LOBO | RAUL DE SOUZA | RITA NOGUERA | LUZIA MARGARETH RAGO | MATERNIDADE E TRABALHO | SILVIANO SANTIAGO | ANA BOTTOSSO | PRISCILA RAHAL GUTIERREZ

dezembro de 2021



Venha conhecer a nova unidade do Sesc SP 22 mil m2 com cultura, esporte, lazer, educação e saúde para toda a comunidade. Até 20. 02. 2022 Ausente Manifesto: ver e imaginar na arte contemporânea Curadoria de Cauê Alves e Pedro Nery Exposição com obras do acervo do MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo

Entrada condicionada à apresentação de comprovante de vacinação contra COVID-19 (ao menos a primeira dose) e documento com foto. Rua Rogerio Tacolla, 118 Mogi das Cruzes - SP (11) 4729-6200 sescsp.org.br/mogidascruzes /sescmogidascruzes


dezembro de 2021

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nº 6

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ano 28

Detalhe de Maculatura, 1970 / Lotus Lobo | Acervo da artista e coleções particulares | Foto: Everton Ballardin

EDITORIAL

A capa mostra detalhe da obra Maculatura, de 1970, da artista Lotus Lobo, uma impressão sobre folhas de flandres, que compõe exposição em cartaz no Sesc Pompeia. A partir deste mês, não é mais necessário agendamento prévio para ingressar nas unidades Sesc em São Paulo, que passam a receber público espontâneo. Basta apresentar o comprovante de vacinação contra a Covid-19 (obrigatório a partir dos 12 anos de idade) e seguir os protocolos sanitários, como o uso de máscara. Dentre os destaques desta nova etapa de retomada ainda estão: o agendamento dos restaurantes para todos os públicos; as atividades físico-esportivas em sua capacidade plena; e a venda presencial de ingressos em rede nas bilheterias. Para acessar as bibliotecas também não será preciso agendar. Saiba mais no www.sescsp.org.br

De portas abertas A partir deste mês, as unidades do Sesc em São Paulo voltam a receber público espontâneo, sem a necessidade de agendamento prévio. Trata-se de mais um importante passo na retomada integral das atividades da entidade voltadas ao bem-estar dos trabalhadores do comércio, serviços e turismo, de seus familiares e de toda a comunidade. A iniciativa só é possível graças ao avanço da vacinação no estado e vem acompanhada de cuidados e protocolos que continuarão sendo seguidos, tais como a exigência do comprovante da vacina contra Covid-19 para ingressar nos espaços do Sesc, bem como o uso de máscaras de proteção. Cabe ressaltar que desde que a pandemia teve início, o Sesc adotou medidas para preservar vidas, seguindo todas as recomendações de autoridades públicas e sanitárias, desde março de 2020. No entanto, sempre se manteve presente no cotidiano da população, seja intensificando suas ações no combate à fome, com o Programa Mesa Brasil Sesc, seja realizando uma intensa programação cultural, esportiva e de reflexões no ambiente digital. Cumprindo, desse modo, sua missão institucional de contribuir para a qualidade de vida de todos. ABRAM SZAJMAN Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo

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SUMÁRIO

Em ENTREVISTA, a professora e escritora LUZIA MARGARETH RAGO fala sobre mulheres brasileiras que lideraram movimentos sociais e culturais 10

Silvio Aurichio

No PERFIL, o trabalho criativo e o legado do trombonista RAUL DE SOUZA, que levou o samba-jazz do Brasil para o mundo

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Na GRÁFICA, obras da gravadora, desenhista e professora mineira LOTUS LOBO, um dos principais nomes das artes litográficas no país 36

DOSSIÊ EM PAUTA | MATERNIDADE E TRABALHO ENCONTROS | ANA BOTTOSSO DEPOIMENTO | RITA NOGUERA

DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor do Sesc São Paulo

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Everton Ballardin

Beto Assem

DE PORTAS ABERTAS, teatros e outros espaços culturais recebem o reencontro entre artistas e público presencial

Pedro Vinicio

Pouco a pouco a vida vai retomando seu curso e vamos nos readaptando, ainda impactados por esta incomparável e transformadora experiência da pandemia. Se no início de 2021 ainda vivíamos as incertezas diante de um processo de vacinação que apenas começava, agora podemos vislumbrar um retorno à vida social e às atividades culturais presenciais, sem, no entanto, deixar de seguir os protocolos de cuidados ainda presentes no combate à Covid-19. As salas de espetáculo, antes fechadas ao público e restritas às apresentações para o ambiente virtual, finalmente podem ressoar as palmas, risadas e emoções de plateias, neste religar-se às artes e, por meio delas, uns aos outros, em rituais pautados pela criatividade, pelo talento e pela dedicação de tantos, estejam estes em cena ou nos bastidores. Esta volta dos espetáculos com público presencial é tema de reportagem desta edição da Revista E. Também neste mês, relembramos no Perfil a trajetória do músico Raul de Souza, falecido em 2021, que apresentou para o Brasil e para o mundo o samba-jazz pelos sopros de seu trombone. Em Encontros, a coreógrafa Ana Bottosso relata sua experiência à frente da Cia. de Danças de Diadema. A pesquisadora Luzia Margareth Rago aborda, em Entrevista, a participação das mulheres em importantes momentos da história do país. E, no Inéditos, conto do escritor Silviano Santiago. Boa leitura!

Rob Verf

De volta aos palcos e às plateias

INÉDITOS | SILVIANO SANTIAGO ALMANAQUE PAULISTANO P.S. | PRISCILA RAHAL GUTIERREZ

JUVENTUDES CONECTADAS ocupam as plataformas digitais com trocas e expressões artísticas 54

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A importância das pessoas com deficiência na construção de uma sociedade com mais equidade e participação. Ações culturais, esportivas e socioeducativas. Todas as atividades contam com recursos de acessibilidade.

Saiba mais:

sescsp.org.br/modosdeacessar


Ignacio Aronovich

DOSSIÊ

Trilha do Sentir na Reserva Natural Sesc Bertioga

Para todos PROGRAMAÇÃO REÚNE ESPETÁCULOS, CURSOS, DEBATES E A ABERTURA DE NOVOS ESPAÇOS VOLTADOS PARA PESSOAS COM E SEM DEFICIÊNCIA

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e 3 a 10 de dezembro, o Sesc São Paulo realiza a Semana Modos de Acessar, uma programação protagonizada por pessoas com deficiência nos diversos campos do saber e da criação, como arte, esporte, educação e meio ambiente. Realizadas nas unidades da capital, interior e litoral do Estado, essas atividades evidenciam a importância da acessibilidade para a construção de uma sociedade equitativa e justa para pessoas com e sem deficiência. A abertura da Trilha do Sentir na Reserva Natural Sesc Bertioga é um dos destaques da programação. Nesse espaço voltado para diversos perfis de público – idosos, crianças, jovens e adultos com e sem deficiência –, é possível vivenciar uma experiência imersiva na rica biodiversidade presente no local. Há elementos táteis que reproduzem espécies de fauna e flora local, textos em braile e alto-contraste para pessoas com baixa visão, bem como elementos de

O SESC SÃO PAULO ORGANIZA AS AÇÕES DA SEMANA MODOS DE ACESSAR COM UM DESEJO DE PARTICIPAÇÃO E CONVIVÊNCIA ENTRE PESSOAS COM E SEM DEFICIÊNCIA NOS DIVERSOS CAMPOS DE SABER LÍGIA ZAMARO, assistente da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania

facilitação cognitiva para pessoas com deficiência intelectual, por exemplo. Outro destaque da Semana Modos de Acessar são os espetáculos Só Se Fechar os Olhos e Para Além do Gesto, ambos do Coletivo Desvio Padrão, que serão apresentados no Sesc Jundiaí. “O Sesc São Paulo organiza as ações da Semana Modos de Acessar com um desejo de participação e convivência entre pessoas com e sem deficiência nos diversos campos de saber”, explica Lígia Zamaro, assistente da Área de Educação para Acessibilidade na Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo. “É um reforço à sociedade para que essa pauta esteja em nossos diálogos e práticas em prol da desconstrução do capacitismo e pela valorização crescente dos potenciais presentes na diversidade e na diferença.” Confira mais informações: sescsp.org.br/ modosdeacessar.

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DOSSIÊ

AQUÁRIO DE SOMBRAS Dois trabalhos inéditos da artista visual Sonia Guggisberg podem ser visitados pelo público no Sesc Jundiaí. O primeiro é a instalação site specific Passageirxs, cujo projeto elaborado especialmente para a unidade ocupa toda a fachada de vidro do primeiro andar. Nas imagens, um enorme mosaico composto de sombras e águas mostra o cotidiano de pessoas reclusas realizando tarefas diárias como se fossem passageiros da própria vida. O segundo é a videoinstalação RE_educação, no espaço expositivo, que conta com dupla projeção em loop de imagens e palavras que pulsam com uma construção sonora e enfatiza a necessidade de pensar novas estratégias de vida e formas de entendimento diante do atual cenário. Ambos os trabalhos propõem uma reflexão sobre o período de clausura e introspecção trazido pela pandemia. Saiba mais: www.sescsp.org.br/exposicoes.

Divulgação

PRÊMIO JABUTI 2021 Dois livros publicados pelas Edições Sesc São Paulo ficaram entre os cinco finalistas da 63ª edição do Prêmio Jabuti de Literatura, realizado pela Câmara Brasileira do Livro. Concorreu na categoria Arte, dentro dos livros de Não Ficção, a obra A Fórmula da Emoção na Fotografia de Guerra (2020), de Leão Serva, que analisa gestos e sentimentos do imaginário coletivo que ecoam na fotografia de guerra a partir de pinturas e esculturas do passado. O segundo, na categoria Ciências Sociais, é O Capitalismo Se Desloca (2020), de Ladislau Dowbor, que reflete sobre um novo momento deste modelo econômico. Conheça estas e outras publicações: www.sescsp.org.br/edicoessesc.

CANÇÕES PARA CLARICE No dia 10 de dezembro, quando Clarice Lispector celebraria 101 anos, o Selo Sesc dá início a uma série de homenagens à escritora em formato musical. Capitaneada pela poeta, compositora e cantora Beatriz Azevedo, o disco Clarice Clarão é um desdobramento do espetáculo Now Clarice, produzido por Beatriz a convite da Princeton University no centenário da autora de A Hora da Estrela. Mensalmente, o público irá conhecer fragmentos do álbum que traz Beatriz e o cantor Moreno Veloso interpretando canções originais e trechos da obra de Lispector. O trabalho ainda conta com a participação dos músicos Jaques Morelenbaum e Marcelo Costa, além de textos da escritora declamados por Maria Bethânia. Neste mês, o primeiro single Clarice Clarão estará disponível nas principais plataformas de streaming e também no Sesc Digital. Ouça aqui: Sesc Digital | Plataforma de acervos, cursos livres e programações inéditas.

TAPUMES ARTÍSTICOS Mais de um milhão e meio de pessoas assistiram a espetáculos e participaram de oficinas, cursos e outras atividades realizadas na unidade provisória Sesc Parque Dom Pedro II entre 2015 e agosto deste ano. Neste momento, enquanto o edifício da unidade definitiva é construído, depoimentos e imagens desses frequentadores compõem a exposição Biografias e Microrroteiros do Parque, sob curadoria e concepção de Laura Guimarães e Tatit Brandão. Memórias de vivências no Sesc Parque Dom Pedro II transformam os tapumes da área externa em um extenso mural com arte e narrativas. Quem visita a Praça São Vito ou trabalha em seus arredores, no bairro do Brás, poderá ver as intervenções artísticas até 25 de janeiro de 2022. Confira: sescsp.org.br/parquedompedro. Tatit Brandão

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Divulgação

Michel Santos


Kazuo Kajihara

Conjunto aquático do Sesc Belenzinho

O Sesc São Paulo inicia a retomada do atendimento nas piscinas das unidades na cidade, litoral e interior do Estado para uso recreativo e de nado livre seguindo todos os protocolos sanitários que garantem a segurança dos funcionários e do público frente à Covid-19. Para utilizar esse espaço, é necessário possuir Credencial Plena válida, realizar o exame dermatológico e agendar previamente um horário pelo aplicativo Credencial Sesc SP. Saiba mais: https://m.sescsp.org.br/retomada-da-recreacao-aquatica-e-nado-livre-no-sesc-sp/.

Divulgação

NA TRILHA DA AXÉ MUSIC Em junho de 1992, Daniela Mercury, ainda desconhecida do grande público, teve que interromper um show no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp). É que após 40 minutos de apresentação, a laje do museu corria o risco de desabar, tamanha a vibração da música e a concentração de público. Esse fato marcaria para sempre a história da axé music e por isso foi o ponto de partida escolhido pelo jornalista Luciano Matos para escrever O Canto da Cidade – Da Matriz Afro-Baiana à Axé Music de Daniela Mercury. Recém-lançado pelas Edições Sesc São Paulo, o livro digital conta a história da cantora e do álbum O Canto da Cidade, lançado no ano daquele show, a partir de pesquisas e entrevistas com Daniela Mercury e outras figuras centrais, tanto da música baiana quanto do álbum, como Vovô do Ilê; João Jorge, presidente do Olodum; Margareth Menezes; e Letieres Leite. O livro faz parte da Coleção Discos da Música Brasileira, organizada pelo crítico musical Lauro Lisboa Garcia. Saiba mais: www.sescsp.org.br/edicoessesc.

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Marcos Vinicius Maia

ENTREVISTA

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LUZIA MARGARETH RAGO


Protagonistas da

HISTÓRIA PESQUISADORA, PROFESSORA E ESCRITORA FALA DA IMPORTÂNCIA DO (RE)CONHECIMENTO DE MULHERES QUE LIDERARAM MOVIMENTOS SOCIAIS E CULTURAIS NO PAÍS

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istoriadora, professora titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora, Luzia Margareth Rago tece, em livros, os fios soltos da história não oficial e da memória de mulheres que mudaram o rumo da sociedade brasileira. Autora influenciada pelas obras dos filósofos franceses Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925-1995), Jean-François Lyotard (19241998) e Jacques Derrida (1930-2004), Margareth reapresenta em suas escritas protagonistas de movimentos anarquistas e feministas, a exemplo de A Aventura de Contar-se: Feminismos, Escrita de Si e Invenções da Subjetividade (Unicamp, 2013). Enredos que nos auxiliam a compreender nossa história. Nesta Entrevista, Margareth Rago fala sobre seu processo de pesquisa e sobre mulheres que atravessaram os limites traçados por homens dos séculos 19 e 20. A historiadora também compartilha reflexões sobre “o narcisismo nas redes sociais” e o desmoronamento de um imaginário criado sobre o Brasil, tema aprofundado no seminário Ascensão e Queda do Brasil Tropical, realizado pela Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) em parceria com o Sesc São Paulo, em 2020. Como resultado do seminário, recentemente foi publicado um livro homônimo pela Editora Intermeios, organizado pela historiadora e por Luana S. Tvardovskas e Maurício Pelegrini.

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ENTREVISTA

INTERESSANTE COMO De onde nasceu a ideia para escrever A Aventura de Contar-se: Feminismos, Escrita de Si e Invenções da Subjetividade?

Este livro foi publicado em 2013 e, anos antes, eu tinha descoberto um grupo impressionante de mulheres anarquistas da Revolução Espanhola, chamado Mujeres Libres, que existiu entre 1936 e 1939. Foram quase 30 mil afiliadas a esse grupo. Ao começar essa pesquisa, viajei para Espanha e Paris (França). Eu terminava um trabalho sobre a anarquista italiana Luce Fabbri (essa pesquisa foi publicada como livro intitulado Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo, Editora da Unesp, 2001), que morava no Uruguai e que pouco antes de morrer me deu um vídeo para entregar a uma das mulheres do Mujeres Libres. Então, comecei a pesquisar a respeito. Eram mulheres que tinham 90 e poucos anos e que me receberam muito bem, principalmente Antonia Fontanillas, que estava morando do lado de Paris por causa do exílio de espanhóis na Revolução Espanhola. Fiquei uma semana na casa dela com minha filha e foi maravilhoso. Desse estudo sobre as Mujeres Libres, fiz um livro de documentos porque todo mundo queria saber mais sobre elas e não tinha como fazer fotocópias daqueles jornais imensos da pesquisa. Foi aí que pensei: para estudar ainda mais sobre esse grupo eu teria que ficar na Espanha, entender um pouco da cultura local, da história da Revolução Espanhola. Mas com filha, trabalho na Unicamp, problema de coluna, pensei: Por que não estudar as mujeres libres do Brasil? E como foi a escolha dessas mulheres brasileiras que estão no livro?

Primeiro, pensei: quem são essas mulheres que eu gostaria de conhecer e que acho interessantes? Lembrei que já conhecia Amelinha Teles (Maria Amélia de Almeida Teles) e Criméia (Criméia Alice Schmidt de Almeida), mas não muito, e gostaria muito de saber mais sobre elas. Mulheres que são ex-presas políticas e que estão ótimas. Como uma pessoa que foi presa política está ótima? Será que elas fizeram terapia, foram ao psiquiatra? Nisso eu encontrei a Maria Lygia Quartim de Moraes, que foi uma exilada

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A PALAVRA FILOGINIA NÃO FOI INCORPORADA AO NOSSO VOCABULÁRIO, ENQUANTO MUITOS SABEM O QUE É MISOGINIA

política e que é minha colega da Unicamp, num seminário no México. Contei para ela sobre o livro e ela aceitou participar da pesquisa. Eu também tinha feito amizade com a líder das prostitutas Gabriela Leite (1951-2013), porque havia feito um doutorado sobre a história da prostituição. Gabriela foi uma mulher de muita coragem e ousadia. Nisso, saiu uma reportagem sobre Ivone Gebara, uma filósofa e teóloga que estava na Colômbia. Fui atrás dela e ela também aceitou falar comigo. Fiquei impressionada porque, no caso dela, não era só uma feminista brigando com os homens, mas brigando com Deus. Eu já conhecia a Norma Telles porque ela trabalha com literatura feminina e feminismo. Tem também a historiadora Tânia Navarro Swain, ficamos amigas por ela também estar muito ligada ao trabalho do Foucault. Ela, inclusive, criou uma revista linda, Labrys – Estudos Feministas, que ainda existe e com 31 números. O que tornava interessante a história dessas mulheres?

Eu queria saber o que essas mulheres pensavam. Depois fui me dando conta de que elas eram apenas um pouco mais velhas que eu. Ou seja, eu também estava falando de mim e da minha geração. Queria saber como elas sobreviveram, como enfrentaram a ditadura militar, tanta repressão, tanta violência, uma cultura tão machista, e como elas chutaram o balde, revolucionaram e se revolucionaram. Queria contar essa história também pensando


no seguinte fato: quando a gente estuda ditadura militar, a gente fala dos homens e eu queria mostrar que existiu um movimento de mulheres na década de 1970 que não era um movimento feminista, era um movimento de mulheres bastante liderado pela teologia da libertação, na periferia, na Zona Leste de São Paulo. Mulheres que brigaram pelas condições de vida dos seus familiares, mas não eram feministas. E quais seriam esses feminismos que você coloca no plural?

Por exemplo, a Tânia N. Swain está ligada a um feminismo radical que, em geral, não vê com bons olhos as prostitutas, por exemplo. E a Gabriela Leite se dizia “prostituta feminista”, entendeu? São diferentes concepções do feminismo. Na época, eu também tinha pensado em trazer a Sueli Carneiro para falar sobre o feminismo negro, mas ela teve um problema de saúde naquele momento e não deu certo. Minha ideia era trazer um feminismo de pensadoras ligadas ao Foucault, ligadas ao marxismo, ligadas a diferentes leituras da luta das mulheres. A Norma Telles, por exemplo, que é muito ligada ao Bachelard [filósofo, químico e poeta francês, 1884-1962], não foi presa política. Outra foi exilada, outra foi para a Califórnia, outra foi para o meio da Igreja, caso da Ivone Gebara. Então, não há um feminismo, mas vários, e a gente tem falado cada vez mais dele no plural. Feminismo branco, feminismo negro, feminismo indígena, feminismo trans, feminismo decolonial, entre outros. Esses feminismos dialogam entre si?

Sim, porque estamos falando das mulheres. E falar de mulheres traz temas comuns como o tema da sexualidade. Nosso mundo está mudando muito, mas, até algumas décadas atrás, “mulher pública” era sinônimo de prostituta. Então, falar de mulher traz à tona o tema da sexualidade e a

principal arma de luta para conter as mulheres foi acenar para o perigo da prostituição. Quer dizer, a prostituição não apenas é uma experiência de mulheres, mas ela foi muito usada por médicos, juristas, higienistas para dizer: “Mulher que é mulher não ri alto”; “Mulher que é mulher se casa e tem filhos”. Autores que estudaram a história da prostituição, e eu também estudei, mas autores da França e da Inglaterra, todos concordam, de certa maneira, que o tema da prostituição é discutido em momentos de urbanização, quando surgem as grandes cidades, a modernização e as mulheres começam a ser consumidoras. Elas vão ao teatro e ao cinema, trabalham em fábricas, são professoras. A entrada das mulheres assusta e aí a prostituição é vista como uma arma para contê-las. Então, uma mulher como a Gabriela Leite é incrível porque ela criou um movimento das trabalhadoras do sexo. Ela mesma não gostava desse nome e preferia o termo prostituta. Quando eu lancei o livro Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (1890-1930), ela me chamou para ir aonde estavam as prostitutas no Rio de Janeiro para lançar o livro. Elas me abraçaram e me agradeceram dizendo: “Todo mundo tem história: estudante tem história, camponês tem história, operário tem história, mas prostituta não tinha história e sem história não existe cidadania. Muito obrigada, você nos pôs na história”. Eu fiquei emocionada. Esse livro, fruto de uma pesquisa de arquivo, me conectou com um movimento que eu nem sabia que existia e que estava nascendo enquanto eu fazia o doutorado. A gente não sabia um do outro e quando publiquei o livro o movimento me puxou. O movimento de mulheres anarquistas também é outro pouco conhecido e sobre o qual você fala em Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar e a Resistência Anarquista (Paz e Terra, 2018). Poderia contar um pouco sobre a história dessas mulheres?

Eu também não sabia sobre esse movimento e ele acabou se tornando meu mestrado na Unicamp. Não sabia muito bem sobre o que iria pesquisar e a universidade tinha criado o Arquivo Edgard Leuenroth – isso foi 1974 e cheguei em 1980. Me convidaram para conhecer o arquivo e

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ENTREVISTA

lá eu li jornais que me impressionaram. Imagine um jornal do movimento operário de 1905 com o destaque “Greve dos sapateiros” e, virando a página, “O prazer sexual das mulheres”. Fiquei surpresa e fui atrás porque pensei que esse tema fosse da minha geração e não de um século antes. Comecei a pesquisar e descobri nesse mesmo arquivo, Maria Lacerda de Moura [leia quadro abaixo], um grande nome do anarquismo brasileiro. Quer dizer, não só brasileiro. Quando pesquisei sobre o Mujeres Libres, o nome dela foi mencionado em jornais anarquistas espanhóis da época. Aqui, no Brasil, ela tem mais de dez livros publicados entre 1920 e 1930 discutindo a sexualidade feminina. Ora, nos anos 1920 e 1930, sexualidade é um tema que os homens discutiam, não as mulheres. Não era considerado “coisa para mulher”, segundo médicos, juristas e higienistas. Maria Lacerda escreveu A Mulher é uma Degenerada em 1924, questionando as teses dos homens da época. Qual a participação dessas mulheres anarquistas do ponto de vista de organização e de protagonismo no movimento?

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Elas participavam muito. Dentro do anarquismo, quando ele nasce no século 19, discute-se muito o amor livre. O anarquismo

nasce no momento em que nasce o capitalismo urbano industrial, com seus modelos de feminilidade, de masculinidade e de família. E o anarquismo faz uma crítica ao capitalismo quando ele está nascendo. Então, o anarquismo critica a ideia de que mulher tem que ser “a rainha do lar”, uma vez que ela pode ser o que ela quiser. Pode trabalhar, criar, participar... O anarquismo faz essa crítica aos modelos que a burguesia traz em oposição ao mundo aristocrático. Vamos lembrar que no mundo aristocrático os homens se pintavam e usavam roupas coloridas, por exemplo, até que entra o modelo burguês dizendo que isso é para “afeminados”. O mundo era outro e ainda não existia a cidade com todas as suas complexidades. Esse movimento anarquista tem uma presença feminina muito ativa. Lembrando também que as primeiras fábricas que nascem no capitalismo são de tecido, de fósforo, de vela e empregavam mão de obra feminina. Quando fui fazer essa pesquisa, pensei: “Então, não é ‘o proletariado’ e sim ‘a proletariada’”. Mulheres e crianças trabalhavam nessas fábricas. Jorge Street [empresário brasileiro, 1863-1939], que era um industrial, defendia o trabalho infantil,

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Gioconda Rizzo - Domíni

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MARIA LACERDA DE MOURA: PIONEIRA ANARCOFEMINISTA Nascida em Manhuaçu (MG) em 1887, Maria Lacerda de Moura era filha de uma família de classe média, cursou a Escola Normal em Barbacena, tornando-se professora. Considerada uma das primeiras feministas do Brasil – ela se definia como intelectual, pacifista e feminista –, escreveu sobre (embora com ressalvas) os movimentos em que militou: o feminismo, por não acolher mulheres negras e pobres; e o anarquismo, por ser tão radical. Em 1919, no Rio de Janeiro, fundou a Liga pela Emancipação Feminina junto da bióloga Bertha Lutz, organização que lutava principalmente pelo sufrágio feminino. A partir de 1921, quando se mudou para a cidade de São Paulo e viu de perto as condições de trabalho e de vida do proletariado, aproximou-se ainda mais do movimento anarquista. Dentro da imprensa operária, escreveu em publicações anarquistas importantes, como o jornal A Plebe e a revista Renascença, que ela criou em 1923, além de colaborar com outros jornais independentes e progressistas, como O Combate e O Ceará. Nesses textos e em livros que publicou, Maria Lacerda discorreu principalmente sobre pedagogia e educação, denunciou a opressão sofrida por mulheres e crianças, além dos preconceitos sofridos pelas mulheres. Entre 1928 e 1937, viveu em uma comunidade fundada por anarquistas de origem espanhola, francesa e italiana em Guararema (SP). A escritora morreu no Rio de Janeiro, em 1945. Fontes: Revista Cult, Blog Mulheres na Filosofia da Unicamp e documentário Maria Lacerda de Moura – Trajetória de uma Rebelde

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PRESENCIAL TEM DEIXADO AS PESSOAS FORA DO EIXO PORQUE A SOCIABILIDADE É UM APRENDIZADO

mandava fazer e comprava máquinas pequeninas para caber as mãos das crianças. Ele contou isso em livros e as pessoas aplaudiam. Mesmo na Inglaterra, quando a gente estudava Revolução Industrial, a gente não lia sobre as mulheres. Os homens só vão entrar na indústria pesada depois. No livro Parque Industrial, de 1932, a escritora Pagu também fala sobre esse cenário das mulheres nas fábricas.

Inclusive essas eram mulheres muito jovens, entre 13 e 16 anos. Me lembro que eu estava pesquisando “a lista dos indesejáveis”, formada por quem fazia greve, quem quebrava as máquinas das fábricas. Nessa lista estão: Angelina, 15 anos, Ema Sartorelli, 17 anos, Maria, 13 anos… Ou seja, crianças. Já em 1917, numa greve em São Paulo, a quantidade de mulheres era impressionante. Lembrando que naquela época elas se casavam aos 13 anos. Então, a princípio eu ia estudar os anarquistas, mas não pensava nas mulheres até perceber que a importância delas era tamanha e que o silêncio a respeito era maior ainda. E para falar de mulher não tem como não falar de sexualidade. Aí entrou o tema. Quando estava terminando o mestrado, fui pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e puxei o arquivo: Amor Livre. Estava escrito assim: Amor Livre vide Prostituição. Eram inúmeras teses médicas, porque os médicos estavam higienizando as cidades, preocupados com doenças como sífilis e lepra. Esse era um modelo europeu que o Brasil copiou: os médicos eram encarregados pelo Estado de fazer relatórios sobre

as condições das prisões, dos hospícios, das fábricas, para saber de onde vinha a epidemia na cidade. Então, eles faziam trabalhos de sociologia. Com essas informações, o Estado definia se a zona ficaria no bairro “x” ou “y” ou onde ficariam as escolas. Ou seja, onde você localizaria determinados espaços para não haver contágio físico e moral. Em relação aos conceitos levantados por médicos da época sobre as mulheres, o que mais destacaria de sua pesquisa?

A história da medicina sobre o corpo das mulheres é muito engraçada. Lá atrás, não sei precisar se foi com Hipócrates e/ou Galeno, achava-se que o útero subia e viajava pelo corpo. Quando o útero subia, as mulheres tinham dor de cabeça, então, elas tinham que sentir um cheiro forte e bem ruim para o útero descer e vice-versa.

Marina Rago Moreira

A IMPOSSIBILIDADE DA RELAÇÃO

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ENTREVISTA

Não havia dissecação de cadáveres porque era proibido. Existem vários livros a respeito e eu comprei o livro de Yvonne Knibiehler, que se chama La Femme et les Médecins (1983) – esse livro deveria ser traduzido. Ela traça uma história das concepções médicas no Egito e na Grécia antiga que nos parecem absurdas. Outro exemplo é Tertuliano (segundo Foucault, o inventor do pecado original), que disse que quem dá à luz são os homens porque eles fecundam e as mulheres são apenas um receptáculo. Olha o nível da competição para ser quem produz a vida. Também não havia mulheres médicas. Minha irmã, Elizabeth Juliska Rago, escreveu um livro – Outras Falas. Feminismo e Medicina na Bahia. 1836-1931 (Annablume, 2007) – sobre uma das primeiras médicas brasileiras, Francisca Praguer Fróes [leia quadro abaixo] (1872-1931). Essa mulher era filha de um croata que se casou com uma baiana. Francisca se tornou ginecologista, mas em geral as mulheres eram proibidas de fazer medicina porque era dito que elas tinham um cérebro inferior, que eram irracionais e não aguentariam temas como medicina ou engenharia. Quem fazia ginecologia eram os homens, que definiam do jeito deles como eram as mulheres. Era uma elite que ia estudar na França, inicialmente, depois nos Estados Unidos. Algo muito machista e assustador.

Como foi essa primeira onda do feminismo entre 1920 e 1930?

A primeira onda ainda é mais atrás, no século 19. Para se ter uma ideia, a pesquisadora da Unicamp Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel estuda as compositoras da música popular brasileira. Se eu te perguntar o nome de algumas, você me dará cinco nomes. Por exemplo, Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran. Ela descobriu sete mil e 500 compositoras da música popular brasileira no século 19, até mesmo porque, na época, as mulheres estudavam piano. Inclusive essa mesma pesquisadora descobriu que várias músicas que nós sabemos cantar são composições de mulheres. No entanto, as mulheres entraram na história da música como intérpretes. Há, no século 19, muitas mulheres interessantes, como escritoras feministas, que o movimento feminista, a partir da década de 1970, começou a resgatar. Mas eu nunca tinha ouvido falar, por exemplo, de Maria Lacerda de Moura, que fui descobrir na década de 1980 e justamente aí foi lançado um livro escrito por Miriam Moreira Leite, coincidência também. Existe um feminismo desde o início do capitalismo como um movimento. Mary Wollstonecraft (1759-1797), que é a mãe do feminismo, casou-se em 1797 com o avô do anarquismo, o filósofo William

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Dom ínio

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u QUEM FOI FRANCISCA PRAGUER FRÓES? Primeira professora da Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), Francisca Barreto Praguer nasceu em 21 de outubro de 1872, na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Filha de Francisca Rosa Barreto Praguer e Henrique Praguer, imigrante croata de origem judia, Francisca venceu o preconceito da época, segundo o qual era vedado às mulheres o exercício da medicina, e se matriculou aos 16 anos (em 1888) na Fameb. Além de exercer a especialidade obstétrica, quando casada – daí a adoção do sobrenome “Fróes” – continuou a luta contra as limitações impostas às mulheres e, a partir de 1903, começou a defender, publicamente, a emancipação feminina. Naquele ano publicou, na Gazeta Médica da Bahia, um artigo exigindo que as mulheres tivessem o mesmo direito dos homens nas faculdades de Medicina. Sua luta em favor do feminismo repercutiu em todo o estado, bem como no restante do país. Já em 1917, Francisca também defendeu o divórcio em outro artigo polêmico para a época. A médica ainda se tornou patrona da cadeira 24 da Academia Brasileira de Médicos Escritores (Abrames), fundada em 26 de novembro de 1987. Curiosamente, o escritor Euclides da Cunha prestou-lhe uma homenagem no soneto Página Vazia, de 1897.

Fonte: http://www.fameb.ufba.br/filebrowser/download/81

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QUANDO VOCÊ PENSA NO NARCISISMO, NESSA QUESTÃO DE AS PESSOAS ESTAREM SE POSTANDO DURANTE AS 24 HORAS DO DIA, ISSO É ALGO NEOLIBERAL E ASSUSTADOR

Godwin. Essa história é de filme. Mary, no fim do século 18, se apaixona por Godwin, se separa e vai morar com ele, tem uma filha chamada Mary e morre no parto. Essa Mary, quando cresce, se apaixona por um homem chamado Shelley, e passa a se chamar Mary Shelley (a autora de Frankenstein, 1818). Talvez seja este o primeiro grande momento. Depois, na década de 1970 em diante, de lá para cá, o feminismo só cresce. Então, qual seria a diferença do feminismo dos anos 1970 para o feminismo atual?

Acho que mudou muito. Agora, nós temos as jovens feministas que são filhas e netas. Nós não: nós fomos filhas das “rainhas do lar”. Agora também tem o feminismo negro e muito mais jovens. Acho que pluralizou. Naquela época, o feminismo era algo restrito: foi difícil entrar nas profissões, nas universidades, nos sindicatos. Os homens eram muito mais machistas em tudo. Hoje, as portas estão abertas, mulher pública não é sinônimo de prostituta, aliás, não precisam ser virgens para se casar, se não se casarem não são solteironas e sim mulheres independentes, e se se casarem, não precisam ter filhos. Tem uma feminista austríaca que admiro muito e é pouco conhecida, Rosa Mayreder (1858-1938), que disse assim, nos anos 1920, ao ver a 1ª Guerra Mundial: “O feminismo não veio para destruir os homens. O feminismo veio para socorrer os homens. Os heróis estão cansados”. Ela via os homens chegando da guerra e as mulheres ocupando as atividades que antes somente eles podiam exercer. Desde a criação do mito de Adão e Eva, a mulher ocupa o papel de personagem responsável pela traição. De onde se origina essa postura diante da figura feminina?

Acho que essa misoginia começa antes, na Grécia antiga: o amor é amor entre os homens, mas não entre um homem e mulher porque homem e mulher não são iguais. É algo que sempre me pergunto: Por que esse ódio às mulheres? Qual é o problema? Não consigo entender direito, como também não entendo o ódio aos negros, aos indígenas. Há 40 anos, lembro de ter ficado muito feliz porque uma professora greco-francesa que veio dar um curso na Unicamp falou a palavra “filoginia” [apreço pelas mulheres] que seria o oposto de “misoginia”. Achei aquilo tão lindo, quer dizer que a gente não recebe só pedras: há momentos em que você recebe flores, que as pessoas estão te abraçando, estão te aplaudindo. Esses são instantes de filoginia. Mas é interessante como a palavra filoginia não foi incorporada ao nosso vocabulário, enquanto muitos sabem o que é misoginia. Comecei a pensar sobre isso. Sujeição todo mundo sabe, subjetivação, quando o Foucault falou, ninguém entendeu. E ele estava falando de liberdade. A respeito do que Michel Foucault comenta em relação ao Estado disciplinado visando a um controle da sociedade, se levarmos essa questão para o universo online e virtual, podemos dizer que a voz de quem ocupa as redes sociais caminha por um caminho mais castrador que libertário?

Com certeza. Quando você pensa no narcisismo, nessa questão de as pessoas estarem se postando durante as 24 horas do dia, isso é algo neoliberal e assustador: eu, eu mais eu. Foucault trabalha com a ideia de que o neoliberalismo produz uma subjetividade que é “o empresário de si mesmo”: alguém que se acha; eu mais eu; alguém que acredita que tem que pensar em termos de custo e benefício, em termos de lucro, a fim de aumentar sua renda. Acho que isso tem

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ENTREVISTA

a ver com a participação nas redes sociais. É algo esquisito e difícil de entender como as pessoas embarcam nessas práticas. Por que as pessoas se postam e postam qualquer coisa? Um tipo de exposição que não tem muito sentido a não ser vender a própria imagem. E isso não é libertário. Não tem nada a ver com “o cuidado de si” dos gregos, de que fala Foucault: de trabalhar-se, de construir-se a partir de uma subjetividade ética. Isso tem mais a ver com uma normatividade. Foucault também fala sobre esse tipo de sistema disciplinar do poder que também afeta as relações. Poderia falar um pouco sobre esse conceito hoje, quando se fala da “mercantilização das relações”?

negros, menino, menina, gordo, magro. Eu ia dormir na casa da minha amiga japonesa e comia a comida japonesa que cozinhavam. Da década de 1970 pra frente é branco com branco, negro com negro, japonês com japonês. Isso produz um desconhecimento muito grande do outro porque você só pode imaginar o outro pela novela e isso produz ódio, culpa, ressentimento, uma vez que quando as pessoas se encontram é choque, não é aliança ou solidariedade. Acho que nosso mundo está precisando de solidariedade, de conexão, de fazer pontes. Precisamos potencializar os afetos positivos, isso está faltando em nosso mundo.

O que Foucault me Recentemente, trouxe e que gosto muito é a você fez parte do questão do empobrecimento seminário Ascensão relacional. Isso se dá quando e Queda do Paraíso PRECISAMOS as pessoas estão muito Tropical, que vai presas em identidades e as POTENCIALIZAR OS virar um livro. Sobre identidades comportam um o que trata? número “x” de relações. Ou AFETOS POSITIVOS, ISSO Nesse seminário, nós quando Foucault fala, por reunimos 30 professores da exemplo, de amizade, e o ESTÁ FALTANDO EM USP, Unicamp e PUC-SP. modelo de amizade é um Pessoas que têm trabalhos modelo privado, de poucos sobre essa imagem do Brasil NOSSO MUNDO amigos. Ele fala junto com como “paraíso tropical”. Essa Derrida e Deleuze que esse coisa da “mulata sensual”, tipo de amizade não serve do samba, do carnaval. para construir uma outra esfera pública. Quer Só que, diante das questões atuais, houve dizer, se você está pensando em solidariedade um desmoronamento dessa imagem. Então, e a esfera pública é o lugar dos inimigos, é só decidimos falar da queda do “paraíso tropical”. no privado que você tem amigos e que você O Sesc São Paulo nos apoiou e nós fizemos, pode ser transparente. Então, penso que eles em 2020, uma parte do seminário pelo Centro trazem essa questão do engessamento dos afetos, de Pesquisa e Formação do Sesc e outra parte do empobrecimento relacional. Gosto desse pela Unicamp. Agora estamos divulgando as termo. Agora, com a pandemia, nem se fala… A publicações dos textos e uma parte vai sair pela impossibilidade da relação presencial tem deixado Editora Intermeios com o mesmo título do as pessoas fora do eixo porque a sociabilidade seminário. É muito triste este momento pelo é um aprendizado. Com esse isolamento, as qual estamos passando e como a juventude está pessoas estão perdendo um pouco as balizas, as perdendo a conexão com o passado – quem é referências. E isso favorece os afetos negativos: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros violência, ódio, ressentimento. Por exemplo, personagens históricos? Essa memória está se quando eu era pequena, minha família morava perdendo. Não se trata apenas de uma perda no numa rua no bairro da Liberdade, em São Paulo, sentido de ignorância, de ignorar, mas de perder e eu brincava na rua com japoneses, portugueses, esse link do afeto e da tradição.

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26 de novembro a 5 de dezembro Bate-papos, oficinas e outras atividades trazem informações atualizadas sobre HIV/Aids e experiências de vida, buscando a criação de novos imaginários e a quebra de estigmas e preconceitos. Saiba mais: sescsp.org.br/contato

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TEATRO

REABERTURA DOS TEATROS PROMOVE O TÃO DESEJADO REENCONTRO DE ARTISTAS E ESPECTADORES

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oje, o aplauso vai reverberar nas salas de teatro. Risos, lágrimas e outras reações da plateia irão transbordar no exato momento em que, do tablado, o artista soprar para longe a saudade do encontro. E, assim, depois de um longo período de apresentações imersas no ambiente online, aos poucos, espaços culturais vêm reabrindo as portas para a presença do público nos últimos meses. Para o músico Chico César, que fez de sua casa um palco, transmitindo seu show em uma das primeiras lives do #EmCasaComSesc, pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo, em abril do ano passado,

esse novo momento é vestido da alegria para todos que fazem arte e se nutrem dela.

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Beto Assem

Chico César no show de reabertura do teatro do Sesc Santos com plateia presente em outubro deste ano, ainda com plateia reduzida

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Alécio Cezar

“A sensação que tenho é de que esse sentimento de retomada é para todos os envolvidos no processo dessa cadeia libertária da atividade artística. Para a plateia, mas também para as equipes, motoristas que vão buscar e deixar os artistas (nos espaços culturais), seguranças, camareiras, pessoas da limpeza, da alimentação, produtores… Para todo mundo”, compartilha o cantor e compositor, que em novembro se apresentou para o público no Sesc Piracicaba. “Acho que é uma sensação de vitória no sentido de que nós sobrevivemos a essas batalhas duras e árduas. É também um momento de celebração por estarmos vivos e prontos para seguir adiante.”

Outro tempo

Desde abril de 2020, música, teatro, dança, circo e outras linguagens artísticas se reinventaram em novas formas de fazer e de se aproximar dos espectadores diante da restrição e dos cuidados impostos pela

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pandemia da Covid-19. No começo, sobressaiu o estranhamento desse novo formato. “A presença é essencial para o teatro e essa mística que o envolve, esse encontro ao vivo entre ator e espectador. Mas o fato de não haver uma presença física e essa presença ser remota não deve ser algo que a desqualifique. Afinal, algum tipo de olho no olho acaba se tendo nessas lives”, disse o professor titular do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Luiz Fernando Ramos, em agosto de 2020, na matéria Um palco em casa, publicada na Revista E, quando as apresentações eram realizadas apenas por meio das plataformas digitais. De lá para cá, outros processos criativos foram pensados e realizados por artistas e grupos. Primeiramente, dentro das próprias casas e, depois, com todos os cuidados e protocolos, transmitidos (ou gravados) em salas de teatro sem plateia. Entre tropeços


Dinho Lima Flor e Karen Menatti, artistas integrantes da Cia. do Tijolo em cena do espetáculo O Avesso do Claustro, encenado no Sesc Santana neste período de retomada de público presencial do Sesc São Paulo

AO SOM DO JAZZ

Taba Benedicto

Entre os dias 15 e 31 de outubro, o Sesc Jazz 2021 foi uma das primeiras ações culturais do Sesc São Paulo realizadas em formato presencial e online. Na programação, o multi-instrumentista moçambicano Otis Selimane Remane, a cantora estadunidense Alissa Sanders, a cantora e instrumentista Joyce Moreno e os músicos João Donato e Toninho Horta foram alguns dos artistas que se apresentaram para uma plateia presencial e para espectadores que acompanharam a transmissão dos shows pelo #EmCasaComSesc, no canal do YouTube do Sesc São Paulo. Além das apresentações, ações formativas e exibições de documentários e webséries que aconteceram durante a programação em outubro, também está disponível no ambiente virtual a coleção Jazz na Plataforma. Um acervo da diversidade do jazz nos palcos do Sesc São Paulo, em apresentações de edições passadas de festivais como o próprio Sesc Jazz e o Jazz na Fábrica, além de espetáculos do Instrumental Sesc Brasil, de outros projetos e dos discos do Selo Sesc. Saiba mais: sesc.digital/colecao/jazz-na-plataforma.

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Leekyung Kim

Escrito por Luccas Papp e dirigido por Ricardo Grasson, O Ovo de Ouro foi apresentado no palco do teatro do Sesc Jundiaí, sem público presencial, e transmitido pelo #EmCasaComSesc pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo

e sobressaltos, a Cia. do Tijolo aprendeu com esse novo percurso. “No início, o virtual nos deu, de certa forma, uma rasteira, porque era uma ferramenta nova. Fomos aprendendo, construindo arduamente e chegamos à ideia de que esta também é uma ferramenta fundamental na medida em que se ampliam os públicos. Ou seja, você pode estar dentro de uma sala de espetáculo com 50 pessoas e numa sala virtual com 200 pessoas ou muito mais”, conta o ator Dinho Lima Flor. O grupo apresentou O Avesso do Claustro na unidade Santana, na retomada de público presencial nos teatros do Sesc São Paulo. Além disso, participou do episódio De Onde a Gente Quase Parou, do projeto Artes Cênicas em Processo, realizado pelo canal do YouTube do Sesc Pinheiros. Dúvidas e indagações também conduziram o trabalho do diretor e produtor Ricardo Grasson. “Quando começamos a realizar apresentações online, não fazíamos ideia do que aquilo seria. Se era um teatro filmado ou um teatro ao vivo, porque o teatro existe com a plateia, quando há uma troca de energia, de emoção. Então, no início, a gente não entendia muito bem e, com o passar do tempo, vimos outro tipo de arte se desenvolvendo e se aperfeiçoando: algo que não era teatro, não era cinema, não era televisão nem

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série”, observa Grasson, que dirigiu o espetáculo O Ovo de Ouro, transmitido do palco do Sesc Jundiaí pelo #EmCasaComSesc no canal do YouTube do Sesc São Paulo, sem a presença de público.

Aprender com o improviso

Escrita por Luccas Papp, O Ovo de Ouro foi a última peça encenada por Sérgio Mamberti (1939-2021) (leia Perfil na Revista E nº 301, de novembro de 2021), em 2019. “Desde os primeiros espetáculos até os mais recentes, aprendemos muito nesse ambiente online, tanto na parte técnica quanto na direção e na atuação. Testamos a câmera de diferentes formas: fixa na plateia, acompanhando o ator, vindo das coxias. Estamos experimentando muita coisa e espero que isso continue”, afirma Grasson. Para o músico Chico César, a cena virtual não substitui a presença física do público. “As apresentações online nos ensinaram que nada substitui a presença do ser humano no que ela tem de mais corrosivo e afetuoso. Nada substitui a presença da equipe humana, técnicos, músicos, iluminadores. Esse contato é essencial para o que nós fazemos. De solitário basta o processo de criação das canções”, desabafa. No entanto, de acordo com o


Bom ESPETÁCULO! NO FORMATO ONLINE OU PRESENCIAL, PROGRAMAÇÃO TEATRAL E MUSICAL CONVIDA PÚBLICO À FRUIÇÃO DA ARTE

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eguindo todos os protocolos de segurança frente à Covid-19, o Sesc São Paulo começou a reabrir os teatros das unidades Consolação, Pompeia, Pinheiros, Vila Mariana, Guarulhos, Santos, Rio Preto e Jundiaí, no dia 15 de outubro, com capacidade reduzida para até 30%. Depois, de maneira gradual, em novembro a capacidade aumentou e, neste mês, os teatros das unidades da cidade, do interior e do litoral do estado de São Paulo estão abertos para o público em sua capacidade integral. “Queremos ampliar a oferta de atividades e serviços aos trabalhadores e à população; contribuir para o aprimoramento da qualidade de vida, do bem-estar individual e do desenvolvimento social, como sempre fizemos, por meio de ações permanentes e eventuais nas unidades de todo o estado de São Paulo”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo. Além da programação presencial, espetáculos online e gratuitos podem ser assistidos no #EmCasaComSesc, pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo, na plataforma Sesc Digital e também nas redes sociais do Sesc São Paulo e das unidades. Confira alguns destaques da programação de dezembro:

MÚSICA

João Donato e Jards Macalé – Lançamento do álbum Síntese do Lance

Leo Aversa

Os compositores, cantores, arranjadores e instrumentistas se encontram para gravar uma parceria inédita. O resultado é o disco Síntese do Lance com 10 canções inéditas. Cada uma leva a assinatura de um dos músicos, que também fizeram todos os arranjos. João Donato e Jards Macalé ainda compartilham uma composição feita a quatro mãos. (Dia 17/12, no Sesc Pinheiros)

TEATRO

A Pane

Baseada no texto homônimo do dramaturgo suiço Friedrich Dürrenmatt, A Pane fala sobre as armadilhas de uma suposta justiça. No elenco, Antônio Petrin e grande elenco interpretam a história de um hóspede inesperado que se transforma em réu de um jogo cruel e divertido onde juiz, promotor, advogado e carrasco aposentados revivem suas profissões. (Dias 10, 11 e 12/12, no Sesc Santana)

CIRCO

DANÇA

De repente é sábado, e todos querem sair e se divertir. Mas, subitamente, cai uma chuva torrencial, e o fim de semana se converte em um tédio. Assim os palhaços Sanduba e Fiorella, da Cia. Suno, fazem da própria casa um espaço para brincadeiras e criam um universo fantástico, repleto de guarda-chuvas, baldes, geleiras e até um elefante. (Dias 10 e 11/12, no Sesc Santo Amaro)

A Cia. Gumboot Dance Brasil completou dez anos em 2019. Para comemorar montou um novo espetáculo composto por uma trajetória sonora, performática, musical e dançante. Dirigido e coreografado por Rubens Oliveira, O Musical 10 Anos resgata trechos dos outros dois espetáculos da história do grupo: Yebo e Subterrâneo. (Dias 3 e 4/12, no Sesc Pinheiros)

Ensaio sob a chuva

O Musical 10 Anos

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Lives pelo #EmCasaComSesc De março de 2020 a novembro de 2021

330 167 100 66

Crianças

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Circo

Música Teatro

OUTROS ESPAÇOS TAMBÉM RETOMARAM A PROGRAMAÇÃO PRESENCIAL

Dança (todas as linguagens) Fonte: Sesc São Paulo

compositor, que manteve seu processo criativo nas redes sociais durante o isolamento doméstico, as plataformas digitais traçaram uma nova estrada a percorrer. “Por outro lado, a atividade virtual, as lives e os vídeos também nos mostraram que é possível utilizar o presencial numa situação e transmiti-lo virtualmente para outro lugar, para outra realidade. Ou seja, vamos aprender a conciliar esses dois movimentos: a presença física e a virtual. Creio que isso pode vir a se estabelecer como um novo modelo, algo que estamos aprendendo a fazer”, complementa.

Além do horizonte

Este momento de retorno aos palcos com público presente também deixa ensinamentos e um legado de experiências para as artes cênicas. “A gente não volta como era antes. Voltamos com uma vontade maior de escavar, ainda mais, a ação teatral, para ter ciência de nossa história e de nossa existência. O teatro da volta é o teatro com mais caminhos. E desejamos que nesse caminho torto esteja o esperançar nos olhos de quem nos assistirá”, destaca o ator Dinho Lima Flor. Seja online ou presencial, mais possibilidades de fruição da arte multiplicam seu alcance. “Acho que a forma híbrida (online e presencial) é positiva ao dar às artes a possibilidade de escolher qual formato é melhor. A gente consegue atingir não só o público presencial, que vai ao teatro, mas pessoas que talvez não tivessem a menor possibilidade de acesso não só no Brasil, como no mundo”, analisa Ricardo Grasson. Para o diretor, o importante é alcançar o maior número de pessoas com a arte e que esse se torne outro caminho possível de fazer teatro. “Que seja uma nova forma de contar histórias porque, no fundo, somos contadores de histórias”, conclui.

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Para ver DE PERTO

Theatro Municipal

Desde junho, o público voltou a ocupar as poltronas do Theatro Municipal para assistir aos concertos da Orquestra Sinfônica Municipal, Orquestra Experimental de Repertório, Coro Paulistano e Coro Lírico, além das apresentações do Balé da Cidade. A programação respeita os protocolos sanitários, tanto na plateia como no palco, e foi norteada pelo tema Liberdades Reinventadas, fomentando reflexões para indivíduos e coletivos. Entre os destaques da programação de dezembro está o Concerto de Natal, sob regência de Mário Zaccaro. Confira mais informações e acesse o Manual do Espectador: https://theatromunicipal.org.br.

Teatro Oficina

Na data em que celebrou 63 anos, dia 28 de outubro, o Teatro Oficina reabriu as portas ao público depois de um ano e nove meses fechado pelas restrições e cuidados exigidos na pandemia. A reabertura foi marcada pelos espetáculos Paranoia, monólogo com Marcelo Drummond baseado na obra homônima do poeta paulistano Roberto Piva (1937-2010), e, em seguida, Esperando Godot, que ficou em cartaz até final de novembro e também foi filmado e exibido em plataformas de streaming sob demanda. Na ocasião da retomada presencial, o diretor e ator Zé Celso Martinez falou, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, sobre a emoção de retomar as apresentações com o público presencial: “Tenho que me conter, se não o coração explode”. Neste mês, O Bailado do Deus Morto, de Flávio Carvalho e direção de Marcelo Drummond, reestreia no Teatro Oficina dias 3, 4, 5, 17, 18 e 19/12. teatroficina.com.


Divulgação

Sala São Paulo

Reaberta ao público presencial no fim de abril, a Sala São Paulo reúne em sua programação o coro e a temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, além dos concertos gratuitos da Osesp e de orquestras parceiras aos domingos, 11h. Outro ponto alto é a série Encontros Históricos, com a Brasil Jazz Sinfônica e artistas convidados. Em dezembro, destaque para as participações de Hermeto Pascoal, Hamilton de Holanda e Arismar do Espírito Santo (4/12), além de Gilberto Gil (18/12). A Sala São Paulo segue as diretrizes do decreto municipal em relação à Covid-19 e da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado – é obrigatório o uso de máscara e a apresentação do comprovante de vacinação. Saiba mais: www.salasaopaulo.art.br.

Espaço público e cultural da Secretaria Municipal de Cultura, composto por mais de dez edificações construídas no início do século 20, o Centro Cultural Vila Itororó passou por um processo de restauro desde 2013 e reabriu em setembro para o público presencial. Patrimônio histórico localizado entre os bairros da Liberdade e da Bela Vista, ele retoma suas atividades com uma programação de cinema, artes visuais e música. Em novembro, apresentaram-se o cantor e poeta Jairo Pereira, O Menor Sarau do Mundo e a Cia. Odora, encenando o espetáculo O Jardim das Yabas. Conheça: vilaitororo.prefeitura.sp.gov.br.

Aurea Matos

Centro Cultural Vila Itororó

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Jorge Etecheber

PERFIL

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O TROMBONE MÁGICO DE RAUL DE SOUZA, QUE LEVOU O SAMBA-JAZZ DO BRASIL PARA O MUNDO

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O trombonista Raul de Souza em 2018

uando o compositor e radialista Ary Barroso (1903-1964) se dirigiu ao jovem trombonista João José Pereira de Souza para felicitá-lo – o rapaz acabara de vencer o acirrado concurso de calouros do programa A Hora do Pato, comandado pelo autor de Aquarela do Brasil na Rádio Tupi, nos anos 1950 –, foi possível ouvir, também, uma sentença: “É o seguinte, de hoje em diante você vai se chamar Raulito!”. João foi convencido pelo anfitrião de que seu nome de batismo não era lá muito artístico. Além disso, Barroso viu no novato uma versão iniciante do trombonista Raul de Barros (1915-2009), autor do choro Na Glória. Anos depois do episódio, Raulito (ou Raulzinho) já se destacava na cena jazzística carioca e decidiu adotar, ele próprio, uma nova alcunha. Passou a assinar Raul de Souza. E foi assim que se tornou mundialmente conhecido um dos maiores expoentes da música instrumental brasileira, que morreu em 13 de junho, aos 86 anos, após mais de seis décadas de uma trajetória entre os grandes do jazz. O trombonista, saxofonista, arranjador e compositor de Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, deixou uma obra que atesta seu virtuosismo e talento excepcionais. “Além da evidente facilidade que tinha para tocar diversos instrumentos – não é comum ver um trombonista também tocar tão bem um sax tenor, como ele –, Raul foi um grande improvisador”, explica o jornalista e crítico musical Carlos Calado.

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Silvio Aurichio

O artista em 2011, posando com o lendário Souzabone, o trombone de quatro válvulas cromáticas que inventou no início da carreira

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Ele relata que a maestria do músico era uma constante. “Diria que a fase do samba-jazz, nos anos 1960, foi o preâmbulo para a sua consagração definitiva, na década de 1970, quando seu talento foi reconhecido nos Estados Unidos, graças aos excelentes discos que gravou e suas parcerias com astros e estrelas do jazz, como Sarah Vaughan (19241990), Ron Carter e Stanley Clarke, além de Airto Moreira e Flora Purim. Como sabemos, no Brasil, ‘santos’ de casa raramente fazem milagres”, reflete.

o jazz moderno, o trombonista passou a brilhar”, explica o escritor e jornalista Ruy Castro. “O Beco permitiu também que outros espaços se abrissem para eles na mesma época e chamou a atenção das gravadoras, que os convidaram a fazer discos anticomerciais. Raul foi um dos principais nomes dessa turma, ao lado do saxofonista J. T. Meirelles (1940-2008), do pianista Tenorio Jr. (19411976) e do baterista Edison Machado (1934-1990)”, analisa Castro, que descobriu Souza em 1964, por meio dos discos e pelos artigos sobre samba-jazz do colunista franco-carioca Robert Celerier, publicados no Correio da Manhã. ENTRE OS MAIORES

“Minha paixão por ele foi imediata e sempre tive tudo que ele gravou. Mas só nos conhecemos em 1988, quando eu estava fazendo o livro Chega de Saudade”, rememora o escritor. “Lembro dele contando de sua emoção ao ser edição nº 157, de da Revista reconhecido como grande pelo E. Adolescente, trabalhou trombonista que ele justamente na fábrica de tecidos Bangu, idolatrava: Frank Rosolino que abrigava uma pequena (1926-1978), ex-membro da banda marcial. Lá, começou orquestra de Stan Kenton (1911a tocar tuba, e o interesse por 1979). Na verdade, Rosolino instrumentos de sopro cresceu, teria dito a ele que ele, Raul, embora não tivesse dinheiro era melhor”, afirma. Rosolino para comprar sequer um Capa do álbum Turma da Gafieira, se tornou um dos incontáveis aparelho de som – escutava as de 1957, obra considerada amigos de Souza, que o trouxe ao famosas emissoras de rádio da precursora do samba-jazz Brasil e com quem se apresentou época, como a Mayrink Veiga, em dueto no antológico Festival na casa de um vizinho. Atento às de Jazz de São Paulo, em 1978. sonoridades que chegavam do exterior, apaixonou-se O primeiro álbum solo, À Vontade Mesmo, veio por Miles Davis (1926-1991), John Coltrane (1926em 1965. Antes, juntou-se a Sérgio Mendes e ao 1967) e Louis Armstrong (1902-1971). sexteto Bossa Rio, com o qual gravou o clássico Você Da tecelagem para os palcos das gafieiras e bailes Ainda Não Ouviu Nada – The Beat of Brazil (1963), do subúrbio foi um salto. Aos 23 anos, levado por para excursionar pelos Estados Unidos e Europa. Na Altamiro Carrilho (1924-2012), participou de sua década seguinte, residindo em Los Angeles, lançou os primeira gravação como integrante da Turma da aclamados álbuns Colors, Sweet Lucy e Don’t Ask My Gafieira, composta ainda por Sivuca (1930-2006) Neighbors. Depois da longa temporada na terra do Tio e Baden Powell (1937-2000), entre outros gigantes. Sam, voltou ao Brasil, onde dividiu palcos com Tom “No Beco das Garrafas, a antiga passagem boêmia Jobim (1927-1994), Paulo Moura (1932-2010), João do bairro de Copacabana que, entre 1961 e 1966, Donato, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Gilberto foi importante espaço para uma geração de jovens Gil e Hermeto Pascoal. Nesse período estabeleceu instrumentistas afinados com a bossa nova e com inúmeras gravações e parcerias. NA CADÊNCIA

Raul de Souza improvisava na vida desde cedo. O pai, pastor evangélico, esperava o mesmo futuro para o filho – em vão –, como explicou o próprio músico em depoimento publicado na

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BRILHO NOBRE

No início da carreira, Raul de Souza concebeu um trombone elétrico de pisto com quatro válvulas cromáticas, aperfeiçoamento do trombone tradicional, de três válvulas. Acreditava que o mecanismo sintetizaria melhor sua técnica de sopro, swing e melodia únicos. O instrumento foi patenteado pelo músico e ganhou o nome de Souzabone. Em 1964, já havia optado pelo trombone de vara, mas o prestígio como artista engenhoso e inquieto o acompanhou até a aposentadoria, em novembro de 2020, quando descobriu o câncer de garganta que o vitimou. O compositor, arranjador e multi-instrumentista Egberto Gismonti coleciona momentos afetuosos com o grande amigo, que, junto às lendas da bateria Wilson das Neves (1936-2017) e Robertinho Silva, testemunhou seus primeiros passos. “A grande característica do Rauzinho é que ele sempre soube de todas as músicas que iria tocar na vida. E ele não

as tinha ouvido ainda!”, conta, fascinado. “Uma coisa que o define é: como é possível saber tanto sem ter passado longos anos dentro de uma escola acadêmica, um conservatório? Tem pessoas que criam as regras e aquelas que as descobrem e vivem com elas. O Rauzinho era aquela pessoa que inventava, criava e reinventava regras a cada dez minutos. Isso o tornava um absoluto libertário de qualquer formalidade.” O trombonista Bocato, um dos mais importantes instrumentistas brasileiros em atividade, também reverencia a generosidade constante do companheiro. “Um dia alguém falou para o Raul: Você sabe que tem um cara que toca muito trombone? Ao que ele responde: você acha que ele toca bem trombone? É porque você nunca o viu tocando violão”, recorda-se, sobre um dos incentivos que recebeu do músico. “Cada vez fica mais clara a grande mescla de estilos que ele sempre propôs. Em cada trombonista, seja brasileiro ou não, o Raul de Souza vive!”

Inspiração permanente CONSAGRADO, ARTISTA LANÇOU PÉROLAS MUSICAIS PELO SELO SESC

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onsolidado como um dos grandes jazzistas de sua época, Raul de Souza celebrava sua trajetória de sucesso com trabalhos de fôlego. Pelo Selo Sesc, lançou os discos Voilà (2012) e Blue Voyage (2018) só com inéditas – todas as oito faixas deste último, por exemplo, são de sua autoria, incluindo os arranjos. Já o repertório do álbum (uma referência à cor azul, a preferida do trombonista) é interpretado na companhia dos músicos Mauro Martins (bateria), Glauco Sölter (contrabaixo) e Leo Montana (piano). O trabalho foi gravado na sala Maison des Artistes, na cidade de Chamonix, situada entre França, Suíça e Itália. Passeando por canções como Vila Mariana, que abre o álbum, e Chegada, estão presentes variantes do samba, como a sambossa. Em 2012, Raul lançou seu primeiro DVD, O Universo Musical de Raul de Souza, com participações especiais de notórios companheiros de palco, como o flautista e saxofonista argentino-brasileiro Hector Costita. O espetáculo reúne um repertório que revisita toda a sua carreira até então, além de homenagear outros músicos e amigos, entre os quais João Donato e Altamiro Carrilho. Com o projeto, do qual fez parte o álbum Voilà, Souza foi considerado o melhor solista pelo Prêmio da Música Brasileira daquele ano.

Divulgacão

ACESSE Para assistir a O Universo Musical de Raul de Souza

Para ouvir os álbuns Voilà e Blue Voyage

Divulgacão

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Bobby Holland e Bruce W. Talamon

Aos 42 anos, em ensaio para o álbum Sweet Lucy, de 1977

Saiba mais QUATRO ÁLBUNS DE OUTROS MÚSICOS BRASILEIROS QUE CULTIVARAM PARCERIAS INTERNACIONAIS DE GRANDE SUCESSO

Prelude, Eumir Deodato (1973)

O disco é o oitavo trabalho do pianista brasileiro. Sua versão para Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss, ganhou o Grammy de 1974 de Melhor Performance Pop Instrumental. Participam do álbum músicos de jazz renomados, como o guitarrista John Tropea, os baixistas Ron Carter e Stanley Clarke e o baterista Billy Cobham.

Herb Alpert presents Sérgio Mendes & Brasil 66 (1966)

O principal sucesso do disco, captaneado pelo pianista brasileiro Sérgio Mendes e o trompetista norte-americano Herb Alpert foi a canção Mas Que Nada, de Jorge Ben, que recebeu um arranjo suingado. Outro destaque é Day Tripper, dos Beatles, sob a roupagem da bossa nova de Mendes e do Brasil 66.

Getz/ Gilberto (1964)

O álbum tornou-se uma referência do jazz e da bossa nova. Lançado pelo violonista brasileiro João Gilberto (19312019) e pelo saxofonista estadunidense Stan Getz (1927-1991), com participação especial de Tom Jobim no piano e Astrud Gilberto nos vocais de algumas faixas.

Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim (1967)

Disco de estúdio do cantor norte-americano Frank Sinatra (1915-1998) em parceria com o compositor brasileiro Tom Jobim. Chegou a ocupar a 19ª posição da Billboard e traz o clássico The Girl from Ipanema (Garota de Ipanema), canção pela qual a música brasileira é conhecida internacionalmente até os dias de hoje.

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DISCOS

À Vontade Mesmo (1965)

O álbum marca a estreia de Raul de Souza como solista (na época ainda assinando como Raulzinho) e conta com a formação original do Sambalanço Trio: César Camargo Mariano (piano), Humberto Clayber (contrabaixo) e Airto Moreira (bateria).

Talento sem medida O IMPROVISO SUINGADO DO BRASILEIRO ESTÁ PRESENTE EM ÁLBUNS EMBLEMÁTICOS E EM PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS DISPONÍVEIS NA INTERNET

Colors (1975) Com arranjos do lendário trombonista J. J. Johnson (19242001), o disco virou tópico de estudo na Berklee College of Music, em Boston, instituição onde Souza também estudou enquanto vivia nos Estados Unidos. Sweet Lucy (1977) O disco teve a produção do tecladista George Duke (1946-2013), artista considerado pioneiro na fusão entre jazz acústico, funk e soul.

Don’t Ask My Neighbors (1978)

Zé Carlos Barretta

O LP foi destaque na edição norte-americana da revista Billboard, especializada em música, e chegou ao 38° posto de discos de jazz mais vendidos daquele ano.

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PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS

‘Til Tomorrow Comes (1979)

O trabalho tem a participação especial do arranjador, compositor e saxofonista Moacir Santos (1926-2006), mestre do jazz afro-brasileiro.

Instrumental Sesc Brasil (2009)

No registro do show no Sesc Avenida Paulista, Raul de Souza apresenta composições autorais de jazz e música popular brasileira.

https://www.youtube.com/watch?v=dP2k0xw-Es0

Instrumental Sesc Brasil (2012)

Show gravado no Sesc Consolação. Mescla repertório próprio e canções de outros compositores.

https://www.youtube.com/watch?v=pb6U8A0oYLM

O álbum conta com a interpretação de Piano na Mangueira, composição de Tom Jobim e Chico Buarque. Apresenta, também, uma faixa em homenagem à esposa de Raul de Souza, Yolaine.

Curitiba 58 (2020)

Capas: Divulgação

O álbum remete ao tempo em que Raul viveu na capital paranaense. A banda que acompanha o músico é formada por Mário Conde (guitarra), Glauco Sölter (contrabaixo), Fábio Torres (piano) e Sérgio Machado (bateria).

Plenitude (2021) O último trabalho do trombonista é composto de 16 temas, entre os quais uma canção dedicada à neta Aura. Na introdução (Spoken), Raul declara, com sua voz grave: “Estou feliz, estou contente!”.

Instrumental Sesc Brasil (2017)

Espetáculo também registrado no Sesc Consolação. No repertório, canções autorais, jazz e música popular brasileira.

https://www.youtube.com/watch?v=MojMj0FeW80

Passagem de Som: Raul de Souza (2017) Especial mostra os bastidores do show do trombonista no Sesc Consolação, um encontro com o baterista Zinho e uma visita ao sobrado em que Souza morou em 1967 na Casa Verde, em São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=GE1X3-Vqw6E

Tributo a Raul de Souza no Sesc Vila Mariana para o Sesc Jazz (2021)

A memória do músico é celebrada pela banda que o acompanhava, em um concerto de samba-jazz com canções de sua autoria, além de composições de Tom Jobim e de Sérgio Mendes. A apresentação reúne o depoimento em vídeo do jornalista e escritor Ruy Castro. Participações de Bocato (trombone de pistos), Sérgio Coelho (trombone de vara) e Hector Costita (saxofone).

https://www.youtube.com/watch?v=5MVyoZm8Urk

Tributo ao artista no Sesc Jazz 2021Sesc Vila Mariana

Reprodução

Jazzmim (2006)

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Fotos: Everton Ballardin

GRÁFICA

Identidade visual e projeto gráfico: Elaine Ramos, Flávia Castanheira e Julia Paccola

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A CRIAÇÃO E PESQUISA DE LOTUS LOBO, REFERÊNCIA DA LITOGRAFIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

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gravadora, desenhista e professora mineira Lotus Lobo encontrou na litografia industrial o universo no qual desenvolve seu trabalho há quase seis décadas. O tema é seu principal objeto de pesquisa, iniciada quando visitou pela primeira vez, nos anos 1960, a extinta Estamparia Juiz de Fora (MG). Com o tempo, a criadora reuniu um acervo único, composto pelas matrizes em pedra calcária e zinco utilizadas na produção de letreiros e rótulos de embalagens diversas. Ao precioso conjunto que garimpava, acrescentava seus próprios trabalhos, frutos do domínio teórico e da paixão pela técnica de impressão, bastante difundida nas antigas fábricas de seu estado natal no começo do século 20. A vasta produção artística da gravadora, um dos principais nomes das artes litográficas no Brasil, compõe a exposição Fabricação Própria – Lotus Lobo (leia mais no boxe Impressões do tempo). A mostra tem a curadoria de Marcelo Drummond, artista visual e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Essa mostra individual foi organizada ao longo de dois anos, nos quais Lotus Lobo revisitou seu catálogo e buscou novos usos para as matrizes que conserva na casa-ateliê em que vive e trabalha em Belo Horizonte, onde, aos 78 anos, segue em plena atividade.

LUGAR DE (RE)INVENÇÃO

“Preparar a mostra foi como um grande laboratório em que pude revisar, sob novas perspectivas, todo esse material que reuni. Foram muitos ensaios, com o objetivo de criar conexões e diálogos com as ilustrações dos nossos queridos desenhistas da litografia industrial presentes nas matrizes. Realizei testes durante meses, usando, entre outros insumos, originais em zinco de latas de manteiga, banha, fumo de rolo e biscoito”, explica a artista mineira, ganhadora do Prêmio Itamaraty na décima Bienal de São Paulo, em 1969. “Sempre penso em não me repetir. Para mim, cada exposição é como lançar um livro.” Para Marcelo Drummond, Fabricação Própria – Lotus Lobo apresenta o legado da artista, ao passo que também pretende reposicionar a gravadora entre os grandes nomes da arte contemporânea brasileira. “Lotus Lobo não é, propriamente, uma gravadora lato sensu. Ela é uma grande mestra que faz uso dos preceitos, materiais, modos e meios advindos da gravura, mas não fica presa a isso, produzindo cópias únicas”, analisa. Outro ponto destacado pelo curador é o local em que ocorre a mostra. “Uma questão que nos move é que a exposição está instalada em um ambiente fabril: o Galpão do Sesc Pompeia, revitalizado pelas mãos de Lina Bo Bardi (1914-1992)”, comenta, referindo-se ao conjunto projetado pela arquiteta ítalo-brasileira na década de 1970, onde anteriormente estava instalada a Indústria Brasileira de Embalagens (Ibesa), fabricante de tambores metálicos.

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Lucas Galeno

Detalhe, Sem título, 1930-60. Estamparia Juiz de Fora (MG). Embalagens originais em folha de flandres. Acervo da artista

Impressões do tempo EXPOSIÇÃO INVESTIGA ACERVO DA ARTISTA MINEIRA

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abricação Própria – Lotus Lobo, em cartaz no Galpão do Sesc Pompeia até 30 de janeiro de 2022, recorre a saltos temporais para apresentar o acervo da artista, sem obedecer a uma linha do tempo estabelecida. A disposição das obras propositalmente leva o público a problematizar a noção de autoria, conforme revela Drummond: “Convidamos o visitante a entrar em uma ‘vertigem’ e se perguntar: isso que vejo é parte do acervo da Lotus Lobo ou é obra da artista Lotus Lobo?”. A exposição engloba a quase totalidade do conjunto de Maculaturas, nome dado, no passado, às chapas de folha de flandres utilizadas tanto para teste como para acerto de impressões de embalagens de produtos nas casas de impressão comercial em litografia. Tais chapas foram apropriadas pela artista como obras Para ver o catálogo da exposição, acesse: a partir de 1970 em função da sua primeira individual na Galeria https://issuu.com/sesc.pompeia/docs/ll_ Guignard, na capital mineira. No mesmo ano, a criadora participou catalogo_miolo_completo_14-09_correcao_23_09 da emblemática manifestação de crítica à ditadura Do Corpo à Para ler o artigo do jornalista Simões Neto disponível Terra, organizada pelo crítico de arte Frederico Morais em Belo no portal do Sesc São Paulo sobre a exposição, acesse: Horizonte. Saiba mais: www.sescsp.org.br/pompeia e https://www.sescsp.org.br/online/artigo/15783_ www.sescsp.org.br/exposicoes. A+PLURALIDADE+CRIATIVA+DE+LOTUS+LOBO

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Detalhes de Prensa II, 2019. Pedra litográfica sobre mesa e impressão fine art sobre papel. Acervo da artista

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Sem título, 1930-60. Estamparia Juiz de Fora (MG). Matrizes de zinco, dimensões variáveis. Acervo da artista

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Sem título, 1930-60. Estamparia Juiz de Fora (MG). Embalagens originais em folha de flandres. Acervo da artista

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Manteiga comum, 2018. Impressão ofsete sobre 23 cartões originários da Estamparia Juiz de Fora (MG). Acervo da artista. Cortesia Galeria Superfície, São Paulo

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Detalhes de Prensa I, 2019. Pedra litográfica sobre mesa e impressão fine art sobre papel. Acervo da artista

“DESDE O PRINCÍPIO TENHO O SENTIMENTO DE PRESERVAÇÃO. AO LONGO DESTES ANOS SEMPRE BUSQUEI CONSERVAR E RESTAURAR ESSAS IMAGENS PRESENTES NAS MATRIZES, E FAZER PEQUENAS EDIÇÕES IMPRESSAS ANTES DE DESTRUIR TOTALMENTE O DESENHO PARA REUTILIZAR (AS MATRIZES) EM TRABALHOS MEUS” Lotus Lobo

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Sem título, 1970-2018. Matrizes de zinco. Acervo da artista

“AO NÃO APAGAR ESSE IMAGINÁRIO, LOTUS LOBO PASSA A CONVIVER COM ELE, SE APROPRIANDO, RESSIGNIFICANDO E CRIANDO UMA INFLEXÃO ENORME EM SEU PROCESSO DE PESQUISA E PRODUÇÃO. AS MATRIZES SE TORNAM O GRANDE ARCABOUÇO, A GRANDE BIBLIOTECA DE LOTUS LOBO” Marcelo Drummond

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Elite, 2016. Estamparia Juiz de Fora (MG). Matriz de zinco. Coleção Marcos Amaro, Itu (SP)


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“FAZER A APROXIMAÇÃO DAS FÁBRICAS, DE JUIZ DE FORA E POMPEIA, DAS DUAS MULHERES, A LINA BO BARDI E A LOTUS LOBO, QUE TAMBÉM SE DEDICA A SALVAGUARDAR UM AMPLO ACERVO LIGADO AO IMAGINÁRIO DA CULTURA POPULAR E DA MEMÓRIA DAS ARTES VISUAIS DO PAÍS, É UM DOS NORTES DA MOSTRA” Marcelo Drummond

Pedra matriz litográfica, 1930-60. Estamparia Juiz de Fora (MG). Acervo da artista

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Maculatura, 1970. Impressão sobre folhas de flandres. Conjunto de 61 peças. Acervo da artista e coleções particulares

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JUVENTUDES

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EXPRESSÕES ARTÍSTICAS EM PLATAFORMAS DIGITAIS OCUPAM ESPAÇO DEIXADO PELA RESTRIÇÃO DE TROCAS PRESENCIAIS ENTRE JOVENS

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emes, coreografias, dicas de livros e comentários sobre história, matemática e outras matérias da escola “bombaram” na internet nestes dois últimos anos, principalmente entre os jovens. Mesmo que redes sociais e outras plataformas digitais se destacassem muito antes da pandemia como meios de comunicação e de relacionamento entre essa parcela da população, o isolamento social para o controle do contágio da Covid-19 intensificou esse canal. Se por um lado, pesquisas apontam para a preocupação com a saúde mental dos jovens diante dessa imersão virtual, por outro, esse mundo de telas acabou se tornando a forma mais segura para os jovens se relacionarem, estudarem e também de se expressarem. Segundo a pesquisa “Saúde Mental na Pandemia”, realizada pela Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), metade dos entrevistados entre 18 e 24 anos classificou sua saúde mental nos últimos 15 meses como ruim (39%) ou muito ruim (11%), percentual acima da média geral, de 5% e 25%, respectivamente. De acordo com o professor Tiaraju Pablo D’andrea da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – Campus Zona Leste/Instituto das Cidades, e coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP), os impactos sofridos pelos jovens foram os mais variados. “Impactos na educação, possibilidade de estudo reduzida, menor tempo de estudo... Jovens com idade para entrar no mercado de trabalho também viram suas possibilidades bastante reduzidas. Mas, eu acredito que o maior impacto foi na saúde mental e acho que a gente precisa encarar isso com seriedade enquanto sociedade porque é um problema social”, observa. Nesse cenário, as redes sociais se tornaram aliadas para milhões de adolescentes e jovens na pandemia.

“Essas mudanças advindas da possibilidade de uso das redes sociais e da democratização das redes impactou na forma de sociabilidade desse segmento da população”, destaca o professor. “A juventude namora de um jeito diferente, faz amigos de um jeito diferente, se relaciona com o mundo de uma maneira diferente”. CURTIR, COMPARTILHAR, PERTENCER

No caso do artista e estudante pernambucano Pedro Vinicio, 15 anos, o Instagram foi a rede que ele encontrou para ocupar um tempo ocioso e a falta de encontros presenciais na pandemia. Com mais de 200 mil seguidores, o adolescente conquista o público com desenhos coloridos com frases irônicas sobre como lidar com os desafios do cotidiano e as oscilações de humor oriundas da restrição social, mas também dessa fase da vida. “Com a chegada da pandemia, resolvi postar meus desenhos nas redes sociais sobre saúde mental e acontecimentos do dia a dia. Aí veio a ideia de fazer uma conta no Instagram e postar meus desenhos lá. Vejo com bons olhos porque é muito importante falar sobre o estado emocional principalmente na internet, que é um lugar que atinge o grande público. E eu busco que as pessoas se identifiquem e gostem cada vez mais da minha arte”, disse Pedro Vinicio em vídeo da série produzida pela ação Juventudes: Arte e Território, realizada pelo Sesc São Paulo, publicado nas redes sociais do Sesc SP (leia boxe Mar de possibilidades). Consequentemente, essas ferramentas virtuais tiveram um aprofundamento e um alargamento de uso e outras formas de utilização foram inventadas, segundo Tiaraju Pablo D’andrea. Entre essas novas possibilidades está um maior raio de alcance de pessoas de diferentes lugares e condições socioeconômicas realizarem aulas e cursos online, além de acesso a dicas nas áreas da educação ou de livros compartilhados por youtubers. O canal do YouTube Chavoso da USP, criado em 2020 pelo estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) Thiago Torres, 20 anos, é outro

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M AR PO IBI IDADES

Reprodução

DE SS L

QUE TAL NAVEGAR NA REDE E PESCAR CURSOS, OFICINAS E OUTRAS ATIVIDADES VOLTADAS PARA QUESTÕES ATUAIS DAS JUVENTUDES? Thiago Torres, o “Chavoso da USP”, reflete sobre assuntos como política, racismo, direitos e dicas de estudo em vídeos publicados no seu canal no YouTube

exemplo de como a internet se tornou um meio de expressão e de troca entre os jovens. Afastado do trabalho como jovem aprendiz durante a quarentena, Thiago passou a se dedicar ao canal, que soma mais de 240 mil inscritos. Nascido em Brasilândia, Zona Norte da cidade de São Paulo, o estudante e palestrante faz análises e reflexões sobre política, cultura, racismo, trabalho e outros temas, e já compartilhou dicas de estudo para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). “Essa maneira de se comunicar por meio de vídeos, fotos e áudios rápidos é muito mais coerente com os tempos atuais e os jovens sabem disso e se aproveitam disso. Por isso temos aí uma miríade de blogueiros, youtubers, tik tokers que fazem um bom uso da internet. Casos como o de Pedro Vinicio e do Chavoso da USP, que conseguem passar um conteúdo de qualidade e de universidade, inclusive. Casos de jovens que conseguem fazer um debate qualificado na internet”, aponta o coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP) da Unifesp. Utilizadas de maneira moderada, sem substituir o valor do encontro presencial, mas somando-se a ele, as plataformas digitais possibilitaram uma saída para que jovens pudessem estudar e produzir de maneira genuína. “Moradores e moradoras das periferias, por exemplo, têm muito mais acesso a um vídeo no YouTube do que a um livro. Ou seja, o resultado disso é que os jovens descobriram um filão e fazem um bom trabalho ao explorar ao máximo essa possibilidade ofertada pelas redes sociais”, conclui o professor Tiaraju.

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estinado a adolescentes e jovens com idade entre 13 e 29 anos e, também, a profissionais interessados nas discussões que permeiam esse universo, o programa Juventudes é realizado pelo Sesc São Paulo desde 2010. Suas ações são pautadas pela: diversidade das juventudes, análise do contexto social, relação com o território e participação efetiva dos jovens na sociedade. Para isso, o Juventudes realiza diferentes atividades, como a criação de grupos permanentes de adolescentes e jovens, com encontros regulares que proporcionaram momentos de debates, convivência e experimentações de distintas linguagens artísticas, além de outros projetos e ações, pontuais ou processuais, construídas conjuntamente com os jovens. “Muitas juventudes conseguiram se reinventar, mesmo com o isolamento social. Ficou evidente a importância da criação de redes, algo já presente, especialmente entre as juventudes das periferias, que se articulam na criação de suas artes. Contudo, não podemos esquecer que este momento de pandemia escancarou as desigualdades sociais e, consequentemente, também as dificuldades de acesso à equipamentos e internet, seja para suas produções artísticas, seja para o acompanhamento das aulas”, afirma Maria Fátima de Beja Lopes, assistente da Gerência de Estudos e Programas Sociais. Uma das ações em rede realizadas organizadas pelo programa, o Juventudes: Arte e Território vem realizando, neste ano, diversas ações no portal do Sesc São Paulo e em suas nas redes sociais. Entre elas, uma série de vídeos publicada mensalmente desde agosto passado. Neste acervo, jovens, grupos e coletivos de diferentes partes do país falam sobre processos criativos, impacto da pandemia em suas vidas, estudos e trabalhos, além de conquistas e sonhos. Confira alguns desses episódios:


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Editoria de Arte

EM PAUTA

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Maternidade eTRABALHO

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nquanto na Argentina o cuidado materno é por lei considerado trabalho desde julho passado, o Brasil ainda enfrenta uma série de entraves para reconhecer os direitos daquelas que dedicam longas jornadas aos cuidados familiares e domésticos. Na pandemia, então, esse cenário se mostrou ainda mais grave com o fechamento de creches e escolas somado à ausência (ou enfraquecimento) de toda uma rede de apoio, dadas as restrições domésticas para contenção da Covid-19. “O relatório Sem Parar: O Trabalho e a Vida das Mulheres na Pandemia, realizado pela Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista, revela que, durante o primeiro período de isolamento social, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém e que o trabalho remunerado foi dificultado pela dedicação ao trabalho doméstico e de cuidado”, apontam as psicólogas Patrícia L. Paione Grinfeld e Tatiana Machado, da organização Ninguém Cresce Sozinho. Numa escala global, essa realidade se repete. Segundo dados da Oxfam International, 42% das mulheres e meninas em todo o mundo não estão no mercado de trabalho porque dedicam todo o seu tempo aos cuidados domésticos e familiares. Então, como conciliar maternidade e trabalho? “Temos dificuldade de conceber as mães como trabalhadoras sociais da atividade política e econômica do cuidado. Portanto, as mães que trabalham para os exercícios da cultura econômica que se monetiza também passaram a enfrentar, na pandemia, a dupla jornada de trabalho ainda mais precária”, destaca Thaiz Leão, diretora e fundadora do Instituto Casa Mãe, espaço dedicado à pesquisa e ao desenvolvimento materno-social. Neste Em Pauta, Grinfeld, Machado e Leão tecem suas reflexões acerca do tema.

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EM PAUTA

Muito além de conciliação PATRÍCIA L. PAIONE GRINFELD e TATIANA MACHADO

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omo conciliar maternidade e trabalho? Essa pergunta frequentemente colocada por mulheres que se tornam mães nos obriga a uma reflexão sobre sua atualidade e permanência. Comecemos lembrando que o verbo conciliar remete, entre outros, aos seguintes sentidos: “pôr ou ficar em paz; tranquilizar(-se); harmonizar ou harmonizarem-se (coisas contrárias, contraditórias, incompatíveis ou que assim o pareçam); compatibilizar”. (Dicionário Houaiss, Objetiva, 2001, p. 786). Diante de tais definições, convém que nos perguntemos: por que maternidade e trabalho seriam tomados como elementos contraditórios ou incompatíveis? Se prevalecem as tensões, como harmonizar, compatibilizar, pôr em paz essas esferas da vida? Por que esse questionamento se mantém tão presente em nossos dias?

DE QUE TRABALHO SE TRATA?

Quando mães se propõem (e se cobram) essa conciliação, o imenso trabalho do cuidar não é nomeado enquanto tal. Gestar, parir, amamentar, banhar, acalentar e demais tarefas em torno dos cuidados de bebês e das crianças, somados aos serviços domésticos, permanecem invisibilizados, compondo, nessa equação, o nome de maternidade. Na fala de muitas mulheres, parece óbvia a constatação de que o trabalho a ser conciliado com a maternidade é aquele que se realiza fora de casa. Em outras palavras, o trabalho que, por ser socialmente reconhecido, é remunerado. O esforço em conciliar maternidade e trabalho revela-se hercúleo ou insustentável. Pesquisa realizada em 2016 pela economista da Fundação Getulio Vargas Cecilia Machado mostra que a empregabilidade de mães no mercado formal de trabalho cai imediatamente ao término da licençamaternidade e nos meses subsequentes. Após 24 meses, quase metade das mulheres asseguradas pela licença está fora do mercado, a maioria por iniciativa do empregador e sem justa causa (seria “justa”, aos olhos do empregador, a “causa” de serem mães?). A mesma pesquisa revela que 12 meses após o início da licença, 32% das mulheres com maior escolaridade e

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51% com nível educacional mais baixo encontram-se afastadas do mercado. O retorno ao trabalho após a licença (ou os poucos dias em que a mulher sem direitos trabalhistas reserva junto ao seu bebê no pós-parto) é um dos momentos em que o esforço de conciliação entre trabalho e maternidade ganha contornos dramáticos. O acúmulo de funções, a cobrança por produtividade e o não reconhecimento das atividades de cuidado como trabalho resultam na chamada “carga mental materna”. Não à toa, é quando muitas mães relatam que só voltarão ao labor porque precisam dele para compor a renda familiar ou para manter acesa a chama de sua realização profissional. SEM PARAR

A pandemia colocou um holofote sobre essa questão. O relatório Sem Parar: O Trabalho e a Vida das Mulheres na Pandemia, realizado pela Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista, revela que, durante o primeiro período de isolamento social, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém e que o trabalho remunerado foi dificultado pela dedicação ao trabalho doméstico e de cuidado. O Ipea também destaca que as mulheres foram um dos grupos mais afetados pela empregabilidade no período pandêmico. Enquanto no segundo trimestre de 2019 elas ocupavam 46,2% dos postos de trabalho, no mesmo período de 2020 esse número caiu para 39,7%. A situação é mais acentuada para as mulheres pretas. O relatório acima citado aponta que elas representam 58% das mulheres desempregadas. Tais dados, tanto quanto a escuta clínica nos consultórios de psicologia, mostram que, apesar dos avanços sociais na direção da equidade de gênero, com pais assumindo posições mais ativas e presentes junto aos filhos e filhas, e empresas começando a conceder licença parental estendida ou universal, para citar alguns exemplos, é sobre a mulher que ainda recai a maior parte do trabalho de cuidar da prole. A própria insistência de muitas mães na pergunta – “como conciliar maternidade e trabalho?” – é indicativa de sua posição “privilegiada” na responsabilidade pelo cuidado.


SE O TERMO MATERNIDADE ENCOBRE IMENSA CARGA DE TRABALHO DESQUALIFICADO ENQUANTO TAL, QUAL É, AFINAL, A CONTRADIÇÃO ENTRE ESTE E O TRABALHO REMUNERADO?

NA CONTA DA MATERNIDADE

A maternidade não é um fenômeno biológico. O que chamamos de maternidade são ideias e imagens sócio-historicamente construídas e que, portanto, se modificam em diferentes épocas e culturas. Isso significa que, no processo de tornarse mãe, cada mulher precisará lidar, consciente ou inconscientemente, com os ideais de seu tempo que regem o exercício da parentalidade e, mais especificamente, com aquilo que é atribuído às mães. A ideia de que mulheres nascem para ser mães ou sabem cuidar de bebês por instinto é velha e remonta ao século 18 (Badinter E., Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, Nova Fronteira, 1985). Permanece, em nossos tempos, parte importante do imaginário social, que tributa às mães a responsabilidade pela criação dos filhos, e isso precisa, com urgência, ser desconstruído. Uma pessoa nascida com útero pode vir a gestar um bebê e se tornar pai. Uma pessoa nascida com pênis, que se identifica como mulher, trans ou travesti, pode se tornar mãe, se assim desejar. Uma mulher que não pode ou não deseja gestar, pode se tornar mãe por adoção. Uma pessoa que perde seu filho não deixa de se considerar mãe ou pai. Isso nos mostra que, para além e aquém do trabalho de cuidado, tornar-se mãe remete a algo da construção de uma identidade e não se relaciona, necessariamente, com o processo corporal da perinatalidade (gestação, parto, amamentação). Compreender a maternidade a partir do instinto, com sua concomitante e paradoxal supervalorização da função e desvalorização de quem a exerce, esbarra em outro, e massacrante, ideal de nossa cultura: o da “mãe perfeita”. Imaginariamente, a mãe é capaz de conciliar todas as tarefas, de “dar conta de tudo”. Logo, quando a conciliação se revela impossível (exatamente porque idealizada) é na conta materna que se sublinha o que faltou, o que ficou de fora. As mães se veem impossibilitadas de abrir mão de seus ideais de maternidade e de produtividade, aos quais estão

estruturalmente submetidas. É ela que não dá conta – e por isso se demite, é demitida, não é promovida e adoece. É aqui que o discurso da conciliação vem sendo tratado como saída individual para um problema socialmente estabelecido. CONTRADIÇÃO EM TERMOS?

Se o termo maternidade encobre imensa carga de trabalho desqualificado enquanto tal, qual é, afinal, a contradição entre este e o trabalho remunerado? Se cuidar de crianças não é responsabilidade exclusiva nem tampouco atribuição natural das mulheres, por que seguimos falando sobre maternidade e trabalho? Como se vê, a artificial incompatibilidade entre os dois elementos não é consequência da (des) organização pessoal de cada mulher ante o imperativo da conciliação, conforme descortinou a crise sanitária, política e humanitária decorrente da pandemia da Covid-19. Trata-se de problema estrutural a ser coletivamente enfrentado. Explicitada a inconsistência dos termos maternidade e trabalho na pergunta que mobiliza tantas mães e que deu origem a estas reflexões, resta-nos abandonar o ideal da conciliação e recolocar o problema em termos mais justos e, quiçá, realizáveis considerando as particularidades do nosso momento histórico. Como nos responsabilizamos – coletivamente – para garantir que bebês e crianças não sejam privados daquilo que é essencial para o seu desenvolvimento? PATRÍCIA L. PAIONE GRINFELD é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócia fundadora da Ninguém Cresce Sozinho, com pós-graduação em psicoterapia de casal e família (PUC-SP) e em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar). TATIANA MACHADO é psicóloga pela Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto (USP-RP), mestre em psicologia pela sociedade pela Universidade Estadual Paulista, campus Assis (Unesp-Assis), coordenadora de serviços na Ninguém Cresce Sozinho, com pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar).

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EM PAUTA

Maternidade e trabalho: não separe THAIZ LEÃO

“Art. 3° - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.” Consolidação das Leis do Trabalho, DECRETO-LEI Nº 5.452, DE 1º DE MAIO DE 1943

O

maternar é um verbo infinitivo, num sentido maior que o gramatical. É importante antes de afirmar considerarmos que: Enquanto mães, nós não somos “inspiradas” a essas ou aquelas “atividades maternais”; o maternar é anterior à experiência do indivíduo de aqui e agora, é uma atribuição social, no sentido de ser determinada pelo nosso pacto sociocultural, e de função, no sentido de atender uma necessidade vital, que é de, dentro da estrutura político-social brasileira, prioritariamente proporcionar e garantir cuidado. Para uma vida intergeracional, ou seja, a vida que atravessa gerações, o exercício do cuidado não é só poético, é fundamental. O cuidado é necessário por toda a vida, com maior ou menor necessidade, a depender de cada pessoa; e peculiarmente durante a infância e as últimas etapas do nosso envelhecimento. O cuidado, como todo trabalho, é um exercício constante que requer um corpo com saúde integral para bem investi-lo, ou seja, com vitalidade física e psíquica que lhe garanta execução. E essa garantia de vitalidade, pela lógica da cadeia social de correlações, não vem pela iniciativa de quem trabalha o cuidado, mas sim, por todo o conjunto do tecido social – principalmente entre os de poderes e os de maioria – que determinam conjuntamente a facilidade de alcançar outros direitos de base para o bem viver. O trabalho pode até ser uma fonte de prazer e realização, porém, no ralo grosso, o trabalho tem a função prioritária, na maioria dos lares brasileiros, de garantir acesso à mínima expressão de dignidade humana na forma de ofertar acesso à alimentação e à moradia. Quando é necessário o cuidado e não há cuidado, há risco.

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Das relações da maternidade com o mundo, a bem da verdade, deveria custar um pouco para chegarmos a falar de trabalho, visto que da perspectiva de saúde integral, no social amplo, não temos condições apropriadas para qualquer que seja a vida. Ainda mais em um contexto de pandemia, onde perdemos, em pouco mais de um ano, conquistas de garantia de bemestar e bem viver de uma luta de décadas. Como é o caso dos índices de combate à fome. Mesmo no contexto de pandemia, que tornou contundente o quanto a vida facilmente se inviabiliza por falta de políticas comunitárias e institucionais, ainda assim temos dificuldade de conceber as mães como trabalhadoras sociais da atividade política e econômica do cuidado. Portanto, as mães que também trabalham para os exercícios da cultura econômica que se monetiza passaram a enfrentar, na pandemia, a dupla jornada de trabalho ainda mais precária. Elas enfrentaram e enfrentam a redução da equipe de cuidado com o fechamento das escolas, a redução de recursos para o cuidado, com a retirada da merenda escolar da rotina de seus filhos, com a adaptação da rotina diária de trabalho, através do tensionamento da conciliação trabalho/filhos/casa e/ou o estendimento do turno de trabalho para até 22 horas por dia (incluindo os finais de semana), e ainda o aumento do custo de vida, por meio do aumento das contas de consumo e alimentação dentro de casa. As mães trabalhadoras enfrentam todos os desafios que uma dupla jornada de trabalho impõe, conciliando cargas horárias, garantindo entregas, cumprindo exigências, seis em cada dez vezes sozinha, enquanto trabalhadora autônoma da “microempresa”, ou pátria, que só ela ou prioritariamente ela forma para seus filhos.


O CUIDADO, COMO TODO TRABALHO, É UM EXERCÍCIO CONSTANTE QUE REQUER UM CORPO COM SAÚDE INTEGRAL PARA BEM INVESTI-LO, OU SEJA, COM VITALIDADE FÍSICA E PSÍQUICA QUE LHE GARANTA EXECUÇÃO

O que a pandemia expôs, no exercício do meu trabalho com o projeto Segura a Curva das Mães, que constituiu uma rede de emergência com foco em prioridade em atenção à segurança alimentar e de saúde de mães e seus filhos em 24 estados do Brasil, é a fragilidade das relações político-sociais das mães com uma sociedade em que a única oferta de compartilhamento de cuidado é o espaço e o tempo da escola, que foram, como bem sabemos, já no início da pandemia, as primeiras políticas públicas a se extinguirem. O que as mães fizeram e fazem todo dia pelos seus filhos, na pandemia e fora dela, pode realmente torná-las aptas para o intitulamento de guerreiras. Mas, antes de correr o risco de tornar romântico esse conjunto de experiências e dores, já que jogar flores sobre ferimentos de guerra é um exercício fúnebre, nós precisamos com urgência nomear contra o que elas estão lutando. As mães e crianças viveram com aguda violência a realidade de cruzar diariamente duas funções que não se cruzam, a dimensão do trabalho não agrega a maternidade e as infâncias, enquanto para o exercício da proteção e seguridade humana as mães são a linha de base. O cuidado é uma atividade que pode e constantemente exige muito física, psíquica e emocionalmente do cuidador. Muitas vezes me fizeram a pergunta: “Como conciliar trabalho e maternidade?”, a resposta que hoje considero suficiente é: não as separando. É central para o nosso desenvolvimento econômico e social, quando na perspectiva de alcançarmos coletivamente o bem viver, dar centralidade ao debate da jornada do cuidado, principalmente para as mães,

com ações a curto, médio e longo prazo por meio do desenvolvimento de políticas públicas que subsidiem a possibilidade do desenvolvimento econômico paralelamente ao desenvolvimento humano digno. Não será fingindo que o ônus e bônus do bem-estar da população é, desde a primeira instância, ofertado sem nenhuma discriminação a todos. É necessária a discussão e endereçamento das horas trabalhadas. Das lesões por esforço, do investimento, da administração, de equipamentos e políticas de proteção e segurança, da organização social, da gestão de recursos humanos, materiais e imateriais. É necessária à maternidade de forma urgente e prioritária, bem como a discussão, com profundidade, sobre suas demandas e melhores práticas. A separação da vida “familiar” da vida “econômica” é antes de tudo uma manobra simplista. Idealizada, romanceada e defendida por quem não cuida ou não concebe o que é um viver social comunitário amplo. É, sim, em algum sentido, mais fácil para o mercado materializar uma ideia de experiência de trabalho no vácuo, onde os trabalhadores a partir do nada e de lugar nenhum surgem integralmente disponíveis para oito horas de trabalho. Com menos variações possíveis entre a pessoa que trabalha e o ato de trabalhar. Sem antes considerar tudo o que compõe a vida de uma pessoa. Qualquer exercício cultural, político, social e econômico que considere apenas parte da vida não é legítimo, é um exercício conveniente a poucos. THAIZ LEÃO é diretora e fundadora do Instituto Casa Mãe, de pesquisa e desenvolvimento materno-social. Autora do projeto A Mãe Solo, e coidealizadora do projeto de emergência Segura a Curva das Mães.

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ANA BOTTOSSO

Manuel Pantoja

ENCONTROS

ANA BOTTOSSO esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 21 de outubro de 2021.

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Coreografar novos sentidos BAILARINA E COREÓGRAFA FALA SOBRE SEU TRABALHO COMO DIRETORA DA COMPANHIA DE DANÇAS DE DIADEMA, SOBRE OFICINAS ABERTAS E PROCESSO CRIATIVO

A

na Bottosso vê movimento na palavra, no cinema, nas artes visuais e em outras linguagens artísticas que a provocam para a criação de novas coreografias. Bailarina, coreógrafa, professora e diretora da Companhia de Danças de Diadema, ela busca inspiração para suas obras em livros, como Eu por Detrás de MIM (2016), baseada no conto O Espelho, de Guimarães Rosa (1908-1967), ou em produções audiovisuais, a exemplo do espetáculo SCinestesia (2021), apresentado na programação virtual do Circuito Sesc de Artes em setembro, baseado em uma animação polonesa da década de 1980. Uma bagagem que ela compartilha com os bailarinos e bailarinas do grupo e também com os participantes das oficinas de dança do projeto social e artístico que a Companhia de Danças de Diadema realiza desde sua fundação, em 1995. Desde 2020, com a pandemia, os alunos dos bailarinos-orientadores puderam acompanhar virtualmente as oficinas. “Produzimos 678 videoaulas e, em outubro, tivemos a felicidade de estarmos juntos, presencialmente”, compartilha Ana Bottosso. Esse período em que a dança precisou se reinventar no ambiente virtual (leia matéria Corpos em Expansão, da Revista E nº 295, publicada em março de 2021), também foi um marco para novas criações do grupo. Em parceria com o Sesc São Paulo, a companhia estreou o espetáculo virtual #paranoiaconfinado, uma adaptação da versão presencial Paranoia (2011), inspirada no livro homônimo do poeta paulistano Roberto Piva (1937-2010). Neste Encontros, a bailarina, que também é idealizadora e coordenadora do projeto ABCDança, fala sobre coreografias para um “tablado virtual”, fomento à dança, além de pesquisa e criação.

PELA TELEVISÃO

PASSO A PASSO

A dança começou na minha vida muito cedo. Sou de Presidente Prudente e para lá não iam muitos espetáculos de dança, mas quando havia, eu estava presente. Curiosamente, eu me identifiquei com a dança na televisão. Na TV Cultura passavam espetáculos e eu dizia para minha mãe que queria fazer aquilo. Poder ver aqueles corpos se movendo tão bem delineados e desenhados me atraiu desde o início. Sou filha de artistas, meu pai, já falecido, artista plástico, e minha mãe, pianista, ainda tem uma escola em Presidente Prudente, o Conservatório Musical Maestro Julião, onde comecei a dançar aos seis anos. Eu tinha uma energia tão grande que me machucava direto subindo em telhados, correndo, pulando. Nesse sentido, acho que a dança também serviu para que eu pudesse organizar meu corpo e me equilibrar. E essa energia só aumentou de lá para cá. A paixão pelo movimento só aumenta.

Depois de vários estudos no conservatório, eu recebi um convite para ir a São Paulo no momento em que eu estava entrando na faculdade – eu fiz Ciências Sociais na PUC-SP. Recebi um convite pela Ilara Lopes, uma grande mestra e amiga até hoje, que era do Balé de Câmara, e depois do Grupo Uirapuru, para vir dançar com eles. Trabalhamos juntas por muitos anos e aprendi muito com o grupo. Pude me aperfeiçoar na metodologia inglesa da Royal Academy of Dancing de Londres e retornei ao interior, onde trabalhei muito com o ensino da dança ao levar essa metodologia para lá. Trabalhei por muitos anos, criei um grupo e viajávamos. Comecei a me especializar ainda mais em coreografar. Até que num determinado momento, levei um trabalho para o Festival de Dança de Joinville. Lá eles me falaram que minha coreografia tinha uma característica de dança-teatro e eu respondi: “Mas o que é isso?”. Fui pesquisar sobre dança-teatro, sobre

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ENCONTROS

Pina Bausch (leia Perfil publicado na Revista E nº 269, de março de 2019), sobre toda a história nacional

e internacional desta linguagem e comecei a me interessar muito por esse estilo dentro da dança. Já na cidade de São Paulo, participei de várias companhias de dança e, com Mário Nascimento, que me introduziu na dança contemporânea. Também fui pesquisar sobre dança moderna, porque eu não compreendia muito o que era. Fiquei nos Estados Unidos por alguns meses para entender e tive bons professores em São Paulo. Esse trabalho me deu uma base para o trabalho corporal que eu estava começando a descobrir. À PRIMEIRA VISTA

Lembro até hoje o dia em que assisti à Companhia de Danças de Diadema. Foi num festival em Santos onde eu também apresentei alguns trabalhos coreográficos com grupos para os quais eu desenvolvia coreografias. Lá eu encontrei Ivonice Satie, que era uma das juradas e também dava cursos. Teve um momento em que ela me falou: “Aparece em Diadema para conhecer a Companhia”. Assisti ao espetáculo da companhia e fiquei encantada com a maneira como levava a dança: uma maneira despojada, em que bailarinos e bailarinas não tinham um estereótipo, eles se aproximavam da humanidade, e a dança fluía naturalmente. Fiquei encantada com aquele estilo. Aí, fiz uma audição como bailarina para a Companhia de Danças de Diadema e passei. Cheguei a Diadema sem conhecer a cidade e fiquei boquiaberta com o interesse da população pelas artes, pela dança. A companhia, naquela época, estava entrando em seu terceiro ano de vida – hoje ela tem 26 anos.

QUE A ARTE SEJA PARA NOS DEVOLVER A VONTADE DE VIVER

ARTISTAS E ORIENTADORES

Quando entrei na Companhia, vi que minha paixão pela dança e pelas Ciências Sociais se encontravam porque nela há um projeto social e artístico em que todos os bailarinos, inclusive eu, damos aulas para a moçada: desde crianças até pessoas de 80 anos. Ou seja, além do trabalho artístico pelo qual já estava apaixonada e envolvida, esse projeto me encantou ainda mais. Quando Ivonice Satie (1950-2008) – que foi uma grande bailarina, também integrou o Balé da Cidade e foi assistente do Ballet de Genève: uma mulher à frente do

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Cena de SCinestesia – Do espaço do corpo, ao corpo do espaço (2021) foi transmitida pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo pela programação do Circuito Sesc de Artes.


convidou para dar continuidade à companhia e ao projeto social. Depois disso, já se vão mais de 20 anos. Passamos por muitas turbulências políticas, financeiras e estamos passando por outra, com a pandemia, mas esse sentido de continuidade ecoa. CENA EM DIADEMA

Silvia Machado

seu tempo – criou essa companhia, ela já havia pensado nesse perfil duplo. Bailarinos e bailarinas também seriam professores ou, como nós falamos, artistasorientadores nas oficinas que acontecem juntamente com a prefeitura e Secretaria de Cultura de Diadema. Então, ali consegui encontrar um sentido muito maior e uma realização. Trabalhamos por muito tempo juntas, fui assistente de direção de Ivonice até que entre 2002 e 2003 ela aceitou o convite para coordenar a Companhia de Dança do Amazonas. Quando foi para lá, ela me

Hoje vemos muito mais representatividade [na cena da dança em Diadema]. Então, no começo, Ivonice levou um elenco formado por profissionais da cidade de São Paulo. Com o tempo isso foi se modificando. Hoje o projeto que temos como artistas-educadores não é profissionalizante, mas de acesso à dança. Um projeto que não quero que as pessoas associem à assistência social, mas à possibilidade de acesso a essa linguagem artística que espero que ainda possa ser profissionalizante em nossa companhia, porque há muitas preciosidades em Diadema que poderiam seguir essa carreira. O que acontece é que algumas das pessoas que fazem parte das oficinas também se interessam em dar continuidade ao profissionalismo. Como a gente abre audição todos os anos, hoje em dia aparecem mais candidatos da própria cidade. O Ton Carbones, que é meu assistente de produção, produtor e bailarino, veio das oficinas. Ele começou aos 17 anos, se apaixonou pela dança e continua lá. Outros se tornaram professores ou foram estudar ou trabalhar fora do país. Acredito que a cidade poderia investir num trabalho de formação maior e mais forte, algo que sempre falo com meus parceiros da Secretaria de Cultura de Diadema. O trabalho da dança tem que acontecer todo dia no sentido da formação, e as oficinas acontecem uma, duas vezes por semana. Tem iluminadores, videomakers e fotógrafos da cidade que estão sempre com a gente nos espetáculos, mas também precisamos de mais profissionais da área. Acho que esse projeto da companhia forma principalmente seres humanos com noções de coletividade, de cidadania, de troca, de bem-estar. Estamos com nossos alunos todas as semanas e, no final de semana, esses alunos vão nos assistir no palco e falam: “Olha ali: meu professor, minha professora”. Então, também desmistifica um pouco a figura do bailarino e nos aproxima das pessoas.

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NASCE UMA COREOGRAFIA

Depois que a Ivonice saiu da Companhia de Danças de Diadema, foi um desafio pra mim. Eu passaria a trabalhar na direção dos meus pares, como coreógrafa e bailarina. Depois desse momento, dessa transição para a direção, com um pouco mais de segurança, criei alguns trabalhos que também foram premiados. Com o passar do tempo, percebi que em minhas criações, meu estilo de movimento não seria apenas um. Seria aquilo que a obra pede. Eu sempre vou pesquisar uma movimentação que seja a mais coerente com aquela obra e, a partir daí, vou trabalhando com a participação dos bailarinos também. A pesquisa em dança é o que mais me atrai. No meu caso – porque existem várias maneiras de fazer uma nova coreografia –, procuro escutar o que aquela obra pede: como será a movimentação da obra (na qual me baseio) para criar uma coreografia? Vou tentando escutar o que aquela obra pede. No Crendices… Quem Disse? (2007), por exemplo, veio algo das danças dos orixás. Já em Paranoia, inspirado na obra homônima de Roberto Piva, quando li as poesias, fui criando uma imagem de movimento e de roteirização e estudei, por exemplo, o karatê por conta da força e da energia na escrita do Piva. Então, muitas coisas na movimentação de Paranoia vieram do karatê. Outro caso é o espetáculo Eu por Detrás de MIM, premiado pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e que agora vamos lançar em versão virtual. Ele se baseou na obra O Espelho, de Guimarães Rosa, por isso a movimentação parte de uma pessoa em frente ao espelho. Trabalhei exaustivamente com os bailarinos e daí o movimento se expandiu. Também faço um roteiro dramatúrgico que não aparece literalmente e que pode mudar a qualquer momento. Mas tento trabalhar dentro dessa dramaturgia. DANÇA E LITERATURA

Acho que Crendices... Quem Disse?, Paranoia e Eu por Detrás de MIM, apesar de serem inspirados em obras literárias, tiveram caminhos de criação diferentes. Claro que, como coreógrafa, tenho meu “jeitão”, algo que as pessoas descrevem como cinema, outra arte pela qual sou apaixonada. Tem um olhar cinematográfico, não técnico, porque só agora estou me atrevendo a fazer videodança. Mas, por exemplo, em Crendices, a questão da movimentação foi, como eu disse, baseada nas danças dos orixás. Já em Paranoia, nós ficamos falando alto as poesias do Piva durante

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os improvisos – e eu trabalho muito com improviso. Em Eu por Detrás de MIM, o texto de Guimarães Rosa estava por trás do trabalho, como uma situação psicológica: como é o meu “eu”?; como me encontro com esse “eu”; quando me encontro com ele – que é a grande questão desse livro – o que esperar desse “eu”. Então, a transposição da literatura para a dança se dá por várias formas. É curioso porque tem hora que vem pra mim uma obra literária que é inspiradora, outra hora vem uma figura, uma obra plástica. Outro trabalho, CSinestesia (2021), que foi filmado fora do teatro e apresentado no Circuito Sesc de Artes deste ano [pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo]. Me inspirei na animação polonesa chamada Tango (1981), na qual as pessoas vivem num looping dentro de um cômodo da casa: ela me deu a ideia de movimentação e situação e isso antes da pandemia. Ou seja, foi um pouco premonitória essa história onde várias pessoas que não se relacionam estão presas dentro de um mesmo cômodo porque começamos essa criação em 2018. Então, são várias inspirações para a dança. OUTROS TEMAS

Acho que aquilo que a virtualidade nos trouxe, como a aproximação, temos que extrair como algo de bom. Outras coisas têm que ficar no passado. Por exemplo, há momentos em que o assunto de uma obra precisa se diversificar. A arte não é só sofrimento, nem trata somente de questões pesadas e difíceis para o público digerir, mas precisamos olhar para outros assuntos. Que a arte seja para nos devolver a vontade de viver. Seja ela em vídeo ou em formato presencial. Não digo que devemos esquecer o que estamos passando nessa pandemia, bem como em relação a esse momento de polarização que estamos vendo e o descaso com os artistas e a produção artística do Brasil. Algo que inclusive se potencializou porque está dentro do nosso discurso (como artistas) uma crítica política, já que a classe artística é sempre esquecida. Aliás, esse discurso está mais forte agora e tem que existir para ver se acontece alguma mudança nesse pensar sobre a arte. Assista ao vídeo desse Encontros com Ana Bottosso


O primeiro forte do país recebe uma nova exposição com recursos interativos. A mostra apresenta a história do Brasil, do Forte e também da cidade de Bertioga sob diversos pontos de vista. Curadoria de Marília Bonas. De 4 de dezembro de 2021 a 20 de março de 2022 Terça a domingo, das 9h às 18h Entrada gratuita Av. Vicente de Carvalho, s/nº Centro - Bertioga | SP

Apoio

Realização


Reprodução

DEPOIMENTO

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RITA NOGUERA


PROFESSORA E ESCRITORA FAZ UM RELATO DE SEU PERCURSO PROFISSIONAL E REFLETE SOBRE A ARTE/EDUCAÇÃO COMO MEIO DE APROXIMAR PESSOAS

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partir de detalhes do cotidiano e dos movimentos impermanentes da natureza, a arte-educadora Rita Noguera criou, à maneira do poeta Manoel de Barros (1916-2014), um quintal maior do que o mundo. Na infância, em meio a hortas, coelhos e porcos, desenvolveu a aptidão de observadora. Também aprendeu com pais e irmãos que nada se quebra, tudo se transforma em outra coisa e mais outra, e assim por diante. Na escola, as possibilidades de criar enredos e figuras com apenas papel e tesoura à mão, durante as aulas de Educação Artística, foram importantes para que aflorasse uma paixão pela arte e pela educação. Ao longo de aproximadamente 30 anos, Rita Noguera dedica-se à realização de oficinas e cursos e já publicou livros sobre arte/educação na Espanha, onde reside há mais de 25 anos. Entre grandes referências e influências em seu trabalho, está a educadora, professora, pesquisadora e escritora Ana Mae Barbosa (leia Encontros publicado na Revista E nº 272, de junho de 2019), que coordenou, junto ao arte-educador Sidiney Peterson, o curso Abordagem Triangular e o Ensino de Artes na Educação Infantil, de seis videoaulas (15 minutos cada), que estará disponível na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo no primeiro trimestre de 2022. Nele, Rita Noguera participa de duas aulas, nas quais fala sobre o fazer artístico.

DETALHES FAZEM DIFERENÇA

TESOURA E PAPEL

Posso dizer que a arte me acompanha desde pequena, mas de uma maneira transversal. Eu não tinha contato com a arte de museus, de teatro, mas escutava bastante música em casa e a minha mãe cantava muito enquanto eu fazia as tarefas da escola. Penso que a arte do dia a dia, dos detalhes, é o que me despertou para ser sua grande admiradora nos diferentes âmbitos. Meus pais gostam muito de plantas e meu avô tinha horta, coelhos e porcos. Em casa nunca se jogava nada fora porque tinha quebrado ou gastado: tudo podia servir para outra coisa, podia ser aproveitado. E meu pai sempre foi autônomo e em casa nunca faltou nada, mas sempre soubemos o que custava conseguir cada passo. Penso que, olhando para esse fato, minha família sempre foi muito criativa e poucas vezes se falava de problemas, falava-se de procurar soluções. Lembro que na minha casa nunca compramos uma árvore de Natal e que a cada ano pegávamos um galho caído. Minha mãe e eu éramos as responsáveis por deixar o galho com cara de árvore de Natal e elas eram únicas. Penso que a arte que a minha mãe tem para cozinhar também me influenciou muito.

Depois dessa influência desde pequena, era fácil desfrutar da arte. Eu gostava de desenhar e adorava recortar. Para me ver feliz, bastava me dar tesoura e papel. Entre 12 e 14 anos estudei em uma escola municipal e me lembro de duas professoras de Educação Artística: uma de manualidade, só que eu gostava mais da outra, com mais fundamentos artísticos. Isso me chamava a atenção. Lembro que perguntei a ela o que tinha estudado, pois queria ser como ela. Uma atividade que me marcou muito com essa professora, que acho que se chamava Keiko, foi um projeto que consistia em pintar os vidros da escola no sábado. Eu achei aquilo o máximo: ir para a escola de fim de semana, sem uniforme e poder pintar, me marcou. Anos mais tarde, em 2016, fiquei muito surpresa no Seminário Histórias da Arte/Educação: Diálogos com Ana Mae Barbosa na Unesp, quando Ana Mae falou sobre o Festival Multicultural e Multimídia, que aconteceu em Campos do Jordão em 1983 e que, entre tantas atividades realizadas pelos professores, e propostas pensadas para que levassem práticas para a escola nos fins de semana, acho que ela se referia à

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professora Keiko. Não posso ter certeza, mas, fazendo contas, acho que sim. Para mim essa conexão de tempo e espaço de algo que me marcou tanto quando criança explica a conexão com pessoas que seriam tão fundamentais na minha vida profissional. E um detalhe: curiosamente, aos 14 anos, vim à Espanha pela primeira vez para conhecer a minha família espanhola, e o primeiro museu em que entrei na minha vida foi o Museu do Prado. Me sentia uma formiguinha no meio de tantos quadros enormes.

minhas colegas de trabalho Gisele Massa, Alessandra Strano e Luciana Miranda. Era uma equipe ótima. Uma das coordenadoras, Ana Maria Escobar, escutava as ideias que eu trazia da universidade. Eram propostas para crianças mais velhas, uma vez que na universidade não se falava da etapa infantil. Ana Maria me ajudava a adaptar as propostas para as crianças de dois a três anos, que eram com as quais eu trabalhava. Lembro até hoje de uma frase que Ana Maria nos falou em uma reunião: TRILHA PROFISSIONAL “A escola só vai ter o seu verdadeiro sentido quando Percebo que a arte/educação parece que me ela deixar de ser esse enorme elefante branco dentro encontrou de maneira natural, sem que eu fosse muito da sociedade”. Ensinar com sentido, com significado, consciente. Mesmo que aos quatro anos eu falasse relacionar um tema ao outro, realizar atividades que queria ser professora de desenho e dos 11 aos 14 de reciclagem de material com as eu desfrutasse das aulas de Educação crianças… Tive muita sorte de começar a Artística, não era claro que eu fosse me trabalhar em uma escola como o Núcleo dedicar a essa área. Tenho dois irmãos A ARTE É, SEM Educacional Bosque do Morumbi, que mais velhos que estudaram Engenharia naquela época também já trabalhava a Civil e meu pai trabalhava com DÚVIDA, UMA inclusão. Eu sempre digo que realizar a terraplanagem. A relação da família com FERRAMENTA DE licenciatura em Educação Artística, com o campo e a horta é muito forte. No habilitação em Artes Plásticas, ao mesmo entanto, minha tia foi a primeira mulher COMUNICAÇÃO E tempo que trabalhei nessa escola infantil a terminar uma faculdade na família CONSCIENTIZAÇÃO de linha construtivista, fez com que eu e ela fez Administração de Empresas. me apaixonasse pela arte/educação. Senti Então, para mim foi horrível a hora de MUITO POTENTE E que era aquilo a que iria me dedicar. Por pensar no que iria estudar. Queria uma NECESSÁRIA NOS isso digo que, refletindo bem, acho que universidade pública para que meus foi a arte/educação. que me encontrou pais não tivessem que pagar e que eu DIAS DE HOJE de maneira natural. Na verdade, salvou pudesse trabalhar ao mesmo tempo. a minha vida profissional, pois, depois Por isso prestei para Administração de de adulta, já na Espanha, aos 28 anos, Empresas na Universidade de São Paulo descobri que era disléxica e por isso a ortografia e a (USP) e Engenharia Agronômica na Universidade leitura sempre foram complicadas para mim. Estadual de Campinas (Unicamp). Também prestei para Arquitetura no Mackenzie, a única particular, e Como fiz uma licenciatura totalmente prática, não queria estudar na Universidade Estadual Paulista isso me possibilitou poder realizar a universidade (Unesp) por ser fora da cidade, mas minha amiga sem maiores dificuldades. Karina Almeida foi quem me avisou que em São Paulo está o Instituto de Artes e que ela achava que essa REFERÊNCIAS NA BAGAGEM carreira podia combinar comigo. Gostei da ideia e me Já levo 30 anos trabalhando com arte/educação.. inscrevi para o vestibular da Unesp: foi o único em que Desse total, 25 trabalhando na Espanha, com um breve passei e na segunda chamada. intervalo de pouco mais de dois anos nos Estados Unidos, onde também morei e tive a oportunidade de me dedicar à arte/educação. como voluntária em SEGUNDA ESCOLA diferentes projetos. A minha grande referência na área Em 1991, comecei a faculdade e comecei a trabalhar se deu ao conhecer a professora Ana Mae Barbosa em uma escola infantil como auxiliar. A escola estava e a Abordagem Triangular no 2º Congresso de Arte começando a passar do método tradicional, com Infantil na Universidade Complutense de Madrid, em fichas, ao método construtivista. Aprendi muito com as

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DESDOBRAR SENTIDOS

1998. O seminário foi organizado pelo Departamento de Didática da Expressão Plástica, dentro da Faculdade de Belas Artes. Nessa época, eu cursava os créditos do doutorado com professoras como Noemi Martinez Diez e Marian Lopez Cao. Tenho contatos com muitas arte-educadoras do Brasil, pois Ana Mae, com o passar dos anos, foi me apresentando profissionais incríveis como: Leda Guimaraes, Vitoria Amaral, Fernanda Jalles, Fernanda da Cunha Fava, Rita Inês Petrykowski, Daniella Zanellato, Analice Dutra Pillar. Na Espanha, também fui conhecendo muitos profissionais dedicados à arte/educação, com quem realizei e realizo colaborações, intercâmbios enriquecedores, e que vêm de formações e campos de atuação bem diferentes do meu, como Alicia Weschsler, Janet Val, Sandra Sevita, Noemi Peña, María Arango, Alfredo Palacios, Amalia González, Laura Szwarc. É importante sinalizar que na Espanha atuo na área da educação não formal. Em atividades extraescolares, ateliês de arte em família, formação para adultos, atividades em museus. DIFERENTES CONCEPÇÕES

Até hoje, quando digo que sou licenciada em Educação Artística, as pessoas seguem se surpreendendo, pois na Espanha não existe essa formação específica. Não existe um professor especialista em Educação Artística e sim professores generalistas com alguma preparação em Educação Artística. Existem cursos de especialização, mestrados e doutorados, mas essa trajetória da arte/educação como disciplina no Brasil tem outra estrutura. Acho importante ressaltar que percebo que as pessoas profissionais que trabalham com o ensino da arte, tanto no Brasil quanto na Espanha, valorizam a necessidade de relacionar temas relevantes como meio ambiente, obras de mulheres artistas, trabalhos com arte e natureza, arte e ecologia, arte e artesanato ou abrir as portas dos museus para famílias com crianças pequenas. No entanto, há cada vez mais livros de arte de qualidade para crianças. Gosto de ver o lado positivo e acredito que temos características similares que nos alimentam. Acho que temos que continuar aprendendo uns com os outros para continuar avançando na valorização das artes na educação. Não precisamos ser melhores que ninguém, podemos aprender com as trocas.

Para mim a arte é uma ferramenta essencial nos dias de hoje. Aqui trago uma frase que Ana Mae disse no 2º Congresso Internacional Online entre Arte, Cultura e Educação – Reconexões da Abordagem Triangular no Ensino das Artes, em outubro deste ano. “A arte é a fibra

ótica da educação”. A arte é um veículo da comunicação fluida do passado com o presente, que mostra diferentes pontos de vista do nosso entorno, com diferentes estéticas que nos fazem pensar, contextualizar ideias, ler imagens e nos instigar para o fazer artístico. As bases da Abordagem Triangular são parte necessária de um conjunto para pôr em prática as diferentes linguagens da arte e para que nos comuniquemos com elas e por meio delas. A arte permite que nos comuniquemos sem confrontações, ela abre uma via de comunicação para provocar o pensamento e o debate interno de cada um. Os artistas nos contam temas importantes que nem sempre são difundidos nos meios de comunicação. Este ano vi a exposição Joanie Lemercier. Paisajes de Luz, na Fundação Telefônica, em Madri, e uma das obras me surpreendeu muito: A Floresta de Hambach e a Sublime Tecnologia, uma instalação na qual o artista francês mostra o desmatamento de uma das florestas mais antigas da Europa, a 200 quilômetros de Bruxelas, onde foi estabelecida a maior mina de carvão do continente. Ouço muito sobre a Floresta Amazônica, mas eu nunca tinha escutado sobre essa floresta. Não se trata de uma comparação, mas de olhar por que questões econômicas prejudicam nosso planeta. A arte é, sem dúvida, uma ferramenta de comunicação e conscientização muito potente e necessária nos dias de hoje. O curso Abordagem Triangular e o Ensino de Artes na Educação Infantil estará disponível no primeiro trimestre de 2022 na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo: www.sescsp.org.br/ead.

Jugar Con Arte

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Ilustrações: Paulo Sayeg

INÉDITOS

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SILVIANO SANTIAGO


Exercício ficcional por Silviano Santiago

M

amãe faleceu em junho de 1982. Passados uns dias, fui vistoriar seu quarto de dormir. Respirei profundamente sua ausência, viva em cada detalhe do aposento. Decidi examinar seus pertences. A bela cômoda em peroba maciça. Na gaveta superior, protegida dos olhos curiosos pela roupa íntima, uma velha lata de bolachas Maria. Retirei-a do esconderijo e a destampei. Uma espantosa coleção de fotos de época. Pus-me a manuseá-las e a examiná-las. Uma das fotos perturbou-me. Uma foto do grupo familiar fora rasgada por olhos e mãos raivosos e, dias depois, restaurada às escondidas por olhos e mãos amorosos. Separo-a do conjunto para melhor contemplá-la. Não a identifico de imediato, mas logo a reconheço por um detalhe. As três flores brancas que estão pintadas ao lado das pernas dobradas em negro do papai. Os pedaços confusos e informes da foto tinham sido emendados e colados em folha de cartolina branca. Recompunham uma imagem clicada no quintal aqui de casa, de modo parecido às peças daqueles jogos de armar paisagem ou pintura clássica que, antes da invenção do computador, encantavam as crianças sentadas nos ladrilhos do alpendre. Não fossem as mãos hábeis e... (ainda não encontrei o adjetivo justo) da mamãe, a foto teria desaparecido na cesta de papéis. No verso da foto restaurada, mamãe tinha desenhado uma frase com a letra bordada e arredondada de aluna aplicada do Colégio de freiras Santa Maria: Retrato de família que o Manuel rasgou. (Manuel é meu pai. Aquele senhor elegante, sentado. Não consigo tirar os olhos das botas com polainas curtas que ele calça. Tanto o colunista social de O Estado de Minas quanto os vizinhos atestavam que o Dr. Manuel era o último e legítimo vitoriano nos trópicos. Depois da queda do nazifacismo na Europa, as botas com polainas curtas não estavam mais em voga, e tinham desaparecido por completo em 1982, ano em que nós, os homens, nos vestimos com jeans e calçamos tênis. Ao se trajar de maneira formal, em especial para as cerimônias noturnas, o papai não dispensava as

polainas abotoadas nas laterais. Confeccionadas em tecido cor palha ou branco, contrastavam com o couro preto impecavelmente engraxado pela empregada e com a calça cortada em casimira inglesa escura. Se não tivesse posto os olhos na foto restaurada e preservada, teria esquecido por completo da existência das botas com polainas curtas. Papai era sóbrio apenas no uso de joia. Nenhum anel no dedo, nem o de esmeralda que ganhou do nosso avô no dia da formatura em Medicina. Apenas a corrente dourada atava as golas do paletó. “Ela mantém o relógio Patek Philippe guardado no bolso do colete e o tique-taque próximo ao coração” – ele satisfazia a curiosidade da minha irmã.) A duras penas, consegui do fotógrafo uma cópia perfeita da foto restaurada. Vai reproduzida acima. (Constantino é o fotógrafo. Ao regressar de Roma em 1949, para onde fora despachado pela família por razões que ficaram posteriormente conhecidas, ele monta elegante e logo bem-conceituado estúdio fotográfico no térreo do edifício Guimarães, situado na Avenida Afonso Pena, ao lado da recém-inaugurada casa Sloper. Especializa-se em cerimônias de batismo, primeira comunhão, formatura e casamento. Corria na boca pequena que ele tinha prazer em equilibrar, com retratos de família, os bons sentimentos sublimes e artificiais expressos nas fotos clicadas durante, ou após, os rituais religiosos. Pela lente da câmera fotográfica escorria, então, a saliva contida, vingativa e mórbida, de solteirão mal afamado. Traçava toda moça donzela da paróquia, como traçava, na Camponesa, o churrasco malpassado de filé mignon, com guarnição de deliciosos pães de queijo. Nada de arroz, fritas ou farofa de ovos. Constantino mantinha a forma de nadador do Minas Tênis Clube.) Pelas três flores brancas é que reconheci a foto rasgada pelo papai e reconstituída pela mamãe. Na parte central dela, estavam reunidos os quatro membros da família. O fragmento central da foto – reproduzindo apenas os quatro membros da família − fora ampliado a dimensões exorbitantes e emoldurado. Até a separação tardia e definitiva dos meus pais, o quadro esteve dependurado numa das paredes da sala de jantar, reservada às noites festivas.

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Como o ensaio de orquestra filarmônica lembra o futuro concerto, ou o manuscrito, o futuro livro impresso, a foto restaurada e guardada na lata de bolachas lembrava a plácida foto da família dependurada na sala de jantar. Algo do acabado só se conhece pelo inacabado. Algo do acabado inacabado só se conhece pelo inacabado acabado. (Sou eu o menino com quase cinco anos de idade, de pé e vestido de terninho branco, como que batendo continência. Pelo que lembro, não estou batendo continência a alguma bandeira que ficou fora do foco da câmara. Minha mão direita estava em vias de coçar a cabeça, repuxando os cabelos cortados a príncipe Danilo. Os dedos ficavam a encaracolá-los num arremedo do antigo gesto de ficar brincando com o chuca-chuca, preservado da tesoura do barbeiro até os meus três anos de idade. A caçula da família, também vestida de branco, está sentada no colo do papai. O corpo tão desconjuntado quanto boneca de pano era bem-comportado e risonho, ao contrário do irmão, de presença cabisbaixa e embirrada.) Quando o papai nos abandonou, mamãe mandou a empregada despendurar o retrato de família da parede da sala de jantar e dar sumiço com a foto e com a moldura dourada que a enquadrava em suplemento ao passe-partout branco. Mandou a empregada queimar o quadro no quintal. Do patamar superior da escada que baixa da cozinha, ela acompanhou o fogo arder. As cinzas foram levadas pelo vento que soprou forte naquela manhã. O vazio na parede da sala de jantar é ocupado por mancha quadrangular amarelada. Passamos a ser três em casa, eu já saindo da adolescência e minha irmã nela entrando. Sempre adoentada e alheia à vida, minha mãe pouco ou nada fazia. Vivia da pensão, como se viúva, e nós, como se órfãos de pai. Passamos a ser cinco, se conto a empregada Etelvina e a filha. Seis, na verdade, se conto, à esquerda da foto original, o discreto pedaço de roupa branca da filha adotiva da mamãe, tida por todos como filha caçula da empregada que tinha servido à sua mãe e agora serve a nós três. As duas figuras de cor, ou as três, tinham desaparecido como que por milagre da foto emoldurada e dependurada na parede da sala. Nela reinou plena a família nuclear branca.

(Minha mãe era simples, modesta e bela. Esbelta, mais alta que o marido. Em altura, puxei a ela. Seu pai fora funcionário público municipal e morava com a família num bangalô da Rua Além Paraíba, na subida do bonde para o bairro de Carlos Prates. Trajava blusa clara e saia escura. Sempre. A patroa imitava a empregada no vestuário feminino em duas peças e na escolha das respectivas tonalidades. Em noite de gala com papai, jamais a vi sair vestida com toalete de soirée em seda estampada, das que são expostas na butique da mãe de Ana Marina e ambicionadas pelas mulheres chiques da capital. Não passava por dondoca ou, como se diz hoje, por Barbie. Soam nos meus ouvidos palavras que tantas vezes escutei: “Na sua família pavão é o seu pai. E como pavoneia!”) Por que a mamãe tinha salvado a foto original das raivosas lâminas dos dedos paternos? Por que ela tinha mandado retirar a foto de família, emoldurada em cartão chanfrado branco e madeira dourada, da parede da sala de jantar? Restaurados em paciência e goma arábica, a foto e seu mistério estão a descoberto numa caderneta de anotações que estava no fundo da lata de bolachas. Ao ler as informações, tive acesso aos respectivos nomes dos fotógrafos e a uma espécie de diário íntimo de cada foto. Parecia-me que mamãe tinha transcrito suas prováveis falas, menos silenciosas do que elas. Havia umas trinta anotações e todas sem data. Muitas páginas da caderneta ficaram em branco. Por que o papai tinha rasgado a foto original clicada por Constantino? Por que ele mandara emoldurar e dependurar uma versão mutilada da inusitada foto na parede da sala de jantar? Ao ser contatado para ir fotografar a família em casa, Constantino reluta. Papai insiste. Não será uma foto comum, argumenta. Comemorativa, explica ao fotógrafo, a reafirmar que não seria tão diferente das fotos que clicava nos salões dos estabelecimentos de ensino da cidade e à frente do altar nas igrejas. Não importa o custo. E pagaria à vista, contra a entrega do material. Será uma foto da família no mês do sétimo aniversário de casamento, tirada enquanto os pedreiros e os pintores dão os últimos retoques na casa que, para abrigar a todos, ele tinha mandado construir na Rua Mato Grosso. Como as paredes da residência estão ainda sem a demão final de tinta e o interior sem mobília e sem decoração, a foto do grupo familiar seria tirada contra a parede dos fundos da casa. Requeria encenação.

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Constantino concorda finalmente. A foto do sétimo aniversário de casamento teria a parede dos fundos da nova casa mascarada e honrada por um painel pintado por artista. Representaria uma cena tranquila e bucólica da selva brasileira. Deveriam sobressair, no verde denso e escuro da mata, três flores brancas. A encomenda é feita a Del Pino, filho do falecido pintor Alberto Delpino. Com o Dr. Manuel não adianta rechaçar nem negociar o valor estipulado por ele. O artista economiza em tela e principalmente em tinta. A imagem pintada ganha as dimensões diminutas de quadro e não as amplas de painel. Papai não fica satisfeito. Parece calça de pegá frango – diz para os botões abotoados da polaina e não diz para o artista, receoso de que na hora h ele carregue de volta a tela. Os desentendimentos entre o papai e o fotógrafo continuaram por ocasião da montagem da cena no quintal. Constantino enxerga a usura do médico por detrás do tamanho reduzido do painel. E o traço marcante da sua personalidade pública tem de ficar à vista na foto de família. Constantino manda minha mãe chamar a empregada e a filha para segurarem a tela à certa distância da parede dos fundos da casa. Para se ganhar boa perspectiva, ela deve ficar ligeiramente inclinada. Constantino não se deixa intimidar pela contraordem dada pela voz patriarcal. Insiste. Mamãe vai lá dentro de casa buscar a empregada e a filha. Chegam, e junto com elas a filha adotiva da minha mãe. Papai embirra de vez. “Ela, não!”. Mamãe dissuade-o. Não há modo de afastá-la da barra das saias da Etelvina. “É como filha dela”, conclui. Constantino começa a sentir prazer em fotografar o grupo. Alguns retoques a mais e a cena estaria apropriada. Tempo não lhe falta nem paciência, aos modelos. “Eu era assim mesmo”, me disse o fotógrafo Constantino, quando o procurei – já entrevado na cama do hospital S. Lucas, onde fora internado para a cirurgia de câncer na próstata. “Eu sou assim mesmo”, repetiu, “só tiro a foto quando vejo que a arrumação do quadro está perfeitamente adequada à disposição do grupo familiar em cena. Os modelos ganham de presente uma intriga até então impenetrável pelos estranhos, que transparece no rosto e na postura de cada um. A sisudez contraída, empertigada e hierática nos adultos; a descontração natural nas atitudes e nos gestos das crianças e dos excluídos.”

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Na mesa de bar, Constantino dizia que fotografar cerimônia de batismo, primeira comunhão, casamento e formatura é simples e é perda de tempo. Serve para ganhar dinheiro e admiradoras. Olhos vivos, peles rosadas, bocas ardentes e dentes sorridentes se somam a seres humanos vestidos e maquiados impecavelmente. Faço-as em série, como artesão de Ouro Preto a esculpir vida afora a mesma figura em pedra-sabão. E embolso o devido e o não devido, por que não? “Fotografo grupo familiar por prazer íntimo”, concluía. “Ninguém se comunica com ninguém. Cada membro da família é singularmente único e inapelavelmente solitário. Não sei se é efeito da lente que capta a cada um, ou se da ideia de representação em si, a que não estão acostumados quando reunidos no dia a dia.” Mais avança a preparação da cena para o momento-chave da foto, mais ele se diverte com o quadro à sua frente. Dobra o tripé que sustenta a câmara, levanta-o do chão e dá alguns passos para trás, transportando-o com a força dos braços. Quer apreender o conjunto com alguma ironia. Reabre o tripé e o pousa na terra virgem, ainda recoberta por capim. A distância da câmera fotográfica leva o painel e as serviçais sobressaírem nas laterais, descaracterizando a


composição propriamente familiar pela realidade da vida doméstica e pela óbvia inadequação das figuras humanas ao arranjo final do grupo em pleno quintal de casa em construção. Na verdade, a empregada e sua filha são as duas cariátides que sustentam o painel bucólico. E a família patriarcal. A usura do patriarca ganha força na imagem. Constantino fecha um pouquinho o tripé, levantando-o. Levemente, inclina a câmara para o solo. O novo enquadramento extrai a família do fundo tranquilo e bucólico para descê-la até o chão do quintal do imóvel em construção. Salientam-se as mil e uma pedras e pedrinhas ajuntadas, os pedaços e as sobras do reboco que despencaram lá do alto. A sujeira de quintal. O Dr. Manuel leva horas diante dos espelhos do banheiro e do armário para se aprontar. Mesmo sabendo que o fotógrafo está chegando, não tem o cuidado de mandar os pedreiros limparem o local e dar ordem à empregada para varrer a sujeira. Constantino só não manda soltar algumas galinhas do galinheiro na horta porque já não seria uma foto de família. Seria um escárnio. Pede a todos que olhem fixamente para a lente da câmara. Os pais e as empregadas obedecem e ficam durinhos, verdadeiros autômatos. Os filhos não obedecem. À esposa ele pede que repouse a mão direita

no espaldar da poltrona em que está sentado o marido – e deveria estar ela. Que não repouse a mão no ombro esquerdo dele. Aquele tampinha emperiquitado! – pensa. Ela como que alonga o tronco do marido sentado na poltrona, assim como a empregada e sua filha levantam o painel de Del Pino ao fundo. A foto é feita. Constantino e o papai conversam. O fotógrafo exige o pagamento à vista, conforme o combinado. Papai o contradiz, dizendo que o pagamento combinado seria contra a entrega do material pronto. O médico recebe das mãos da atendente o envelope branco que o fotógrafo mandara entregar no consultório. Espera o último paciente sair para abri-lo. “Seu pai intuía corretamente minha intenção”, Constantino me diz no quarto do hospital. Fotografara um pai de família pretensioso, arrogante e mão-de-vaca. Uma família aos cacos e à beira da separação. “Minha foto tinha de ter sido rasgada pelo seu pai. Se ampliada, ele jamais a mandaria emoldurar para ser dependurada na parede da sala de jantar”. Na imagem, a família estava tão rasgada quanto na vida real. “Altiva e serena” – continua o Constantino –, “sua mãe enxergava a extensão do desastre que a esperava. Eis a mágica da representação em fotografia.” O Dr. Manuel senta-se na escrivaninha. Mune-se de régua e caneta. Com os dedos espalmados, enquadra primeiro a imagem que lhe é devida pelo fotógrafo e, em seguida, como que tendo à mão o afiado bisturi, estende quatro vezes a régua sobre a foto, sucessivamente. Traça quatro linhas que se cruzam em quatro ângulos retos. Extrai da foto o apêndice que, intacto, retira do corpo doente. Com nitidez e acerto, compõe o campo que a lente da câmara deveria ter apanhado. Na manhã seguinte, manda a secretária entregar a foto reenquadrada ao fotógrafo. Acompanha-a um bilhete em que detalha não só as dimensões da ampliação quanto o modo preciso como será feito o pagamento do trabalho. Cheque ao portador. SILVIANO SANTIAGO, ensaísta, romancista, crítico, contista e poeta, doutor em Letras pela Sorbonne, é autor de Uma Literatura nos Trópicos (Rocco, 2000) – lançado em 1979 –, Machado (Companhia das Letras, 2016), e o mais recente Menino sem Passado (Companhia das Letras, 2021), entre outros. Por três vezes foi premiado com o Jabuti de Literatura e pelo conjunto de sua produção literária recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.

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DESTAQUES 2021 EDIÇÕES SESC

ANNA BELLA GEIGER Coleção Arte, Trabalho e Ideal

HELENA IGNEZ, ATRIZ EXPERIMENTAL

Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz (Org.)

Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira

MUTAÇÕES Ainda sob a tempestade Adauto Novaes (Org.)

SÉRGIO MAMBERTI Senhor do meu tempo

GRUPO GALPÃO Tempos de viver e de contar

Dirceu Alves Jr. e Sérgio Mamberti

Eduardo Moreira (Org.)

ECOSOFIA Uma ecologia para nosso tempo Michel Maffesoli

PANDEMIA CRÍTICA Outono / Inverno 2020 – 2 vol.

O TEMPO DOS INCONCILIÁVEIS

TURISMO LEGITIMADO Espetáculos e invisibilidade

UMA HISTÓRIA DAS SEXUALIDADES

Peter Pál Pelbart (Org.) Edições Sesc São Paulo e N-1 Edições

Abdelwahab Meddeb

Helio Hintze

Sylvie Steinberg

sescsp.org.br/edicoes

/edicoessescsp


CREDENCIAIS SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO - SESC Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 - Belenzinho CONSELHO REGIONAL DO SESC DE SÃO PAULO

Carol Vidal

Central de Atendimento do Sesc Av. Paulista

Presidente: Abram Abe Szajman Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

OS EMPREGADOS COM REGISTRO EM CARTEIRA PROFISSIONAL, OS ESTAGIÁRIOS, OS TEMPORÁRIOS, OS DESEMPREGADOS HÁ ATÉ 24 MESES E AS PESSOAS QUE SE APOSENTARAM ENQUANTO TRABALHAVAM EM EMPRESAS DO RAMO DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO PODEM CREDENCIAR-SE NO SESC.

CREDENCIAL PLENA

Efetivos: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Benedito Toso de Arruda, Célio Simões Cerri, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José Carlos Oliveira, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Marcos Nóbrega, Milton Zamora, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva e Valterli Martinez.

• titular trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo - documento de identidade, CPF, carteira profissional atualizada e assinada que comprove o vínculo empregatício e foto 3x4*. estagiários do comércio de bens, serviços e turismo - termo de compromisso ou carteira de trabalho em que conste o número do CNPJ da empresa, documento de identidade, CPF e foto 3x4*. temporários do comércio de bens, serviços e turismo - contrato de trabalho ou holerite, carteira profissional atualizada, documento de identidade, CPF e foto 3x4*. desempregados do comércio de bens, serviços e turismo - documento de identidade, CPF, carteira profissional com o último registro comprovando estar desempregado há até 24 meses e foto 3x4*. aposentados do comércio de bens, serviços e turismo - documento de identidade, CPF, carteira profissional que comprove aposentadoria quando trabalhava em empresa do comércio de bens, serviços e turismo, além de comprovante do órgão de Previdência Social contendo essas informações e foto 3x4*. titular falecido - o dependente de trabalhador, estagiário, temporário ou aposentado do comércio de bens, serviços e turismo falecido poderá requerer sua Credencial Plena. Além dos documentos citados na lista de titular e dependentes, deverá apresentar também a certidão de óbito.

Suplentes: Aldo Minchillo, Alice Grant Marzano, Amilton Saraiva da Costa, Antonio Cozzi Júnior, Costabile Matarazzo Junior, Edgar Siqueira Veloso, Edison Severo Maltoni, Edson Akio Yamada, Laércio Aparecido Pereira Tobias, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vitor Fernandes e William Pedro Luz.

• dependentes cônjuge - documento de identidade, CPF, certidão de casamento, ou de nascimento de filhos em comum, ou, ainda, declaração de união estável e foto 3x4*. Para os casos de união estável, a certidão deve mencionar os nomes do casal, os números dos documentos de identidade e assinatura de ambos. filhos, enteados, netos e tutelados (até 21 anos) - certidão de nascimento ou documento de identidade, CPF e foto 3x4*. Para os netos, além desses documentos, apresentar também documento que comprove o parentesco com o titular. E para os tutelados, comprovante de tutela. filhos, enteados e netos (entre 22 e 24 anos) - documento de identidade, CPF, foto 3x4* e comprovante de matrícula ou pagamento recente de mensalidade em ensino superior, profissionalizante, pós-graduação (lato sensu, stricto sensu ou residência médica), preparatório para o ensino superior ou educação de jovens e adultos (EJA). pais e padrastos - documento de identidade, CPF e foto 3x4*. Para os padrastos e madrastas, é necessário apresentar documento que comprove união com o pai ou mãe do titular. avós - documento de identidade, CPF, documento que comprove o parentesco com o titular e foto 3x4*.

Diretor: Danilo Santos de Miranda Adenor Serrano Domiense, Adriana Cruz Macedo, Adriana Regina Furigo, Adriane Da Silva Ribeiro, Affonso Lobo Chaves, Ana Carla De Assis Ribeiro, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, André Luiz Santos Silva, Barbara Iara Hugo, Bruna Marcatto da Rocha, Claudia Cassia de Campos, Corina De Assis Maria, Danilo Cava Pereira, Danny Abensur, David Katayama Arnaud Sampaio, Diego Polezel Zebele, Edmar Rodrigues De Fátima Júnior, Eduardo Santana Freitas, Eloá De Paula Cipriano, Estevao Denis Silveira, Fabiana Passoni Martins Kuhn, Fabiana Regina De Freitas, Felipe Trindade Diniz, Fernanda Cristina Pereira De Oliveira, Fernanda Porta Nova Ferreira Da Silva, Fernando Oliveira Viana, Gabriela Da Silva Neves, Gislene Lopes Oliveira, Ivanildo Rodrigues Da Hora, Karla Priscila Vieira Carrero, Katia Rizzo Thomaz, Kelly Adriano de Oliveira, Lidiane De Jesus, Lilian Vieira Ambar, Lucio Erico Soares Cunha, Luis Claudio De Oliveira Tocchio, Marcel Antonio Verrumo, Marcos Ramon Filho, Marcos Villas Boas, Maria Fatima de Beja Lopes, Mariana Angelica Krauss de Vilhena Raimundo Maciel, Mariana da Rosa Silva, Monique Mendonça Dos Santos, Natalia Lemes Araujo, Priscila De Almeida Xavier, Priscila Rahal Gutierrez, Renata Barros Da Silva, Renato José Pereira, Renato Perez de Castro, Rosangela Aparecida De Almeida, Solange Alboreda, Talita Rebizzi, Tania Perfeito Jardim, Valéria Jenaite Taveiros, Wagner Dini de Castro

A INSCRIÇÃO É GRATUITA, VÁLIDA POR ATÉ 2 ANOS EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL E PODERÁ SER FEITA PELO TITULAR OU DEPENDENTES MAIORES DE 18 ANOS EM QUALQUER UNIDADE DO SESC.

CREDENCIAL ATIVIDADES

A emissão da Credencial Atividades é gratuita, individual e permite o acesso às atividades, desde que haja disponibilidade de vagas, sem estabelecer vínculos associativos. Menores de 18 anos devem estar acompanhados dos pais ou responsáveis legais. • Documento de identidade, CPF e foto 3x4*. *A foto poderá ser tirada gratuitamente no ato do credenciamento. Em caso de perda ou extravio da credencial será cobrada uma taxa de R$ 20 para a emissão da segunda via.

ATENÇÃO

Estamos retomando de maneira gradual os serviços presenciais no Sesc. Para fazer a Credencial Plena, incluir dependentes ou renovar a sua Credencial vencida, é necessário agendar horário para atendimento na Central de Atendimento. A entrada nas unidades do Sesc é realizada mediante apresentação de comprovante de vacina contra Covid-19. Baixe o aplicativo Credencial Sesc SP e utilize a Credencial digital. Acesse www.sescsp.org.br/credencialplena e saiba mais. As demais informações sobre documentação estão atualizadas.

REPRESENTANTES DO CONSELHO REGIONAL JUNTO AO CONSELHO NACIONAL Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior e Rubens Torres Medrano. Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Francisco Wagner de La Tôrre e Vicente Amato Sobrinho. CONSELHO DE REDAÇÃO E PROGRAMAÇÃO

REVISTA E Coordenação Geral: Ivan Paulo Giannini Diretor Responsável: Miguel de Almeida. • Diretor de Arte: Werner Schulz • Edição de Textos (Revista E): Ana Paula Cardoso e Maria Julia Lledo • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Manuela Ferreira e Maria Julia Lledo • Revisão: Luciana Batista de Azevedo • Coordenação Executiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis e Marina Pereira • Coordenação Editorial Em Cartaz: Aline Ribenboim • Propaganda: Daniel Tonus, José Gonçalves Júnior e Renato Perez de Castro • Arte de Anúncios (Revista E e Em Cartaz): Alexandre Calderero e José Gonçalves Júnior • Supervisão Gráfica: Hélcio Magalhães • Finalização: Lourdes Teixeira e Werner Schulz • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Jair Moreira Jornalista Responsável: Miguel de Almeida MTB 14122. A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social e realizada pela Lazuli Editora. Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios. Esta publicação está disponível no site: sescsp.org.br

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ALMANAQUE PAULISTANO

I

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PARA CONTEMPLAR Parque Burle Marx – Zona Sul

Quando, no final da década de 1940, o empresário Baby Pignatari convidou o paisagista Roberto Burle Marx para realizar os jardins de sua casa, projetada por Oscar Niemeyer, ele não imaginava que esse espaço também pertenceria ao público. Depois de uma restauração do conjunto artístico e paisagístico realizada em 1991 pelo próprio Burle Marx, a área de mais de 138 mil metros quadrados foi doada à prefeitura e os bosques de mata nativa foram tombados pelo Estado de São Paulo em 1994. Um ano depois, o Parque Burle Marx foi inaugurado, na Zona Sul da cidade, onde visitantes podem contemplar esculturas, espelhos d’água, nascentes, lagos, jardins e palmeiras imperiais. Ainda fazem parte da infraestrutura local uma trilha para passeio pelo meio da mata, aparelhos de ginástica, espaço de brincar e um orquidário natural. Serviço Local: Av. Dona Helena Pereira de Moraes, 200, Morumbi (próximo à estação de metrô Giovanni Gronchi, linha lilás). Horário: Aberto diariamente das 7h às 19h.

Informações:www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/ parques/regiao_sul/index.php?p=5733

Joca Duarte

lhas verdes onde o tempo pausa para a contemplação da natureza. Esse é um dos inúmeros significados que podemos atribuir aos parques localizados em grandes centros urbanos. Mas há quem os defina como espaço ideal para caminhadas e demais práticas de atividades físicas ou esportivas. Muitos também os consideram o melhor lugar para a criança brincar, correr ou subir em árvores. Há ainda aqueles que fazem deles um espaço para piqueniques, para encontrar amigos, para ler um livro ou até mesmo para observar pássaros. Na cidade de São Paulo são mais de 100 parques públicos abertos para visitação diária. Alguns mais populares, como o Ibirapuera, na Zona Sul, que atualmente abriga a 34ª edição da Bienal de São Paulo, e outros recém-inaugurados, caso do Parque Augusta, no Centro, que após décadas de mobilizações dos moradores foi aberto no mês passado. Para diferentes gostos e atividades, escolha um parque e desfrute dessa interação com a natureza!


PARA CONHECER Parque Augusta – Centro

Aberto ao público em novembro, esse parque é uma resposta à demanda de moradores do Centro da cidade por mais áreas verdes. Em 23 mil metros quadrados, com projeto do arquiteto Samuel Kruchin, é possível fazer trilhas e caminhar por bosques onde estão preservadas espécies da Mata Atlântica, como o cedro-rosa. O local também inclui um espaço de brincar, “cachorródromo” e equipamentos para atividades físico-esportivas. Outro destaque fica por conta do restauro do portal da rua Caio Prado e da Casa das Araras (local onde serão realizadas atividades educativas e culturais), que são espaços tombados. Serviço Local: Acesso pela rua Augusta, 344 ou pela rua Caio Prado, 230/232, Consolação (próximo à estação de metrô Higienópolis-Mackenzie, linha amarela). Horário: Aberto diariamente das 5h às 21h.

Informações: www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/ secretarias/meio_ambiente/parques/regiao_ centrooeste/index.php?p=317881 Adriana Vichi

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PARA FAZER ARTE Parque Lina e Paulo Raia – Zona Sul

Aberta ao público há exatos 40 anos no bairro do Jabaquara, essa área verde é um respiro para moradores de uma região cercada de prédios. Em uma área de mais de 15 mil metros quadrados, composta por orquidário, pista de caminhada e aparelhos de atividade física, o parque destaca-se pelo espaço de brincar e principalmente por abrigar um local público de iniciação artística. Anteriores à criação do parque, três casas edificadas ali foram transformadas na Escola Municipal de Iniciação Artística (Emia), instituição pública que oferece atividades de dança, música, teatro e artes visuais a um público de 5 a 13 anos.

Serviço Local: Rua Volkswagen, s/n, Vila Guarani (próximo à estação de metrô Conceição, linha azul). Horário: Aberto diariamente das 7h às 18h.

Joca Duarte

Informações:www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/parques/ regiao_sul/index.php?p=5752

PARA OBSERVAR PÁSSAROS Parque Anhanguera – Zona Norte

Maior parque municipal de São Paulo, com uma área superior a nove milhões de metros quadrados, o Parque Anhanguera é a morada de dezenas de espécies de aves originárias da Mata Atlântica, como o jacuaçu, coró-coró, inhambu-guaçu e inhambu-chitã. Localizado no bairro de Perus, Zona Norte, o parque ainda é composto por quadras poliesportivas, espaços de brincar, pista de caminhada entre outros ambientes. Leve os binóculos ou simplesmente fique atento às copas das árvores para admirar a diversidade de pássaros e a flora dessa imensa área verde da cidade. Serviço Local: Av. Fortunata Tadiello Natucci, 1.000, Perus Horário: Aberto diariamente, das 6h às 18h.

Informações:www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/ secretarias/meio_ambiente/parques/ programacao/index.php?p=5730

Arquivo SVMA

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PARA ANDAR DE SKATE Parque Zilda Natel, Zona Centro-Oeste

Esporte que arrebatou novos admiradores nas Olimpíadas de Tóquio, o skate é o atrativo principal dos visitantes do Parque Zilda Natel, na Zona Centro-Oeste da cidade, inaugurado em 2009. Pistas de skate street com obstáculos que simulam condições encontradas nas ruas (como rampas e corrimãos); banks com 75 metros quadrados no estilo bowl (bacia) e um half pipe de 100 metros quadrados são os queridinhos de praticantes e novatos. Ocupando uma área de pouco mais de dois mil metros quadrados, o parque ainda reserva espaço para uma quadra de basquete de rua, mesas para jogos de tabuleiro e aparelhos de ginástica. Serviço Local: Av. Dr. Arnaldo, 1250, Sumaré (próximo às estações de metrô Sumaré e Clínicas, linha verde). Horário: Aberto diariamente das 9h às 21h

Joca Duarte

Joca Duarte

Informações:www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/ secretarias/meio_ambiente/parques/regiao_ centrooeste/index.php?p=17690

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PRISCILA RAHAL GUTIERREZ

Ricardo Ferreira

P.S.

Primeira vez

E

ra quinta-feira quando recebemos a notícia: os teatros do Sesc reabririam em breve. E com eles, aos poucos, outros espaços voltariam a oferecer atividades artísticas a um público presencial. Um certo misto de objetividade e subjetividade me invadiu. Objetividade: pensar em protocolos de reabertura, pesquisar medidas sanitárias, verificar a operação de outras casas voltadas a essa atividade, considerar que tipo de programação seria mais seguro, como comunicar ao público tudo isso, agendar reuniões com todos os setores envolvidos na retomada. Subjetividade: euforia, espanto, saudade, algum receio, algumas dúvidas, muitos desejos. A sequência que se deu a partir disso foi uma série de Primeiras Vezes. O primeiro projeto presencial, o primeiro show, a primeira plateia, a primeira fruição coletiva, o primeiro aplauso, as primeiras interações. A sensação de programar o primeiro projeto com público presencial, depois da pandemia, era de sonho: parecia um exercício imaginário, como se estivéssemos planejando algo impossível. Por mais que discutíssemos questões operacionais concretas, pensando na idade dos artistas, na quantidade de doses de vacina que teriam tomado, nas estratégias específicas para cada tipo de show, de acordo com seus instrumentos (distanciamento entre os músicos, teatro com maior distância entre palco e plateia, necessidade ou não de protetores de acrílico, dentre outras medidas), ainda assim, eu não conseguia formar mentalmente uma imagem daquele acontecimento. E eis que aconteceu. O sonho, finalmente cristalizado no mundo tridimensional. No dia 15 de outubro de 2021, lá estava eu, no Sesc Pompeia, na abertura do Sesc Jazz, de cuja curadoria participara junto a um grupo seleto de colegas, para o show do Amaro Freitas. Experimentei com prazer a sensação de estar pela primeira vez em meses diante de um palco formado não por câmeras, mas por globos oculares. Essas estruturas complexas que, assim

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Show de Amaro Freitas, no Sesc Pompeia, na abertura do Sesc Jazz

como uma câmera, captam luz e convertem em sinal elétrico; mas este, por sua vez, é processado não por placas tecnológicas, mas por circuitos neurais. Circuitos neurais repletos de subjetividades. A escritora francesa Anaïs Nin nos disse que “não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos”. O simples ato de ver já é repleto de subjetividades. E começou o primeiro show. O quão simbólico foi termos feito a abertura das ações presenciais com uma apresentação musical essencialmente afro, de um pianista negro que teve uma postura tão generosa nos arranjos, dando protagonismo aos músicos com quem dividiu o palco. Como foi bonito reabrirmos com um show que não se colocou acima da música, e sim a serviço dela. Minha concentração, assumo, não era total. Fui distraída pela noção de que o mesmo acontecia, naquele momento, em diversos outros teatros da rede Sesc. Todos com suas primeiras vezes. O sentimento era de conexão: com a plateia que estava comigo, e com todas as outras, nas outras unidades, naquele momento. Foi impactante sentir de novo, pela primeira vez em tanto tempo, a experiência da fruição coletiva, como se fôssemos instrumentos ressoando harmônicos juntos, e não um empilhamento digital de samplers gravados, para fazer uma analogia com a relação entre show e live. Terminada a apresentação, algo que me pareceu realmente inédito após meses de shows em telas: aplausos! Senti as mãos queimarem, batendo palmas pela primeira vez em mais de um ano. Aquela massa sonora percussiva, que aos poucos foi entrando em sincronia ritmada, me fez lembrar que, como diria Nietzsche, temos a arte para que a verdade não nos mate. PRISCILA RAHAL GUTIERREZ é instrumentista, bacharel em Música com habilitação em piano pela ECA-USP. Atualmente integra a equipe de assistentes técnicos da área de Música da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.


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Beatriz Azevedo e Moreno Veloso homenageiam Clarice Lispector, no primeiro single do álbum dedicado à escritora.

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