Revista E - abril/2023

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Revista E | abril de 2023 nº 10 | ano 29

Aos 80 anos

Danilo Santos de Miranda reflete sobre gestão cultural no país

Visão expandida Tuca Vieira e o registro fotográfico das desigualdades nas hipercidades

João Gilberto

Pai da bossa nova em álbum inédito lançado pelo Selo Sesc

Cartazes teatrais Legado do Centro de Pesquisa Teatral do Sesc em acervo digital

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JOÃO GiLBERTO

AO ViVO NO SESC 1998

25 anos depois da performance de João Gilberto no teatro do Sesc Vila Mariana, o Selo Sesc recupera esse registro e lança o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998). No repertório, uma relíquia nunca gravada pelo inventor da Bossa Nova, Rei sem coroa (Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição).

Ouça Rei sem coroa nas plataformas

Ouça o álbum completo em sescsp.org.br/relicario

CAPA: Foto do mural do artista Speto em edifício no centro de São Paulo em homenagem ao músico brasileiro João Gilberto. A arte ilustra também o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), lançado neste mês pelo Selo Sesc, que traz 36 canções de show realizado em 1998, no Sesc Vila Mariana. No repertório, canções como Desafinado, Chega de Saudade e a inédita Rei Sem Coroa

Foto: Matheus José Maria

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Criado há mais de sete décadas, o Sesc – Serviço Social do Comércio se alicerça no compromisso de promover bem-estar aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, a seus familiares, bem como a toda a comunidade. Por meio de uma atuação permanente no âmbito da educação não formal, oferece atividades diversas nos campos da cultura, dos esportes, do lazer, do turismo social, da saúde e da alimentação, proporcionando o crescimento interpessoal e a sociabilização.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Trata-se de uma ampla e inovadora ação que atende aos diferentes frequentadores dos centros culturais e esportivos da entidade, presentes em todo o estado, e intensificada também no universo digital. Assim, ancorado nos princípios da equidade e da valorização da diversidade, o Sesc convida seu público a conhecer, aprender, interagir e se desenvolver individual e socialmente. Ao dedicar recursos e esforços na manutenção deste projeto cultural, o empresariado do setor reafirma o pacto assumido desde 1946 de construir uma sociedade com mais intercâmbio de saberes, perspectivas e experiências, bem como de mais oportunidades para todos e todas.

Sesc São Paulo para tablets e celulares
Um convite ao aprendizado permanente

Cuidar como princípio ético

De todas as complexas dimensões que envolvem a gestão cultural, a mais significativa talvez seja a do cuidado com as pessoas. A idealização e a execução de ações que impactam a cena cultural ganham sentido mais amplo quando englobam intensa e verdadeiramente o compromisso de zelar pelo outro. Esse cuidado presente nas miudezas dos detalhes, na delicadeza do cultivar as relações, na poesia, afinal, que é a aventura de viver coletivamente.

Para muito além das realizações que concretamente vão construindo essa agenda, e manifestando, por meio das linguagens artísticas, a nossa tradução do simbólico, está o processo. Essa ação cotidiana e procedural, que nos envolve no intervalo entre o plano das ideias e a prática do campo cultural nos palcos, praças e galerias, é o que deixa as marcas indeléveis na memória, é o que constrói legado. Não há processos sem pessoas. Fazer gestão cultural é, em sua essência, cuidar. E celebrar aquilo de que somos capazes de realizar juntos. É esse o sentido mais extraordinário.

Neste mês, em que celebro meus 80 anos de idade e compartilho, em Entrevista à Revista E, algumas das experiências dessa longeva e frutífera trajetória, os convido, também, a apreciar o álbum inédito Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), tema de reportagem desta edição. Lançado neste mês pelo Selo Sesc, o disco recupera a gravação do show realizado pelo saudoso João Gilberto no Sesc Vila Mariana, há 25 anos. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO

AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adriano Ladeira Vannucchi, Alexandre Sousa Leopoldino, Ana Cristina Jimenez, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, Bárbara Sesso Carneiro, Beatriz de Oliveira Falasco Zerbini, Bruna Piccirillo Damasceno, Bruna Zarnoviec Daniel, Camila Freitas Curaçá, Carlos Daniel Dereste, Caroline Souza de Freitas, Cherrye Mendes Virote, Chiara Regina Peixe, Cinthya de Rezende Martins, Corina de Assis Maria, Cristiane Toshie Komesu, Danny Abensur, David Katayama Arnaud Sampaio, Denise Ramos da Fonseca, Diego Polezel Zebele, Eder Martins, Eduardo Santana Freitas, Emerson Luis Costa, Fabiana Delboni Martins, Fabiano Jose Braz de Oliveira, Fabíola Larissa Tavares Milan, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernando Andrade de Oliveira, Fernando Goulart Da Silva, Fernando Oliveira Viana, Geraldo Cruz e Silva Neto, Gislene Lopes Oliveira, Jacqueline Alves Coutinho Abe, Jacy Helena Almeida Silva, Jucimara Serra, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Barreto da Silva, Juliana Okuda Campaneli, Karen Cristine Pimentel Dos Santos, Karla Priscila Vieira da Silva, Kelly dos Santos, Leandro Credo Rodrigues, Lilian Vieira Ambar, Luana Brito Lima, Marcel Antonio Verrumo, Marcelo dos Santos Friggi, Maria Cláudia Novaes Curtolo, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Barbosa Meirelles Ruocco, Mariana Lins Prado, Mariane Cristina dos Santos, Marina Maria Magalhães, Mayra Claudia Gregorio dos Santos, Michael Anielewicz, Mirele Carolina Ribeiro Corrêa, Monique Mendonça dos Santos, Pedro Alberto Ribeiro Pinto, Pedro de Moura Souza, Priscila dos Santos Dias, Rafael Nicolas da Silva, Rafaela Ometto Berto, Regiane Gomes da Conceicao, Renan Cantuario Pereira, Renan Cesar de Abreu, Renata Barros Da Silva, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Robson Luiz dos Santos, Romeu Marinho C. Ubeda, Silvia Cristina Garcia, Sofia Calabria y Carnero, Sonoe Juliana Ono Fonseca, Stephany Tiveron Guerra, Tais Cardoso Barato, Tania Perfeito Jardim, Thais Cristina Kruse, Thanya Fernandes Carboni Ré e Viviane Machado Lemos.

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Ilustrações: Pri Wi • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Ana Paula Sousa, Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação-Executiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Daniel Tonus, Edmar Junior e José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero, Ariane Ramos de Azevedo, Jucimara Serra e Humberto Motta • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

Fale conosco: revistae@sescsp.org.br

Confira os destaques da programação do mês, entre eles o projeto Inspira – Ações para uma vida saudável

Ao celebrar 80 anos, diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, reflete sobre como é adentrar a velhice produzindo futuro

Homenagens à maestria da cantora e compositora Dona Ivone Lara nos campos da música e da saúde mental, no centenário de seu nascimento

Para garantir segurança, quais cuidados devemos ter em casa na escolha, preparo e armazenamento das refeições diárias?

Registro de shows ao vivo de João Gilberto no Sesc Vila Mariana, há 25 anos, ganha álbum lançado pelo Selo Sesc

Cartazes dos espetáculos dirigidos por Antunes Filho preservam história do CPT_SESC e do próprio teatro brasileiro

dossiê entrevista música bio gráfica alimentação

p.11 p.16 p.24 p.34 p.40

p.54

SUMÁRIO
Adriana Vichi (Entrevista); Acervo Sesc Memórias (Gráfica)

Artigos colocam a bola em campo, propondo outras perspectivas sobre o futebol

Natalia Borges Polesso e Pri Wi

Dicas de sebos e espaços culturais na cidade de SP, onde o aconchego literário convida públicos de todas as idades à convivência.

Tuca Vieira

Ginasta

Rebeca Andrade compartilha vitórias e desafios do esporte que a consagrou como medalhista olímpica

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.

p.60

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82

Wagner Palazzi
John John Valle (Encontros); Wander Roberto / COB (Depoimento)

As cantoras Elba Ramalho e Mariana Aydar subiram ao palco do Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, em março, para três dias de shows. No repertório, músicas do rei do baião, Luiz Gonzaga (1912-1989), e de Dominguinhos (1941-2013), além de canções de álbuns recentes das artistas. Em coro, o público cantou Ai Que Saudade D'ocê, Espumas ao Vento, Chão de Giz, entre outros sucessos.

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Matheus José Maria em cena

16.04.2023

Aulas abertas, apresentações esportivas, vivências e oficinas mostram como o lazer pode ser fundamental no desenvolvimento individual e comunitário.

Em diversas unidades do Sesc no estado de São Paulo. sescsp.org.br/diamundialdolazer

LAZER PARA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Coordenação Iniciativa Realização

Asaúde da população é influenciada por estilos de vida distintos, marcados por diferentes práticas, tecnologias e estratégias, formando uma complexa rede. A necessidade, cada dia mais presente, de uma discussão abrangente e capaz de englobar a dimensão cultural da saúde, que vai além de uma visão que a considera como mero estado de “ausência de doença”, abre espaço para um conceito mais amplo sobre o assunto.

De 11 a 23 de abril, a sexta edição do projeto Inspira – Ações para uma vida saudável tem como tema Qualidade de vida nos eixos indivíduo-sociedade-trabalho e promove uma série de bate-papos, intervenções, oficinas e vivências sobre os diversos conceitos de qualidade de vida. Dessa forma, as atividades conectam o bemestar e o autocuidado nas relações do indivíduo com a sociedade e o trabalho. Em formato presencial e online, a programação propõe

Respirar saúde

Com 150 atividades, projeto Inspira – Ações para uma vida saudável promove reflexões sobre bem-estar e autocuidado

A vivência Música ancestral afrobrasileira e suas coreografias, com Elis e Vitor da Trindade, tem como foco a saúde, e acontece nos dias 13 e 14/4, no Sesc Florêncio de Abreu, região central da capital paulista.

reflexões e apresenta iniciativas capazes de impactar positivamente a qualidade de vida dos indivíduos.

“As atividades potencializam a transversalidade da saúde, provocando o indivíduo a refletir sobre o quanto suas ações e relações sociais influenciam no equilíbrio das dimensões do bem-estar (físico, mental, psicológico, emocional e espiritual), e sobre a construção de um fazer coletivo que garanta direitos básicos, como: saúde, educação, habitação e saneamento. Direitos preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para impulsionar a melhoria da

qualidade de vida de todos", afirma Fernando Oliveira, assistente técnico da Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.

Como parte da programação, destacam-se o Fórum Qualidade de Vida nas Organizações: Saúde e Qualidade de Vida do Trabalhador, dias 11 e 12/4, no Sesc Pompeia; o ciclo de debates Saúde Mental em Foco, de 18/4 a 9/5, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo (CPF); e o bate-papo Pausa, Respira, Vamos Conversar!, dia 13/4, no Sesc Avenida Paulista.

Conheça a programação completa: sescsp.org.br/inspira

Fernando Oliveira, assistente técnico da Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo

Divulgação
“As atividades potencializam a transversalidade da saúde, provocando o indivíduo a refletir sobre o quanto suas ações e relações sociais influenciam no equilíbrio das dimensões do bem-estar”
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Novos palcos

Os espetáculos Uma leitura dos búzios , com direção de Márcio Meirelles, e amazonias: ver a mata que te vê [um manifesto poético], dirigido por Maria Thais, retornam aos palcos para novas apresentações em

diversas unidades do Sesc São Paulo, depois de temporadas nas unidades Vila Mariana e Pinheiros, respectivamente. Uma leitura dos búzios segue para Jundiaí (1º/4), Piracicaba (14 e 15/4) e Bauru (28 e 29/4). Já amazonias estará em cartaz em Guarulhos (1º e 2/4),

Sorocaba (15 e 16/4), São José dos Campos (29 e 30/4), Santos (13 e 14/5) e Araraquara (27 e 28/5). Ambos os projetos são resultado de um trabalho processual e colaborativo entre artistas e Sesc São Paulo, realizado ao longo de 2022.

GIGANTISMO NACIONAL

Da terra de proporções continentais chamada Brasil emergiram Katú Mirim, Davi Kopenawa, Legítima Defesa, Naruna Costa, Jota Mombaça, Denilson Baniwa e Naná

Vasconcelos (1944-2016), algumas das forças afro-ameríndias celebradas na exposição Terra de Gigantes, em cartaz no Sesc Guarulhos até setembro. Na fronteira entre videoinstalação,

teatro e cinema, a mostra, concebida pelo artista visual e curador Daniel Lima, usa inteligência artificial e tecnologias imersivas – como sensores óticos, projeções em diferentes escalas e sistemas digitais de interação – para criar uma ambiência fantástica composta por performances, entrevistas e criações audiovisuais. Saiba mais: sescsp.org.br/terra-de-gigantes.

Estão abertas, até 10/4, as inscrições para a primeira edição do Grupo de Estudos: Fotografia e Experiência , série de encontros que, entre maio e novembro, convida fotógrafos, artistas visuais e interessados na linguagem imagética a pensar sobre o gesto fotográfico. Conduzido pela pesquisadora Inês Bonduki, o grupo de estudos pretende desenvolver um repertório teórico-prático, com base em dimensões éticas, estéticas e políticas do ato de fotografar. As atividades acontecem no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo (CPF), em encontros quinzenais e presenciais. Também serão realizadas caminhadas fotográficas. Inscreva-se: bit.ly/estudosfotografia.

Gil Souza Obra da artista Jota Mombaça faz parte da exposição Terra de Gigantes, no Sesc Guarulhos. Diga xis...
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MÃOS NO BARRO

Dona Cadu, a mais antiga ceramista brasileira em atividade, é a grande homenageada do Encontro de louceiras: modelando gerações, projeto que o Sesc 24 de Maio realiza entre os dias 22 e 26/4. Prestes a completar 103 anos de vida, neste mês, a baiana de São Félix cria panelas, pratos e outras peças moldadas com barro, além de ser rezadeira, sambadeira e doutora honoris causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Junto a Cadu, também estarão na capital paulista as mestras louceiras dona Marciana, do Amapá, e a alagoana Dé Kariri Xocó, que passarão alguns dias nessa unidade do Sesc, trabalhando com o barro e demonstrando as etapas desse fazer manual e ancestral. Mais informações: sescsp.org.br/24demaio.

DOSSIÊ

FOI DADA A LARGADA!

O Sesc Campo Limpo estreia no Circuito Sesc de Corridas, no dia 23/4. Com provas de corrida tradicional (6km e 3km), caminhada simples individual (3km) e corrida de skates (3km), a unidade da zona sul da capital paulista convida, ainda, o medalhista olímpico e pan-americano Vanderlei Cordeiro de Lima para “puxar” o

aquecimento, acionar a buzina da largada e comandar um bate-papo após a linha de chegada. Não só o Campo Limpo, mas outras 10 unidades na capital, interior e litoral do estado sediam provas de rua na temporada 2023 do Circuito Sesc de Corridas Confira o calendário das próximas etapas: sescsp.org.br/ circuito-sesc-de-corridas.

Além de anunciar a largada nas provas do Circuito Sesc de Corridas no Sesc Campo Limpo, o atleta e medalhista Vanderlei Cordeiro de Lima participa de um bate-papo com o público. Aos 103 anos, a ceramista, rezadeira e sambadeira Dona Cadu será homenageada no Encontro de louceiras: modelando gerações, no Sesc 24 de Maio. Zé Barretta (Circuito Sesc de Corridas); Rodrigo West (Encontro de louceiras: modelando gerações)
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FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Consulte a relação de documentos necessários

Faça a sua Credencial Plena online! Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
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Ricardo Ferreira

Construir o amanhã

Ao celebrar 80 anos, Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, relembra sua trajetória e reflete sobre como é adentrar a velhice produzindo futuro

No bairro do Belém, zona leste de São Paulo, a sala de Danilo Santos de Miranda, na Administração Central do Sesc, é a paisagem de seu pensamento. Nas amplas estantes, centenas de livros dividem espaço com uma diversa coleção de CDs e, entre uma lombada e outra, objetos de arte popular e pequenas recordações de viagens se deixam espiar. No chão, em um canto, repousa, discreto, um pôster do Fluminense – segundo ele, um presente. “Deixei ali meio escondido”, diz, confessando, com uma risada contida, a paixão não só pelo time, mas pelo futebol. “Adoro assistir, e joguei muito também.” Danilo recebeu a Revista E para uma conversa que tinha como mote principal os seus 80 anos de vida, completados no dia 24 de abril.

Todavia, falar sobre a vida é, para o diretor do Sesc São Paulo, falar sobre temas que, desde sempre, entrelaçam-se e se emaranham em suas reflexões e em sua prática cotidiana: a cultura, a educação e o país. “Educação e cultura são elementos vitais, são o que nos torna humanos”, repete, feito mantra, quando instado a expor as bases de sua ação institucional.

Nascido na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, Danilo cresceu entre os caminhos de paralelepípedos, as brincadeiras de rua, a música, a leitura e a igreja. Órfão de mãe desde os 7 anos, foi criado na casa dos avós – ela muito ligada à igreja e ele farmacêutico – e, na adolescência, foi estudar no seminário dos jesuítas, em Friburgo. Foi nesse seminário que teve início sua formação humanista. Foi, porém, vida afora que essa formação se aprofundou e se ramificou para novos saberes. Filósofo e sociólogo, Danilo Santos de Miranda compartilha, nesta Entrevista, avanços e desafios nessas últimas quatro décadas à frente do Sesc São Paulo, e destaca a importância das dimensões da cultura, da atividade física, do lazer e da educação não formal para redução das desigualdades no país.

Como esta é uma conversa motivada pelos seus 80 anos, acho que a primeira pergunta tem que ser sobre chegar aos 80 mantendo-se vigoroso e ativo. Eu não tinha essa expectativa, até pela tradição familiar. Meu pai faleceu aos 67 e minha mãe morreu aos 31, quando eu tinha sete anos. Mas somos quatro irmãos, todos na

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faixa dos 80, e eles também estão bem, mais ou menos como eu, com algumas manifestações normais para esta altura da vida. A família, então, está longeva, o que é uma vitória. Do ponto de vista do acúmulo da experiência, me considero privilegiado. Tive uma infância muito ativa e feliz, uma formação razoavelmente sólida, e uma vida profissional também bastante variada. Minha vida foi sempre divertida. Tive momentos muito efusivos e tive, como todo mundo, momentos intensos e problemáticos, além de ter enfrentado dificuldades em função das minhas opções. E eu, sobretudo, acredito no futuro – pessoal e coletivo – e me coloco como alguém que, dentro do meu pedaço, batalho por um mundo melhor. Não pretendo fazer nada muito extraordinário do ponto de vista político, cultural ou social, mas, a partir das minhas experiências, espero colaborar para que a gente melhore as coisas para todo mundo.

E o percurso do Brasil nessas oito décadas, como você o vê? Que transformações foram mais marcantes?

Sou dos anos 1940, e vivi minha infância até meados da década de 1950, quando fui para o colégio interno e comecei a ter uma vida distante da família. De lá pra cá, seja no plano cultural, social, político ou econômico, o que eu vejo é uma diferença extraordinária. Parece que aquele mundo lá de trás é outro planeta, um lugar que ficou na imaginação das pessoas. E, para mim, o mundo de hoje tem algo do que imaginávamos. Seja no dia a dia, seja do ponto de vista das relações, a diferença é brutal. O telefone era uma coisa

rara, a televisão colorida não existia e, hoje, falamos ao vivo com uma pessoa via computador. Quando eu era criança, diríamos: “Meu Deus, não tem o menor cabimento isso ser uma coisa que possa acontecer”. Na idade adulta, vivenciei esse crescimento exponencial da tecnologia. Passamos a viver mundos sobrepostos. E os avanços se deram em todos os sentidos, até mesmo no controle da vida. Minha mãe morreu de nefrite, uma doença da qual ninguém morre mais. Não havia antibiótico em quantidade suficiente no país. O Brasil era um país precário e, àquela altura, não tínhamos consciência, de fato, disso. Sabíamos dos problemas, mas sem a clareza que temos hoje em relação à desigualdade, à questão indígena ou à marca profunda deixada pela escravidão. Hoje, há maior consciência de que temos de ter essas questões como alvo, e isso se traduz em ações, tanto do ponto de vista pessoal quanto, no meu caso, do ponto de vista institucional. Tenho compromissos e um envolvimento com movimentos transformadores. Ainda temos, de toda forma, muita gente com pensamentos e ações não condizentes com essa necessidade de mudança. Vimos, há pouco, a divisão do país, que eu acredito ser, em grande parte, passageira. Mas, para quem já viveu 80 anos, é fácil dizer que agora é muito diferente do que era antes, e que nós avançamos, sim. Não apenas do ponto de vista daquilo que está à nossa disposição, mas do ponto de vista da qualidade de vida. Avançamos. A questão é que não avançamos para todos. Então, tem muita coisa para ser feita nesse país por esse motivo: os avanços precisam ser para todos. O país continua, de um lado, tendo o potencial que tinha antes, e é um país do presente. De outro lado, é um país de realizações a serem completadas, o que faz com que seja também um país do futuro.

Como a cultura pode contribuir para esse futuro?

Eu acredito firmemente que não deveria haver nenhuma discussão séria a respeito de planos profundos de governo sem a presença da cultura, para valer. A cultura é o conjunto de ações artísticas realizadas no país, que envolve muita gente, mas não só. Deveríamos assumir a cultura como fez, por exemplo, François Mitterrand (1916-1996) na França, com o ministro Jack Lang, que veio ao Brasil, e eu o conheci. Ele me disse: “Danilo, sou uma espécie de primeiro-ministro da cultura”. O que isso quer dizer? Que ele era chamado para qualquer discussão dentro do governo que tivesse algum tipo de relação com a cultura – fosse na área da justiça, na área militar, na área da educação, na área do trabalho. Ele inaugurou um estilo de administração da cultura que passava por um entendimento holístico, e não pela ideia de que o ministério deve cuidar de artista, provendo recursos para o artista. O fomento é importante, mas a cultura vai além do mundo das artes: ela cuida da inserção do ser humano no mundo.

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Eu tenho o privilégio e a responsabilidade de atuar no nível pessoal e de colaborar no nível institucional para, quem sabe, alcançarmos um futuro menos desigual

Como se dá a prática da cultura no Sesc?

A cultura, no Sesc, é vista pela perspectiva do bem-estar, da busca por uma vida melhor – objetivo central de todas as instituições do Sistema S, que vem dos anos 1940. Os quatro Ss originais [Senai, Senac, Sesc, Sesi] tinham a intenção de contribuir para a formação profissional capaz de propiciar uma vida melhor, e de oferecer um programa de bem-estar para populações definidas, no caso, industriários e comerciários [hoje, o setor de comércio e serviços responde por 70% do Produto Interno Bruto brasileiro]. Essas instituições nascem com a perspectiva da educação permanente, e o Sesc, desde os primórdios, assumiu esse papel, especialmente no estado de São Paulo, onde está presente em várias cidades. E eu falo de São Paulo porque cada estado procura atender a necessidades e características próprias. O trabalho da instituição tem um tônus, uma direção, e é feito com muita seriedade. Essa sinceridade institucional é revelada, não é pregada.

Você tem essa missão desde 1984, quando assumiu a direção do Sesc São Paulo. A missão, entre outras, de trabalhar a cultura com a perspectiva da educação.

Como se dá este entrelaçamento?

Metade da minha vida! Sim, acho que somos uma instituição educacional, que atua na educação não formal. A cultura – por meio de temas, modos de fazer e levantamento de pontos de vista positivos e negativos a respeito de qualquer situação – faz parte de um processo educacional. A educação formal é parte do processo cultural, e a educação não formal é permanente. Estamos sendo educados desde o momento do primeiro choro, no colo da mãe, do reconhecimento da voz... Por quê? Porque se transmite assim um modo de fazer ou de ser – e isso difere de uma cultura para outra. Temos, na vida, um tempo da educação formal, organizada por intermédio da escola, mas, depois dela, permanece – ou deveria permanecer – a

perspectiva da informação e do conhecimento. Sabemos haver médicos que, depois de formados, nunca mais abrem um livro na vida, não veem um espetáculo. A vida se torna, assim, unidirecional. São, às vezes, pessoas brilhantes, mas a quem falta a inserção no mundo da educação não formal, da cultura propriamente dita.

Antes, você falou das mudanças pelas quais o mundo passou e sobre a presença da tecnologia, que alterou a forma de nos relacionarmos e o próprio conceito de bem-estar. Como isso foi alterando a cara do Sesc?

A instituição vai mudando e atendendo a perspectivas imediatas e não imediatas, ao mesmo tempo em que há coisas que têm uma permanência. Melhorar, por exemplo, o nível de conhecimento das pessoas frente ao mundo à sua volta é uma missão permanente. A questão da diversidade e a questão LGBTQIA+, a gente já discute há algum tempo. Nós não nos antecipamos com “a intenção de...”. É algo natural. Dou outro exemplo: o foco na terceira idade, no idoso. Nos anos 1960, ninguém no Brasil fazia nada nesse sentido e o Sesc começou esse trabalho em 1963, buscando especialistas no mundo inteiro, fazendo debates, seminários, e criando tecnologia social para isso. Ao longo do tempo, praticamente todas as unidades do Sesc no Brasil, além de outras instituições, assumiram o trabalho com o idoso. Isso também vale para os programas de férias. O Sesc foi a primeira instituição a implantar um programa de férias organizadas, que chamávamos de “colônia”, termo hoje inadequado. Eu citaria mais dez modelos de ações que foram iniciadas no Sesc e que se tornaram políticas públicas. Ações que ganharam uma dimensão para além da instituição. A própria questão do lazer, do tempo livre, como um momento importante na vida do ser humano, e a questão do aproveitamento de espaços amplos para atuação cultural – caso do Sesc Pompeia, a primeira fábrica transformada em centro cultural no Brasil.

19 | e entrevista
Acredito no futuro – pessoal e coletivo –e me coloco como alguém que, dentro do meu pedaço, batalho por um mundo melhor

Você já era diretor quando o Sesc Pompeia foi inaugurado?

Ele foi inaugurado dois anos antes, mas eu acompanhei bem de perto. Minha relação com o Sesc Pompeia foi uma das razões para eu ter me tornado diretor. Eu era um frequentador assíduo dessa unidade, das famosas gafieiras do Paulo Moura (1932-2010), que levava a orquestra do Severino Araújo (1917-2012), a Orquestra Tabajara. Teve Tim Maia (1942-1998), Jorge Ben Jor... Era um lugar absolutamente inovador. Eu trabalhava, então, no Senac, mas o presidente [da Federação do Comércio no Estado de São Paulo, Abram Szajman] soube dessa minha forte ligação com o Sesc Pompeia, e de todo o meu compromisso e interesse com essa ação cultural mais ampla em prol da sociedade, e me perguntou se eu não queria assumir o Sesc de uma vez. Então, olha só, graças ao Sesc Pompeia, virei diretor do Sesc São Paulo [risos].

Você é uma referência muito forte no meio cultural e, por essa história, a gente descobre que foi também pela relação com a cultura que você chegou ao Sesc. Como é, do ponto de vista da gestão, lidar com as outras áreas da instituição, as práticas físico-esportivas, a alimentação, a odontologia e o convívio social?

Naquele momento, eu já tinha isso muito presente. Para mim, o Sesc era, visualmente, uma grande estrutura voltada para o esporte, com ginásio, piscina etc., e uma grande estrutura voltada para cultura, com espaços para exposição, teatro e outras ações. E, para que isso funcionasse, tinha que ter um restaurante onde as pessoas pudessem se alimentar. Então o Sesc, para mim, no início, era o lugar do bem-estar; o lugar para uma vida que, para muita gente, não seria acessível se não fosse aquela instituição. Só um frequentador de clubes tem uma parte disso. Um frequentador de eventos da área

cultural, tem outra parte. Mas, ter isso em um amplo espaço acessível e com uma curadoria? O Sesc tem essa peculiaridade: a mistura de tribos. Fico alegre quando vejo os esportistas se interessarem pela exposição e os “culturetes” se interessarem por alguma atividade física. Para mim, isso é fundamental. E mesmo que não houvesse esse intercâmbio, a convivência deles já seria algo importante. No Sesc Pompeia, naquelas mesas grandes, você vê o cara da atividade física com seu uniforme, tênis e roupa de ginástica sentado do lado de alguém que está ali com um monte de livros, conversando. Do ponto de vista físico, isso sempre foi o Sesc na minha cabeça. Do ponto de vista de conteúdo, está tudo junto. É claro que, conceitualmente, existe uma coisa que é a atividade física e outra coisa que é a atividade intelectual e a atividade cultural. Mas, no fundo, no fundo, proporcionar um programa em que essas ações estejam juntas faz parte desse todo que o ser humano necessita para uma vida saudável. Para mim, essa é a questão central. Tudo se juntou em um vasto e amplo programa de bem-estar social que eu passei a traduzir como qualidade de vida. Uma vida melhor para todos: criança, jovem, adulto, velho, mais velho – agora estamos falando já da quarta idade. Quem é a quarta idade? Aqueles necessitados de apoio, de cuidado, que pode ser pequeno, médio ou grande. Os nossos espaços, todos, têm tido cada vez mais o cuidado com a acessibilidade, em função dessa realidade.

Como se sente diante desse legado e como é entrar na quarta idade produzindo e pensando o futuro?

Antigamente, terceira idade significava parar, mas o Sesc, desde os anos 1960, trabalha com a ideia presente de que estamos construindo um futuro também para o idoso. Então, eu tenho isso muito presente. Essa é a primeira coisa. A segunda coisa é que eu, particularmente, pela

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Temos, na vida, um tempo da educação formal, organizada por intermédio da escola, mas, depois dela, permanece – ou deveria permanecer – a perspectiva da informação e do conhecimento

minha formação, pelos meus interesses acumulados e pela minha família que tanto me apoia e me dá suporte [a esposa, Cléo, as duas filhas, Camila e Talita, e os quatro netos], tenho uma vida bastante intensa também. Então, isso me coloca na situação de alguém que tem muito o que fazer ainda. Participo de muitos conselhos de instituições culturais de São Paulo. Tenho, enfim, também uma vida fora do Sesc. Sou, além disso, interessado em muitos temas e sou um devedor com a leitura, os filmes e até mesmo com a música. Por quê? Porque tenho uma gana de consumir tudo isso de maneira adequada. Tenho uma pilha de livros lá em casa e estou interessado em ler todos.

E o futuro do país? Como você o projeta?

A desigualdade terá menor incidência e a educação terá um papel maior. Mas o país do presente tem que dar conta do que está aí. Existe uma população que enfrenta grandes dificuldades, e que agora está sendo mais considerada. Não quer dizer que vai ser tudo resolvido. Quer dizer apenas que o assunto está de novo sobre a mesa. Nós temos uma parte da nossa população, do nosso estilo de vida, que não é exatamente cordial – o Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) que me desculpe –, mas que tem, no dia a dia, uma certa empatia na relação com os outros. É claro que seria um exagero achar que todo mundo é assim, mas temos certa cordialidade presente. Por outro lado, temos um aspecto muito negativo, que é o fato de não percebermos a nossa desigualdade, especialmente a nossa questão racial. Temos o racismo estrutural embutido. Fomos culturalmente educados para isso. O país é o único, no mundo, a ter vivido quase quatro séculos de escravidão. Nossa escravidão foi mais profunda e mais radical que a de outros lugares. Então,

nossa cordialidade se desfaz completamente quando se leva isso em consideração. Ao mesmo tempo, do ponto de vista econômico e social, nós fomos “condenados” ao desenvolvimento. A ideia do desenvolvimento tornou-se uma espécie de perspectiva inabalável e inevitável. É claro que a economia tem seu papel, mas, na minha opinião, ela é supervalorizada no sentido da acumulação e da crença em que tudo será resolvido, simplesmente, pela geração de renda pelo trabalho. Grana. Dinheiro. Venda. E não é por aí. Temos, portanto, essa condição dupla, de uma certa alegria e diversidade, mas também de uma desigualdade inaceitável. O Brasil tem condições de melhorar as coisas para o futuro, mas tudo isso envolve política, sim, envolve economia, sim, mas envolve, sobretudo, a cultura e o convencimento a respeito de quem nós somos. E que papel temos nós – os brasileiros comuns – nisso? Temos que colaborar na nossa atividade, no nosso dia a dia. Eu, pessoalmente, tenho o privilégio e a responsabilidade de atuar no nível pessoal e de colaborar no nível institucional para, quem sabe, alcançarmos um futuro menos desigual.

*Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, realizada pela jornalista Ana Paula Sousa, doutora em sociologia pela Universidade de Campinas (Unicamp), em colaboração para a Revista E

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O fomento é importante, mas a cultura vai além do mundo das artes: ela cuida da inserção do ser humano no mundo
entrevista

11 a 23 de abril 2023

Atividades refletem sobre a qualidade de vida em seus múltiplos contextos e significados.

bate-papos palestras fórum

exibições intervenções oficinas

cursos

vivências

Em diversas unidades do Sesc no estado de São Paulo. sescsp.org.br/inspira

SIMPLES perfeição

POR MANUELA FERREIRA

COLABOROU:

O minimalismo nos traços do artista visual Speto faz alusão à essência musical de João Gilberto nesse grafite em homenagem ao pai da bossa nova. A arte pode ser vista em edifício na Avenida Senador Queirós, no bairro da Santa Ifigênia, próximo ao Mercado Municipal, na região central da cidade de São Paulo.

A potente minúcia na voz e nos acordes de João Gilberto é celebrada em álbum lançado pelo Selo Sesc, com gravação inédita de show de 1998
MARIA JÚLIA LLEDÓ Matheus José Maria
música 25 | e

Há 25 anos, no fim do século passado, o cantor, compositor e violonista João Gilberto (1931-2019) vivia recluso em seu apartamento no Leblon, bairro na zona sul do Rio de Janeiro (RJ). Quase não saía à rua e poucos eram os amigos com quem conversava. O isolamento voluntário, no entanto, seria interrompido algumas vezes naquele ano, seja para apresentações no festival de jazz de Umbria, na Itália, ou na casa de espetáculos Carnegie Hall, em Nova York, nos Estados Unidos. Aparições em terras brasileiras, porém, eram cada vez mais esporádicas àquela altura. "Exigente, [ele] implicava com a qualidade do som em seus shows e irritava-se com barulhos durante as apresentações”, conta a jornalista e pesquisadora musical Kamille Viola.

O Sesc Vila Mariana, inaugurado em dezembro do ano anterior, foi o destino de uma breve passagem do pai da bossa nova por São Paulo – e o cantor foi um dos primeiros grandes nomes a pisar no palco do teatro. A gravação inédita da curta temporada vem à luz um quarto de século depois, exibindo um João Gilberto bem-humorado, ainda que concentrado e metódico, diante da plateia em reverência. Registro da última noite de uma série de três shows, o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), lançado neste mês pelo Selo Sesc, traz ao público a memória sonora de um artista que, aos 66 anos, continuava à procura da primazia sonora, munido exclusivamente da voz e do violão que revolucionaram para sempre a música popular brasileira.

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PEQUENAS GRANDEZAS

“Ouvir João Gilberto era um prazer para ouvidos exigentes. O mesmo rigor com a emissão vocal de quando cantava se percebia nos telefonemas de madrugada. Não se perdia uma vogal ou consoante. Não era só que João cantava como falava: ele também falava como cantava, articulava cada palavra com dicção perfeita, sem gritar, não se perdia nada do que dizia, mesmo se a gente afastasse um pouco o ouvido do telefone. Sua preocupação com a emissão de voz sempre foi uma constante exercida exaustivamente”, escreveu o amigo, musicólogo e crítico musical Zuza Homem de Mello (19332020) em seu livro Amoroso: Uma biografia de João Gilberto (Companhia das Letras, 2020).

Principal meio de comunicação do artista com o mundo, foi através do telefone que o biógrafo ouviu, pela primeira vez, algumas das canções que integram o disco Amoroso (1977), oitavo álbum de estúdio de João Gilberto – como Triste, composição de Tom Jobim (1927-1994), interpretada de um quarto de hotel em que o músico se hospedava em Nova York. “Sua memória dos hábitos dos interlocutores era impressionante, como impressionante era sua capacidade de estar sempre atualizado, o que destoava de sua vida reclusa”, relatou Homem de Mello na publicação.

O musicólogo descreveu, ainda, outros traços singulares do intérprete baiano, que atestam sua extrema sensibilidade, e que permitem novos olhares

música

sobre um artista praticamente inacessível aos fãs e jornalistas. “João discorria sobre qualquer tema. Falava de futebol com o conhecimento tático de um técnico profissional; discorria sobre outros esportes, exaltando sua admiração por atletas brasileiros; podia descrever o passarinho que vira tão infeliz na janela e como se penalizara com a tristeza da avezinha; podia se condoer de uma formiguinha esmagada por acaso; era capaz de descrever com precisão o que acontecia de mais relevante na cidade do interlocutor, como se lá estivesse”, narrou Zuza Homem de Mello.

BELEZA REVELADA

O homem que atravessava os dias fechado em seu apartamento – a poucos metros do mar – já somava, às portas da virada do milênio, quase cinco décadas desde que, vindo de Salvador (BA), aportou no Rio para “tentar a sorte” na música. Na capital soteropolitana, quando jovem, cantava em estações de rádio, sempre com o violão a tiracolo – autodidata, não se separou do instrumento desde os 14 anos.

Enquanto se integrava à vida carioca, o músico participou de conjuntos vocais como Os Garotos da Lua e Anjos do Inferno – ainda em Juazeiro (BA), sua cidade natal, fundou outro conjunto vocal, o Enamorados do Ritmo, cuja inspiração era o ídolo Orlando Silva (1915-1978), o "cantor das multidões", e seu estilo fraseado de cantar.

Já a partir de 1953, João conheceria outros artistas precursores da bossa nova, como Tom Jobim, as cantoras Dolores Duran (1930-1959), Maysa (19361977) e Sylvia Telles (1934-1966), os pianistas João Donato (1934-) e Johnny Alf (1929-2010) e o violonista e cantor Luiz Bonfá (1922-2001), todos em início de carreira. O ambiente musical que fervilhava naquela década e a confluência de gêneros impulsionaram a construção do estilo único de interpretação que João Gilberto estava prestes a inaugurar.

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A BOSSA DO SAMBA

Aqui estão uma vez mais aquelas coisas que nos deleitam e ensinam a inteligência e a sensibilidade, como “uma fonte inesgotável de prazer e aprendizado”, como disse Vinicius de Moraes, sempre que voltamos a ouvir João Gilberto: a ginga das sílabas e das notas, da conjugação das frases poéticas com as melódicas num todo coeso e único, na voz, com suas nuances timbrísticas e inovações rítmicas, sentidas simultaneamente no violão; o conjunto, violão e voz, soando com um balanço e um suingue inconfundivelmente próprios e envolventes.

Mais do que bossa nova, trata-se de samba, há muito sabemos: em relação ao gênero que inventou e propiciou, João está “suspenso pairando sobre e fora dela”, escreveu, há quase quarenta anos, meu parceiro José Miguel Wisnik. E samba muito mais do que jazz: o gênero, uma das maravilhas inventadas pelo gênio negro norte-americano, há cerca de cem anos (como amar música sem amar jazz?), entra na formação, na forma e na fórmula criada pelo “bruxo de Juazeiro” –como Caetano o chama na A Bossa Nova é Foda – como uma música que lhe traz sonoridades outras com as quais ele se instrumentaliza para promover uma releitura pessoalíssima da tradição musical brasileira. São elementos de que, junto a outros, de nossa tradição, ele se serve para realizar a recriação do samba; para reencontrar o gingado e readquirir o domínio do ritmo complexo do samba. A bossa, enfim, do samba. A cujo espírito ele dá uma interpretação, a mais original e profunda.

Carlos Rennó é compositor, escritor e assistiu ao primeiro e último dos três shows de João Gilberto no Sesc Vila Mariana, em abril de 1998, dos quais se originaram as gravações do álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) (Selo Sesc, 2023).

Reprodução

DISCIPLINAR O RITMO

Em 1958, depois de breves passagens por Porto Alegre (RS) e Diamantina (MG), João Gilberto retornou ao Rio. No mesmo ano mostrou, pela primeira vez, a inconfundível batida sincopada de violão que se converteu no símbolo da transformação musical que protagonizou: com a mão direita, tocava os acordes – unindo, ao mesmo tempo, ritmo e melodia. Tal novidade surgiu no disco Canção do Amor Demais (1958), da cantora Elizeth Cardoso (1920-1990), que apresenta João Gilberto tocando em duas faixas: Outra vez, de Tom Jobim, e Chega de Saudade, composta por Tom e Vinicius de Moraes (1913-1980). No ano seguinte, lançou Chega de Saudade (1959), álbum que marcaria sua estreia como solista e que arrebatou gerações de ouvintes pelo mundo.

“Quando se fala em João Gilberto, é muito comum se dizer que a canção brasileira era uma e foi outra depois dele. Isso, de fato, é verdade”, disse o violonista, compositor e escritor Arthur Nestrovski, em depoimento ao canal da revista piauí e no YouTube. “O que se está dizendo, geralmente, é que a canção que veio depois [dele] foi tão influenciada por ele que tomou caminhos inéditos, e mudou para sempre o panorama do que viria a ser o cancioneiro popular brasileiro. Mas a gente pode ir em outra direção também. A canção brasileira mudou com João Gilberto, não só para frente, mas para trás. Ele não mudou só o futuro, ele mudou o passado. A nossa compreensão de tudo o que veio antes de João Gilberto mudou depois de João Gilberto – por causa dele. De dois modos: o modo de cantar e a forma como ele mesmo interpretou muitas canções 'perdidas' do passado”, analisou Arthur Nestrovski.

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SOM E SILÊNCIO

Depois de lançar os discos O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), o músico fixou residência nos Estados Unidos, onde gravou com o saxofonista Stan Getz (1927-1991) mais um clássico: Getz/Gilberto (1964). O álbum recebeu nove indicações ao Grammy, e levou o troféu na categoria gravação do ano com The girl from Ipanema, canção tocada ao piano por Tom Jobim acompanhado da cantora Astrud Gilberto (1940-) – então esposa de João Gilberto. O cantor voltou a viver no Brasil somente no começo dos anos 1980, sempre alternando os períodos de reclusão com outros em que promovia temporadas de apresentações concorridas, tanto no país quanto no exterior. Em 2008, realizou uma turnê em comemoração ao aniversário de 50 anos da bossa nova – também foi quando decidiu subir ao palco pela última vez, aos 77 anos, optando por continuar longe dos holofotes.

Há muito aguardada pelos fãs do artista, a gravação do álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) mostra o artista à vontade, como raras vezes se teve notícia em suas apresentações no Brasil, como atesta Kamille Viola. “Não à toa, para muitos, os shows no Sesc Vila Mariana estão entre os melhores do cantor naquele período. Longe do vai e vem de garçons, barulhos de copos e talheres, em um teatro com boa acústica e equipamento de som de qualidade, ele executa as canções com meticulosa precisão. Durante quase duas horas, faz o que sabia fazer de melhor: reinventar a música brasileira”, conclui a jornalista e pesquisadora.

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QUE REI SOU EU

QUE VIVE ASSIM À TOA

SEM REINADO E SEM COROA

SEM CASTELO E SEM NINGUÉM

SEM NINGUÉM?

RAINHA, NUNCA TIVE NEM MEREÇO

SOU UM REI, MAS RECONHEÇO

SER VASSALO DE OUTRO REI

REINADO, MEU DESTINO NÃO TRAÇOU

BEM SEI QUE ME FIZERAM REI

MAS EU NÃO SOU

(EU) CANTO AS MINHAS MÁGOAS

MEU SOFRER AO VIOLÃO

O SAMBA É A MINHA NOBREZA

MINHA TRISTE SOLIDÃO

EU SOU UM SIMPLES EU

UM EU QUE DEUS ME DEU

O REI QUE VOCÊS FALAM NÃO SOU EU

Rei sem coroa, composição de Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição, em versão adaptada por João Gilberto

Acesse o portal do Sesc São Paulo e ouça a gravação inédita da canção na voz de João Gilberto

GINGA DE JOÃO

Gravação remasterizada reúne composições que marcaram a carreira do reinventor do samba e ainda apresenta Rei sem coroa, canção nunca antes gravada por João Gilberto

Capa do álbum lançado neste mês pelo Selo Sesc, disponível na plataforma Sesc.Digital, a partir do dia 5/4.

Lançado pelo Selo Sesc, o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) traz 36 canções, entre clássicos do repertório, como Desafinado e Chega de Saudade, e a inédita Rei sem coroa, composição de Herivelto Martins (1912-1992) e Waldemar Ressurreição (19141980). O álbum inaugura a primeira fase do projeto Relicário, composto por shows gravados nas unidades do Sesc São Paulo nas décadas de 1970, 1980 e 1990. A perspectiva é de que, ainda em 2023, outros quatro álbuns de apresentações estejam disponíveis para audição.

para ver no sesc / música

que também pode ser ouvido, a partir da mesma data, em diversos tocadores de áudio.

Em 26/4, o álbum completo será lançado nas plataformas de streaming. Neste mesmo dia, o CD duplo também estará disponível na Loja Sesc.

SELO SESC

Relicário: João

Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) (2023) sescsp.org.br/relicario

VILA MARIANA

Relicário

Na noite de 5 de abril de 1998, 645 pessoas aplaudiram de pé, no teatro do Sesc Vila Mariana, a maestria de João Gilberto. Em silêncio, o show de voz e violão quebrava a quarta parede apenas nos momentos em que o artista convidava a plateia a formar um coral. 25 anos depois, inúmeros ouvintes podem apreciar essa gravação, um dos raros registros de apresentações ao vivo do músico.

“O registro em áudio e imagem de parte da programação faz parte da política de preservação da memória institucional e afetiva do Sesc São Paulo. Muitas peças desse acervo documental têm o potencial de se tornarem obras de interesse geral. No caso do show de João Gilberto, tivemos a grata surpresa de nos depararmos com uma gravação excepcionalmente bem feita. O som claro e limpo é consequência de uma feliz conjunção de fatores, começando pelas mais altas exigências técnicas do músico perfeccionista e passando pelo trabalho primoroso dos técnicos de som do teatro do Sesc Vila Mariana, que acabara de ser inaugurado”, conta o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda.

A partir do dia 5 de abril, as 36 faixas dessa gravação remasterizada ficam disponíveis na plataforma Sesc Digital, incluindo o single Rei sem coroa,

Programação celebra o lançamento do álbum inédito Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), pelo Selo Sesc. sescsp.org.br/vilamariana

Bate-papo com Roberta Martinelli

Participação de José Miguel Wisnik, Renato Braz e Danilo Santos de Miranda.

Dia 5/4. Quarta, 20h. GRÁTIS Retirada de ingressos online e presencial

Bebel Gilberto e Guilherme Monteiro

Show em homenagem a João Gilberto.

Dias 27 e 28/4. Quinta e sexta, 21h.

Rei sem coroa

Show em homenagem a João Gilberto com Alaíde Costa, Dori Caymmi, Joyce Moreno, Renato Braz e Vanessa Moreno. Direção musical de Mario Gil. De 29/4 a 1/5. Sábado, 21h. Domingo e segunda, 18h.

Divulgação 33 | e

canção NAS ASAS DA

Otiê-sangue (Ramphocelus bresilia), ave de plumagem vermelha e vocalização trissilábica, é uma das espécies emblemáticas da Mata Atlântica. Quando adulta, atinge até 19 centímetros e chega a pesar 35 gramas. Na falta de brinquedos, era um tiê-sangue a principal companhia da menina Ivone em seu começo de adolescência, nos anos 1930. O animal foi um presente dos primos Antônio e Hélio, que compartilhavam com a garota a paixão pela música e um interesse crescente pelo universo das escolas de samba da zona norte do Rio de Janeiro (RJ), que se agigantavam a cada Carnaval. Foi para o inseparável pássaro que Ivone escreveu, aos 12 anos, sua primeira composição – depois de sonhar com a melodia, os versos pousaram. Tiê, um clássico do cancioneiro popular brasileiro, é uma das faixas de maior sucesso do lendário Sorriso de criança (1979), segundo álbum de estúdio de Dona Ivone Lara (1922-2018), cantora e compositora que, desde pequena, soube encarar o mundo com poesia, delicadeza e talentos ímpares.

“Não é exagero nenhum dizer que dentre os grandes nomes da história do samba, Dona Ivone Lara é a que tem a formação musical mais completa. De seu pai e sua mãe, ela herdou o lirismo das melodias dos ranchos carnavalescos (agremiações anteriores às escolas de samba). Do tio Dionísio, com quem aprendeu a tocar cavaquinho, ela herdou a fluência melódica e harmônica do choro. De seus antepassados mais antigos – como sua tia, conhecida como Vovó Teresa –, herdou a ancestralidade espiritual do jongo”, revela o jornalista, escritor e pesquisador musical Lucas Nobile, autor da biografia Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba (Sonora Edições, 2015).

ALA DA COMPOSITORA

Com os mesmos primos que deixaram o tiê-sangue aos seus cuidados, a artista aprendeu a compor sambas de terreiro, partidos-altos e sambas-enredos. Hélio dos Santos, o Tio Hélio (1903-2007), e Antônio dos Santos, o

O legado de Dona Ivone Lara, majestade do samba e nome fundamental para o campo da saúde mental no país
POR MANUELA FERREIRA
Acervo Dona Ivone Lara / ilustração Nortearia e | 34 bio

Mestre Fuleiro (1902-1997), seriam alguns dos muitos parceiros de composição da sambista ao longo da carreira – os três integraram, ainda, o grupo de baluartes da Império Serrano, desde antes de sua fundação, em 1947. Já em 1965, seria a vez de Dona Ivone Lara fazer história na agremiação do bairro de Madureira ao se tornar, oficialmente, a primeira mulher a figurar na ala dos compositores de uma escola de samba. No mesmo ano, compôs e venceu o concurso de sambas do Grupo Especial com a canção Os cinco bailes da história do Rio.

Tal pioneirismo resultava, porém, do machismo estrutural que atrapalhou a carreira artística de Dona Ivone, de diferentes maneiras e em diversos momentos, segundo o escritor Lucas Nobile. “Primeiro, [atrapalhou] no universo do Carnaval e das escolas de samba, quando ela chegou ao Prazer da Serrinha [escola que originou a Império Serrano]. Mesmo namorando com [seu futuro marido] Oscar Costa (1947-1975), que era filho do presidente e fundador da escola, Dona Ivone não podia se mostrar compositora pelo simples fato de ser mulher. Para driblar essa adversidade, os primos Hélio e Fuleiro apresentavam os sambas de Ivone como se fossem de autoria deles. Era o único jeito de conseguir apresentar aquelas composições”, detalha.

Ainda de acordo com Nobile, no dia da final do concurso, quando distribuíram o prospecto com a letra do samba, na quadra da escola, para o povo cantar junto, não tinham dado o crédito à compositora Yvonne Lara [nome de

batismo da artista]. “Ela bateu o pé e disse: ‘Se meu nome não for creditado, o samba não sai’. Depois de muita resistência, o nome dela foi devidamente apresentado. [Os cinco bailes da história do Rio] é um dos sambas enredos mais cantados no país até hoje, um clássico de Ivone Lara, Silas de Oliveira (1916-1972) e Antônio Bacalhau”, pontua o biógrafo. Após o episódio, Dona Ivone desfilaria por mais de quatro décadas na Império Serrano, compondo a Ala das Baianas da Cidade Alta.

BERÇO MUSICAL

Órfã aos seis anos, a artista estudou no antigo internato da Escola Municipal Orsina da Fonseca, no bairro da Tijuca, onde conheceu as professoras que foram grandes incentivadoras: a pianista Lucília Guimarães Villa-Lobos (1894-1966) e a soprano Zaíra de Oliveira (1900-1951). No colégio, teve aulas de canto orfeônico, aprendeu a abrir vozes e a fazer contracantos, conforme explica Nobile. “Desde a infância, na cabeça da menina Ivone, hinos de Johann Sebastian Bach (1695-1750) conviviam naturalmente com ladainhas e cantos para orixás. É da diversidade do caldeirão musical familiar que brotaram todas as influências que transformaram Dona Ivone Lara numa das melodistas mais inspiradas do país”, analisa o pesquisador.

As férias escolares na casa do Tio Dionísio – que também tocava trombone – representavam dias de celebração. A época dos primeiros contatos musicais na infância e

Dona Ivone Lara (ao podcast Música Negra do Brasil, em 2004)

Meu pai tocava violão de sete cordas. Minha mãe era crooner de um rancho, o Flor do Abacate, e tinha uma voz de soprano que todo mundo pensava que tivesse sido trabalhada, mas aquilo era dela, era nato.
No nosso meio familiar, quando nos reuníamos, era aquela alegria
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juventude foi rememorada pela cantora em 2004, aos 83 anos, em conversa com a escritora e pesquisadora Katia Costa Santos – o depoimento está no podcast Música Negra do Brasil, disponível nas plataformas de áudio. “Meu pai tocava violão de sete cordas. Minha mãe era crooner de um rancho, o Flor do Abacate, e tinha uma voz de soprano que todo mundo pensava que tivesse sido trabalhada, mas aquilo era dela, era nato. No nosso meio familiar, quando nos reuníamos, era aquela alegria”, recordou-se a intérprete.

ALVORECER

Paralelamente à carreira artística, Dona Ivone Lara estudou enfermagem, serviço social e se especializou em terapia ocupacional. A partir de 1940, teve papel primordial na reforma psiquiátrica no Brasil, atuando ao lado da médica Nise da Silveira (1905-1999), referência na defesa e aplicação de tratamentos humanizados para pessoas em sofrimento mental. “Foi Dona Ivone quem recomendou à doutora Nise que fosse criada uma sala com instrumentos musicais lá no Hospital do Engenho de Dentro [atual Instituto Municipal Nise da

Silveira] para ajudar no tratamento dos pacientes com distúrbios mentais numa época em que pouco se falava em musicoterapia. No Serviço de Doenças Mentais, Nise, Ivone e toda a equipe cuidavam do inconsciente daquelas pessoas”, afirma Lucas Nobile. A então enfermeira Ivone acompanhou a implantação do espaço e supervisionou a interação livre dos pacientes com os instrumentos, certa de que a música proporcionaria um acolhimento essencial na rotina hospitalar.

Somente aos 56 anos, ao se aposentar do serviço público e após a morte do marido, a artista pôde se dedicar exclusivamente à música. O trabalho prévio na instituição psiquiátrica, segundo o escritor, refletiu-se de forma expressiva na trajetória musical da sambista. “Ao se dedicar por quase 40 anos a cuidar de pessoas com necessidades especiais, naturalmente todo esse humanismo inerente a Dona Ivone desaguou em suas criações musicais”. O universo onírico aparece com frequência na obra de Dona Ivone. “Lembro de alguns títulos de suas canções, como Sonho e saudade (1996), Força da imaginação (1982) e Nasci pra sonhar e cantar (1992). Não é à toa que o maior sucesso de toda a sua carreira tenha por título Sonho meu (1978)”, comenta Nobile.

Acervo Dona Ivone Lara
Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Cartola, Dona Ivone Lara e Seu Edgar, da Império Serrano, no Teatro Opinião.

ALGUÉM ME AVISOU

“Ela gostava de ficar no meio das pessoas, ouvindo samba, não só cantando, mas nesse ambiente saudável e gostoso, generoso, que é o do samba. Tenho lembranças de observála: sua postura, o que ela conversava, como ela conversava e dizia coisas sérias também”, lembra a cantora, escritora e pesquisadora paulistana Fabiana Cozza, uma das grandes intérpretes do cancioneiro de Dona Ivone Lara. Quando se viram pessoalmente pela primeira vez, em 2007, Fabiana há muito reverenciava a obra da saudosa sambista.

A reunião para a gravação da faixa Doces Recordações (1985), composta por Ivone Lara e o parceiro Délcio Carvalho (1939-2013), está presente no álbum Quando o céu clarear, lançado por Fabiana em 2007. Seguiramse outros encontros entre elas: em camarins, palcos e aniversários na casa da artista carioca. “Lembro muito o seu canto espetacular. Os contracantos que Dona Ivone fazia, e que fez nessa faixa, deram bastante trabalho porque era tudo muito criativo, genial!”, descreve Fabiana.

O sorriso memorável e a expressão de alegria são constantes nos registros audiovisuais de Dona Ivone Lara até o fim da vida – como na ocasião

em que, homenageada com o tema do desfile da Império Serrano, em 2012, viu todos os setores do Sambódromo da Marquês de Sapucaí a aplaudirem de pé. Cultuada de forma unânime, a intérprete de Sorriso Negro (1981) fez amizades no meio musical que rendiam histórias sempre contadas com humor.

Com a cantora Clementina de Jesus (1901-1987), por exemplo – com quem subiu ao palco em 1977, excursionando com o Projeto Pixinguinha – tinha um cuidado fraternal. A Rainha Quelé preferia descansar entre os shows, mas convencer a sempre festeira Ivone Lara a fazer o mesmo era tarefa difícil.

“Ela me tinha como irmã mais nova e me chamava de 'mana'. Clementina estava mais idosa, e eu era mais jovem, de maneira que, quando chegava na hora de ela ir se recolher, eu também ia . Mas depois, eu ó, saía fora, e tomava parte nos sambas de roda. Uma vez, sabe o que eu fiz? Me vesti toda, me cobri até aqui, de sapato e tudo. A Conceição [neta de Clementina de Jesus] chegou, olhou e disse: 'A tia Ivone tá coberta até aqui, ela tá dormindo'. Quando eu vi que elas não falavam nada, levantei de ponta de pé e ó!”, disse, às gargalhadas, em depoimento ao podcast Música Negra do Brasil.

Foi Dona Ivone quem recomendou à doutora Nise que fosse criada uma sala com instrumentos musicais lá no Hospital do Engenho de Dentro [atual Instituto Municipal Nise da Silveira] para ajudar no tratamento dos pacientes com distúrbios mentais numa época em que pouco se falava em musicoterapia.
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Lucas Nobile, escritor e pesquisador musical

O SAMBA NÃO PODE PARAR

Sesc Mogi das Cruzes realiza série de atividades no centenário de Dona Ivone Lara

Para celebrar a trajetória pioneira da cantora e compositora que deu régua e compasso a gerações de sambistas, o Sesc Mogi das Cruzes, na Região Metropolitana de São Paulo, realiza a programação especial Dona Ivone Lara: Axé! 100 anos de legado e vanguarda da rainha do samba. curadoria compartilhada entre a equipe da Unidade e o jornalista, escritor e pesquisador musical Lucas Nobile, biógrafo de Ivone, o evento revisita, ao longo de 10 dias, diferentes frentes do legado da artista.

Abrindo os festejos em 13/4, dia em que Dona Ivone faria 101 anos de idade, a cantora Fabiana Cozza interpreta as canções do disco Canto da noite na boca do vento

(2019), inteiramente dedicado à sambista. Em 16/4, Ilessi interpreta repertório de composições assinadas exclusivamente pela autora de Sonho Meu. Já no dia 20/4, Adriana Moreira canta, na íntegra, o álbum de estreia da baluarte da Império Serrano: Samba, minha verdade, samba, minha raiz (1978), que completa, em 2023, 45 anos de lançamento.

“É comum, em outras homenagens, desenharem uma seleção de obras calcada nas parcerias dela com grandes letristas, como Délcio Carvalho, Jorge Aragão, Hermínio Bello de Carvalho, Nei Lopes, Paulo Cesar Pinheiro e Arlindo Cruz. Neste show, a ênfase será em canções com letras e

para ver no sesc / bio

melodias criadas apenas por Dona Ivone Lara”, explica o cocurador. Para marcar o encerramento do projeto, o Dia Nacional do Choro e o aniversário do maestro Pixinguinha (1897-1973), será a vez do espetáculo musical Dona Ivone Lara: uma sambista de choro e alma, em 23/4, no qual um grupo regional de choro apresenta composições da majestade do samba em versão instrumental.

MOGI

DAS CRUZES

Dona Ivone Lara: Axé! 100 anos de legado e vanguarda da rainha do samba

De 13 a 23/4. sescsp.org.br/mogidascruzes

Fabiana Cozza abre o projeto em homenagem a Dona Ivone Lara em 13/4, dia em que ela faria 101 anos de idade.
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José de Holanda

MEMÓRIA EM CARTAZ

Criados com diferentes estilos, formatos e referências estéticas, pôsteres dos espetáculos do CPT_SESC, sob direção de Antunes Filho, ajudam a contar a história do teatro brasileiro

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

ACERVO SESC MEMÓRIAS

FOTOS
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Nelson 2 Rodrigues (1984), espetáculo do Grupo de Teatro Macunaíma e CPT_SESC, com texto de Nelson Rodrigues (1912-1980).

Macunaíma (1984), texto de Mário de Andrade (1893-1945) adaptado aos palcos por Jacques Thieriot e pelo Grupo Pau Brasil, que apresentou este espetáculo junto ao CPT_SESC.

Programação visual e ilustrações: CVS Ricardo Van Steen e Ucho Carvalho Programação visual e ilustrações: CVS Ricardo Van Steen e Ucho Carvalho

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Fundado há 40 anos como um laboratório permanente de criação e formação cênica, o Centro de Pesquisa Teatral do Sesc, também conhecido como CPT_SESC, teve como coordenador e diretor, até 2019, um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro: Antunes Filho (1929-2019). Hoje, essa história se aproxima de diferentes gerações graças ao trabalho de digitalização, catalogação, preservação e divulgação de um acervo composto por figurinos, vídeos, fotografias e por outro tipo de arte que, a partir de imagem e texto, instiga a curiosidade do público: os cartazes dos espetáculos produzidos pelo CPT.

“Todo material gráfico era elaborado e pensado como uma espécie de complemento ou norteador para a ampliação de camadas de leitura de cada obra. Antunes abria o processo de pesquisa e estudos referenciais mas, ao fim, a síntese era fundamental. A arte criada para cada cartaz representava algo muito simbólico e essencial do espetáculo em questão”, explica o diretor, ator e produtor Emerson Danesi, assistente de Antunes Filho por 23 anos.

Do primeiro espetáculo, Macunaíma, baseado na obra de Mário de Andrade (1893-1945), passando por montagens de peças de Nelson Rodrigues (19121980), a exemplo de Macbeth, clássicos de William Shakespeare (1564-1616), como Romeu e Julieta, entre outras dramaturgias, os cartazes do CPT_SESC

apresentam distintos formatos e estilos – ilustração, fotografia, colagem. “Era como se do interno desse intenso mergulho que Antunes e equipes faziam a cada nova experimentação, toda a expressão, seja ela corporal, vocal, sonora e também gráfica, tomasse forma durante um período de elaboração. De fato, tudo era resultado de um longo processo de imersão”, recorda Danesi, que é técnico de programação em artes cênicas no Sesc Consolação, local que abriga as formações e apresentações do CPT_SESC desde o início de suas atividades, em 1982.

De acordo com o diretor de arte Ricardo Fernandes, que em parceria com o designer Érico Peretta criou não só cartazes, mas catálogos dessas montagens, as trocas com Antunes eram decisivas para o processo criativo. Nós falávamos muito sobre cinema e seus autores/diretores preferidos, como Béla Tarr [cineasta húngaro], Apichatpong Weerasethakul [cineasta tailandês], entre outras referências. Era sempre a partir desses diálogos, imagens, ideias e ‘aparições’ que eu construía os catálogos e cartazes”, recorda.

Uma experiência que, para Fernandes, reverbera ainda hoje. “Fazer esses catálogos e cartazes para Antunes sempre foi um desafio e uma troca intensa, com ideias para além do teatro. Busquei, de forma bastante livre, criar um diálogo com cada obra, seu pensamento e derivas. Ele foi meu mentor e, até hoje, sinto muita falta dessas criações com ele”, compartilha.

A Pedra do Reino (2006), apresentado pelo CPT_SESC, uma adaptação de Antunes Filho para as obras Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao sol da Onça Caetana, ambas de Ariano Suassuna (1927-2014).

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Arte e ilustrações: Eric Lenate

Vereda da salvação (1993), texto de Jorge Andrade (1922-1984), encenado pelo Grupo de Teatro Macunaíma e CPT_SESC.

Ao lado: A hora e vez de Augusto Matraga (1986), com o Grupo de Teatro Macunaíma e CPT_SESC, com base na obra homônima de Guimarães Rosa (1908-1967).

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Arte: J.C. Serroni, Telumi Hellen e Eron Silva
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Foto: Célia Thomé de Souza
Arte: J.C. Serroni e Telumi Helen

Gilgamesh (1995), texto de Antunes Filho, baseado no poema épico babilônico homônimo Gilgamesh , apresentado pelo Grupo de Teatro Macunaíma e CPT_SESC.

Programação visual e ilustrações: CVS Ricardo Van Steen e Ucho Carvalho
Romeu e Julieta (1984), uma adaptação da obra homônima de William Shakespeare, encenada pelo CPT_SESC.
Ilustração: Laurabeatriz
Inspirado no conto Chapeuzinho Vermelho, dos Irmãos Grimm, a peça Nova velha estória (1991) foi encenada pelo Grupo de Teatro Macunaíma e pelo CPT_SESC. Criação: Romero de Andrade Lima / Fotografia: Emidio Luisi Xica da Silva (1988), texto de Luís Alberto de Abreu, encenado pelo Grupo de Teatro Macunaíma e CPT_SESC.
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Trono de sangue – Macbeth (1992), adaptação de Antunes Filho para a obra Macbeth, de William Shakespeare, encenada pelo Grupo de Teatro Macunaíma e CPT_SESC. Arte gráfica: Hélio de Almeida
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Blanche (2016), baseada na obra Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams (1911-1983), encenado pelo CPT_SESC. Arte: Ricardo Fernandes / Foto: Inês Corrêa

para ver no sesc / gráfica

LEGADO HISTÓRICO

Os cartazes dos espetáculos dirigidos por Antunes Filho encontram-se ao alcance do público no Acervo CPT_SESC, disponível na plataforma Sesc. Digital. “No caso do cartaz de teatro, ali estão contidos o tema e alguns elementos do espetáculo, e junto de outros documentos permite compreender a trajetória de uma montagem”, explica Fabricio Ribeiro, historiador e pesquisador de acervo no Sesc Memórias, responsável pela preservação desta história, ação que teve início em 2010. “A organização e conservação inclui procedimentos como a higienização, a catalogação, a digitalização e a guarda em local e condições adequadas, como forma de garantir a sua preservação e variadas possibilidades de pesquisas acerca da história do teatro”, completa.

SESC.DIGITAL

CPT_SESC – Cartazes de espetáculos

Acervo: Sesc Memórias. sescsp.org.br/acervocpt

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Teatro Sesc Anchieta: Um ícone paulistano (2017)

Organização: Alexandre Mate. portal.sescsp.org.br/ online/edicoes-sesc

Drácula e outros vampiros (1996), concepção de Antunes Filho encenada pelo Grupo de Teatro Macunaíma e pelo CPT_SESC.
Ilustração: J.C. Serroni e
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Telumi

SEGURO alimento

Você sabia que um alimento aparentemente em perfeitas condições pode conter microrganismos capazes de adoecer e até matar? Especialistas estimam que 90% dos surtos de gastroenterite no país, por exemplo, ocorram pelo consumo de água e alimentos contaminados por microrganismos patógenos (bactérias, vírus e fungos) e que não são perceptíveis a olho nu, ou seja, não deterioram visivelmente o alimento.

Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) nas Américas, uma em cada dez pessoas no mundo é intoxicada, todos os anos, após consumir água ou alimentos contaminados. Os casos incluem sintomas como diarreia, vômito, febre, desidratação e outras

complicações mais severas. E o mais grave: 420 mil pessoas morrem anualmente em decorrência da ingestão de produtos nocivos para o consumo, principalmente crianças menores de 5 anos.

Dados da última década levantados pela Vigilância Epidemiológica de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar (DTHA), ligada ao Ministério da Saúde, apontam que, no Brasil, 35% dessas enfermidades partem das residências – e poderiam ser prevenidas. “A gente não costuma pensar que adoeceu porque comeu ou bebeu algo impróprio dentro de casa. Geralmente acha que foi algo diferente, consumido em um restaurante, bar ou padaria. Além disso, é preciso entender a água como um alimento, pois, quando não potável nem tratada, ela se torna uma das principais

fontes de contaminação”, explica Elke Stedefeldt, nutricionista e professora doutora de Segurança dos Alimentos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Segundo a profissional, também há uma diferença semântica entre segurança alimentar e a segurança dos alimentos. O primeiro termo vem do inglês food security e está relacionado ao direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente para suprir as demandas nutricionais individuais, de forma que a pessoa não passe

Num país em que 35% das infecções e intoxicações alimentares surgem dentro de casa, dar atenção à segurança do que se come é essencial à integridade da saúde
POR LUNA D’ALAMA
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Laura Rosenthal
alimentação

fome. Já a expressão "segurança dos alimentos" (do inglês food safety) se refere a uma série de medidas adotadas para garantir a qualidade dos alimentos e evitar danos à saúde.

“Esses princípios gerais de higiene estão contidos no Codex Alimentarius, uma coletânea de padrões, condutas e recomendações internacionais estabelecida na década de 1960 pela OMS, em conjunto com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)”, destaca a especialista.

Falar em segurança dos alimentos, portanto, é de suma importância

para evitar doenças transmitidas por água e alimentos no ambiente doméstico. E isso se torna possível com a adoção de medidas simples na rotina diária, antes, durante e depois do preparo: entre elas, lavar e manter as mãos sempre limpas, trocar as esponjas de louça toda semana – ou quando estiverem danificadas [veja mais dicas em Cozinha limpa, comida segura] e seguir o prazo de validade dos alimentos. “Os microrganismos adoram temperatura ambiente, alimentos e água, por isso a cozinha é o lugar ideal para eles”, alerta a nutricionista Ana Carolina Rovai,

da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar (Geasa) do Sesc São Paulo. Ela aponta que, além de limpar e higienizar bem os alimentos, é preciso estender essa preocupação aos utensílios domésticos e ao espaço físico. “Consideramos limpeza quando se remove apenas a sujeira visível, a terra e eventuais insetos. Já a higienização inclui a desinfecção por produto químico (como cloro ou álcool) ou por temperatura (cocção, água fervente ou microondas). Isso é o que, de fato, mata bactérias, fungos e vírus”, diferencia a nutricionista.

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Higienizar os alimentos é um dos procedimentos essenciais que precedem o consumo.

TEMPO E TEMPERATURA

Entre os principais critérios usados para a segurança dos alimentos está o controle da temperatura e do tempo de exposição da comida. “O patamar de temperatura considerado seguro, do ponto de vista microbiológico, é abaixo dos 5°C e acima dos 60°C, ou seja, quando o alimento está na geladeira (ou congelado) ou sob o calor do fogão/forno. No intervalo entre 5°C e 60°C é que ocorrem os problemas. É por isso que a comida de delivery precisa chegar rapidamente: não só para vir ainda quente, mas segura”, esclarece o biomédico microbiologista Eneo Alves Silva Jr., doutor na área pela Universidade de São Paulo (USP).

Em relação ao tempo de exposição, o ideal é que um alimento, ao ser servido à mesa, não fique em temperatura ambiente por mais de uma hora. “A legislação estabelece

padrões, mas são as boas práticas e os sistemas de controle que que os mantêm – que podem ser aplicados não só na indústria, mas também em casa. Isso envolve a escolha e a manipulação dos alimentos, a higiene das mãos, das superfícies e das frutas/ vegetais, o cozimento a pelo menos 75°C e o armazenamento adequado. Essas medidas podem prevenir desde diarreias causadas por bactérias [como Escherichia coli e Staphylococcus aureus] até doenças mais graves, a exemplo de hepatite A, botulismo, cólera, salmonelose e febre tifoide”, cita Silva Jr.

Na visão do especialista, é importante conscientizar-se de que, assim como escovar os dentes e tomar banho, essas práticas precisam ser diárias –mesmo com a rotina corrida –, e lembra que a responsabilidade é inteiramente nossa. “A todo

COZINHA LIMPA, COMIDA SEGURA

Especialistas dão dicas práticas sobre o que fazer em casa antes, durante e depois do preparo dos alimentos

ANTES

momento, há bactérias emergentes, vivenciamos novos surtos. Por isso, não podemos relaxar nunca no controle e nos cuidados básicos”, reforça o microbiologista.

5 CHAVES DA OMS

Para auxiliar profissionais de saúde e demais cidadãos a se alimentarem com mais qualidade e segurança, a OMS publicou, em 2006, o manual Cinco Chaves para uma Alimentação Mais Segura. São elas: manter a limpeza, separar alimentos crus dos cozidos (inclusive dentro da geladeira, para evitar contaminações cruzadas), cozinhar bem os alimentos, mantêlos em temperaturas adequadas e usar água e matérias-primas seguras. “Apesar de gostosos, ovos molinhos e carnes malpassadas oferecem maior risco do que quando bem cozidos”, compara a nutricionista Ana Carolina Rovai.

Ȉ Escolha bem os alimentos na feira ou no mercado. Veja se há sinais sensoriais de deterioração (odor, cor e consistência alterados), evitando alimentos murchos, com danos por pragas, machucados abertos, podridão ou fungos.

Ȉ Certifique-se de que as embalagens estejam íntegras, sem furos, aberturas ou ferrugem (no caso de latas).

Ȉ Confira no rótulo os prazos de validade – que mudam após os produtos serem abertos.

Ȉ Durante a compra, deixe para pegar alimentos congelados e/ou perecíveis por último, antes de passar no caixa. Se puder, leveos até sua casa numa bolsa térmica.

Ricardo Ferreira
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De acordo com Rovai, as famílias (principalmente as pequenas ou pessoas que moram sozinhas) devem fazer um planejamento de compra e preparo, calculando o quanto cozinhar e para quanto tempo. “Isso evita o desperdício e que as comidas estraguem. É recomendado porcionar o conteúdo das panelas em potes e congelar o que não for consumir logo. Mas nem tudo fica bom congelado, como folhas [alface, rúcula e agrião] e batata”, avalia a

DURANTE

nutricionista. É importante, ainda, que a graduação da temperatura da geladeira acompanhe o volume guardado dentro dela: quanto mais cheia, mais fria. “Não há comprovação científica de que ocorra economia de energia com a geladeira no mínimo”, completa a nutricionista Elke Stedefeldt.

O que se sabe, com certeza, é que as DTHA são um problema sério de saúde pública, lotam emergências

DEPOIS

e hospitais e, muitas vezes, são subnotificadas ou nem chegam a entrar nos registros oficiais. “No fim, tudo se transforma em virose. O Brasil é um dos países com critérios sanitários mais exigentes do mundo, mas as regras precisam ser cumpridas e fiscalizadas. Por isso, esse assunto é fundamental, inclusive porque boa parte dos casos – que poderiam ser evitados – tem origem doméstica”, reforça a nutricionista do Sesc São Paulo.

Ȉ Lave as mãos com água e sabão, mantenha as unhas limpas e, caso possua cabelo longo, deixe-o preso.

Ȉ Conserve pia, utensílios e equipamentos de cozinha limpos e secos.

Ȉ Higienize frutas, legumes e verduras com solução de cloro próprio para alimentos por 10 a 15 minutos (uma colher de sopa para um litro de água), além de enxaguar e escorrer.

Ȉ Separe os alimentos crus dos cozidos, inclusive dentro da geladeira. Os que estão prontos para consumo (incluindo frutas higienizadas) devem ir para a parte de cima, e os crus para a parte de baixo da geladeira.

Ȉ Ao retirá-los da geladeira, não deixe os alimentos expostos por mais de uma hora à temperatura ambiente.

Ȉ Depois de desligar o fogo, espere no máximo meia hora para guardar o alimento na geladeira. Porcione tudo em potes e decida o que será consumido imediatamente e a porção que será resfriada ou congelada.

Ȉ Identifique os potes fechados com etiquetas informando a data do preparo para que não ultrapassem três dias na geladeira nem três meses no congelador.

Ȉ Não descongele alimentos em temperatura ambiente. Faça isso no micro-ondas, em banho-maria ou dentro da geladeira.

Após o preparo, os alimentos devem ser armazenados em potes e identificados.
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alimentação / para ver no sesc

ATRAENTES, SABOROSOS E SEGUROS

Comedorias do Sesc São Paulo priorizam qualidade e segurança dos alimentos com processos desde a escolha de fornecedores até o consumo

Quem almoça ou toma um café nas unidades do Sesc São Paulo talvez não faça ideia do que acontece nos bastidores para que os alimentos e a água servidos ao público tenham qualidade e sejam seguros, tanto do ponto de vista nutricional, quanto microbiológico. Há uma preocupação constante que se traduz em práticas e procedimentos rigorosos para que as Comedorias (restaurantes, cafeterias e outros espaços de alimentação) sirvam sempre os melhores produtos aos frequentadores.

Esse processo começa desde a escolha dos fornecedores, passa pelo recebimento dos alimentos, pelo armazenamento, pela arquitetura dos espaços (planejados de forma a evitar contaminações entre itens crus e cozidos ou limpos e sujos, por exemplo), pelas áreas de produção (com a definição dos cardápios e elaboração dos pratos), e chega à distribuição para o cliente nos restaurantes e cafeterias. Esse cuidado termina no pós-consumo, com a limpeza e desinfecção dos locais e itens utilizados.

“Também fazemos um controle microbiológico, coletando todos os dias amostras de alimentos e enviando-as, periodicamente, para análise laboratorial, com o objetivo de avaliar e melhorar nossos processos internos. A água fornecida também passa por uma análise mensal, e as caixas d’água são higienizadas a cada seis meses”, conta a nutricionista Ana Carolina Rovai, da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo (Geasa). A especialista informa, ainda, que o programa de alimentação da rede se sustenta no tripé de comida saudável, brasileira e contemporânea.

Segundo Márcia Aparecida Bonetti Agostinho Sumares, gerente da Geasa, todas as unidades da instituição adotam, em sua rotina, técnicas e processos criteriosos para promover a segurança dos alimentos servidos nas Comedorias. “Do planejamento dos espaços à higienização dos utensílios, tudo é realizado com base em legislações e protocolos, de forma a garantir que o que é servido não ofereça riscos à saúde. Contamos com profissionais nutricionistas e suas respectivas equipes para assegurar que os alimentos estejam sempre atraentes, saborosos e seguros”, destaca.

SESC.DIGITAL

Websérie Sem Título – Conversas no Acervo Sesc de Arte

No episódio Alimento, o músico e apresentador João Gordo e a chef de cozinha Irina Cordeiro lançam seus olhares sobre obras de arte para discutir o tema da alimentação.

Guia alimentar para a população brasileira

Princípios e recomendações para uma alimentação saudável e consciente.

Receitas com aproveitamento integral de alimentos

Passo a passo com preparos conduzidos por culinaristas e cozinheiras de instituições sociais atendidas pelo Programa Mesa Brasil Sesc São Paulo.

Saiba mais: sesc.digital

SESCTV

Programa Contraplano

No episódio Comida em Cena, o filósofo Celso Favaretto e o poeta Geraldo Carneiro analisam a poética por trás dos alimentos retratada nos filmes Como Água para Chocolate (1992) e Maus Hábitos (2007) entre outros.

Assista: sesctv.org.br

Nas Comedorias do Sesc, procedimentos rigorosos são seguidos para garantia da qualidade dos alimentos servidos.
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Ricardo Ferreira

ATÉ 3 DE SETEMBRO DE 2023 SESC GUARULHOS

Instalação imersiva composta por cenas interativas na fronteira entre videoinstalação, teatro e cinema, com imagens, símbolos e sons cujas forças nascem da cultura negra e indígena na América.

Terça a sexta, das 9h às 21h30

Sábados, das 9h às 20h

Domingos e feriados, das 9h às 18h Grátis

Agendamentos de visitas mediadas para grupos agendamento.guarulhos@sescsp.org.br

Sesc Guarulhos sescsp.org.br/guarulhos

Parece ser só futebol, mas um dos esportes mais populares do mundo desdobra-se em múltiplos significados. É que naquele campo, seja de barro, grama ou piso, seus praticantes – 11 de um lado e 11 de outro – dão variados contornos a tudo que envolve o jogo, dentro e fora das quatro linhas. Aos olhos da arquibancada, o que acontece durante os 90 minutos pode ser questão de “vida ou morte”, uma confraternização entre amigos ou a memória afetiva da primeira vez no estádio, de mãos dadas com o avô.

Entre apitos, pênaltis, bicicletas e outros passes, a história da bola em campo inspira variadas expressões artísticas. Seu legado está registrado no Museu do Futebol, em São Paulo; protagoniza diversas crônicas de Nelson Rodrigues (1912-1980), pioneiro em coroar Pelé como o “Rei do Futebol”; embala a música de Jacob do Bandolim (1918-1969), que impressionado pelos dribles de Garrincha (1933-1983), compôs o choro A ginga do mané. E, mais recentemente, inspirou o cineasta Gabriel Martins, que em Marte Um (2022) coloca o futebol como pano de fundo para refletir sobre desigualdade social.

A partir da amplitude de cores vestidas pelo uniforme do futebol, entram em campo no Em Pauta

deste mês dois entusiastas do tema. Em um dos artigos, o pesquisador Guilherme Freitas, autor de As seleções de futebol da União Europeia: identidade, migração e multiculturalismo através da bola (Dialética, 2022), lança seu olhar sobre a Copa do Mundo realizada em 2022, no Catar. “Trata-se de um evento histórico que sempre refletiu dentro de campo e nas arquibancadas o que se passa no mundo; uma grande aula de ciências humanas para se compreender a complexidade de nossa sociedade e se chegar a novas reflexões”, analisa Freitas.

O outro texto é assinado pela jornalista, escritora e comentarista esportiva Milly Lacombe, que se dedica à poesia das “miudezas” do jogo, sem deixar de apontar para os desafios da atualidade. “Valor de premiações, orçamentos, de compra e de venda de jogadores, casas de apostas nas quais se pode arriscar dinheiro no número de escanteios por jogo, no número de chutes a gol por partida… Estamos sendo convidados a fazer uma autópsia de cada jogo, usando planilhas e cálculos. Esse futebol não é exatamente futebol. É alguma coisa outra que não permite uma história em palavras, que mata a poesia e não deixa nenhum tipo de prosa nascer”, observa.

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Todos prontos? Apita o juiz… bola em campo! 61

O futebol e suas histórias

Em Futebol ao Sol e à Sombra [L&PM Pocket, 2004] e em Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil, [Companhia das Letras, 2008], eles desnudam, respectivamente, o futebol e revelam ao leitor a alma de um jogo no qual o pequeno pode, a qualquer momento, vencer o grande.

A poesia contida no barulho da bola que explode na trave. A tragédia do gol contra numa final. O pênalti perdido na hora derradeira. A virada de jogo no último minuto.

Toda partida de futebol é um multiverso de histórias. A partida em si, do começo ao fim, mas também cada um dos lances, o gol feito, o gol evitado, o drama de uma contusão, a falta violenta que rendeu expulsão, a torcida em transe, a torcedora que chora, o torcedor que levanta o filho sobre a cabeça para celebrar o time que entra em campo.

A forma como essas histórias são contadas, o olhar que é colocado em cada uma delas, é também futebol. Tudo é narração e contexto.

Há quem goste de contar a história com números, dados, estatísticas. Não me interessa muito esse ângulo cheio de concretudes, mas reconheço que existe nele um valor.

O que me intriga mesmo é a miudeza de cada lance, de cada toque na bola, de cada abraço dado depois de um gol.

Eduardo Galeano (1940-2015) e José Miguel Wisnik são meus escritores prediletos para falar do jogo.

Dor e desespero. Alegria e alívio. Transe. Vertigem. Gozo. Morte. Vida.

O futebol é uma cartilha para a dureza do dia a dia e, ao mesmo tempo, seu escape. Nele aprendemos a ganhar e a perder. Ganhar fala do ego; perder fala da alma.

O antropólogo Hilário Franco Júnior tem um livro incontornável para quem gosta de futebol: um recorte que vai do filosófico ao psicológico, passando pelo histórico e pelo antropológico [A Dança dos Deuses: Futebol, Sociedade, Cultura, Companhia das Letras, 2007].

O jornalista estadunidense Franklin Foer escreveu Como o futebol explica o mundo: Um olhar inesperado sobre a globalização [Zahar, 2005] e o olhar bastante estrangeiro para quem nasceu na terra do baseball – ainda que ele seja um apaixonado pelo soccer – faz o livro ser imperdível.

Mas talvez quem mais tenha captado a alma desse esporte seja o dramaturgo Nelson Rodrigues.

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O futebol insiste e resiste. Enquanto houver a chance de ser contado em sensações, enquanto houver um começo, um meio e um fim, haverá espaço para a boa luta

Como se trata de um homem do século passado, é preciso se aproximar dele com alguma ressalva no que diz respeito ao machismo e à misoginia que emprega, mas ainda assim é impossível não se deliciar com sua ironia, seu humor e com a beleza da lente que usa para ver o jogo.

Está em Nelson o encontro mais apoteótico entre futebol e literatura.

Da beleza de um lateral bem batido à fúria com que lida com a derrota de seu Fluminense.

A forma como analisa a torcida e a voz rouca e apaixonada que vem da arquibancada e de nenhum outro lugar nesse mundo. A terreirização do concreto, os corpos descontrolados, as almas que, por 90 minutos, já não se permitem domesticar.

O futebol de hoje está se afastando dessa poesia, invadido pelo universo das coisas objetivas.

Valor de premiações, orçamentos, de compra e de venda de jogadores, casas de apostas nas quais se pode arriscar dinheiro no número de escanteios por jogo, no número de chutes a gol por partida… Estamos sendo convidados a fazer uma autópsia de cada jogo usando planilhas e cálculos.

Esse futebol não é exatamente futebol. É alguma coisa outra que não permite uma história em palavras, que mata a poesia e não deixa nenhum tipo de prosa nascer.

Um jogo que não pode virar crônica não foi de fato um jogo, e seria preciso que nos impuséssemos contra esse estado brutal de coisas.

Uma luta inglória, dirão alguns.

Sim, pode ser. Mas não se entra em uma luta para ganhar ou perder. Assim como em uma partida de futebol, entra-se na luta por ser a coisa certa a se fazer.

O futebol insiste e resiste. Enquanto houver a chance de ser contado em sensações, enquanto houver um começo, um meio e um fim, haverá espaço para a boa luta.

Como diz o poeta Sérgio Vaz, “futebol a gente não vê; futebol a gente sente”.

E, sentindo, alguns de nós conseguem colocar a bola no chão e fazer poesia com ela.

Milly Lacombe é escritora, roteirista, corintiana e feminista. Graduada em rádio e TV, trabalhou como comentarista esportiva na Globo e Record, colaboradora da Folha de S.Paulo em Los Angeles, diretora de redação da Revista Tpm e roteirista do programa Amor&Sexo. É autora de cinco livros, entre eles o romance O ano em que morri em Nova York (Planeta, 2017).

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O futebol é uma cartilha para a dureza do dia a dia e, ao mesmo tempo, seu escape. Nele aprendemos a ganhar e a perder. Ganhar fala do ego; perder fala da alma.

O craque, a taça e a bisht compõem uma imagem que ficará eternizada na memória de quem assistiu à final da Copa do Mundo de futebol masculino no dia 18 de dezembro de 2022. Após uma das maiores partidas da história, a Argentina superou a França e conquistou seu tricampeonato mundial. Na hora de levantar a tão cobiçada taça, o capitão Lionel Messi foi abraçado por Tamim bin Hamad Al Thani, Emir do Catar, que o vestiu com a bisht, uma vestimenta cultural local que é oferecida a guerreiros após uma difícil vitória e utilizada pela família real catari em situações especiais.

Para muitos não passou de uma singela homenagem a um dos maiores jogadores de todos os tempos. Porém, a cena também representou o que foi este Mundial no Catar, uma competição que não se limitou apenas às quatro linhas e que discutiu temáticas ligadas à sociedade, costumes e política. A cena de Messi erguendo a taça trajado com a bisht talvez seja o desfecho perfeito desta controversa Copa do Mundo.

A obscura escolha do Catar como sede do Mundial, a situação dos trabalhadores migrantes no país, o não respeito pelos direitos humanos, a acusação de sportwashing por parte dos cataris e a questão dos atletas com descendência estrangeira nas seleções foram alguns dos assuntos mais comentados ao longo das partidas no Oriente Médio, tanto na opinião pública, quanto na imprensa. E, consequentemente, também no meio acadêmico, com pesquisas e artigos científicos sendo produzidos nos mais diversos campos das ciências humanas, confirmando a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu que certa vez disse que o “esporte não está alheio à sociedade”.

Falando nisso, as questões sociais foram muito debatidas neste Mundial. Com uma população muito pequena, aproximadamente 2,7 milhões de habitantes, o Catar sempre necessitou de mão de obra estrangeira para desenvolver sua economia. Em pouco tempo, foi de uma modesta paisagem de vilarejo no deserto para um emaranhado de arranha-céus luxuosos graças à exportação de gás e petróleo. Parte deste desenvolvimento teve grande colaboração de migrantes oriundos de países como Índia, Bangladesh e Nepal, que vão para lá visando melhores condições de vida e trabalho.

Atraídos por maiores salários em relação a seus locais de origem, estes trabalhadores não tiveram seus direitos respeitados. Denúncias registradas por veículos de mídia ocidentais e organizações de direitos humanos revelaram péssimas condições de habitação somadas a extensas horas de trabalho debaixo de um sol de mais de 40°C. Esta condição análoga à escravidão provocou muitas mortes. Números da rede britânica BBC apontaram mais de 6,5 mil óbitos de trabalhadores entre 2014 e 2020. Por outro lado, o governo catari afirma que apenas 37 trabalhadores faleceram. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), aproximadamente 50 milhões de pessoas no mundo estão sujeitas à condição de trabalho análogo à escravidão, um assunto urgente que teve na Copa do Mundo uma importante vitrine.

Ainda no campo dos direitos humanos, outro tema bastante abordado ao longo da Copa do Mundo foram os costumes do país-sede. Em um Estado onde ser homossexual é crime e as mulheres não têm os mesmos direitos que os homens, havia o interesse em saber qual seria o comportamento do Catar em relação a estas questões tão díspares de seu dia a dia. Nos estádios, a bandeira arco-íris, símbolo da comunidade LGBTQIA+, foi vetada. Jogadores europeus também não puderam usar uma braçadeira de capitão em apoio à causa, o que gerou protesto de atletas alemães. Mulheres iranianas protestaram contra o regime de seu país nos estádios e houve relatos de mulheres na mídia ocidental que sentiram insegurança no país, ante outras que declararam se sentir seguras no país, segundo a mídia local, em meio a uma posição neutra da FIFA.

POR GUILHERME FREITAS em pauta 64
Copa do Mundo 2022: uma relação entre o futebol e as ciências humanas

Esta Copa do Mundo também foi um excelente campo de pesquisa para compreender os impactos da globalização na sociedade. Todas as 32 seleções que disputaram o Mundial tinham atletas que atuavam em ligas estrangeiras; 28 tinham pelo menos um atleta do time nascido em outro país, entre elas, todas as seleções africanas com vários jogadores nascidos na Europa. Pela terceira Copa do Mundo seguida, todas as equipes do continente europeu tiveram pelo menos um atleta migrante em seus elencos.

De volta a um Mundial após 36 anos, o Canadá exibiu uma jovem equipe formada por atletas descendentes de diversos países, e o autor do primeiro gol canadense em Mundiais foi justamente um refugiado: Alphonso Davies. Refugiados que também estiveram presentes na equipe australiana, sendo quatro de 23 jogadores. Outra seleção com uma história curiosa foi Gana, que antes do Mundial mapeou descendentes de ganeses pelo mundo e os ofereceu a naturalização, semelhante a uma política de Estado que busca repatriar os filhos da diáspora ganesa pelo mundo.

Mas talvez a situação que mais tenha chamado a atenção do público sobre essa globalização do futebol tenha sido o caso de jogadores que marcaram gols contra os países onde eles nasceram. Breel Embolo nasceu em Camarões e imigrou jovem para a Suíça com a mãe. Ele marcou o gol da vitória suíça diante dos camaroneses e não comemorou. Nascido na França e criado na periferia em meio à grande colônia tunisiana no país, Wahbi Khazri foi o autor do único gol da Tunísia no triunfo ante os franceses, e celebrou bastante seu gol. Duas histórias semelhantes, porém com contextos muito diferentes.

O caso de Khazri também traz à tona a tensa relação entre colônia e colonizador. Faz emergir um ressentimento histórico e social de décadas, hoje visto na figura do nativo e do migrante nas grandes cidades da Europa. E casos assim ainda potencializam a xenofobia e o racismo vividos por parte da comunidade marroquina na Bélgica, Espanha e França ao celebrar a histórica campanha de sua seleção e dos jogadores franceses negros descendentes de migrantes, que perderam seus pênaltis na final e foram atacados nas redes sociais.

Por fim, vale mencionar o uso do esporte por parte do governo catari como estratégia de alavancar seu soft power, e do sportwashing do país, usando a Copa do Mundo para “lavar” a imagem do Catar perante o mundo.

A Copa do Mundo não é apenas um gigante e lucrativo torneio esportivo. Trata-se de um evento histórico que sempre refletiu dentro de campo e nas arquibancadas o que se passa no mundo. Trata-se de uma grande aula de ciências humanas para se compreender a complexidade de nossa sociedade e se chegar a novas reflexões. Talvez por isso ela seja tão apaixonante.

Guilherme Silva Pires de Freitas é autor do livro

As seleções de futebol da União Europeia: identidade, migração e multiculturalismo através da bola (Dialética, 2022) e doutorando em mudança social e participação política pela Universidade de São Paulo (USP).

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Esta Copa do Mundo também foi um excelente campo de pesquisa para compreender os impactos da globalização na sociedade. Todas as 32 seleções que disputaram o Mundial tinham atletas que atuavam em ligas estrangeiras.

EXPANDIDA visão

Fotógrafo e pesquisador em artes visuais, Tuca Vieira revela os significados e impactos das imagens que registram a arquitetura das hipercidades

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Empenas, viadutos, arranha-céus, calçadas e sobrados são capturados pelas lentes do fotógrafo Tuca Vieira, para quem a silhueta de concreto de uma metrópole é a chave para se entender o mundo onde vivemos. “Quando eu falo em arquitetura, não estou falando de prédios desenhados por grandes profissionais, estou falando da cidade como um grande laboratório humano de decisões, construções, falhas e desejos. Isso tudo é a arquitetura que me interessa”, explica.

Fotógrafo profissional desde 1991, Tuca trabalhou no jornal Folha de S. Paulo, entre 2002 e 2009, no qual publicou Paraisópolis (2004) – foto reconhecida internacionalmente –, que retrata uma tênue fronteira entre a segunda maior favela de São Paulo e um condomínio de luxo no bairro do Morumbi.

Ao evidenciar as discrepâncias sociais das metrópoles, o artista provoca a reflexão sobre as miopias dessa realidade desafiadora.

Autor de obras como Salto no escuro (N-1 Edições, 2020) e Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Arredores (Casa da Imagem/Museu da Cidade de São Paulo, 2020), pela qual recebeu o prêmio Jabuti, em 2021 –, Tuca aponta sua câmera para as hipercidades. Estes gigantescos centros urbanos, habitados por mais de 10 milhões de pessoas, também são tema do doutorado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), que levou o artista a uma bolsa de pesquisa na Universidade de Lyon Saint-Étienne, na França. Neste Encontros, Tuca explica o que são as hipercidades, reflete sobre o uso de novas tecnologias, aborda a ética no fotojornalismo

e discorre sobre a postura crítica de quem faz e daquele que observa uma fotografia.

HIPERCIDADES

Sempre me surpreendi com a cidade de São Paulo, com seu potencial de produzir imagens, e acho que ela não é uma cidade muito bem fotografada. Ela é mal conhecida por nós mesmos [moradores]. Apesar de paulistano, sempre estranhei São Paulo e nunca me acostumei com o tamanho e as potencialidades de um lugar como esse. Ela sempre foi um ente gigante e estranho ao meu redor, e esse estranhamento é importante para o artista. Então, me interessei por cidades semelhantes, essas cidades gigantes que existem pelo mundo. Há estudos que explicam que uma cidade, quando ultrapassa 10 milhões de habitantes, perde a sua unidade inicial. A distância entre o centro e a periferia ultrapassa o razoável e ela passa a ser um aglomerado disforme. A gente deveria buscar outra palavra para definir esse tipo de aglomeração –, daí hipercidades: a cidade além da cidade. Há várias pelo mundo e eu me propus a conhecer cerca de 30, numa pesquisa fotográfica que está ligada ao meu projeto

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de doutorado. A fotografia é, no fundo, um pretexto para conhecer lugares, e eu sempre tive curiosidade de visitar essas cidades que estão moldando o futuro do mundo. Conforme vou visitando, vou escrevendo e fotografando.

DOIS MUNDOS

A fotografia Paraisópolis toca nesse assunto que é cada vez mais importante: a desigualdade social. A gente fala em ricos e pobres como duas realidades que estão distantes, e é muito difícil fazer

uma imagem que dê conta desses dois extremos, separados por barreiras muitas vezes invisíveis. Então, a foto é “feliz” nesse sentido. Há, literalmente, um muro ali, dividindo esses dois mundos. Quer dizer, os valores simbólicos da foto são grandes: o muro, as piscinas, a quadra de tênis. É possível falar da desigualdade social, das injustiças, fotografando a arquitetura da cidade. Ela é uma foto que tem esse poder quase didático de explicar aquela situação, e o uso mais importante dela, para mim, é em livro didático. Ela é usada em livros de geografia em vários

lugares do mundo. Esse uso é muito impactante, porque você forma uma geração de pessoas e isso gera um debate sobre o Brasil, sobre a desigualdade, e não sobre o autor. Depois, lá pelas tantas, falam: “Bom, acho que alguém fez essa foto, né?”, e tudo bem.

FOTOJORNALISMO

Os fotógrafos ficam divididos entre uma espécie de purismo do fotojornalismo, como ele foi entendido nos últimos anos, e uma outra corrente que quer romper

Tuca Vieira
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Foto publicada no jornal Folha de S.Paulo em 2004, Paraisópolis está presente em livros didáticos e já ilustrou o cartaz da exposição Cidades globais, realizada no museu Tate Modern de Londres, em 2007.

TODA FOTOGRAFIA É UMA ESPÉCIE DE CONSTRUÇÃO QUE OBEDECE À SUBJETIVIDADE DO AUTOR. ESSE É O ENIGMA DA FOTOGRAFIA, É O QUE FASCINA

as barreiras da linguagem. De uma forma geral, essa foi a discussão [sobre a fotografia de Gabriela Biló, publicada no jornal Folha de S.Paulo, em 9 de janeiro deste ano, que simula uma bala que estilhaça a foto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva]. Eu, particularmente, acho uma imagem bastante infeliz e acho que há várias camadas para a gente compreender aquilo. É uma discussão longa, mas eu parto do princípio de que as regras e condutas aplicadas ao jornalismo escrito devem ser aplicadas ao fotojornalismo também. Nesse sentido, eu acho a montagem inaceitável na capa do jornal, sobretudo naquele contexto e momento histórico. No caso do fotojornalismo, eu acredito que existe um acordo tácito entre o jornal, o fotógrafo e o leitor que foi quebrado naquela fotografia. Há um certo vício no fotojornalismo de Brasília que associa elementos visuais separados em busca de uma leitura literal da imagem. No caso, o resultado é uma montagem digital que emula outra coisa. Ela até gerou um debate, mas isso não é exatamente uma qualidade.

REALIDADE?

Esse é um terreno bastante pantanoso da linguagem fotográfica: a relação da foto com a realidade. Livros e livros foram escritos sobre isso desde a invenção da fotografia. Qual a relação da fotografia com a verdade, com a realidade? Aquilo que a gente está vendo são os fatos? A fotografia, por um lado, prova uma série de coisas: ela pode provar um crime, pode provar que eu sou um homem branco de óculos vestindo uma camisa preta. Mas também é verdade que toda fotografia

Arquivo
pessoal
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Tuca Vieira durante registro de imagens de hipercidades no continente asiático.

é uma espécie de construção que obedece à subjetividade do autor. Esse é o enigma da fotografia, é o que fascina. Quer dizer, negar totalmente a relação da fotografia com a realidade, é equiparar a fotografia ao desenho e à pintura, tirando dela o que ela tem de extraordinário. Por outro lado, se você buscar a realidade na fotografia, as coisas como elas são, você pode se dar mal também, porque os fotógrafos têm muitos recursos para enganar as pessoas. É difícil esse debate no fotojornalismo, e isso, claro, cria problemas. Mas há de fato uma nova geração de jovens que têm outra formação e se relacionam com a imagem de uma forma bem diferente. É preciso compreender isso.

DISTÂNCIA

Acho que o efeito dos drones não é tanto sobre o fazer fotográfico. O fotógrafo aprende a usar o drone, é uma coisa divertida, parece videogame. E ficou mais barato fazer fotos aéreas, antes a gente usava mais helicóptero. Agora, eu acho que o grande efeito desse tipo de imagem é no jeito que a gente está vendo as coisas. De repente, a gente está vendo

o mundo como se fôssemos um pássaro ou uma espécie de deus. A gente passou a ver muita coisa de cima para baixo, de fora, e eu me pergunto sobre o que isso implica na nossa postura diante do mundo. As imagens aéreas também se parecem muito e tiram a autoria, pois parecem ter sido feitas por qualquer fotógrafo. Tudo fica atraente, bonito, e isso pode ser um problema. Claro que essas imagens são muito descritivas e podem ter um efeito pedagógico – a foto Paraisópolis é uma foto aérea. Mas eu acho que é preciso se perguntar se vale a pena, se é necessário e por quê você vai fazer essa foto aérea. Só por que ela é espetacular e bonita? Isso não é suficiente.

CURIOSIDADE

O nosso olhar fica muito aguçado quando a gente viaja. É a atração pelo estranho. Quantas pessoas só fotografam quando viajam? O olhar fica afiado, reparando nas coisas. E eu sempre acho um exercício muito interessante tentar fazer isso na nossa própria cidade. Esse olhar estrangeiro sobre a cidade de São Paulo me interessa muito. Talvez o grande desafio seja justamente a gente manter essa curiosidade, esse olhar sobre o desconhecido no

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o fotógrafo Tuca Vieira, presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 16 de fevereiro de 2023. A mediação é da jornalista Adriana Reis Paulics, editora da Revista E.

nosso próprio ambiente. Enquanto o fotógrafo, o jornalista, tiver curiosidade, ele vai ter o que escrever, o que fotografar. Eu tenho uma curiosidade absurda. Se você diz para mim: “Tá vendo essas casas aqui? Você pode entrar em todas e fotografar. Menos nesta”. Eu penso: “É justamente essa que eu quero fotografar”.

TELEOBJETIVA

Nesse projeto de doutorado, pretendo fazer um livro em que vou contar uma série de experiências minhas de viagem, de coisas que eu vi, e vou organizar as fotografias que fiz durante essas viagens. Também pretendo terminar o projeto das hipercidades e, talvez, voltar a dar aulas. Comecei minha atividade como professor na Escola da Cidade e acho muito gratificante. Aos 48 anos, não sou um grande senhor da fotografia, claro, mas já sinto a responsabilidade de transmitir coisas que eu aprendi na vida para os mais jovens. Gosto muito desse diálogo com as novas gerações, de aprender com elas também. No futuro, eu gostaria de estreitar esses diálogos intergeracionais.

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É POSSÍVEL FALAR DA DESIGUALDADE SOCIAL, DAS INJUSTIÇAS, FOTOGRAFANDO A ARQUITETURA DA CIDADE

inéditos

AS BUGANVÍLIAS ESTÃO BONITAS

— Olha essas buganvílias! Estão muito bonitas nessa luz da manhã.

— Verdade – Magali fez uma careta. – E nem é primavera ainda. Se adiantaram – suspirou.

— Que animação é essa?

— Ah, não sei, acordei com uma sensação estranha.

– olhou para a Diana e sorriu – mas já vai passar.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Naquela manhã, Diana e Magali saíram para trabalhar, como faziam todas as manhãs. Sempre se encontravam na parada de ônibus em frente à praça, de onde podiam ver, caindo pelo muro da igreja matriz, as flores cor de rosa. O nariz de Diana doía quando o ar gelado entrava. Usava as mãos, devidamente enluvadas, para cobrir as orelhas. Tinha os ouvidos sensíveis. Magali gostava dela e todos os dias, quando a via na parada de ônibus, planejava lhe dizer isso, mas nunca conseguia. Diana também gostava de Magali, mas era tímida demais para dizer qualquer coisa. Conversavam sobre trivialidades todas as manhãs e trocavam alguns sorrisos encorajadores.

— Fim de agosto.

— Ainda bem! Logo vai esquentar.

— Mas sempre demora mais do que a gente imagina.

— Verdade.

Riram

O ônibus chegou e acabaram por se separar. Diana se sentou num lugar vago, na janela. Magali ficou em pé, mas atrás. O dia passou lento e estranho. Trabalhavam numa fábrica de fusíveis e termostatos, trabalho minucioso, que exigia muita paciência, delicadeza e exatidão. O

trabalho enfadonho, a vida monótona dava a elas a impressão de que sempre viviam o mesmo enorme dia.

— Olha essas buganvílias! Estão mais bonitas ainda nessa luz da manhã.

— Estão mesmo! E nem é primavera ainda.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Naquela manhã saíram para trabalhar, como em todas as manhãs faziam, e se encontraram na parada de ônibus em frente à praça. O nariz dela doía quando o ar gelado saía. O ônibus estava demorando demais e o frio fazia com que Diana desse pulinhos sobre a pedra fria da calçada.

— E se formos a pé? Caminhamos um pouco e, ao menos, nos esquentamos – Magali sugeriu.

— A pé? Será? – olhou o relógio e estranhou que fosse tão cedo ainda – Pode ser, eu acho, fazer algo diferente.

O vento castigava. Os dedos de Magali estavam rachados nas juntas e a lã grossa das luvas grudava um pouco nas feridinhas, provocando mais dor. Dentro das botinhas de couro, os pés dela estavam brancos, gélidos. Pensou que um escalda pés seria a glória. Faria um à noite, quando chegasse em casa, e prometeu a si mesma que na manhã seguinte colocaria meias mais grossas. E depois pensou que se fizesse aquilo, teria que comprar sapatos maiores.

— Ideia ruim essa de ir a pé.

— Ao menos é a rua do ônibus, quando ele passar, a gente ataca – Magali ficou um pouco frustrada, queria muito tentar algo diferente, tentar dizer algo.

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POR NATALIA BORGES POLESSO ILUSTRAÇÕES PRI WI
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inéditos

Um minuto depois, o ônibus passou. Entraram e conseguiram se sentar juntas. Magali tirou as luvas e Diana viu suas mãos lanhadas.

— Meu deus, o que aconteceu.

— É do frio, eu sempre tenho isso.

— Eu tenho uma pomada aqui, pra assadura mesmo –abriu a bolsa, e antes que Magali pudesse dizer algo, já tinha pegado sua mão com delicadeza e espalhado uma generosa quantidade de pomada na pele.

— Por que tu tem isso na bolsa?

— Eu passo na boca, meus lábios são sensíveis.

— Tá bom assim, obrigada – Magali ficou olhando os lábios de Diana e um calor bom invadiu seu corpo, sentiu seu coração se aquecer junto com os pés e todo seu corpo luziu. Se despediram ao chegar no portão da fábrica e cada uma foi para o seu setor.

— Olha essas buganvílias! – Diana hesitou com algum estranhamento, mas depois continuou – não cansam de ser bonitas.

— É, não cansam – Magali fez uma careta, como se tivesse sonhado com aquilo, mas não disse nada.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Começavam a ter uma sensação esquisita, como se há muito fizessem aquele mesmo ritual de observar as flores cuja cor imitava seus lábios.

— Fim de agosto. Estou velha.

— Já vai esquentar, e tu não está velha.

— Estou sim, olha as minhas mãos.

Mostrou-as.

— Esse horário nunca tem ninguém na cidade.

— É cedo demais.

— Que horas são?

— Não tenho relógio, mas deve ser seis e pouquinho, eu saí de casa umas quinze pras seis, e leva uns 15, 20 minutos pra chegar.

— Tu vem a pé?

— Aham, só quando tá chovendo demais, que daí eu pego a lotação até ali na esquina.

— Entendi. Tu mora ali pra baixo do parque, então.

— Mais ou menos, é mais pra dentro do bairro, na parte mais pra baixo.

— Nossa, é um morrão.

O ônibus demorava a passar.

— E se formos a pé? Caminhamos um pouco e, ao menos, nos esquentamos.

— Pode ser, fazemos algo diferente. Dizem que fazer algo diferente é bom, porque ajuda a cabeça a ficar jovem.

Na metade da primeira quadra ela reclamou que estava velha demais e que os pés doíam.

— Tem uma padaria logo em frente, podemos entrar e tomar um café.

— Que horas são?

— Não sei. É quase primavera.

— Isso sim é bom.

— Às vezes eu tenho a impressão de que a primavera nunca vai chegar – ficou de repente soturna. – Que horas tu saiu de casa?

— Não lembro. Estava bem frio. Mas sempre que a gente se encontra aqui, parece que fica menos ruim viver – tentou animar a outra.

Se olharam e sorriram sem graça, depois continuaram andando até a padaria. Magali tirou a luva para verificar as frieiras. Colocou a luva de volta rapidamente. Um de seus dedos tinha se desprendido da mão. Ela quis pedir ajuda, mas era tímida demais para dizer qualquer coisa. Pediram dois cafés com leite e dividiram um pão na chapa. Mais quentes, seguiram de volta para o ponto de ônibus. A cerração começou a baixar e muito rapidamente a névoa encobriu a rua toda. Entraram no ônibus silenciosas.

— Olha essas buganvílias! Estão muito... bonitas – Diana deixou escapar.

— Bom dia – Magali se assustou um pouco, depois disse – é verdade! E nem – parou de falar.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Começavam a ter uma sensação esquisita, como se se conhecessem há muito tempo. Não eram mais jovens mesmo. Estavam muito cansadas. Ficaram em silêncio. O ônibus demorava a passar. Estavam quietas, até que uma disse:

— Parece que a gente já... nada.

— Fala.

— Prefiro esperar o ônibus. Tenho a sensação de que não vai demorar hoje.

— Está bem. Mas por que diz isso?

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Ficou um tempo calada.

— Tem uma padaria logo em frente, podemos entrar e tomar um café.

— Eu sabia que tu ia dizer isso.

— Como sabia? Nem eu sabia.

— Eu sabia. Porque tenho a sensação de que estamos nos repetindo. De que estamos vivendo o mesmo dia, há tempos.

Ela se sentou no meio-fio e tirou uma das botinhas com muita dificuldade. Não entendeu quando viu apenas o toco de sua canela. O pé estava dentro da bota. Branquinho. Diana viu. Ela ficou sentada um tempo, olhando para o pé dentro da bota. Magali não sentia dor, nem vontade de chorar, nem nada. Não entendeu. Estava cansada. Olhou para Diana, que cobria as orelhas com as mãos meio retorcidas, mas devidamente enluvadas.

— É que... tu sabe o que aconteceu. A gente –

— Essas buganvílias! – Diana hesitou com algum estranhamento, mas depois continuou – estão aqui.

— Verdade. Sempre estão aqui, nunca mudam – Magali fez uma careta.

— Será que nada nunca muda? Que dia é hoje? Queria que já fosse verão. Estou mofando –mostrou um pedaço do braço mofado.

— Eu já não sei mais. Tenho a sensação de que – e se impediu de falar o que sentia – não sei.

— Não lembro também. Será que estamos mesmo?

— Não diga.

— Eu acho que sim.

— Tu lembra o que aconteceu?

— Não lembro de nada.

— E agora? Não tem uma barca que nos leve?

— Dizem que a morte é como nascer, que a gente não lembra de nada, do trauma, da dor, de nada do que aconteceu antes, que precisamos nos desprender para que tudo aconteça como tem que acontecer.

— Dizem quem?

— Como assim?

— Tu disse “dizem”... quem dizem?

— Não sei. Dizem. Eu lembro que disseram.

— Olha as buganvílias!

— Estão bonitas – parou.

— Não, olha, não estão mais ali.

— É verão?

— Não sei.

— Vamos atravessar?

Natalia Borges Polesso é escritora e autora de Amora (Não Editora, 2015), vencedor do prêmio Jabuti de 2016 na categoria Contos e Crônicas, Controle (Companhia das Letras, 2019) e A extinção das abelhas (Companhia das Letras, 2021), finalista do prêmio Jabuti de 2022 na categoria Romance Literário, entre outros livros.

Pri Wi é artista visual e, em 15 anos de ilustração, já trabalhou com várias mídias: animação, editorial, literatura e trabalhos autorais. Atualmente tem se dedicado ao lápis de cor em seus acabamentos, inclusive em histórias em quadrinhos.

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SALTO DE OURO

Medalhista olímpica e campeã mundial na ginástica artística, Rebeca Andrade fala dos desafios e motivações para superar as adversidades

Nóbrega
COB
A atleta durante apresentação nos jogos olímpicos realizados na capital do Japão, em 2021. Gaspar
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Já faz quase duas décadas que Rebeca Andrade foi incentivada por uma tia a fazer um teste num ginásio municipal de Guarulhos, na Grande São Paulo. A então menina de 4 anos, que adorava subir em árvores e dar estrelinhas na rua, foi aprovada e passou a lapidar seu talento em um projeto social, até se tornar atleta de alto rendimento da ginástica artística. Em 2021, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, Rebeca se consagrou como a primeira brasileira a conquistar uma medalha na ginástica artística. E não foi só uma, mas duas: levou ouro no salto e prata no solo, ao som do funk Baile de Favela (2016), do MC João. Ainda em 2021, no Mundial da modalidade, ocorrido no Japão, ganhou ouro no salto – conquista também inédita – e prata nas barras assimétricas. Na edição do Mundial do ano passado, na Inglaterra, Rebeca terminou com a medalha de ouro no individual geral – mais uma vez, foi a estreia de uma brasileira no lugar mais alto do pódio nesta competição.

Mas nem tudo são saltos, giros e coreografias na vida da filha de Dona Rosa, vinda de uma família de seis irmãos. Prestes a completar 24 anos, em maio, Rebeca Andrade já rompeu o mesmo ligamento do joelho por três vezes, enfrentou cirurgias e recuperações dolorosas. Neste Depoimento, ela fala sobre suas inspirações, vitórias, desafios, representatividade feminina e negra, otimismo e objetivos. “Como mulher e mulher preta, poder ser referência para meninas e meninos, adolescentes, pretos e não pretos, é algo muito grandioso”, destaca a atleta que, em janeiro, participou da abertura do Sesc Verão 2023, ação que, anualmente, incentiva a prática de esporte e atividade física.

início

Comecei por meio de um projeto social, então entendo como isso é importante. No [Ginásio] Bonifácio Cardoso [em Guarulhos], foi a minha primeira oportunidade da vida e eu soube aproveitá-la. A ginástica veio como uma surpresa. Minha tia trabalhava no ginásio, onde fariam testes. Fiz o meu primeiro teste e passei. Foi incrível: o ginásio parecia um parque de diversão. Acho que, se não tivesse sido por esse projeto, não teriam visto o meu potencial. Eu seria [apenas aquela] criança de 4 anos que fica dando estrelinha na rua, brincando, correndo. Eles [a equipe técnica] acreditaram que eu poderia ser algo além de um talento, e, lá na frente, me tornar alguém dentro do esporte. Ter tido esses profissionais que lutaram por mim, trabalharam comigo e acreditaram não só na atleta, mas na pessoa que eu sou, fez toda a diferença. Estou com o Chico [o treinador Francisco Porath] desde os meus 7, 8 anos. E foi muito importante ter tido bons profissionais que me ajudaram a conquistar tudo o que eu gostaria dentro do esporte, para me tornar uma atleta de alto rendimento.

inspiração

Eu me inspirei demais na Dai [Daiane dos Santos, ex-ginasta gaúcha, nove vezes medalha de ouro em campeonatos mundiais] para continuar na ginástica. Foi com quem me identifiquei, sendo mulher preta, explosiva, tendo aquela energia e alegria. Me sentia muito parecida com ela. É muito bom quando você tem referências. E eu, como mulher e mulher preta, poder ser referência para meninas e meninos, adolescentes, pretos e não pretos, é algo muito grandioso. Quando faço eventos e as crianças contam que começaram a fazer

ginástica depois que me viram, é muito legal. As pessoas veem aquela luz no fim do túnel. Me sinto muito lisonjeada, mas a melhor coisa que posso fazer é mostrar a minha ginástica e usar as minhas palavras. [Quero] ser esse tipo de inspiração, de uma pessoa lutadora, batalhadora, que acredita, que sabe que tem capacidade de alcançar o que quiser, independentemente do que as pessoas falem, de cor ou do que seja. Quero que eles [os mais jovens] também tenham amor pelo esporte, comprometimento, responsabilidade, e tudo que o esporte traz – como educação, trabalho em equipe e outra família. Espero que eu possa ser um exemplo por muitos anos ainda.

representatividade

A gente vai conquistando espaço aos poucos. Eu sou uma pessoa muito privilegiada. Não tive dificuldade nem por ser mulher nem por ser preta dentro do esporte, mas tive na parte financeira, quando era muito nova. A partir do momento em que entrei na seleção, tive todo o suporte, tanto do Flamengo, que é o meu clube, quanto da seleção e do comitê olímpico. Entendo como é difícil para uma pessoa preta alcançar o alto rendimento e se manter nele. Por isso, falo que sou muito privilegiada, porque as pessoas enxergaram que eu tinha algo a mais. E, com a educação que minha família me deu, fui conquistando as coisas por mérito meu. Aos poucos, fui sendo respeitada dentro do esporte. Minha mãe me fez uma mulher muito forte, então acho que, por ter sido ensinada a ser assim, talvez eu não tenha deixado muitas coisas [ruins] acontecerem. Ou talvez as pessoas simplesmente me respeitaram por eu ser quem sou.

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depoimento

oportunidades

Se não fosse pela ginástica, eu não teria nada do que tenho hoje, tanto de oportunidades quanto de conhecimento, como viagens para outros países e educação. O esporte mudou a minha vida por completo. Eu lutei bastante, passei por muitas coisas, mas sempre acreditei que daria certo. Quando comecei na ginástica, era só uma diversão. Mas a partir do momento que precisei sair de casa e abrir mão de todo o meu porto seguro para seguir o meu sonho, entendi que o buraco era mais embaixo. Porém, criei outra família, tive outras vivências e outras experiências. E tudo isso valeu a pena. Eu sempre tive uma rede de apoio muito grande, e espero que elas [as ginastas mais jovens] tenham isso também. O conselho que eu posso dar aos que estão começando é que continuem acreditando, sabendo que o esporte educa também, ensina a ter respeito, a ser uma pessoa mais responsável, mostra o mundo de uma maneira diferente. É algo muito grandioso e muito difícil.

Mas qualquer coisa que você faça na vida, se tiver vontade, se quiser alcançar algo muito grande, terá que dar tudo de si, porque eu acho que é no difícil que vale a pena.

lesões

Para uma atleta de alto rendimento, passar por lesões é muito ruim. Tive vontade de desistir nas três vezes em que rompi o ligamento cruzado anterior do joelho direito. Quis voltar para casa, largar tudo. É aquele baque de saber que estava tão bem, e aí acontece uma coisa ruim que vai te deixar um bom tempo longe. É algo muito difícil para a cabeça, mas o que me fez continuar foi a minha família, meu treinador e a minha vontade. E veio aquele pensamento: “Você ainda não alcançou tudo o que gostaria”. É algo que, de certa forma, me tornou a atleta e a pessoa que sou hoje – mais madura, mais forte, por dentro e por fora. As lesões fazem parte, tenho isso bem claro, porque a ginástica é um esporte difícil e arriscado. A gente desafia a física.

Então, vai doer, vai ser difícil, mas a força que a gente tem dentro é muito maior e nosso objetivo tem que ser o foco principal.

investimentos

A gente vê como a ginástica está crescendo no Brasil. Incentivo e investimento nunca são demais. A gente ainda precisa, sim, ter mais esportes – não só a ginástica – em lugares públicos. Eu comecei a ginástica através de um projeto social. Se eu tivesse que pagar para estar no ginásio, não teria conseguido me manter. Então, quanto mais opções públicas houver, mais possibilidades a gente vai encontrar, porque muitas vezes a gente perde talentos no Brasil porque o pai ou a mãe não tem condições de manter o filho naquele esporte por ser caro demais. E não é só pagar o lugar, mas a condução, ou não tem quem leve [e busque]. É tudo muito difícil, começa a acumular muita coisa. Então, quanto mais acessível for, mais fácil será. A gente teria muitos talentos.

O ESPORTE EDUCA TAMBÉM, ENSINA A TER

MOSTRA O MUNDO DE UMA MANEIRA DIFERENTE
RESPEITO, A SER UMA PESSOA MAIS RESPONSÁVEL,

mudanças

Acho que a ginástica mudou muito com o tempo. Hoje, a gente pode falar, pode se abrir com o treinador. Eu tenho uma troca especial demais com o Chico. A gente está junto há muito tempo e sempre se respeitou demais. Eu tenho ele quase como um pai, ele me entende e sabe quando estou com algum problema. Essa liberdade de poder falar, de poder entender e saber que você pode se posicionar era algo que não tinha antigamente. E isso já fez toda a diferença dentro do ginásio: poder se comunicar com o seu treinador e criar confiança e comprometimento. A ginástica também mudou em relação a investimento e incentivo. Depois das Olimpíadas [de Tóquio, em 2021], acho que a ginástica ficou ainda mais famosa no mundo todo,

principalmente no Brasil. Vi várias reportagens de crianças querendo se inscrever para começar a fazer ginástica e conhecer o esporte porque se apaixonaram por ele.

metas

Tenho alguns campeonatos neste ano: um Brasileiro, uma Copa do Mundo, Jogos Pan-Americanos, um Mundial [entre setembro e outubro, na Bélgica]. Minha maior meta é estar feliz, saudável e com a mente tranquila. Isso é o principal, porque assim vou conseguir fazer as minhas melhores apresentações e sair com a certeza de que não poderia ter feito nada diferente. Este é o meu maior foco: fazer a série e acertar, e se acontecer de errar, saber que eu não poderia ter feito nada diferente. Errar também faz parte do esporte. O Mundial

é bem importante e vale a vaga olímpica. Mas, antes dele, há outras competições. Então, é um passinho de cada vez. Aos poucos, vamos alcançando nossos objetivos, e eu não estou sozinha. Meu treinador e as meninas da minha equipe têm o mesmo objetivo: todo mundo quer alcançar os melhores resultados, e a gente vai trabalhando juntos. Quero muito que a gente consiga se classificar como equipe [no Mundial]. A próxima Olimpíada [em 2024, em Paris] é muito esperada. Nossa vaga por equipe é uma meta a ser alcançada.

Assista ao vídeo com trechos do Depoimento da ginasta Rebeca Andrade.

A ginasta Rebeca Andrade durante provas nas Olimpíadas de Tóquio, 2020.
77 | e depoimento
Gaspar Nóbrega / COB

ALMANAQUE

Aconchego literário

Sebos, livrarias e espaços culturais

da capital paulista criam ambientes acolhedores onde é possível ler tranquilamente, trocar ideias e saborear mais do que palavras

Aconchegar(-se) vem do latim complicare que, em sua raiz etimológica, abrange a ideia de dobrar um cobertor, enrolar ou enroscar-se em algo, ou alguém, para se sentir confortável e protegido. Na definição do dicionário, aconchego é também acolhimento, e pode ser encontrado num abraço, por exemplo. Também é possível ter essa sensação durante a fruição de expressões culturais e artísticas, como a leitura. Neste Almanaque, passeamos por cinco cantinhos aconchegantes na capital paulista onde é possível sentar-se para apreciar livros de todos os gêneros, dialogar e conviver com outros leitores. São sebos, livrarias e espaços culturais que fazem um convite ao encontro com a arte literária.

NOVIDADES VELHAS

Pequeno sebo instalado numa rua de paralelepípedos em Pinheiros, na zona oeste da capital, o Desculpe a Poeira oferece “novidades velhas”, como anunciado em seu perfil no Instagram. Em atividade desde 2014, o espaço foi fundado pelo jornalista Ricardo Lombardi, ex-editor da revista Bravo!, da Editora Abril. O acervo é composto pela biblioteca pessoal do proprietário, com mais de 4 mil volumes, e o nome do sebo surgiu do epitáfio que a escritora e poeta norte-americana Dorothy Parker (18931967) imaginou para si mesma: Excuse my dust. Além de livros, o sebo vende revistas antigas, LPs, CDs e DVDs.

DESCULPE A POEIRA

Rua Sebastião Velho, 28A, Pinheiros, São Paulo (SP). instagram.com/desculpeapoeira

Criado pelo jornalista Ricardo Lombardi, o sebo Desculpe a Poeira reúne mais de quatro mil livros, além de revistas, discos, DVDs e CDs.
e | 78
Ricardo Lombardi (Desculpe a Poeira)

SIMPLICIDADE À VISTA

Um sobrado azul na Bela Vista, região central da cidade, abriga desde 2016 a Livraria Simples, onde o público encontra livros novos e usados. Há títulos com temáticas sobre a América Latina e lutas de povos originários, além de obras infantojuvenis, de filosofia, gastronomia e literatura estrangeira. O local organiza, periodicamente, lançamentos e bate-papos com autores(as) para discutir assuntos relacionados ao acervo. Aos sábados, das 11h às 17h, também é possível participar de uma feira de troca de livros na calçada em frente à casa.

LIVRARIA SIMPLES

Rua Rocha, 259, Bela Vista, São Paulo (SP).

LEGADO MATERNO

Uma enorme biblioteca deixada como herança pela tradutora Heloisa Jahn (1947-2022) compõe o acervo do Sebinho da Helô, inaugurado em fevereiro deste ano, na zona sul da capital paulista. O espaço é comandado por Maria Guimarães e Antonio de Macedo, filhos de Heloisa – que traduziu clássicos de Charles Dickens (1812-1870), Jorge Luis Borges (1899-1986) e, postumamente, recebeu um prêmio Jabuti pela tradução da coletânea

Todos os Contos, do argentino Julio Cortázar (1914-1984). Em vida, a tradutora já queria abrir um lugar chamado “sebinho”, que é também o nome de um pássaro. O acervo tem sido ampliado e a ideia é realizar clubes de leitura, encontros e cursos. O local oferece, ainda, almoço e vende queijos da Serra da Canastra (MG), cafés, vinhos e cervejas artesanais.

SEBINHO DA HELÔ

Rua das Camélias, 571, Mirandópolis, São Paulo (SP). instagram.com/sebinhodahelo

Alexsandro
Calixto (Livraria Simples); Maria Guimarães (Sebinho da Helô)
O Sebinho da Helô é um lugar de encontros e de leitura, que preserva o legado da tradutora e editora Heloisa Jahn.
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Além do acervo com títulos raros e atuais, a Livraria Simples realiza lançamentos editoriais e bate-papos.

ALMANAQUE

UTOPIA LITERÁRIA

Instalado no Jardim Anália Franco, zona leste da cidade, o Espaço Sophia reúne livraria, cafeteria e coworking num mesmo lugar, desde setembro de 2019. Segundo a proprietária, Thais Pimentel, o local é uma “utopia literária” por concentrar um pouco de cada gênero, buscando agradar a diferentes perfis de público. “Temos em estoque mais de 7 mil títulos, que variam de livros novos a edições especiais e publicações independentes”, explica. Os visitantes também encontram por lá grupos e rodas de leitura, oficinas infantis, lançamentos, tardes de autógrafos e cafés com psicólogos, entre outras atividades culturais.

ESPAÇO

SOPHIA

Rua Padre Landell de Moura, 159, Jardim Anália Franco, São Paulo (SP). espacosophia.com.br

ESPAÇOS COMPARTILHADOS

Com um convite aberto para a descoberta de novas obras, as Bibliotecas do Sesc estão presentes em 21 unidades do estado de São Paulo. Esses espaços reúnem um vasto e diversificado acervo, com um total de 132 mil títulos, que podem ser acessados para leitura no local ou levados para casa, como empréstimo. Unidades do Sesc São Paulo como Avenida Paulista, 24 de Maio e Belenzinho dispõem de áreas integradas de leitura, para o visitante se sentar e apreciar a obra escolhida, enquanto acompanha o vai e vem de um público diverso de frequentadores.

BIBLIOTECAS DO SESC SÃO PAULO

21 unidades do Sesc em todo o estado de São Paulo. sescsp.org.br/biblioteca

Alexandre Nunis (Biblioteca Sesc 24 de Maio) e | 80
As Bibliotecas do Sesc São Paulo são ambientes que incentivam a troca de experiências literárias, culturais e educativas, com o objetivo de promover acesso ao livro, incentivar a leitura e a formação de leitores.

POESIA ACOLHEDORA

Quem procura por obras de poesia ou literatura brasileira, encontra no Sebo Pura Poesia, no Ipiranga, zona sul de São Paulo, um ambiente charmoso, com sofás, mesas, redes e espreguiçadeiras. A ideia do espaço, que tem poemas espalhados pelas paredes e funciona no atual endereço desde novembro de 2022, é que o público não apenas compre livros, mas também aproveite o lugar para ler, trocar ideias, participar de lançamentos e até de um clube de leitura. A ideia de aconchego se traduz ainda na alimentação, com opções de cafés, vinhos, drinks, sanduíches e sorvetes de uma tradicional marca do bairro. Além de obras literárias, o sebo comercializa vinis, CDs e DVDs usados.

SEBO PURA POESIA

Rua Costa Aguiar, 1.112, Ipiranga, São Paulo (SP). instagram.com/sebopurapoesia

No Sebo Pura Poesia, os versos sobem e descem pelas paredes, mas sempre encontram um tempo para um cafezinho à mesa. Quem visita o Espaço Sophia encontra, além de livros, atividades culturais como rodas de leitura e oficinas.
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Thais Guimarães Pimentel (Espaço Sophia); Alexandre De Lauri (Sebo Pura Poesia)

A música certa

Em Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista (Ubu Editora, 2023), o crítico estadunidense Jonathan Crary apresenta uma análise sobre como o “complexo internético” nos leva ao “empobrecimento e à corrosão da experiência individual e compartilhada”. Para o autor, a ubiquidade da rede desfiguraria “nossa percepção e as capacidades sensoriais necessárias para que conheçamos e nos liguemos afetivamente a outras pessoas” e atuaria diretamente na domesticação dos corpos, produzindo um achatamento das possibilidades de percepção do mundo, alterando, inclusive, o olhar que, agora, habitaria de forma permanente ambientes online.

Essa leitura ressoou em mim de forma vívida, afinal, responder como a música, e por consequência, a escuta está sendo alterada por esse “complexo internético”, vem sendo meu objeto de estudo há algum tempo. Sabemos que o streaming é hoje a principal forma de relação com a música no mundo ocidental, e pensar nesse futuro da escuta, a partir dos “avanços” científicos, como o uso indiscriminado da inteligência artificial, da internet das coisas, da computação quântica, da neurotecnologia, da biotecnologia, entre outras, nos faz imaginar um cenário pouco promissor. Sistemas de recomendação de conteúdos cada vez mais personalizados tenderiam a gerar “câmaras de eco”, por meio das quais cada ouvinte receberia sempre mais do mesmo, e o uso intensivo de inteligência artificial na produção de música representaria um duro golpe na diversidade cultural e no mercado de trabalho desse campo. Há, porém, muitas nuances a se considerar antes de uma conclusão definitiva.

Não podemos deixar de fora dessa equação o poder que a música exerce em nossa subjetividade. Um poder que cria, sustenta, transforma mundos e práticas sociais. A música “certa” em contato com o corpo é um agenciador capaz de modular humores e sentimentos. Nosso cérebro responde a ela de maneiras complexas e variadas, liberando diferentes neurotransmissores e hormônios que afetam nossas emoções de maneira profunda.

Mais interessante ainda é pensar nas infinitas possibilidades de agenciamentos entre música e memória, capazes de ativar uma lembrança aural, isto é, uma lembrança que parte da escuta e recria narrativas pessoais significantes enquanto o sujeito se desloca por diferentes contextos no cotidiano. Portanto, a música “certa” tem a capacidade de nos conduzir diretamente para um passado já vivido e re-imaginado, em que o audível se torna cor, luz, cheiro e movimento. Nesse sentido, retomando a leitura de Jonathan Crary, ainda que o capitalismo tardio se camufle na facilidade prometida pelo “complexo internético”, é possível fazer uso dessa mesma rede global para vivências relevantes.

Esse é o objetivo das ações do Sesc São Paulo no campo da música digital: atuar como um contraponto às simulações online de relações sociais monetizadas. Buscamos proporcionar a criação de experiências compartilhadas e duradouras, capazes de produzir memórias e vínculos afetivos com o mundo que nos cerca. A partir desse mesmo desejo, nasce o projeto Relicário. Ao recuperar a memória sonora da instituição, reverberamos, também, uma história audível de nossa cultura, carregada de valores, tradições e pertencimento, que permite reafirmar vínculos e produzir novas práticas coletivas. Para inaugurar o projeto, apresentamos um majestoso registro do show feito por João Gilberto há exatos 25 anos. Além da excelência da gravação, da novidade do repertório e da relevância deste artista para a cultura brasileira, esperamos que a escuta desse álbum seja também uma oportunidade para reconhecer o lastro que as músicas deixam no mundo; sentir nas batidas do samba as múltiplas identidades que o corpo carrega e, acima de tudo, apreciar o poder transformador da música em nossas vidas.

Wagner Palazzi é pai do Raul, mestre em comunicação e semiótica e gerente do Centro de Produção Audiovisual do Sesc São Paulo.
e | 82 P.S.

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ABRIL 2023

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Nelson Kon (foto); Nortearia (colagem)
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