Stanford Social Innovation Review Brasil #3

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MUDANDO SISTEMAS?

ENTÃO DESACELERE...

Por Christian Seelos

O DIREITO À DESCONEXÃO

Por Rede Internacional de Tecnologia, Trabalho e Família (INTWAF)

QUALIDADE DE RELATÓRIOS

E GREENWASHING

Por Donna Carmichael, Kazbi Soonawalla e Judith C. Stroehle

Pequenas Fundações Podem Ter Grande Impacto

Não são só aportes milionários que fazem a diferença. Conheça 7 maneiras para conseguir mais de suas doações filantrópicas.

POR LOUIS C. BOORSTIN

VOLUME 1 l NÚMERO 3 EDIÇÃO TRIMESTRAL MARÇO 2023

O Instituto Humanitas360 trabalha para construir sociedades mais justas e igualitárias em diversos países da América Latina, graças às nossas equipes no Brasil, EUA e com apoio de conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México, Argentina, Bolívia e Guatemala.

Conheça alguns de nossos projetos:

Cooperativas Sociais - Capacitação profissional e geração de renda para pessoas privadas de liberdade, egressas do sistema prisional e vítimas de violência doméstica, através de cooperativas sociais formadas dentro e fora de penitenciárias.

LAB360 - Cessão de computadores para unidades prisionais para que pessoas privadas de liberdade possam receber ensino a distância, fazer videoconferências com seus familiares.

Índice de Engajamento Cidadão das

Américas - Comparativo do nível de engajamento e participação cívico-social dos habitantes de países do continente em parceria com a The Economist Intelligence Unit (EIU).

Tecendo a Liberdade - Documentário revelando as contradições do sistema de Justiça Criminal brasileiro sob a perspectiva das mulheres que trabalham nas cooperativas sociais apoiadas pelo H360.

Saiba mais sobre nosso trabalho em www.humanitas360.org @humanitas360

Nosso propósito é reduzir a violência, promover a cidadania ativa, justiça climática e transparência.

Pequenas Fundações Podem Ter Grande Impacto

POR LOUIS C. BOORSTIN

Em uma era de doações milionárias, uma pequena fundação ainda pode provocar impactos consideráveis. Conheça sete técnicas para obter mais de seu investimento filantrópico.

Do Discurso Sustentável à Prática de Greenwashing

POR DONNA CARMICHAEL, KAZBI SOONAWALLA E JUDITH C. STROEHLE

Pesquisa sobre relatórios de sustentabilidade de algumas das maiores companhias do mundo revelou informações enganosas, confusas e distorções. A gestão sênior e os métodos de auditoria e confiabilidade precisam melhorar.

O Direito à Desconexão

POR REDE INTERNACIONAL DE TECNOLOGIA, TRABALHO E FAMÍLIA (INTWAF)

A conectividade constante prejudica o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e a saúde mental dos empregados. É hora de atualizar a legislação para o trabalho remoto.

Mudando Sistemas? Então Desacelere…

POR CHRISTIAN SEELOS

Não se corrigem os problemas sociais de forma rápida e simples aplicando uma lente sistêmica. Ao contrário, ela nos força a ir com mais cautela ao revelar uma dinâmica complexa.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 1 MARÇO DE 2023 l VOLUME 1, NÚMERO 3
on
and
Publicada pelo Stanford Center
Philanthropy
Civil Society
SUMÁRIO ARTIGOS
26
36 42 48
CAPA Ilustração de Melinda Beck

O sistema de contribuição comunitária da Califórnia é profundamente antidemocrático. Como pode a contribuição comunitária ser antidemocrática?

Tudo depende da voz que é ouvida.

— QUANDO A CONTRIBUIÇÃO DA COMUNIDADE DÁ ERRADO, PÁG. 59

SEÇÕES

4 CARTA AO LEITOR

As Estratégias de Fundações Pequenas

5 EDITORIAL BRASIL

SSIR ONLINE

Nossa Vida Conectada

6 O QUE HÁ DE NOVO

Mentoria Inclusiva / Gamificando Injeções de Insulina / O Potencial Humano da África / Fungos

Subterrâneos

HISTÓRIAS DO CAMPO

11 A Realidade Virtual é Capaz de Reduzir a Criminalidade?

O MAXLab cria simulações para examinar como um crime ocorre e pensar medidas preventivas para manter as comunidades seguras.

POR JACOB KUSHNER

15 Planejamento Familiar para a África Ocidental

A Ouagadougou Partnership facilita o acesso a contraceptivos, da Mauritânia ao Benim.

POR ADRIENNE DAY

18 ESTUDO DE CASO

Parcerias para Salvar um Hotspot de Biodiversidade

Um fundo colaborativo americano tem a missão de ajudar defensores ambientais no Sudeste Asiático a proteger o rio Mekong. Será possível fazer isso e, simultaneamente, lidar com a política local?

POR KYLE COWARD

PONTO DE VISTA

57 Celebrar as Pessoas para Mudar a Cultura do Serviço Público Como premiações podem ser usadas para criar conscientização, levantar o moral, combater a corrupção e inspirar uma nova geração de funcionários públicos em nível local e global.

POR ELOY OLIVEIRA

59 Quando a Contribuição da Comunidade Dá Errado

A crise habitacional da Califórnia tem suas raízes no poder de veto de governos e comunidades locais.

POR NED RESNIKOFF E BRIAN HANLON

61 Crescimento Inclusivo

Tulsa está pilotando um novo modelo para mensurar seu crescimento, esperando ser seguida por outras cidades.

POR NICHOLAS LALLA

64 PESQUISA

O Custo de Dizer Pouco / Como a Crise dos Refugiados se Torna Permanente / Os Desagrados da Mão Amiga LIVROS

67 A Naturalização da Desigualdade

A Sociedade Desigual, de Mario Theodoro.

POR PAULO CÉSAR RAMOS

69 Grande Mudança Estrutural

Reinventando o Capitalismo num Mundo em Chamas, de Rebecca Henderson.

POR MARK R. KRAMER

72 ÚLTIMO OLHAR

Uma Travessia Perigosa

2 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 SUMÁRIO
,
7 11 60 64

As Estratégias de Fundações Pequenas

Na filantropia, é comum pressupor que quanto mais dinheiro se gasta, maior o impacto provocado. Esta é uma das razões pelas quais se presta tanta atenção a fundações que realizam grandes doações – Azim Premji e Gates, por exemplo –, a rankings anuais dos maiores doadores em publicações como a Forbes e a organizações que fazem doações vultosas, tais como as fundações MacArthur e Blue Meridian

Embora grandes somas monetárias possam fazer a diferença, essa não é a única forma da qual filantropos podem se valer para causar impacto. Na verdade, mesmo financiadores pequenos podem provocar grande impacto agindo estrategicamente e promovendo financiamento de formas alternativas que não seriam levadas em conta em outra situação – formas que alavanquem o dinheiro doado de modo a provocar impacto em toda a área problemática.

A maior parte dos pequenos financiadores concentra-se em fazer doações para organizações que estão realizando um bom trabalho. Financiadores mais experientes podem até fazer isso através de recursos irrestritos, para que as organizações que financiam possam gastar o dinheiro da maneira que acharem melhor.

Esses tipos de doação são importantes, mas há outras formas – algumas pouco ortodoxas – de financiadores pequenos (bem como médios e grandes) usarem seu dinheiro de modo a causar um impacto gigantesco na área em que atuam.

Peguemos, por exemplo, pequenos financiadores que acreditam que moradias assistidas desempenham um papel importante no auxílio a indivíduos e famílias durante momentos críticos. Em vez de usar seus recursos para financiar mais

um ou dois projetos como esse, podem optar por outras formas de investimento que produzam impacto em toda a área afetada.

Eles poderiam financiar um estudo detalhado que procure respostas para perguntas importantes, tais como: quais tipos de moradias assistidas funcionam melhor para diferentes grupos de pessoas?; quanto tempo as pessoas devem permanecer nesses locais?; quais as formas mais eficientes para que governos e organizações sem fins lucrativos colaborem para sustentar moradias assistidas?.

Para garantir que os resultados do estudo sejam usados de maneira efetiva, o financiador também pode promover uma reunião de organizações que sustentam lugares de acolhimento para discutir o estudo e suas consequências para seu trabalho, ou financiar a criação de uma organização que seja um centro de informações sobre o assunto, ou ajudar a criar uma rede de contatos de financiadores para que possam coordenar seus esforços e arrecadar mais dinheiro para essa área. Estas e outras ideias são discutidas na matéria de capa “Pequenas Fundações Podem Ter Grande Impacto”. O autor do artigo é Louis Boorstin, que trabalhou por oito anos em uma das maiores organizações de financiamento do mundo, a Bill & Melinda Gates Foundation. Ao longo dos últimos sete anos, ele atua como diretor-executivo de uma instituição menor, a Osprey Foundation.

A primeira colaboração de Boorstin para a SSIR foi “A busca por Ampliação”, na edição de outono de 2013. O artigo gerou uma discussão acalorada entre organizações sem fins lucrativos e financiadores, e tenho certeza de que este novo texto surtirá o mesmo efeito.

Diretora-geral Carolina Martinez carolina@ssir.com.br

Editora-chefe Ana Claudia Ferrari ana.ferrari@ssir.com.br

Editor-assistente Bruno Ascenso

Assistente Raquel Hirose de marketing

Programador Web Daniel Miranda

Colaboraram nessa edição:

Arte Estúdio Monearte

Tradução Ana Luiza Fleck Saibro, Aracy Mendes da Costa, Camilo Adorno, Cláudia Izumi, Frank de Oliveira, Saulo Krieger

Revisão Mauro de Barros, Paulo Felipe Mendrone

Conselho Editorial

Daniela Pinheiro

Eliane Trindade

Graciela Selaimen

Guilherme Coelho

Letícia Vidica

Marcos Paulo Lucca Silveira

Mantenedores Institucionais

Fundação José Luiz Egydio Setúbal

Humanitas360

Movimento Bem Maior

Samambaia Filantropias

CIVI-CO | Negócios de Impacto Social

R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 - Pinheiros, São Paulo - SP, 05415-030

Quer falar com a SSIR Brasil?

Redação: contato@ssir.com.br

Projetos especiais, publicidade, eventos: marketing@ssir.com.br

Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review

Publisher Michael Voss

Editor-Chefe Eric Nee

Editora acadêmica Johanna Mair

Editores David V. Johnson, Bryan Maygers, Marcie Bianco, Aaron Bady, Barbara Wheeler-Bride

Editora edições Jenifer Morgan globais

Conselho Consultivo Acadêmico

Paola Perez-Aleman, McGill University

Josh Cohen, Stanford University

Alnoor Ebrahim, Harvard University

Marshall Ganz, Harvard University

Chip Heath, Stanford University

Andrew Hoffman, University of Michigan

Dean Karlan, Yale University

Anita McGahan, University of Toronto

Lynn Meskell, Stanford University

Len Ortolano, Stanford University

Francie Ostrower, University of Texas

Anne Claire Pache, ESSEC Business School

Woody Powell, Stanford University

Rob Reich, Stanford University

A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Stanford University.

Todos os direitos reservados.

4 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 CARTA AO LEITOR
ssir.com.br Publicação trimestral Volume 1 I número 3 I Março 2023

Nossa Vida Conectada

Todos os problemas sociais estão sempre situados em sistemas. Vivemos em família, em comunidades, em organizações, em sistemas de transporte, educacionais, políticos e de saúde, diz Christian Seelos. E, embora pareça óbvio, só recentemente as organizações filantrópicas começaram a adotar de forma explícita abordagens sistêmicas em seu trabalho.

No artigo “Mudando Sistemas? Então Desacelere…”, Seelos discute o que de fato significa embarcar nesse movimento e esboça caminhos práticos para a adoção de perspectivas de sistemas em organizações que desejam tornar seu trabalho filantrópico mais assertivo.

Depois de mais de uma década de pesquisa de campo com empreendimentos sociais em países em desenvolvimento, o codiretor do Laboratório de Inovação Global de Impacto do Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Stanford University (Stanford PACS) lembra que a adoção de uma abordagem sistêmica requer reflexão profunda sobre aspectos importantes de organizações. Afinal, “para reformar um sistema é preciso antes entender os processos causais que o constituem e, então, transformá-los”.

Entre os benefícios mais importantes observados pelo pesquisador com a adoção da abordagem está o fato de que ela reduz ou elimina algumas patologias do setor da filantropia, como a obsessão por soluções técnicas e a urgência para demonstrar impacto em larga escala. Além disso, diminui o que Seelos e Johanna Mair chamam de ilusão da compreensão (quando problemas e situações não são plenamente especificados) e ilusão da competência (quando a capacidade de intervir e mudar situações para melhor é superestimada).

Segundo Seelos, ao exigir um envolvimento mais profundo e prolongado para entender as complexidades do sistema em questão, a perspectiva sistêmica implica uma desaceleração. “Tornamo-nos mais realistas a respeito do tempo necessário para abordar os problemas e mais humildes e dispostos para explorar e aprender, em vez de basear as decisões na pressuposta superioridade do nosso conhecimento, tecnologias e estratégias.”

Para além de sistemas que de certa forma tudo conectam, outras discussões igualmente fascinantes estão nesta edição. Do direito à desconexão – e legislações que deem conta das implicações da conectividade constante para empregados – à necessidade de relatórios mais confiáveis de sustentabilidade e ao impacto das pequenas fundações no setor filantrópico, não faltará leitura para informar e inspirar àqueles que buscam realizar (ou ver realizadas) mudanças duradoras e significativas na sociedade.

Vizinhanças Digitais

ARTIGO | Resolver o “Paradoxo Regional” das Redes Sociais

Os problemas das redes sociais são frequentemente atribuídos ao anonimato e à alienação. Infelizmente, redes sociais regionais – como grupos no Facebook – encontram-se, muitas vezes, tão repletas de desinformação, racismo e toxicidade quanto plataformas globais, e as consequências disso podem ser ainda mais graves devido a sua relação direta com o mundo real. O que pode ser feito? Chand Rajendra-Nicolucci e Ethan Zuckerman, da Initiative for Digital Public Infrastructure, sugerem a criação de novas redes baseadas em princípios, moderadas de perto, confiáveis e regionais. Essa abordagem contrasta com aquela adotada por plataformas administradas por corporações internacionais que buscam maximizar a lucratividade. Porém, escrevem, “para seguir colocando esse modelo em prática e disseminá-lo, é necessário um investimento significativo de líderes governamentais, de organizações sem fins lucrativos e da imprensa”.

Perguntas Difíceis

ARTIGO | O Lado Positivo do Burnout nas Organizações Sem Fins Lucrativos

“Será que nós do Terceiro Setor estamos usando nossas capacidades e sabedorias de maneira inteligente ou estamos absortos em um complexo industrial ineficaz de organizações sem fins lucrativos que parecem mais interessadas em manter doadores felizes do que em resolver problemas?” Esta é uma das perguntas feitas por John Hagan neste artigo em que relata as experiências que o levaram a deixar seu cargo de CEO de uma organização sem fins lucrativos. No entanto, o burnout generalizado não é culpa dos empregados dessas instituições. “Este artigo é dirigido a financiadores, conselhos e outros CEOs”, explica. “É sua responsabilidade redirecionar o que está sendo pedido de sua equipe. Cabe a você criar um ambiente de trabalho no qual os funcionários tenham tempo para pensar nos problemas que

estão tentando solucionar com tanto afinco.”

Como Medir o Medo?

ARTIGO | Planejar o Impacto Para Além de Métricas Simples

A melhor maneira de medir impacto segue sendo uma das discussões mais acaloradas e difíceis na área da filantropia. Natasha Joshi, da Rohini Nilekani Philanthropies, afirma que uma recente conversa com um beneficiário fez com que sua organização repensasse algumas de suas pressuposições e realizasse uma pesquisa para entender como seus parceiros viam o impacto de seu trabalho. O feedback levou a uma nova estrutura para a compreensão dos resultados baseada em dois eixos distintos: de tangível a intangível e de rápido a lento surgimento. “O que ficou claro na inspeção dos dados foi que a maior parte das organizações (se não todas) atua nos quatro quadrantes de uma vez, e não há um ranking de ações ou resultados.”

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 5
SELEÇÃO DE CONTEÚDOS DA SSIR.COM.BR
EDITORIAL BRASIL
@ssir - br — Ana Claudia Ferrari, Editora-chefe Stanford Social Innovation Review Brasil /ssirbrasil

ABORDAGENS RECENTES PARA TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS O QUE HÁ DE NOVO

Mentoria Inclusiva

ma em cada quatro mulheres nos Estados Unidos tem alguma deficiência. No entanto, essas 41 milhões de americanas raramente aparecem na mídia, no entretenimento e nos currículos escolares. Por causa dessa falta de visibilidade e representatividade, as meninas com deficiência crescem sem observar referências que se pareçam com elas ou que entendam suas experiências.

“Se você conversar com mulheres com deficiência da minha idade, todas dirão a mesma coisa – elas gostariam de ter como exemplo mulheres como elas, [mas] não tiveram”, diz Stephanie Woodward, uma advogada e ativista de 34 anos.

Woodward fundou a Disability EmpowHer Network (Rede EmpowHer para Pessoas com Deficiência) em novembro de 2020 para oferecer às gerações mais novas os modelos e as oportunidades de mentoria que ela gostaria de ter tido quando criança. Em seu primeiro ano, a organização criou três programas para colocar jovens mulheres com deficiência no caminho do sucesso profissional e da realização pessoal: o EmpowHer Camp (Acampamento EmpowHer), a Letter from a Role Model (Carta de uma Referência) e os programas de oratória e de treinamento de carreira.

As atividades da organização se baseiam em pesquisas que

mostram a autoestima mais baixa dessas mulheres e maior isolamento social. Além disso, a taxa de desemprego entre elas é mais que o dobro daquela entre as mulheres sem deficiência, que recebem mais educação.

Principal programa da organização, o EmpowHer Camp é um plano de mentoria de um ano, que começa com um acampamento em Adirondacks, no norte do estado de Nova York. Durante uma semana, conselheiros com deficiência ajudam as participantes a desenvolver práticas de prevenção contra desastres, independência e habilidades de liderança. O primeiro grupo, com nove jovens de 13 a 17 anos de todo o país e vários conselheiros de lugares tão distantes quanto Londres, reuniu-se em agosto de 2021.

O acampamento anual acontece em uma área acessível, com lenha gratuita e uso de estruturas de apoio sem custo. A Kelly’s Kitchen, uma organização sem fins lucrativos dedicada à alimentação saudável e à justiça social com sede em Charleston, na Carolina do Sul, oferece refeições durante o acampamento e ensina habilidades culinárias.

A Disability EmpowHer Network também recebe apoio financeiro de doadores individuais, parceiros corporativos e financiadores –incluindo a Ford Foundation

e a Mitsubishi Electric America Foundation (MEAF) – que, juntas, apoiaram a organização com mais de US$ 250 mil. Antes de atrair fundos de doação significativos, Woodward captou recursos por meio de uma campanha online e vendas de camisetas.

“Não sou muito de acampar”, admite Anja Herrman, uma jovem de 16 anos de Chicago que participou do EmpowHer Camp no primeiro ano. “Mas passar tempo com outras mulheres com deficiência, conhecer aquela comunidade de pessoas com deficiência da minha idade, que tiveram experiências de vida semelhantes, foi muito acolhedor.”

Centenas de voluntários também apoiam a organização, incluindo mentores como Jill Moore, especialista em design de playground inclusivo que reside em Minneapolis. Moore começou como amiga por correspondência no programa Letter to a Role Model antes de decidir servir por um ano como conselheira e mentora de acampamento.

Como Woodward, Moore gostaria de ter visto mais exemplos de mulheres deficientes quando era mais jovem. “Teria sido muito bom ver artistas, atores mirins, pessoas com deficiência fazendo coisas diferentes”, diz ela.

Depois do acampamento, os participantes desenvolvem um projeto de um ano sobre preparação inclusiva para desastres com o apoio de um mentor. Segund Woodward, esses projetos ajudam a fortalecer a comunidade. Há também uma necessidade real desse trabalho, pois as pessoas com deficiência têm duas a quatro vezes mais chances de morrer ou sofrer lesões graves durante um desastre do que as pessoas sem deficiência.

Os participantes escolhem seus próprios projetos.

Riley Hurt, de 17 anos e moradora do Oregon, é uma das mentoradas de Moore e fundou um grupo consultivo para conectar profissionais de gestão de emergências com a comunidade de deficientes na sua cidade natal.

6 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023
FOTO: CORTESIA DE THE DISABILITY EMPOWHER NETWORK ADVOCACY
POR MARIANNE DHENIN ! Grupo do Disability EmpowHer Camp 2023 prepara hambúrgueres em volta de uma fogueira.

Herrman pesquisou planos de ação contra atiradores em escolas nos Estados Unidos e publicou um artigo em agosto de 2022 com recomendações ao Congresso dos EUA sobre como dar apoio às escolas para melhor atender e proteger os alunos com deficiência, incluindo exigir planos educacionais individualizados para alunos com deficiência e financiamento de mais pesquisas.

O grupo concluiu o programa com uma reunião e uma comemoração da formatura em Washington, D.C., em junho de 2022. Eles também apresentaram os projetos aos senadores que representam seus estados. A Disability EmpowHer Network financiou parte dos custos de viagem dos participantes para Adirondacks e para a capital do país.

Com o acampamento entrando no segundo ano, os organizadores estão fazendo algumas melhorias, como ampliar a programação virtual. À medida que a rede Disability EmpowHer cresce, Woodward também deseja expandir as colaborações com outras organizações. Por meio de uma nova parceria com a Christopher & Dana Reeve Foundation, jovens com diferentes formas de paralisia serão pagas para escrever artigos para o blog da fundação.

Woodward antecipa um futuro brilhante e agitado: “É realmente fácil mostrar por que [o projeto] é necessário... e como isso se conecta ao sucesso no futuro”. n

Gamificando Injeções de Insulina

uando o Museu de Arte da Filadélfia organizou uma competição para a criação de brinquedos infantis em 2016, Renata Souza, aluna da Parsons School of Design, aproveitou a oportunidade. Ela buscou inspiração e consultou as crianças de sua família sobre o que seria útil e divertido. Naquela época, seu sobrinho Thomas, de quase 5 anos, acabara de ser diagnosticado com diabetes tipo 1. Souza então inventou o primeiro modelo da Thumy, um kit de insulina para ajudar crianças como Thomas a se sentirem confortáveis para injetar insulina em si mesmas

Thomas está entre os cerca de 1,9 milhão de americanos com diabetes tipo 1, dos quais aproximadamente 244 mil são crianças e adolescentes. Nos Estados Unidos, as taxas de novos casos ou incidências da doença crônica aumentaram quase 2% ao ano – e para o tipo 2, cerca de 5% ao ano – entre 2002 e 2015 em crianças e jovens com menos de 20 anos, segundo relatório de 2020 produzido pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA.

Para as crianças, tomar injeções diárias pode ser chato e cansativo. Para os adolescentes, as injeções podem causar frustração pela dependência dos adultos. Jordan Spillane, agora com 22 anos, foi diagnosticada com diabetes

tipo 1 aos 11. Ela começou a usar canetas e agulhas para injetar insulina antes de fazer a transição para uma bomba de insulina na adolescência. Quando era criança, a mãe e a irmã a ajudavam com a injeção. “Gostaria que fosse mais fácil me injetar porque, como a maioria das crianças, a ideia de ser espetada por uma agulha não é muito atraente”, diz ela.

Para solucionar esse problema, Souza gamificou as injeções de insulina, de modo que as crianças pudessem tomá-las de forma independente. E assim criou a Thumy. A maioria das injeções é projetada para adultos e sua aplicação é difícil para as crianças. Algumas seringas são apenas uma versão para mãos menores, e desconsideram fatores como a capacidade de uma criança de segurar e inserir a agulha. O kit de insulina da Thumy tem dois componentes para enfrentar os desafios físicos e as frustrações

emocionais das injeções: uma caneta de insulina projetada ergonomicamente para as mãos das crianças e tatuagens temporárias que indicam onde injetar a insulina.

“Para proporcionar a melhor absorção da insulina, é crucial alternar os locais de injeção entre braço, barriga, perna, etc., e também não injetar no mesmo lugar”, explica Souza. “As tatuagens buscam solucionar esse problema específico, e o fazem de maneira visualmente atraente.”

A caneta de insulina também conta com um plástico cromático térmico que cobre o botão de liberação. Se a insulina não estiver armazenada corretamente e ficar muito quente, a cor da cobertura mudará de azul para verde para indicar que não pode mais ser usada. E, quando o medicamento é aplicado, a cor começa a mudar de azul para verde, servindo de distração para a criança.

“É algo divertido”, diz Souza. “Se você tem uma escova de dentes superdivertida, vai querer escovar os dentes. [A lógica] é a mesma aqui.”

As tatuagens temporárias são simples, mas inovadoras. Souza projetou um sistema com base em tinta preta e pontos coloridos para que a criança saiba que não deve injetar duas vezes no mesmo local. Após aplicar a tatuagem em uma parte específica do corpo, a criança pressiona um dos pontos coloridos para injetar a insulina nesse local.

Depois, usando um cotonete com álcool para limpar o local, a tinta colorida sai

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 7 FOTO: CORTESIA DE THUMY
NAYANIKA GUHA (@nayanikawrites) é uma escritora freelancer com foco em justiça social, parentalidade, identidade e comunidade. Seus textos foram publicados pelo The Guardian, The Lily e Refinery29, entre outros.
SAÚDE
MARIANNE DHENIN (@mariannedhe) cobre e escreve sobre assuntos relacionados a justiça social e ambiental, política e Oriente Médio ! Tatuagens temporárias estilosas indicam às crianças o local apropriado para a injeção de insulina.

também, de modo que, eventualmente, todos os pontos coloridos são apagados, indicando a necessidade de uma nova área no corpo para injetar a insulina.

Catherine Thompson é mãe de Chloe, que tem 9 anos e foi diagnosticada com diabetes tipo 1 há um ano. Ela observa que um produto como a Thumy é um salva-vidas. “A longo prazo, ajudaria muito a não usar a mesma área, o que evita problemas futuros na área da injeção”, afirma.

Apesar do amplo interesse dos pais e das famílias de crianças com diabetes tipo 1, Souza enfrenta desafios para lançar o produto. Embora esteja aguardando autorização para vender os kits nos Estados Unidos, ela tem distribuidores voltados para o mercado mexicano e espera expandir para mais países da América Latina e da Europa no futuro. Atualmente, apenas os adesivos Thumy estão disponíveis para compra no país. n

O Potencial Humano da África

ara as empresas africanas que procuram expandir, a falta de competências em recursos humanos pode ser um desafio. Para lidar com esse obstáculo ao crescimento, um programa feito sob medida para profissionais africanos em meio de carreira foi lançado online em fevereiro de 2022. O RIKA HR Leadership Programme ajuda os participantes a irem além da liderança funcional – supervisionando o recrutamento ou a administração da folha de pagamento – para se tornarem líderes estratégicos capazes de promover talentos e desenvolver culturas organizacionais produtivas nos negócios.

“O trabalho mudou”, diz Susan Githuku, especialista queniana em recursos humanos. “Quando isso acontece, você precisa de novas habilidades. E quem é o responsável por se antecipar a tudo isso? São os líderes de gestão de capital humano.” Sua empresa, a

Human Performance Dynamics

Africa (HPD Africa), é uma das desenvolvedoras do programa.

O curso, cujo grupo inicial contou com 23 participantes do Quênia, Nigéria, Ruanda, África do Sul e Uganda, tem cinco módulos – técnico, negócios, digital, liderança e mudança – para treinar os participantes em como analisar as tendências do local de trabalho, implementar programas de gerenciamento de transições e criar estratégias para formar futuros líderes. O programa foi desenvolvido para fornecer habilidades essenciais para o crescimento profissional, diz Githuku, de forma que os diretores de recursos humanos e aqueles em cargos semelhantes possam fazer parte das equipes sêniores de liderança das empresas, junto ao CEO e CFO.

O formato do programa atraiu Diana Gombe. Como chefe de pessoas e cultura na World Wildlife Fund Africa, organização internacional sem

fins lucrativos de conservação da biodiversidade, ela estava procurando ser mais estratégica em sua abordagem da gestão de recursos humanos.

Alex Obuhatsa, chefe de desenvolvimento de talentos e organizações do SBM Bank Kenya, também ficou entusiasmado para se inscrever. “Havia uma enorme agenda de transformação”, diz ele. “Eu imediatamente soube que queria fazer parte disso.”

Tal entusiasmo não surpreendeu Liesel Pritzker Simmons, cofundadora da Blue Haven Initiative, que trabalhou com a HPD Africa no desenvolvimento do programa. Escritório familiar focado em investimentos de impacto, a Blue Haven investe em empresas em toda a África Subsaariana.

“Muitas das empresas de nosso portfólio estavam enfrentando dificuldades para encontrar bons treinamentos em gestão de pessoas e desenvolvimento de capital humano”, diz Pritzker Simmons. “Temos visto repetidamente como é grande a quantidade de talentos na África, mas muitas pessoas estão sendo treinadas no ambiente de trabalho.”

Pritzker Simmons e Githuku esperam que a RIKA possa preencher essa lacuna. A Blue Haven financiou o desenho da grade curricular, o recrutamento (postagens nas redes sociais, headhunting e apresentações a empresas e a associações de RH), execução do programa e algumas bolsas de estudo para o primeiro grupo de alunos.

Uma taxa de US$ 6.500 cobre quatro meses de treinamento, kits de ferramentas, estudos de caso, mentoria e avaliações 360 graus – tudo disponível online por meio de um sistema de gerenciamento de aprendizado. Também está incluído o acesso aos cursos online da Josh Bersin Academy, uma academia global de desenvolvimento profissional para profissionais de recursos humanos.

O formato virtual permite que a RIKA traga professores e líderes do mundo todo para conduzir os encontros, como a CEO da Exell Intelligence do Reino Unido, Deborah Exell, o chefe do grupo de talentos e aprendizagem da Heineken, Arnold Dhanesar, e o professor de administração de empresas da Universidade de Michigan, Dave Ulrich.

Para Gombe e Obuhatsa, o programa os levou a encarar suas funções de uma nova maneira. “Uma transformação aconteceu no primeiro dia”, diz Obuhatsa. “Foi uma mudança de mentalidade para toda a classe, que passou a se ver como líderes de negócios e não como líderes funcionais.”

Gombe diz que o curso a ajudou a ir além dos aspectos técnicos de RH: “Trata-se de garantir que temos as pessoas certas no lugar certo e desenvolvendo uma cultura que possibilita o crescimento”.

Um desafio para o programa é seu custo alto. Enquanto algumas pessoas podem assegurar financiamento para seus colaboradores, explica Githuku, outras querem se patrocinar para

8 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 O QUE HÁ DE NOVO
EDUCAÇÃO
SARAH MURRAY é jornalista, autora e palestrante especializada em negócios, sociedade e ambiente. Escreve para o Financial Times e outras publicações.

evitar serem vinculadas a uma organização.

A filantropia poderia oferecer uma solução, e a Blue Haven sugere que pode continuar a financiar duas ou três bolsas de estudos anualmente. Nos próximos anos, será importante para a RIKA encontrar maneiras de expandir o acesso ao programa, se o objetivo é ajudar os países da África a gerar empresas de rápido crescimento e atrair o financiamento necessário para atingir as metas de desenvolvimento sustentável.

“No momento, investir em mercados emergentes é visto como algo arriscado porque as pessoas não acham que haja um número relevante de talentos”, diz Pritzker Simmons. “Acreditamos firmemente que este não é o caso.”

O talento e o capital humano são fundamentais para o desenvolvimento. “A capacidade humana – talento, organização, liderança e RH – costuma ser a chave para o sucesso”, observa Ulrich. “Em mercados emergentes e economias em crescimento, as organizações que investem na capacidade humana serão mais bem-sucedidas.”

A RIKA pode ajudar a liberar o vasto potencial inexplorado da África. “Falamos sobre tecnologias digitais, infraestrutura e energia”, diz Githuku. “Mas raramente falamos sobre o capital humano necessário para transformar todos esses investimentos. Se vamos fazer a diferença no desenvolvimento do continente, precisamos desenvolver ativos de capital humano.” n

Fungos Subterrâneos

POR KYLE COWARD

s fungos são um dos organismos mais vitais da Terra há mais de 1 bilhão de anos. Estima-se que existam entre 2 milhões e 4 milhões de espécies, sendo os cogumelos e mofo os mais conhecidos.

Fungos, especificamente um tipo subterrâneo conhecido como fungo micorrízico, são fundamentais na decomposição de matéria orgânica, que supre as raízes das plantas com nutrientes como fósforo e nitrogênio. Os fungos também fornecem água às raízes e, em troca, recebem carbono para crescer e expandir suas redes. Esse processo evita que o excesso de carbono se acumule na atmosfera – um mecanismo útil contra as mudanças climáticas.

“Essas são rodovias vivas de nutrientes que correm sob nossos pés”, diz Toby Kiers, diretor-executivo da Society for the Protection of Underground Networks (SPUN). Fundada em 2021, a organização sem fins lucrativos com sede em Amsterdã, Holanda, promove a conservação de fungos micorrízicos por meio de análise de solo e mapeamento digital. Esses fungos estão conectados a 90% das plantas do mundo, observa Kiers. Estima-se que essa seja a mesma porcentagem da população de fungos do mundo ainda não

descoberta. Kiers, professor de biologia evolutiva na Vrije Universiteit Amsterdam, é um dos 14 membros da equipe principal da SPUN, formada por cientistas, especialistas e consultores. O grupo é auxiliado por 20 membros de um conselho, que inclui a famosa etóloga Jane Goodall e o investidor bilionário britânico Jeremy Grantham, cuja fundação, dedicada à saúde ambiental global, contribuiu com US$ 3,5 milhões para o lançamento do SPUN.

Além da Grantham Foundation, a Schmidt Family Foundation – cofundada pelo ex-CEO do Google Eric Schmidt – é parceira fundadora. “Enfrentamos uma crise de erosão do solo no mundo todo, acelerada pelos impactos das mudanças climáticas”, diz Wendy Schmidt, cofundadora e presidente da fundação. “Nós temos o prazer de apoiar a SPUN em seu trabalho para combinar o conhecimento científico com a sabedoria popular local para mapear, examinar e restaurar redes fúngicas.”

A SPUN se baseou em pesquisas do banco de dados com código aberto da GlobalFungi e da organização de mudança climática Crowther Lab, com sede em Zurique, Suíça, para esboçar um mapa de 18 localizações globais. Esses locais são possíveis hotspots de alta prioridade para os esforços de conservação de fungos micorrízicos.

A organização está criando algoritmos para analisar amostras de solo coletadas por seus pesquisadores em expedições a esses locais. As amostras serão testadas junto às da GlobalFungi, Crowther Lab e outros colaboradores para determinar a precisão das previsões sobre hotspots

“As tecnologias que usamos para sequenciar o DNA de organismos no solo estão ficando mais baratas e fáceis”, diz o micologista Merlin Sheldrake, membro do conselho da SPUN. “O tipo de trabalho que costumava ser muito caro, particularmente em pequena escala, agora pode ocorrer em escala global.”

O objetivo da SPUN é produzir um mapa inédito das

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 9 FOTO DE SETH CARNILL
! Integrantes da equipe SPUN coletam amostras de fungos nos Apeninos, na Itália, como parte de suas pesquisas globais.
MEIO AMBIENTE
KYLE COWARD reside em Chicago e contribui para o The Root, Chicago Tribune, JET, Reuters e The Atlantic. Ex-conselheiro de saúde comportamental e repórter da publicação comercial online Behavioral Health Business, é também redator de propostas médicas.

redes de fungos micorrízicos no mundo, o qual Kiers espera que estimule as comunidades locais e os formuladores de políticas a empreender esforços de conservação em que as ameaças ambientais são graves. “O que estamos tentando fazer é possibilitar às pessoas visualizar [os fungos] pela primeira vez e então começar a protegê-los”, diz Kiers.

Como primeiro passo, a SPUN está reunindo 10 mil amostras de fungos, em

grande parte auxiliada por suas parcerias com outras organizações de biodiversidade, bem como pelas expedições da equipe, que incluíram viagens à região da Patagônia, no Chile, e aos Apeninos, na Itália. Em 2023, a organização está planejando uma expedição ao sul do Havaí até o atol Palmyra, localizado na área central do oceano Pacífico, copatrocinada pela The Nature Conservancy.

Kiers acredita que, como vivem fora da vista, os fungos

micorrízicos são menos privilegiados nos esforços de conservação em comparação com os ecossistemas acima do solo, como as florestas.

O micologista Nicholas Money, professor de biologia na Miami University, acredita que a SPUN enfrenta obstáculos ao analisar amostras, como o tamanho substancial dos fungos e as grandes quantidades de DNA dentro de suas células, o que pode resultar em erros. E acrescenta:

“Identificá-los não nos diz muito… sobre a importância de um determinado fungo naquele ambiente”.

Kiers aceita o desafio. “Precisamos quantificar a incerteza no mesmo nível que precisamos quantificar a biodiversidade”, diz ele. “Queremos poder dizer o quanto estamos certos sobre nossas previsões de biodiversidade, porque isso é muito importante para a conservação.” n

10 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023
O QUE HÁ DE NOVO

A Realidade Virtual É Capaz de Reduzir a Criminalidade?

x-presidiários que tentam se reintegrar à sociedade muitas vezes fracassam. As taxas de reincidência no mundo todo são elevadas em grande parte devido a barreiras sociais que os impedem de obter empregos, ter acesso à educação e dispor de moradia. O desemprego é o fator número um que determina se alguém cometerá outro delito e, nos Estados Unidos, quase 60% dos ex-presidiários ficam desempregados nos meses seguintes a sua libertação e mais de um em cada quatro assim permanece no longo prazo, segundo o Departamento de Justiça americano. Um estudo da área de Indianápolis, por exemplo, constatou que apenas 26% dos ex-detentos empregados são reincidentes, em comparação com 42% dos ex-detentos desempregados. Além disso, muitos lutam para ter acesso a uma moradia estável: pessoas anteriormente encarceradas têm dez vezes mais chances de se tornarem sem teto do que o americano médio, de acordo com um relatório da Prison Policy Initiative de 2018.

Um laboratório de pesquisa lançado em julho de 2022 quer mudar essas estatísticas. O MAXLab Freiburg – o braço de realidade virtual do departamento de criminologia do Instituto Max Planck para o Estudo da Criminalidade, Segurança e Direito em Freiburg, na Alemanha – está na vanguarda de um movimento para usar RV para compreender, dissuadir e prevenir o crime.

“A criminalidade é um tremendo problema social”, diz Jean-Louis van Gelder, chefe do MAXLab e diretor do departamento

de criminologia do instituto. “Estamos tentando encontrar soluções para reduzi-la.”

A Max Planck Society for the Advancement of Science (Sociedade Max Planck para o Avanço da Ciência) – a principal rede de pesquisa da Alemanha, sediada em Munique e com orçamento anual de US$ 2 bilhões financiado quase inteiramente por fundos estaduais e federais – recrutou Van Gelder para liderar a divisão de pesquisa criminológica de Freiburg em 2019. O instituto investiu € 50 mil (cerca de US$ 50 mil) para reformar um espaço no centro de Freidburg e equipá-lo com computadores e headsets de RV. O departamento de criminologia do instituto emprega aproximadamente 25 pesquisadores, incluindo psicólogos, sociólogos e um estatístico – metade dos quais está agora envolvida com o MAXLab.

O departamento está explorando soluções preventivas contra o crime por meio de cenários imersivos que convidam homens encarcerados na Holanda a usar um headset de

realidade virtual para conhecer versões futuras de si mesmos. Conforme as primeiras descobertas, esses homens relataram uma semana depois que estavam menos propensos a violar termos de liberdade condicional – como, por exemplo, o consumo de álcool –, e menos predispostos a reincidir após terem conhecido seu eu do futuro. Além disso, os adolescentes que conheceram suas versões virtuais também relataram que se sentiram menos tentados a colar em uma prova. No entanto, ainda se desconhece a capacidade dessas intervenções de torná-los menos propensos a cometer crimes no mundo real.

Comportamento Sugestionado

Por quase três décadas, cientistas do mundo todo usaram realidade virtual para estudar comportamento – nomeadamente no Virtual Human Interaction Lab (Laboratório Virtual de Interação Humana) da Stanford University, fundado em 2003. Van Gelder ficou fascinado com a realidade virtual na década de 1990, mas só em 2009 soube de um estudo no qual as pessoas que conheceram seu avatar virtual com idade avançada economizaram mais dinheiro para a aposentadoria do que aquelas que não o fizeram. Ele imaginou que a mesma tecnologia poderia ser usada para dissuadir as pessoas de cometerem crimes.

Essa ideia inspirou o primeiro estudo do FutureU, em 2013, pelo qual Van Helder descobriu que os “participantes que escreveram uma carta para seu futuro eu estavam menos inclinados a fazer escolhas irresponsáveis” e

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 11 PERFIS DE PROJETOS INOVADORES
HISTÓRIAS DO CAMPO
O MAXLab cria simulações para examinar como um crime ocorre e pensar medidas preventivas para manter as comunidades seguras.
FOTO: CORTESIA DE MAXLAB
POR JACOB KUSHNER ! A doutoranda Aniek Siezenga testa os equipamentos de RV do MAXLab.

que “participantes que interagiram com uma sua versão digital do futuro em um ambiente virtual eram menos propensos a trapacear em uma tarefa subsequente”. Em um estudo posterior, o Virtual Burglary Project, Van Gelder colocou ladrões condenados em um bairro virtual e pediu-lhes que explicassem quais casas invadiriam, como e o que poderiam roubar. O estudo, publicado em 2017, descobriu que os ladrões condenados tomaram decisões no mundo virtual semelhantes àquelas que tiveram na realidade.

Em 2019, o Ministério da Justiça da Holanda convidou Van Gelder e equipe para participar de um projeto que tornasse os bairros mais resilientes a roubos. Atualmente, eles estão concluindo um estudo – os resultados

comportamento criminoso, denunciá-lo, ignorá-lo ou até mesmo participar dele.

“Tradicionalmente, pensamos que as pessoas são sujeitos racionais”, explica Tim Barnum, pesquisador sênior do MAXLab, “mas as emoções obscurecem nossos julgamentos. Ao usar a realidade virtual, podemos colocar as pessoas em cenários mais próximos da contravenção, para observar se isso afeta a tomada de decisão.”

É possível, por exemplo, que num bar muitas pessoas estejam testemunhando um assédio sexual, mas que hesitem em intervir para impedi-lo. Os criminologistas chamam isso de efeito espectador e estudam esse comportamento há mais de um século, particularmente para entender por que milhões de

porque têm uma súbita vontade de furtar uma TV. Mas, independentemente da justificativa, em geral tomam uma decisão rápida, dando atenção limitada às razões de longo prazo.

“Se eu roubar agora, tenho o benefício agora, mas, se for pego, as consequências vão se manifestar mais tarde – vou para a cadeia, sou expulso da escola”, explica Van Gelder. “O projeto FutureU gira em torno da ideia de que, ao ter um encontro ou uma interação com seu eu futuro, é menos provável que você se envolva em um comportamento autodestrutivo.” Nos resultados de uma intervenção recente, publicada em fevereiro, a equipe de Van Gelder “observou uma redução no comportamento autodestrutivo”, como abuso do álcool e gastos excessivos entre homens que tinham passado pela experiência de conversar sobre metas de vida com sua versão futura em RV. Eles agora estão replicando o experimento em uma prisão na Pensilvânia. “Imagine se, após dez sessões de realidade virtual, você reincidisse 10% menos”, propõe Van Gelder. “Isso seria fantástico.”

são esperados para o ano que vem – no qual recrutaram 160 ladrões condenados, colocando-os em uma réplica virtual de um bairro holandês, e observaram se as luzes com detecção de movimento da rua os impediriam de cometer roubos.

Em junho de 2021, a equipe de Freiburg conduziu um experimento que chamou de Bar de Luta Virtual para testar o que faz os homens intervirem ou permanecerem como espectadores em incidentes de assédio ou violência. Os pesquisadores alugaram um bar em Amsterdã e contrataram atores para que representassem uma cena de assédio sexual e também um conflito que levaria a uma briga. Eles então colocaram centenas de voluntários naquele cenário em RV para observar como reagiriam e, em seguida, pediram que relatassem suas experiências. A equipe está analisando os resultados e planeja executar o estudo com um novo conjunto de participantes para medir batimentos cardíacos, movimento dos olhos, cortisol e outras métricas na esperança de aprender como os participantes intervêm para acabar com um

alemães permaneceram cúmplices durante o Holocausto. Agora, ao observar como reagem a cenas de perigo em RV no laboratório, o MAXLab espera descobrir maneiras de estimular as pessoas a intervir para interromper o assédio ou a escalada de uma situação.

“Se cinco pessoas estão olhando e todas interpretam o mesmo comportamento como assédio, precisamos encontrar uma maneira de nos comunicarmos para intervir”, diz Van Gelder. “Uma vez que você entende a dinâmica de quando e como as pessoas intervêm, pode agir para aumentar a probabilidade de que as pessoas o façam.”

Dissuadindo o Crime Grande parte da pesquisa do laboratório se baseia no princípio psicológico de que o impulso para cometer um crime geralmente tem origem no pensamento de curto prazo, em oposição ao de longo prazo – a gratificação imediata prevalece em detrimento de consequências mais distantes e menos óbvias. Por exemplo, indivíduos podem roubar comida porque precisam comer ou arrombar uma casa

Mas conhecer nosso “futuro eu” é suficiente para nos convencer a ter um comportamento diferente no presente?

Aniek Siezenga, uma doutoranda em criminologia que integra o FutureU, observou que, em uma pesquisa semelhante feita com estudantes universitários na Holanda, os participantes bebiam menos e eram menos propensos a gastar além de seu orçamento uma semana após uma sessão com seu eu virtual. O objetivo do estudo do FutureU do MAXLab, diz Siezenga, é descobrir se e como “as pessoas serão mais orientadas para objetivos quando são mais orientadas para o futuro”.

Algumas intervenções de RV já estão mudando – e possivelmente salvando – vidas. Na Holanda, um projeto do governo chamado “Não me esqueça” está usando a tecnologia para reduzir a reincidência entre agressores domésticos, ao mostrar aos criminosos condenados o impacto que suas ações podem ter sobre suas vítimas. O programa se baseia em um estudo de 2011 no qual uma equipe de pesquisadores colocou homens espanhóis condenados por violência doméstica em um cenário de RV para testemunhar o

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JACOB KUSHNER é um jornalista que faz reportagens sobre a África, a Alemanha e o Caribe. Ele escreve sobre ciência, inovação, migração, direito e terrorismo para publicações como The New Yorker, The Atlantic, The Economist, WIRED e a revista Foreign Policy. Era jornalista residente em 2022 no Instituto Max Planck em Heidelberg e em Freiburg.
Ao observar como os participantes reagem ao comportamento criminal em RV, o MAXLab espera descobrir maneiras de intervir ou impedir o assédio.

comportamento agressivo a partir do ponto de vista das mulheres. A justificativa para essa mudança virtual de gênero, escreveram os autores, foi que “os homens que perpetraram [violência doméstica com a parceira] têm dificuldades em assumir a perspectiva de seus filhos ou das vítimas”. Como resultado da experiência virtual, descobriu o estudo, vários homens que anteriormente falharam em interpretar corretamente o medo no rosto de suas parceiras foram capazes de fazê-lo, o que pode torná-los menos propensos a cometer ataques futuros.

O governo da Espanha agora está colocando essa pesquisa em prática. Como parte de sua liberdade condicional, os infratores são colocados em cenários RV nos quais crianças estão presentes. Eles então testemunham os precursores da violência pelos olhos de crianças. Ao mudar sua perspectiva, os pesquisadores esperam determinar se tal experiência pode reduzir a probabilidade de uma pessoa cometer abusos no futuro.

É importante notar que intervenções como aquela com agressores domésticos na Espanha ou a briga no bar virtual do MAXLab se fundamentam na crença de que a realidade virtual pode ajudar a aumentar nossa empatia com os outros. No entanto, esse pode não ser o caso. Uma meta-análise de 2021 de 43 estudos com realidade virtual descobriu que “a RV pode despertar sentimentos de compaixão,

mas não parece encorajar os usuários a imaginar as perspectivas de outras pessoas”.

Aperfeiçoamento

A realidade virtual também está sendo aplicada para melhorar índices de saúde. Nos Estados Unidos, a terapia de RV já está ajudando veteranos militares a superar o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e em breve poderá ser usada para reabilitar pacientes de AVC. Especialistas também estão considerando como a tecnologia pode servir para combater o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e o autismo.

Para Maggie Webb, pesquisadora visitante do MAXLab que trabalha no projeto FutureU, um dos maiores benefícios da RV pode ser aliviar a depressão e prevenir o suicídio. “Uma parte da depressão é que pode ser difícil pensar sobre o futuro”, diz Webb. “A realidade virtual poderia criar isso – ativar essa capacidade de pensar sobre o futuro.”

Atualmente, ela está desenvolvendo um teste no qual adolescentes com depressão usam a RV para conhecer suas versões futuras em um momento positivo da vida, como na formatura do ensino médio ou na graduação ou durante as férias. Ao “ter essa experiência positiva de uma maneira vívida e real, em que podem interagir com elas mesmas e ver seu eu futuro experimentando esse resultado positivo”, diz Webb, “as pessoas podem ser

estimuladas a pensar sobre as experiências de vida que perderiam se não estivessem vivas".

Webb imagina um futuro no qual a próxima visita ao consultório de um psicólogo pode envolver uma conversa em RV consigo mesmo. É até possível que tais experiências venham a ser integradas à vida cotidiana. Por exemplo, jogadores de videogame – que já estão bem imersos em realidade aumentada – podem vivenciar uma sessão de realidade virtual sobre prevenção ao suicídio em vez de uma propaganda. Essas experiências podem até ser integradas aos jogos que eles já jogam.

A terapia de exposição já é usada há muito tempo para ajudar as pessoas a superar fobias como medo de altura ou de aranhas, expondo-as a essas situações em ambientes seguros, controlados ou de baixa dosagem. Mas “a RV pode ser usada como um complemento ou substituto para, junto a um terapeuta, experimentar coisas que provocam medo na vida real”, explica Webb. “Com a realidade virtual, você pode ficar à beira no alto de um edifício. Isso possibilita realizar uma ação realmente assustadora sem realmente concretizá-la.”

A partir desse trabalho, Webb quer examinar se os insights do MAXLab podem ser usados para melhorar a saúde mental e reduzir a reincidência entre jovens presos nos Estados Unidos, que têm cerca de quatro vezes mais chances de apresentar transtornos de saúde mental do que jovens que estão livres.

“Dos 18 aos 24 anos, o cérebro ainda está se desenvolvendo, especialmente as regiões relacionadas à autorreflexão. E essa é a faixa etária comum encontrada nas prisões nos Estados Unidos”, observa Webb. Ao colocar jovens infratores em uma realidade virtual para conhecer e conversar com sua versão futura, Webb espera descondicionar a mentalidade de pensamento de curto prazo e ajudá-los a tomar melhores decisões de longo prazo.

Preocupações Sistêmicas e Éticas

Embora a RV pareça uma ferramenta promissora para melhorar a saúde mental, sua utilidade para predição e prevenção contra o crime ainda é amplamente desconhecida. Da mesma forma, sua aplicação na mente dos criminosos tem sido objeto de debate.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 13 HISTÓRIAS
FOTO: CORTESIA DE MAXLAB
DO CAMPO
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O pesquisador sênior Tim Barnum (à esquerda) está trabalhando com o laboratório de estudos do Bar de Luta Virtual.

Ao longo de 150 anos de história, a criminologia – o estudo de quem comete crimes e por quê – enfrentou controvérsias devido ao foco redutivo que dá às decisões individuais como causa da criminalidade. A área também demorou a reconhecer como a sociedade cria “crimes” e “criminosos” por meio da desigualdade estrutural e do racismo – e, em um sentido mais literal, ao criar leis que definem o que constitui um crime e como puni-lo.

Para estudar se as pessoas podem ser induzidas a se comportar de maneira antiética, nas décadas de 1960 e 1970 criminologistas americanos desenvolveram experimentos elaborados – e às vezes sensacionalistas –para observar a dinâmica da obediência ou como as pessoas podem ser induzidas a fazer

nova tecnologia – a RV – às perguntas que na verdade nunca responderam e que talvez nunca responderão.

“Existe um esforço para vincular traços de personalidade ao comportamento criminoso, e a RV pode ser a nova ferramenta para fazer velhas perguntas”, diz Daniel Harley, professor de ética em realidade virtual da University of Waterloo. “Mas a nova ferramenta sempre será insuficiente se não considerarmos também eventos estruturais que vão além do indivíduo: efeitos do racismo sistêmico, colonialismo ou desigualdade estrutural.”

De fato, a realidade virtual pode até nos distrair de lidar com questões sistêmicas, como melhor fiscalização policial, reforma prisional, racismo institucional e disparidades

coisas extraordinárias ou antiéticas. O mais famoso foi o experimento de obediência de Stanley Milgram de 1963, no qual os participantes eram persuadidos a administrar choques elétricos nos outros, e o Experimento da Prisão de Stanford, de Philip Zimbardo, no qual os participantes desempenhando o papel de guardas acabavam abusando dos prisioneiros (Em 2018, o estudo de Zimbardo foi refutado como fraudulento e antiético.).

Em 2006, uma equipe de psicólogos em Londres recriou o experimento de Milgram implementando um choque elétrico virtual para testar homens na faixa dos 20 a 30 anos. A equipe verificou que os participantes apresentaram níveis de angústia similares aos do experimento de 1963. Eles não sabiam que os choques não eram reais. Portanto, os psicólogos concluíram que, se outros estudos de RV se revelarem réplicas igualmente precisas dos estudos presenciais, isso “reabrirá a porta” para uma série de experimentos que não são possíveis de realizar no mundo real.

Os críticos temem que os criminologistas de hoje estejam apenas aplicando uma

no acesso a redes de assistência social como as de saúde e moradia. “O perigo é que parece que o problema está no indivíduo e a solução está na tecnologia”, acrescenta Harley.

Harley argumenta que é improvável que a RV resolva as causas subjacentes da discriminação no sistema judiciário. Um sistema criado para criminalizar e encarcerar certas categorias de pessoas “divergentes” ou que apresentem tendências consideradas “desviantes” tem poucas chances de evitar que um ex-detento roube novamente se ele não contar com uma rede de segurança – um emprego, uma moradia estável, comida. O problema surge se “não estamos considerando também os efeitos estruturais que vão além do indivíduo –efeitos do preconceito sistêmico”, diz Harley.

Contra essas probabilidades, o maior desafio enfrentado pelos pesquisadores do MAX-Lab e outros criminologistas será demonstrar que a realidade virtual pode incentivar indivíduos de maneiras que levem à redução do crime. Ao usar a tecnologia, os pesquisadores estão tentando superar o desafio de não estarem presentes quando o crime acontece.

O “verdadeiro poder” da realidade virtual, diz Gelder, “é que você pode encenar eventos de maneira confiável, segura e ética”. Ele acrescenta que todos os estudos do laboratório são revisados por uma comissão de ética da Max Planck Society para assegurar que as intervenções de RV do laboratório não coloquem os participantes em risco de trauma, TEPT ou outros efeitos psicológicos negativos. No entanto, outras intervenções em realidade virtual têm suscitado preocupações éticas, como as que colocaram júris em versões virtuais de cenas de crime para testemunhá-las em vez de confiar apenas em depoimentos de testemunhas – muitas vezes pouco confiáveis – ou em sua própria memória. Um estudo de 2021 descobriu que, quando os participantes eram colocados em cenas de crime virtuais, eles lembravam melhor onde os itens e as evidências estavam localizados do que quando tinham que depender de evidências fotográficas. Alguns advogados de defesa temem que colocar o júri em uma cena de crime em RV possa promover a sensação incorreta de que os participantes estão experimentando todos os fatores considerados na mente do réu no momento do fato. Na verdade, eles podem estar perdendo pistas contextuais integrais – não apenas cheiros e sons que poderiam ter deixado o réu no limite, mas até mesmo o medo decorrente de uma interação negativa anterior com a polícia.

“A RV e a RA [realidade aumentada] apresentarão questões desafiadoras para a lei”, escreveram os estudiosos jurídicos Mark Lemley e Eugene Volokh em um artigo de 2018 para o periódico University of Pennsylvania Law Review. “A natureza visceral da realidade virtual desafiará as linhas que a legislação traça entre a presença física e a distância, entre conduta e fala, e entre danos físicos e psicológicos.”

Mas essas são precisamente as linhas que Van Gelder e equipe estão explorando no MAX-Lab como parte da missão de descobrir novas maneiras pelas quais a RV pode ser aproveitada como uma ferramenta para o bem social.

“A realidade virtual não é apenas recriar o mundo real”, diz Van Gelder. “Trata-se também de criar um mundo diferente.” n

14 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023
“A realidade virtual não é apenas recriar o mundo real”, diz Van Gelder. “Trata-se também de criar um mundo diferente.”

Planejamento Familiar para a África Ocidental

A Ouagadougou Partnership facilita o acesso a contraceptivos, da Mauritânia ao Benim.

10ª reunião anual da Ouagadougou Partnership (OP), uma coalizão multissetorial de planejamento familiar, ocorreu em dezembro de 2021 em Uagadugu, Burkina Fasso. Mais de mil pessoas participaram, presencialmente ou via Zoom, com discussões não apenas sobre questões sérias como também sobre razões para celebrar.

Eles tinham bons motivos para comemorar, diz Marie Ba, diretora da OPCU, o centro de coordenação e comunicação da OP. A OPCU apoia e impulsiona os esforços de planejamento familiar e busca tornar a contracepção mais acessível na África Ocidental francófona. Para isso, enfrenta fortes tendências culturais e políticas conservadoras, que têm contribuído para taxas altas de mortalidade materna, infantil e de crianças abaixo dos 5 anos.

A fertilidade está entrelaçada à malha cultural da região. A posição social de uma mulher depende do número de filhos que ela tem. Pela forte presença muçulmana, famílias grandes são desejáveis – uma ideia apoiada por líderes religiosos conservadores. Discussões sobre planejamento familiar e sexo fora do casamento continuam sendo tabu.

Antes da fundação da OP em 2011, somente cerca de 11% das mulheres usavam métodos contraceptivos modernos, como pílulas, preservativos e dispositivos intrauterinos, segundo a Track20, organização que fornece dados aos governos para rastrear indicadores, como taxas de gravidez indesejada e de abortos inseguros evitados devido ao uso de contraceptivos modernos. Em média, as mulheres

estavam tendo entre quatro e oito filhos ao longo de sua vida reprodutiva. Globalmente, o uso de anticoncepcionais evitou cerca de 44% das mortes maternas em 2008, mas na África Ocidental francófona – Benim, Burkina Fasso, Costa do Marfim, Guiné, Mali, Mauritânia, Níger, Senegal e Togo – o problema persistiu.

Entre 2012 e 2021, contudo, a região teve um dos aumentos mais acelerados das taxas de contracepção moderna entre as regiões em desenvolvimento, e o financiamento de planejamento familiar por doadores da OP quase triplicou, de US$ 80 milhões para US$ 212 milhões. Na última década, segundo a Track20, a OP colaborou para o aumento do uso de contraceptivos por mais de 4 milhões de mulheres na região, para um total de 7 milhões. Esse crescimento evitou cerca de 21,6 milhões de gestações indesejadas e salvou a vida de cerca de 71.500 mulheres.

“A maioria dos países da África Ocidental francófona dobrou suas taxas de uso de

métodos contraceptivos na última década”, informa Ba. “O Senegal, por exemplo, passou de 12% em 2011 para cerca de 24% atuais.”

A mudança cultural também foi óbvia. “Quando entrei para a organização, dificilmente se podia falar sobre planejamento familiar”, lembra. “Você tinha que usar o termo ‘espaçamento entre nascimentos’ para ser ouvido e deixar todos à vontade na sala. Mas acho que o mundo está mudando – parece que as pessoas estão muito mais abertas a falar sobre planejamento familiar.”

Condições Adversas

Um ponto crucial para a fundação e o sucesso futuro da OP foi a revogação pelo presidente Barack Obama da Política da Cidade do México, em janeiro de 2009 – comumente chamada de “lei da mordaça global”, que encerrou o financiamento a muitos programas de saúde e planejamento familiar para mulheres fora dos Estados Unidos. Após a revogação, representantes da William & Flora Hewlett Foundation, da US Agency for International Development, da French Development Agency e da Bill & Melinda Gates Foundation puderam propor ao governo francês uma ideia de parceria para promover o planejamento familiar na África Ocidental francófona – uma área com tremenda necessidade “de investimento e mudança”, diz Perri Sutton, integrante do programa e da equipe de planejamento familiar da Gates Foundation. “Algumas das taxas mais altas de mortalidade materna do mundo estão aqui”, acrescenta ela.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 15 HISTÓRIAS DO CAMPO
POR ADRIENNE DAY
FOTO: CORTESIA DE ETRILABS/YVES-CONSTANT TAMOMO
! A caravana de doadores da Ouagadougou Partnership se reúne com a comunidade local em Niamey, no Níger.

Antes da fundação da OP, os doadores internacionais não estavam muito engajados na região, devido sobretudo ao tamanho relativamente pequeno dos países. “Quando a população de uma nação é pequena, o potencial de impacto também é pequeno”, observa Sutton. Unir os países em nome de uma parceria dá mais destaque à região e, portanto, aumenta a capacidade de atrair mais doadores. Além disso, os estreitos laços entre os países e a rede de recursos compartilhados representam uma oportunidade para que o impacto dos doadores se espalhe além das fronteiras de qualquer país e “repercuta na região como um todo”, afirma Sutton.

O tema do planejamento familiar também é propenso a atrair menos financiamento do que outras causas devido à sua natureza preventiva – em oposição à curativa. “As pessoas tendem a colocar seus esforços e dinheiro no combate à malária ou ao HIV, porque é muito mais tangível do que o planejamento familiar em termos de impacto”, diz Ba. Além disso, pode-se levar mais de uma década para ver os efeitos de uma iniciativa de planejamento familiar, e a política se move em um ritmo mais rápido.

Desde o início da OP, as fundações Gates e Hewlett financiaram conjuntamente a OPCU e suas reuniões e eventos, assim como a primeira conferência em Uagadugu no início de 2011.

Aí surgiu a ideia dos Planos de Implementação com Custos (CIPs, na sigla inglês) – programas de planejamento familiar financiados por doadores e adaptados a cada país, detalhando prioridades e estratégias de saúde reprodutiva ajustadas ao orçamento e aos recursos disponíveis. Os CIPs deveriam ser usados como referência para que cada país pudesse medir seu próprio progresso.

Para criar esses CIPs, cada país precisou de ferramentas e recursos para calcular e validar seus dados de planejamento familiar. Essas informações revelaram algumas questões críticas, típicas de cada um, que possibilitaram às respectivas agências de saúde elaborar CIPs específicos. “Por exemplo, no Níger, o sexo antes do casamento é raro, então o alvo são as jovens mulheres casadas, na tentativa de fazê-las adiar a primeira ou segunda gestação”, diz Emily Sonneveldt, diretora da

Track20. “Mas na Costa do Marfim, onde as pessoas costumam se casar mais tarde e há mais atividade sexual fora do casamento, os programas de planejamento familiar devem atender às necessidades tanto de adolescentes solteiros quanto casados.” Os primeiros CIPs eram “extremamente ambiciosos”, de acordo com Sonneveldt, porque foram elaborados sem o conhecimento do número de famílias que usavam ou desejavam usar métodos contraceptivos. Mas, à medida que dados mais apurados foram surgindo ao longo do tempo, foi possível definir metas mais realistas. “Dados equivalem a responsabilidades”, afirma Sonneveldt. Com dados precisos, “as conversas são ancoradas na realidade”, diz ela.

Para atrair o financiamento de doadores, a ex-diretora da OPCU Fatimata Sy, que se aposentou em 2016, sabia que era imperativo conduzir visitas in loco com potenciais doadores, para que pudessem ver o impacto do financiamento ao nível comunitário. Ela se referiu a esse esforço como uma “caravana de doadores”, que evoluiu para um evento anual que incluía formuladores de políticas locais, financiadores, líderes juvenis e líderes religiosos nessas visitas regionais e que gerou conversas que levaram a um maior envolvimento do governo com a questão – assim como ao aumento no financiamento de doadores.

O sucesso geral da OP resultou de um esforço coordenado de muitas partes diferentes interessadas em dividir o objetivo compartilhado de reduzir as taxas de mortalidade materna, infantil e de crianças menores de 5 anos na região, por meio do aumento de 6,5 milhões no número de usuários de contraceptivos modernos até 2030. “Esse objetivo compartilhado propicia responsabilidade mútua e competição amigável entre os países”, afirma Janet Holt, do programa de equidade de gênero e governança da Hewlett Foundation, que desenvolve ações como concursos de cartazes de campanha e premiações pela melhor cobertura midiática da OP.

Otimismo Cauteloso

No discurso de Ba na conferência de 2021, ela qualificou o sucesso da parceria com uma nota de cautela, dizendo que a taxa de

aumento do uso de anticoncepcionais havia diminuído, embora os índices tenham atingido a meta de 2021 da OP. “Esse [declínio] se deve em parte à Covid-19”, argumentou, “mas também às crises relacionadas à segurança e ao clima que impactaram o acesso das mulheres ao planejamento familiar.” Além disso, as recentes inundações deslocaram comunidades em vários países da OP, disse ela, o que aumentou o número de refugiados e desabrigados internos. Quando se recebe um novo grupo de refugiados, diz Ba, “o número de nascimentos tende a aumentar nove meses depois”, em parte devido ao estupro e ao incesto. Por isso, é vital que o planejamento familiar e a contracepção façam parte de todo pacote humanitário.

Os dados da Track20 também revelaram que a maioria dos países estava investindo para atender à demanda atual por planejamento familiar em vez de promover uma demanda adicional. “Esse foi um alerta de que o incentivo diminuiria se não houvesse uma abordagem intencional das barreiras relacionadas à demanda da contracepção”, afirma Sonneveldt.

Um grande motivo de orgulho para Ba é a recente transferência da liderança da OPCU para a Speak Up Africa, organização política e de advocacy com sede em Dacar, no Senegal, fundada e dirigida por mulheres. As vantagens de trabalhar com uma organização local são muitas, segundo Ba, e uma delas é contornar a barreira do idioma. “Com organizações internacionais, muitas vezes o francês não é a primeira, segunda ou até a terceira língua dentro dessa organização”, ela explica. Além disso, a liderança de mulheres africanas torna a mudança da narrativa em torno do planejamento familiar “mais autêntica” e atraente – algo que não é tão fácil de fazer “quando seu nome é Bill & Melinda Gates Foundation”, diz ela.

Trabalhar com líderes de juventude na mudança de normas sociais e usar ferramentas como mídias sociais para atingir gerações mais novas é essencial para o futuro da OP. Segundo Ba, “é possível fazer mais e melhor em termos de divulgação, e acho que realmente encorajamos uma geração de jovens a adotar o planejamento familiar voluntário”. n

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ADRIENNE DAY é jornalista e editora no Brooklyn, em Nova York, nos Estados Unidos.

Parcerias para Salvar um Hotspot de Biodiversidade

Um fundo colaborativo americano tem a missão de ajudar defensores ambientais no Sudeste Asiático a proteger o rio Mekong. Será possível fazer isso e, simultaneamente, lidar com a política local?

Quando se pensa em áreas do mundo ricas tanto em beleza natural quanto em complexidade, o Sudeste Asiático é um exemplo perfeito.

Estendendo-se do sul da China aos arquipélagos no oceano Pacífico, com clima tropical e subtropical, onde montanhas de calcário abrem caminho para planícies costeiras, a região abriga muitas espécies endêmicas não encontradas em nenhum outro lugar do planeta. Em meio a uma exuberante e diversa região de montanhas, planícies e florestas, encontra-se o imponente rio Mekong.

Com mais de 4.300 quilômetros de comprimento e serpenteando entre seis países, o Mekong é o maior rio do Sudeste Asiático e o décimo segundo do mundo. As mais de 1.300 espécies de peixe, 1.200 espécies de aves e 20 mil espécies de plantas que ali vivem tornam a região uma das mais ricas em biodiversidade do planeta.

Além do turismo, a indústria de pesca no Mekong traz impacto econômico para os moradores, garantindo segurança alimentar a milhões de cidadãos. Trata-se da maior indústria pesqueira de água doce do mundo. De acordo com um relatório conjunto da World Wildlife Fund (WWF) e do HSBC, gigante internacional de serviços financeiros, a taxa de crescimento dessa região nos últimos anos foi estimada entre 5% e 8%, impulsionada por setores como o cultivo de arroz e a pesca. As economias estão prosperando principalmente na bacia do baixo Mekong, mais navegável devido à menor concentração de bancos de areia e corredeiras. A organização intergovernamental Mekong River Commission calculou o valor anual da pesca e da piscicultura nessa região em US$ 17 bilhões, o que equivale a mais de 10% das atividades pesqueiras de todo o mundo. Igualmente formidável, a produção local de arroz representa cerca de 25% das exportações mundiais do grão. Quase 65 milhões de pessoas vivem nessa bacia e, graças

18 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 UM OLHAR PROFUNDO PARA O INTERIOR DE UMA ORGANIZAÇÃO ESTUDO DE CASO

a sua próspera atividade econômica, mais e mais cidadãos estão migrando para áreas urbanas.

O rio, que corre da China ao Vietnã antes de desaguar no Mar do Sul da China, tem um tráfego intenso de navios de cruzeiro. Em uma reportagem sobre a “expansão” da indústria de turismo no rio Mekong em 2019, a CNBC observou que ao menos dez navios estavam programados para percorrer o rio em 2020, antes de a pandemia de Covid-19 paralisar o setor.

O aumento da população urbana do baixo Mekong afetou gradualmente a terra ao longo da região do rio, desde a bacia do alto até a do baixo. Por toda a Grande Sub-região Mekong (GMS, na sigla em inglês), da qual fazem parte China, Camboja, Laos, Myanmar, Tailândia e Vietnã, o crescimento das áreas urbanas tem sido entre 3% e 5% ao ano. Até 2030, espera-se que mais de 40% dos moradores habitem cidades da GMS ou seus arredores. Com isso, cresce a pressão sobre os recursos naturais da região, especialmente em virtude do aumento da geração de energia hidrelétrica a partir de barragens. Situação semelhante ocorre na bacia do baixo rio,

na qual se estima um aumento anual de 7% na demanda por energia.

Jack Tordoff conhece intimamente a região. Diretor administrativo do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (Critical Ecosystem Partnership Fund – CEPF), iniciativa com sede em Arlington, na Virgínia, dedicada à preservação da biodiversidade mundial, Tordoff trabalhou em prol de esforços de preservação e sustentabilidade no Sudeste Asiático por mais de uma década. Ele sabe muito bem a tensão que lá existe para equilibrar desenvolvimento econômico e preservação ambiental e ecológica.

As várias barragens formadas ao longo do rio desempenham papel importante no avanço do desenvolvimento econômico dos países, uma vez que produzem eletricidade, evitam enchentes e fornecem irrigação para culturas em áreas de seca. No entanto, elas também impedem o curso natural das águas, o que pode prejudicar o ciclo de vida dos peixes, bem como sua capacidade de reprodução, e afetar negativamente o suprimento de comida dos moradores, que têm nos peixes do Mekong sua principal dieta e fonte de renda. Esta é a situação atual das pessoas que vivem nas margens do rio, onde atualmente duas grandes barragens operam e várias outras estão em fase de planejamento.

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KYLE COWARD é escritor e colaborou com The Root, Chicago Tribune, JET, Reuters e The Atlantic. Antigo conselheiro de saúde comportamental, ele é repórter da publicação especializada
Behavioral Health Business
Este texto foi publicado originalmente na edição do verão de 2021 da Stanford Social Innovation Review. FOTO: DENNIS SCHMELZ/ALAMY
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Vista do rio Mekong, onde a Associação dos Financiadores do Baixo Mekong dedica esforços para proteção e restauração ambientais.

“Mexer com a disponibilidade de água acarreta implicações para as pessoas mais diretamente afetadas”, explica Tordoff. Entre elas, a diminuição da segurança alimentar, baixa qualidade da água e aumento de doenças contagiosas provindas de espécies do rio, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Outras preocupações ecológicas na região surgiram com o aumento do desmatamento para dar lugar a complexos agroindustriais de grande proporção. Eles estão sendo construídos para atender à demanda por commodities como arroz, borracha e óleo de palma. “Por um lado, o rio está sendo represado”, afirma Tordoff. “Por outro, a vegetação natural da bacia hidrográfica está sendo destruída.”

Uma tempestade perfeita de condições provocadas pelo ser humano, tais como mudança climática e degradação ambiental, fez do Sudeste Asiático o principal candidato para receber o trabalho de organizações como o CEPF. Desde 2011, o fundo se associou a inúmeras organizações internacionais filantrópicas com o intuito de investir em soluções para problemas ambientais e ecológicos no baixo Mekong. Essa parceria, conhecida como Associação dos Financiadores do Baixo Mekong (Lower Mekong Funders Collaborative – LMFC), forneceu apoio econômico para mais de cem organizações locais da sociedade civil que trabalham em projetos de preservação da biodiversidade e na promoção do desenvolvimento economicamente sustentável.

“Estamos tentando criar modelos por meio dos quais a proteção do ecossistema permita também resolver questões fundamentais para as pessoas, em especial segurança alimentar e renda”, conta Tordoff.

Estabelecendo Colaboração

A LMFC reúne diversas organizações de grantmaking, além do CEPF, entre as quais Margaret A. Cargill Philanthropies (MACP), Chino Cienega Foundation e McConnell Foundation. Os beneficiários da generosidade colaborativa incluem organizações não governamentais (ONGs), grupos comunitários e iniciativas civis que criaram projetos próprios no baixo Mekong.

“Com todo o desenvolvimento e a degradação ocorridos, esse é um sistema de água doce extremamente importante”, diz Shelley Shreffler, membro do programa de meio ambiente da Margaret A. Cargill Philanthropies. “Acho importante darmos apoio às comunidades e às pessoas da região.”

A bacia do baixo Mekong – que abrange Camboja, Laos, Myanmar, Tailândia e Vietnã – tem sido alvo de esforços impulsionados por doações de diferentes financiadores americanos desde os anos 1980, momento em que o Vietnã procurava normalizar as relações com os Estados Unidos. Após décadas de conflito regional, foi só nos anos 1990 que os dois países estabeleceram relações diplomáticas.

Tordoff observa que aquelas atividades iniciais foram impulsionadas por organizações de ajuda internacional de fora da região. Segundo ele, apesar das boas intenções, algumas dessas iniciativas de financiamento usavam uma abordagem que nem sempre considerava as contribuições locais. “O primeiro esforço real para melhorar a qualidade ambiental se deu no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990”, explica Tordoff, que passou mais de uma

década trabalhando na preservação da biodiversidade no Sudeste Asiático antes de fazer parte do CEPF em 2009. “Não que [os esforços] não fossem eficientes, mas eram orientados muito externamente [à região].”

Antes da criação da LMFC, as organizações que fazem parte do grupo já buscavam, de maneira independente, promover projetos de biodiversidade e de desenvolvimento sustentável no Sudeste Asiático. Cientes dos trabalhos que cada uma executava na região, elas perceberam que se juntassem diferentes pesquisas, recursos e estratégias seriam mais fortes.

Tordoff explica que o que diferenciou esse processo colaborativo de outros projetos de desenvolvimento e preservação de fora do Sudeste Asiático foi o empenho em ajudar iniciativas locais a definir o tom de seus próprios objetivos e a liderar os projetos. Para as organizações locais, financiamentos por parte de membros colaboradores ampliariam os recursos, o que iria despertar a atenção das pessoas e possibilitar que suas vozes fossem ouvidas por governos no tocante a assuntos ligados a suas comunidades. Esses grupos locais se firmaram no início do novo milênio, quando os governos abriram espaço para que organizações da sociedade civil fizessem parte do processo político no baixo Mekong.

“A partir dos anos 2000 observamos um maior protagonismo desses esforços locais devido a mudanças na política, uma vez que os governos passaram, pouco a pouco, a dar mais espaço político para organizações da sociedade civil. Ao mesmo tempo, o CEPF e outros financiadores deram apoio para que entidades locais tivessem acesso a doações para realizar o trabalho ambiental”, explica Tordoff.

Focando em um Hotspot

Um retrato das iniciativas ambiciosas das quais a LMFC participa pode ser visto no hotspot da região da Indo-Birmânia, que engloba todas as áreas não marinhas dos cinco países do baixo Mekong, além de partes do sul da China, do nordeste da Índia e pequenas áreas de Bangladesh e da Malásia. Devido à ênfase nos esforços de preservação nos arredores do rio Mekong, Bangladesh, Índia e Malásia não estão incluídos no financiamento do CEPF para a Indo-Birmânia. O nordeste da Índia, que também não faz parte do Mekong, anteriormente era parte de um projeto de financiamento separado do CEPF.

Hotspots são áreas territoriais com ecossistemas biológicos diversos que enfrentam uma variedade de ameaças ambientais e ecológicas. Para ter essa classificação, uma área deve ter ao menos 1.500 plantas vasculares não encontradas em nenhum outro lugar do planeta e ter perdido ao menos 70% de sua vegetação nativa primária devido à degradação ambiental. No mundo, 36 áreas se enquadram nessa categoria.

O CEPF começou a investir em esforços de preservação em hotspots internacionais pouco depois de sua criação, em 2000, e em 2003 criou o “perfil de ecossistema” da Indo-Birmânia para identificar as principais preocupações quanto à erosão biológica daquele hotspot. “Nós nos concentramos em lugares específicos do planeta muito ricos em biodiversidade e que contam com alto índice de atividade humana”, explica Tordoff.

Após dar início a projetos de investimento em outros hotspots pelo mundo, o CEPF voltou sua atenção para a região da Indo-Birmânia

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e lançou em 2008 um plano de cinco anos para ajudar a financiar projetos que abordam questões importantes ligadas à degradação ambiental e ecológica na região. O tamanho do hotspot e a magnitude dos problemas ambientais e ecológicos apresentaram oportunidades significativas para os financiadores. Com mais de 346 milhões de moradores, a Indo-Birmânia é o maior hotspot do planeta e em 2011 o CEPF declarou que era também o mais ameaçado.

“O baixo Mekong, como parte da região da Indo-Birmânia, tem sido uma área importante para investimentos do CEPF”, explica Olivier Langrand, diretor-executivo do fundo. “Muitas espécies estão à beira da extinção no hotspot em virtude da trajetória do desenvolvimento econômico.”

Entre essas espécies estão aves como o sisão-bengalês, encontrado no Camboja e no Vietnã e catalogado como espécie severamente ameaçada de extinção pela União Internacional para Conservação da Natureza. Ademais, árvores como o jacarandá-siamês e o jacarandá-cambojano estão ameaçadas devido à

balho de ambientalistas como Norman Myers e Russell Mittermeier ganhou força na esfera mais ampla da defesa ambiental. Na bacia do baixo Mekong, a necessidade de assistência remonta à época em que a região estava mergulhada em conflitos armados, entre 1946 e 1989, quando batalhas entre forças apoiadas por comunistas e governos que contavam com o suporte do Ocidente colocaram a região na Primeira Guerra da Indochina e na Guerra do Vietnã.

A Primeira Guerra da Indochina foi travada, basicamente, no norte do Vietnã, então colônia da França. O conflito terminou em 1954 quando o grupo nacionalista Viet Minh, liderado por Ho Chi Minh – e que contava com o apoio da União Soviética e da China – repeliu as forças francesas na Batalha de Dien Bien Phu, marcando o fim da dominação no país.

O Vietnã pós-colonial foi posteriormente dividido em Vietnã do Norte, comunista, e Vietnã do Sul, apoiado pelo Ocidente. Conflitos menores entre os dois países ganharam maior proporção no momento em que os Estados Unidos – que apoiavam o Vietnã do Sul e haviam oferecido suporte à França na Primeira Guerra da Indochina – se envolveram a partir de 1964, após relatos de que o Vietnã do Norte atacara uma frota militar americana que operava no golfo de Tonquim. O declínio ambiental da região, lembra Tordoff , está ligado ao “envolvimento americano na Indochina com a Guerra do Vietnã”.

alta demanda regional por móveis fabricados com madeira dessas espécies. Por representar um estilo de vida próspero, tais móveis tornaram-se símbolo de status entre cidadãos e a demanda atraiu até grupos criminosos organizados que buscam derrubá-las para obter a matéria-prima.

No fim das contas, se você conversar com pessoas como Tordoff, elas dirão que a preservação da biodiversidade não é um problema para apenas uma parte do mundo. Na verdade, é uma questão que afeta todas as pessoas do planeta.

Conflito no Baixo Mekong

Esforços de preservação e desenvolvimento sustentável têm sido proeminentes no Sudeste Asiático desde que financiadores internacionais foram atraídos para a região, nos anos 1980, quando o tra-

Como parte de sua ofensiva, as forças militares americanas usaram o herbicida Agente Laranja contra os combatentes norte-vietnamitas no país, bem como no Laos e no Camboja, onde o exército do Vietnã do Norte e seus aliados da guerrilha vietcongue realizavam operações. Além de causar problemas de saúde de longa duração e doenças na população, o herbicida também promoveu um amplo desmatamento de áreas rurais que abrigavam muitos refugiados vindos de outras regiões destruídas pela guerra.

Stephen Nichols, fundador e presidente da Chino Cienega Foundation, com sede na Califórnia e que financia projetos ligados às mudanças climáticas e à sustentabilidade ambiental no Sudeste da Ásia, viu de perto a magnitude da destruição da guerra quando chegou ao Vietnã em 1967, onde serviu nas Forças Armadas dos Estados Unidos como professor voluntário.

“A primeira coisa que você vê é o enorme dano ambiental”, relata Nichols. “Você está sobrevoando e vê crateras provocadas por bombas por todos os lados. Não dá para imaginar a extensão dessa destruição. Eu me lembro de pensar: ‘Quando esta guerra acabar, quanto tempo vai levar para este país se curar de todas as feridas?’.”

Na esteira dos conflitos, vários países na região do baixo Mekong buscaram reanimar suas economias por meio de investimentos

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n FOTO: CORTESIA DO CEPF/WWF-CAMBODIA
Instrutores ensinam planejamento e gestão de uso sustentável da terra no Mekong Flooded Forest Landscape, no Camboja.

pesados em agricultura, exportando commodities como café e arroz e derrubando árvores para a produção de madeira de lei.

“Foi um desmatamento seguido por décadas em que pessoas reagiam aos choques provocados pela guerra”, afirma Tordoff. “Os países foram desafiados a aquecer suas economias e uma das maneiras encontradas foi investir em setores de recursos naturais.”

Décadas depois, o desafio de equilibrar o desenvolvimento econômico regional e a sustentabilidade ambiental tornou-se tremendo, provocado por uma tempestade perfeita de fatores como desmatamento regional contínuo, dependência de energia hidrelétrica e mudanças climáticas.

Um Esforço Descentralizado

De muitas maneiras, a LMFC é o encontro de cabeças de organizações apaixonadas pela ideia de promover questões ambientais e ecológicas no Sudeste Asiático. Cada organização, por vezes, diverge quanto aos objetivos de preservação e desenvolvimento que priorizam. Algumas, como é o caso da CEPF, podem escolher se dedicar a financiar esforços de preservação da biodiversidade, ao passo que outras podem ter uma inclinação maior para questões como mudanças climáticas e advocacy.

O grupo de colaboradores adota uma abordagem um tanto informal e igualitária em seu trabalho. Não há um website e nenhuma das organizações envolvidas dita os tipos de projeto que as outras realizam.

“Não temos todos exatamente a mesma incumbência”, explica Tordoff. “Há uma grande área comum, mas, ao mesmo tempo, há coisas nas quais um financiador pode estar trabalhando que outros não estão. Respeitamos isso.”

Com sede na Califórnia, a McConnell Foundation – que concede recursos para ONGs e empreendimentos educacionais, bem como para entidades governamentais – é um membro colaborador que se vale de uma abordagem de advocacy importante no que diz respeito a seus financiamentos, apoiando esforços voltados para a resolução de conflitos no Nepal e em prol dos direitos de assistência jurídica em comunidades rurais no Laos. A fundação também financia projetos de preservação no Laos, país para o qual foi inicialmente atraída em virtude da considerável diáspora laosiana em sua sede em Redding, ao norte de Sacramento, e em seus arredores. Muitos moradores são descendentes de refugiados das guerras civis ocorridas em meados do século 20.

“Trabalhar em colaboração nos ajuda a identificar os pontos fortes de diversos financiadores, uma vez que todos são capazes de contribuir de formas variadas”, explica Jesica Rhone, diretora de programas internacionais da McConnell Foundation. “Foi

extremamente importante conhecer esses outros financiadores de tamanhos diferentes, possuidores de outras redes de contato e que contam com um capital social que cada um oferece à iniciativa.”

Em seu trabalho, o CEPF investiu mais de US$ 30 milhões em doações para organizações da sociedade civil na região da Indo-Birmânia. Desde o lançamento de seu plano de cinco anos, o fundo apoiou mais de 310 projetos no hotspot. São alguns exemplos do trabalho dos stakeholders: campanha de comunidades nativas pelo direito à terra, grupos comunitários gerindo atividades pesqueiras e organizações de imprensa que buscam promover maior conscientização sobre os problemas da região.

Para avaliar os resultados das ações em hotspots pelo mundo, o CEPF se vale de quatro categorias individuais: 1) se a qualidade da biodiversidade do hotspot melhorou; 2) se houve fortalecimento da capacidade das organizações da sociedade civil de executar seu trabalho; 3) se houve melhoria na qualidade de vida dos cidadãos

que moram no hotspot; e 4) se foram criadas condições para que setores públicos e privados contribuam com os esforços de preservação da biodiversidade. Dentro desses pilares, o CEPF examina alguns parâmetros para medir a eficácia dos alicerces criados pelos beneficiados. Esses parâmetros variam conforme o local e são definidos pelos stakeholders. Por exemplo, o CEPF avalia o número de cidadãos que se beneficiam diretamente de formas sustentáveis de produção de commodities como o arroz.

Em contrapartida, pelo cumprimento de objetivos ambientais específicos definidos por stakeholders locais que são beneficiários do CEPF, agricultores podem receber um valor mais alto por seus produtos, como o arroz, do que receberiam de outros compradores. Sem o preço mais elevado pago por sua produção, eles podem ter de complementar sua renda com trabalhos paralelos, como atuar no desmatamento.

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FOTO: CORTESIA DE SHELLEY SHREFFLER/MACP
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Um barco de pesca, com rede submersa, navega pela costa por Tonlé Sap, lago de água doce e sistema fluvial, tendo ao fundo uma aldeia flutuante.

O CEPF também analisa a quantidade de moradores que se beneficiam indiretamente da produção agrícola que não agride a vida selvagem. Esses benefícios não vêm da venda direta dos produtos ao mercado, mas sim do fato de terem um estoque de água mais limpa para usar na irrigação das lavouras. “Tem sido muito eficaz”, relata Tordoff. “O arroz produzido nesses esquemas está agora sendo exportado internacionalmente para alguns grandes compradores.”

O CEPF avalia ainda os esforços de stakeholders locais para ver se seu trabalho promoveu a criação de áreas de conservação de terras anteriormente ameaçadas. “Nós medimos isso com base no número de acres ou hectares”, explica Tordoff. “Isso pode significar medidas formais como um parque nacional ou uma reserva natural. Porém, cada vez mais, isso significa medidas informais como áreas de comunidades nativas preservadas e por elas mantidas.”

Outros parâmetros incluem a avaliação de como espécies locais ameaçadas foram beneficiadas desde que a cooperação começou a financiar projetos de preservação locais. Além disso, o CEPF oferece um sistema de triagem para que os beneficiários avaliem sua capacidade de iniciar e manter seus projetos.

“Todas as organizações locais que recebem doação preenchem uma ferramenta de autoavaliação na qual informa, por exemplo, se seus funcionários são treinados, se contam com voluntários ou se seu escritório é permanente. Após três ou cinco anos, elas podem refazer a autoavaliação e podemos observar de que maneira sua capacidade mudou”, diz Tordoff.

Investimento e Ativismo Local

Desde 2013, o financiamento colaborativo no hotspot da Indo-Birmânia ajudou stakeholders locais a fortalecer seus esforços de gestão de preservação em regiões específicas nas quais as indústrias agrícola e de pesca têm produção intensiva. Segundo Tordoff, o trabalho de doação colaborativa cobriu uma área de mais de 768 mil hectares e possibilitou que ao menos 120 comunidades locais e nativas recebessem mais benefícios no que diz respeito a posse de terra, segurança alimentar e renda.

Mais de 80 doações foram concedidas a stakeholders e organizações internacionais que desenvolvem trabalhos na região. Entre os exemplos temos a criação de programas de preservação de espécies, o estabelecimento de iniciativas-piloto que promovem a gestão das florestas e da pesca pela comunidade e a conscientização sobre problemas de preservação ambiental por maior cobertura da imprensa local.

Entre as mais de cem organizações regionais da sociedade civil contempladas com doação da LMFC está a vietnamita PanNature. Com sede na província rural Son La, na fronteira com Laos, na parte noroeste do país, a PanNature realiza parcerias com cidadãos, setor privado e agências governamentais na busca de soluções para questões críticas, como o predomínio de barragens ao longo do baixo Mekong.

Mais do que alocar funcionários para administrar projetos no local, muito do trabalho da organização consiste na defesa de reformas de políticas públicas e no estabelecimento de relações com a imprensa local. Financiamentos do CEPF e de outros membros colaboradores possibilitam à organização aumentar o alcance de

sua comunicação, levando a PanNature a expandir a publicação de materiais de divulgação e aumentar sua equipe.

“Atualmente, temos muito mais cobertura jornalística sobre as questões ambientais”, afirma Trinh Le Nguyen, diretor-executivo da PanNature, que fundou a organização em 2004. “Recebemos muitos apoiadores que trabalham na proteção e preservação do ambiente. Há dez anos, temas ambientais não eram muito importantes na agenda da imprensa.”

Como resultado do aumento da conscientização promovida pelo trabalho das organizações doadoras da LMFC, governos estão fazendo algumas concessões importantes na região. Recentemente, a Tailândia cancelou um projeto de barragem que detonaria uma parte do rio Mekong a fim de tornar a área navegável. Essa obra permitiria a grandes embarcações comerciais da China navegar rio abaixo para uma região que abriga áreas de reprodução e viveiros de peixes de diversos tamanhos, o que poderia provocar desequilíbrio nos hábitats das espécies. Pouco tempo depois da interrupção desse projeto, o governo do Camboja anunciou que suspenderia a construção de barragens ao longo do rio Mekong até 2030.

“Estamos começando a ver algumas decisões importantes do alto escalão serem tomadas em prol do ambiente”, explica Tordoff, e ressalta que seu otimismo pela região da Indo-Birmânia é, ainda assim, cauteloso. “Essas decisões sempre podem ser revertidas”, acrescenta. “Outro governo pode se estabelecer ou as pessoas podem mudar de ideia a respeito da sustentabilidade.”

Para Tordoff, a suspensão dos planos de construção foi particularmente significativa porque veio depois que o CEPF financiou esforços iniciais de stakeholders regionais para interromper construções em outra barragem do baixo Mekong. No início dos anos 2010, aumentaram as preocupações de moradores e ativistas do baixo Mekong com potenciais consequências ambientais e ecológicas para a pesca na planejada barragem de Xayaburi, no norte do Laos. O projeto requeria que a represa – financiada e operada pela iniciativa privada tailandesa – produzisse energia hidrelétrica que seria, quase em sua totalidade, vendida para a agência estatal de energia da Tailândia.

No fim, os esforços para interromper o projeto não deram resultado. “Acho que aquele foi o maior golpe para o movimento ambientalista”, pondera Tordoff. “Provavelmente levamos cinco ou dez anos a mais do que deveríamos para encontrar a melhor maneira de lidar com o problema.” Um memorando do acordo entre o governo do Laos e a construtora tailandesa CH Karnchang PCL já havia sido assinado em 2007, um ano antes do início da primeira fase de financiamento do CEPF na região. Àquela altura, a fase de pré-construção já estava transcorrendo, assim como já tinham sido concluídos os acordos de desenvolvimento e os estudos de viabilidade. Depois de mais de cinco anos de construção, a barragem começou a funcionar em 2019. Tordoff explica que, em decorrência disso, áreas nos arredores da barragem tornaram-se mais secas e menos ricas em nutrientes, o que afetou negativamente os hábitats dos peixes, além de ter aumentado a probabilidade da ocorrência de secas e queimadas.

“Se tivéssemos chegado cinco anos antes, talvez fosse possível apresentar alternativas”, acrescenta. “Mas antes que alguém pudesse de fato começar a compreender a situação, tudo já estava adiantado. As pessoas, naquele momento, não perceberam que se tratava de

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uma causa perdida antes mesmo de seu início. Acho que isso dá origem a muitas questões sobre a possibilidade de nos envolvermos legitimamente na política interna de outro país quando não temos informações suficientes a seu respeito.”

Barreiras Burocráticas

Apesar dos ganhos obtidos no local, a burocracia pode ser um problema nos países do baixo Mekong, onde moradores, vez ou outra, enfrentam obstáculos na hora de fazer com que suas vozes sejam ouvidas sobre assuntos políticos que os afetam diretamente. Isso com certeza ocorre em relação a questões com implicações ambientais.

“Exemplos de organizações da sociedade civil capazes de se envolver no desenvolvimento de políticas públicas são a exceção e não a regra”, explica Tordoff. “Ainda é desafiador para comunidades locais, movimentos dos povos nativos e ONGs terem, de fato, influência na tomada de decisões voltadas para o desenvolvimento.”

Esses sentimentos ecoam junto àqueles que trabalham no local, beneficiários do apoio econômico dos colaboradores.

“Gostaríamos de observar comunidades nativas desenvolvendo contatos profissionais e conversando com as pessoas que ocupam os mais altos cargos do governo”, afirma Mong Vichet, diretor assistente-executivo da Highlanders Association, organização cambojana que obteve financiamento dos colaboradores para ampliar a participação política dos grupos de minorias étnicas – ou de comunidades tradicionais – na província de Ratanakiri.

A organização dedica especial ênfase em fazer com que mulheres e jovens se envolvam em assuntos como direitos sobre a terra e preservação em áreas nas quais há considerável presença de minorias étnicas. No Camboja, onde o grupo majoritário Khmer controla as instituições políticas, sociais e econômicas do país, os povos nativos clamam por atenção.

“Somente as comunidades que trabalham com ONGs podem falar com o governo”, explica Vichet. “Mas os habitantes locais não podem, e é isso que organizações de povos nativos como a Highlanders gostariam de presenciar.”

Membros colaboradores que não se envolvem em advocacy também devem ter cautela quanto a outros assuntos sobre os quais não têm controle, como questões de transparência política, na bacia do baixo Mekong. É uma questão que ficou bastante evidente recentemente com o golpe militar em Myanmar, que destituiu o governo eleito. Isso também se mostrou problemático ao longo do tempo de diferentes maneiras para todos os países da região, nos quais regimes autoritários e não democráticos se proliferam.

“O espaço político disponível para que a sociedade civil atue é mais limitado em todos os países da Indo-Birmânia, muito mais do que na América do Norte ou na Europa”, explica Tordoff. “Isso se deve a vários fatores históricos. É preciso ser bastante cuidadoso.”

Além de negociar com burocracias governamentais pouco amistosas, os colaboradores também tiveram de lidar com a saída recente de dois membros. A MacArthur Foundation, que fazia parte do grupo desde 2011, encerrou seus investimentos no Sudeste Asiático no início de 2021 e deixou a iniciativa. Em 2019, a McKnight Foundation, que se envolvia no advocacy pela sustentabilidade e direitos referentes aos recursos naturais no Sudeste Asiático, anunciou que encerraria os financiamentos na região em 2020.

Embora a saída da McKnight da fundação deixe um buraco na área de advocacy, o CEPF busca uma nova fundação capaz de realizar esse trabalho e não tem planos de assumi-lo. A atual lacuna pode ser uma decepção para proponentes de iniciativas de empoderamento sustentável em regiões em desenvolvimento, que podem esperar que organizações envolvidas em tal função usem sua influência para defender questões como a dos direitos humanos.

No contexto de seu próprio trabalho, Langrand, diretor-executivo do CEPF, escolhe o termo “agnóstico” para descrever a visão da organização acerca da situação no baixo Mekong. “Dizemos a esses países: estamos aqui para apoiar a sociedade civil e proteger a biodiversidade”, relata. “Há alguns países nos quais enfrentamos resistência. Porém, na maior parte dos países os governos ficam muito satisfeitos de nos ver buscando soluções.”

No entanto, os objetivos de desenvolvimento econômico dos líderes municipais nem sempre priorizam a sustentabilidade ambiental e ecológica. É claro que isso não é exclusivo do baixo Mekong ou do Sudeste Asiático, uma vez que muitas potências mundiais ao longo da história (incluindo Estados Unidos, China e diversos países da Europa Ocidental) desenvolveram sua economia à custa do ambiente. Contudo, o precedente da história não necessariamente faz com que o dilema seja mais fácil de ser resolvido por membros colaboradores ou stakeholders locais. Isso ocorre, em particular, quando a conversa se volta para questões como barragens hidrelétricas, que podem fomentar prosperidade econômica, mas resultam em consequências ambientais e ecológicas sérias para moradores e para a região.

Tordoff acredita não apenas que o desenvolvimento sustentável faz mais sentido do ponto de vista ambiental, mas também que investimentos em energia solar são mais economicamente prudentes do que em energia hidrelétrica. Quando se trata de apresentar essa perspectiva no baixo Mekong, a situação se complica porque esses potenciais benefícios econômicos são mais amplamente distribuídos para os cidadãos da região que não fazem parte das empresas ou estão politicamente ligados às elites.

“Embora possa existir um argumento econômico para uma abordagem mais ecológica e equitativa, a questão não se restringe apenas em fazer sentido do ponto de vista financeiro”, explica Tordoff. “Também está ligada a quem se beneficia. Às vezes, com abordagens ambientais e outras abordagens mais equitativas, os benefícios são mais amplamente compartilhados e as comunidades são mais ouvidas.”

Os Planos da China

Mesmo se todos os países na bacia do baixo Mekong decidissem encerrar seus projetos de hidrelétricas no rio, eles seriam impedidos pelos próprios planos de desenvolvimento rio acima da China. A China opera 11 barragens no Mekong, na parte sudoeste do país, e muitos especialistas sustentam que, devido a sua força econômica, o país mantém uma relação extremamente unilateral com seus vizinhos menores do sul no que diz respeito à gestão do rio.

Em 2019, a China enfrentou um excesso de chuva e degelo, enquanto uma seca na bacia do baixo Mekong levou o rio a seu nível mais crítico em mais de um século. Segundo relatório do Stimson Center, um think tank americano apartidário, as barra-

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gens chinesas restringiram quase toda a precipitação do excesso de umidade a áreas secas do rio que, em outra circunstância, poderiam ter recebido vazões acima da média. Atualmente, essas áreas seguem bastante secas.

O relatório também descreveu a gestão chinesa de suas barragens como “inconstante” e apontou que, algumas vezes, as barragens liberam, inesperadamente, água rio abaixo provocando choques ambientais, como inundações na bacia do baixo Mekong, que prejudicam os processos ecológicos da área.

“A China vai fazer o que a China quiser fazer”, afirma Cady. “Eles vão ganhar o dinheiro que quiserem ganhar.”

Embora administrar os esforços de conservação diante dos planos chineses, sejam eles quais forem, possa parecer uma tarefa sisí-

indústrias também foi sentida no setor das organizações sem fins lucrativos, com cortes de recursos financeiros e humanos.

Em relação ao baixo Mekong, a pandemia parece ter provocado um efeito mais direto no trabalho diário de stakeholders locais do que no próprio grupo de colaboradores. Contudo, para as comunidades da região o impacto tem mais a ver com a maneira como operam no local do que com os objetivos que buscam atingir. “O que os grupos não conseguiram fazer foi se encontrar e criar redes de contato locais”, explica Tordoff, observando que muitos encontros passaram a ser virtuais, mas com as atividades acontecendo normalmente.

“O que tenho ouvido dos meus beneficiários é que houve um impacto”, conta Shreffler, da MACP. “Eles precisam elaborar diferentes maneiras de envolver as comunidades porque nem sempre podem sair a campo.”

“Em relação às colaborações, não estou esperando grandes consequências”, diz Shreffler, da MACP. “Da nossa perspectiva, seguimos envolvidos com a região. A curto prazo, nossos níveis de financiamento não vão mudar.”

Steve Nichols, da Chino Cienega Foundation, também afirma que ele e sua equipe estão totalmente comprometidos. “Quem sabe o que vai acontecer?”, comenta. “Mas, por enquanto, parece que vamos conseguir manter o tipo de apoio que historicamente oferecemos.”

Antigos membros como a McKnight Foundation também estão monitorando os colaboradores. Embora não estejam mais envolvidos com o Sudeste Asiático, Cady fala de maneira carinhosa do tempo em que a McKnight fez parte da iniciativa e é otimista em relação ao futuro dos colaboradores.

fica, Tordoff se contenta em obter vitórias onde os colaboradores têm influência, como ao lado dos stakeholders da região do baixo Mekong, capazes de defender moradores e comunidades.

“Não significa dizer que toda decisão é favorável aos grupos que realizam campanhas pela sustentabilidade ambiental”, afirma Tordoff. “Mas acho que estamos começando a ver uma pequena mudança.”

Olhando Adiante

No ano passado, o CEPF renovou seu comprometimento com o hotspot da Indo-Birmânia até 2025, com a destinação de US$ 10 milhões em financiamentos até o fim desse período. Os membros colaboradores estão de olho em como a pandemia pode afetar os negócios diários no baixo Mekong daqui em diante. Ainda que avanços tenham sido feitos ao redor do mundo com as vacinas e alguns relatos que mostram a redução no número de mortos, a crise econômica provocada pela pandemia que atingiu várias

“Respeitamos as diferentes abordagens de cada um”, afirma. “Todos percebemos que podíamos fazer um trabalho conjunto melhor na região. Estou muito triste com a saída da McKnight; mas, certamente, seremos, mesmo de longe, aliados.”

Atualmente, o coletivo também está buscando adicionar novas organizações ao grupo, cujas identidades ainda não foram reveladas. “Estamos entrando em contato com alguns novos membros para ver se gostariam de participar”, conta Tordoff. “Nós tivemos a participação de alguns em reuniões como observadores.”

Desde a criação da iniciativa de colaboração, stakeholders e organizações locais, como aquelas que fazem parte da LMFC, tiveram a sorte de testemunhar alguns avanços ambientais e ecológicos no baixo Mekong. Contudo, todos os envolvidos sabem que ainda há um caminho longo a ser percorrido. Independentemente dos obstáculos como a burocracia ou a pandemia, organizações-membro estão determinadas a ver seus esforços de financiamento renderem mais frutos daqui em diante.

“Acredito que há duas décadas teria sido impensável imaginar que questões como as ambientais seriam consideradas na região”, afirma Tordoff. “Acho que isso é uma prova da significativa mudança que está acontecendo aqui.” n

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FOTO: CORTESIA DE SHELLEY SHREFFLER/MACP
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Uma cegonha-pintada captura um peixe no lago Tonlé Sap, que deságua no rio Mekong. A cegonha é uma espécie comum na região.

Pequenas Fundações Podem Ter Grande Impacto

Ilustração: Melinda Beck

Em uma era de doações milionárias, uma pequena fundação ainda pode provocar impactos consideráveis. Conheça sete técnicas para obter mais de seu investimento filantrópico.

Encontrei Bill Clarke pela primeira vez em agosto de 2013, durante o café da manhã num pequeno hotel em Washington, D.C. Bill era o presidente e principal financiador da Osprey Foundation, um projeto filantrópico familiar sediado em Baltimore, Maryland. A área do maior programa da fundação refletia o principal interesse de Bill: melhorar os serviços de água, esgoto e higiene (WASH, na sigla em inglês) disponíveis para pessoas pobres da África e da América Latina. Eu acumulava experiência nesse setor, tendo lançado e dirigido o programa WASH na Bill & Melinda Gates Foundation, onde trabalhei de 2005 a 2013.

Nos meses seguintes, passei a conhecer melhor Bill, bem como a estratégia da Osprey e o portfólio existente de doações. No fim de outubro, eu já tinha familiaridade suficiente com os objetivos da fundação e com seus beneficiários para começar a oferecer a Bill alguma orientação.

“Você pode gastar seu dinheiro de outra maneira”, disse a ele.

“Como assim?”, perguntou Bill.

“Bem, no momento a maior parte dele vai para a entrega de serviços diretos. Por exemplo, fornecendo água e esgoto para comunidades carentes”, respondi. “É algo louvável, mas essas organizações financiadas pela Osprey obtêm a vasta maioria de recursos de doadores muito maiores, tais como a US Agency for International Development (Usaid, Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) ou seus equivalentes no Reino Unido ou nos Países Baixos. E esses financiadores oficiais despendem a maior parte de suas verbas na abertura de poços e

na construção de latrinas porque é isso que os políticos e os eleitores esperam. As ONGs dependem desse financiamento, é claro, mas ele também restringe o modo como operam, deixando-as com falta de recursos não atrelados a serviços de entrega. Então o que elas realmente necessitam é de um financiamento flexível, que lhes permita experimentar novas abordagens ou que reflita no que vêm fazendo.”

“Qual é o outro lado da moeda?”, Bill perguntou.

“Bem, há dois aspectos a considerar. Em primeiro lugar, se você vai fazer uma doação de verbas não vinculadas, precisa estar muito confortável com o modo como a organização beneficiária funciona, ou seja, com sua estratégia, capacidade de implementação, gerenciamento, governança, a parafernália toda. No caso de seu atual conjunto de beneficiários, sinto firmeza com alguns deles, um pouco menos com outros. Em segundo, você, como financiador, não verá um resultado direto de seu investimento. Se isso lhe parecer importante, não adote essa abordagem. Por outro lado, se não vê problema em desempenhar um papel indireto no apoio às atividades da ONG, ela faz sentido. Melhor ainda, você estará potencializando os milhões de dólares de financiamento vindos desses grandes doadores oficiais, para não mencionar todo o dinheiro gasto pelas famílias e os governos dos países nesses serviços básicos.”

“Gosto de potencializar”, respondeu Bill.

Aquele encontro desencadeou uma série de conversas sobre estratégias de financiamento que Bill e eu tivemos ao longo dos últimos nove anos. Ao repensarmos os papéis que um financiador

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pode desempenhar, modificamos o modo como a Osprey gasta seu dinheiro, orienta seus beneficiários (incluindo empresas de impacto) e usa sua voz para apoiar áreas de programas decisivos. Assim, criamos um conjunto de técnicas de financiamento que nos possibilita obter um impacto muito maior que o usualmente esperado de uma pequena fundação. (Nesse caso, “pequena” significa pagamentos anuais de cerca de US$ 5 milhões a US$ 6 milhões, com doações em geral oscilando entre US$ 100 mil e US$ 300 mil por ano.)

Em minha experiência, a flexibilidade estratégica que a Osprey aplicou em sua política de doações é bastante rara e não teria sido possível sem certas qualidades de seu mecenas. Bill avalia cada situação de forma objetiva e em seu próprio contexto, fazendo poucas suposições. Ele aplica conhecimento fundamentado em sua experiência profissional no setor financeiro, mas não usa essa lente para filtrar perspectivas. Ouve de forma cuidadosa nossos beneficiários, parceiros e funcionários. Não tem mentalidade assistencialista pura e simples, no sentido de que seu objetivo não é distribuir coisas por aí, mas ajudar pessoas, famílias e comunidades a se ajudarem. Ele também é paciente, trabalha bem em equipe e gosta de fazer parceria com pessoas com objetivos comuns. Por último, compreende que abordagens duradouras frente aos desafios do desenvolvimento internacional raras vezes envolvem um único ator implementando um rápido conserto tecnológico.

A seguir, compartilho sete técnicas de financiamento de alto impacto que podem ser empregadas por fundações de menor e talvez até de maior porte. Essas técnicas são amplamente aplicáveis a múltiplos setores e estratégias, como aprendemos por meio de discussões com outros financiadores e organizações apoiadas. Cada técnica será introduzida por uma conversa entre Bill e eu, a começar pelo diálogo contado acima (As falas não são literais, mas apresentam os pontos essenciais das discussões que tivemos.).

1. Financiamento Flexível para Iniciativas Alinhadas

Após minha conversa com Bill sobre recursos não vinculados em vez de financiamento direcionado, aprendi quão úteis US$ 250 mil em financiamento flexível podem ser para uma organização com um orçamento de US$ 15 milhões. Mas essa tática somente faz sentido se a organização estiver estrategicamente alinhada com a perspectiva do financiador sobre como alcançar sucesso em determinada área. No setor WASH, por exemplo, a Osprey acredita que o sucesso – que definimos como levar serviços WASH verdadeiramente sustentáveis de alcance do público a comunidades – exige uma combinação de mudança sistêmica e ação coletiva.

Além do alinhamento no tocante ao conteúdo de suas estratégias, nossos beneficiários nessa categoria compartilham dois outros atributos. Em primeiro lugar, apreciam plenamente o contexto estratégico em que operam. Isso significa que compreendem tanto o sistema mais amplo em que estão trabalhando quanto seu papel específico dentro dele. No jargão da fundação, tais organizações podem articular a diferença entre uma “teoria da mudança” geral para seu setor e uma “teoria de ação” específica para a organização. Um número surpreendente de organizações, tanto ONGs quanto empreendimentos sociais, não consegue fazer essa distinção, e isso pode resultar em estratégias confusas. Em

segundo lugar, esses beneficiários são também, deliberada e orgulhosamente, organizações de aprendizagem. Elas têm o desejo, a capacidade e o orçamento dedicado para aprender com base em sua própria experiência e naquela de seus pares e para partilhar sua aprendizagem com outras pessoas. Além disso, têm também a intenção e a habilidade de adaptar sua trajetória com base nessa aprendizagem.

Tais organizações tornam-se fortes candidatas para o financiamento flexível (pressupondo que também preencham os critérios usuais concernentes a governança, liderança, gerenciamento, execução, e assim por diante). Alguns dos então beneficiários da Osprey enquadravam-se nessa categoria, e acrescentamos outros. Como resultado, terminamos com um grupo de beneficiários bem alinhados, que recebem financiamento flexível por dois ou três anos, com boa probabilidade de renovação. Além de os deslocarmos do campo do apoio vinculado para o do não vinculado, nós nos envolvemos mais ativamente com suas equipes de gerenciamento e em um caso até assumimos uma cadeira em seu conselho diretor.

2. Influência Interna para Profissionais Alinhados

A Osprey tinha outros beneficiários WASH, alguns dos quais não estavam, pela minha perspectiva, seguindo boas práticas e que provavelmente não mudariam. (Com o tempo, paramos de trabalhar com eles.) Mas havia um terceiro grupo, intermediário, que exigia uma abordagem diferente e que provocou uma série de discussões com Bill, como a seguinte.

“E quanto aos nossos beneficiários de água e esgoto que não estão plenamente alinhados com nossa abordagem?”, Bill me perguntou. “Como vamos lidar com eles?”

“Boa pergunta”, respondi. “Veja o caso da CARE, que opera em vários países. Em alguns desses lugares, a CARE adota a abordagem correta: de fato, é amplamente reconhecida por buscar as melhores práticas em mudança sistêmica e ação coletiva. Em outros, porém, segue um caminho mais tradicional, talvez porque um financiador quer apenas contar o número de poços escavados, independentemente de quanto tempo vão durar. A boa notícia é que a equipe global da CARE conhece a diferença entre essas abordagens e recentemente atualizou sua estratégia, de modo que ela focalize em mudança sistêmica.”

“Então, como trabalhamos com eles?”, perguntou Bill. “Lembro que há alguns anos a CARE usou alguns de nossos recursos para produzir um relatório sobre lições aprendidas que ajudou a difundir boas práticas com base em programas de países mais fortes para os mais fracos.”

“Proponho que nos concentremos em modalidades de influência e apoio internos”, respondi. “Por exemplo, a equipe de liderança global em água da CARE quer estudar todos os programas nos diversos países à luz dos princípios de boas práticas e continuar a documentar o que dá certo e o que não funciona. Se financiarmos a equipe global para esse tipo de trabalho, influenciamos todos os seus programas nos países (que despendem coletivamente

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LOUIS C. BOORSTIN é diretor administrativo da Osprey Foundation; trabalhou antes para a Bill & Melinda Gates Foundation e para a Corporação Financeira Internacional do Banco Mundial.

US$ 30 milhões ou US$ 40 milhões a cada ano em água e esgoto) para se alinhar melhor com meios efetivos de trabalhar. Também podemos influenciar outras áreas de programas, tais como segurança alimentar e nutrição.”

A lógica dessa abordagem se baseia na estrutura das grandes ONGs internacionais que queremos influenciar. Tais organizações descentralizaram boa parte de seu pessoal e de instâncias de tomadas de decisão para o nível de país. Essa estrutura tem muitos benefícios, dos quais o mais notável talvez seja o fato de empoderar aqueles mais próximos das pessoas que estão sendo amparadas. Mas também pode conduzir a um elevado grau de variabilidade no modo pelo qual os programas são implementados. Isso pode ser desafiador em setores como WASH, em que as abordagens mais efetivas (mudança de sistemas, ação coletiva) não são as mais instintivas (cavar poços, construir latrinas). Na condição de pequeno financiador, não temos a menor perspectiva de financiar suficientemente programas de alcance nacional. O que podemos fazer, porém, é apoiar as pequenas equipes globais WASH dessas grandes ONGs – por meio de influência interna, aconselhamento técnico e unidades de aprendizagem – se estiverem ajudando seus programas de alcance de país a adotar melhores práticas.

Embora o financiamento fornecido nessa abordagem seja direcionado para unidades específicas, o dinheiro dá flexibilidade à organização que o recebe. Essas equipes internas quase nunca contam com financiamento direto, mas dependem de alocações de um núcleo central de (ambicionados e limitados) recursos não vinculados. Portanto, ao direcionar desse modo o dinheiro, o

de sistemas e ação coletiva na mesma extensão se não estivéssemos financiando a unidade interna, mas Bill e eu ficamos felizes por não ter de desvendar isso por nós mesmos.

Também tivemos experiências menos afortunadas, nas quais nos envolvemos com beneficiários que afirmaram estar dispostos a fazer uma mudança estratégica, mas não conseguiram implementá-la. Esse risco é um dos inconvenientes de serem abertos quanto à estratégia: pode tornar mais fácil aos solicitadores de subsídios manipular seus interesses. Temos consciência dessa possibilidade, está claro, e por isso trabalhamos diligentemente para avaliar as intenções reais dos possíveis beneficiários. Fazemos isso por meio de discussões diretas e de conversas com outros profissionais e financiadores, para podermos desfrutar de sua experiência em lidar com determinada organização. Mas às vezes avaliamos erroneamente uma organização; nesse caso, terminamos o relacionamento depois do primeiro aporte e em seguida refletimos sobre o que aprendemos.

3. Apoiando um Centro de Coordenação

Em setembro de 2018, estávamos considerando aumentar substancial nosso financiamento de um centro global para organizações WASH dedicado a fortalecer sistemas locais por meio da ação coletiva: a Agenda WASH para a Mudança. O centro fora lançado vários anos antes e se desenvolvera até o ponto em que, pela primeira vez, os membros pensavam em contratar funcionários em tempo integral.

financiador estará influenciando atividades ao nível de país e, ao mesmo tempo sinalizando à alta administração da ONG que alguém fora da organização reconhece e valoriza o trabalho daquela unidade central. Uma tal mensagem pode ser reforçada por meio de encontros periódicos entre o financiador e a liderança da ONG, somando desse modo a voz do doador a seu dinheiro.

Recentemente, a Osprey teve a sorte de vivenciar o melhor cenário desse financiamento técnico. Estávamos fornecendo US$ 100 mil por ano para influência interna junto à unidade de apoio técnico na WaterAid, que tem um orçamento anual de mais de US$ 100 milhões. Quando a WaterAid empreendeu uma revisão detalhada, ao longo de um ano, para delinear uma nova estratégia de longo prazo, aquela unidade interna dispunha dos recursos e da capacidade para fornecer insumos e liderança. Não posso dizer com certeza que a estratégia resultante não teria enfatizado mudança

“Existem duas maneiras de examinar essa oportunidade”, falei a Bill. “De uma perspectiva positiva, trata-se de um excelente modo de alcançarmos alavancagem: nosso subsídio colocaria a pequena equipe do centro em condições de melhorar a eficácia dos membros da organização em dezenas de países. Por sua vez, esses programas a nível de país influenciariam as decisões tomadas por famílias, comunidades e governos sobre como implantar serviços de água, esgoto e higiene mais seguros e sustentáveis. Então nosso subsídio de US$ 400 mil por ano poderia ajudar a moldar o modo pelo qual centenas de milhões de dólares são gastos nos níveis local e nacional.”

“E a alternativa?”, Bill perguntou.

“Alguns diriam que somos idiotas por despejar dinheiro em uma iniciativa que está muitíssimo distante dos lares e comunidades que queremos ajudar”, respondi. “Gastar nossos recursos de um modo tão indireto aumenta o risco de que algo dê errado em algum ponto entre a entidade que estamos financiando e as pessoas que queremos ajudar.”

“Vamos discutir isso mais a fundo”, concluiu Bill.

Por que vale a pena financiar um centro que não fornece serviços básicos aos pobres, mas em vez disso facilita a aprendizagem, coordena profissionais e promove por uma abordagem particular no fornecimento desses serviços? A resposta a esta pergunta apresenta

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Bem poucos financiadores chegam a pensar no apoio a um centro de coordenação, levando em conta seu caminho indireto para obter impacto. Essa limitação mental forneceu à Osprev razões mais que suficientes para considerá-lo.

três aspectos. Primeiro, a abordagem que o centro apoia – usando ação coletiva para alcançar mudança de sistemas a longo prazo – é essencial para o sucesso no setor WASH. Mudança sistêmica é a área focal primordial para a estratégia de setor da Osprey, pois tínhamos um forte alinhamento estratégico com o centro. Segundo, a experiência com esses tipos de abordagem de ação coletiva demonstrou que ter um centro é um elemento essencial para o sucesso.1 Por isso, em maio de 2015, quando soubemos que quatro importantes organizações WASH haviam proposto um conjunto de princípios para abordagens colaborativas no setor, nós nos precipitamos para ajudá-los a avançar mais. Um ano mais tarde, fornecemos financiamento inicial enquanto continuávamos a participar do comitê diretor do centro. Terceiro, bem poucos financiadores chegam a pensar no apoio a um centro, tendo em vista seu caminho indireto para ter impacto. Essa limitação mental forneceu a uma financiadora como a Osprey razões mais que suficientes para considerá-lo.

Cabe acrescentar que não tomamos levianamente a decisão de financiar o centro. Percebemos um amplo leque de desafios a superar para realizar as promessas do centro, a maior das quais era fazer organizações trabalharem juntas, organizações que, em outras circunstâncias, estariam “competindo” por financiamento das mesmas fontes. Nós nos envolvemos ativamente na governança do centro, tanto para proporcionar uma voz independente entre os profissionais quanto para aprender com a experiência deles. Apoiamos sua evolução ao longo de várias fases de crescimento, o que incluiu em determinado ponto o comissionamento de uma avaliação exterior do funcionamento interno do centro e das relações com seus membros. Outras fundações juntaram-se a nós no financiamento do trabalho do centro. A maioria delas, porém, prefere financiar atividades a nível de país, de modo que permanecemos como o principal apoiador dos três integrantes da equipe de coordenação internacional.

Decorridos sete anos do início de nosso relacionamento com o centro, ele está realizando seu potencial, após uma reestruturação concluída em 2021. O esforço resultou em uma estratégia atualizada com o foco no apoio a colaborações a nível de país, uma nova estrutura de governança conduzida pelas colaborações de cada país e novas lideranças, baseadas primordialmente na África. Nosso comprometimento e nossa paciência parecem estar dando frutos e estamos alcançando a alavancagem que esperávamos que esse investimento viesse a gerar.

4. Bens Comuns para Inovadores Sociais

Em nossos esforços para chegar às pessoas necessitadas para oferecer serviços básicos sustentáveis dentro de suas possibilidades financeiras, nós da Osprey não nos limitamos a apoiar ONGs que trabalham para fortalecer sistemas. Também investimos em empresas sociais que concebem e testam novos meios de fornecer

esses serviços. Tais investimentos de impacto são parte de nossa área de programa de financiamento de modelos inovadores. Esse setor de nosso portfólio conduziu a muitas discussões com Bill, uma das quais não seguiu nosso padrão habitual de mergulhar nos aspectos particulares de um empreendimento individual.

“Bill, tive uma ideia de como tornar a parte mais emocionante de nosso trabalho mais tediosa, mas talvez mais efetiva.”

“Qual é ela?”, ele perguntou.

“Nosso portfólio de inovação é constituído em larga medida por empreendimentos sociais em seus estágios iniciais”, expliquei. “Escolhemos cada um desses investimentos de impacto por seu potencial de demonstrar novos e melhores meios de encaminhar serviços básicos aos pobres. Outros investidores de impacto que conhecemos têm portfólios similares que financiam empresas sociais, com frequência nos mesmos campos em que estamos investindo.”

“Mas e se essa fascinação com empreendimentos individuais nos fizer perder uma oportunidade de identificar e estudar desafios comuns aos empreendedores sociais em determinado campo?”, perguntei. “Será que um tal estudo poderia ajudar a acelerar o

progresso de múltiplas empresas no desenvolvimento de modelos de negócio viáveis?”

“Por que não verificar o que outros investidores de impacto pensam dessa ideia?”, argumentou Bill.

A Osprey escolheu focalizar seus esforços de desenvolvimento internacional em duas áreas principais de programas: WASH e uma culinária mais limpa. A decisão de se concentrar em apenas dois setores faz sentido, dados nosso número de funcionários e nossa capacidade de financiamento comparativamente limitados, assim como nossa crença de que, se estivermos suficientemente bem informados acerca desses setores, poderemos traçar e executar estratégias que farão diferença na vida das pessoas. Também nos sentimos confortáveis ao fazer tanto doações quanto investimentos de impacto.

Na prática, nossas escolhas de investimentos de impacto têm sido focalizadas de forma ainda mais estreita. Selecionamos alguns subsetores em cada área de programa – por exemplo, empresas de água potável e de esgoto baseado em contêineres – que acreditamos ter alto potencial para beneficiar os pobres com abordagens melhores, mais sustentáveis e mais ampliáveis. Mais ainda: dentro desses subsetores procuramos líderes do mercado – aqueles empreendimentos com a capacidade de demonstrar e ampliar novos modelos

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Ficamos intrigados pelo potencial para desempenhar um papel que pudesse se adequar particularmente bem à Osprey: ingressar em transações arriscadas e pioneiras que criam um exemplo catalisador que outros possam seguir.

de negócio e de rastrear e compartilhar seu aprendizado ao longo do caminho.

Como os Financiadores

Podem Ter Maior Impacto

Ainda assim, apoiar empresas individuais tem suas limitações, independentemente do quão bem escolhidas sejam. Aprendi essa lição há uma década, quando contribuí para um estudo sobre como aumentar o impacto de soluções inovadoras baseadas no mercado para servir os pobres. Tendo em mente esse aprendizado, em 2016 pensei que poderia valer a pena apoiar um estudo em profundidade em um dos subsetores em que a Osprey tinha investimentos de impacto: empresas de água potável (SWE, na sigla em inglês). São empreendimentos que usam lojinhas, pequenos sistemas com tubos ou outras abordagens descentralizadas para levar, a baixo custo, água potável, tratada com segurança, a cidades e vilarejos que não disponham desse serviço.

A Osprey Foundation é orientada por sete técnicas para aumentar o impacto de seus investimentos filantrópicos:

1. Persiga oportunidades que catalisam mudanças em maior escala/mais longo prazo.

2. Alavanque financiamentos, abordagens, parcerias e ideias.

3. Seja flexível sobre o uso e desdobramentos dos recursos e desdobrados (doações, investimentos de impacto, etc.).

4. Assuma grandes riscos se as vantagens em potencial, sociais ou ambientais, valerem a pena.

5. Apoie um amplo leque de abordagens, de programas de governo a serviços baseados no mercado.

6. Contribua para partilhar desafios; não tente atribuir resultados apenas ao seu trabalho.

7. Busque papéis que possa desempenhar, mas que poucos possam fazê-lo.

(COP, na sigla em inglês) SWE, uma coalizão de nove SWEs que acreditam que os benefícios do trabalho conjunto em várias prioridades partilhadas mais que compensam os custos de participação. Pequenas companhias não raro veem os custos de tal colaboração como muito altos, devido a sua capacidade bastante limitada para empreender atividades além de seu negócio imediato. Os próprios membros da COP definem suas prioridades, que no momento incluem aumentar seu conhecimento sobre seu impacto social e o de seus consumidores, desenvolver uma estrutura financeira comum e exercer influência em prol das SWEs.

Aconteceu de outro financiador de SWE já estar pensando da mesma maneira, e no fim cinco de nós – três fundações privadas, uma afiliada corporativa e um financiador apoiado pelo governo –decidimos financiar conjuntamente uma análise de SWEs. Diga-se que as próprias SWEs estavam de início bem menos entusiasmadas com o estudo do que os financiadores, talvez porque as companhias acreditassem que já compreendiam plenamente seu negócio ou porque temessem perder conhecimentos e práticas exclusivas de cada uma. Com algum incentivo dos financiadores e garantias do consultor, a Dalberg Global Development Advisors, 14 SWEs concordaram em participar do estudo em uma base de anonimato. Cada SWE participante recebeu um relatório customizado para seu uso exclusivo, e o estudo mais amplo (com dados anônimos) foi partilhado publicamente em 2017.

Da perspectiva da Osprey, as revelações desse relatório sobre os desafios fundamentais diante das SWEs – tais como o envolvimento dos clientes e como operar com eficiência – valeram bem nossa cota nos custos de consultoria. O estudo deu às SWEs uma compreensão mais profunda de seus modelos de negócio e dos ambientes de operação. Suas lições também orientaram o relacionamento da Osprey com SWEs individuais e nossa estratégia mais ampla para o envolvimento com o subsetor. Mais ainda: quatro anos após o estudo original, a Dalberg conduziu um segundo estudo, dessa vez para avaliar o impacto da mudança climática sobre as SWEs, com o apoio de quatro dos cinco financiadores originais, entre eles a Osprey, e de um novo financiador. As descobertas desse estudo ajudaram as SWEs a se planejar diante das implicações a longo prazo da mudança climática.

O relatório de 2017 também encorajou as SWEs a conversar entre si sobre desafios comuns. Essas discussões contribuíram para o estabelecimento, no fim de 2018, da Comunidade de Práticas

A Osprey forneceu financiamento para as atividades da COP porque espera que o valor de uma compreensão mais profunda nessas áreas exceda em muito os custos da COP. Trata-se de um esforço relativamente novo – e um esforço que sofreu notavelmente durante a pandemia, na medida em que as SWEs se recolheram e focalizaram em sua própria sobrevivência –, mas acreditamos que vá gerar uma aprendizagem importante que muitas SWEs poderão aplicar para melhorar seu impacto, sustentabilidade e escala de operações.

5. Investimentos de Impacto de Alto Risco

Em novembro de 2019, Bill e eu comparecemos a uma conferência em Nairóbi, no Quênia, organizada pela Clean Cooking Alliance, a associação global da indústria dedicada a fazer do simples ato de cozinhar uma refeição algo mais saudável, mais econômico e melhor para o planeta. Durante uma pausa entre sessões, Bill me falou sobre um contato que havia feito.

“Nossos amigos da BURN Manufacturing gostariam de nos encontrar amanhã cedo”, informou. “Eles querem ver se poderíamos fazer um empréstimo para expandir a venda de seus fogões a carvão na República Democrática do Congo. O melhor é que o empréstimo seria pago pelas receitas da venda de créditos de carbono na Coreia do Sul.”

“Parece interessante”, respondi. “E recebi um pedido para uma reunião com um grupo holandês, o Cardano Development, que me contatou pela primeira vez um ano atrás. Eles querem apresentar a ideia de uma transação envolvendo pagamentos por resultados ligados a benefícios de saúde e (ou considerando) o gênero. É algo análogo a pagar por créditos de carbono, exceto que neste caso alguém pagaria por impactos quantificáveis em benefícios para a saúde das mulheres. Esses benefícios viriam do uso de fogões sustentáveis aqui no Quênia e em outros países da África Oriental.”

“Vamos descobrir mais sobre isso também”, falou Bill.

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Bill e eu concordamos em participar de ambos os encontros porque ficamos intrigados pelo potencial para desempenhar um papel que pudesse se adequar particularmente bem à Osprey: ingressar em transações arriscadas e pioneiras que criam um exemplo catalisador para outros seguirem em uma escala mais ampla. Tais transações de demonstração necessitam se alinhar bem com uma de nossas áreas de programa e gerar nítidos benefícios sociais e/ou ambientais – critérios que essas duas oportunidades preenchiam. Não queremos perseguir negócios de um tiro só, que parecem atraentes, mas na prática têm poucas chances de replicação em escala ampliada. Em ambos os casos, sabíamos que outros financiadores com bolsos muito mais fundos que os da Osprey – entre eles investidores de maior impacto e agências oficiais de desenvolvimento – estavam interessados nesse tipo de transação. No entanto, esses protagonistas não têm o apetite para risco, a flexibilidade ou a paciência para desenvolver novas estruturas de financiamento. É aí que atores de menor porte como a Osprey entram em cena. Ainda assim, mesmo para a Osprey, desempenhar o papel de pioneiro pode exigir muito de nossa paciência e de nossos bolsos, como aprendemos após os dois encontros iniciais em Nairóbi.

O segundo encontro levou a uma transação que oferece um dos poucos exemplos de pagamentos baseados em resultados para benefícios para saúde considerando o gênero das pessoas. O uso de fogões sustentáveis gera múltiplos benefícios em comparação a fogões básicos ou a fogueiras com três pedras: menos infecções respiratórias devido à reduzida poluição do ar no interior das casas; economia de tempo para as mulheres, porque os fogões consomem menos lenha, cozinham mais rápido e conservam limpas as panelas; desmatamento reduzido; e mais baixas emissões dos gases de efeito estufa. No entanto, ainda que esses benefícios sejam potencialmente cumulativos quando fogões aperfeiçoados são usados, eles raramente são medidos ou avaliados – o que significa que provavelmente ninguém vai pagar por eles. Até o momento, a exceção têm sido os créditos de carbono, para os quais existe um crescente mercado corporativo e varejista. O conceito de pagar por benefícios para a saúde e considerando o gênero é atraente tanto socialmente (são dois dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas) quanto economicamente (são externalidades positivas que merecem apoio público). Mas, na prática, imaginar como avaliar, quantificar, medir e verificar esses impactos tem sido uma proposta desafiadora, de modo que o conceito ainda precisa se tornar uma realidade.

Achamos muito atraente a combinação de um grande potencial para benefício social e um arriscado primeiro passo para mostrar como poderia ser realizado na prática. Mais ainda: estávamos sendo instados a desempenhar um papel crítico na transação proposta, que seria estruturada da seguinte maneira: 1) Uma companhia de fogões sustentáveis obteria um empréstimo cujo montante permitiria reduzir o preço de seus fogões no varejo e expandir as vendas para clientes mais pobres; 2) À medida que os fogões fossem usados ao longo de vários anos, gerariam benefícios para a saúde

feminina (neste caso, doenças evitadas e horas poupadas do tempo das mulheres); 3) Se esses benefícios fossem verificados de maneira independente, um financiador de resultados compraria os benefícios a um preço predeterminado; 4) Esses pagamentos seriam usados para cobrir o empréstimo inicial e os custos da transação, e eventuais sobras iriam para a companhia de fogões.

No âmbito dessa estrutura, era solicitado que a Osprey fosse o financiador de resultados, até porque o gerenciador da transação, o Cardano, já havia abordado mais de cem outros financiadores potenciais. Geralmente os financiadores de resultados são usualmente agências oficiais de desenvolvimento como a Usaid, que gostam desse papel porque desembolsam os recursos dos contribuintes apenas quando os objetivos do desenvolvimento são alcançados. Ainda que algumas agências oficiais de desenvolvimento demonstrassem interesse pelo conceito, os riscos de uma estrutura não testada eram demasiado grandes para elas encararem – mas não para nós.

Por mais clara que essa estrutura parecesse em princípio, transações pioneiras sempre apresentam desafios não antecipados. Qual a métrica correta para benefícios associados a gênero? De que modo

precificar esses benefícios? Como implementar estudos de campo destinados a medi-los? Como funciona o processo de verificação de impacto e quem vai supervisioná-lo? O Cardano arcou com a maior parte dos encargos financeiros para lidar com esses e outros desafios. Mas quando o custo das atividades preliminares excedeu o nível esperado (a maior parte generosamente financiada pela Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês) do Banco Mundial), fornecemos uma doação suplementar para reduzir o peso dos custos sobre o Cardano. A transação foi finalmente executada em setembro de 2022, depois que se determinou que os benefícios potenciais em saúde e segurança eram substanciais. As partes na transação planejam compartilhar amplamente o modelo para promover a replicação em uma escala muito maior, e com tempos de desenvolvimento de projeto e custos de transação muito menores, agora que começamos a pavimentar o caminho.

O primeiro encontro na conferência em Nairóbi também resultou em uma transação útil, um empréstimo da Osprey para a BURN Manufacturing em apoio a maiores vendas de fogões para pessoas mais pobres na República Democrática do Congo. Esse empréstimo seria pago exclusivamente com os recursos das vendas de créditos de carbono gerados pelo uso desses fogões. No entanto, o aspecto inicialmente mais interessante do empréstimo – a possibilidade de

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Vim a pensar em meus cofinanciadores como colegas em quem eu podia confiar, como se pertencêssemos à mesma organização. Também aprendi com parceiros questionadores, que faziam perguntas difíceis.

vender créditos de carbono no mercado sul-coreano, que paga um preço muito maior que outros mercados – não se materializou. Como resultado, terminamos com uma estrutura de transação similar à utilizada por fornecedores de empréstimos especializados no mercado de carbono. Por termos uma experiência limitada nessa área, mobilizamos um consultor financeiro especializado nos mercados de carbono e um consultor jurídico com ampla experiência internacional. Esses especialistas orientaram as posições da Osprey e protegeram nossos interesses, assegurando ao mesmo tempo que a estrutura e a documentação da transação alcançassem os mais altos padrões, o que torna mais fácil para outros investidores não especializados de impacto seguirem nossa trilha no futuro. Também escrevemos uma nota técnica detalhando a fundamentação, a estrutura e os termos da transação, novamente com o objetivo de encorajar outros investidores de impacto a buscar oportunidades similares em escala maior.

6. Envolvimento Proativo com Outros Financiadores

Era março de 2019, e Bill e eu estávamos saindo de uma reunião na cidade de Haia com cerca de uma dezena de outros financiadores WASH. A Osprey havia ajudado a organizar o encontro, juntamente com cinco financiadores com quem vínhamos colaborando um tanto informalmente nos últimos quatro anos. Outros financiadores WASH haviam ouvido falar de nosso grupinho e, assim, um dia antes da importante conferência, convidamos alguns deles para se encontrar conosco.

“Bill, você se lembra daquela ideia que teve no início de 2015 sobre envolver outros financiadores no setor WASH?”, perguntei. “Você queria ver se eles estariam interessados em cofinanciar uma consultoria de especialistas sobre como ter um impacto mais profundo no setor.”

“Aquela ideia que gerou um pequeno estudo sobre como poderia funcionar na prática?”, perguntou Bill.

“Sim, aquela mesma”, respondi. “Demos um tempo no projeto quando ficou evidente, em entrevistas com outros financiadores, que eles não estavam inclinados a colaborar seguindo esse caminho.”

“Por que você está perguntando?”

“Bem, eu estava pensando hoje nesse estudo porque acredito que estamos começando a concretizar sua visão”, respondi. “Sei que demorou um bocado e que não vamos conseguir cofinanciamento em consultoria estratégica, mas acho que estamos encontrando meios efetivos de aprender com nossos pares influenciando no modo como trabalham.”

Uma das coisas legais sobre ser um pequeno financiador de grandes ambições é que você pensa quase o tempo todo sobre alavancagem. A Osprey emprega vários tipos diferentes de alavancagem: financeira (catalisar outras fontes de financiamento para aumentar o dinheiro que flui para uma atividade escolhida como alvo), demonstrativa (estabelecer um exemplo replicável para outros seguirem em maior escala), relacional (aprender com organizações que pensam de forma semelhante e ao mesmo tempo influenciar como trabalham) e conceitual (gerar novos meios de pensar sobre o que constitui sucesso, bem como sobre os caminhos para chegar lá). Eu havia usado todas essas abordagens em graus variados em cargos anteriores, mas tinha bem menos expe-

riência em buscá-las sozinho ou com apenas alguns colegas. Vim para a Osprey depois de passar por grandes instituições nas quais eu podia me apoiar em equipes internas, formadas tanto dentro de minha própria unidade quanto em outros departamentos. E, antes que eu ingressasse na Osprey, Bill vinha fazendo a maior parte da concessão de doações sozinho, com algum auxílio de sua familia e de uma firma de consultoria filantrópica. (Vários anos após meu ingresso, decidimos contratar um programador em meio período, Lauren Maher Patrick, para trabalhar comigo e administrar parte de nosso portfólio WASH.) Terminei por compreender que trabalhar em um empreendimento pequeno tem vantagens (flexibilidade, agilidade na tomada de decisões, rápidas correções de curso), mas também limitações (o tempo dos funcionários é geralmente nosso grande fator restritivo). Em resposta, comecei a reunir um grupo de colegas de outras pequenas fundações, que ajudou a ampliar nosso impacto, afiar nosso pensamento e se constituiu em uma fonte inesperada de camaradagem e amizade.

Eu gostaria de receber o crédito por organizar o primeiro encontro de financiadores WASH em novembro de 2015 em Londres, mas não seria justo. Essa honra vai para The Stone Family Foundation, do Reino Unido, e de fato, o encontro foi concebido para financiadores britânicos, até que pedi para ingressar e sugeri que convidássemos outro grupo dos Estados Unidos, a Conrad N. Hilton Foundation. A partir desse encontro inicial, nós seis (quatro fundações do Reino Unido – The Stone Family Foundation, Vitol Foundation, The Waterloo Foundation e The One Foundation – e as duas fundações dos Estados Unidos) nos encontramos periodicamente ao longo dos três anos e meio seguintes para compartilhar nossas estratégias, trocar figurinhas sobre atuais ou potenciais beneficiários/empresas que receberam ou receberiam investimentos e aprender com as experiências uns dos outros. Era um grupo informal, e nos reuníamos em conferências do setor ou quando outra viagem coincidisse.

A iniciativa mais formal que fizemos foi contribuir para uma planilha, que a The Stone Family Foundation gentilmente administrou, com os atuais portfólios WASH e os projetos planejados de doações e investimentos de impacto para todas as seis fundações. Isso nos auxiliou a ter uma visão mais clara de quais organizações estávamos cofinanciando e como nossas estratégias estavam sendo postas em prática. Também utilizamos esse fórum para providenciar cofinanciamento de estudos (tais como o relatório SWE descrito acima) e, ocasionalmente, para pedir favores (por exemplo, quando a Vitol compartilhou um relatório de campo sobre um potencial beneficiário em uma parte remota de Gana, que a Osprey decidiu então financiar). Nesses casos, vim a pensar em meus cofinanciadores como colegas nos quais eu podia confiar, como se pertencêssemos à mesma organização. Também aprendi com parceiros reflexivos, estrategicamente orientados, que faziam perguntas difíceis e ofereciam perspectivas perspicazes, algumas das quais se alinhavam com as nossas, outras não.

Dado esse sucesso inicial, convidamos vários outros financiadores WASH para nos encontrar em Haia para uma avaliação do interesse em expandir nosso grupo. Esse encontro correu bem, então levamos o conceito adiante. O envolvimento resultou no lançamento de um grupo ampliado e um tanto formalizado de financiadores WASH em junho de 2020, que incluía 18 membros – os seis membros

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originais e 12 novos integrantes. Desde essa data, sob a orientação de um coordenador em tempo parcial baseado em Londres, realizamos muitos encontros virtuais sobre tópicos que vão desde o que a mudança de sistemas significa no setor WASH até administração de higiene menstrual e mudança climática. O coordenador também supervisionou o desenvolvimento de uma base de dados online com informações sobre todas as nossas doações e investimentos existentes ou potenciais, com análises sobre cofinanciamentos e alinhamentos estratégicos. A partir de junho de 2022, o grupo cresceu para 26 membros, que na maioria participam ativamente dos encontros para compartilhar estratégias e sessões de aprendizagem. Com base nesses encontros, um financiador chegou a convencer seu conselho diretor a fazer um deslocamento estratégico no sentido de financiar mudança de sistemas. Esse é apenas um dos sinais que indicam que estamos expandindo nossa influência junto a outros financiadores WASH e aprendendo com eles.

7. Mudando o Debate

A viagem que Bill e eu, juntamente com Lauren, fizemos a Haia em março de 2019 foi muito produtiva. Depois de nos encontrarmos com os financiadores WASH, comparecemos aos três dias do simpósio All Systems Go. Essa conferência concentrou-se na mudança de sistemas no setor WASH e foi organizada pela IRC WASH (IRC), uma das beneficiárias da mudança de sistemas da Osprey e membro fundador do centro WASH Agenda for Change.

Enquanto voltávamos para o hotel após o encerramento da sessão, perguntei a Bill: “O que achou da conferência?”.

“Eles fizeram um ótimo trabalho”, ele respondeu. “Tanto os temas e tópicos da sessão quanto os oradores refletiram muito pensamento e muita preparação. Minha única queixa foi de que muitas vezes eu queria comparecer a mais de uma sessão ao mesmo tempo.”

“Concordo”, observei. “Mas esse é um bom problema de se ter. Muitas das sessões a que assisti fizeram o campo avançar, e esse é o maior elogio que posso fazer a uma conferência. Penso que boa parte desse sucesso foi devido a como a IRC a organizou: eles trabalharam com 12 outras ONGs WASH como copatrocinadoras para escolher os temas da conferência e preparar as sessões.”

“Bem, essa abordagem claramente deu resultados”, reconheceu Bill.

A conversa me fez lembrar de outro diálogo que tive 30 anos atrás, quando um de meus mentores, Shinji Asanuma, deixou uma posição sênior em um banco de investimentos em Tóquio para voltar ao Banco Mundial. Shinji havia iniciado sua carreira ali várias décadas antes e estava retornando como administrador sênior. Perguntei a Shinji o que ele planejava fazer em seu novo cargo.

“Louis, algumas pessoas administram projetos”, ele explicou. “Outras administram pessoas. Quero administrar ideias.” Foi essa a minha introdução à alavancagem conceitual, o uso de novos ou aperfeiçoados meios de pensar sobre um importante desafio para alterar fundamentalmente o modo como este é abordado.

Muitos anos depois, tive a oportunidade de ver essa abordagem testada em escala. Uma colega minha na Gates Foundation, Rachel Cardone, desenvolveu duas grandes doações com a IRC (diga-se que integrei mais tarde o conselho diretor da IRC, bem depois de

ter saído da Gates Foundation). Uma das doações demonstrava o conceito de entrega de serviço sustentável: em vez de procurar simplesmente abrir mais poços ou construir mais latrinas, esse aporte definia o sucesso como garantir que famílias e comunidades tivessem serviços WASH sustentáveis. Essa não foi a única iniciativa a focalizar na nova definição de sucesso para o setor WASH, mas revelou-se altamente influente devido à estratégia da IRC de incentivar outros participantes – de governos a doadores internacionais e agências das Nações Unidas – a adotar a abordagem.

O segundo subsídio do IRC desenvolveu e testou o conceito de custos com tudo incluído, pelo ciclo de vida, dos serviços WASH, o que envolve levar em conta: custos do capital inicial; custos da operação em andamento; custos periódicos de aumento de capital; e custos para regular o setor. Esse método contrastava em muito com a abordagem convencional de considerar apenas os custos de construção do capital. Também nesse caso, a IRC promoveu o novo meio de pensar por todo o setor.

Ambas as iniciativas ajudaram a modificar o debate no setor WASH ao redefinir o que significa o sucesso (serviços sustentáveis) e o que é necessário para atingi-lo (custos abrangentes). Sem dúvida, é mais fácil apoiar esse tipo de esforço com os recursos e o nome mundialmente reconhecido da Gates Foundation. No entanto, financiadores menores também encontram oportunidades de aplicar a alavancagem conceitual para modificar o pensamento e as práticas do setor como um todo. Por exemplo, a Osprey batalhou incansavelmente pela mudança de sistemas como o meio para alcançar serviços WASH sustentáveis. Temos sido também um ávido financiador e um impulsionador verbal da iniciativa Uptime, que, a nosso ver, está mudando fundamentalmente o debate sobre serviços de água no meio rural. A Uptime desenvolveu e implementou uma abordagem baseada em resultados pela qual os fornecedores de serviços de água no campo recebem pagamento suplementar apenas se alcançarem determinados critérios de desempenho previamente estabelecidos, tais como ter água disponível ao menos 29 dias por mês. Apoiar tais inovações pode alcançar impactos de grande alcance, que melhoram o modo pelo qual serviços básicos são entregues e financiados.

Maximizando Efeitos Catalisadores

A Osprey percorreu uma longa distância desde que Bill e eu tivemos aquele primeiro encontro em um café da manhã há mais de nove anos. Os princípios e valores orientadores que motivaram a decisão da família de Clarke de criar a fundação não tinham mudado, mas as estratégias e as abordagens que usamos para materializar aquela visão se deslocaram para maximizar o efeito catalisador de nosso financiamento e de nossas pessoas.

Esperamos seguir utilizando as técnicas aqui descritas, descobrir outras novas e continuar a aprender com os nossos beneficiários de financiamentos e outros financiadores e parceiros. Quanto melhor fizermos isso, maior será a eficácia que alcançaremos no desafio de fornecer serviços básicos para aqueles que mais necessitam deles. n

Notas

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1 Ver, por exemplo, Collective Impact Forum, When Collective Impact Has an Impact [Fórum Impacto Coletivo, Quando o impacto coletivo tem impacto], 2015.

Publicamos ideias originais e inovadoras sobre os mais diversos desafios sociais, para que pessoas e organizações possam se inspirar e aplicá-las em contextos variados.

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Do Discurso Sustentável à Prática de Greenwashing

Ilustração de James

Pesquisa sobre relatórios de sustentabilidade de algumas das maiores companhias do mundo revelou informações enganosas, confusas e distorções. A gestão sênior e os métodos de auditoria e confiabilidade precisam melhorar para evitar casos de empresas que camuflam ou mascaram os impactos ambientais de suas atividades.

Asustentabilidade cresceu rapidamente na agenda empresarial global. Um número crescente de stakeholders, incluindo os acionistas, concorda que as questões relacionadas ao tema podem representar riscos sérios aos negócios e, portanto, exigem uma gestão eficiente. A crise climática, pandemia e conflitos geopolíticos aceleram ainda mais essa agenda e expõem vulnerabilidades nas cadeias de suprimentos, o que ressalta a necessidade de maior resiliência.

Nesse contexto, crescem as preocupações sobre a qualidade e confiabilidade das informações relacionadas às questões ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) que as organizações empresariais coletam e relatam. Os stakeholders querem saber se as empresas estão suficientemente preocupadas com a sustentabilidade para garantir transparência e precisão. Diante disso, aumentou a demanda por verificação independente por meio de assegurações para dar credibilidade aos dados de sustentabilidade das companhias. Essas revisões externas abrem espaço para um mercado vasto e lucrativo de auditoria das informações sobre sustentabilidade.

Embora as expectativas sejam altas, sabemos pouco sobre a efetividade das práticas atuais da auditoria da sustentabilidade. Para lidar com essa falta de conhecimento, nos reunimos para criar uma linha de pesquisa dentro da Oxford Rethinking Performance Initiative (Iniciativa de Reformulação de Desempenho – ORP, na sigla em inglês).

Fundada em 2020 na Saïd Business School da Oxford University, a ORP é um consórcio de pesquisa que visa promover medidas de performance mais holísticas.

No começo de 2021, iniciamos um estudo abrangente sobre as práticas de asseguração de sustentabilidade nas cem companhias indexadas pelo Financial Times Stock Exchange (FTSE) de 2020 e 2021, o índice do mercado de ações do Financial Times. No início de 2021, começamos a coletar e analisar dados dos relatórios de sustentabilidade mais recentes no site das empresas, produzidos durante 2020 e 2021. Em geral, eles coincidiam com o encerramento do ano fiscal. A partir desses relatórios públicos, disponíveis na internet, montamos e examinamos um conjunto de dados abrangentes de informação auditada e publicada por essas companhias. Os primeiros achados foram publicados em uma versão preliminar na Social Science Research Network e um segundo estudo, que inclui uma análise comparativa internacional, ainda está em andamento. Não imaginávamos que nosso esforço revelaria deficiências alarmantes nas mensurações, relatórios, auditorias e assegurações. Apesar das declarações ousadas das companhias sobre valores e comprometimento com o ESG, suas práticas não eram suficientes. Embora organizações de alto nível se esforçassem para assumir a posição de líderes nesse espaço e se envolvessem em retórica ostensiva e ambiciosa, seus relatórios eram em geral ambíguos ou

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enigmáticos e as assegurações correspondentes, fracas. Para sustentar suas declarações ESG com relatórios confiáveis e assegurações robustas, elas vão precisar de melhores incentivos associados a fiscalização mais rigorosa.

O Benefício da Dúvida

Auditoria e asseguração desempenham papel vital quando se fala em accountability e confiança corporativa. O objetivo das auditorias financeiras é fornecer uma verificação razoável de que as declarações financeiras estão isentas de distorção material. A maioria dos órgãos de competência legal exige a asseguração dos relatórios financeiros. Em compensação, auditoria e asseguração de informação não financeira normalmente não são obrigatórias. O mercado de asseguração de sustentabilidade vem crescendo continuamente nos últimos anos. Hoje, de acordo com a Federação Internacional de Contadores (Ifac, na sigla em inglês),1 abrange mais da metade das companhias do mundo todo.

Essa tendência se deve especificamente à crescente pressão do investidor e das regulamentações. Em 2019, uma pesquisa da McKinsey revelou que, para 97% dos investidores entrevistados, a divulgação da sustentabilidade deve ser assegurada. E em janeiro de 2022, a Aviva Investors comunicou a 1.500 companhias de 30 países que, a partir daquele momento, todas elas deveriam enviar auditorias externas anuais sobre seus relatórios climáticos. Por parte das regulamentações, a nova Diretiva para Relatórios de Sustentabilidade Corporativa da União Europeia (CSRD, na sigla em inglês), que entrará em vigor a partir de 2023, exigirá explicitamente a asseguração limitada de informação de sustentabilidade.

Quem, então, colherá os benefícios desse mercado em ascensão? No Reino Unido, cerca de metade das auditorias de sustentabilidade são feitas pelas Big Four, as quatro maiores empresas contábeis (Deloitte, PricewaterhouseCoopers, KPMG e Ernst & Young), enquanto as demais por empresas especializadas em consultoria ambiental ou sustentabilidade (por exemplo, Bureau Veritas, Corporate Citizenship, Carbon Trust). Globalmente, as Big Four atendem a mais de 60% do mercado.

Quando começamos a investigar a informação pública sobre asseguração de sustentabilidade para coletar informação detalhada, observamos uma narrativa de promessas ambiciosas. A KPMG diz que seus serviços “ajudam a inspirar confiança nas decisões importantes que os gestores tomam em nome de uma organização” e a PwC alega aumentar a “credibilidade das informações divulgadas”. A francesa Bureau Veritas, especializada em inspeções e certificações, oferece auditoria em sustentabilidade e promete “proteger a reputação da companhia”.

O que descobrimos desmente essas afirmações. Nossa prospecção revelou poucas evidências de boa-fé das companhias. Na verdade, percebemos que era extremamente difícil localizar as declarações de verificação, quanto mais obter o que elas consideravam um relatório de sustentabilidade. Em 73 das cem empresas do índice do FTSE que solicitaram assegurações em 2020 ou 2021, registramos dez diferentes sinônimos para o conceito de relatório de sustentabilidade e localizamos as declarações de asseguração em 16 locais diferentes nessas assegurações. Apesar de não estarmos satisfeitos com as declarações em si, também queríamos examinar

College,

os dados subjacentes. Em casos extremos, precisamos mergulhar em, ao menos, sete diferentes bases de dados, anexos, e relatórios para encontrar a informação necessária.

Várias vezes, nossa coleta de dados suscitou mais perguntas do que nos forneceu respostas. No início, consideramos que lacunas óbvias ou distorções deviam ser erros dos relatórios. Imaginamos, talvez ingenuamente, que grandes companhias dispunham de vastos recursos dedicados ao processo de coletar, relatar e assegurar informação relacionada à sustentabilidade. Escrevemos para várias delas em busca de explicações e correções. Algumas mantiveram contato conosco. Outras nunca responderam. As respostas que recebemos mostravam uma impressionante falta de receptividade, expondo inconsistências e erros, processos fragmentados e ignorância dos procedimentos relatados.

Os exemplos a seguir refletem as práticas de uma grande variedade de organizações, algumas fundadas nos últimos 20 anos, outras com até 166 anos. Estão sediadas no Reino Unido e na Europa e representam setores diversos, mas têm dois aspectos em comum: todas são grandes, estão entre as cem companhias listadas pelo FTSE que fornecem alguma forma de ESG ou de relatório de sustentabilidade e sua asseguração desses relatórios levantou bandeiras vermelhas.

Três Formas de Parecer Sustentável

A auditoria e a asseguração podem e devem melhorar a divulgação relacionada à sustentabilidade. No entanto, na sua forma atual, a prática, ao contrário, muitas vezes cria dúvida e confusão em um espaço já extremamente desorganizado. Relatórios que prometem verificar práticas de sustentabilidade, mas que as corroem em vez de afirmá-las, no final são somente uma forma de greenwashing

As três estratégias de greenwashing mais comuns que identificamos foram declarações equivocadas, comunicação confusa e distorções.

Declarações Equivocadas | O que seria razoável esperar em uma declaração de asseguração? Verdade seja dita, esses relatórios – até os de auditoria financeira – não necessariamente refletem todo o trabalho dedicado à revisão externa de dados, metodologia, etc. Desejaríamos entender minimamente o que foi analisado na asseguração, como a análise foi feita, os padrões aplicados, o que o processo de asseguração encontrou e, idealmente, como a empresa poderia melhorar em resposta à informação analisada.

As declarações que examinamos foram decepcionantes. Dependendo da complexidade da organização, os relatórios de auditoria financeira costumam ter de cinco a vinte páginas. No entanto, encontramos pouquíssimos casos em que os de sustentabilidade tinham mais de duas páginas. Muitas vezes, toda a informação relevante sobre a verificação independente das métricas de sustentabilidade se resumia a uma única

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página. Porém, mais importante DONNA CARMICHAEL faz doutorado em sociologia financeira na London School of Economics and Political Science, na Inglaterra. Ela estuda o papel dos investidores e da governança corporativa para promover sistemas de sustentabilidade e igualdade. KAZBI SOONAWALLA é pesquisadora sênior de contabilidade na Saïd Business School e professora adjunta de gestão no Keble da Oxford University. Sua pesquisa foca no mercado de capitais, relatórios financeiros e divulgação, governança, sustentabilidade e controle de gestão. JUDITH C. STROEHLE é professora assistente de sustentabilidade e governança na University of St. Gallen, na Suíça. Juntamente com colegas, ela criou em 2020 a Oxford Rethinking Performance Initiative, na Oxford University.

é que era comum os auditores relatarem que suas informações relacionadas à asseguração da sustentabilidade tinham um escopo “limitado” – o que significava ausência de evidências flagrantes de fraude. Ao contrário dos auditores financeiros, os de sustentabilidade não asseguravam que a informação era verdadeira e correta dentro de um limite razoável. Uma asseguração razoável requer que a empresa de asseguração obtenha dados suficientes para formar uma opinião positiva, de forma similar a uma auditoria de declaração financeira. É necessário fazer uma análise mais profunda dos dados e processos que geraram os dados para se ter uma asseguração razoável. Em vez de fornecer uma declaração negativa, como na asseguração limitada, o segurador emite um parecer sobre se as métricas de sustentabilidade estão completas e precisas com base nos critérios especificados. Os custos para obter essa asseguração são muito menores do que para a asseguração razoável. A credibilidade das práticas atuais de asseguração de sustentabilidade não pode se basear nesse nível limitado de asseguração. A asseguração razoável não é a regra, embora devesse ser.

No entanto, essa tendência admite exceções e descobrimos que algumas companhias pediram a seus auditores para elevar o nível de asseguração para “razoável”. Somente algumas companhias entre as cem do FTSE ampliaram seus esforços e investimentos para conseguir uma asseguração razoável para (algumas) de suas informações relacionadas à sustentabilidade.

Um exemplo é a 3i Group, multinacional de participação privada e uma empresa de capital de risco sediada em Londres. Segundo seu relatório de sustentabilidade de 2020, “as emissões foram verificadas até o nível de asseguração razoável pela Carbon Intelligence de acordo com os padrões ISO 14064-3”. Ou seja, o relatório satisfez os padrões estabelecidos pela Organização Internacional de Padronização (ISO) na Suíça no que se refere a emissões globalmente reconhecidas de gases de efeito estufa (GHG, na sigla em inglês). Mas cruzamos essa informação com a carta de asseguração de 2020 da Carbon Intelligence, que afirmava que “a verificação independente de emissões equivalentes direta ou indireta de dióxido de carbono [era]... até um nível limitado de asseguração”. Não sabemos se essa discrepância ocorreu por um erro de inconsistência ou se foi uma flagrante desinformação da companhia. No entanto, sabe-se que o erro se repetiu no relatório de 2021. No final, ou a 3i estava tentando obter créditos indevidos para uma asseguração razoável ou repetindo o erro numa operação “copiar e colar” do relatório de 2020. Verificamos os relatórios mais recentes divulgados pela 3i e vimos que a inconsistência havia sido corrigida, e o relatório de sustentabilidade de 2022 agora afirma que a asseguração limitada foi obtida.

Encontramos outros exemplos de inconsistências e conceitos equivocados relacionados ao que as companhias entendem por asseguração externa. A United Utilities, uma das maiores companhias de fornecimento de água do Reino Unido listada nas cem do FTSE, afirmou que tinha assegurado seu relatório Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (TCFD, na sigla em inglês). O Financial Stability Board (Conselho de Estabilidade Financeira), um órgão internacional que monitora o sistema financeiro global, criou a força-tarefa em 2015 para ajudar a fortalecer e proteger os mercados financeiros globais de riscos sistemáticos como as mudanças climáticas. Quando examinamos os dados con-

tidos do relatório TCFD da United Utilities, verificamos que, na verdade, ele não estava coberto por aquela asseguração. Quando perguntamos sobre a divergência, um porta-voz da empresa respondeu: “Depende do que chamamos de asseguração”. A resposta seguia explicando que essa asseguração era “efetivamente de divulgação e não sobre dados de asseguração”, insinuando que a divulgação estava assegurada, mas os dados não. Não ficou claro para nós como exatamente a divulgação podia estar assegurada sem que os dados também estivessem. Tal como foi apresentada, a informação poderia levar os leitores a pressupor que os dados também estavam assegurados, quando, na verdade, eles não tinham sido verificados independentemente.

Outro exemplo de relatório de asseguração enganosa foi da Avast, multinacional de segurança cibernética de softwares da República Tcheca. Em seu relatório anual de 2020, a companhia declarou ter procurado a Enviros, uma consultoria do Reino Unido especializada em geociências e que atende a empresas de energia, para verificar suas emissões: “A Avast encomendou uma auditoria externa para analisar nossos cálculos de emissões anteriores, investigar se os principais causadores do impacto ambiental estavam sendo capturados acuradamente e fornecer recomendações adicionais para reduzir nossas emissões”. Mas nós examinamos essa afirmação e descobrimos que a Avast não incluiu a carta de asseguração da Enviros. Normalmente esse documento acompanha as medidas de GHG divulgadas nos relatórios das empresas e ajuda a aumentar a confiança de que essas métricas foram verificadas de forma independente. Quando pedimos mais detalhes, fomos informados que a carta de asseguração era confidencial.

Comunicação confusa | Nós coletamos uma enorme massa de dados para extrair os indicadores supostamente auditáveis de cada asseguração. Para isso, tivemos de identificar o que as empresas chamam “informação selecionada” que define esses indicadores e serve como base para a asseguração de sustentabilidade. O conceito de informação selecionada levanta sérias dúvidas sobre vieses, uma vez que a gestão escolhe à vontade que métricas estão ou não sujeitas a asseguração independente, muitas vezes sem conexão óbvia com a materialidade das métricas divulgadas. Mas, além desse problema, descobrimos que, muitas vezes, é até impossível identificar do que tratam essas informações selecionadas. Muitas empresas se valem do obscurecimento para exibir um determinado comprometimento que tornou a interpretação dos dados ainda mais difícil.

Veja o caso da Experian, por exemplo. A multinacional irlandesa-americana de gestão de informações e banco de dados ensina como não se deve relatar a informação de sustentabilidade. A Experian contratou a PwC para realizar asseguração limitada de seus relatórios de métricas e apresentou o que seria uma lista detalhada e útil de suas medidas de desempenho dos negócios sustentáveis na seção anterior à carta de asseguração. A Experian apresentou essa lista no Relatório de Negócios Sustentáveis de 2021. No entanto, ao tentar entender a asseguração externa dessas medidas descobrimos, em letras miúdas, que somente as métricas listadas com um pequeno sobrescrito “∆” eram verificadas pela PwC. Das inúmeras métricas relatadas ao longo de onze páginas que cobriam tópicos como composição do Conselho, informação aos funcionários, medidas sociais, emissões de carbono e utilização de energia, somente quatro medidas eram asseguradas de forma independente. Em

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suma, não era possível saber com clareza quais medidas estavam incluídas na asseguração.

A Taylor Wimpey, empresa de construção civil do Reino Unido, utilizou um obscurecimento similar. O relatório de sustentabilidade de 2020 da companhia continha uma lista enorme de métricas, e o documento de asseguração externa era da The Carbon Trust, uma consultoria britânica dedicada a ajudar empresas a zerar suas emissões. Embora a Taylor Wimpey relatasse cerca de cem métricas de desempenho não financeiro, somente três tinham asseguração externa: emissões de GHG Escopo 1 e Escopo 2 e dados de energia. A empresa não retornou nosso contato.

Por incrível que pareça, a equipe nos enviou uma cópia da declaração de asseguração. No entanto, ao lermos com mais atenção, descobrimos na carta de asseguração que “esta Declaração de Asseguração deve ser lida à luz do documento de pegada ambiental”. Mas esse documento não foi incluído nas comunicações que tivemos e fomos informados de que a companhia “não o compartilharia publicamente porque continha dados internos”. O grupo Admiral se ofereceu para responder quaisquer dúvidas que tivéssemos sobre o documento da pegada ambiental, mas como fazer perguntas sobre um documento que não tínhamos visto? Esse caso serve de alerta para uma questão: qual o real nível de transparência dessas assegurações e o que os investidores podem esperar delas?

Distorções | Embora essa tática não seja tecnicamente uma falha de comunicação, todos nós sabemos que o que não é dito geralmente é muito mais importante do que o que é dito. Nossa coleta de dados revelou práticas de divulgação que omitiram informações relevantes. Acreditamos que, ao menos em alguns casos, as omissões foram intencionais para desviar a atenção de uma parte indesejável da história. Também constatamos que houve muita displicência e várias perguntas que fizemos foram ignoradas.

A Severn Trent, uma companhia de fornecimento de água com sede em Coventry, Reino Unido, se recusou a nos responder. Na página 196 do Relatório Anual de Desempenho de 2021, a companhia forneceu as métricas de emissões de GHG e afirmou que uma empresa chamada Jacobs havia realizado a asseguração externa dos dados e processos GHG. De fato, na página 35 do relatório, a Severn Trent incluiu a carta de asseguração da Jacobs. No entanto, o conteúdo e o escopo da carta eram incompreensíveis. Primeiro, a carta não informava em que métricas a Jacobs havia baseado sua asseguração independente. Segundo, não encontramos informação sobre se a asseguração foi obtida na forma limitada ou razoável. Terceiro, não conseguimos identificar nenhuma informação sobre as estruturas, critérios ou benchmarking usados no processo de asseguração.

Entramos em contato com a companhia para confirmar se a Jacobs havia feito a asseguração independente de todas as métricas da página 196. Até outubro de 2022 não tínhamos recebido nenhuma resposta.

Em outros casos nos foram negadas informações sobre justificativas e argumentos. Quando analisamos a Smith & Nephew, que

fabrica equipamentos médicos no Reino Unido, observamos que ela não havia realizado asseguração externa desde 2017. Escrevemos para a empresa e perguntamos se essa informação era correta e, se fosse, por que isso tinha ocorrido. Nós também indagamos se havia a intenção de retomar a verificação externa das métricas de sustentabilidade no futuro. Um porta-voz confirmou que a última verificação externa tinha sido de fato em 2017 e, não mostrando nenhum interesse em voltar a tratar desse assunto conosco no futuro, respondeu apenas: “Não comentamos decisões específicas como essa, mas garantimos rigorosamente a precisão e as declarações de nosso relatório de sustentabilidade. Estou certo de que consideraremos a possibilidade de uma verificação independente novamente num futuro próximo”.

Nem Tudo Está Perdido

Poderíamos incluir vários relatos mais confusos e até irritantes sobre nossa experiência na coleta de dados, mas não queremos dar a impressão de que a asseguração da sustentabilidade não vale a pena. Apesar de os exemplos negativos terem sido tão intrigantes e desencorajadores, encontramos alguns casos positivos e encora-

jadores. Algumas cartas de asseguração foram de fato elucidativas e algumas companhias responderam às nossas dúvidas rápida e integralmente. A Johnson Matthey, multinacional britânica, fabricante de produtos químicos e tecnologias sustentáveis, forneceu um relatório anual integrado que incluía tanto dados financeiros como de sustentabilidade em um único documento. O relatório era bem organizado e de fácil navegação. A Avieco, uma consultoria britânica de sustentabilidade que faz parte da Accenture, realizou a asseguração externa e sua carta incluía uma lista detalhada de atividades de asseguração, uma declaração clara da materialidade, métricas-chave apresentadas em suas tabelas de fácil compreensão e várias recomendações para melhorias.

Como observamos anteriormente, os relatórios das companhias e suas empresas de asseguração não financeira em geral ignoram ou minimizam as métricas detalhadas de sustentabilidade exigidas para garantir a confiança do público. Muitas empresas realizam asseguração e divulgação externa somente de métricas escolhidas a dedo pela gestão, e não as mais relevantes para as operações da companhia e, sobretudo, para os stakeholders. Para mérito da Johnson Matthey, a consultoria externa de sustentabilidade contratada fez uma rigorosa asseguração independente para identificar as métricas que seriam relevantes para vários stakeholders internos e externos, incluindo funcionários, clientes, investidores,

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Muitas companhias realizam a asseguração e divulgação externa somente das métricas escolhidas a dedo pela gestão e não daquelas que são relevantes para as operações da companhia.

outros. Esse esforço produziu um excelente mapa ESG baseado em temas e métricas sugeridos pelos grupos de stakeholders como prioridades na sustentabilidade. Embora não seja uma tarefa simples ou isenta de risco, esse processo mostra o grande envolvimento dos stakeholders, decisivo para o desenvolvimento de metas relevantes de sustentabilidade material e alvos não restritos pelos caprichos da gestão.

Outro exemplo excelente foi a Mondi, multinacional que produz papel e embalagens, e seu relatório anual bem estruturado, compreensível e integrado. O relatório de asseguração de sustentabilidade da Mondi, concluído pela empresa de asseguração independente ERM CVS, incluía uma declaração clara de comprometimento, critérios e padrões adotados no relatório. Embora a maioria dos indicadores importantes de desempenho tivessem sido assegurados no nível limitado, a ERM CVS realmente efetuou uma asseguração razoável para algumas métricas ambientais importantes, incluindo emissões de GHG Escopo 1 e Escopo 2, e uso de energia. Da mesma forma que a Johnson Matthey, a Mondi leva muito a sério a participação de todos os stakeholders em sua governança de sustentabilidade e divulgação. O relatório de 2020 de desenvolvimento sustentável da companhia os define como “pessoas, grupos, organizações e parceiros internos e externos interessados em exercer influência ou ser afetado (positiva ou negativamente) pelas decisões, políticas e objetivos de nossos negócios”. Dentro de seu modelo de governança de sustentabilidade, a Mondi implementou uma linha direta para denúncia anônima de irregularidades e reclamações para funcionários, clientes, parceiros e investidores. Esse processo possibilita aos stakeholders relatar qualquer problema relacionado às operações da empresa, como poluição ambiental, questões relacionadas ao RH, violações de saúde e segurança, fraude e corrupção, etc. Todas essas denúncias são investigadas pela auditoria interna e analisadas pelo Conselho. Esse compromisso não é isento de risco, mas inspira maior confiança por dar transparência às operações comerciais e impactos da companhia.

Fazendo Melhor

Para sermos justos, nossos insights nem sempre contam a história toda. Separar a prática da divulgação quase nunca é simples, e as companhias podem estar empregando métodos robustos de medidas internamente, mas mecanismos de divulgação fracos, que não fornecem a devida informação ao leitor. A boa asseguração não é somente responsabilidade da companhia que a procura, mas processos e práticas sólidas e asseguradores e auditores bem informados também são ingredientes necessários.

Esta experiência nos levou a várias conclusões. Primeiro, os fornecedores de informação e auditores/asseguradores utilizam boa parte da linguagem e terminologia enigmáticas da auditoria financeira (como termos “asseguração razoável” ou “limitada”), quase sempre sem as devidas explicações. É preciso que elas deem mais destaque às diferenças entre asseguração de sustentabilidade e auditoria financeira, e como essas disparidades podem exigir diferentes processos, habilidades, linguagem e detalhamento da informação. Os asseguradores precisam criar processos muito mais rigorosos, padronizados e restritivos sobre essas exigências para chegar a uma auditoria confiável para a informação de sustentabilidade.

Segundo, as companhias podem ajudar a melhorar a credibilidade da asseguração de sustentabilidade fornecendo informação mais completa e consistente. No mínimo, cada companhia que se submete à asseguração deve informar quatro itens: 1) que estrutura e metodologia estão sendo usadas para preparar e divulgar a informação; 2) quais informações e métricas são asseguradas independentemente e por quem; 3) se a asseguração é limitada ou razoável; e 4) qualquer informação complementar que possa ajudar a contextualizar a informação acima. Referir-se a informação ausente ou afirmar que é importante sem comprovação compromete significativamente a credibilidade do relatório e da auditoria.

Apesar das tentativas de greenwashing encontradas, continuamos afirmando que a asseguração externa continua sendo uma ferramenta essencial para aumentar a qualidade e a credibilidade da informação relacionada à sustentabilidade e garantir que as companhias atinjam metas concretas de sustentabilidade.

A Maturação do Relatório de Sustentabilidade

“Tudo o que ouvimos são opiniões e não fatos”, escreveu o estoico imperador romano Marco Aurélio. “Tudo o que vemos é uma perspectiva, não a verdade.” Esse ensinamento de quem comandava um império se aplica aos relatórios de sustentabilidade. Enquanto houver espaço para melhorar a criação de padrões de auditoria de sustentabilidade global, a inclusão de dados de impacto social, a adoção ampla de práticas de asseguração razoável (versus limitada), teremos motivos para encarar tudo isso com otimismo. Esforços nacionais e internacionais para melhorar e harmonizar os relatórios e as medidas, como o Conselho de Relatórios Financeiros no Reino Unido, e internacionalmente, como o Conselho Internacional de Padrões de Sustentabilidade da Fundação Internacional de Padronização de Relatórios Financeiros (ISSB, na sigla em inglês), serão úteis para promover uma forma mais consistente de apresentar relatórios. A CSRD exige auditoria de sustentabilidade, o que certamente ajudará a melhorar a experiência dos auditores e os processos – mesmo que seja somente para casos de asseguração limitada. Dispor de exigências e padrões claros vai ajudar as companhias que emitem os relatórios e os auditores a formalizar suas práticas e melhorar sua qualidade. Provavelmente a CSRD também exercerá maior ação reguladora em auditorias da concorrência e de autoridades do mercado que, na melhor das hipóteses, dissuadirão as companhias de usar greenwashing.

Finalmente, os investidores e o público em geral precisam sentir-se confiantes de que a informação fornecida pelas companhias – tanto sobre dados financeiros como de sustentabilidade – seja precisa e confiável. A asseguração externa é uma exigência para os relatórios financeiros das companhias elencadas no FTSE. Acreditamos que o mesmo processo de verificação rigorosa possa ser aplicado aos relatórios de sustentabilidade. Muitas empresas ainda estão dando os primeiros passos e ainda terão um longo caminho a percorrer até atingir a maturidade. n

Nota

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1 Embora o mercado global de serviços de auditoria, em 2020, tenha sido estimado em US$ 217,7 bilhões, não é conhecido o número correspondente para o mercado de asseguração não financeira, em parte devido à sua natureza variada e imprecisa.

O Direito à Desconexão

Por Sabrina Pellerin, Ariane Ollier-Malaterre, Ellen Ernst Kossek, Marie-Colombe Afota, Luc Cousineau, Charles-Étienne Lavoie, Emmanuelle Leon, Barbara Beham, Gabriele Morandin, Marcello Russo, Ameeta Jaga, Jichang Ma, Chang-qin Lu e Xavier Parent-Rocheleau

Ilustração de Matt Chase

A conectividade constante prejudica o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e a saúde mental dos empregados. Uma melhor política trabalhista e uma legislação para o trabalho remoto podem ajudar a atender às necessidades das pessoas e das organizações.

Já há alguns anos, os trabalhos remoto e híbrido têm apresentado resultados paradoxais para a autonomia dos trabalhadores do conhecimento e para o equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional. A conectividade constante dá a eles maior controle sobre onde e quando exercem suas funções, mas confunde os limites entre trabalho e vida. Isso pode resultar em muito mais horas de trabalho do que no escritório e no aumento do estresse dada a incapacidade de se desconectar. Esse paradoxo tornou-se evidente a partir da pandemia de Covid-19, quando o trabalho remoto e o total de horas trabalhadas aumentaram no mundo todo, o que ocasionou a deterioração da saúde mental dos trabalhadores.1

Um número crescente de países, como Canadá, França e Holanda, começou a ocupar-se com as potenciais desvantagens da constante conectividade durante e após o expediente2 e a refletir sobre como preservar a saúde mental e promover o equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal ou que melhorias sociais poderiam resultar de respostas a esses desafios e trazer benefícios duradouros não só aos trabalhadores, mas também a todo o seu entorno.

Algumas medidas visam indivíduos, outras focam em organizações ou populações. Em nível individual, “acordos de flexibilidade” (I-deals), ou “acordos idiossincráticos”, baseiam-se na negociação individualizada para determinar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal e a conectividade para cada trabalhador. Tais acordos são muitas vezes a abordagem mais comum nas organizações. Mas pesquisas mostram que os I-deals apresentam riscos potenciais, como insatisfação dos colegas de trabalho e dificuldades na coordenação da equipe. Além disso, podem minar medidas de flexibilidade equitativas, porque apenas os mais privilegiados conseguem obtê-los.

Em nível organizacional, algumas empresas impõem restrições na comunicação para garantir que as pessoas se desconectem do tra-

balho. Em 2011, a direção da Volkswagen e representantes sindicais assinaram um acordo histórico que bloqueou o acesso a e-mails em smartphones entre 18h15 da tarde e 7h da manhã para funcionários na Alemanha sob contratos negociados por sindicatos. A regra não se aplicava à alta administração. A multinacional alemã de bens industriais e de consumo Henkel estabeleceu uma “anistia de e-mails” durante a semana entre o Natal e o réveillon de 2012, e a francesa Atos anunciou, em 2011, sua intenção de se tornar uma empresa de “zero e-mails” até 2014. Essas abordagens dão aos empregadores e aos representantes sindicais total poder de decisão sobre quando os empregados vão se desconectar e geralmente são implementadas por meio de um software que bloqueia a transmissão de e-mails.

Em nível nacional, governos propuseram leis sobre o direito à desconexão, liberando os trabalhadores de responder comunicações após o expediente. Os benefícios esperados estendem-se do indivíduo à sociedade e têm o potencial de proporcionar maior senso de controle sobre o equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Ter o direito de se desconectar dá às pessoas a liberdade de recusar demandas sem medo de represálias. Também pode reduzir o estresse, o que garante melhor recuperação entre os turnos e ausência de penalidades para aqueles que precisam se desconectar para tratar de assuntos familiares. Esses benefícios podem se estender a filhos e dependentes adultos, que são as partes interessadas invisíveis nas condições de trabalho dos empregados. Por fim, ajudam a reduzir o ônus sobre o sistema de saúde por preservar a saúde mental dos empregados.

França, Espanha, Bélgica e Portugal, entre outros países, adotaram legislações sobre esse direito e o Parlamento Europeu pediu seu amplo reconhecimento como um direito fundamental.

A legislação pioneira da França, de 2017, demonstra como a consagração desse direito pode ajudar a superar os desafios da conectividade constante. Inicialmente, o direito à desconexão era um acordo coletivo

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antes de evoluir para uma lei que deu liberdade de ação significativa aos empregadores. A França estabelece que organizações têm a obrigação legal de negociar com representantes dos empregados a definição de “procedimentos para o pleno exercício pelo empregado do seu direito de desconexão e o estabelecimento pela empresa de mecanismos para regular o uso de ferramentas digitais com vistas a assegurar o respeito aos períodos de descanso e licenças, bem como à vida pessoal e familiar”. A lei assim reconhece porque as demandas e contextos de trabalho variam e a aplicação desse direito na política organizacional precisa ser específica de cada organização.

Além disso, estabelece que organizações com 50 empregados ou mais devem negociar com seus representantes sindicais e elaborar uma política de implementação dentro de determinada organização. Essa política deve garantir que os trabalhadores se beneficiem do tempo de afastamento do trabalho – 11 horas, com algumas exceções – para descansar, tirar férias e contribuir para sua vida pessoal e familiar. Se um acordo sobre uma política formal não puder ser alcançado, as organizações devem, então, trabalhar com representantes sindicais para instituir uma regulamentação que ofereça diretrizes e princípios internos sobre desconexão, bem como treinamento e programas de comunicação para aumentar a conscientização sobre o direito de estar offline.

Essa abordagem tem limites. Embora a lei consagre o direito de desconexão como política de empresas, ela não impõe sanções àquelas que o desrespeitam. E, quando não existem sanções efetivas, o ímpeto para mudanças é baixo. Um estudo de 2021 realizado pela empresa de segurança cibernética Kaspersky, pela empresa de análise Kantar e pela revista L'ADN descobriu que a maioria dos empregadores franceses não instituiu tal política. Consequentemente, a relutância em cumprir a legislação laboral num país com sindicatos fortes e proteções trabalhistas aumenta as dúvidas sobre a eficácia da legislação.

Além disso, essa legislação nacional de desconexão tem como premissa regimes de trabalho ultrapassados, especialmente o tradicional “horário das 9 às 5”. As pessoas hoje em dia costumam trabalhar em grupos virtuais, incluindo equipes em vários fusos horários. A Mastercard estima que 78 milhões de pessoas trabalharão na gig economy 3 global em 2023, e elas dependem de plataformas de internet para planejar e acessar suas próximas tarefas. Regimes de trabalho flexíveis, híbridos, remotos e com mudança de horário foram normalizados durante a pandemia de Covid-19. Portanto, a legislação atual pode não abordar efetivamente essas questões de trabalho remoto e hiperconectividade.

O direito de desconexão pode se tornar uma inovação social e servir como trampolim para o desenvolvimento social positivo? O que pode ser feito para aumentar sua utilidade e aplicabilidade para além do indivíduo no mercado de trabalho atual? Como estudiosos organizacionais da Rede Internacional de Tecnologia, Trabalho e Família (INTWAF, na sigla em inglês), entendemos que os locais de trabalho de hoje e as necessidades dos trabalhadores devem ser considerados, além de beneficiar a sociedade. Defendemos um direito de desconexão efetivo, que funcionaria como uma salvaguarda compartilhada, para alcançar uma reformulação do valor social da conectividade e equilíbrio entre vida profissional e pessoal. O valor criado seria distribuído para diversas partes interessadas em vez de apenas para organizações ou grupos específicos de empregados. Essencialmente, a próxima geração desse direito – o direito de desconexão

Os autores são membros da Rede Internacional de Tecnologia, Trabalho e Família (INTWAF) da School of Management da University of Quebec, em Montreal:

SABRINA PELLERIN é doutoranda em gestão de recursos humanos na University of Quebec.

ARIANE OLLIER-MALATERRE é professora de gestão na University of Quebec e diretora do INTWAF.

ELLEN ERNST KOSSEK é professora emérita Basil S. Turner da Krannert School of Management da Purdue University.

MARIE-COLOMBE AFOTA é professora assistente na School of Industrial Relations da University of Montreal.

LUC COUSINEAU é pós-doutorando na University of Quebec.

CHARLES-ÉTIENNE LAVOIE é doutorando em psicologia do trabalho e organizacional na University of Quebec.

EMMANUELLE LEON é professora associada de gestão de recursos humanos na ESCP Business School, em Paris.

BARBARA BEHAM é professora de psicologia organizacional e gestão transcultural na School of Economics and Law, em Berlim.

GABRIELE MORANDIN é professor de comportamento organizacional no departamento de gestão da Università di Bologna.

MARCELLO RUSSO é professor associado de comportamento organizacional da Università di Bologna e diretor do programa de MBA global na Bologna Business School.

AMEETA JAGA é professora associada de psicologia organizacional na School of Management Studies na University of Cape Town e bolsista não residente no Hutchins Center for African & African American Research na Harvard University.

JICHANG MA é doutorando na School of Psychological and Cognitive Sciences, Peking University.

CHANG-QIN LU é professor pesquisador na School of Psychological and Cognitive Sciences, Peking University.

XAVIER PARENT-ROCHELEAU é professor assistente de gestão de recursos humanos na HEC Montreal.

2.0 – proporcionaria os benefícios de acordos flexíveis (considerando necessidades individuais e preferências), iniciativas organizacionais (adaptando a implementação à cultura e às normas de diversos locais de trabalho) e uma abordagem legal (ampla cobertura para o direito) que promoveria a equidade dentro e entre contextos.

Desconexão 2.0

Equilíbrio entre vida profissional e pessoal é a capacidade de se envolver de forma eficiente e positiva nos papéis de trabalho e vida que são importantes para uma pessoa. 4 Para estruturar o debate sobre a próxima geração do direito de desconexão, portanto, sugerimos três princípios fundamentais: a garantia de acesso a tal direito, a obtenção de um ajuste entre políticas e culturas organizacionais e normas vigentes e o reconhecimento de uma variedade de preferências individuais na elaboração de uma política de desconexão.

PRINCÍPIO 1: Inclusão | Um direito deve ser acessível a todos. Mas muitas leis atuais excluem alguns grupos de empregados desse direito ou não garantem o acesso a ele por causa de restrições ocupacionais. Por exemplo, em 2022 a província de Ontário, no Canadá, aprovou uma legislação que exigia uma política sobre desconexão por escrito para empregadores com 25 empregados ou mais. Trabalhadores de organizações menores ou empregados em empresas sob regulamentação federal estão excluídos, uma vez que a lei se aplica apenas a locais de trabalho regulamentados por províncias.

Outra armadilha de confiar apenas na legislação de desconexão refere-se às lacunas de cobertura de políticas para trabalhadores da economia informal que estão desprotegidos ou menos protegidos pelas leis de trabalho e emprego.

Gerentes de nível mais baixo também enfrentam exclusão em potencial. Embora possam estar incluídos nas políticas, suas funções laborais geralmente envolvem disponibilidade para seus subordinados diretos, o que impossibilita a desconexão. Em Ontário, o direito de desconexão deve incluir todos os empregados, mas o fato de que

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as políticas podem ser concebidas de forma diferente para cada tipo de trabalho também pode promover acesso desigual.

As evidências mostram que os gerentes de nível inferior são particularmente vulneráveis ao conflito entre vida profissional e saúde mental precária. Uma explicação é que ocupam posições contraditórias: seus empregos têm um nível limitado de autoridade formal, mas são supervisionados por superiores na administração. Uma política exequível deve adequar suas demandas de trabalho e garantir-lhes algum grau de desconexão. De outro modo, podem sofrer frustração por terem de implementar um direito para seus subordinados, embora não se beneficiem dele.

A pesquisa de um membro do INTWAF revela que os gerentes de primeira linha se sentem em desvantagem quando percebem que suas próprias condições de trabalho são menos generosas ou equitativas que as condições que devem oferecer aos seus subordinados, como supervisão e a compensação por horas extras. Tais lacunas podem levar à rotatividade e enfraquecer a capacidade de uma organização de atrair talentos.

Além disso, mesmo que estejam cobertos pela legislação de desconexão, alguns trabalhadores podem não ser capazes de colher seus benefícios. Aqueles empregados na linha de frente do setor de serviços, como enfermeiros e outros profissionais de saúde, estão sujeitos

restrições. Ambas as abordagens, no entanto, vão funcionar apenas se as organizações criarem uma cultura que apoie a desconexão, em lugar de penalizar trabalhadores que dela tirem vantagem. As expectativas culturais em torno do trabalho e o vício em tecnologia digital tendem a complicar a eficácia de tal legislação de desconexão.

As expectativas culturais e a dependência digital se somaram para estabelecer normas aceitáveis de disponibilidade estendida após o expediente, nos fins de semana e nas férias. Até mesmo quem trabalha de forma remota sente a necessidade de compensar a falta de tempo presencial com maior percentual de respostas a mensagens de trabalho. Quando percebem que sua organização valoriza a integração da vida profissional – como levar trabalho para casa –, essas pessoas se revelam menos capazes de se desligar do trabalho, mesmo se preferissem fazê-lo.

No entanto, a política de desconexão será eficaz somente se for consistente com a cultura organizacional e as expectativas implícitas sobre disponibilidade e desempenho. Caso contrário, uma massa crítica de trabalhadores pode não atender às novas normas. Portanto, se as normas de uma organização valorizam longas horas de trabalho e disponibilidade em todos os momentos, a política de desconexão deve ser incorporada a um programa de mudança organizacional muito mais amplo em direção ao trabalho sustentável.6 Embora a política vise mudar a cultura de trabalho das organizações, pode não ser capaz de promovê-lo sem mudanças culturais e de mentalidade substanciais.

PRINCÍPIO 3: Preferência Pessoal | Por fim, o direito de desconexão está sujeito à preferência e à situação pessoal. Ao deliberarem sobre desconexão, os trabalhadores normalmente têm ao menos uma das seguintes perspectivas em mente:

a frequentes mudanças de horários e turnos, especialmente se forem obrigados a estar de plantão e disponíveis a qualquer momento em caso de emergência – e isso torna quase impossível para eles se desconectarem sem temer uma penalidade ou sentir a culpa de saber que os pacientes não estão sendo cuidados.

Em suma, a diversidade do trabalho em todo o mundo mostra que o direito à desconexão não é universal, nem pode ser aplicado igual ou uniformemente. Essa discrepância exige duas melhorias: em primeiro lugar, os esforços legislativos não devem visar exclusivamente trabalhadores com carteira assinada em grandes organizações; em segundo, a legislação deve ser complementada com iniciativas organizacionais e outras iniciativas coletivas para proteger esse direito para todos os trabalhadores.

PRINCÍPIO 2: Alinhamento Cultural | A implementação do direito de desconexão pode variar amplamente, dependendo dos contextos e culturas organizacionais. Um relatório da Eurofound,5 de 2021, examinou uma série de práticas de desconexão adotadas por organizações, incluindo regras rígidas como impedir a troca de e-mails fora da jornada de trabalho. No entanto, as mídias sociais e outras ferramentas de mensagens instantâneas podem tornar irrelevantes ou insuficientes tais iniciativas organizacionais para restringir a tecnologia. Outras práticas focam na educação dos trabalhadores e gerentes sobre os benefícios da desconexão, em vez de imporem

“Quero me desconectar porque vejo benefícios para mim.” | Se os trabalhadores constatam um benefício pessoal na desconexão, eles podem considerar esse direito como desejável. Um estudo de 2019 feito por membros da INTWAF identificou quatro motivações que impulsionam a decisão individual de desconectar-se: melhorar o desempenho da função (por exemplo, melhorar o foco tanto no trabalho quanto fora dele); estabelecer uma filosofia digital pessoal (por exemplo, controlar seus dispositivos em vez de ser governado por eles); minimizar comportamentos sociais indesejáveis (por exemplo, evitar tratar os outros desrespeitosamente); e proteger as próprias prioridades (por exemplo, estar disponível para os familiares).

Curiosamente, esse estudo demonstrou que o desejo de se desconectar decorre de uma necessidade não apenas de obter controle sobre tempo e espaço pessoais, como também de recuperar o foco e a concentração no trabalho. Assim, a desconexão pode ser vantajosa tanto para trabalhadores como para organizações.

Dessa maneira, as políticas organizacionais que restringem as expectativas sobre disponibilidade e conectividade podem dar aos empregados espaço para se desconectarem. Essas políticas ainda podem desfazer o estereótipo do trabalhador ideal que está sempre disponível e disposto a priorizar o trabalho sobre sua vida pessoal. Por exemplo, uma política que determina ser aceitável ou mesmo ser encorajado não responder a e-mails nos fins de semana pode promover novas normas que “reimaginam” o trabalhador ideal como alguém que pode tirar folgas sem parecer pouco profissional ou improdutivo.

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A política de desconexão só será eficaz se for consistente com a cultura existente e as expectativas implícitas sobre disponibilidade e desempenho.

“Desconectei, mas ainda penso no trabalho.” | Algumas organizações implementaram o direito de desconexão ao tornar os e-mails inacessíveis para empregados após o horário comercial, para que estes pudessem restabelecer limites entre trabalho e vida pessoal.7

As evidências mostram que reduzir as demandas de comunicação pode diminuir as interrupções do tempo pessoal. No entanto, simplesmente restringir o acesso ao trabalho pode não impedir que os empregados sofram estresse se as cargas de trabalho forem altas e/ou se os locais de trabalho ainda esperarem respostas rápidas como prova de que os empregados estão trabalhando. A impossibilidade percebida de desligar-se do trabalho é uma questão pouco abordada nas discussões sobre desconexão.

Além disso, a incerteza de um empregado sobre a forma como um empregador pode reagir a sua demora em responder a uma mensagem instantânea ou a um e-mail pode levar a sentimentos de insegurança no trabalho. Uma política poderia enfrentar esse desafio determinando com clareza e mantendo as expectativas sobre a disponibilidade dos empregados e a gestão de cargas de trabalho individuais. O apoio organizacional ao direito de se desconectar seria delinear expectativas sobre, por exemplo, o percentual de resposta para cada e-mail e a flexibilidade sobre a produção ou desempenho do trabalho quando a carga de trabalho é excepcionalmente alta.

“Não quero ser forçado a me desconectar porque preciso de flexibilidade para concluir o trabalho depois do expediente.” | Quando o direito de desconexão se torna uma determinação, isso prejudica o arbítrio dos empregados de escolherem se desconectar. As organizações que optam por uma abordagem que obriga a desconexão – por exemplo, desativando o e-mail após o expediente – retiram dos empregados o arbítrio ao exercício desse direito.

E se os horários dos trabalhadores, por exemplo, não coincidirem com o tradicional expediente das 9 às 5? Ou se eles preferirem misturar trabalho e vida, em vez de segmentá-los de acordo com a política de uma organização? A incompatibilidade entre dispositivos legais que pressionam os trabalhadores a fazer uma segmentação entre trabalho e vida e o gerenciamento dos limites reais de suas preferências pode causar problemas, incluindo menor satisfação e comprometimento organizacional.8

Alguns empregados cujos horários ideais para trabalhar não se alinham com o dia de trabalho das 9 às 5 podem achar difícil cumprir a desconexão obrigatória.

Equilibrar cuidados infantis e trabalho tornou-se particularmente desafiador durante a pandemia de Covid-19, quando os lockdowns forçaram escolas e creches a fechar e pais – sobretudo mulheres, que carregam o peso do cuidado infantil e do trabalho de cuidado em geral – a gerenciar, cuidar e até mesmo ensinar seus filhos durante a jornada de trabalho. Como resultado, um número significativo de mulheres teve de largar o emprego em parte por causa de suas responsabilidades com os filhos.

Essas interseções entre trabalho e vida são úteis quando reconsideramos o que queremos dizer com desconexão. Será que significa impor barreiras tecnológicas que impossibilitam o acesso noturno ao e-mail? Será uma política geral que se aplica a todos os membros

de uma organização ou pode ser modificada de diferentes maneiras para atender às diversas necessidades de uma força de trabalho? Uma vez que um dos principais objetivos das leis de direito de desconexão é proporcionar aos empregados que descansem entre as jornadas de trabalho, o desafio é estabelecer flexibilidade sem criar também inflexibilidade. Confiar aos empregados a gestão de seu tempo de trabalho de maneira que possibilite equilíbrio e desempenho – dentro da estrutura das diretrizes organizacionais – pode ser uma forma de enfrentar esse desafio.

“Quero mostrar ao meu empregador o quanto sou dedicado, mas neste momento não posso.” | Um estudo de membros do INTWAF sobre trabalhadores remotos durante a pandemia de Covid-19 constatou que muitos sentiam a necessidade de compensar sua impossibilidade de estar no escritório e sinalizar seu comprometimento sendo ativos em

plataformas, como a Microsoft Teams ou Slack, respondendo prontamente a e-mails, ligações e mensagens fora do horário normal de trabalho. Embora a desconexão possa conter a expectativa de disponibilidade constante, ela pode fazer com que os trabalhadores remotos se sintam confusos sobre como demonstrar sua presença virtual e engajamento sem uma atividade digital absoluta. Alguns empregados podem querer fazer isso para mostrar ao gerente que, mesmo remotamente, eles estão cumprindo a jornada e, ainda, trabalhando de forma eficaz. Outros podem querer corresponder às impressões de seus supervisores em uma cultura na qual priorizar o trabalho ainda é esperado e recompensado. Outros também podem fazê-lo porque consideram a dedicação ao trabalho um dever ou porque este é mais gratificante para eles do que outras atividades da vida.

Executivos, gerentes de alto nível e diretores de recursos humanos detêm a maior influência sobre as normas e expectativas culturais que são usadas para medir o valor, a contribuição e o comprometimento dos empregados. Se as normas culturais da organização esperam disponibilidade e conectividade constantes e os empregados são recompensados por aderir a esses comportamentos, a cultura falhará em encorajar a desconexão. E barreiras facilmente contornáveis – das quais os trabalhadores remotos se aproveitarão para mostrar seu comprometimento – também podem minar as intenções da política de desconexão. O fato de que as culturas de trabalho também devem mudar reforça, por sua vez, a necessidade de o direito à desconexão estar previsto na forma legislativa. O direito de desconexão pode melhorar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, permitindo recuperação do trabalho, reduzindo a exaustão e o esgotamento e mitigando a confusão entre limites. Paradoxalmente, também requer motivação por parte dos trabalhadores para que se envolvam em comportamentos adicionais de autorregulação, como a mudança de hábitos para compensar

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O desejo de se desconectar decorre de uma necessidade não apenas de obter controle sobre tempo e espaço pessoais, como também de recuperar o foco e a concentração no trabalho.

a desconexão obrigatória em seu trabalho. Esse direito também pode levar à introspecção sobre valores e práticas e expor potenciais lacunas entre valores e maneiras pelas quais eles realmente gastam seu tempo e energia. O direito poderia, portanto, de maneira indesejável, transferir aos trabalhadores o ônus de alcançar o equilíbrio e o bem-estar em vez de levar as organizações a enfrentar as principais causas dos problemas de conectividade, como sobrecarga, ausência de limites e expectativas de disponibilidade constante.

O Futuro da Desconexão

Leis e políticas para superar os desafios de conectividade, proteger os trabalhadores e garantir a desconexão são essenciais para o desenvolvimento de locais de trabalho e sociedades sustentáveis. No momento, as leis implementadas em todo o mundo visam dar aos trabalhadores a opção de se desconectarem após o horário de trabalho. As empresas abrangidas pelas leis devem se comprometer com o estabelecimento de políticas de desconexão, mas os governos não intervêm no conteúdo propriamente dito dessas políticas e não existe sanção por descumprimento. Como resultado, o direito à desconexão tem mostrado resultados mistos porque sua implementação varia consideravelmente, dependendo da vontade dos empregadores.

Em sua forma atual, as leis de desconexão são incapazes de gerar, na prática, mudanças significativas em larga escala. Uma recente pesquisa da plataforma Glassdoor mostrou que empregados franceses continuaram trabalhando durante as férias para corresponder às expectativas dos empregadores e se manter informados sobre o que estava acontecendo no trabalho. Esse exemplo ilustra que os princípios e políticas de desconexão parecem bons no papel, mas ainda são um desafio para serem aplicados na prática. Portanto, essas políticas devem ser implementadas de maneira mais inclusiva, ser mais acessíveis e mais sintonizadas com as realidades atuais de locais de trabalho. Elas também devem ser diversificadas, flexíveis e fundamentadas em pesquisa.

Como será o futuro do direito de desconexão? O que formuladores de políticas e líderes organizacionais podem fazer para garantir que ele crie valor para a sociedade e permaneça em vigor em meio a mudanças nas práticas de trabalho? Identificamos três maneiras pelas quais o direito de desconexão pode ter efeitos mais substantivos e duradouros para as partes interessadas em diversos contextos:

■ Oferecer a possibilidade de adequar as modalidades de desconexão à cultura, estratégia, práticas preferidas, valores e prioridades organizacionais.

■ Certificar-se de que o direito de desconexão esteja disponível e seja concedido a todos os trabalhadores, atentando para a equidade percebida dessas provisões em todas as ocupações.

■ Estar ciente das realidades, perfis, necessidades e preocupações dos trabalhadores sobre desconexão e abordar esses elementos em políticas organizacionais. Dar voz aos empregados para que a desconexão possa ser mutuamente satisfatória.

O direito de desconexão, é claro, não consegue resolver magicamente os problemas causados pela hiperconectividade e pela falta de equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Os lockdowns da pandemia de Covid-19 levaram trabalhadores a questionar o lugar do trabalho

em sua vida. Trabalhadores e seus representantes sindicais, gerentes, organizações, pesquisadores e outros membros da sociedade civil precisam debater como os locais de trabalho devem mudar. Para facilitar essa mudança, os governos terão que trabalhar com os diversos grupos interessados para elaborar uma legislação sólida, mas flexível, e consagrar a desconexão como um direito universal e duradouro.

Mais inovações políticas devem ser buscadas para priorizar maior equilíbrio entre a vida profissional e pessoal e saúde mental no trabalho. Por exemplo, especialistas argumentam que a adoção de uma comunicação assíncrona em vez da desconexão após o dia de trabalho pode ser mais útil para lidar com o estresse e os conflitos entre vida profissional e pessoal. As políticas de direito de desconexão devem ser adaptadas para melhor se alinhar às variadas configurações e se adequar às culturas das organizações que afirmam o que é valorizado e esperado dos trabalhadores.

Além disso, a legislação deve ser considerada em conjunto com contextos políticos e econômicos de diferentes países e leis existentes. A Escócia e a Bélgica, por exemplo, aprofundaram o debate ainda mais, ao introduzir a semana de trabalho de quatro dias, tendo em vista que a redução da carga de trabalho é fundamental para carreiras sustentáveis. Uma semana de trabalho mais curta pode ser o complemento necessário ao direito de desconexão.

Enquanto isso, devemos ter em mente que o futuro reserva oportunidades para renovar coletivamente o direito de desconexão para que ele atenda às necessidades de todos e seja amplamente acessível, independentemente do tipo de trabalho ou situação pessoal. Esse debate, sem dúvida, afeta a todos nós. ■

Notas

1 Ver também Pedro Afonso, Miguel Fonseca e Tomás Teodoro, “Evaluation of Anxiety, Depression and Sleep Quality in Full-Time Teleworkers”, Journal of Public Health, 25 maio 2021.

2 Para uma visão geral da legislação sobre o direito de desconectar em todo o mundo, ver C. W. Von Bergen e Martin S. Bressler, “Work, Non-work Boundaries and the Right to Disconnect”, Journal of Applied Business and Economics, vol. 2, n. 2, 2019.

3 O conceito de gig economy engloba as formas de emprego alternativo, que vão da prestação de serviços por aplicativo ao trabalho de freelancers, por exemplo.

4 Ver Wendy J. Casper et al., “The Jingle-Jangle of Work-Nonwork Balance: A Comprehensive and Meta-analytic Review of Its Meaning and Measurement”, Journal of Applied Psychology, vol. 103, n. 2, 2018; e Julie Holliday Wayne et al., “In Search of Balance: A Conceptual and Empirical Integration of Multiple Meanings of Work-Family Balance”, Personnel Psychology, vol. 70, n. 1, 2017.

5 Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho, organismo da União Europeia que constitui um núcleo de informação sobre questões de política social, incluindo condições de emprego e de vida, relações laborais e parceria e coesão social.

6 Ariane Ollier-Malaterre et al., “Technology Regulation in the Service of Sustainable Work-Life Balance”, in Peter Kruyen, Stéfanie André e Beatrice van der Heijden, eds., Maintaining a Healthy, Sustainable Work-Life Balance Throughout the Life Course: An Interdisciplinary Path to a Better Future, Cheltenham, UK: série Edward Elgar New Horizons in Management, no prelo.

7 Ver também Glen E. Kreiner, Elaine C. Hollensbe e Mathew L. Sheep, “Balancing Borders and Bridges: Negotiating the Work-Home Interface via Boundary Work Tactics”, Academy of Management Journal, vol. 52, n. 4, 2009; Tammy D. Allen et al., “Boundary Management and Work-Nonwork Balance while Working from Home”, Applied Psychology, vol. 70, n. 1, 2021.

8 Ver também Ellen Ernst Kossek e Brenda A. Lautsch, “Work-Family Boundary Management Styles in Organizations: A Cross-Level Model”, Organizational Psychology Review, vol. 2, n. 2, 2012; Pascale Peters e Robert Jan Blomme, “Forget about ‘The Ideal Worker’: A Theoretical Contribution to the Debate on Flexible Workplace Designs, Work/Life Conflict, and Opportunities for Gender Equality”, Business Horizons, vol. 62, n. 5, 2019.

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Mudando Sistemas? E n t ã o D e s a c e l e r e...

Ilustração de Alex Kiesling

Não se corrigem os problemas sociais de forma rápida e simples aplicando uma lente sistêmica.

Ao contrário, ela nos força a ir com mais cautela ao revelar uma dinâmica complexa.

Neste mundo não existem Robisons Crusoés. Nossa vida está toda conectada. Vivemos em família, em comunidades, em organizações, em sistemas de transporte, educacionais, políticos, de saúde. Embora isso possa parecer óbvio, só recentemente as organizações filantrópicas começaram a adotar de forma explícita abordagens sistêmicas em seu trabalho. Mas o que significa se engajar nesse movimento?

O trabalho sistêmico procura resolver os problemas sociais ao promover mudanças duradoras e significativas no sistema no qual os problemas ocorrem, o que demanda pensar na arquitetura causal.1 Para reformar um sistema é preciso antes entender os processos causais que o constituem e, então, transformá-los.

Isso não é fácil. Não há mágica nem varinha de condão para mudar sistemas. Mas investir numa perspectiva de sistema pode valer a pena. A reflexão profunda sobre sua arquitetura reduz nossa tendência de adotar de forma prematura soluções ineficazes ou até piorar a situação. E nos faz empregar os recursos mais produtivamente. Tornamo-nos mais realistas a respeito do tempo necessário para abordar os problemas e mais humildes e dispostos para explorar e aprender, em vez de basear as decisões na pressuposta superioridade do nosso conhecimento, tecnologias e estratégias.

O trabalho sistêmico oferece às organizações a oportunidade de repensar abordagens e atualizar ações e dá aos gestores melhores argumentos para assumir compromissos de longo prazo com beneficiados. Além disso, não procura soluções, mas descobrir e abrir caminhos locais para mudança num ritmo condizente com nossa

capacidade de aprender e que as comunidades possam adotar e absorver. A seguir, apresentamos um esboço de alguns caminhos práticos para adotar perspectivas de sistemas em organizações que desejam tornar seu trabalho filantrópico mais efetivo.

Princípios Para o Pensamento Sistêmico

O campo da filantropia pode se entusiasmar com o pensamento sistêmico, mas, como é praticamente impossível delinear as fronteiras dos sistemas sociais, acaba revelando uma certa confusão sobre sistemas, perspectivas de sistemas e suas reivindicações de objetividade. Quando pensamos nos sistemas como totalidades relevantes, como em geral ocorre, chegamos facilmente a todo o Universo: de alguma forma, tudo está conectado. Qualquer contexto do problema sofre influência e está relacionado a outros problemas, situações e sistemas, e assim nossa investigação aumenta a ecologia de questões e definições de problemas, como afirma o cientista social Werner Ulrich, “até o ponto de poder englobar Deus e o Mundo”.2 Essa não é certamente uma abordagem muito prática. Para pensar de forma sistêmica é preciso que os limites definidos sejam determinados não só pelo contexto do problema discutido, mas também por nossos interesses e necessidades.

Outro exemplo comum de confusão ocorre com a modelagem “objetiva” de sistemas em sofisticados mapas. Os seres humanos interpretam e vivenciam o mesmo sistema de formas muito diferentes. As motivações para mudança ou manutenção do status quo também variam muito. Em suma, não é possível mapear nenhum sistema

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objetivo ou realidade. Os mapas podem ajudar os grupos a articular diferentes visões e propor hipóteses, mas não valem muito quando sua sofisticação visual induz sentimentos de profunda compreensão e controle que alimentam um excesso de confiança ingênua. A complexidade desses diagramas pode ser avassaladora para aqueles que não estão envolvidos no contexto. Em 2009, quando o general americano Stanley A. McChrystal olhou para um primoroso mapa de sistema da situação social no Afeganistão, ele fez um comentário que se tornou famoso: “Quando entendermos esse slide, venceremos a guerra”.3

Uma perspectiva de sistema é útil quando inclui a percepção de que as pessoas interpretam situações e problemas de formas distintas e sabem o que podem e devem fazer para resolvê-los. Relaxar quanto à suposição de que os sistemas existem objetivamente no mundo real já representa um grande passo. O progresso decorre de pensar os problemas sociais de uma forma sistêmica que não privilegie nossas perspectivas tendenciosas. “Uma abordagem de sistemas começa quando passamos a ver o mundo pelos olhos dos outros”, observa o influente teórico de sistemas C. West Churchman.4

Essas confusões não são novas. As abordagens sistêmicas atravessaram um período turbulento no último século.5 Os cientistas as adotaram depois de se frustrarem com as limitações das propostas e práticas analíticas tradicionais. Infelizmente, o atual estado da ciência de sistemas é preocupante. A pesquisa se ramificou em uma série de iniciativas difíceis de reconciliar. Os pesquisadores desenvolvem suas perspectivas isoladamente, quase sem contato uns com os outros, o que dificulta o entrosamento de suas descobertas. Há 50 anos, um dos pioneiros em sistemas, o biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, expressou sua frustração com o estado da prática de sistemas:

Se alguém analisasse as definições atuais e as palavras da moda encontraria “ sistemas” bem no topo da lista. O conceito se espalhou por todos os campos da ciência e se fixou no pensamento popular, no jargão e na mídia de massa. [...] nos últimos anos apareceram profissões e empregos que [...] receberam nomes como design de sistemas, análise de sistemas, engenharia de sistemas. [...] Os profissionais que atuam nessas funções são os “novos utopistas” do nosso tempo [...] em ação criando um “Mundo Novo”, admirável ou não.6

Essa avaliação poderia servir de alerta para a empolgação atual pelas abordagens sistêmicas no campo da filantropia. Dado o estado da pesquisa de sistemas, alguém poderia se perguntar qual deveria ser a base de conhecimento para habilitar as organizações a assumir o compromisso de mudar os sistemas.

Para fundamentar as abordagens de sistema no conhecimento contextual, alguns teóricos propõem que, dependendo de suas características, diferentes sistemas garantem diferentes tipos de perspectivas de sistema e de trabalho de sistema.7 Seria essa uma perspectiva útil? A seguir, apresentamos uma classificação dos tipos disponíveis de abordagem sistêmica.

Quatro Perspectivas de Sistemas

Quando utilizam o termo “sistema” em filantropia, a maioria dos teóricos e profissionais de sistemas faz duas grandes distinções. A

primeira é entre a perspectiva de sistemas rígidos (hard systems) versus sistemas flexíveis/críticos (soft/critical systems). Essa distinção destaca as diferenças nas premissas que adotam e na forma como tratam problemas bem estruturados e pouco estruturados.

■ A abordagem de sistemas rígidos trata os sistemas como entidades reais com contornos bem definidos que podem ser analisados objetivamente e melhorados com conhecimento e tecnologias disponíveis para atingir objetivos bem fundamentados. Além disso, procura melhorar o desempenho de um sistema numa dimensão específica. Os recursos externos e as soluções são fornecidos por coalizões de atores poderosos.

■ Na abordagem de sistemas flexíveis/críticos, os sistemas são tratados como formas de pensar e refletir sobre imagens subjetivas que as pessoas têm sobre situações sociais e os problemas detectados. Essa perspectiva procura explorar diferenças em propósitos, poder e voz; em opiniões sobre o que constitui uma melhoria; e na avaliação da adequabilidade das soluções. Até pessoas ou pequenas organizações podem mobilizar recursos locais e trabalhar com um sistema.

A segunda distinção é entre sistemas orgânicos versus sistemas projetados:

■ Os sistemas projetados se referem a entidades configuradas instrumentalmente para atender a um propósito específico. São exemplos: força-tarefa, organizações, sistemas funcionais, como sistema jurídico, educacional e de saúde, e mecanismos de governança.

■ Os sistemas orgânicos incluem aglomerados sociais, pessoas que ocupam um espaço social ou geográfico que se relacionam como resultado de processos informais sociais e históricos. Famílias, comunidades, grupos étnicos, vilas e sociedades, por exemplo.

Ilustramos essas distinções num diagrama que mostra os quatro arquétipos de sistemas com exemplos: rígido-projetado, rígido-orgânico, flexível/crítico-projetado e flexível/crítico-orgânico (ver pág. 51).

Essa classificação aproximada pode ser um guia útil em estudos futuros. Em um artigo complementar, disponível no site do Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Stanford University (Stanford PACS, na sigla em inglês), incluí uma década de pesquisa de campo que realizei com importantes empreendimentos sociais em países em desenvolvimento e apresento exemplos desses quatro arquétipos. No entanto, o Laboratório de Inovação Global de Impacto do PACS, do qual sou codiretor, também aprende com iniciativas contemporâneas como a Co-Impact, uma colaboração global de financiadores e parceiros do programa. Em janeiro de 2020, a Co-Impact anunciou um ambicioso projeto de US$ 80 milhões em doações para apoiar iniciativas arrojadas de mudança sistêmica ao longo de cinco anos em educação, saúde e oportunidades econômicas para cerca de 9 milhões de pessoas de toda a África, sul da Ásia e América Latina. Embora não reflita a complexidade das abordagens, a categorização a seguir serve para ilustrar as diferentes hipóteses dos quatro arquétipos e pode facilitar a reflexão sobre as semelhanças e diferenças entre várias iniciativas de mudanças de sistemas contemporâneas nos próximos anos.

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CHRISTIAN SEELOS é codiretor do Laboratório de Inovação Global para o Impacto do Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Stanford University.

Perspectivas de Sistemas Rígidos

Acadêmicos de sistemas contemporâneos defendem que as abordagens dos sistemas rígidos fazem sentido em situações caracterizadas por problemas bem compreendidos. Quando os stakeholders com poder de tomada de decisão concordam sobre o problema, sobre o que significa sucesso e sobre a efetividade e objetivos de uma solução proposta, pode-se aplicar essa abordagem como um modelo promissor para a ação.

Perspectivas de sistemas rígidos projetados | A Co-Impact apoia a Teaching at the Right Level Africa (TaRL), iniciativa que pretende melhorar o desempenho educacional em países africanos com o aprimoramento das habilidades de leitura e matemática básica de crianças do terceiro ao quinto ano do ensino fundamental. A TaRL faz um recorte nítido ao focar em uma habilidade e uma faixa etária específicas. Muitos stakeholders reconhecem o problema persistente do baixo rendimento escolar das crianças e concordam sobre os objetivos e métodos para melhorar essas habilidades. Os avanços no desempenho em matemática e leitura podem ser avaliados com precisão. A Pratham, a ONG indiana pioneira na aplicação do modelo TaRL; o laboratório Abdul Latif Jameel Poverty Action, que testou a teoria da mudança da Pratham em avaliações aleatórias; e um conjunto de financiadores pretendem apoiar os governos e parceiros locais a implementar uma abordagem já testada. Desenvolver um plano detalhado com recursos predeterminados e marcos de desempenho faz parte dessa abordagem.

Outro exemplo é o Projeto ECHO da Índia, que implementa um modelo já testado para melhorar o sistema de saúde no país, que faz a conexão entre médicos especialistas e profissionais de saúde da linha de frente por meio de tecnologias de vídeo. Como a TaRL, o ECHO se baseia em um modelo de programa existente que incorpora a expertise desenvolvida no Novo México, onde o projeto surgiu, em 2003. Até agora o ECHO está presente em 37 países. A iniciativa estabelece logo no início objetivos bem fundamentados que

Quatro Arquétipos de Sistemas

De acordo com as perspectivas de sistema, os arquétipos se enquadram em quatro categorias.

pretende atingir para melhorar o sistema de saúde. O ECHO traça um contorno claro em torno de uma série de problemas de saúde e locais com infraestrutura tecnológica adequada e investe somente os recursos necessários para atingir seus marcos preestabelecidos.

Perspectivas de sistemas rígidos orgânicos | Duas guerras civis e um surto do vírus Ebola deixaram comunidades na Libéria sem assistência médica. O programa de Assistência de Saúde de Comunidades da Libéria (LCHAP) colabora com o governo do país treinando profissionais de saúde para trabalhar como uma alternativa para implementar o sistema de saúde formal. Cada comunidade representa um sistema social concreto e a principal participação do LCHAP é fornecer os recursos específicos e garantir um compromisso sólido e o consenso de stakeholders poderosos. Como a iniciativa padroniza os procedimentos em cada comunidade, ela poderá mais tarde integrar seus participantes ao sistema de saúde formal. O LCHAP também ressalta que, em geral, é mais fácil criar um novo sistema do que mudar um já existente.

No setor de filantropia, é mais atraente adotar perspectivas de sistemas rígidos talvez por estarem mais alinhadas com importantes crenças e tendências ocidentais, como usar expertise para resolver problemas e empregar estratégias e planos formais com objetivos predeterminados. No entanto, até mesmo sistemas de saúde maduros mostram diferenças marcantes na visão de médicos, enfermeiros, pacientes, governos, investidores e contribuintes. Os stakeholders podem discordar sobre se de fato existem os problemas ou qual é o mais importante, ou podem concordar com o problema mas discordar das causas e soluções, ou ainda concordar ou não sobre quem deve se encarregar das melhorias e como avaliar o progresso ou sucesso. Se, ao focar num aspecto do sistema, os esforços filantrópicos forem bem-sucedidos, stakeholders poderosos podem exigir uma redefinição dos limites do impacto e incluir outros aspectos do sistema. Ou, como ilustra a experiência da Pratham na Índia, melhorar um aspecto do sistema educacional pode aumentar ainda mais as expectativas dos stakeholders. Apesar do enorme sucesso e crescimento da Pratham, as habilidades gerais de leitura e matemática das crianças da Índia rural mostraram um declínio na última década. Associar equivocadamente a Pratham a essa falta de impacto no sistema educacional pode criar tensões com o governo.

As iniciativas que se baseiam em premissas de sistemas rígidos são sensíveis até aos mínimos desvios de suas premissas, sobretudo quando as estratégias e as expectativas dos financiadores são formalizadas em planos claros que, se malsucedidos, podem restringir caminhos alternativos de ação. Grandes mudanças podem exigir uma transformação mais profunda da arquitetura do sistema para reduzir sua tendência de recriar os mesmos problemas – um argumento defendido por Russell Ackoff, influente teórico de sistemas.8 Os implementadores podem então descobrir que a abordagem de sistema flexível – que, por design, trabalha com vários objetivos e tensões divergentes – poderia ter sido a mais eficiente, apesar de ser mais lenta e menos previsível.

As perspectivas de sistemas rígidos aparentemente foram as mais adequadas para projetar sistemas técnicos para atingir objetivos claros e observáveis: armas, motores, circuitos elétricos, sistemas modernos de água e esgotos. Infelizmente, a maior parte dos problemas sociais não se encaixa nesse modelo, e conceituados teóricos de sistemas já sugeriram abandonar as perspectivas de sistemas rígidos.

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PROJETADO ORGÂNICO FLEXÍVEL/ CRÍTICO RÍGIDO ■ TaRL África ■ Projeto ECHO ■ Aravind ■ Sekem ■ LCHAC ■ BRAC (P.R.) ■ JEEViKA ■ Gran Vikas

Perspectivas de Sistemas Flexíveis/Críticos

Uma abordagem flexível ou crítica se fundamenta na ideia de que os sistemas constituem situações multifacetadas, dinâmicas e impossíveis de entender pela simples observação. Os envolvidos nesse sistema têm diferentes visões de mundo, prioridades, vulnerabilidades, preferências, poder e objetivos. Aspectos importantes dos sistemas podem não ser observáveis. Os limites das questões envolvidas devem ser discutidos e negociados. Aprender junto é muito mais importante que aplicar e aumentar conhecimento e expertise já existentes. Por isso, essas situações são muitas vezes chamadas “desorganizadas” ou “perversas”.

Frustrado com a inadequação das abordagens de sistemas rígidos, o especialista em gestão Peter Checkland se empenhou no desenvolvimento de métodos de sistemas flexíveis que propõem metas mais modestas. Ele recomendou fazer perguntas do tipo: podemos criar situações alternativas em que pessoas com diferentes papéis, status e preferências possam conviver, mesmo se essas situações não forem ideais de seu ponto de vista? Podemos projetar mudanças que sejam técnica e culturalmente factíveis e que não provoquem resistência que impeça o progresso? Os pesquisadores Michael Jackson e Werner Ulrich, entre outros, extrapolaram os métodos dos sistemas flexíveis para situações caracterizadas por conflitos. Suas perspectivas de sistemas críticos focam principalmente em considerar as pessoas menos favorecidas como cidadãos que precisam ser capazes de participar efetivamente das decisões que os afetam. As perspectivas críticas procuram dar voz aos marginalizados e silentes e balancear essas desigualdades com decisões pragmáticas para trabalhar com garra e fazer o que se sente que é justo, e não procurar criar uma “utopia na qual não haja desigualdades”.9

Perspectivas de sistemas flexíveis/críticos projetados | A Sekem, organização fundada em 1977 que acompanhei durante quinze anos, é um bom exemplo desse arquétipo.10 Para enfrentar problemas ambientais e sociais do Egito, a Sekem criou uma comunidade aberta na qual as pessoas podiam ver e vivenciar por si mesmas uma realidade diferente para poder, lentamente, formar uma opinião a respeito de futuros alternativos e refletir coletivamente – em um ambiente seguro – sobre sua própria vida, sobre normas e hábitos que contribuem para a desagregação social. A Sekem possibilitou às pessoas que expressassem sua individualidade, deliberassem sobre seus problemas e ambições e formassem um consenso sobre como se relacionar com outras pessoas e com o ambiente natural. Com o tempo, a comunidade formada já contrastava claramente com a complexa realidade do Egito – o sistema que a Sekem pretendia transformar. Atualmente, a Sekem atua como um espelho que mostra ao país que ela pode oferecer um futuro desejável e com novas possibilidades. Sua visão arrojada tornou-se um símbolo bem-vindo de orgulho e ambição contra um pano de fundo de pessimismo e desesperança no restante do Egito. Perspectivas de sistemas flexíveis/críticos orgânicos | A Co-Impact apoia uma iniciativa liderada pela JEEViKA para treinar famílias vulneráveis em Bihar, na Índia, a se envolver em atividades comerciais nas comunidades rurais com a aplicação da abordagem de graduação, um modelo de desenvolvimento preestabelecido para lidar com a extrema pobreza. A pesquisa de meu laboratório no vilarejo rural de Odisha,

na Índia, revela um ambiente no qual as pessoas continuam a ser marginalizadas e agredidas por seu gênero e casta preestabelecida e impedidas de participar de atividades econômicas. Nesse sistema, atores influentes podem se opor às mudanças de normas e estruturas de poder. O sucesso da JEEViKA nesse ambiente também pode depender de como ela conseguirá equilibrar as premissas do sistema rígido com as perspectivas do sistema flexível/crítico, para permitir que as pessoas discutam suas divergências e encontrem formas produtivas de se comportar e relacionar. A JEEViKA é um excelente exemplo para entender o arquétipo desse sistema nos próximos anos.

Arquitetura Geral dos Sistemas Sociais

Cada arquétipo analisado constitui uma perspectiva limitada que pode reduzir o potencial dos praticantes de adotar intervenções eficazes. Em geral, as perspectivas rígidas ignoram a complexidade social e subestimam o potencial local de conhecimento, recursos, comprometimento e propriedade. As perspectivas flexíveis/críticas em geral parecem esforços utópicos incompatíveis com nossas tendências pragmáticas. Para superar essas diferenças, propus uma arquitetura

geral de sistemas sociais que engloba três dimensões. Ao adotar uma perspectiva de sistema é preciso estar atento a:

Espaço da situação, a realidade de uma situação que exige atenção: objetivamente, as condições em que as pessoas se encontram oferecem oportunidades ou impõem restrições? Qual é a dinâmica de mudanças?

Arquitetura comportamental, a ação de forças observáveis e não observáveis que criam as características de uma situação: quais são os fatores econômicos, cognitivos, normativos e de poder/político que permitem ou impedem as pessoas de pensar e agir? Como essa arquitetura cria situações problemáticas e qual é sua dinâmica de mudança?

Espaço do problema, a interpretação e avaliação subjetiva se uma situação é problemática, e para quem: qual é a natureza e legitimidade da indicação de que uma situação é um problema social que precisa ser resolvido? Qual é sua importância em comparação com outros problemas e prioridades, quem se beneficia e quem é mais afetado?

A perspectiva que oferecemos integra as premissas objetivas das perspectivas de sistemas rígidos (espaços da situação) e as premissas subjetivas das perspectivas flexíveis/críticas (espaços do problema). A terceira dimensão dessa abordagem, a arquitetura comportamental, é o principal alvo da mudança de sistema e é igualmente aplicável aos sistemas projetados e orgânicos.

As três dimensões não são independentes. São perspectivas – formas de ver, explorar e intervir na realidade social. Essa arquitetura desafia

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As perspectivas de sistema nos levam a adiar a busca por soluções. Mas, por outro lado, nos encorajam a investir mais tempo e esforço...

as premissas tradicionais de existência de contornos, que aqui representam escolhas que dependem dos interesses ou pressões de algumas populações, localidades ou problemas. Os contornos podem refletir pragmaticamente os recursos e competências disponíveis e representar a identidade de alguém como ator ou financiador ou implementador e onde se traça a linha de responsabilidade. Assim, os sistemas são situações problemáticas, configuradas por várias interpretações e realidades observadas pelos atores que procuram mudar os sistemas.

A seguir explicamos cada dimensão separadamente:

Espaço da situação | Uma situação é a conjuntura de um sistema, a realidade na qual as pessoas se encontram. Podemos considerar fatos relevantes sobre situações, por exemplo, oportunidades de trabalho, acesso à saúde ou serviços jurídicos e capacidade de participar da vida cívica, econômica e política. As situações também restringem as escolhas das pessoas, como altos níveis de analfabetismo, poluição, dependência química, fome, criminalidade, discriminação. O termo “espaço” indica que decidimos nos concentrar em uma fatia da realidade social, uma determinada situação na qual uma pessoa sofre discriminação, uma comunidade apresenta problemas de saúde ou um país é impedido de crescer devido a um abuso de poder.

O equilíbrio entre oportunidades e restrições determina a dinâmica com que um sistema muda: a situação está melhorando lentamente e essa tendência ascendente pode ser acelerada? Está estagnada, a ponto de precisarmos articular uma saída do status quo? Está deteriorando, e precisamos descobrir como estabilizá-la e depois redirecionar a dinâmica da mudança para melhorá-la aos poucos?11 Ao refletir sobre essas dinâmicas, podemos entender melhor as prioridades para organizar uma intervenção na qual interagimos com os sistemas.

Situações e fatos observáveis representam uma visão superficial da realidade que pode nos levar a menosprezar os problemas e aplicar modelos de solução já prontos, como microfinanças ou aplicativos para smartphones. Essa atitude motiva a busca por novas e brilhantes tecnologias que podem não resolver significativamente o problema ou produzir consequências indesejadas. Veja, por exemplo, as pressões atuais sobre a Zipline, startup da Califórnia que usa drones como mecanismos eficientes para fornecer suprimentos médicos quando e onde eles são necessários, em países como Gana, Serra Leoa e

A Arquitetura de Sistemas Sociais

Ruanda. Apesar do sucesso dos drones, os profissionais de saúde nesses países criticam sua utilização, afirmando que os dispositivos são caros e inviabilizam o desenvolvimento de outras prioridades de um sistema de saúde eficiente.

Se, por um lado, as perspectivas de sistema nos induzem a adiar a busca de soluções, por outro, parecem nos encorajar a investir mais tempo e esforço em formas criativas de explorar e valorizar a arquitetura das situações num contexto específico e em sintonia com as várias perspectivas dos stakeholders locais. O trabalho do sistema equivale a identificar as principais peças de um quebra-cabeça, entender como os sistemas estão configurados para fazer o que fazem e só então planejar caminhos para criar uma configuração diferente que todos veem como um avanço.

Toda intervenção para melhorar as situações enfrenta dois desafios fundamentais. Primeiro, muitos aspectos dos sistemas sociais não são notados diretamente. Crenças, valores, ambições, poder e estrutura de dependência, por exemplo, quase sempre estão ocultos no bojo das arquiteturas comportamentais. Segundo, as pessoas como atores de sistemas observam realidades muito distintas. Elas podem discordar, por exemplo, se uma situação é um problema e a quem afeta, ou se o suposto problema é importante ou urgente. Esses aspectos fazem parte dos espaços do problema.

Para adotar a perspectiva de sistema é preciso analisar uma situação segundo três dimensões.

Arquitetura comportamental | Arquiteturas comportamentais são as partes de sistemas que formatam as situações. Para explorar a arquitetura comportamental é preciso entender as pessoas em suas relações interpessoais, com as instituições e com o ambiente físico e natural. Se considerarmos suas quatro dimensões – econômica, cognitiva, normativa e política/poder –, podemos ter insights em vários níveis do sistema: individuais, comunitários, organizacionais, institucionais e sociais.12 Esses insights ajudam a explicar padrões de comportamento como competição, cooperação, exclusão, dominação e abuso. Pense, por exemplo, em como as elites poderosas de uma comunidade podem impedir certos grupos de participar de decisões comunitárias. São as normas, tradições e estruturas permanentes de poder e dependência que moldam a arquitetura comportamental que mantém a desigualdade na comunidade. As quatro dimensões geram uma tensão criativa entre as aspirações das pessoas e seu contexto social e ambiente físico. Esse contexto influencia o que elas podem ou não fazer. Uma análise da arquitetura comportamental também permite identificar com mais facilidade quais stakeholders são essenciais ou quais podem bloquear os esforços de mudança, como campeões locais influentes, líderes de grupos sensíveis e opositores poderosos. As organizações que pesquisei praticamente só progridem quando encontram formas de identificar as normas, habilidades cognitivas e econômicas ou papéis e dependências nas quais as pessoas com quem se preocupam foram socializadas.

Para promover uma mudança sistêmica precisamos intervir na

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arquitetura comportamental (causas) e não nas situações (sintomas). Essa perspectiva pode nos ajudar na desaceleração por duas razões. Primeiro, os aspectos importantes dessa arquitetura não são observados diretamente. Para termos consciência de que eles existem, e entendê-los, precisamos nos aproximar muito da situação problemática e estabelecer uma relação de confiança e entrosamento com os stakeholders. Somente então eles começarão a compartilhar coisas que não conseguimos ver de imediato, como as causas de suas vulnerabilidades e as formas de marginalização, agressão e exclusão que sofrem. Muitas vezes, esse esforço requer tomar atitudes que não estão alinhadas com a missão da organização. A IDEO.org e Marie Stopes International descobriram que para enfrentar a situação problemática da gravidez não planejada de meninas adolescentes em Zâmbia são necessários investimentos em atividades aparentemente desconectadas, como abrir uma esmaltaria, e criar um vínculo com as adolescentes. Com o tempo, esse ambiente aberto, isento de julgamentos permitiu que as garotas falassem sobre tópicos desagradáveis e polêmicos como anticoncepcionais e as razões para sua adoção limitada.

Segundo, diferentes arquiteturas comportamentais podem gerar situações aparentemente similares. Por isso, precisamos conter nosso desejo de nos basearmos em nossa experiência em outros contextos para não aplicar arquétipos de situações conhecidas que não estão em jogo na situação em pauta. Por outro lado, devemos entender a arquitetura comportamental específica que causa uma determinada situação problemática. Essa variação de arquiteturas em situações aparentemente similares é o que muitas vezes inviabiliza os esforços para replicar uma solução em diferentes contextos que parecem similares na superfície.

Na perspectiva de sistemas é essencial entender o elo entre a arquitetura comportamental e as situações, mas também é importante entender como as pessoas interpretam uma mesma situação de formas diferentes. As diferenças determinam quem apoiará, quem se oporá, quem se beneficiará ou sofrerá com os esforços de mudanças e quais caminhos devem ser efetivamente explorados.

Espaço do problema | Objetivamente os problemas não existem. Seria mais produtivo pensar nos problemas sociais se refletíssemos sobre a natureza e a legitimidade das indicações de que uma situação é, de fato, problemática e que precisa ser tratada.13 Até mesmo em comunidades fechadas, as pessoas podem criar imagens muito diferentes do mundo e das situações em que se encontram. Suas atitudes, motivações, senso de sua função ou propósito, percepções, crenças, expectativas e hábitos são muito distintos. Julgar uma situação como problemática com base em um conjunto de valores e expectativas pode não coincidir com a percepção dos stakeholders locais.

As situações sempre refletem assimetrias nas vulnerabilidades e nas formas como os benefícios são distribuídos. As pessoas afetadas por uma situação em geral coexistem com outras que se beneficiam dela. Qualquer mudança para situações permanentes, independentemente de quanto possam afetar alguns, possivelmente vai enfrentar resistência. Aplicações recentes de sistemas flexíveis e críticos procuram envolver os stakeholders em situações problemáticas para criar espaço para discutir suas diferenças e formas de superá-las.14

Essa abordagem tem por objetivo trazer à tona as várias perspectivas com que as pessoas veem uma situação, explicitar diferenças e fontes de mal-entendidos e conflitos e explorar tensões e perspectivas divergentes de forma construtiva e estruturada.

Atrasar a resolução de conflitos, em vez de assumir compromissos prematuros e temporários, pode ser uma fonte de soluções criativas. As abordagens flexíveis/críticas procuram desenvolver o potencial das pessoas ao trabalhar com elas, em vez de “para” elas, para dar-lhes voz e a oportunidade de definir e propor suas próprias soluções e não lhes impor soluções prontas. A ênfase dos implementadores é não só para resolver diferenças, mas também fazer aflorar a sabedoria local e mobilizar a engenhosidade dos menos favorecidos. O foco não é “resolver” o problema dos desfavorecidos ou “reinventar” seus sistemas, mas construir em conjunto, em pequenas doses, uma trajetória positiva de mudança.

Pensando Seriamente nos Sistemas

Dessa arquitetura geral de sistema podemos tirar uma conclusão importante: não há objetos mágicos ou forças nos sistemas ou alavancas potentes que possamos aplicar. O que existe é somente uma realidade social complexa. Toda vez que nos referimos a uma realidade social, nos referimos sempre a um sistema, porque todas as pessoas, situações sociais, grupos, problemas e relações de poder formam natu-

ralmente um sistema. Na abordagem de situações problemáticas, usar simplesmente o termo “sistema” sem mudar a mentalidade não traz nenhum benefício, seja para esclarecer ou para intervir.

Uma perspectiva de sistema também implica a coexistência de várias realidades e a necessidade de explorar e resolver diferenças subjetivas. Os sociólogos nos alertaram para não sermos vítimas de um subjetivismo ingênuo sobre problemas sociais e para não ignorarmos as restrições objetivas que, nas palavras do sociólogo Robert Merton, “afetam tanto as escolhas que as pessoas fazem como as consequências pessoais e sociais dessas escolhas”.15 Se quisermos pensar seriamente nos espaços de situação, precisamos embasar as decisões em evidências objetivas. Se quisermos pensar seriamente nos espaços do problema, precisamos entender que nem toda evidência importante é objetiva. Se quisermos pensar seriamente nas arquiteturas comportamentais, precisamos ter em mente que nem toda a evidência é visível. Dessa perspectiva de sistema, projetar estratégias de intervenção no conforto do home office é, obviamente, uma prática ineficaz, com probabilidade quase nula de sucesso. Já o trabalho do sistema exige que estejamos próximos dos sistemas, mesmo que desconfortavelmente próximos. A disposição para assumir esse trabalho lento e difícil da mudança sistêmica servirá para testar nossa determinação e revelar o

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Não há objetos mágicos ou forças nos sistemas ou alavancas potentes que possamos aplicar. o que existe é somente uma realidade social complexa.

que realmente nos preocupa: procuramos gerar impacto e demonstrar nossa eficiência ou procuramos atender as comunidades e ajudá-las a descobrir e criar suas próprias trajetórias de mudança em seu sistema?

O benefício mais importante que observei na adoção de uma perspectiva de sistema pode ser a redução e eliminação de algumas patologias no setor da filantropia. Essas patologias incluem uma obsessão por soluções técnicas, um sentido de urgência para demonstrar impacto de larga escala e uma formulação de estratégias com objetivos predeterminados propostos por pessoas que não fazem parte do sistema-alvo. A perspectiva de sistema nos ajuda a reduzir os riscos de problemas e situações sem especificação detalhada (uma patologia que Johanna Mair e eu chamamos “ilusão da compreensão”) e de superestimar nossa capacidade de intervir e mudar as situações para melhor (“ilusão da competência”).16 Essas patologias alimentam altos níveis de empolgação e ambição; testemunham a atual onda da filantropia de doações milionárias. Mas um gap crescente entre ambição e competência em geral é uma receita para o desastre.17

Sugestões para Pesquisas Futuras

Como ser bem-sucedido na difícil tarefa de mudança de sistema? Precisamos com urgência de pesquisas mais bem estruturadas e mais informações sobre perspectivas e manifestações do Sul Global. Este artigo documenta o que pretendi desenvolver, corrigir e ampliar à medida que ganhava novos insights. Questões que abordarei em minhas próximas pesquisas e que, espero, os leitores da SSIR ajudarão a explorar nos próximos anos incluem: como adotamos e interagimos efetivamente com os sistemas?; em que situações as premissas dos quatro arquétipos de sistema são mais adequadas?; quais práticas ajudam a descobrir e mapear as dimensões das arquiteturas comportamentais?; como construir plataformas para comunicação aberta e para resolver tensões e conflitos?; como adotar as ferramentas dos usuários de sistemas flexíveis e críticos no trabalho filantrópico?; como apoiar e estabilizar estágios intermediários da mudança de sistemas e processos de transformação de sistemas ou o colapso de sistemas de risco?

Adotar uma abordagem sistêmica requer reflexão profunda e tomada de decisão sobre aspectos importantes de nossas organizações. Isso vale independentemente de sermos financiadores, implementadores ou ambos. A seguir são apresentados três aspectos que as organizações que pretendem adotar as perspectivas de sistema deveriam discutir com todo o seu staff. Essa discussão pode estimulá-los a questionar suas intenções e melhorar suas competências na mudança de sistema e, consequentemente, de ações filantrópicas eficazes em geral.

Missão e identidade | Quais situações ou problemas chamam mais nossa atenção e por quê? Onde traçamos os contornos das situações e quais são nossos limites de responsabilidade como agentes da mudança? Como desenvolvemos papéis, identidades, ambições e capacidades? O que significa adotar uma lente de sistema e que resultados esperamos? Quais atitudes e mentalidades precisaremos mudar?

Competências | Como avaliamos o progresso e que áreas precisaremos dominar? E se nosso conhecimento e expertise tiverem pouca importância nos sistemas, com o que devemos substituí-los? Com que frequência os financiadores tomam decisões sobre financiamentos? Devemos continuar realizando ciclos rápidos de doações sucessivas ou devemos alinhar a frequência dos ciclos de doações com nossa capacidade de refletir sobre os resultados e aprender com as doações

anteriores? Como as perspectivas de sistema mudam nossas relações com nossos beneficiários? Quais estruturas de apoio e competências precisamos criar? Como desenvolver uma prática de abordagem de sistema flexível/crítico? Essa prática deve se tornar uma unidade dedicada separada ou a forma como trabalhamos normalmente?

Perspectiva | Como olhamos o mundo: explícita ou implicitamente? Acreditamos que os sistemas “existem” no mundo real? Em nosso trabalho, priorizamos a perspectiva rígida ou a flexível/crítica? Estamos comprometidos com a arquitetura tridimensional da maneira como foi esboçada? No caso negativo, como vemos o mundo ou um sistema e o que valida essa perspectiva?

A noção de que perspectivas de sistemas idealmente nos desaceleram não é só atraente. Os líderes de intervenções precisam encontrar formas de gerenciar essas longas jornadas de aprendizado e adquirir um profundo conhecimento do contexto para justificar seus investimentos. Como essa abordagem lenta pode não entregar “resultados” no curto prazo e, portanto, corre o risco de perder apoio do staff, de financiadores e das comunidades com as quais as organizações trabalham, precisamos encontrar formas de manter a motivação e uma percepção de progresso. Reduzir o ritmo de tomada de decisão, de promover a mudança, de romper as normas sociais e de alimentar nossa ansiedade para relatar números que demonstrem como somos bons, espertos e responsáveis provavelmente será a maior contribuição para tornar o trabalho filantrópico mais efetivo. n

Notas

1 Christian Seelos e Johanna Mair, “Mastering System Change”, Stanford Social Innovation Review, vol. 16, n. 4, 2018.

2 Werner Ulrich, “Some difficulties of ecological thinking, considered from a critical systems perspective: A plea for critical holism”, Systems Practice, vol. 6, n. 6, 1993.

3 Elisabeth Bumiller, “We Have Met the Enemy and He Is PowerPoint”; The New York Times, 26 abr. 2010.

4 C. West Churchman, The Systems Approach, New York: Delta/Dell Publishing, 1968.

5 Magnus Ramage e Karen Shipp, Systems Thinkers, London: Springer, 2009.

6 Ludwig von Bertalanffy, General System Theory: Foundations, Development, Applications, New York: Braziller, 1968.

7 Michael C. Jackson e Paul Keys, “Towards a System of Systems Methodologies”, Journal of the Operational Research Society, vol. 35, n. 6, 1984.

8 Russell L. Ackoff, Ackoff’s Best: His Classic Writings on Management, New York: John Wiley & Sons, 1999.

9 Michael C. Jackson, Systems Thinking: Creative Holism for Managers, Chichester, United Kingdom: John Wiley & Sons Ltd., 2003.

10 Seelos e Mair, “Mastering System Change”.

11 Ibidem.

12 As quatro dimensões são descritas com mais detalhes in Seelos e Mair, Innovation and Scaling for Impact: How Effective Social Enterprises Do It, Stanford, California: Stanford University Press, 2017.

13 Donileen Loseke, Thinking About Social Problems, New Brunswick, Canada: Transaction Publishers, 2008; Malcolm Spector e John I. Kitsuse, Constructing Social Problems, New Brunswick, Canada: Transaction Publishers, 2001.

14 Peter Checkland criou várias ferramentas e estruturas práticas para facilitar esse trabalho; ver também ferramentas e estruturas criadas por Michael C. Jackson e por Werner Ulrich sobre abordagens críticas e emancipatórias de sistemas.

15 Robert K. Merton, “The Sociology of Social Problems”, in Robert K. Merton e Robert A. Nisbet, eds., Contemporary Social Problems, 4 ed., New York: Harcourt, 1976.

16 Seelos e Mair, Innovation and Scaling for Impact.

17 Seelos e Mair, “Mastering System Change”.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 55

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DE VISTA

Celebrar as Pessoas para Mudar a Cultura do Serviço Público

Como premiações podem ser usadas para criar conscientização, levantar o moral, combater a corrupção e inspirar uma nova geração de funcionários públicos em nível local e global.

POR ELOY OLIVEIRA

remiações para celebrar conquistas em diversos campos não são uma grande novidade.

O Prêmio Nobel é concedido desde 1901, o Pulitzer, desde 1917, e o primeiro Oscar é de 1927. No entanto, as premiações que celebram avanços do setor público são novas. Iniciativas recentes demonstram que a atribuição de prêmios a funcionários públicos que se destacam no seu trabalho pode mudar a forma como as pessoas enxergam o setor público, quebrando preconceitos e mostrando as melhores práticas a outros profissionais.

A Stanford Social Innovation Review (SSIR) já deu espaço para uma rica discussão sobre a utilidade de premiações, em artigos escritos por Alex Dehgan e réplica por Kevin Starr. Em breve síntese, os autores debateram se premiações são de fato uma ferramenta efetiva para entidades do Terceiro Setor atingirem seus objetivos institucionais. Por um lado, Starr argumenta que premiações podem retirar as entidades filantrópicas do seu verdadeiro foco, levando à falta de alocação eficiente de capital filantrópico. Além disso, embora admitindo que os prêmios possam acelerar projetos sociais, alguns prêmios não contam com um júri qualificado e sofrem com opiniões tendenciosas, levando assim a más escolhas. Por outro lado, Dehgan aponta que existem, sim, casos positivos de competições/prêmios, como o Skoll Awards. A premiação da Skoll Foundation se destaca como exemplo de investimento sério travestido de prêmio que concede uma soma substancial (US$ 1,25 milhão) a vários

vencedores a cada ano. Com o recurso, eles podem levar suas organizações sociais ao próximo nível de impacto. A discussão entre os autores leva à sugestão de algumas diretrizes que podem ajudar a melhorar o impacto geral das premiações, como ter uma maioria de juízes com bastante conhecimento na área que estão julgando e evitar que a maior parte dos recursos do prêmio vá para fins secundários, como a cerimônia de premiação ou jantar de gala. Em resumo, o essencial é se concentrar no impacto da proposta, em vez de se distrair com coisas menos relevantes.

Essa rica argumentação, que levou a Usaid e o Banco Mundial a repensar suas estratégias envolvendo premiações, também inspirou muitas organizações sem fins lucrativos em todo o mundo a utilizar premiações como ferramentas para melhorar a governança e eficácia dos governos. O Brasil não ficou para trás.

Servidores públicos brasileiros enfrentam uma grande falta de confiança pública e de reconhecimento por seu trabalho, particularmente como consequência dos escândalos de corrupção e da intensa exposição na mídia de histórias negativas. Segundo dados recentes da agência global de comunicação Edelman, apenas 26% dos brasileiros acham que “as autoridades governamentais inspiram confiança”. A quantidade de pessoas que veem os excessos da burocracia como prejudiciais e capazes de facilitar a corrupção é enorme e a percepção geral é que os servidores públicos não estão realmente entregando um bom trabalho à sociedade.

Para mudar esse estigma, em 2018, um consórcio de mais de 20 ONGs e fundações

criou o Prêmio Espírito Público, tido hoje como o mais importante para pessoas que trabalham com governos no Brasil. A premiação visa corrigir os estigmas da confiança e transparência, celebrando os melhores servidores públicos do país e aprimorando a visão sobre todos no funcionalismo público. O objetivo é dar ampla divulgação aos melhores servidores e servidoras públicos do país, utilizando os meios de comunicação nacionais para informar os cidadãos e mudar a percepção falha da população sobre o setor público.

Da Inspiração ao Impacto no Setor Público Para ser considerado para o prêmio, cada candidato deve preencher um formulário online. Ao longo de suas cinco edições, milhares de pessoas se inscreveram, de todos os 27 estados brasileiros.

Uma equipe interna examina as candidaturas para filtrar a elegibilidade. Na fase seguinte, um time de mais de 160 jurados e juradas avalia os candidatos elegíveis com base em quatro critérios:

1) capacidade de inspirar outras pessoas dentro de sua equipe;

2) contribuição em áreas técnicas específicas;

3) o impacto de seu trabalho na sociedade;

4) momentos de superação e resiliência a favor do país.

Os jurados e juradas são servidores públicos aposentados, acadêmicos e até ex-ministros de Estado.

Além de chamar a atenção para as realizações excepcionais dos vencedores, ao conceder-lhes destaque na mídia nacional, o prêmio também proporciona aos servidores públicos uma imersão internacional projetada para inspirá-los e ampliar o impacto de seu trabalho.

Na edição de 2018, os premiados foram para Londres, na Inglaterra, em uma viagem de uma semana organizada pelo jornal The Guardian Ali, tiveram a chance de conhecer órgãos públicos e de participar do evento de premiação do próprio jornal para servidores públicos.

No prêmio seguinte, os vencedores fizeram uma imersão de uma semana em Berlim, na Alemanha, organizada pela Hertie School of Governance. Além de ter a chance de aprimorar suas habilidades e ouvir palestrantes

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 57 INSIGHTS DAS LINHAS DE FRENTE PONTO

de renome mundial, eles também participaram de reuniões com servidores alemães e de uma recepção oficial na Embaixada do Brasil.

Nas edições de 2020 e 2021, os premiados assistiram a palestras e debates realizados por um grupo de gestores públicos sobre temas como educação, segurança pública, governo digital, meio ambiente, desenvolvimento social e sistema de alta direção pública do serviço social do Chile.

Compartilhar B oas Práticas

O impacto do Prêmio Espírito Público é notável. Com o acesso à mídia e a milhares de telespectadores que assistem às notícias sobre o prêmio, os vencedores conseguem divulgar as melhores práticas e inspirar outros servidores públicos do país. Um dos vencedores do prêmio inspirou uma diretora de cinema a iniciar um documentário sobre seu trabalho e o impacto que está causando.

Em 2022, a premiação confirmou a crescente relevância do prêmio. Canais de TV, rádio e mídias digitais, com um alcance estimado de meio milhão de pessoas, compartilharam as histórias de impacto de 27 servidoras e servidores. A festa de premiação foi realizada no Rio de Janeiro, na Estação NET Botafogo.

Por O nde Começar

A partir da experiência de concepção e lançamento do Prêmio Espírito Público, identificamos pelo menos três importantes passos iniciais a serem dados na utilização de premiações que causam impacto social:

1) A definição do objetivo final e que tipo de prêmio seria mais adequado para esse fim. Em “The Future of Prize Philanthropy”, Renya Reed Wasson estabelece três tipos distintos de prêmios filantrópicos: prêmios de reconhecimento, que visam homenagear trabalhos já realizados; prêmios de incentivo, centrados na motivação das pessoas para a prossecução de um objetivo claramente definido; e prêmios de recursos, que, diferentemente dos dois anteriores, fornecem aos vencedores impulso crucial para terminar um projeto de impacto.

2) Alinhamento dos critérios de seleção com seus objetivos. No exemplo brasileiro, um dos critérios iniciais do prêmio era que os candidatos deveriam ser servidores públicos ativos com pelo menos dez anos de experiência pública. O objetivo era garantir que as pessoas apresentassem um histórico sólido e, ao mesmo tempo, tivessem tempo para se beneficiar dos prêmios, dentro de suas carreiras.

3) Definir qual será o objeto premiado, ou seja, o que as pessoas receberão como reconhecimento de suas realizações. Esta etapa se conecta com a primeira, porque leva aos resultados.

A título de exemplo, se a ideia é chamar a atenção para uma determinada pauta, a premiação deve focar em mídia. Se o objetivo é ver alguma ideia se tornando realidade, devem ser fornecidos recursos e conexões. Se o conceito é que as pessoas se sintam bem com o que fazem, deve ser proporcionada uma experiência única.

Pode parecer simples à primeira vista, mas construir prêmios com sucesso requer muito planejamento. Esses são alguns dos postos-chave, mas inúmeros aspectos devem ser levados em consideração antes de começar. A credibilidade e transparência de um prêmio, por exemplo, são fundamentais para sua existência. Por isso é necessário ter certeza de que os mecanismos necessários para garantir a lisura do processo de seleção estão presentes e funcionando. Por exemplo, uma das medidas adotadas pelo Prêmio

Espírito Público foi a de estabelecer que todas as inscrições sejam avaliadas por ao menos dois jurados diferentes para permitir que mais de uma pessoa possa opinar sobre cada inscrito. Além disso, a escolha dos vencedores é feita por um colegiado de especialistas a partir de uma lista de inscrições mais bem ranqueadas, o que impede que uma só pessoa possa impor a palavra final na escolha dos vencedores.

Não se pode descuidar também da parte da divulgação consistente e consciente do prêmio. Afinal as pessoas certas precisam saber que o prêmio existe, como também se sentirem engajadas para se candidatar. Este é um desafio maior do que se imagina. As pessoas que o Prêmio Espírito Público busca são profissionais dedicados, extremamente focados no seu trabalho e em entregar os melhores serviços públicos para a sociedade. Por isso é preciso um esforço especial para chamar a atenção dessas pessoas e motivá-las a se inscreverem.

O Prêmio Espírito Público foi planejado intensamente por mais de um ano e passou por várias rodadas de benchmarking antes de ser lançado. As categorias de premiação, por exemplo, foram exaustivamente debatidas pelos criadores do prêmio. Outros temas, como critérios de elegibilidade, etapas do processo seletivo, salvaguardas, calendário de inscrições, estratégia de divulgação, para citar alguns, também renderam ricas discussões. Ainda assim, diversas adaptações e evoluções são necessárias ao longo do caminho e o prêmio segue evoluindo ano após ano. As categorias de premiação mencionadas acima são um exemplo dos temas que são rediscutidos todos os anos para atender aos anseios mais urgentes do serviço público e da sociedade e, por isso, são sempre renovadas.

Melhorar o Funcionalismo Público Usar prêmios como ferramentas para melhorar o serviço público não é uma tarefa fácil, pois exige muito planejamento e muito trabalho. Felizmente existem alguns bons exemplos ao redor do mundo.

O Brasil não está sozinho no esforço de catalisar mudanças no funcionalismo

58 Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023
EDITORIA DE ARTE
ELOY OLIVEIRA é pesquisador na área de Políticas Públicas, mestre em Administração Pública pela Columbia University (EUA) e doutorando em Políticas Públicas pela Texas University (EUA). Formado em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, é conselheiro do República.org e um dos idealizadores do Prêmio Espírito Público Brasileiro.

público por meio do uso estratégico de prêmios. Conheça alguns dos exemplos de premiações que acontecem em outros países e que serviram de inspiração para a criação do Prêmio Espírito Público:

• SAMUEL J. HEYMAN SERVICE TO AMERICA MEDALS (também conhecido como The Sammies Award) – Concedido pela primeira vez em 2002, o Sammies é apresentado anualmente pela The Partnership for Public Service, uma fundação sem fins lucrativos e apartidária em Washington, D.C., nos Estados Unidos. O prêmio visa reconhecer os funcionários do governo federal que contribuíram significativamente para a governança do país. Até o momento, mais de 130 pessoas e equipes foram reconhecidas em oito áreas que abrangem os diversos setores do serviço público federal. A comissão de seleção é composta por profissionais multidisciplinares.

• INTEGRITY IDOLS – Lançado em 2014 pelo Accountability Lab, o Integrity Idols homenageia servidores públicos que demonstram integridade exemplar em seu trabalho. Equipes voluntárias reúnem as indicações no Nepal, Libéria, Paquistão, Sri Lanka, Nigéria, Mali, África do Sul e México. Painéis independentes de especialistas reduzem a lista de indicados a cinco finalistas por país. Os cidadãos de cada país podem votar nos finalistas com base em um pequeno vídeo exibido na televisão nacional e no rádio.

• GLOBAL TEACHERS PRIZE – A partir de uma perspectiva global, o Prêmio Global Teachers Prize visa reconhecer o grande trabalho de professores de todo o mundo que deram uma contribuição notável para a profissão. A Fundação Varkey lançou o prêmio em março de 2014. Os vencedores selecionados pela Global Teacher Prize Academy recebem um prêmio de US$ 1 milhão, que podem usar para investir em sua própria agenda educacional, ajudando a ampliar seu impacto.

O Prêmio Espírito Público é um exemplo de sucesso e seu crescimento e fortalecimento são um sinal claro do seu valor. O prêmio tem um meticuloso ciclo de 12 meses de planejamento e implementação. Existem vários aspectos a serem levados em consideração, mas os benchmarks e as etapas cruciais mencionadas ao longo deste artigo dão uma boa base para

qualquer um que esteja considerando um empreendimento semelhante.

Mais importante, este resumo deve inspirar outras pessoas a usar prêmios como ferramentas para criar consciência, elevar o moral, combater a corrupção e inspirar uma nova geração de servidores públicos em nível local e global.

No caso do Prêmio Espírito Público, o objetivo de longo prazo é mudar a forma como as pessoas enxergam o serviço público brasileiro, quebrando os preconceitos e estigmas que hoje existem em torno dos profissionais públicos.

Essa mudança de mentalidade e percepção leva tempo e depende de um fluxo contínuo de bons exemplos no serviço público que possam ser celebrados e reverberados pelo país. O fato de o prêmio continuar crescendo pelos seus primeiros cinco anos é um sinal positivo, mas a missão está longe de estar terminada e há muito trabalho pela frente. O plano é continuar crescendo exponencialmente pelos próximos cinco anos e contaminar mais e mais pessoas com o mantra do impacto positivo no serviço público. n

Quando a Contribuição da Comunidade Dá Errado

A crise habitacional da Califórnia tem suas raízes no poder de veto de governos e comunidades locais.

POR NED RESNIKOFF E BRIAN HANLON

s custos com moradia dispararam em regiões urbanas abastadas dos Estados Unidos e pelo mundo afora, de Seattle a Nova York, de Londres a Hong Kong. O grau zero desse desastre é a Califórnia. A escassez de habitações no estado alcançou níveis de crise nos últimos anos, o que produziu forte desigualdade, declínio populacional e desalojamento em massa. Todos esses fatores derivam do mesmo culpado: uma crônica insuficiência na construção de moradias em relação à população e ao crescimento econômico. O Departamento de Habitação e Desenvolvimento Comunitário (HCD, na sigla em inglês) local estima que o estado precisará construir 2,5 milhões de moradias adicionais até 2030

As políticas de uso da terra da Califórnia servem de exemplo para o resto do mundo – como modelo do que não fazer. O principal entrave para erguer essas moradias têm sido governos e comunidades locais intransigentes, que se recusam a promover o zoneamento e a aprovar a construção das moradias que se mostram necessárias. Sua arma mais eficaz é a vetocracia local de uso da terra da Califórnia,

metodologia essa que protege o status quo e demanda negociações individuais por projeto com muitos e variados grupos de interesse. O sistema de aprovação discricionária da Califórnia é um dos maiores obstáculos à construção de habitações em larga escala. Ele revela uma história que pode servir de lição acerca de como o respeito incondicional aos intermediadores de poder local e a “contribuição da comunidade” podem gerar consequências perversas.

Dias Contados para o New Housing

A revisão discricionária é exatamente o que parece ser: governos municipais, comissões de planejamento, comitês de circulação, conselhos de revisão de projeto e outros têm o poder discricionário de aprovar ou negar projetos de habitação, independentemente de estarem em conformidade com as normas locais. O bizantino processo de aprovação de moradias em cidades como San Francisco capacita funcionários indevidamente e obriga construtoras a navegar por uma vertiginosa série de etapas até que seus projetos sejam aprovados – se é que chegarão a ser aprovados. O processo varia segundo a cidade e o

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 59
PONTO DE VISTA

projeto, mas pode incluir um extenso período para manifestações do público, uma revisão de projeto, uma declaração de revisão de impacto ambiental com várias centenas de páginas, mais observações do público e audiências junto à comissão de planejamento e ao conselho municipal. E ainda supondo que ninguém vá processar a construtora (mais sobre isso adiante).

Esse processo de aprovação pode arrastar a permissão por meses ou anos, ou até a construtora e os financiadores do projeto desistirem.

Em Los Angeles leva mais de oito meses para que um projeto proposto obtenha a permissão, de acordo com dados do HCD; em San Francisco, o processo como um todo não raro leva mais de três anos. São três anos passando por espirais burocráticas, até que a construtora finalmente possa iniciar as obras.

Conduzir um projeto dessa forma também demanda muito dinheiro. Como observou o San Francisco Chronicle em 2019, “em geral se requer toda uma miríade de profissionais dispendiosos, incluídos advogados, arquitetos e consultores auxiliares para o uso da terra, projetistas de espaços abertos e lobistas”. A referência a lobistas sinaliza sobre o quanto o sistema de aprovação discricionária atua como um convite à corrupção e afasta construtoras menores, com menos conexões políticas.

O privilégio da vereança – a prática de transferir aos legisladores locais a decisão de aprovar ou rejeitar um projeto proposto no distrito por eles representado – exacerba essa dinâmica. Também piora o processo de segregação habitacional, pois significa que novas unidades ficarão concentradas em distritos com menos influência política ou onde o funcionário encarregado simplesmente se opõe menos a mais moradias.

No entanto, as ações de uns poucos membros do conselho tomadas individualmente desempenham um papel pouco relevante nas mazelas do processo de aprovação discricionária da Califórnia. O problema maior está no sistema de contribuição comunitária do estado, que, apesar do nome, é profundamente antidemocrático.

Como pode a contribuição comunitária ser antidemocrática? Tudo depende da

voz que é ouvida. As oportunidades para uma contribuição da comunidade e de caráter pessoal em geral ocorrem em horas impróprias, quando pessoas que trabalham e pais que tomam conta de filhos pequenos estão menos propensos a participar. O resultado, segundo pesquisa realizada pelos cientistas políticos Katherine Einstein, David Glick e Maxwell Palmer, é o de que membros do conselho da cidade e funcionários encarregados do planejamento ouvem desproporcionalmente residentes que são brancos, com mais de 50 anos e que – por uma margem impressionante – são proprietários do imóvel em que residem. É evidente que tais proprietários têm mais incentivos do que os inquilinos para bloquear novos projetos, afinal de contas a escassez de moradias impulsiona o valor de seus imóveis.

E como se a representação exagerada de NIMBYs (acrônimo para Not in My Backyard, “Não no meu quintal”) no processo de debate público não fosse suficiente, pesquisas recentes do cientista político Alexander Sahn revelam que as observações do público que vão na direção contrária à dos novos projetos são duas vezes mais eficazes do que observações que vêm em apoio aos projetos propostos. Fato notável é o de que as descobertas de Sahn valem até mesmo para San Francisco, berço de grande número de bem financiadas comunidades sem fins lucrativos cuja missão é auxiliar pessoas de baixa renda e amparar projetos de habitação acessível. Cidades têm feito várias tentativas de melhorar a representação nas contribuições da

comunidade, e isso inclui medidas como fornecimento de comida e serviço de creche. Durante a pandemia, muitas assembleias públicas passaram a ocorrer pelo Zoom, uma inovação que, alguns especulavam, tornaria o processo mais democrático. Infelizmente, Einstein, Glick, Palmer e a colaboradora Luisa Godinez Puig concluíram serem tais esforços, em ampla medida, vãos. Apesar dessas desigualdades, várias organizações sem fins lucrativos de viés progressista mantêm silêncio quando o assunto é revisão discricionária ou propõem maior “empoderamento da comunidade” como solução para os problemas habitacionais na Califórnia. Em pequena escala, essa abordagem faz sentido: onde as organizações sem fins lucrativos mantém forte influência política, o processo discricionário dá a elas mais poder para aperfeiçoar projetos individuais – por exemplo, ao garantir que sejam mais ecologicamente corretos ou ao redobrar esforços para obter mais unidades acessíveis subsidiadas. Mas o processo discricionário, ao mesmo tempo em que atua no aperfeiçoamento de um pequeno grupo de projetos, torna muito mais lento o crescimento global em números de moradias, responsável pelos próprios sintomas que essas organizações sem fins lucrativos objetivam curar.

E ainda que um projeto de algum modo esclareça todos os aspectos de veto que acima descrevemos, os NIMBYs sempre podem entrar com alguma ação. Isso se deve em ampla medida à Lei de Qualidade Ambiental da Califórnia (CEQA, na sigla em inglês), que é única na jurisprudência dos Estados Unidos. Qualquer pessoa pode entrar com ação com o intuito de interromper um projeto habitacional sob o CEQA, caso o governo local tenha o arbítrio de aprovar ou negar algum projeto. Essas ações judiciais podem ser financiadas de maneira anônima, frequentemente por negócios concorrentes ou por sindicatos de trabalhadores em busca de um projeto de contrato de trabalho, podendo não estar relacionados com preocupações ambientais.

Abolindo a Vetocracia

A Califórnia tem o poder de abolir a vetocracia ao uso de terras. Grande

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NED RESNIKOFF é diretor de políticas do movimento YIMBY da Califórnia, no qual atua na construção da agenda política de longo prazo da organização, cujo objetivo é tornar as cidades da Califórnia acessíveis, inclusivas e neutras em carbono. BRIAN HANLON é presidente e CEO do movimento YIMBY da Califórnia.
ILUSTRAÇÃO DE ANNA GUSELLA

PONTO DE VISTA

parte do mundo desenvolvido e democrático aprova o desenvolvimento das políticas habitacionais pela via ministerial ou “por direito”: se um projeto proposto se conforma ao zoneamento local, aos códigos de edificação e a outras exigências legais, os funcionários públicos então emitem licenças de construção. Os representantes eleitos não têm voz sobre projetos individuais que estão em conformidade com as normas locais.

Um sistema de aprovação ministerial é transparente. Os funcionários públicos aprovam ou rejeitam projetos e documentam seu conjunto de razões para análise pública. As construtoras não precisam contratar lobistas dispendiosos nem fazer doações à campanha de reeleição de algum membro do conselho da cidade para ter seus projetos aprovados; elas precisam apenas se conformar às normas.

Os proponentes do processo de ação comunitária alegam que esse trâmite é mais democrático do que as aprovações ministeriais e que o sistema discricionário empodera vozes marginalizadas. O consenso científico social, no entanto, é o de que a análise discricionária confere peso desproporcional à voz de uma minoria abastada. Por contraste, um processo ministerial se baseia em leis promulgadas por representantes devidamente eleitos. Ao escolher as pessoas que autorizam em última instância o planejamento geral de uma cidade – e que participam do esboço desse planejamento vinculativo –, o público efetivamente adquire uma voz mais potente em aprovações ministeriais. Os membros da comunidade podem julgar representantes eleitos com base nos resultados do planejamento, o que produz uma responsabilização democrática. Além do mais, a contribuição pública torna-se mais fácil e mais acessível quando uma cidade convoca grandes assembleias para assinar um único projeto plurianual do que quando se tem um sem-número de “prefeituras” menores para cada proposta de construção individual.

Em um artigo recente, Anika Singh Lemar, professora da Yale Law School, propõe um vantajoso modelo para um regime de uso da terra democrático e discricionário. Segundo o sistema de Lemar, a participação pública seria requerida durante o planejamento municipal, “incluindo adoções e revisões de planos abrangentes, códigos

e mapas de zoneamento”. Mas a aprovação de projetos individuais se daria por direito, o que contorna um dos principais obstáculos a tornar nossas cidades mais inclusivas e acessíveis.

Países com bom funcionamento de mercados imobiliários, como a Alemanha, adotam aprovações de habitação por direito. Na verdade, a Alemanha facilita a obtenção de uma permissão de moradia, e isso contribui para a notável estabilidade de preços de habitações no país. Na Inglaterra, por outro lado, o caso é bem parecido com o da Califórnia. Tudo está aberto a negociação e, como resultado, há uma brutal escassez de moradias, enquanto para os custos com habitação o céu parece ser o limite.

Construir e obter financiamento acessível de moradia é também mais fácil com um sistema de direito. Em vez de sujeitar as construtoras a demandas caprichosas por benefícios comunitários, um acordo num sistema de direito poderia utilizar incentivos para construir moradias acessíveis subsidiadas de forma direta e consistente. As cidades poderiam aprovar mudanças de zoneamento como os 100% de sobreposição de moradias acessíveis (mudanças de zoneamento que permitem às construtoras construir em alturas ou densidades maiores para edificações que consistirão inteiramente de unidades acessíveis) ou mesmo financiar a criação de moradias sociais.

No âmbito do movimento YIMBY (acrônimo para Yes in My Backyard, “Sim no meu quintal”) da Califórnia, um fio condutor comum a perpassar nosso trabalho está na insistência em normas estaduais claras, com alguma flexibilidade local, a enfatizar resultados equitativos ao longo de um processo contínuo. Por exemplo, o esforço do YIMBY da Califórnia em legalizar unidades de habitação acessórias (ADUs, na sigla em inglês), como uma garagem independente que o proprietário de uma casa converteu em morada para alugar, ajudou a cercear atividades locais lesivas e levou a uma explosão na construção dessas unidades de habitação acessórias, que hoje respondem por cerca de 25% de todas as permissões em Los Angeles. Uma emenda à Lei de Acessibilidade de Moradia, pela qual lutamos em 2017, tem acelerado as autorizações de moradia, ao mesmo tempo que são concedidos benefícios especiais a projetos de habitação 100% acessíveis.

Como atestam os elevadíssimos preços de moradias, locatários a arcar com pesados encargos e a quantidade de pessoas sem teto, temos muito trabalho a fazer. Esse trabalho não terminará até que aceleremos a construção de casas em grande escala e rejeitemos o processo discricionário de autorização de moradia. Os que necessitam de acesso à habitação não podem esperar. n

Crescimento Inclusivo

Tulsa está pilotando um novo modelo para mensurar seu crescimento, esperando ser seguida por outras cidades.

economia americana está muito desequilibrada. A maior parte do crescimento do país ocorre em algumas poucas zonas de grandes áreas metropolitanas costeiras, ignorando quase inteiramente o vasto coração do país e seus mercados pequeno e médio. Essa divisão tem criado bolsões de prosperidade e dinamismo que também estão se tornando caros demais

para os jovens que neles vivem, enquanto no restante do país grassa uma supressão de oportunidades e um ressentimento se dissemina por toda parte.

Com o reconhecimento de que a desigualdade geográfica é um problema de primeira ordem nos Estados Unidos e que os empregos do futuro radicam numa florescente economia de inovação, em 2020 a George Kaiser Family Foundation lançou o Laboratório de Inovação

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de Tulsa (TIL, na sigla em inglês) para ajudar a construir um polo tecnológico na cidade de Tulsa, em Oklahoma, que pudesse alavancar as forças locais e expandir oportunidades tecnológicas para todos os residentes. Tendo em vista essa finalidade, nossa equipe procurou identificar novos indicadores econômicos com o intuito de mensurar e monitorar nosso progresso e garantir que Tulsa estava crescendo do modo certo.

Ocorre que essa atividade nos desafiou mais do que o esperado. Nós lutamos para identificar um arcabouço que refletisse nossa aspiração a um crescimento inclusivo. Concluímos que a métrica tradicional, como os empregos criados ou o salário médio, muitas vezes deixa de captar os reais propulsores de crescimento e pode excluir análises mais nuançadas que dizem respeito à inclusividade, à diversidade e à resiliência dos empregos. A economia do conhecimento está interrompendo rapidamente o legado das indústrias e dos mercados de trabalho e, com isso, a métrica de crescimento do passado perde sua relevância. Dadas as complexas mudanças em curso, buscamos novas ferramentas para mensurar a prontidão, rastrear o progresso e garantir que o crescimento da economia do conhecimento mais reduza a desigualdade do que a exacerbe.

Percebemos que a escassez de métrica e os problemas sistêmicos eram maiores do que Tulsa e que as soluções passíveis de serem idealizadas por nós e por outros poderiam ter uma aplicação mais ampla. Ao se expandir para além do escopo de Tulsa, o TIL entrou em parceria com o Heartland Forward e com o Aspen Institute para estabelecer o Economy Forward Framework – um conjunto de nove métricas de crescimento inclusivo que, quando aplicadas juntas, detectam o modo como a cidade está crescendo e quais áreas precisam ser contempladas para tornar a economia local mais vibrante e equitativa.

Métrica Inclusiva

Nossa pesquisa e análise original têm foco em 38 cidades de tamanho médio cuja população da região metropolitana

varia entre 750 mil e 1,5 milhão. Identificamos essas cidades como o ponto de convergência do movimento demográfico que estamos testemunhando desde os polos tecnológicos situados na região costeira até as cidades emergentes da região central, movimento esse que pode tornar os Estados Unidos um país mais equitativo. Nós as examinamos durante um período de dez anos (2010-2020).

Três das métricas utilizadas relacionam a indústria e determinados segmentos da economia do conhecimento que uma cidade está buscando para crescer. A primeira delas diz respeito à participação de empregos na economia do conhecimento, que pagam melhor e são mais raros em muitas cidades do Meio-Oeste. A segunda se refere à participação da contratação em empresas inovadoras com menos de seis anos de idade, mede a capacidade de uma região em produzir e reter empresas com elevado potencial de crescimento. A terceira versa sobre gastos com pesquisa e desenvolvimento acadêmicos, que podem servir, por força de universidades e faculdades locais, para ancorar economias de inovação.

O segundo conjunto de métricas tem a ver com acessibilidade, que é o grau em que as oportunidades de instrução e de carreira se encontram disponíveis para populações carentes. Uma delas é o índice de participação da

força de trabalho segundo raça e sexo, que pode indicar se trabalhadores vulneráveis estão sendo adequadamente preparados para a transição econômica. A segunda versa sobre os diferentes graus de participação em programas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, na sigla em inglês), nesse que é um desafio de âmbito nacional, em especial entre estudantes americanos pretos ou africanos, americanos indígenas ou nativos do Alasca e hispânicos. A última métrica dá conta da participação de empresas que são de propriedade de minorias e mulheres em indústrias com base em conhecimento. Uma pontuação elevada nesse quesito indica êxito na capacitação de empreendedores de populações carentes, os quais conseguem prosperar à frente de indústrias inovadoras, o que ajuda a cobrir a corrosiva lacuna de riqueza do país.

O último pacote de medidas se relaciona ao que chamamos de vibrância, a vitalidade global de uma comunidade. Uma das medidas diz respeito aos investimentos públicos em qualidade de vida e está relacionada a amenidades culturais e recreativas que são determinantes cada vez mais importantes nas quais os trabalhadores da economia do conhecimento e as empresas que os empregam optam por se situar. Outra foi o percentual de residentes com formação no mínimo universitária que são úteis nas crescentes inovações de startups e de comercialização. A terceira medida avalia a retenção de graduados de instituições educacionais locais, crucial para impedir a fuga de cérebros, que pode obstaculizar os esforços em cultivar forças de trabalho altamente especializadas, necessárias para construir e sustentar uma economia de inovação.

Com base nesses nove indicadores, fomos capazes de criar o que chamamos de pontuações “Economy Forward”, que segmentaram as 38 cidades em quatro grupos, revelando em que ponto uma cidade atualmente se encontra em sua jornada rumo a uma economia de inovação que seja, de fato, inclusiva.

O primeiro nível, cidades-prontas para o futuro, em geral apresenta economias do conhecimento que, num

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ILUSTRAÇÃO DE ANNA GUSELLA
NICHOLAS LALLA é fundador e diretor-executivo do Laboratório de Inovação de Tulsa. Lançou o projeto Cyber NYC na Companhia de Desenvolvimento Econômico da Cidade de Nova York.

PONTO DE VISTA

crescimento estável e consistente, estão se movendo na direção correta. Um exemplo desse tipo de metrópole é a área metropolitana de Omaha-Council Bluffs, na divisa de Nebraska com Iowa. Outrora conhecida sobretudo por seus frigoríficos e posicionamento como núcleo de transportes, Omaha-Council Bluffs evoluiu para se transformar em um centro de negócios importante, que sedia empresas ranqueadas no anuário Fortune 500, abarcando uma ampla gama de indústrias: Berkshire Hathaway (holding), Kiewit Corporation (construção civil), Mutual of Omaha (banco) e Union Pacific Corporation (ferrovia e transportes). Com elevada proporção da população com diploma universitário (34,7%) e a segunda maior taxa de participação global da força de trabalho (71,07%) entre as zonas pesquisadas, não surpreende que a cidade também ostente o terceiro maior crescimento na participação de empregos da economia do conhecimento (+4,70% de 2010 a 2020). Omaha-Council Bluff é uma rara combinação entre uma população instruída e trabalhadora, um núcleo de negócios forte e um futuro empresarial jovem e vibrante. O segundo nível, cidades quase prontas, compreende trajetórias positivas com uma série de indicadores fortes, mas ainda com necessidade de amadurecer. Boise, em Idaho, por exemplo, é uma economia forte e ágil que está produzindo startups, mas necessita estimular suas jovens empresas para a economia do conhecimento. Tem apresentado elevada proporção de contratação por empresas jovens (13,49%) e sua população é relativamente bem instruída, com muitos residentes tendo no mínimo formação universitária (30,44%). Ainda assim, seu crescimento negativo em intensidade de conhecimento por empresas jovens (-1,56%) e na participação de empregos em economia do conhecimento (-0,77%) se encontra em último lugar entre dez cidades de tamanho médio. A chave para o persistente êxito de Boise reside na conexão entre suas já vigorosas forças de trabalho empreendedoras e instruídas, o que se traduz em jovens empresas com aplicação intensiva de novos conhecimentos.

O nível mais baixo, cidades em situação de risco, compreende municipalidades que

têm vivenciado economias em contração e enfrentam sérios problemas de equidade, o que faz com que provavelmente venham a enfrentar dificuldades na nova economia. El Paso, no Texas, por exemplo, está na pior posição entre cidades de porte médio: apresenta a pior intensidade de conhecimento nas empresas jovens (12,75%), crescimento bastante lento na participação de empregos na economia de conhecimento (-0,2%), e além disso o percentual de residentes com formação no mínimo universitária (+3,66%) revela uma carência de força de trabalho instruída. Ao mesmo tempo, a cidade ostenta a primeira posição quanto ao crescimento dos índices de participação da força de trabalho global (+3,4%) e é a quarta melhor cidade em se tratando da melhoria dos índices de participação da força de trabalho feminina (+3,8% em relação à população masculina). Também ocupa o oitavo melhor índice de emprego em empresas jovens (13,93%), o que indica forte impulso de pessoal novo, que, ao entrar para a força de trabalho, é empregado em empresas jovens. Nenhuma cidade em nosso estudo apresenta uma disparidade tão grande entre sua situação atual e seu potencial para o futuro. Se El Paso pode migrar para a economia do conhecimento, seu rápido crescimento econômico pode torná-la uma cidade altamente competitiva. Com base em seu crescimento acima da média em intensidade de conhecimento por empresas jovens (+0,46%), essa tendência pode já ter se iniciado.

E quanto à própria cidade de Tulsa? Ela não se saiu especialmente bem na pesquisa, mas apresenta um movimento à frente suficiente para ser classificada como cidade de oportunidade, o terceiro nível. Tais cidades têm ativos ou forças locais para alavancá-las, mas demandam investimento sustentado para se converter em economias de crescimento inclusivo e reconhecidamente tecnológicas.

Outrora conhecida como “Capital Mundial do Petróleo”, Tulsa teve de se esforçar para se adequar ao século 21. Apresenta bons índices de participação média da força de trabalho (64,2%), mas tem baixo percentual de residentes com formação no mínimo universitária (26,78%) e baixa intensidade de conhecimento

por parte das empresas jovens (21,82%). Com isso, o principal desafio enfrentado por Tulsa não está na crescente participação das contratações, e sim em requalificar e atrair trabalhadores com elevado grau de instrução e em fomentar indústrias resilientes na economia do conhecimento.

Aplicando a Estrutura

Essa metodologia para estimar a situação e as perspectivas de uma cidade, aplicada de maneira consistente nos Estados Unidos e pelo mundo afora, é passível de impulsionar o desenvolvimento econômico. Para aplicar a estrutura à sua cidade, recomendamos os passos a seguir:

n Identifique um líder. Identifique uma organização local para liderar o processo de coleta e análise de dados da cidade, para garantir capacidade e acesso a fontes de dados.

n Alinhe a objetivos. Compartilhe dados com seus parceiros locais e incentive a coalizão de desenvolvimento econômico de sua cidade a adotar um conjunto comum de objetivos, com métricas quantificáveis.

n Desenvolva um painel de controle. Após refinar a métrica de conhecimento inclusivo para sua cidade, traduza-a num painel de controle fácil de usar para monitorar e rastrear o progresso da cidade.

n Analise os dados. Periodicamente, revise e analise os dados, o que pode aflorar insights sobre quaisquer refinamentos que se façam necessários para a estratégia de um desenvolvimento econômico local.

n Envolva o público. Mantenha fóruns públicos e emita atualizações de recomendações para a região.

n Aja com intenção. Integre a métrica do conhecimento inclusivo em seus investimentos para o desenvolvimento econômico de modo que gere intervenções providas de um olhar aguçado à métrica mais importante para o crescimento inclusivo.

Se os Estados Unidos se tornarem mais inclusivos e equitativos e se o desenvolvimento for distribuído pelo país afora em vez de ficar concentrado em bolsões já prósperos, o resultado será crescimento maior e melhor para todos. n

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PESQUISA

DESTAQUES DE PUBLICAÇÕES ACADÊMICAS

LIDERANÇA

O Custo de Dizer Pouco

POR DANIELA BLEI

rank Flynn, professor de comportamento organizacional da Graduate School of Business da Stanford University (Stanford GSB, na sigla em inglês), leciona no programa de educação executiva. Ao conduzir avaliações de liderança, Flynn notou que as pessoas tendiam a receber críticas mais severas por sua comunicação do que por quaisquer outras habilidades que apresentavam na condição de líderes. Também reparou que, enquanto a qualidade da comunicação havia gerado discussão e debate acadêmicos, a quantidade – o que empregados entendem como sendo excessiva ou insuficiente – não havia recebido o mesmo cuidado.

Flynn formou uma parceria com Chelsea Lide, doutoranda da Stanford GSB, a fim de investigar as dimensões quantitativas da comunicação – sua profundidade, seus detalhes e frequência – em avaliações de liderança. Agora, em um artigo recente, a dupla expõe evidências de quatro estudos mostrando que a quantidade de comunicação importa. E que, aos olhos dos empregados, a maior parte dos gestores falha em se comunicar de modo satisfatório, o que traz consequências danosas para as avaliações de seu desempenho.

Nos primeiros dois estudos, Flynn e Lide debruçaram-se sobre relatos diretos que

discutiam os pontos fracos de seus líderes. Os empregados citaram a comunicação insuficiente dos gestores e fizeram fortes críticas quando estes comunicavam pouco, em vez de fazê-lo em demasia. Em um terceiro estudo, eles puderam replicar suas descobertas e mostrar que empregados penalizavam gestores em

sinal de que os líderes careciam de empatia ou de cuidado e preocupação para com os empregados. Além disso, quando eles viam seus gestores como pouco comunicativos, e por isso carentes de empatia, Flynn e Lide notaram que a confiança em suas habilidades de liderança diminuía.

Em um quarto estudo, os pesquisadores empenharam-se em avaliar contextos do mundo real. Ao trabalhar com uma amostragem de graduados em MBA, Flynn e Lide perguntaram-lhes sobre o quanto esperavam que seus gestores se comunicassem com eles e de que modo caracterizavam a quantidade de comunicação que recebiam.

empregados preferiam que seus gestores comunicassem assim como a percepção do modo como os gestores se comunicavam com eles. “Acabamos por verificar que, quando essas duas coisas se combinam – a percepção e a preferência –, os empregados veem seus líderes como mais empáticos e eficazes”, diz Lide. “Quanto mais longe você pode ir com essa combinação, mais duramente penalizados são os líderes, mas isso especificamente quando se tem uma carência de comunicação.”

grau muito maior por falta de comunicação. “Em teoria, a falta de comunicação é ruim, mas o excesso também o é”, afirma Lide. “Ocorre que as penalizações são assimétricas. Nós queríamos entender por quê.”

Outra pesquisa sugere que gestores não raro comunicam menos do que deveriam por temerem reações negativas, ou porque presumem, de maneira equivocada, que sua comunicação é eficaz. Com o uso de evidência experimental, os dois pesquisadores constataram que a falta de comunicação era interpretada como um

“O que chamou minha atenção é o sentido do efeito reportado por Flynn e Lide”, afirma Gianpiero Petriglieri, professor de comportamento organizacional do Insead (Institut Européen d’Administration des Affaires) em Fontainebleau, na França. “Líderes vistos como se comunicando de modo insuficiente foram considerados menos empáticos e, portanto, menos capazes de liderar. A comunicação era um veículo para a conexão.”

O desafio de estudar comunicação é sua subjetividade – sua suficiência e eficácia estão nos olhos do observador. Desse modo, os pesquisadores reconheceram a necessidade de mensurar quanto os

Cientes dos muitos modos pelos quais o gênero contribui para as expectativas de comunicação bem-sucedida, Flynn e Lide usaram verificações de robustez em seus dados para avaliar se a empatia percebida foi afetada pelo fato de o gestor ser do sexo feminino ou masculino. Eles descobriram que o papel da empatia percebida, ou até que ponto um líder deixa a desejar na comunicação de acordo com o empregado, transcendia os efeitos de gênero. O mesmo se mostrou verdadeiro para idade e identidade étnico-racial. Os pesquisadores reconheceram, contudo, que seus estudos cobriam indivíduos dos Estados Unidos e poderiam não se aplicar a contextos culturais não americanos.

Apesar das preferências idiossincráticas dos empregados pela comunicação, o artigo mostra que a maior parte dos gestores compartilha pouco. Uma vez que os pesquisadores constroem a comunicação de maneira ampla, sem especificar um mercado ou uma função em particular, suas descobertas sugerem que todos os líderes deveriam se beneficiar da solicitação de feedbacks

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ILUSTRAÇÃO DE ADAM M c CAULEY
DANIELA BLEI é historiadora, escritora e editora. Seus textos podem ser conferidos em daniela-blei.com/writing. Ela tuíta esporadicamente: @tothelastpage.

relacionados a sua comunicação e do quão eficaz ela é.

“Como em todas as relações, não importa o quanto nós esperamos ouvir, o silêncio excessivo machuca muito mais do que o excesso de palavras”, diz Petriglieri. “O silêncio sinaliza falta de atenção, falta de interesse e, em última instância, falta de cuidado – e é isso que, eu acredito, mais se espera dos líderes.” n

Francis J. Flynn e Chelsea Lide, “Communication Miscalibration: The Price Leaders Pay for Not Sharing Enough”, Academy of Management Journal, publicação em breve.

DIREITOS HUMANOS

Como a Crise dos Refugiados se Torna Permanente

POR DANIELA BLEI omo doutoranda da University of Cambridge, Inglaterra, Corinna Frey-Heger estava interessada em melhorar as respostas à crise global de refugiados. A sua pesquisa a levou a Ruanda, onde uma grave crise de deslocamento tinha se convertido num atoleiro: refugiados da República Democrática do Congo estavam vivendo em campos desde 1996, com uma nova geração tendo nascido em estruturas construídas para resistir a uma emergência de curto prazo.

Durante a visita de Frey Heger, em 2015, os refugiados congoleses ainda estavam recebendo cobertores e kits de primeiros socorros destinados a recém-chegados, muito embora os campos persistissem já por duas décadas.

Hoje professora na Erasmus University, Holanda, Frey-Heger uniu forças com Marian Gatzweiler, professor de organização e gerenciamento da University of Edimburgh, na Escócia, para analisar o que estaria impedindo uma resposta eficaz à prolongada crise de deslocamento de Ruanda. Um artigo recente de Frey-Heger, Gatzweiler e Bob Hinings, da University of Alberta, Canadá, elucidou o quanto as respostas organizacionais podem piorar os próprios problemas que intentam solucionar.

Com base no trabalho de campo realizado por Frey-Heger em cinco campos de refugiados em Ruanda e na sede em Genebra de uma organização internacional não identificada de auxílio aos refugiados, os pesquisadores conduziram entrevistas e empreenderam observações participativas com os múltiplos atores que juntos formam o regime transnacional para a proteção de refugiados. Eles também examinaram documentos de arquivo de doadores, de organizações baseadas nas Nações Unidas, de ONGs internacionais e locais e do governo ruandense.

“Encontramos prioridades disparatadas”, afirma Gatzweiler. “Doadores, ONGs e organizações com base nas Nações Unidas verificaram um grau de colaboração mínimo entre eles. Se tal colaboração funcionava para o sistema, ela não necessariamente funcionava para o problema que se buscava solucionar.”

Ruanda tem demonstrado abertura a diferentes abordagens, explicam os pesquisadores, e ainda assim o quadro institucionalizado para a proteção

de refugiados – com seus ciclos orçamentários anuais, interesses divergentes e prioridades políticas conflitantes – forma barreiras que limitam o modo como as organizações respondem às crises. “Muito embora compartilhem objetivos amplos de resolver os deslocamentos e aliviar o sofrimento, com frequência cada um dos atores se encontra trabalhando em seu próprio contexto”, diz Julie Battilana, professora de comportamento organizacional da Harvard Business School.

Os pesquisadores identificam quatro barreiras ao nível do sistema para enfrentar a crise, a começar com a decisão de prosseguir com o acampamento em áreas remotas. Para agentes responsáveis em Kigali, capital de Ruanda, campos centralizados são mais fáceis de policiar, já as organizações humanitárias preferem distribuir alimentos e assistência num único local. De acordo com os pesquisadores, o problema para os refugiados é que eles estão bloqueados em áreas isoladas e sem infraestrutura. As comunidades próximas são pobres, o que faz dos campos uma fonte de tensão que demanda maior proteção e isolamento prolongado para os indivíduos que ali estão.

Em segundo lugar, o artigo mostra em que medida o foco na proteção dos refugiados cria um senso de urgência e imediatismo que favorece o pensamento de curto prazo. “Ciclos anuais de planejamento e orçamento bloqueiam a capacidade da organização de imaginar que a crise possa se tornar de longo prazo”, afirma Frey-Heger. “Se você pode planejar para o ano

seguinte, trata-se sempre de uma crise anual, ainda que se tenham quinze anos sucessivos de crises anuais.”

O ciclo de recrutamento de que a organização depende –a terceira barreira encontrada – indica que os membros da equipe são muitas vezes substituídos e realocados de uma crise para outra no prazo de um ano. Conforme o ciclo pessoal começa e termina, a organização perde a capacidade de perceber seu próprio papel no agravamento do problema que busca solucionar.

A quarta barreira está na abordagem simplificada e padronizada que as organizações empregam, independentemente das necessidades da comunidade ou governo hospedeiros, ou das condições locais. Um manual de campo global codificou um sistema que funciona para vários grupos de interesse, mas não para os refugiados. “Essas quatro barreiras atuam juntas”, afirma Hinings, “e o que vemos são campos de refugiados que são essencialmente suas próprias cidades, exceto pelo fato de que não lhes é permitido desenvolver uma economia formal local.” Essas quatro barreiras estão intimamente interconectadas, o que torna difícil para os atores responder a um problema que só faz aumentar. “Esse trabalho é oportuno e essencial; a humanidade está enfrentando desafios globais cada vez mais complexos, cuja solução demandará cooperação.” n

Corinna Frey-Heger, Marian Konstantin Gatzweiler e C. R. (Bob) Hinings, “No End in Sight: How Regimes Form Barriers to Addressing the Wicked Problem of Displacement”, Organization Studies , publicação em breve.

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PESQUISA

E FINANCIAMENTO

Os Desagrados da Mão Amiga

POR CHANA R. SCHOENBERGER sobre como o oferecimento de ajuda pode ferir o bem-estar de quem a recebe, ao passo que oferecer um insight prático quando se ajuda é algo que serve para minimizar esses efeitos nocivos”, escrevem os pesquisadores.

e você vê alguém realizando uma tarefa, deve ajudar a concluí-la? Talvez essa pessoa possa falhar, na hipótese de você não estender a mão. Mas, se ela obtiver êxito, talvez se sinta melhor se tiver alcançado o objetivo sozinha do que se sentiria caso você a ajudasse.

Uma nova pesquisa examina esse dilema moral tão comum e descobre, surpreendentemente, que o timing da ajuda oferecida desempenha um papel central em determinar como quem a recebe se sente ao obtê-la.

Somos todos criaturas sociáveis, inclinadas a oferecer ajuda a quem dela possa precisar. Mas tais tendências podem exigir custos psicológicos dos que recebem ajuda. Uma pesquisa prévia demonstrou que receber ajuda pode fazer com que quem a recebe se sinta dependente, incompetente, em dívida e menos feliz quanto à conclusão da tarefa que se propôs a executar.

Mas como pode o timing ajudar a diminuir esses efeitos negativos? Uma equipe de pesquisadores conduziu experimentos a fim de verificar como as pessoas se sentiam quando se lhes ofereciam ajuda, para então mirar no timing da ajuda. Eles notaram que os que recebem ajuda mais cedo sentem-se melhores do que os que a recebem perto do fim.

“Nossas descobertas antecipam o entendimento comum

Os autores do artigo são Min Jung Koo, professora da Sungkyunkwan University (SKK), na Coreia do Sul; Suyeon Jung, doutoranda da University of Wisconsin-Madison; Maurício Palmeira, professor da University of South Florida; e Kyeongheui Kim, também professora da SKK.

Os pesquisadores conduziram nove experimentos diferentes, com indivíduos realizando ou ouvindo uma narrativa sobre desempenhar uma tarefa banal, como montar um quebra-cabeça, jogar Campo Minado, montar um cachorro com LEGO, resolver o cubo mágico ou desenhar um arranjo floral. Em algumas versões do experimento, uma pessoa oferecia uma ajuda crucial no início da tarefa, já em outras o auxílio chegava quase ao final.

“Ao longo dos nove estudos, mostramos que as pessoas têm menos contentamento e satisfação quando recebem ajuda num estágio tardio (versus estágio precoce) de uma atividade”, concluíram os pesquisadores.

Os experimentos revelaram que o problema é de “propriedade psicológica”: a pessoa que

recebe apoio sente-se como se estivesse perdendo a propriedade do projeto, e quanto mais tarde chega a ajuda, mais ela sente seu controle se esvair.

Os experimentos também revelaram que os recebedores ficam descontentes com a ajuda dada mais tarde, quando estão fazendo algo de que intrinsecamente gostam ou em se tratando de algo que se sentem motivados a terminar. Já quando realizam uma tarefa obrigatória, o mesmo efeito não aparece. Além disso, os pesquisadores perceberam que resolver o problema para quem recebe ajuda faz com que se sintam pior, mas oferecer ferramentas de auxílio – ensinando-os a pescar em vez de lhes dar o peixe – não os torna mais descontentes.

Para chegar a esse resultado, “basta dar uma dica ou sugerir um meio pelo qual essa pessoa possa tentar”, em vez de dar a ela a resposta ou assumir a tarefa inteiramente, afirma Koo.

As implicações da pesquisa para o mundo real podem ser vistas no modo como as empresas tratam seus funcionários, diz Koo. Apesar de que as empresas muitas vezes têm prazos importantes para

cumprir, os gestores também precisam considerar o impacto da ajuda não solicitada na autoconfiança dos funcionários. “Eles podem ter de dar uma oportunidade para que os funcionários terminem a tarefa, uma vez que a iniciaram”, ela afirma.

“Essa pesquisa traz uma contribuição fascinante a nossa compreensão do desenvolvimento da propriedade psicológica e sobre quando e como indivíduos com propriedade psicológica respondem a ações de outros”, comenta Colleen Kirk, professora associada de marketing da School of Management do New York Institute of Technology. “Ao identificar esse novo e interessante fenômeno, os pesquisadores fizeram avançar a literatura sobre propriedade psicológica e respostas humanas aos sinais de propriedade psicológica, intencionais ou não, de outras pessoas.”

O artigo é relevante para muitos aspectos da vida, em parte porque leva tempo para que a propriedade psicológica se desenvolva, afirma Kirk.

“Esse trabalho aprimora a pesquisa em propriedade psicológica e em territorialidade, fazendo ver que o timing de se infringir a ação de um indivíduo pode impactar o modo como os proprietários psicológicos responderão.” n Min Jung Koo, Suyeon Jung, Mauricio Palmeira e Kyeongheui Kim, “The Timing of Help: Receiving Help Toward the End (vs. Beginning) Undermines Psychological Ownership and Subjective Well-Being”, Journal of Personality and Social Psychology, julho de 2022.

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FILANTROPIA
CHANA R. SCHOENBERGER é jornalista sediada em Nova York. Escreve sobre negócios, finanças e pesquisa acadêmica. Pode ser encontrada no Twitter: @cschoenberger.
ILUSTRAÇÃO DE ADAM MCCAULEY

A Naturalização da Desigualdade

A Sociedade Desigual, de Mario Theodoro, traz para o centro das grandes interpretações sobre o Brasil e o racismo o problema da desigualdade visto de uma perspectiva econômica.

POR PAULO CÉSAR RAMOS

mercado editorial brasileiro tem sido agraciado com diversas obras sobre raça, racismo, preconceito e negritude, temas que tangenciam as mazelas e as esperanças por detrás do problema racial no país. Fruto de um processo de inclusão racial nas universidades, muitos autores negros têm podido publicar suas obras e fazer circular contribuições que antes eram restritas a círculos de especialistas e ao nicho do ativismo antirracista. Enquanto surgem convites para que escrevam novos trabalhos ou relancem livros por editoras estabelecidas e mesmo hegemônicas no mercado editorial brasileiro, as livrarias dedicam prateleiras e seções comerciais ao tema.

O nome ainda é incerto: estudos raciais, antirracismo, relações raciais. Mas está claro que um nicho de mercado para tais questões está sendo construído num momento em que não apenas há muitos leitores negros em potencial, mas também existe uma abertura maior para se debater o tema. Além disso, como disse a professora Marcia Lima, em entrevista ao jornal El País, em 23 de novembro de 2020, o próprio status do tema racial mudou de patamar. Tal cenário permite que novos entendimentos venham à tona com antigas teses revisitadas, outras novas surgindo, assim como um novo olhar para conceitos e problemas conhecidos.

É neste contexto que surge com brilho o livro de Mario Lisboa Theodoro, que traz para o centro das grandes interpretações sobre o Brasil e o racismo o problema da desigualdade desde uma perspectiva econômica. Talvez como um balanço de sua

trajetória, que inclui passagens por espaços de gestão pública e de pesquisas para a elaboração de políticas públicas, Theodoro articula variadas dimensões das desigualdades em torno da ideia de “sociedade desigual”, associando três conceitos: branquitude, biopoder e necropoder.

Os sete capítulos de A Sociedade Desigual não deixam o leitor esquecer de sua proposta assentada numa perspectiva econômica, que trata o racismo como uma ideologia política e que alcança o plano das microrrelações sociais, sempre encontrando resistências individuais e coletivas. O primeiro capítulo apresenta uma varredura sobre como a teoria econômica sobre desigualdade aborda a questão racial. Além de ser um guia para este debate, Theodoro mostra com clareza sua posição, seu desafio analítico em estudar

as reações raciais por meio da economia e qual é a teia interpretativa que ele tece. Em seguida, o autor faz jus a esta proposta e trata do mundo do trabalho; na sequência, desvenda a relação entre educação e saúde. Daí avança para falar da desigualdade racial em termos da ocupação do espaço, centro e periferias, rural e urbano. O quinto capítulo é dedicado a temas pouco visitados pelos clássicos das desigualdades, a violência e a justiça. Mais que uma conclusão, o último capítulo traz uma síntese do que foi apresentado ao leitor. Por fim, há um epílogo que versa sobre o ativismo negro.

O caminho percorrido em A Sociedade Desigual é marcado pela fidelidade do autor à sua formação e trajetória, como economista, com pós-graduação em ciências sociais na Universidade Paris I – Sorbonne, na França, e uma longa trajetória de serviços prestados ao poder público. Primeiro como técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde organizou e publicou diversos trabalhos voltados à questão racial; como assessor parlamentar, quando mergulhou no funcionamento do Estado brasileiro; e depois como dirigente gestor da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial entre 2010 e 2014.

Tanto a base conceitual sobre a qual constrói sua interpretação quanto os dados utilizados nesta construção evidenciam isso. Theodoro demonstra uma fluência ímpar para lidar com os dados. A clareza de sua visão sobre as leis e como estas se fazem reais sobre a vida cotidiana da população negra são uma grande força do livro. Também se destacam a reconstrução histórica que ele faz em cada uma das áreas em que pisa. Tudo isso com o respaldo de uma revisão bibliográfica sem igual para o momento, com os clássicos e, mais ainda, os trabalhos mais atuais sobre os temas abordados. Sem dúvida, para cada um dos capítulos há um trabalho de revisão bibliográfica fundamental que vem acompanhado de sua interpretação sobre o que é a sociedade desigual.

Muito didaticamente, Theodoro demonstra com tais dados como a sociedade desigual é estruturada. Sua explicação está assentada

Stanford Social Innovation Review Brasil | Março de 2023 67 LANÇAMENTOS NO BRASIL E NO MUNDO LIVROS
A SOCIEDADE
DESIGUAL: RACISMO E BRANQUITUDE
NA
FORMAÇÃO DO BRASIL
Por Mario Lisboa Theodoro 1a edição. Zahar, Rio de Janeiro: Zahar, 2022

nos conceitos de branquitude, biopoder e necropoder. Diferentemente de outras interpretações contemporâneas, o racismo aqui ocupa um papel quase que secundário, pois a segregação nas cidades, a exclusão social, baixos salários, desempregos, evasão escolar, encarceramento e mortes teriam como principais articuladores a branquitude, a biopolítica e a necropolítica. “A branquitude diferencia e divide a sociedade brasileira entre os vencedores e os vencidos, já antes do pontapé inicial. Ela, e não o racismo, é o divisor. O racismo une na forma de pensar e de agregar crenças e valores, cria consenso. A loura branca de olhos azuis, padrão indiscutível da beleza socialmente valorizada, é um exemplo do consenso do racismo. A branquitude diferencia, dá vantagens e abre as portas, inclusive favorecendo a ascensão social. Na outra ponta, todo

de discriminação e preconceito racial. Já no macro, o racismo e seus efeitos serão estudados levando em consideração suas variantes mais importantes: a branquitude, o biopoder e a necropolítica” (Theodoro, 2021, p. 67).

Pelo texto bem desenhado do autor, é possível notar o processo em que a sociedade desigual desenvolve-se pelo nível estrutural e vai modelando a totalidade da vida social, seja pelo farto material empírico mobilizado por Theodoro, seja pelas reflexões promovidas a partir das obras consultadas. Theodoro apresenta então uma descrição objetiva dos traços dessa sociedade: “Quatro características podem ser associadas às sociedades desiguais. A primeira é que são sociedades que convivem com a situação de desigualdade extrema e persistente, em detrimento de um grupo racialmente dis-

Assim, a produção e a reprodução de violações na sociedade desigual, desde a perspectiva colocada pelo autor pelas quatro características acima, acrescentam um quê de dinamismo ao seu esquema interpretativo.

Contudo, ainda cabem três observações gerais. A primeira delas é o destaque ao trabalho informal na análise de Theodoro. Historicamente, a população negra tem ocupado sua força de trabalho nas atividades laborais que estão fora dos esquemas formais das relações de trabalho. Isto é, a massa de trabalhadores negros não goza dos direitos celebrados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ao longo da história do Brasil, os negros desempenham atividades sem estabilidade, sem acesso a outros direitos, como vale-transporte e vale-alimentação, não possuem a proteção corporativa dos sindicatos etc. Isto é uma importante característica, pois, de modo geral, tudo o que é pensado em termos de políticas públicas para o mundo do trabalho tem por base a realidade dos trabalhadores celetistas, privando os negros inclusive da condição legal de trabalhador.

menino negro teme ser abordado pela polícia. Para os negros, a branquitude abre apenas algumas portas: da cadeia, do camburão, do cemitério” (Theodoro, 2021, p. 73).

Como afirma o autor, o racismo é a ideologia que, produzida pela materialidade das relações desiguais, promove a pacificação das vontades e mentalidades que sustentam a reprodução das desigualdades. Tais conceitos centrais estão presentes com mais força em cada um dos capítulos, e percorrê-los é avançar em uma espécie de crescente dramática da violação da população negra: a branquitude organiza o mundo do trabalho, a biopolítica está mais operante na esfera da educação e da saúde, controlando corpos, fazendo ou deixando viver e morrer; e a necropolítica faz a transição entre a vida no território negro e o funcionamento das instituições de repressão e justiça, com a produção de mortes.

“No micro, importa a caracterização do racismo em seus desdobramentos em práticas

criminado, sem que esse quadro suscite seu enfrentamento efetivo por parte do Estado. Em segundo lugar, são sociedades que produzem assimetrias em áreas diversas e importantes da dinâmica social, como o mercado de trabalho, a educação, a saúde, a distribuição espacial da população, cada uma delas agindo como potencializadora das desigualdades; essas diferentes assimetrias se autorreforam e são cumulativas, em desfavor do grupo discriminado. Em terceiro, essas sociedades estabelecem mecanismos jurídico-institucionais e repressivos que funcionam como elementos de estabilização social e de preservação do quadro de desigualdade. E, por fim, enfraquecem as forças contrárias ao status quo, notadamente os movimentos sociais, que não conseguem acumular recursos políticos, simbólicos ou econômicos, descaracterizando-os em suas demandas políticas, criminalizando qualquer reivindicação ou bandeira que possa alterar o quadro de iniquidade ” (Theodoro, 2021, p. 18).

O segundo aspecto é a aproximação que Theodoro faz entre as questões ligadas à desigualdade e os problemas de violência e justiça. Durante o processo de transição democrática, o otimismo contextual esperou a redução da pobreza, a redução da violência, bem como da democratização das instituições, o fim da repressão. As duas expectativas foram frustradas, e a realidade histórica mostrou que, por um lado, a repressão estatal, a produção de encarceramento e a violência policial e, por outro, a violência interpessoal homicida possuem lógicas próprias que não foram alcançadas pelas noções correntes de desigualdades. A perspectiva da sociedade desigual, portanto, fornece um caminho analítico promissor para a análise destes dilemas.

Por fim, o texto apresenta um epílogo dedicado ao ativismo negro antirracista que viria melhor como prólogo. Ao longo de todo o livro está presente a ação dos movimentos negros, intelectuais negros, ativistas etc. que fazem com que os problemas sociais se tornem problemas políticos. n

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LIVROS
Theodoro demonstra uma fluência ímpar para lidar com os dados. A clareza de sua visão sobre as leis e como estas se fazem reais sobre a vida cotidiana da população negra são uma grande força do livro.
PAULO CÉSAR RAMOS é doutor em sociologia pela USP, bacharel e mestre em sociologia pela UFCar, e foi pesquisador de pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia (2022). É pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo. É autor do livro Contrariando a estatística: genocídio, juventude negra e participação política (Alameda Editorial, 2021).

Grande Mudança Estrutural

O livro Reinventando o Capitalismo num Mundo em Chamas, de Rebecca Henderson, apresenta cinco maneiras pelas quais podemos reformar o capitalismo para superar mudanças climáticas, desigualdade e o colapso da democracia.

ma certa esquizofrenia se espraiou recentemente pelo campo do impacto social em se tratando do capitalismo. Por um lado, investidores de impacto, empreendedores sociais e líderes de corporações estão cada vez mais abraçando o poder do lucro a fim de encontrar soluções para os problemas do mundo e aplicá-las em grande escala. Ao mesmo tempo, outros têm declarado ser o capitalismo um fracasso irremediável em razão da destruição ambiental, de trabalhos opressivos e mal pagos, do preconceito racial e de gênero e da produção de enorme desigualdade econômica que resultam do sistema. A intensa anomalia global causada pela pandemia de Covid-19 exacerbou ainda mais a discordância, realçando a fragilidade e as implacáveis iniquidades do capitalismo

Rebecca Henderson entra nesse debate com seu novo livro, Reinventando o Capitalismo num Mundo em Chamas (recém-publicado no Brasil pela AltaBooks). Com um texto envolvente e revigorante, Henderson expõe sua visão de um capitalismo justo e sustentável e enumera as mudanças necessárias para nos fazer chegar lá. As empresas precisam abraçar um senso de propósito para além da maximização dos lucros, encontrar novas oportunidades de negócios para fazer frente às necessidades da sociedade e levar em conta o bem-estar de todas as partes interessadas. Os investidores devem focar o longo prazo e considerar os impactos sociais e ambientais. E os governantes têm de regular o mercado de maneira mais rigorosa e impor um imposto sobre carbono. Por fim,

todos os setores precisam atuar em conjunto para enfrentar os desafios globais por meio de ação coletiva. Henderson sustenta que tais mudanças não apenas criariam um mundo melhor, mas também proporcionariam empresas mais lucrativas e uma economia mais vigorosa.

Ainda que seu plano possa parecer impossível, o otimismo de Henderson está calcado num profundo conhecimento como estudiosa que tem atuado junto a líderes empresariais. Professora renomada da Harvard Business School (HBS) e já há muito prestando consultoria a CEOs de corporações globais, Henderson traz uma compreensão pormenorizada do modo como operam corporações, investidores e nosso sistema capitalista. Seu curso de MBA intitulado “Reconfigurando o capi-

talismo” (concebido com seu colega George Serafeim) inspirou este livro.

Existem evidências consideráveis de que as mudanças que Henderson defende já estão começando a aparecer. Larry Fink, CEO da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, tem insistido em que as empresas devem ter um propósito para além de gerar lucro. Muitas empresas adotaram a ideia de criar valor partilhado mediante a busca de estratégias competitivas baseadas em impacto social (abordagem inicialmente descrita por mim e pelo meu colega professor da HBS Michael Porter num artigo de 2011 da Harvard Business Review). Há uma dinâmica crescente para que investidores e líderes empresariais atentem para o desempenho de longo prazo. Iniciativas de impacto coletivo e parcerias público-privadas são cada vez mais comuns.

Mas se todas essas recomendações são boas para os negócios, por que tantas empresas resistem tenazmente às mudanças? O trabalho que Henderson realizou anteriormente é aqui relevante. Ela é especialista no modo como empresas enfrentam mudanças radicais. Por exemplo, por que a Kodak, que foi a primeira a inventar a fotografia digital, terminou em falência? Ou como foi que a Nokia, que produzia mais da metade dos telefones celulares do mundo, acabou surpreendida pela Apple?

A resposta de Henderson opera uma distinção entre inovação incremental, que é fácil, e inovação arquitetural, que requer uma reconsideração profunda das relações entre componentes num sistema. A Kodak poderia construir uma câmera melhor, mas jamais foi capaz de apreender a ideia de que uma câmera pode se tornar parte de um telefone, o que tornou obsoletas quase todas as operações da empresa. Diante das pressões do dia a dia, ninguém tem tempo de reconfigurar uma empresa inteira. É difícil até mesmo visualizar quais mudanças seriam requeridas, já que o conhecimento arquitetural se torna profunda e invisivelmente incorporado à estrutura da empresa.

A inovação arquitetural se parece muito ao que nós, no setor social, temos chamado de “mudanças sistêmicas”. Na verdade, um modo de descrever este livro é como uma

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REINVENTANDO O CAPITALISMO NUM MUNDO EM CHAMAS
Por Rebecca Henderson Editora Alta Books; 1a edição, 2022

abrangente abordagem de mudança sistêmica visando a refazer o capitalismo, que, de uma “destruição do mundo e do tecido social a serviço do dinheiro fácil”, como escreve Henderson, passa a ser uma “construção de prosperidade e liberdade no contexto de um planeta habitável e de uma sociedade saudável”.

Os céticos do capitalismo vão se identificar com as afiadas críticas de Henderson, enquanto seus partidários vão apreciar a visão de futuro por ela esboçada, de um capitalismo nobre e mais construtivo. A promessa do livro é ir além dos debates superficiais e reducionistas quanto a ser o capitalismo bom ou mau e chegar a uma discussão mais profunda sobre o que seria preciso para redirecionar seu inegável poder a uma equidade e sustentabilidade.

gregação das instituições da família, da fé e do governo como os três maiores desafios que o mundo enfrenta. O capitalismo global “saiu dos trilhos”, ela argumenta, e a primazia do acionista tem chegado a um ponto em que “muitas das empresas do mundo acreditam ser seu dever moral nada fazer pelo bem público”.

Henderson explica o raciocínio falacioso que nos conduziu a uma armadilha, qual seja a destruição da nossa fé no governo pelo equívoco dos CEOs em pensar que sua única responsabilidade é maximizar a renda dos acionistas, o que motiva os gestores de investimento a manter o foco no curto prazo e a fazer campanha para que a elite se livre de impostos e suas empresas, de regulamentação.

(autoestrada)? Será que estamos mergulhados demais em nosso modo de pensar antiquado para reconhecer a oportunidade, assim como a Kodak foi incapaz de migrar para as câmeras de celular?

A resposta, e segunda proposição de Henderson, é a de que as únicas empresas capazes de fazer mudança arquitetural tão radical são as comprometidas com um propósito que vá além do lucro. É esse senso de propósito que confere a líderes de empresas a visão e coragem para fazer mudanças sistêmicas. Comprometer-se com um objeto social, segundo Henderson, é ela própria uma mudança arquitetural.

A terceira proposição é reconectar as finanças, e isto requer que nossos sistemas de contabilidade financeira incluam métrica social e ambiental, que os investimentos de impacto continuem o seu crescimento e que a gestão da empresa seja mais protegida da pressão do investidor de curto prazo.

Afinal de contas, o capitalismo retirou mais de um bilhão de pessoas da pobreza extrema e proporcionou tecnologias que teriam sido inimagináveis um século atrás. Se existe um meio de domar essa fera a serviço de um mundo melhor, certamente vale tentar.

Ao contrário de outras críticas recentes ao capitalismo, como a do Os Vencedores Levam Tudo: A farsa de que a elite muda o mundo, de Anand Giridharadas, Henderson centra seus esforços em soluções. Valendo-se do método de caso da HBS, ela ensina por meio de complexas histórias da vida real. Não promete que a solução vá ser fácil ou mesmo alcançável e nem todas as histórias têm um final feliz. Ainda assim, mesmo que a transformação de que necessitamos não seja fácil nem certa, é extremamente útil dar-nos uma visão clara das mudanças interdependentes que alinhariam empresas, investidores, ativistas e governo a serviço de um capitalismo justo e sustentável. É difícil mirar num objetivo sem saber como ele se parece.

Henderson vê as mudanças climáticas, a extrema desigualdade de riquezas e a desa-

Chegar a um capitalismo justo e sustentável demanda cinco mudanças. E a maior parte do livro é dedicada a mostrar, por meio de exemplos, como essas mudanças poderiam se dar e o grau em que já estariam se dando. Em primeiro lugar, as empresas podem criar valor partilhado mediante a busca de modelos de negócios que criem valor simultaneamente para os negócios e para a sociedade. Empresas inovadoras que têm repensado suas estratégias para criar resultados sociais e ambientais positivos efetivamente trabalham melhor do que aquelas aferradas a abordagens mais convencionais.

Desse modo, também, empresas “high road”, que procuram confiar nos funcionários, pagar bem, oferecer benefícios, além de dar autonomia e oportunidades de crescimento, são mais lucrativas do que empresas “low road”, que tratam os funcionários como engrenagens sem rosto numa máquina, prescrevendo cada movimento deles e pagando o mínimo.

Por que motivo nem todas as empresas criam valor partilhado e tomam a high road

Mudar o comportamento do investidor pode parecer algo impossível, porém Henderson salienta que a concentração de poder de investimento é tão grande – os 15 maiores gestores de investimento juntos direcionam metade da riqueza do mundo – que um punhado de pessoas poderia mudar as práticas de investimento global da noite para o dia.

A quarta proposição é a construção de cooperação, porque nenhuma empresa individual pode enfrentar sozinha os desafios do mundo. Consórcios industriais podem criar soluções, como os esforços da Unilever em unir indústrias de bens de consumo para combater o desmatamento para a produção de óleo de palma. Mas Henderson é honesta quanto às limitações de tal autorregulação, e o combate ao óleo de palma tem tido resultados desiguais. A autorregulação funciona apenas quando os benefícios são claros para todos, quando os participantes estão comprometidos com o longo prazo e quando os transgressores são punidos.

Finalmente, esses problemas não podem ser resolvidos sem governo. Modelos de governo inclusivo, que são democráticos e priorizam o bem-estar do cidadão, criam maior prosperidade e crescimento econômico mais

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MARK R. KRAMER é cofundador e diretor-executivo da empresa de consultoria FSG e professor sênior da Harvard Business School. É autor de numerosos artigos na Stanford Social Innovation Review, incluindo “Impacto Coletivo”, na edição do inverno de 2011.
Henderson vê as mudanças climáticas, a extrema desigualdade de riquezas e a desagregação das instituições da família, da fé e do governo como os maiores desafios.

intenso do que modelos extrativos, pelos quais o governo atua apenas em função dos interesses da elite. Henderson usa os exemplos reconhecidamente homogêneos da Dinamarca e Alemanha para fazer essa observação. Mas acrescenta também as Ilhas Maurício, que tiveram uma sociedade altamente diversificada e um histórico de escravidão. Porém, depois que rebeliões derrubaram o regime extrativista, um modelo de governança inclusivo conduziu a décadas de forte crescimento econômico, redução da desigualdade de renda e uma taxa de pobreza que caiu de 40% para 11%.

Esses cinco elementos de um capitalismo reconfigurado podem realmente se realizar no mundo que temos hoje? Os estudos de caso por vezes sugerem que tudo que necessitamos é de um líder com uma visão clara para intervir e assumir responsabilidade. Na maior parte dos exemplos, contudo, uma crise de algum tipo desencadeou a mudança – como uma tragédia pessoal, uma

crise financeira, um protesto espetacular do Greenpeace ou, no caso particular das Ilhas Maurício, uma revolução. Mesmo assim, a transição por vezes leva cinco ou dez anos. Se uma crise é necessária para desencadear uma reforma fundamental do capitalismo, poderia o coronavírus ser o catalisador?

A pandemia certamente demonstrou o papel essencial do governo e a ação coletiva para sustentar o capitalismo. Se líderes de empresas e investidores alguma vez se iludiram pensando que seu sucesso não dependia do bem-estar da sociedade, seu erro está agora à vista de todos. Seria promissor pensar que os temíveis números que o vírus assumiu em vidas humanas poderiam conduzir a uma reconfiguração fundamental do capitalismo, como as linhas de Henderson sugerem. Se a economia global continua moribunda, ela pode realmente dar origem a uma fé renovada no governo e a uma versão mais benéfica do capitalismo. Em contrapartida, se esse

desastre não for suficiente, é realmente assustador pensar na crise que seria necessária. Mas uma crise por si só não é suficiente. Nós também precisamos ser inspirados, e a visão de Henderson é tão convincente que o leitor é instado a ajudar na sua realização. O capítulo final, “Pedrinhas numa Avalanche de Mudança”, traz cinco gestos simples que cada um de nós pode realizar para contribuir com o esforço: descobrir o seu próprio propósito; colaborar com aqueles que compartilham de seus objetivos; trazer seus valores para o trabalho; trabalhar para uma ONG que exponha empresas, para levá-las a agir ou para que um investidor de impacto financie a mudança; e ter em mente que você não pode mudar o mundo sozinho. Pode apenas fazer a sua parte. Eu mesmo estou tentando seguir o conselho dela, promovendo as mudanças que ela propõe entre empresas e investidores com meu trabalho na FSG e na HBS. Essas mudanças têm de vir o mais rápido possível. n

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Uma Travessia Perigosa

No crepúsculo, um imigrante haitiano cruza o Rio Grande de Ciudad Acuña, estado de Coahuila, no México, para os Estados Unidos. Ele faz parte das dezenas de milhares de haitianos que migraram pela América Central e do Sul desde que o terremoto e o tsunami de 2010 mataram mais de 250 mil pessoas. Em 2021, o assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse por gangues armadas, um terremoto de magnitude 7,2 na escala Richter e a tempestade tropical Grace lançaram o Haiti numa nova turbulência política e ambiental.

I magens de agentes da Patrulha de Fronteira dos EUA a cavalo chicoteando pessoas que pediam asilo revelaram a gravidade da crise dos direitos humanos na fronteira, bem como a política de imigração fracassada do país.

Harold Koh, alto funcionário do Departamento de Estado, e Daniel Foote, enviado especial dos EUA ao Haiti, renunciaram em 2021 devido à continuação da política de deportação do ex-presidente Donald Trump pelo governo Biden.

Em sua carta de demissão, Foote afirmou que se recusava a “ser associado à decisão desumana e contraproducente dos Estados Unidos de deportar milhares de refugiados haitianos”.

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Foto de Pedro Pardo/AFP via Getty Images – MARCIE BIANCO

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