Stanford Social Innovation Review Brasil #2

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VOLUME 1 l NÚMERO 2 EDIÇÃO TRIMESTRAL DEZEMBRO 2022 COMO CONSTRUIR REDES MAIS RESILIENTES Por Michelle Shumate e Katherine R. Cooper A REVOLUÇÃO PSICODÉLICA NA SAÚDE MENTAL Por Marc Gunther A TRANSIÇÃO PARA A ECONOMIA VERDE Por Andrew J. Hoffman e Douglas M. Ely A Riqueza no Coração POR JOSÉ AUGUSTO LACERDA FERNANDES, GRAZIELLA MARIA COMINI E JULIANA RODRIGUES Como orquestrar a economia da floresta em pé Amazônia da

ARTIGOS

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Bioeconomia Inclusiva na Amazônia: Como Orquestrar a Economia da Floresta em Pé

A chave da proteção da Amazônia está em modelos de desenvolvimento que valorizem sua sociobiodiversidade e tenham como protagonistas as populações tradicionais.

É Hora de Colocar o Setor de Combustíveis Fósseis sob Cuidados Paliativos

POR ANDREW J. HOFFMAN E DOUGLAS M. ELY

Para sobreviver à crise climática precisamos abandonar os combustíveis fósseis por meio de uma transição justa e ordenada. As indicações para o setor são triagem, eutanásia e cuidados paliativos.

Como Construir Redes mais Resilientes

POR MICHELLE SHUMATE E KATHERIN R. COOPER

Momentos de crises existenciais são inevitáveis também para as redes de impacto social. No entanto, elas podem se preparar para essas situações respondendo às perguntas certas.

Escuta Ativa

POR EMILY KASRIEL

Desenvolver técnicas de escuta atenta é fundamental para criar entendimento e os relacionamentos genuínos necessários para mudança social.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022 1 DEZEMBRO DE 2022 VOLUME 1, NÚMERO 2
CAPA Ilustração de Adams Carvalho

Um líder em política global de educação queixou-se de ter viajado para três continentes para participar de três conferências diferentes sobre o assunto nas quais encontrou as mesmas pessoas.

SEÇÕES

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CARTA AO LEITOR

A Transição para uma Economia Sustentável

EDITORIAL BRASIL

A Floresta e o Futuro SSIR ONLINE

A Psicologia da Mudança Social Justiça Climática

6 O QUE HÁ DE NOVO

Telemedicina que Salva Vidas / Sobrepesca Positiva / Ressuscitar os Antigos / Roupas Íntimas que Detectam Câncer

HISTÓRIAS DO CAMPO

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Uma Franquia Social Expande o Empreendedorismo

A Street Business School oferece educação e orientação empresarial para ajudar os trabalhadores mais pobres do mundo a maximizar seu potencial de receita.

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Construindo uma Cultura de Pertencimento

A Mosaic America fomenta consciência e respeito entre culturas através de sua programação artística.

16 ESTUDO DE CASO

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PONTO DE VISTA

A Efetividade do Encontro Importa

Antes de correr para retomar grandes reuniões presenciais, devemos criar estratégias para saber como podemos torná-las mais impactantes.

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Tratando das Crises do Clima e de Cuidados

Na luta contra as mudanças climáticas, devemos garantir que as soluções não sobrecarreguem indevidamente mulheres e meninas.

POR JAMES MORRISSEY, SHERILYN MACGREGOR E SEEMA ARORA-JONSSON

63 PESQUISA

A Dança entre Empresas B e Incumbentes / Doação de Tempo x Doação de Dinheiro / O Impacto de Renda para a Primeira Infância / Novas Parcerias entre Empresas e Comunidades

LIVROS

67 Chegar a Zero

Os autores Michael Lenox e Rebecca Duff pedem por inovações disruptivas e reconfiguração radical das indústrias para descarbonizar o planeta até 2050.

POR AUDEN SCHENDLER

69 Abrace o Processo

A

Revolução Psicodélica na Saúde Mental

Em 1986, Rick Doblin lançou a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos para pesquisar e defender o uso de LSD, cogumelos mágicos e Ecstasy no tratamento de doenças mentais. Depois de três décadas de trabalho árduo, ele parece ter encontrado seu momento agora.

Cynthia Rayner e François Bonnici recomendam que as organizações que buscam mudanças sistêmicas se concentrem menos nos resultados e mais nos princípios e na prática.

POR ALEX COUNTS

72 ÚLTIMO OLHAR

Retratos do Mundo

2 SUMÁRIO Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022
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Nosso propósito é reduzir a violência, promover a cidadania ativa, justiça climática e transparência.

O Instituto Humanitas360 trabalha para construir sociedades mais justas e igualitárias em diversos países da América Latina, graças às nossas equipes no Brasil, EUA e com apoio de conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México, Argentina, Bolívia e Guatemala.

Conheça alguns de nossos projetos:

Cooperativas Sociais - Capacitação profissional e geração de renda para pessoas privadas de liberdade, egressas do sistema prisional e vítimas de violência doméstica, através de cooperativas sociais formadas dentro e fora de penitenciárias.

LAB360 - Cessão de computadores para unidades prisionais para que pessoas privadas de liberdade possam receber ensino a distância, fazer videoconferências com seus familiares.

Índice de Engajamento Cidadão das Américas - Comparativo do nível de engajamento e participação cívico-social dos habitantes de países do continente em parceria com a The Economist Intelligence Unit (EIU).

Tecendo a Liberdade - Documentário revelando as contradições do sistema de Justiça Criminal brasileiro sob a perspectiva das mulheres que trabalham nas cooperativas sociais apoiadas pelo H360.

Saiba mais sobre nosso trabalho em www.humanitas360.org @humanitas360

CARTA AO LEITOR

Diretora-geral Carolina Martinez carolina@ssir.com.br

Editora-chefe Ana Claudia Ferrari ana.ferrari@ssir.com.br

A Transição para uma Economia Sustentável

Com tantas crises nos últimos anos – a pandemia de Covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia, a tentativa de golpe do expresidente Donald Trump, inflação global –, nós paramos de prestar atenção às terríveis consequências do aquecimento global. Ou, talvez, como na história do sapo colocado numa panela de água para ser fervido lentamente, simplesmente aprendemos a viver com isso

Nesta edição da Stanford Social Innovation Review, trazemos o tema de volta para a pauta com o artigo “É Hora de Colocar o Setor de Combustíveis Fósseis sob Cuidados Paliativos”, de Andrew J. Hoffman e Douglas M. Ely, respectivamente professor e aluno de pósgraduação da Ross School of Business e School for Environment and Sustainability, da University of Michigan.

É um artigo interessante porque analisa o aquecimento global como um problema corporativo cuja causa principal é a indústria de combustível fóssil. Um dos desafios que enfrentamos, sustentam os autores, é descobrir uma forma de acabar gradualmente com uma indústria tão ampla e fundamental sem provocar novos problemas sociais. Que tipo de problemas? O impacto que a perda de dezenas de milhões de empregos em todo o mundo causará nos trabalhadores e nas comunidades em que vivem é um deles. Ou ainda o peso que o fechamento de poços de petróleo e de jazidas de carvão terá na economia dos países que dependem sobremaneira da extração de combustíveis fósseis.

Ainda que o problema seja claro, nossa capacidade de gerir essa transição de maneira organizada será um desafio. Pense em como tem sido difícil para os Estados

Unidos oferecer fontes confiáveis de energia nos últimos anos. A energia elétrica é uma das indústrias mais regulamentadas no país. Mesmo assim, todos os anos ocorrem mais e mais apagões, porque o investimento na melhoria da rede elétrica, antiga e frágil, não é suficiente. As usinas elétricas de combustível fóssil antigas permanecem sem que se promovam usinas elétricas sustentáveis de uma forma organizada.

E a eletricidade é apenas uma pequena parcela da indústria de combustíveis fósseis, também usados para aquecer nossas casas, escritórios e fábricas; alimentar nossos carros, caminhões e aviões; e que são um ingrediente essencial para a produção de fertilizantes, plásticos e produtos domésticos. A lista continua.

Às vezes, quando estou me sentindo pessimista, penso que, se não conseguimos sequer arrumar nosso sistema de energia, como vamos poder lidar com o encerramento das atividades de toda essa indústria? Porém, na maior parte do tempo, sou otimista. O artigo de Hoffman e Ely nos oferece um modo útil e até esperançoso de pensar a respeito de como pôr fim à indústria de combustível fóssil e sobre o papel que o mundo corporativo desempenhará nesse processo.

Como mostram os autores, essa transição nem sempre será benéfica para todas as empresas e outras partes da sociedade envolvidas. E não podemos depender apenas das forças do mercado para solucionar, por conta própria, esse problema. Se quisermos evitar as calamidades do aquecimento global, será preciso que organizações da sociedade civil e movimentos sociais fortes e atuantes, junto com Estado e empresas, promovam as mudanças necessárias.

Editor-assistente Daniel Pompeu

Coordenadora Maria Carolina Soares de marketing

Programador Web Daniel Miranda

Colaboraram nessa edição: Arte Estúdio Monearte

Tradução Ana Luiza Fleck Saibro, Aracy Mendes da Costa, Camilo Adorno, Cláudia Izumi, Frank de Oliveira

Revisão Mauro de Barros, Paulo Felipe Mendroni

Conselho Editorial

Daniela Pinheiro Eliane Trindade Graciela Selaimen Guilherme Coelho Marcos Paulo Lucca Silveira

Mantenedores Institucionais

Fundação José Luiz Egydio Setúbal Humanitas360 Movimento Bem Maior Samambaia Filantropias

CIVI-CO | Negócios de Impacto Social R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 - Pinheiros, São Paulo - SP, 05415-030

Quer falar com a SSIR Brasil? Redação: contato@ssir.com.br

Projetos especiais, publicidade, eventos: marketing@ssir.com.br

Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review

Publisher Michael Voss Editor-Chefe Eric Nee

Editora acadêmica Johanna Mair

Editores David V. Johnson, Bryan Maygers, Marcie Bianco, Aaron Bady, Barbara Wheeler-Bride

Editora edições Jenifer Morgan globais

Conselho Consultivo Acadêmico

Paola Perez-Aleman, McGill University

Josh Cohen, Stanford University

Alnoor Ebrahim, Harvard University

Marshall Ganz, Harvard University

Chip Heath, Stanford University

Andrew Hoffman, University of Michigan

Dean Karlan, Yale University

Anita McGahan, University of Toronto

Lynn Meskell, Stanford University

Len Ortolano, Stanford University

Francie Ostrower, University of Texas

Anne Claire Pache, ESSEC Business School

Woody Powell, Stanford University

Rob Reich, Stanford University

A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Stanford University.

Todos os direitos reservados.

4 Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022
Volume
2022
ssir.com.br Publicação trimestral
1 I número 2 I Dezembro

A Floresta e o Futuro

Há alguns anos, li no Institute for the Future uma frase que agora me vem à mente: “Devemos ser os arquitetos do futuro, e não suas vítimas”.

O artigo de capa desta segunda edição da Stanford Social Innovation Review Brasil é um apelo a essa criação coletiva (criativa e colaborativa) de futuros que precisamos construir para aquela que é a maior floresta tropical do mundo e peça-chave para os rumos da nossa espécie.

Escrito por um grupo de pesquisadores que acumula anos de reflexões, pesquisas e vivências na região, “Bioeconomia Inclusiva na Amazônia” discute caminhos para aliar atividades rentáveis e sustentáveis à proteção da floresta em pé e redistribuição de retorno para as populações tradicionais.

Em sua imensa complexidade, a região que abriga a maior coleção de biodiversidade da Terra, um quinto de toda a água doce do planeta e que desempenha papel fundamental na regulação do clima é também a que apresenta as 10 cidades mais pobres do Brasil e que contribui com apenas 8% do Produto Interno Bruto, embora ocupe perto de 60% do território nacional.

A Amazônia é um palco de contradições sociais, econômicas e políticas marcado pela exploração e expropriação das riquezas naturais, trabalho e saberes de seus habitantes. Como lembram José Augusto Lacerda Fernandes, Graziella Comini e Juliana Rodrigues, sua degradação é um dos maiores e mais complexos problemas ambientais do mundo e coloca em risco um conjunto de recursos e conhecimentos vitais para que um dia possamos responder às perguntas que ainda faremos à floresta.

Um novo e necessário capítulo na história da região só poderá ser escrito, argumentam os autores, com a cooperação e a articulação entre o ecossistema do empreendedorismo sustentável, as metaorganizações e o Estado. É dessa orquestração que trata o segundo artigo brasileiro que publicamos.

Nesta edição, que coincide com a chegada de um novo ano e de um novo governo, celebramos a mudança no calendário e a posse do governo eleito democraticamente, desejando futuros mais inovadores, igualitários, plurais e diversos. E com a urgência que pedem os desafios que enfrentamos local e globalmente.

Depois da dura experiência de uma pandemia e de quatro anos marcados, entre outras ocorrências, pelo grave retrocesso em questões sociais e ambientais, é hora de arquitetar o mundo em que queremos viver. E contribuir para que se torne realidade.

A Psicologia da Mudança Social

Lutar por uma causa em um sistema desigual e injusto pode ser extremamente frustrante para agentes e instituições que buscam a transformação social. Não apenas isso, outras barreiras para a mudança estão na propensão da sociedade em manter o cenário como está, justificando o estado das coisas como “natural” ou como “deve ser”. Conhecida como “justificação do sistema”, essa tendência tem sido uma das principais dificuldades para mobilizar a opinião pública em torno de problemas reais e urgentes. Brett Davidson, do International Resource for Impact and Storytelling, defende que organizações e ativistas explorem narrativas e experiências que sensibilizem e desconstruam os mitos arraigados que mantêm a ordem vigente. Se queremos a transformação, teremos que investir em histórias que possibilitem imaginar novas realidades.

Justiça Climática

Os pequenos agricultores são alguns dos que menos contribuem com as mudanças climáticas, e mesmo assim acabam sofrendo seus efeitos mais agudos. Seja pela seca, seja por inundações, eles já lidam com eventos extremos que ameaçam sua subsistência. Como demonstram Claire McGuinness e Matthew Forti, este é um dos motivos pelos quais o mundo deve priorizar comunidades mais vulneráveis na luta pela estabilidade do clima. Além disso, as iniciativas de mitigação da crise climática também passam pela promoção da sustentabilidade nas atividades de pequenos produtores, que administram cerca de 40% das terras agrícolas no mundo. Não faltam

oportunidades para que líderes e filantropos contribuam com uma luta climática mais efetiva e, principalmente, mais justa.

Canal no YouTube

E se os artigos da nossa revista e plataforma fossem o ponto de partida para uma conversa? E se a conversa tivesse também a participação de um especialista sobre o tema? Foi a partir dessa ideia que a SSIR Brasil criou o Conversa com Autores, um bate-papo com autores e especialistas brasileiros. O objetivo é dar aos temas abordados, especialmente em artigos traduzidos, uma perspectiva nacional e enriquecer a visão dos leitores sobre assuntos diversos. Confira os primeiros vídeos no site e no canal do YouTube da SSIR Brasil.

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VÍDEO | Conversa com Autores ARTIGO | Cultivando uma Filantropia Climática Justa

O QUE HÁ DE NOVO

Telemedicina que Salva Vidas

decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organization, em junho deste ano, anulou o direito federal ao aborto, anteriormente garantido pela decisão no caso Roe vs. Wade, de 1973, o que desencadeou restrições ao procedimento, bem como sua proibição, por todo o país.

No entanto, avanços na tecnologia médica têm dado às gestantes que querem ou precisam interromper a gravidez a oportunidade de escolher fazer um aborto em casa. A AOD, Abortion on Demand (Aborto por Demanda), startup de aborto via telemedicina, busca superar algumas das barreiras logísticas impostas à interrupção gestacional oferecendo pílulas abortivas por correspondência – que podem ser entregues em menos de 24 horas.

Atualmente, a AOD opera em 23 estados e o custo total de seus serviços varia de U$ 239 a U$ 289 por paciente, dependendo da lei de aborto do estado. A empresa ainda não aceita plano de saúde. Esse serviço inclui consulta com um médico especialista em obstetrícia e ginecologia ou médico de família, um kit médico (com medicamentos de conforto e as pílulas abortivas misoprostol e Mifeprex, nome comercial do composto mifepristona), testes de gravidez para garantir sua

eficácia e acompanhamento geral por meio de questionários enviados por mensagem de texto. A AOD também disponibiliza um clínico online 24 horas por dia, sete dias por semana, no caso de alguma intercorrência.

de Justiça (DOJ, na sigla em inglês) emitiu uma nota para esclarecer a segurança e a legalidade do medicamento: “A FDA aprovou o uso do mifepristona. Os estados não podem proibir o remédio por discordar da avaliação do especialista da FDA acerca de sua segurança e eficácia”. Na verdade, mais da metade dos abortos nos Estados Unidos em 2020 foi realizada por meio

! Membros do Shout Your Abortion distribuem refrescos e informações sobre pílulas abortivas em sua barraca de limonada em frente à Suprema Corte dos Estados Unidos, nas celebrações de 4 de julho.

aborto é ilegal, a organização sem fins lucrativos Aid Access oferece informação e consulta online sobre como podem adquirir pílulas abortivas no exterior.

Jamie Phifer, fundadora e diretora médica da AOD, criou a startup em abril de 2021, logo após o governo do presidente Joe Biden suspender temporariamente a proibição federal para abortos via telemedicina, devido à pandemia de Covid-19 (a regulamentação anterior exigia que o medicamento fosse fornecido presencialmente). Embora a Food and Drug Administration, FDA (Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos), tenha decidido suspender a proibição em dezembro, 19 estados tornaram os abortos via telemedicina ilegais.

No dia do veredicto do caso Dobbs, o Departamento

de medicamentos, segundo o Guttmacher Institute, organização de pesquisa e defesa do direito ao aborto.

Atualmente, a AOD não pode atuar nos estados que proíbem o uso de pílulas abortivas. Segundo Leah Coplon, diretora de operações clínicas da AOD, a paciente deve possuir um endereço residencial (para o medicamento) e estar no estado quando da consulta. “Usamos um rastreador de geolocalização em nossa plataforma de telessaúde para constatar se, no momento de sua visita, a pessoa se encontra de fato em um estado onde podemos atuar.” Para aquelas que vivem em estados onde o

A AOD não tem a necessidade de arcar com as despesas gerais de uma clínica de aborto comum, tais como instalação, seguro patrimonial ou proteção contra manifestantes. A equipe conta, hoje em dia, com quatro membros que atuam em tempo integral e algumas pessoas que trabalham meio período ou funcionários pagos por dia, além de um pequeno grupo de prestadores de serviço que auxilia com contabilidade, tecnologia e a parte jurídica. Graças a um gasto com despesas gerais significativamente menor que o das clínicas de aborto tradicionais, que dependem de consultórios físicos, o modelo de negócio da AOD possibilita que a instituição seja lucrativa. A organização doa 60% de seus lucros para a campanha Keep Our Clinics, da associação Abortion Care Network, que angaria fundos em prol dos esforços práticos de justiça reprodutiva.

Em alguns estados, aqueles que facilitarem o aborto correm o risco de serem responsabilizados criminalmente, o que prejudica muito a capacidade de operação da AOD. Especialistas legais e defensores dos direitos reprodutivos em todo o país mostraram-se preocupados com a possibilidade de, em estados onde a proibição é total, promotores chegarem ao ponto de usar dados privados –aplicativos de monitoramento

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ABORDAGENS RECENTES PARA TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS
Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022
FOTO DE MARY ELLA JOURDAK

NATASHA NOMAN vive em Nova York. Escritora e produtora, ela já trabalhou na imprensa e com comunicação. Suas matérias foram veiculadas em empresas como Bloomberg, NBC e Mic.

de menstruação, mensagens de texto e histórico de navegação na internet – para processar qualquer pessoa envolvida na facilitação do aborto. Espera-se que organizações internacionais, como a Aid Access, menos expostas a sanções, supram essa carência.

As sanções severas vão impactar sobretudo as populações mais vulneráveis, segundo Amy Weintraub, diretora do programa de direitos reprodutivos e vice-diretora de comunicações da Progress Florida, organização sem fins lucrativos que promove valores progressistas por todo o estado. “O risco é maior para populações que frequentemente são alvo de exageros policiais, como negros ou imigrantes”, afirma.

O aborto por telemedicina não é legal na Flórida, mas ainda assim Weintraub ressalta que essa forma de assistência médica é revolucionária para pessoas que vivem em comunidades rurais ou mais pobres e que, em outra circunstância, precisariam enfrentar viagens longas e dispendiosas. Ela ainda enfatiza a importância de manter o aborto como parte do sistema de saúde dos Estados Unidos, mesmo que as instituições que o aplicam sejam obrigadas a encontrar métodos novos e inovadores para oferecer esse serviço.

“O aborto é normal – uma em cada quatro mulheres americanas recorrerá a ele ao longo de seus anos férteis”, explica Weintraub. “Faz parte de qualquer sistema de saúde moderno, e as pessoas precisam ter acesso a isso.” n

KRISTINE WONG (kristinewong.com)

mora na região da baía de San Francisco e é jornalista, escritora e editora multimídia; ela escreveu artigos para o Guardian US/ UK, Bay Nature, Civil Eats, Sierra Magazine e Modern Farmer

ALIMENTAÇÃO

Sobrepesca Positiva

o estado de Tabasco, no sudeste do México, uma espécie agressiva ameaça o sustento local, a diversidade das espécies e as condições ambientais. O cascudo – apelidado “peixe-diabo” – é um habitante do fundo de lagos e rios de água doce que se reproduz rapidamente e se alimenta de ovas de peixes locais. Ao longo de vários anos essa espécie tem atormentado a vida dos pescadores de Tabasco.

Francisco Felix Mendoza, membro da terceira geração de uma família de pescadores, viu o “peixe-diabo” pela primeira vez em 2015. Dois anos mais tarde, notou que a quantidade de cascudos tinha aumentado e estava acabando com as espécies nativas que ele e outros pescadores vendiam aos moradores e restaurantes para seu sustento.

“Costumávamos ganhar 700 pesos mexicanos [U$ 35] por dia pescando cerca de 20 ou 25 quilos de espécies nativas, mas quando o “peixe-diabo” chegou nós o chamamos de ‘a praga que ninguém queria’”, conta Mendoza. “Hoje em dia, um pescador tem sorte se ganhar de 200 a 250 pesos mexicanos [U$ 10 a U$ 13] num dia pescando de 5 a 6 quilos.”

Mike Mitchell, que em 2014 se mudou para Tabasco com uma bolsa da Fulbright, ficou sabendo a respeito do cascudo quando entrevistou pescadores para sua pesquisa sobre o impacto socioeconômico da pesca em pequena

escala no estado. “Havia muitas lendas – desde que o “peixe-diabo” tinha sido criado em laboratório até [histórias de] pessoas que depois de comê-lo se transformavam”, conta.

Buscando mudar comportamentos, Mitchell se uniu a Lupita Vidal, uma chef local, para realizar oficinas comunitárias para ensinar a preparar o cascudo e a consumi-lo como fonte de proteína. Alguns poucos restaurantes se convenceram a comprar seus filés.

No verão de 2017, Mitchell e Vidal testaram cortes longos e finos do peixe seco, produto que fez muito sucesso entre parentes, amigos e conhecidos de Mitchell. Pouco tempo depois de se matricular na pós-graduação da University of California (UC), Berkeley, naquele outono, Mitchell se juntou a Sam Bordia, colega de curso, para transformar a ideia do peixe seco em um negócio. A Acari Fish – batizada em homenagem a um dos nomes populares do “peixe-diabo” no

Brasil – foi fundada na primavera seguinte.

Em 2018, no concurso Big Ideas, no qual estudantes da UC apresentam ideias de negócios de inovação social em estágios iniciais, Mitchell e Bordia fizeram sucesso, ficando com a segunda colocação e sendo agraciados com U$ 7 mil e oito meses de orientação de empreendedores, que também os ajudariam a ampliar sua rede de contatos profissionais. A dupla arrecadou, ainda, U$ 100 mil em fundos para a startup com amigos e familiares.

Em 2018, pouco antes de a Acari enviar a Chicago um carregamento de “peixe-diabo” para ser processado, surgiram problemas com a cadeia de abastecimento. O governo americano os notificou de que o México não tinha permissão para exportar cascudo para consumo humano para os Estados Unidos. Para driblar essa restrição, em fevereiro de 2020 Mitchell e Bordia transformaram a empresa em uma companhia canadense. Contudo, sem conseguir conquistar os consumidores, tampouco poder comercializar o produto pessoalmente, devido às restrições impostas pela Covid-19, eles fecharam a empresa.

Mas a dupla persistiu. Quando ficaram sabendo que as regulamentações americanas tinham passado a permitir a importação de cascudo do México destinado ao consumo animal, eles transformaram seu negócio em uma empresa de ração e relançaram a Acari Fish em Berkeley,

Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022 7 FOTO: CORTESIA DE
FISH
ACARI
! Francisco Felix Mendoza, gerente de produção da Acari Fish, corta peixe diabo durante a preparação para o processamento dos produtos da Pezzy Pets.

NOVO

na Califórnia, em agosto de 2021. Atualmente, a empresa tem uma fábrica de processamento em Tabasco, que conta com cinco funcionários locais, incluindo Mendoza, que gerencia a produção. Além disso, depende de cerca de dez pescadores locais que abastecem a fábrica com “peixe-diabo” de lagos da região.

Em 2022, a Acari retirou cerca de 85 toneladas de “peixe-diabo” dos lagos de Tabasco para produzir seu filé em tiras, além das rações em pó. Os dois produtos são comercializados com o nome Pezzy Pets e vendidos online e em algumas dezenas de pet shops da região.

Apesar desse progresso, a empresa ainda enfrenta desafios, como falta de infraestrutura no México para expandir a produção e financiamento deficiente. Ao longo do próximo ano, Mitchell espera conseguir U$ 350 mil com investidores e com o projeto Kickstarter, dinheiro que será usado, em parte, no cumprimento das regras de compliance para uma segunda fábrica de processamento, fomentada pelo programa de extensão da Universidad Juárez Autónoma de Tabasco, na qual os alunos, como parte de seu processo de aprendizagem, vão trabalhar.

Mitchell prevê um modelo de franquia para futuras fábricas de processamento no México.

“Somos abertos em relação a produtos”, explica. “Precisamos analisar qual produto vai vender mais peixes para que possamos causar o maior impacto possível nessa comunidade. A principal motivação por trás da nossa atividade está em conseguir com que os pescadores sejam autossuficientes e ganhem bem.” n

EDUCAÇÃO

Ressuscitar os Antigos

or séculos a Grécia foi a pedra angular da filosofia ocidental”, afirma Donald Robertson, fundador do Centro da Academia de Platão, organização sem fins lucrativos dedicada a preservar a história filosófica do país. “Caminhar por onde nasceu a filosofia, seguir os passos de Platão e Sócrates”, explica, “é imaginar como essa tradição teve início.”

O interesse de Robertson por filosofia começou na adolescência e se manteve ao longo de seus anos de estudo na graduação e na pós na Aberdeen University, na qual ele se formou em filosofia antes de se pós-graduar em psicoterapia. Autor de Pense como um Imperador – A Sabedoria Estoica de Marco Aurélio, Robertson concentrou seus estudos na filosofia antiga porque acredita que nela se encontram mais sabedoria prática e insights a respeito da vida do que na filosofia moderna. Marco Aurélio, Aristóteles, Platão, entre outros filósofos antigos, o ajudaram a processar a tragédia da morte de seu pai. Essa experiência pessoal, que materializou sua crença de que a filosofia ensina mecanismos de sobrevivência inestimáveis, o inspirou a fundar o Centro da Academia de Platão, em dezembro de 2021.

A missão do centro é tornar a filosofia antiga – do método socrático aos diálogos de Platão, que demonstram esse método na prática – acessível

e facilmente compreensível para o público. Cursos ainda em elaboração serão personalizados de acordo com as preocupações e os interesses da vida moderna, de melhoria pessoal e bem-estar a liderança empresarial. Para alcançar o maior número possível de pessoas, a organização sem fins lucrativos oferecerá oportunidades de aprendizado híbrido; e, para despertar o interesse do público, o Centro da Academia de Platão proporciona, atualmente, um curso online gratuito, de seis aulas, sobre o método socrático.

Em maio de 2021, o Centro realizou sua primeira conferência online sobre as aplicações práticas da filosofia, que contou com a presença de aproximadamente quinhentos participantes. Entre os palestrantes estavam professores de filosofia, como Robin Waterfield, especialista em estudos clássicos, Chloe Balla, professora de filosofia da Universidade de Creta, e Voula Tsouna, professora de filosofia da University of California, Santa Barbara. Angie Hobbs, professora de filosofia da University of Sheffield, deu uma palestra sobre como as técnicas de retórica dos antigos sofistas podem ser comparadas às dos influenciadores das redes sociais. Doações possibilitaram que a participação de todos fosse gratuita.

O sucesso do evento fez Robertson começar a trabalhar na organização de uma

conferência presencial marcada para o outono de 2023 no Parque da Academia de Platão. Sítio arqueológico internacional localizado em Atenas, o parque é visitado por moradores locais e turistas e, por isso, acredita Robertson, é o local ideal para esse evento, cuja proposta é promover discussões filosóficas em praça pública.

A missão da organização sem fins lucrativos também inclui em sua agenda fomentar o crescimento econômico do lucrativo setor turístico da Grécia, que corresponde a 18% do PIB do país e emprega um quinto da população. Durante a Covid-19, a indústria do turismo em todo o mundo sofreu um baque enorme, e a economia grega, que já enfrentava dificuldades, ficou ainda mais debilitada.

Na pandemia, o setor do turismo foi forçado a mudar seu foco e tirou vantagem da tecnologia ao promover viagens e aventuras educacionais virtuais. O Centro da Academia de Platão planeja capitalizar essa tendência com a realização de cursos e conferências online na esperança de incentivar as pessoas a viajar à Grécia. A intenção, explica Kasey Robertson, diretora de comunicações do centro, é “levar empresas internacionais para a Grécia e fortalecer uma região que precise de melhorias”. Ela afirma que a instituição sem fins lucrativos gerará emprego para a economia com a oferta de trabalho a jovens da região que vão ajudar com a programação dos eventos.

O centro recebe financiamento da Fundação Aurelius, organização que defende

8 Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022
O QUE HÁ DE
AISHA MALIK é escritora. Seus textos foram publicados em diferentes veículos, tais como Refinery29, The Tempest e Lay It Out Magazine, entre outros.

objetivos semelhantes e promove a preservação da integridade filosófica e a busca por conhecimento. “Somos parceiros e financiadores do projeto da Academia de Platão, uma vez que essa iniciativa se adequa perfeitamente à nossa missão”, conta Justin Stead, que criou a fundação em 2019 para promover o estoicismo. “Estamos procurando aumentar a consciência a respeito do estoicismo, bem como sua aplicação, entre as gerações mais jovens”, afirma, incluindo CEOs e líderes empresariais, que podem aplicar princípios estoicos para “desenvolver seus planos estratégicos, suas execuções táticas e iniciativas culturais de trabalho em equipe”.

Além da conferência presencial de 2023, o centro vai promover eventos oficiais presenciais e online em Atenas graças ao apoio constante da Fundação Aurelius e de doações individuais e de voluntários. A organização sem fins lucrativos também tem como objetivo arrecadar fundos para montar um centro de conferência novo próximo ao Parque da Academia de Platão para sediar todos os eventos futuros – até, potencialmente, a conferência de 2023.

Robertson mostra-se otimista a respeito do potencial do centro para despertar o interesse não só por filosofia antiga como pela Grécia como um todo. “Nossa esperança é que a comunidade online cresça e se torne um hub no qual especialistas acadêmicos e autores de sucesso interajam com uma comunidade mais ampla interessada na relevância da filosofia grega para os dias atuais.” n

VALENTINE IWENWANNE , nigeriana, é jornalista de viagens e fotógrafa. Suas reportagens discutem temas como saúde internacional, justiça social, política e desenvolvimento na Nigéria e na África Subsaariana.

SAÚDE Roupas Íntimas que Detectam Câncer

câncer de mama é o tipo mais comum de câncer entre as mulheres da África Subsaariana – segundo a Organização Mundial da Saúde, 129 mil novos casos foram diagnosticados em 2020. Na Nigéria, é a principal causa de morte por câncer entre as mulheres. Nesse mesmo ano de 2020, mais de 28 mil mulheres nigerianas foram diagnosticadas com câncer de mama e mais de 14 mil morreram em decorrência da doença. A espantosa falta de plano de saúde para aproximadamente 95% da população contribui para essa taxa de mortalidade. O país conta com menos de 90 médicos oncologistas para providenciar tratamento oncológico a mais de 100 mil pacientes.

A escassez no tratamento de câncer coincide com a falta de uma ampla conscientização da cultura nigeriana em relação ao câncer de mama. “As mulheres raramente fazem exames, nem mesmo no Dia Mundial de Combate ao Câncer, quando ONGs oferecem exames gratuitos”, explica Bolarinwa Kemisola, engenheira de robótica, moradora de Abuja e fundadora da empresa de tecnologia de moda Next Wear Technology (NWT).

Em fevereiro de 2022, Kemisola desenvolveu um sutiã inteligente que detecta o câncer de

mama no estágio inicial. Em vez de se consultar em uma clínica ou num hospital, as mulheres podem usar o sutiã para fazer a mamografia na privacidade de suas próprias casas.

“Achei que precisávamos de um dispositivo possível de ser vestido para nos ajudar a resolver o problema das mulheres que não fazem o autoexame de detecção de caroços nos seios, bem como reduzir o custo, o tempo e a energia necessários para marcar e realizar uma mamografia”, explica Kemisola.

O sutiã inteligente deve ser usado por ao menos 30 minutos para o exame completo, capaz de determinar se os tumores são benignos ou malignos. As pessoas podem utilizar o aplicativo digital do dispositivo para acessar o resultado e, ainda, se necessário, procurar médicos que atendam nas proximidades e marcar uma consulta, virtual ou presencial, com algum deles.

Kemisola financiou a pesquisa e o desenvolvimento do dispositivo com aproximadamente U$ 25 mil do próprio bolso. Ela recebeu também apoio financeiro do banco Standard Chartered e do Ministério de Comunicações e Economia Digital da Nigéria, além de donativos de médicos oncologistas e patologistas.

O dispositivo – que ganhará um nome quando for lançado comercialmente – ainda está em fase de protótipo e é um dos primeiros desse tipo no mundo.

Kemisola e Erinfolami Joseph, seu colega de NWT e engenheiro de robótica e aprendizado de máquina de inteligência artificial, testaram o dispositivo na região em 50

! A engenheira Bolarinwa Kemisola trabalha no desenvolvimento do sutiã inteligente durante a produção do protótipo do hardware

voluntárias durante a primavera. A precisão do aparelho foi de 86%. Joseph afirma que atualmente eles estão trabalhando no aprimoramento da confiabilidade para que chegue ao menos a 95% antes de lançá-lo no mercado.

O dispositivo “parece um sutiã normal”, explica Cynthia Agbo, de 26 anos, que participou do teste. “Enquanto estava usando, uma imagem similar a um comprimento de onda apareceu na tela do computador e […] o resultado ficou pronto em sete minutos.”

Em novembro, a NWT vai realizar um teste clínico mais amplo com duas mil mulheres negras voluntárias. Kemisola acredita que o escopo do teste fará com que o público em geral, e em especial esse grupo demográfico (mulheres negras

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FOTO: CORTESIA DE BOLARINWA KEMISOLA

O QUE HÁ DE NOVO

têm uma taxa de diagnóstico e morte maior do que as brancas), confie no produto, além de dar visibilidade para o dispositivo e para o câncer de mama.

À espera dos resultados do teste e de financiamentos adicionais, Kemisola segue planejando o lançamento do dispositivo no mercado – no qual seu produto competirá com o primeiro sutiã inteligente do mundo, OMbra, criado pela startup canadense OMsignal em 2016, e com outros dispositivos

similares desenvolvidos por cientistas na Suíça e no México.

Embora Kemisola se mostre relutante em compartilhar a tecnologia que diferencia seu dispositivo dos demais, ela afirma que o produto “utiliza tecnologias que não foram usadas em nenhum outro lugar do mundo”.

Kemisola explica que a NWT precisa de “U$ 96 mil para concluir o protótipo funcional” e para “realizar testes clínicos e finalizar o sistema operacional [do dispositivo]”.

A NWT planeja ter um produto minimamente viável pronto para seu públicoalvo, mulheres entre 18 e 65 anos de idade, pessoas com predisposição genética e aquelas que já foram diagnosticadas com câncer de mama, a fim de monitorar suas condições. Isso permitirá que a NWT teste o mercado – ao preço de U$ 75 por sutiã – para receber feedbacks antes de dar início à produção completa.

Até o início de 2023 a NWT

pretende que o sutiã deva estar disponível para compra online

A empresa vai se associar também a ONGs e governos para fazer com que o dispositivo esteja acessível “à mulher africana comum que vive com menos de U$ 5 por dia”. O objetivo, explica, “é conseguir que ao menos 50 unidades do sutiã estejam espalhadas por centros de saúde [em toda a África] nos quais mulheres sem condições de pagar possam ter a acesso a ele e realizar o exame”. n

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HISTÓRIAS DO CAMPO

! Justine Napiija estudou habilidades de gestão empresarial na SBS. Atualmente, seu ramo de trabalho é a prosperidade.

Uma Franquia Social Expande o Empreendedorismo

A Street Business School oferece educação e orientação empresarial para ajudar os trabalhadores mais pobres do mundo a maximizar seu potencial de receita.

m 2015, Uganda foi nomeada “o país mais empreendedor do mundo” pelo Approved Index. A rede de negócios sediada no Reino Unido tomou por base os dados indicando que quase um terço dos ugandenses administra seu próprio negócio. No entanto, enquanto a imprensa e bilionários como Richard Branson, fundador do Virgin Group, elogiavam essa conquista, ugandenses revelaram o outro lado dessa história: tal estatística era mais uma necessidade de sobrevivência do que um caso de entusiasmo empreendedor.

Simplificando, pode-se dizer que o setor de emprego formal de Uganda – com horários regulares, salários tributáveis e benefícios –não oferece vagas suficientes para pessoas que não tenham diploma do ensino médio. A população empreende por necessidade, atuando em trabalhos no setor informal como faxineiros, cozinheiros e agricultores. Com taxa de evasão escolar maior que a dos homens, as mulheres dominam o setor informal.

Diversas iniciativas do governo ungandense as auxiliam, por meio de doações financeiras, a criar seu próprio negócio. Contudo, estudos indicam que, embora deem um incentivo imediato, essas doações não bastam para reduzir a pobreza de maneira permanente. Segundo o Banco Mundial, isso se deve, em parte, ao fato de essas empreendedoras não terem mecanismos de apoio – como orientação e planejamento financeiro – necessários para prosperar seus negócios.

A Street Business School (SBS) procura

dar esse suporte. Criada em 2013, a franquia social com sede em Kampala oferece treinamento a empreendedoras, além de orientação de longo prazo dada por instrutores qualificados. A SBS ensina mulheres que trabalham no setor informal a aumentar sua receita desenvolvendo suas habilidades e confiança.

A organização acredita que ampliar a receita das mulheres mais pobres pode gerar riqueza intergeracional e dar a seus filhos mais acesso à educação e a serviços de saúde.

A SBS começou suas atividades como uma iniciativa da BeadforLife, a ONG que Devin Hibbard, natural do Colorado, Estados Unidos, sua mãe, Torkin Wakefield, e Ginny Jordan, amiga da família, fundaram em 2004 depois de visitarem Uganda. Um encontro casual com uma mulher que confeccionava belas joias com miçanga de papel reciclado numa favela de Kampala despertou a ideia de trabalhar com líderes da comunidade local para ensinar o ofício a outras mulheres pobres da cidade. A visibilidade obtida com

um artigo publicado na revista O Magazine fez com que a ONG vendesse o equivalente a US$ 90 mil em joias em seis semanas, o que inspirou as fundadoras a ampliar sua missão e alcance.

“Percebemos que não queríamos trabalhar apenas com um grupo de 150 mulheres para sempre, que é o modelo usado pela maior parte das organizações de comércio justo”, afirma Hibbard, CEO da SBS. “Notamos que aquilo era uma forma de sair da pobreza.”

O próximo passo foi dar a essas mulheres as habilidades necessárias para gerir e manter seu negócio de forma eficiente.

Uma Educação Prática

Em 2015, Hibbard contratou um instrutor para ensinar empreendedorismo para as artesãs da BeadforLife. Mas a forma como as aulas eram ministradas não era apropriada para mulheres que talvez não tivessem concluído o ensino fundamental e que viviam com uma renda média de US$ 1,35 por dia, conta Hibbard.

A solução foi desenvolver um treinamento para aquele grupo. A Beadforlife deu início a um longo processo de pesquisas, testes e avaliações no intuito de criar um programa que fosse prático e compreensível para as mulheres que procurava atender. Primeiro, consultou as empreendedoras mais pobres de Kampala para conhecer suas reais necessidades e ambições. Depois, usou essas informações para elaborar um currículo e treinar uma equipe de instrutores ugandenses que

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PERFIS DE PROJETOS INOVADORES
FOTO: CORTESIA DA STREET BUSINESS SCHOOL (SBS)

oferece treinamento empresarial individual para empreendedoras. Para se adequar às necessidades profissionais das alunas, assim como às suas responsabilidades com a educação dos filhos, o programa é ministrado em meio período ao longo de seis meses. Então, as alunas passam a ter acesso permanente a seu instrutor, podendo contatá-lo sempre que precisarem de ajuda, conselho ou incentivo.

O currículo evita teorias abstratas e é composto por aulas que apresentam experiências relevantes e que fazem sentido para as alunas. Por exemplo, as aulas são ilustradas por itens alimentícios como feijão, e contabilidade, rastreamento e monitoramento são ensinados por meio da analogia com o preparo do alimento e o cuidado paciente necessário a esse processo.

O desenvolvimento da confiança também é uma habilidade fundamental. “Elas não se veem como empresárias, como empreendedoras”, explica Hibbard. “Ao longo de suas vidas, ninguém jamais lhes disse ‘Eu acredito em você’.” Durante o programa, tanto alunos quanto instrutores são tratados como professores, mostrando que todos são valiosos e têm algo para aprender com os demais, independentemente de sua função.

O treinamento é altamente personalizado, com sessões nas casas das participantes. Nesse cenário íntimo, as alunas falam sobre os desafios que enfrentam e seus orientadores podem apontar os próximos passos com base nos recursos de que elas dispõem. Por exemplo, se os filhos de uma aluna têm roupas que não lhes servem mais, um instrutor pode sugerir que ela venda essas roupas e invista esse dinheiro no negócio.

As pesquisas da SBS mostraram que, dois anos após terem fundado seu negócio, 89% das graduadas ugandenses ainda os geriam, com um aumento médio na renda de 211%.

Beatrice Akumu, que se formou na SBS em março de 2021, é um desses casos de sucesso. Aos 28 anos, Akamu cuida dos dois filhos de sua falecida irmã, além dos seus dois irmãos mais novos. Ela parou de estudar após o ensino fundamental porque sua família não podia custeá-la no ensino médio. Akumu é dona de um pequeno salão de cabeleireiro

em Kisugu, bairro pobre de Kampala. Antes da SBS, ela tinha dificuldades para manter a saúde financeira do negócio e gastava a renda de seu salão com despesas pessoais, sem poder reinvestir em seu negócio. “Para as coisas usadas em meu salão – as tranças, o xampu, tudo o que eu comprava – eu não fazia distinção entre capital e lucro”, conta ela. No entanto, desde o treinamento, seu lucro quase duplicou. “Aprendi a como economizar. Comecei a separar meus lucros e o capital”, afirma Akumu. “Anotar as coisas realmente me ajudou a administrar meu dinheiro muito bem. Por causa da SBS, consegui comprar um terreno [para construir uma casa].”

Modelo de Franquia

O modelo da SBS fez tanto sucesso que em 2013 a BeadforLife voltou por completo o foco de sua missão para a educação empreendedora. Em 2017, a SBS recebeu o Hero Award de melhor instituição sem fins lucrativos da PeaceJam Foundation, organização internacional para a juventude administrada por catorze vencedores do Prêmio Nobel da Paz. Em 2020, as fundadoras encerraram as atividades da BeadforLife para dedicar seu tempo e recursos exclusivamente à SBS.

A transição da BeadforLife para a SBS exigiu mudanças organizacionais, incluindo a ampliação internacional do conselho –composto, originalmente, pelas três fundadoras da BeadforLife. Além disso, foi preciso desenvolver um modelo de financiamento. Do financiamento atual, 5% vêm de franquias – organizações que pagam para que seus empregados se tornem instrutores da SBS. O restante procede de doadores individuais e de empresas, como a Segal Family Foundation e a Schooner Foundation.

“Senti bastante confiança no modelo de expansão [da SBS]”, explica Cynthia Ryan, administradora de fundos da Schooner Foundation. “Quando decidiram expandir, buscaram outras organizações que tinham redes de contatos para que pudessem realizar essa expansão, em vez de tentar fazer tudo por conta própria.”

Atualmente, o modelo de franquia social da SBS está presente em 27 países, entre

eles, Índia, Guatemala e Filipinas. O escritório de Kampala segue sendo o principal hub de treinamento e desenvolvimento de currículo, onde novos programas são elaborados e testados. Instituições parceiras designam empregados para receber treinamento e se tornar instrutores da SBS – o custo é de aproximadamente US$ 4.900 para dois funcionários. Uma vez formados, eles podem voltar a suas organizações e aplicar o modelo da SBS em seus próprios programas de combate à pobreza. As principais beneficiárias são as mulheres donas de pequenos negócios – os treinamentos e orientações empresariais são gratuitos.

A ONG Hope for Children é uma das franqueadas da SBS. Com sede em Kampala, a organização trabalha na proteção de crianças e na redução da pobreza. Três de seus funcionários são instrutores da SBS. A assistente social Aisha Kabugho explica que a ONG utiliza o currículo da SBS para ajudar mães a aumentar suas oportunidades de geração de renda para que possam melhor alimentar e educar seus filhos, e também para auxiliar pessoas sem conhecimento formal a conseguir dinheiro e estudar numa universidade ou obter um curso profissional.

A SBS nunca oferece dinheiro a seus beneficiários – a intenção é evitar que o dinheiro seja um incentivo para a participação no programa. Se os alunos não têm capital, os instrutores da SBS os incentivam a oferecer algum tipo de serviço – lavar roupa, atuar como babá ou cuidar de uma horta.

A SBS revisou seus planos devido à pandemia de Covid-19, o que reduziu o ritmo de sua expansão para lidar com a perda financeira que muitos de seus parceiros implementadores enfrentaram. Contudo, segue focada no desenvolvimento de parcerias com grandes ONGs internacionais e na expansão para a Ásia, onde 12% de suas 180 organizações parceiras estão sediadas atualmente.

“A Covid-19 levou muita gente de volta à pobreza extrema, afetando de maneira desproporcional mulheres e meninas”, diz Hibbard. “As pessoas precisam sobreviver na economia informal. A Street Business School é bastante propícia a essas condições.” n

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GRAINNE HARRINGTON é repórter e cineasta. Mora em Uganda e trabalha com direitos humanos, migração e sociedade civil na África Oriental.

Construindo uma Cultura de Pertencimento

A Mosaic America fomenta consciência e respeito entre culturas através de sua programação artística.

área da baía de San Francisco conta com uma rica diversidade de pessoas, apesar da mídia tradicional seguir retratando o Vale do Silício como a terra dos “especialistas” ricos e brancos do setor de tecnologia. As minorias raciais, na verdade, são a maior parte da população dos nove condados da área da baía, e quase 40% dos moradores locais nasceram no exterior.

Ainda assim, em meio a essa diversidade, a segregação racial e étnica persiste não apenas ali, como em todo o país. Essa realidade conflita com o símbolo dos Estados Unidos como um “caldeirão cultural” – metáfora forjada para passar a imagem de uma nação de assimilação cultural harmoniosa. Para Usha Srinivasan, cofundadora da organização sem fins lucrativos Mosaic America, “os Estados Unidos não são um caldeirão cultural, mas um mosaico", imagem que reprsenta de modo mais preciso a heterogeneidade do país.

Srinivasan e Priya Das fundaram, em

2016, a ONG com sede em Saratoga, na Califórnia, para usar a arte como uma forma de transpor divergências culturais. A missão, afirma Srinivasan, “é fazer com que comunidades americanas passem da diversidade para o pertencimento”. Isto é, que as comunidades minoritárias não apenas sejam incluídas na sociedade, mas que se tenha a garantia de seu acolhimento e aceitação. Para que as pessoas se percebam parte de um lugar “elas devem se sentir empoderadas tanto para contribuir com as instituições sociais, culturais e políticas locais como, simultaneamente, para fazer-lhes exigências”, explica Srinivasan. “E quando todos têm essa sensação de pertencimento, há coesão social.”

Os eventos da Mosaic America apresentam artistas da região e líderes comunitários que ressaltam os pontos comuns dessa humanidade compartilhada, ao mesmo tempo que celebram suas diferenças. Por se tratar de uma organização sem fins lucrativos, a programação é gratuita. Embora utilize a arte

$

No BhangraLisco, a Mosaic America sedia uma colaboração entre artistas folclóricos tradicionais indianos e mexicanos.

como ferramenta para promover o pertencimento, essa não é uma organização artística – seu objetivo é promover coesão social e não a arte pela arte. A instituição foi fundada, em parte, como resposta às crescentes polarizações políticas e culturais do país.

Programação Intercultural

O objetivo da Mosaic America é fomentar a “competência intercultural” ou uma abertura para diversidade cultural entre comunidades, assim como a curiosidade sobre esse tema.

O termo intercultural sugere entendimento e respeito mútuos perante todas as culturas – à diferença de multicultural, que reflete coexistência, mas não necessariamente interações significativas entre pessoas diversas. Para alcançar esse objetivo, a organização promove eventos pautados em aspectos regionais e que apresentam artistas de origem indígena e local que conhecem as diversas paisagens agrícolas e culturais da baía de San Francisco.

A Mosaic America já garantiu recursos para trabalhar com centenas de artistas locais; entre eles está Ray Furuta, flautista e compositor que também atuou como diretor musical da ONG. Em 2019, ele e seus companheiros compositores apresentaram a obra Precious Scars. A produção reimaginava a experiência dos campos de confinamento de japoneses e seus descendentes nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial no contexto da criminalização de mexicanos e centro-americanos promovida pelo governo Trump.

Projetos como Precious Scars, explica Furuta, “demonstram como somos parecidos por meio de nossas diferenças. E acho que essa similaridade e essa humanidade compartilhada nos levam ao conceito de pertencimento”. Para realizar o espetáculo musical, foi importante para Furuta, de ascendência japonesa e mexicana, engajar artistas de diferentes origens.

Uma das ações de maior sucesso é o Mosaic Festival. O evento anual híbrido tem como objetivo fazer com que as pessoas “tenham consciência da diversidade de sua região e, talvez mais importante do que isso, se vejam representadas”.

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FOTO: CORTESIA DE SWAGATO B.
HISTÓRIAS DO CAMPO

Desde seu lançamento, a Mosaic America enfrentou o desafio de convencer investidores de sua missão. “Ninguém acredita que o pertencimento é uma necessidade indispensável”, conta Das. No início, as cofundadoras trabalharam sem salário, dedicando tempo e energia para um empreendimento que entendem como enobrecedor e indispensável para o desenvolvimento da coesão social.

Elas perceberam rapidamente que havia a necessidade de contratar uma equipe e trabalhar com uma agência de marketing para expandir suas operações, medidas que demandam financiamento contínuo. Os esforços deram resultado e em seu primeiro ano a organização passou a receber doações. A primeira delas – ofertada em 2016 pela cidade de San Jose no valor de US$ 14.250 –possibilitou a contratação de dez artistas e grupos para cocriar obras de arte, além de garantir uma reserva para financiar futuras iniciativas culturais. Esse suporte inicial deu à Mosaic America a oportunidade de crescer e passar de uma organização dependente de voluntários para uma com dois empregados efetivos, quatro prestadores de serviços em tempo parcial e cinco estagiários.

As doações subsequentes vieram da Fundação David and Lucile Packard, do Instituto Devos e da Fundação Knight. Por reconhecer que a Mosaic America está garimpando os bens culturais disponíveis na área da baía de San Francisco, a Fundação Knight lhe concedeu uma doação de US$ 50 mil em 2016 e de US$ 250 mil três anos depois. E em 2021 a Mosaic America recebeu uma doação de US$ 300 mil da Fundação Hewlett, valor destinado a organizações da região que lidam com os enormes desafios impostos pelos custos imobiliários astronômicos, difícil acesso às artes e pela pandemia de Covid-19. Segundo Adam Fong, diretor de programas de artes cênicas da Hewlett, os esforços da Mosaic America para fortalecer comunidades locais fizeram da organização o destinatário ideal dessa doação.

A pandemia foi um desafio para a organização sem fins lucrativos, que, tradicionalmente, promovia apenas eventos presenciais. Felizmente, uma doação extra de US$ 40 mil

da Fundação Knight, em 2021, assegurou à instituição os recursos para desenvolver uma programação digital e cultivar um público online. As exibições digitais são, em sua maioria, pré-gravadas, mas incluem segmentos interativos em plataformas como Zoom, Facebook e YouTube. Atualmente, a programação híbrida é um aspecto permanente da Mosaic America.

Mapeamento da História Artística

Um dos mais recentes projetos da organização é o Mosaic Atlas, um mapa digital de instituições de arte, artistas e centros comunitários da baía de San Francisco lançado em 2020. “Percebemos que artistas e produtores culturais estão se distanciando dos centros municipais e, assim, se marginalizando”, relata Das, “e que grupos culturais recém-criados e/ou isolados enfrentam dificuldades para se organizar e entender como obter apoio do município e de outros financiadores.”

As cofundadoras sabiam que seria necessário compreender profundamente os dispositivos culturais da região. Assim, contrataram Jan English-Lueck, professora de antropologia da San Jose State University (SJSU), que pesquisa a diversidade cultural do Vale do Silício. English-Lueck sugeriu Kerry Rohrmeier, professora de planejamento urbano e regional da SJSU e especialista em geografia digital, para comandar o projeto colaborativo que viria a se tornar o Mosaic Atlas.

O projeto envolve um processo de duas etapas. Primeiro, English-Lueck e seus alunos de pós-graduação realizaram entrevistas com artistas, curadores e organizações artísticas. Essas informações estão sendo incorporadas aos StoryMaps, mapas digitais interativos que contam histórias sobre lugares específicos.

O segundo passo do processo cabe a Rohrmeier e seus alunos pós-graduandos, que estão desenvolvendo sistemas de informação geográfica para mapear os dados etnográficos, incluídas experiências audiovisuais fundamentadas em histórias. Fazendo isso, estão criando um software livre, que, eventualmente, estará disponível para que qualquer

pessoa com acesso à internet possa explorar a arte e a cultura da baía de San Francisco. Os usuários poderão conhecer o trabalho e a programação de eventos da organização sem fins lucrativos, bem como os artistas locais e acessar virtualmente conteúdos fotográficos e em vídeo produzidos por eles.

O Mosaic Atlas é “mais do que pontos em um mapa”, explica English-Lueck. “Queríamos criar algo que contasse mais uma história humana.” O atlas integra narrativas com experiências vividas na região. Ao incorporar dados do censo e do distrito escolar, também “acrescenta um componente de equidade que eu ainda não havia visto”, acrescenta Rohrmeier. O atlas, em outras palavras, evidencia algumas das comunidades menos visíveis.

English-Lueck acredita que o projeto incorpora a missão da Mosaic America de abrir caminhos para a inclusão. “O atlas vai criar um sentimento de conexão e pertencimento não só dentro das diferentes comunidades e gerações, como entre elas”, afirma. “E este é o ingrediente secreto da Mosaic America: as culturas caminham juntas e assim criam algo novo.” Esse esforço desafia diretamente os silos de redes socioculturais, que, nos últimos anos, se tornaram mais enraizados. “Os moradores da baía de San Francisco tendem a viver entre seus próprios grupos culturais e a se misturar apenas entre si”, explica Das.

O projeto do Mosaic Atlas deve estar disponível para o público em dois anos. A Fundação Hewlett financiou a primeira fase do projeto, conta Fong, porque “é o tipo de trabalho empírico extensivo para ajudar e beneficiar artistas e grupos locais por muitos anos”.

Ao longo dos próximos dois anos, Srinivasan e Das planejam usar o Mosaic Atlas para evidenciar culturas sub-representadas no Vale do Silício e em outras regiões.

As cofundadoras também esperam estabelecer divisões da Mosaic em campi universitários e corporativos, que são, essencialmente, cidades fechadas em suas próprias culturas. “Se nossa abordagem der certo aqui no Vale do Silício, saberemos que dará certo em qualquer outro lugar dos Estados Unidos”, afirma Srinivasan. n

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KATHRYN DICKASON é pesquisadora do Center for Ballet and the Arts da New York University; publicou diversos textos sobre cultura, arte e religião.

A Revolução Psicodélica na Saúde Mental

Em 1986, Rick Doblin lançou a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos para pesquisar e defender o uso de LSD, cogumelos mágicos e Ecstasy no tratamento de doenças mentais. Depois de três décadas de trabalho árduo, ele parece ter encontrado seu momento agora.

medida que a década de 1960 terminava, drogas psicodélicas atemorizavam muitos americanos – pelo menos aqueles que jamais as haviam experimentado. O Congresso aprovou em 1970 o Controlled Substances Act (Lei de Substâncias Controladas), que classificou as mais populares drogas da contracultura – entre elas LSD (ácido lisérgico dietilamida), mescalina, psilocibina e marijuana – como classe 1, aquelas com alto potencial de dependência e nenhum valor médico. O abuso de drogas, pontificou o então presidente Richard Nixon, era o “inimigo público número um”. Foi por volta dessa época que Rick Doblin – um rebelde de 18 anos que havia fumado muita maconha, feito experiências com drogas psicodélicas e se recusado a registrar-se para o alistamento – decidiu abandonar o New College da Flórida, uma escola experimental em Sarasota onde os estudantes tinham a liberdade de escolher suas matérias e receber avaliações por escrito em vez de notas.

– Quero sair da faculdade e estudar LSD – disse Doblin a seus pais. – E quero que vocês paguem por isso.

Surpreendentemente, eles concordaram. O pai, um pediatra cujo herói era o líder comunitário Saul Alinsky, e a mãe, uma professora liberal, tinham sempre encorajado os filhos a pensar por si mesmos. Educado como judeu e com parentes em Israel, o jovem Rick ficara profundamente perturbado pelo Holocausto e com a ameaça de uma guerra nuclear. Além disso, ele se opunha à intervenção dos Estados Unidos no Vietnã. Depois de experimentar drogas, Doblin teve a intuição de que experiências místicas com substâncias psicodélicas poderiam aproximar as pessoas e ajudar a pôr fim a conflitos entre os povos. “Substâncias psicodélicas estiveram no centro de minha vida desde então”, diz.

Isso foi quase meio século atrás. Desde essa época, Doblin jamais vacilou na missão que traçou para si mesmo: usar drogas psicodélicas para curar um mundo quebrado. “Eu não sabia se teria êxito ou não, mas realmente não era importante”, afirma.

Em 1986, ano em que o presidente Ronald Reagan sancionou uma lei que estabeleceu penas mínimas obrigatórias para a posse de drogas, entre elas a marijuana, Doblin lançou a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês), um grupo de pesquisas e de apoio jurídico que visava promover o uso cuidadoso e benéfico de substâncias psicodélicas e da marijuana. Doblin acabou por conquistar um PhD da Harvard Kennedy School, com uma tese que explorava a regulação das drogas psicodélicas e da marijuana. Constrangido pela política da guerra às drogas, ele decidiu usar a ciência e as evidências como suas ferramentas de mudança: a Maps empreendeu pesquisas destinadas a demonstrar aos reguladores e ao público em geral que remédios psicodélicos podiam de fato aliviar o sofrimento. Em sua trajetória, consumiu uma prodigiosa quantidade dessas drogas, mesmo depois de tornarem-se ilícitas.

Hoje, Doblin e a Maps estão próximos de um avanço – na verdade, de mais de um.

A Maps, que por muito tempo foi pouco mais que Doblin e uma newsletter que ele publicava algumas vezes por ano, tornou-se uma organização com mais de 100 pessoas e que, no ano fiscal de 2020, despendeu US$ 18,6 milhões. O desenvolvimento de drogas é seu mais importante trabalho. Em novembro do mesmo ano, a Maps anunciou novos resultados de seus testes clínicos de longa duração com MDMA, um sintético químico conhecido como Ecstasy ou Molly, que tem grande probabilidade de se tornar o primeiro remédio psicodélico aprovado pelo FDA, a agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. A psicoterapia, em conjunto com MDMA, provou ser um tratamento efetivo do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) para militares veteranos e vítimas de trauma ou abuso sexual. Se a MDMA for aprovada como medicamento, é bem possível que seja seguida por outras drogas psicodélicas.

Como grupo de apoio jurídico, a Maps também teve progresso impressionante na construção de uma coalizão de pessoas que

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DE UMA ORGANIZAÇÃO ESTUDO DE CASO
UM OLHAR PROFUNDO PARA O INTERIOR
À

Os terapeutas e formadores da Maps Marcela Ot’alora (à direita) e Bruce Poulter (ao centro) demonstram o protocolo para conduzir uma sessão de terapia com a MDMA.

n

acreditam no poder das substâncias psicodélicas. Nas eleições de 2020, os eleitores no estado americano de Oregon aprovaram uma medida para descriminalizar a posse de qualquer droga, num forte golpe contra a guerra às drogas. Em outra votação, aprovaram o uso médico e regulado da psilocibina, o ingrediente ativo dos chamados cogumelos mágicos. Em quatro outros estados, entre eles Dakota do Sul, onde o ex-presidente Donald J. Trump venceu amplamente, os votantes aprovaram legalizar o uso recreacional da marijuana. Com isso, adultos em 15 estados hoje podem fumar erva e comer chocolate ou guloseimas com acréscimo de marijuana.

Ao mesmo tempo, floresce a pesquisa médica sobre drogas psicodélicas. Um registro governamental lista quase 300 testes clínicos para analisar o efeito de substâncias psicodélicas que estão completos, em andamento ou prestes a começar. Muitos são feitos nas escolas de medicina de universidades de prestígio como New York University, University of California, Yale University e Johns

Hopkins University, cujo Centro para Pesquisas de Drogas Psicodélicas e Consciência proclama-se a instituição de ponta em pesquisa de substâncias psicodélicas nos Estados Unidos.

Os defensores das drogas psicodélicas sustentam que elas podem transformar a saúde mental. Indicações iniciais sugerem que, aliados à psicoterapia, os psicodélicos podem de fato tratar um amplo leque de doenças, entre as quais depressão, ansiedade e dependência de álcool e de tabaco. Estudos futuros buscarão verificar sua eficácia no tratamento de opioides, anorexia nervosa e até a doença de Alzheimer.

Doblin e a Maps não avançaram sozinhos. A Drug Policy Alliance (Aliança de Política de Drogas), fundada por George Soros, liderou a luta política contra a guerra às drogas. O Heffter Research Institute, uma organização sem fins lucrativos fundada pelo farmacologista David Nichols, da Purdue University, organizou e financiou pesquisas sobre substâncias psicodélicas, particularmente a psilocibina. Uma eclética mescla de doadores – ex-hippies, milionários do Silicon Valley, descendentes de John D. Rockefeller, conservadores, liberais e libertários – estabeleceu pontes entre divisões políticas e

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FOTO DE
BRYCE MONTGOMERY CORTESIA DA MAPS
MARC GUNTHER (@marcgunther) é um jornalista veterano que escreve sobre fundações e organizações não lucrativas

culturais para apoiar a Maps. Mais recentemente, startups farmacêuticas juntaram-se a eles, na expectativa de explorar comercialmente as drogas.

Doblin esteve no centro disso tudo, ou perto dele. “Rick foi o real instigador”, diz Tom Shroder, autor de Acid Test: LSD, Ecstasy, and the Power to Heal (Teste de ácido: LSD, Ecstasy e o poder de curar, ainda sem tradução para o português), um livro sobre psicodélicos com base na história de Doblin. “Ele tinha essa visão – essa certeza – de que as substâncias psicodélicas eram demasiado importantes para permanece na clandestinidade. Ele é a razão de tudo isso que está acontecendo.”

Paranoia e Criminalização

Psicodélicos não são novos, é claro. Alguns acadêmicos sustentam que alucinógenos à base de plantas impulsionaram experiências sobrenaturais descritas em antigos textos religiosos. A ayahuasca, uma mistura feita de uma planta contendo DMT (dimetiltriptamina, também chamada a “molécula do espírito”), há muito é usada em rituais religiosos por povos indígenas da região amazônica, enquanto pessoas do norte do México e do sudoeste dos Estados Unidos usavam (e ainda usam) um composto derivado do peiote como parte de cerimônias religiosas. Nos anos 1950 e 1960, mais de 40 mil pacientes receberam o LSD, uma substância química sintética, e a psilocibina, princípio ativo dos cogumelos mágicos, então legais nos Estados Unidos, segundo a Administração de Combate às Drogas (DEA, na sigla em inglês), e mais de mil artigos científicos foram analisados. Em um prenúncio dos atuais estudos sobre psicodélicos e adicção, Bill Wilson, um cofundador dos Alcoólicos Anônimos, experimentou LSD e tentou, sem sucesso, levar a droga para o programa.

Doblin estava dentro de tudo isso. De volta a Sarasota, encontrou emprego como empreiteiro e gastou a herança que recebera do avô para construir uma casa (que ele ainda possui) antes de retornar ao New College. Esperando tornar-se terapeuta, participou de workshops no Esalen Institute, um retiro New Age nas colinas com vista para Big Sur, na Califórnia. Ali estudou com Stanislav Grof, renomado psicoterapeuta checo que dera drogas psicodélicas a seus pacientes. Em 1982, durante um workshop intitulado “The Mystical Quest” nesse local, Doblin deparou-se com a MDMA – a droga que se tornaria seu foco.

Oficialmente conhecida como 3,4-metilenodioxi metanfetamina, a MDMA tem uma história peculiar. Descoberta e patenteada em 1912 pela Merck, que não viu valor nela, caiu na obscuridade para voltar brevemente à superfície na década de 1950, quando a CIA, Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, pesquisou substâncias psicodélicas para uso como armas químicas. Em 1976 foi novamente sintetizada por Alexander “Sasha” Shulgin, um químico brilhante e excêntrico que desenvolveu centenas de drogas psicoativas em seu laboratório doméstico nas colinas de Berkeley, Califórnia.

Shulgin amou a MDMA. “Sinto-me absolutamente limpo por dentro, e não há senão pura euforia”, ele escreveu em suas

Doblin desconhecia o fato de que droga alguma jamais havia sido transformada em remédio por uma organização não lucrativa. Se soubesse, isso provavelmente não teria importado.

Toda essa pesquisa parou como um carro chocando-se contra um muro no final da década de 1960. Alguns cientistas responsabilizam Timothy Leary, o professor de psicologia de Harvard que se tornou um herói da contracultura. Ele exagerou os benefícios e minimizou os riscos das substâncias psicodélicas, estimulando seus seguidores a “se ligar, se sintonizar e cair fora do sistema”. Com o auxílio de uma mídia crédula, o governo fez exatamente o oposto, difundindo lendas de bad trips e de usuários de LSD que ficaram cegos de tanto fitar o sol. Doblin rejeitou as táticas de medo, particularmente depois de ter começado a usar LSD e mescalina. Sim, havia viagens ruins, até mesmo aterrorizantes, mas ele sabia que, quando usadas com suficiente cautela, as drogas podiam transformar vidas.

“A narrativa comum é que a violenta reação dos anos 1960 ocorreu porque as substâncias psicodélicas iam mal”, diz Doblin. “O que compreendi foi que a repressão ocorreu pelo fato de as substâncias psicodélicas irem bem. Drogas psicodélicas eram parte da contracultura, com os protestos contra a Guerra do Vietnã, o movimento ambientalista, o movimento pelos direitos das mulheres. As substâncias psicodélicas estavam motivando as pessoas a desafiar o status quo.”

notas de laboratório após tomar a droga. “Jamais me senti tão bem, ou acreditei que isso fosse possível. A limpeza, a clareza e a maravilhosa sensação de sólida força interior continuaram pelo resto do dia e pela noite. Estou comovido pela profundidade da experiência.”

O psicoterapeuta Leo Zeff foi igualmente conquistado quando Shulgin lhe deu MDMA. Segundo suas estimativas, depois de adiar sua aposentadoria, Zeff treinou discretamente mais de 150 terapeutas no uso da droga, rebatizada de Adam, um anagrama que evocava a inocência do Jardim do Éden. Ele insistia que qualquer terapeuta que pretendesse fazer uso da droga deveria experimentá-la primeiro.

A MDMA não é uma substância psicodélica clássica. À diferença do LSD ou da psilocibina, é improvável que provoque alucinações, percepções alteradas ou perda de controle; em vez disso, tende a gerar sensações de abertura, bem-estar e compaixão.

Julie Holland, psicofarmacologista, psiquiatra e autora do livro Ecstasy: The Complete Guide (Ecstasy: o guia completo), afirma: “A MDMA é apenas uma substância química delicadamente perfeita para intensificar o processo de psicoterapia. [...] A MDMA ajuda as pessoas a se sentirem mais abertas e confiantes no terapeuta [...] a ficarem despertas, alertas, verbais, querendo conversar, querendo explorar”.

Doblin enxergou isso em primeira mão. Em uma TED Talk, contou como deu MDMA e LSD à namorada de um amigo da faculdade,

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para ajudá-la a se recuperar de uma horrível agressão sexual. (Isso foi em 1984, quando a droga era legal.) Ele declarou ter tomado MDMA mais de 120 vezes.

A MDMA era sedutora demais para permanecer clandestina. No início dos anos 1980, Michael Clegg, um ex-padre católico, rebatizou-a como Ecstasy e começou a produzir e a vender a droga em larga escala. Podia ser encontrada em casas noturnas de elite, do Studio 54 em Manhattan ao Starck Club de Dallas. A popularidade do Ecstasy cresceu até mesmo quando a primeira-dama Nancy Reagan estimulava as pessoas com o lema “simplesmente diga não” às drogas e um programa educativo de resistência ao uso de drogas se espalhava pelas escolas, de modo que não houve surpresa quando as autoridades o reprimiram. Em 1985, a DEA adotou uma ação de emergência para banir a MDMA e disse pretender classificá-la permanentemente como droga da Classe 1.

Doblin reagiu, com o orgulho desmedido de um homem de 31 anos que ainda precisava terminar a faculdade. Levantou diversos recursos, entre os quais com a viúva de Aldous Huxley, cujo livro de 1954, As Portas da Percepção, ajudou a popularizar as substâncias psicodélicas. Além disso, reuniu cartas de terapeutas atestando os benefícios da MDMA. Doblin contratou um advogado pro bono e processou a DEA. (A New College deu-lhe créditos escolares por trabalhar no processo.) Antes de o banimento acontecer, Doblin encomendou 1 quilo de MDMA por US$ 4 mil a David Nichols, o farmacologista da Purdue que tinha uma licença da DEA para produzir drogas da Classe 1. Revelou-se o suficiente para décadas de pesquisas sobre a MDMA. “Ele teve visão ao colocar todos os ovos naquela cesta”, declarou Nichols.

A DEA realizou audiências e reuniu milhares de páginas de evidências. Em uma sentença de 71 páginas, um juiz decidiu contra a agência, considerando que a droga tinha usos médicos reconhecidos e um baixo potencial de adicção. Mas a sentença tinha caráter consultivo e foi ignorada.

“Lutamos ao longo de todo o processo e ganhamos o caso”, diz Doblin, “e, no final, perdemos. Foi de partir o coração.” A criminalização barrou o uso terapêutico da MDMA, mas teve pouco efeito em seu uso recreacional. A MDMA, não raro adulterada com outras drogas, tornou-se popular em festivais e em raves.

Apesar de desencorajado, Doblin não desistiu. Foi uma sorte porque essa derrota foi a primeira de muitas. Com pouco mais que a droga comprada de Nichols e a pesquisa com terapeutas sobre MDMA, Doblin deu o passo inicial para que a Maps viesse a fazer da MDMA um remédio legalizado. “O único caminho para a frente passa pela FDA”, declarou.

Na ocasião, Doblin desconhecia o fato de que droga alguma jamais havia sido transformada em remédio por uma organização não lucrativa. Se soubesse, isso provavelmente não teria importado.

O Direito de Mudar sua Consciência

A Maps lutou durante anos para fazer jus a seu nome – Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos. Começou não como uma associação, mas como uma iniciativa solitária. Doblin, o único membro da equipe, não recebeu salário durante sete anos; na verdade, emprestou dinheiro à Maps para pagar despesas operacionais. “A captação de recursos era realmente difícil”, ele declarou.

Quanto aos estudos de substâncias psicodélicas, enquanto alguns cientistas davam MDMA para macacos, camundongos, ratos e outras cobaias, o governo dos Estados Unidos tornou praticamente impossível conduzir experimentos com pessoas. As décadas de 1980 e 1990 foram tempos sombrios para os psicodélicos; quaisquer vislumbres de esperança eram cobertos pelo Maps Bulletin, lançado três vezes ao ano enquanto Doblin trabalhava em seu PhD na Harvard Kennedy School. A publicação tornou-se leitura obrigatória para aqueles que seguiam os debates científicos, políticos e culturais em torno de substâncias psicodélicas.

A edição do verão de 1992 do Maps Bulletin trouxe um desses vislumbres. “Uma nova era na pesquisa psicodélica está raiando”, declarou Doblin. A FDA acabara de dar permissão a Charles Grob, um psiquiatra da University of California, Los Angeles, que estava trabalhando com a Maps, para iniciar um estudo de terapia assistida por MDMA para tratar dores e desconforto em pacientes com câncer pancreático em estágio avançado. Doblin ficou tão emocionado – era uma “oportunidade histórica”, escreveu – que se licenciou de seus estudos de PhD para concentrar-se por completo na Maps.

Sua confiança foi equivocada. Grob completou um estudo de segurança da MDMA em voluntários saudáveis, mas a FDA por duas vezes não permitiu o uso da droga em pacientes com câncer. Surgiram questões sobre a neurotoxicidade da MDMA. Grob decidiu, em vez disso, realizar testes com psilocibina, com apoio do recém-formado Heffter Research Institute, que havia emergido como um amistoso rival da Maps – mas de qualquer modo um rival.

Os fundadores da Heffner posicionavam-se como cientistas em jalecos brancos. Queriam distanciar-se de Timothy Leary e de outros pesquisadores psicodélicos dos anos 1950 e 1960 cujo trabalho era visto como desleixado, ao menos pelos padrões atuais. “Éramos na maioria acadêmicos”, diz David Nichols, um fundador da Heffter. “Nosso paradigma era encorajar e apoiar pesquisa científica da mais alta qualidade, feita em instituições de ponta.”

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Rick Doblin, fundador da Maps, fala no Oslo Freedom Forum [Fórum da Liberdade de Oslo], em maio de 2018. FOTO DE TORE SÆTRE VIA WIKIMEDIA COMMONS
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Alguns no Heffter queriam distância de Doblin, de suas raízes antiestablishment e de sua oposição à guerra às drogas. Esperando manter a conversa a respeito de substâncias psicodélicos inteiramente separada do debate sobre drogas nocivas como heroína e cocaína, desaprovaram veementemente Doblin por se aliar à Drug Policy Alliance, por exemplo. “Não advogamos coisa alguma”, declarou Nichols.

Carey Turnbull, um empresário que fez fortuna no mercado de energia, foi um importante doador para o Heffter e agora é seu presidente. Ele admira o trabalho de Doblin e fez doações à Maps, mas doou mais fundos para pesquisa na New York University, Johns Hopkins e Yale. “Minha inclinação foi ir a uma importante universidade e me encontrar com psiquiatras de terno e gravata”, declarou.

Doblin usa gravata ocasionalmente, mas é visto com maior frequência com uma camisa aberta, com o cabelo revolto envolvendo uma área calva. Ele aceita de forma descontraída a acusação de que a Maps faz tanto política como ciência. “Nossa estratégia é dupla”, diz ele. “Queremos fazer remédios oriundos de drogas, mas também estamos muito interessados na reforma da política de drogas.” Em parte, é uma questão de princípio. “É um direito humano fundamental mudar sua consciência”, gosta de dizer. Mas também existem razões estratégicas para casar a pesquisa farmacêutica com o ativismo político.

Trabalho jurídico e trabalho político são por vezes requeridos para impulsionar desenvolvimentos. A Maps, por exemplo, fez lobby junto à FDA para permitir que um doutor na University of California, em San Francisco, estudasse o uso de marijuana para tratar pacientes de aids, na esperança de demonstrar por meio da ciência os benefícios médicos da droga. A Maps também conduziu um trabalho jurídico bem-sucedido para terminar com o monopólio no plantio de marijuana para pesquisa que estivera nas mãos do National Institute on Drugs Abuse (Instituto Nacional sobre Uso de Drogas), que contratava um único laboratório na University of Mississippi desde 1968. A Maps queria mudar a narrativa cultural sobre drogas – antes marijuana, agora substâncias psicodélicas –demonstrando que tinham valor terapêutico. “A legalização segue a medicalização”, diz Doblin.

O trabalho político também traz benefícios na captação de recursos. Doadores mais conservadores podem ter recuado diante da abordagem de Doblin, mas veteranos da contracultura reconheceram um companheiro de viagem. “Usei psicodélicos para recreação e crescimento pessoal”, diz John Gilmore, cofundador da Electronic Frontier Foundation, que defende liberdades civis na internet. “Sabia que toda a guerra às drogas e a perseguição a essas drogas não tinham base na realidade.” Gilmore, que foi um dos primeiros empregados da Sun Microsystems, destinou US$ 10 milhões à reforma da política de drogas e atualmente preside o Conselho da Maps. Ele estima que mais de 90% do dinheiro obtido pela entidade vem de psiconautas, termo usado para descrever os que usaram psicodélicos para explorar suas mentes.

Enquadrar o acesso a drogas psicodélicas e à marijuana como uma questão de direitos humanos agradou à Libra Foundation, projeto familiar de filantropia estabelecido por Nicholas e Susan Pritzker, que tinha foco nos direitos humanos. A Libra deu mais de US$ 1,3 milhão à Maps na década de 2010, como parte de seu apoio à reforma da

justiça criminal. Na ocasião, a Maps estava – finalmente – fazendo progressos junto à FDA.

Um Casamento Ideal

Michael Mithoefer conheceu Rick Doblin em uma conferência sobre ayahuasca em San Francisco em 2000. Foi um momento decisivo para ambos e para a Maps. Juntos, começaram o trabalho que permanece sendo o foco da organização: fazer da MDMA um remédio aprovado pela FDA.

Os dois eram almas gêmeas. Mithoefer havia experimentado LSD e ayahuasca e estudara respiração holotrópica – uma técnica que usa respiração rápida para alcançar estados alterados de consciência – com seu inventor, Stanislav Grof, mentor de Doblin. Mithoefer, que começara sua carreira na medicina como emergencista em pronto-socorro, passou para a psiquiatria porque desejava explorar o potencial de cura das substâncias psicodélicas. Ele tinha especial interesse no TEPT.

Se a meta era conquistar apoio para remédios psicodélicos por parte de regulamentadores, doadores e do público, a MDMA e o TEPT formavam um casamento ideal de droga e transtorno.

“Rapidamente concordamos que a MDMA tinha qualidades particulares que poderiam torná-la boa para o TEPT”, lembra Mithoefer. A MDMA melhora o estado de espírito e constrói confiança entre o paciente e o terapeuta, ajudando aquele a revisitar memórias traumáticas e a trabalhá-las. “É como recriar um ambiente de apoio dos pais”, observou Doblin. Em poucas palavras, a dimensão científica parecia auspiciosa.

A dimensão política também. MDMA é a mais suave das drogas psicodélicas e a de menor probabilidade de produzir viagens ruins. Terapeutas receosos em relação ao LSD ou à psilocibina poderiam ser persuadidos a trabalhar com a MDMA, pensou Doblin. E mais, ainda que a MDMA fosse controvertida devido a seu amplamente difundido uso recreacional como Ecstasy, a droga fora analisada em mais de 1.200 estudos revisados por pares, a maioria realizada por pesquisadores que procuravam documentar seus malefícios. Debatia-se quanto aos danos que a MDMA poderia ocasionar em usuários pesados ou pessoas em festas que se esgotavam enquanto estavam sob o efeito do Ecstasy, mas havia pouca evidência de que ela era nociva quando usada com parcimônia em ambientes clínicos.

Enquanto isso, a conscientização sobre o TEPT estava aumentando. O sofrimento induzido em soldados pelo trauma havia muito era reconhecido como um problema – chamavam-no de “shell shock” (choque de bombardeio) durante a Primeira Guerra Mundial – mas a condição só apareceu no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, em 1980. O sofrimento dos veteranos do Vietnã chamou a atenção para o problema nos anos 1970, mais ou menos na mesma época em que o trauma causado por estupro ou agressão sexual em mulheres passou a ser compreendido como uma forma de TEPT.

Seja como for, Doblin e Mithoefer lutaram muito para fazer decolar os testes clínicos da Fase 2, depois de Charles Grob ter cuidado dos da Fase 1, com foco na segurança. Na Fase 2, os testes buscaram definir um protocolo de tratamento, determinar a dose ótima, identificar a população de pacientes e avaliar o efeito da droga. Eles lançaram os fundamentos para a Fase 3, cujos testes avaliam os

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efeitos da droga e a segurança, comparando-os com um tratamento corrente ou um placebo.

Dessa vez, a FDA não foi um problema: a agência prontamente aprovou o protocolo da Maps. Isso decorreu em parte dos anos em que Doblin cultivou relacionamentos com os regulamentadores, bem como de seu conhecimento da maneira pela qual o sistema funcionava. Sua tese de doutorado, apresentada em 2000, era sobre regulação do uso médico de substâncias psicodélicas e de marijuana.

Mas o plano de Mithoefer de realizar os testes na Medical University of South Carolina, onde ele ensinava, fracassou quando eles atraíram publicidade. Ele ficou pesaroso, declarou na ocasião, “em ver o grau em que a liberdade acadêmica em uma universidade pode ser restringida pelo preconceito e pela pressão política”. Os testes foram deslocados para seu consultório particular.

Sem acesso à universidade ou ao seu Institutional Review Board (IRB, Conselho Institucional de Revisão), Doblin e Mithoefer buscaram um conselho independente para aprovar os testes, como exigido pela FDA. (Os IRBs revisam pesquisas médicas envolvendo participantes humanos para garantir que os direitos e o bem-estar destes

placebo – a seu primeiro paciente. Começou assim o primeiro dos seis testes randomizados, duplo-cego, da Fase 2 da terapia auxiliada pela MDMA, que com o tempo se expandiria para outros locais nos Estados Unidos, Canadá, Suíça e Israel. Os Mithoefer continuaram a refinar o protocolo de tratamento, publicando sete versões de um manual que chegou a 69 páginas e cobria tudo, do ambiente (calmo, privado, confortável, com o paciente sentado ou deitado em um sofá) à música (usualmente instrumental, por vezes calma e tranquila, por vezes mais dramática) até o papel do terapeuta como um ouvinte cheio de empatia.

A Maps terminou por estabelecer um protocolo de três meses e meio que inclui três sessões de dia inteiro, durante as quais o paciente toma MDMA. Três sessões de 90 minutos de psicoterapia precedem a primeira experiência com a droga, e três sessões se seguem a cada contato com a substância.

Dois terapeutas, normalmente um homem e uma mulher, cuidam do tratamento. Dois são indicados por motivos de ordem prática –alguém precisa estar com o paciente o tempo todo durante os longos dias sob o efeito da MDMA – e também porque alguns reagem melhor à presença de um homem, outros à de uma mulher. Os terapeutas são encorajados a experimentar a MDMA, e a maioria o faz.

O modelo da Maps manterá os interesses comerciais sob controle ao tornar seu tratamento amplamente disponível a um custo razoável.

sejam protegidos.) Nada menos que sete IRBs se recusaram. Doblin voltou-se para uma empresa privada de IRB, o Copernicus Group, na esperança de que, dado o seu nome, ela apoiaria uma empreitada científica que enfrentava forte oposição política. O Copernicus de fato aprovou, mas não antes de estipular que não queria seu nome no website da Maps ou em quaisquer outros materiais.

Não ajudou o caso deles o fato de George Ricaurte, um neurologista e proeminente expert em MDMA, que era financiado pelo National Institute on Drug Abuse (Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas), ter publicado um estudo na Science em 2002 alegando que uma única dose de MDMA podia causar dano cerebral permanente. O estudo foi questionado por Doblin, entre outros, e retirado depois que se determinou que Ricaurte havia provocado uma overdose em macacos com metanfetamina, não Ecstasy. Diz Doblin: “Havia uma perversão da ciência a serviço da guerra às drogas”.

O último obstáculo remanescente era a DEA. A agência levou meses para decidir se Mithoefer conservaria adequadamente uma pequena quantidade de MDMA guardada em seu consultório. (Valia menos de US$ 100 nas ruas.) Um funcionário da DEA disse-lhe que haviam planejado fazer uma verificação de antecedentes de uma terapeuta que alugava um consultório vizinho, para “ter certeza de que ela não vai furar a parede ou algo assim”, Mithoefer escreveu em suas notas na época. Quando ele lhe disse que devia esperar uma investigação da DEA, a terapeuta respondeu: “Diga-lhes que não sou muito boa com ferramentas”.

Finalmente, em 16 de abril de 2004, Mithoefer e sua esposa, Annie, uma enfermeira, deram uma dose de MDMA – ou, talvez, um

“Acreditamos que o terapeuta será mais efetivo se ele próprio tiver usado a droga”, explica Doblin. “Você não vai a um professor de ioga que jamais praticou ioga.” (Verdade, mas uma analogia pobre; muitos obstetras e ginecologistas perfeitamente capazes jamais tiveram filhos.)

Precisamente como a MDMA afeta o cérebro é algo ainda pouco claro. Os cientistas dizem que a substância intensifica a liberação de neurotransmissores, entre eles a serotonina e a dopamina, e hormônios, incluindo a oxitocina e o cortisol, que podem reduzir a atividade em regiões do cérebro como a amígdala e a ínsula, implicadas na expressão de comportamentos relacionados ao medo e à ansiedade. A MDMA pode contribuir para o reprocessamento de memórias traumáticas e para o engajamento emocional com processos terapêuticos.

De todo modo, todos concordam que o importante é a terapia, não a droga. “A MDMA jamais vai ser um remédio de uso doméstico”, diz Doblin. “Ela ajuda a terapia a se tornar mais efetiva.” Os testes da Fase 2 destinavam-se, em parte, a verificar se a terapia com um placebo funcionava tão bem quanto a terapia com MDMA: não funcionou.

Em um estudo de 2019 publicado na Psychopharmacology, Mithoefer, Doblin e alguns colegas relataram que 54% dos participantes que passaram por terapia com MDMA – mais de duas vezes o número do grupo de controle – não se encaixavam mais no diagnóstico de TEPT dois meses depois de sua dose final de MDMA. Melhor ainda, as pessoas continuaram a evoluir por si mesmas. Um ano depois, para dois terços delas o diagnóstico de TEPT não se aplicava.

A FDA estava convencida de que, para dizer o mínimo, o tratamento tinha potencial. A agência deu permissão à Maps para conduzir os testes da Fase 3 – os primeiros já realizados para uma droga psicodélica. Também garantiu o que chamava de Designação de Terapia de Ruptura para a terapia auxiliada pela MDMA

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para o TEPT. A agência reserva essa designação para tratamentos de condições severas que parecem oferecer melhorias substanciais em relação a terapias existentes; a maioria das drogas designadas como de ruptura ganha mais adiante aprovação como medicamento. Finalmente, a Maps e a FDA concordaram em pontos de referência para os testes da Fase 3 que, se atendidos, apoiariam a aprovação regulatória pela FDA.

David Nutt, neuropsicofarmacologista no Imperial College London e fundador da organização não lucrativa Drug Science, declarou à revista Science: “Esse não é um grande passo científico. Há 40 anos sabemos que essas drogas são medicamentos. Mas é um grande passo no que se refere à aceitação”.

Renascimento Terapêutico

Enquanto a Maps desenvolve suas pesquisas com a MDMA, outros cientistas vêm aprendendo mais sobre psicodélicos clássicos. Em estudos na Johns Hopkins e na NYU, a terapia auxiliada com psilocibina mostrou-se promissora para o tratamento da ansiedade e da depressão relacionadas ao câncer, da dependência a tabaco e álcool e da depressão resistente a tratamentos. A euforia quanto a remédios psicodélicos está crescendo, em parte porque é pouco usual que um único medicamento trate tantos males.

“A terapia psicodélica parece ser muito potente para inúmeras condições diferentes”, diz William A. “Bill” Richards, um veterano pesquisador psicodélico atualmente ligado à Johns Hopkins. “Não depende de nossa nomenclatura do DSM. Fala aos seres humanos de seus próprios recursos interiores. Ajuda-nos a despertar e a ficar vivos quando usada com inteligência e habilidade.”

Diferentemente de muitas drogas psiquiátricas, tomadas por meses ou anos, os medicamentos psicodélicos são ingeridos não mais que um punhado de vezes, sempre acompanhados pela psicoterapia. Trata-se de um modelo pioneiro de tratamento, no qual o efeito biológico dos medicamentos estimula novos insights e proporciona mudanças comportamentais. Matthew Johnson, outro pesquisador da Johns Hopkins, a chama de “uma mudança de paradigma no tratamento psiquiátrico”.

A natureza inovadora dessa pesquisa, somada ao estigma associado aos psicodélicos, ajuda a explicar por que está levando tanto tempo para obter a aprovação regulatória. Em 2001, Doblin estimava que seriam necessários cinco anos e US$ 5 milhões para fazer da MDMA um remédio. Vinte anos e cerca de US$ 75 milhões depois, ele ainda não chegou lá. “Sou constitucionalmente inclinado ao otimismo”, diz ele.

Mas o fim está à vista. O primeiro conjunto de testes da Fase 3 confirmou os resultados favoráveis da Fase 2, bem como uma análise independente realizada nesse ínterim, que determinou haver uma probabilidade de 90% ou mais de os testes, quando completados, detectarem resultados estatisticamente relevantes. A Maps está tão confiante na eficácia do tratamento que iniciou um segundo e final conjunto de testes da Fase 3 em 11 locais nos Estados Unidos, dois no Canadá e um em Israel, envolvendo cerca de 100 participantes. Se tudo correr bem, a FDA vai aprovar a MDMA como medicamento durante a primeira metade de 2023. O mais importante foi que a Maps desbravou um caminho através do que era território virgem para a FDA.

Os testes estão sendo realizados pela Maps Public Benefit Corporation (Corporação de Benefício Público da Maps), uma subsidiária para fins lucrativos, de propriedade total da Maps, que será responsável pela implementação comercial da psicoterapia auxiliada pela MDMA. Amy Emerson, ex-executiva da companhia farmacêutica Novartis, é a principal executiva da corporação de utilidade pública. Seu alvará, obtido em Delaware, estipula que a companhia opere de modo a servir o interesse público, o que significa, entre outras coisas, que eventuais lucros retornarão à Maps para financiar pesquisas e atividades de defesa jurídica.

Descartando-se contratempos inesperados, a comercialização será o próximo empreendimento importante para a Maps. A organização terá de treinar centenas de terapeutas ou licenciar outros para fornecer o treinamento. Muitas questões acerca de como isso vai funcionar permanecem sem resposta. A FDA e a Maps estão barganhando, por exemplo, sobre quais qualificações serão requeridas dos terapeutas. Os estados podem aplicar suas próprias leis de licenciamento; eles poderiam exigir, por exemplo, que um médico esteja presente quando a droga for administrada. Também está sem resposta a questão crítica de saber se as seguradoras privadas ou o governo, por meio de programas como Medicaid e Medicare, ou a Administração de Veteranos, pagarão por um tratamento de custo estimado em cerca de US$ 15 mil, dependendo dos preços cobrados pelos terapeutas. Citando um estudo publicado no periódico PLOS One, a Maps argumenta que a sua terapia assistida com MDMA para TEPT severo na verdade economizará dinheiro quando comparada a tratamentos mais convencionais.

Enquanto a Maps se aproximava da meta de fazer da MDMA um medicamento, sua base de captação de recursos se expandia além dos psiconautas, para incluir proeminentes doadores do Vale do Silício e de Wall Street ligados a questões de saúde mental, particularmente o TEPT. A perspectiva de ajudar veteranos foi bem-vista pela Steven & Alexandra Cohen Foundation, liderada pelo fundador de um fundo hedge bilionário e sua mulher,

A psicoterapia assistida com MDMA envolve o apoio de terapeutas treinados e um ambiente relaxado (à esquerda). À direita, um terapeuta segura uma pílula de MDMA.

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MAPS
FOTOS DE BRYCE MONTGOMERY COURTESIA DE

que deram US$ 5 milhões à Maps (o filho dos Cohen, Robert, um fuzileiro naval dos EUA, serviu no Afeganistão); ou Rebekah Mercer, uma doadora para causas conservadoras cuja fundação familiar doou US$ 1 milhão. Bob Parsons, fundador da GoDaddy e da fabricante de equipamentos de golfe PXG, é um veterano do Corpo de Fuzileiros Navais que lutou contra o TEPT; ele e a esposa, Renee Parsons, presidente da PXG Apparel, doaram US$ 2 milhões à Maps por meio de sua fundação familiar. Os administradores de fundos hedge Alan Fournier e John Griffin doaram US$ 1 milhão cada um em memória de seus pais, que lutaram na Segunda Guerra Mundial.

Outros doadores importantes dizem que o uso de substâncias psicodélicas mudou sua vida. Com sua postura progressista e seu rabo de cavalo, David Bronner, CEO da empresa familiar Dr. Bronner’s, fabricante de sabonetes e outros produtos de higiene pessoal, permanece como o maior doador individual da Maps, tendo contribuído com US$ 5 milhões. O autor, podcaster e investidor Tim Ferriss, que lutou contra uma depressão e encontrou alívio com drogas psicodélicas, é outro importante propagador da causa, tendo dado US$ 1 milhão de seu próprio dinheiro e ajudado a conduzir no ano passado uma campanha de US$ 30 milhões que financiará o resto das atividades da Fase 3 nos Estados Unidos. Outra campanha de US$ 30 milhões está em andamento para pagar pela pesquisa da Fase 3 na Europa, que, se bem-sucedida, deve tornar a MDMA um medicamento disponível na maior parte do mundo.

À medida que mais pessoas aprendem sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos, drogas antes demonizadas como ameaças para os adolescentes da América são vistas agora como instrumentos de cura. Veículos do establishment como The New York Times, 60 Minutes e CNN prestam respeitosa atenção aos cientistas das universidades que estudam as drogas. “Superamos o fantasma de Timothy Leary”, disse Doblin. Um sinal da reviravolta: a Medical University of South Carolina, que antes menosprezou Michael Mithoefer, pediu-lhe para ajudar a estabelecer um centro de medicina psicodélica.

Graham Boyd, advogado e fundador da New Approach PAC (Nova Abordagem – Comitê de Ação Política), que financiou o item da eleição do Oregon para legalizar o tratamento com psilocibina, rastreou mudanças de atitudes em relação às drogas. “De forma semelhante, a Maps e Michael Pollan contribuíram para uma atmosfera de curiosidade pública e receptividade em torno dos psicodélicos”, declarou. O artigo de Pollan em 2015 para a New Yorker “The Trip Treatment” (O Tratamento da Viagem) e o bestseller de 2018 Como mudar sua mente: o que a nova ciência dos psicodélicos pode nos ensinar sobre consciência, morte, vício, depressão e transcendência transformaram o discurso público sobre o assunto. Mas Doblin provavelmente alcançou mais pessoas por meio de podcasts populares como The Joe Rogan Experience e The Tim Ferriss Show e com sua TED Talk, que tem 2,8 milhões de visualizações.

Os investidores perceberam. Nos últimos anos, dinheiro foi despejado em empresas que esperam capitalizar o potencial dos psicodélicos. Seus apoiadores dizem que a empreitada de trazer medicamentos psicodélicos para o mercado é demasiado custosa e complexa para organizações não lucrativas. “Quando há uma falha de mercado, você precisa de filantropia. Quando se vê promessa, você precisa de um modelo diferente”, diz George Goldsmith, cofundador da Compass Pathways, uma startup psicodélica. “É por isso que empresas farmacêuticas existem.” A Compass Pathways, que está pesquisando a terapia com psilocibina para depressão, levantou US$ 147 milhões no ano passado, quando vendeu ações para o público. Um website intitulado Psychedelic Finance rastreia as ações de uma dúzia de companhias de capital aberto e de igual número de startups privadas que buscam fazer dinheiro a partir das drogas. Algumas se aproximaram da Maps. “Temos descartado investidores à direita e à esquerda”, declarou Doblin. A razão, explica, é que o modelo da Maps – uma companhia com fins lucrativos pertencente a uma organização não lucrativa – vai conservar os interesses dos negócios sob controle, ao tornar seu tratamento amplamente disponível a preço razoável. A Maps pretende fazer dinheiro ao vender a MDMA por pelo menos cinco anos, antes que os fabricantes de genéricos possam se juntar a ela, mas não tem desejo de monopolizar o mercado. “A escala de sofrimento é tão grande que precisamos que todos se envolvam”, diz Doblin. “Queremos que a companhia com fins lucrativos tenha êxito.”

No último Maps Bulletin, Doblin adota um tom entusiástico: “Estamos agora em pleno processo de renascimento da pesquisa psicodélica, do florescer das companhias com fins lucrativos e não lucrativos, e dos esforços bem-sucedidos de reforma da política de drogas psicodélicas”.

Isso dito, há muito trabalho pela frente. O objetivo último de Doblin continua a ser a saúde mental em massa. Não está claro como isso vai acontecer, mas ele fala sobre um futuro que inclui uma rede global de clínicas psicodélicas, nas quais, com orientação, adultos buscando crescimento pessoal ou espiritual poderiam ter acesso a psicodélicos. Ele visualiza um mundo pós-proibição de “legalização licenciada”, no qual os adultos precisariam estudar e passar por um teste para obter permissão para experimentar drogas, exatamente como hoje precisam ser testados para tirar uma carteira de motorista. Ele estima que as substâncias psicodélicas poderiam estar ampla e legalmente disponíveis por volta de 2035. n

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 23

Bioeconomia Inclusiva na Amazônia: Como Orquestrar a Economia da Floresta em Pé

A exploração e a expropriação de recursos naturais, trabalho e saberes dos povos da floresta tornaram a Amazônia um palco de contradições sociais, econômicas e políticas. A chave de sua proteção está em modelos de desenvolvimento que valorizem sua sociobiodiversidade e tenham como protagonistas as populações tradicionais. Somente uma orquestração robusta, envolvendo diferentes atores, poderá implementar uma economia da floresta em pé e escrever um novo capítulo na história da região.

Embora se estenda pelo território de nove países soberanos, a Amazônia, maior floresta tropical do mundo, pode ser vista como uma região universal e um bem comum global.1 Ao abrigar um quinto de toda a água doce e a maior coleção de biodiversidade da Terra, a floresta é não apenas o maior reduto de vida que conhecemos, mas também uma peça-chave para os rumos da nossa espécie.2 Diante da magnitude de seus inúmeros serviços ecossistêmicos e da complexidade dos desafios ambientais que vivemos como sociedade no âmbito global, é adequado pensar que “somos todos amazônidas”, independente da nacionalidade, como bem apontou Ignacy Sachs, o precursor da noção de ecodesenvolvimento.

O Brasil detém cerca de 60% do bioma Amazônia, cujo território é preenchido majoritariamente pela chamada Amazônia Legal,3 uma área administrativa de 5,2 milhões de km2 que compreende nove estados da federação (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Infelizmente, nem a relevância global nem a representatividade geográfica local parece ter impedido o Estado brasileiro de manter uma postura tecnocrática, autoritária e profundamente ambígua em relação à Amazônia ao longo de sua história. 4 Após diversos projetos de integração e desenvolvimento malfadados (mineração, hidrelétricas, rodovias e

agronegócio), a região consolidou-se como palco de contradições sociais, econômicas e políticas, em que a exploração e a expropriação de riquezas naturais, trabalho e saberes dos povos da floresta são comumente o modus operandi. 5

Somente no período de agosto de 2021 a julho de 2022, 10.781 km² de floresta amazônica foram derrubados, o que equivale a sete vezes o tamanho da cidade de São Paulo, a maior da América Latina. Essa foi a maior área devastada dos últimos 15 anos, segundo dados do Imazon.6 Além de dizimar a biodiversidade e provocar secas e picos de temperatura na própria região, o desmatamento afeta o regime de chuvas em outras áreas do Brasil,7 e eleva subitamente as emissões de gases de efeito estufa, o que desequilibra o clima em escala global. Tais consequências evidenciam que a degradação da Amazônia é um dos maiores e mais complexos problemas ambientais do mundo.8

Em igual proporção, devemos também atentar para os impactos no dia a dia – já precário em múltiplos sentidos – de aproximadamente 28 milhões de pessoas que vivem na Amazônia. Impactos que atingem, em especial, as comunidades tradicionais e os povos indígenas, cujos modos de vida são frontalmente afetados e que, na condição de habitantes seculares da região, guardam culturas e saberes vitais para que possamos responder às perguntas que a humanidade ainda fará à floresta.

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Pensar soluções para a Amazônia exige reconhecer a relação direta do quadro atual com o avanço de determinadas atividades produtivas. Além de degradarem a floresta, essas atividades passaram longe de promover conquistas socioeconômicas efetivas para os seus habitantes. Embora ocupe mais de 59% do território brasileiro, a Amazônia Legal contribui com apenas 8% do Produto Interno Bruto (PIB).9 Além disso, as dez cidades mais pobres do país se localizam na região e o número de pessoas em situação de extrema pobreza supera a média nacional em sete dos nove estados amazônicos.

Diante desse cenário – e sabendo o que a bandeira do desenvolvimento fez até aqui –, é urgente promover e incentivar um novo modelo social e econômico para a Amazônia, uma proposta que alie atividades rentáveis e sustentáveis à proteção da floresta em pé e à redistribuição de retornos para as populações tradicionais que ocupam e protegem um dos biomas mais valiosos e essenciais do planeta. O tipping point – um patamar de degradação de proporções catastróficas, a partir do qual a floresta iniciará um processo de savanização e tentativas de recuperação não serão mais viáveis – está cada vez mais próximo, alertam vários estudos científicos. Como bem frisado na 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP27), apesar da degradação ambiental ter alcançado níveis alarmantes nos últimos anos, a floresta ainda tem condições de se reerguer: é hora, portanto, de fomentar o empreendedorismo sustentável na Amazônia como uma das alternativas que compõem esse desafio primordial.

JOSÉ AUGUSTO LACERDA FERNANDES é professor da Faculdade de Administração (FAAD) e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), na qual também coordena o Ateliê de Negócios Transformadores da Amazônia (Atenta) e projetos de extensão no campo do empreendedorismo e da inovação social. Representa a região Norte no Conselho do Programa Academia ICE. Atualmente realiza pós-doutorado na Aix-Marseille Université (França), investigando como novas formas organizacionais podem fortalecer as cadeias produtivas da bioeconomia da floresta.

GRAZIELLA MARIA COMINI é professora associada da Faculdade de Economia, Administração e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA/USP), coordenadora do Centro de Empreendedorismo Social

e Administração do Terceiro Setor (CEATS/USP) e vicecoordenadora do Núcleo de Gestão de Projetos da Fundação Instituto de Administração. Representante do Brasil da Social Enterprise Knowledge Network (SEKN), é também vice-presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê) e conselheira de empreendimentos socioambientais e negócios sociais no Brasil. Coorganizou o livro Negócios de Impacto Socioambiental no Brasil: Como Empreender, Financiar e Apoiar

JULIANA RODRIGUES é professora, pesquisadora e consultora de temas voltados para empreendedorismo social, inovação social e sustentabilidade. Membro da Social Enterprise Knowledge Network (SEKN), atualmente é doutoranda pela Universidade Aalto (Finlândia) e pela Fundação Getulio Vargas – FGV-EAESP (Brasil).

ção à magnitude e diversidade de iniciativas na região. A partir de um mapeamento realizado nas bases de diferentes organizações dinamizadoras do ecossistema de negócios socioambientais (Pipe.Social, PPA, AMAZ, Lab Amazônia, Conexxus e Impact Hub),10 foram sistematizados 578 empreendimentos engajados direta ou indiretamente com a sociobiodiversidade e a visão de estimular a manutenção da floresta em pé – seja pela valorização de seus produtos, seja por lidar com desafios prementes de suas comunidades. Embora se trate de um quantitativo discreto à luz das demandas e oportunidades presentes na Amazônia, desde os anos 2000 esse tipo de negócio tem apresentado um crescimento expressivo na região.

Habitantes seculares, as comunidades tradicionais e os povos indígenas guardam culturas e saberes vitais para podermos responder às perguntas que ainda faremos à floresta.

Quando conectado à realidade e ao potencial do território, o empreendedorismo pode ser um aliado para desenvolver a economia da floresta em pé. Essa abordagem valoriza os recursos da floresta em sua sociobiodiversidade e tem como protagonistas as populações tradicionais, fundamentando-se no uso inteligente das riquezas naturais e no compromisso com o bem-estar dessas populações. A economia da floresta em pé abrange, assim, a necessidade de uma verdadeira orquestração para envolver diferentes atores a partir de uma visão sistêmica do contexto amazônico. Neste artigo, vamos trilhar alguns caminhos para superar o modelo econômico calcado na devastação ambiental e orquestrar o modelo de economia da floresta em pé.

Um Retrato dos Empreendimentos da “Floresta em Pé!”

Há diversos negócios comprometidos em escrever uma nova história para a Amazônia. O conhecimento sobre essa realidade, no entanto, está disperso, e é desafiador sustentar um olhar abrangente em rela-

Os negócios da floresta, nomenclatura usada para agrupar aqueles que foram criados em comunidades tradicionais ou com elas se envolvem diretamente, ribeirinhos, indígenas e quilombolas, concentram 67% dos empreendimentos mapeados. Tais iniciativas têm gerado inovações em segmentos bastante variados, como turismo, educação, transporte e saneamento básico. A Academia Amazônia é um caso muito interessante, em que jovens recebem formação a partir de expedições pela floresta e são preparados para uma atuação sustentável no campo do turismo. Já o NavegAM, plataforma de e-commerce de transporte hidroviário, facilita a aquisição de passagens de barco pelos rios da região enquanto o Amana Katu busca universalizar o acesso a água de qualidade em comunidades periféricas por meio de uma tecnologia social que purifica a água da chuva. Apesar da pluralidade desses negócios, percebe-se, porém, o predomínio de iniciativas em cadeias agroalimentares, como é o caso da Manioca e da Deveras Amazônia. Em parceria com produtores locais, ambas as empresas têm conseguido elaborar produtos inovadores e com valor agregado a partir de insumos típicos da floresta, como mandioca, açaí, cupuaçu, bacuri, jambu, castanha-do-pará, pupunha e tucupi. Uma constatação reforçada pelo mapeamento diz respeito ao papel vital da cooperação e do suporte de vários atores no ecossistema de negócios da floresta, já que a maior parte desses empreendimentos teve apoio de universidades e organizações não governamentais sem fins lucrativos. Esse dado ganha ainda mais relevância quando se observa que aqueles que conseguiram ultrapassar o estágio de Produto Mínimo Viável (MVP, na sigla em inglês) atuam a partir de uma lógica cooperativa com diferentes organizações. Graças ao

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apoio obtido por meio dessas parcerias, tais empreendimentos têm conseguido identificar melhor as dores e necessidades de cada mercado, bem como criar soluções autorais em vez de importá-las, o que valoriza a cultura e o uso dos recursos locais.

A importância de as organizações trabalharem conjuntamente se revela não só no nível dos próprios empreendimentos, mas também no fortalecimento do ecossistema no qual eles atuam, sobretudo considerando as assimetrias existentes entre os estados da Amazônia. De acordo com o mapeamento, diversas localidades sofrem com vazios institucionais, o que escancara a fragilidade do ecossistema de negócios socioambientais na região. Apesar da multiplicidade de empreendimentos mapeados, sua distribuição geográfica não é homogênea: 43% estão concentrados no Pará e 36% no Amazonas. Ambos os estados abrigam também os negócios mais maduros, já em fase de desenvolvimento de produto ou de escala. O mesmo não ocorre no Maranhão, Acre, Mato Grosso, Roraima, Amapá, Rondônia e Tocantins, estados que concentram os restantes 21% de empreendimentos em estágios iniciais de desenvolvimento – ideação e prototipação. Nessas localidades, como revelam os empreendedores, predomina a dificuldade de obtenção de recursos e de mentoria para que o negócio avance de fase. Além disso, eles enfatizam os desafios de logística e dificuldade de acesso a mercados para venda de seus produtos.

A Bioeconomia como Vetor de Transformação

Ainda há muitas questões em aberto sobre como alavancar esse movimento de empreendedorismo sustentável na Amazônia, mas tanto o mapeamento como outros estudos realizados pelos autores evidenciam que um caminho capaz de conjugar a preservação e um outro desenvolvimento da região tem como aliados os negócios e as cadeias produtivas da sociobiodiversidade.11 São empreendimentos que, ao conjugar o uso de recursos biológicos com sustentabilidade e o protagonismo das comunidades, dão vida à bioeconomia. Aliada à tecnologia e à valorização dos conhecimentos tradicionais e científicos, essa riqueza natural pode se converter em produtos com alto valor agregado e enorme potencial de utilização em vários setores (alimentício, farmacêutico, cosmético, joalheiro, entre outros) e de entrada em diferentes mercados (local, nacional e internacional). Essa feliz conjugação entre preservação e desenvolvimento possibilita mudanças transformacionais no uso da terra, na inclusão social e no atendimento de demandas básicas das comunidades locais. Além disso, promove a conservação e a regeneração de áreas degradadas, vetores de um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, fundamentado nas vantagens comparativas que podem fazer dela a principal protagonista da bioeconomia a nível mundial.12

As oportunidades anunciadas pelo crescimento de negócios da biodiversidade são tão promissoras que é difícil discordar de sua pertinência. O desafio, de fato, é viabilizá-las em larga escala e com resultados de longo prazo, dada a gama de obstáculos existentes entre a valorização da biodiversidade, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa dos benefícios atrelados a seu uso.13 Ao fundamentar-se em uma economia de baixa emissão de carbono e alta biodiversidade, tais negócios forjam rupturas com a história e o modelo de desenvolvimento até então implementado nessa região de capitalismo tardio.14 Como se já não fossem suficientes as dificuldades estruturais que acometem o empresariado local

em um sentido mais amplo.15 Não por acaso, muitos empreendedores conhecidos por meio do mapeamento se referem frequentemente à expressão “custo Amazônia”, procurando encapsular essa complexidade, tanto em termos concretos – como os custos de logística, escassez de determinados tipos de recursos e dificuldades de infraestrutura – como em aspectos institucionais.

Nesse contexto, apontamos que orquestrar o desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia implica contemplar as demandas e peculiaridades dos principais protagonistas desse movimento: os pequenos negócios. Sobretudo no sentido de perceber que tais iniciativas não costumam ser caracterizadas pela figura de um herói e líder solitário, mas sim por pujantes coletivos, associações e cooperativas inseridas em comunidades repletas de nuances socioculturais. São empreitadas de trabalho conjunto, cujas trajetórias reafirmam que “a comunidade é o jardim do empreendedorismo, pois não há empreendimento que possa florescer de modo isolado”.16

Unindo Forças por uma Causa Coletiva

Por se tratar de iniciativas que lidam com desafios compartilhados por vários atores, grupos e setores, como organizações não governamentais, instituições de pesquisa, empresas e órgãos de diferentes esferas do poder público, as soluções também devem ser geradas de modo colaborativo e participativo. O que costuma demandar novas estratégias, práticas organizacionais e mecanismos de governança, em especial no que se refere à articulação com as populações tradicionais envolvidas por esses empreendimentos: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores e extrativistas, entre outros. Em muitos casos, o desconhecimento de seus direitos e a carência de políticas públicas mais abrangentes dificultam o exercício de uma participação democrática e de resultados condizentes com suas expectativas, o que torna necessária a atuação de várias entidades para viabilizar pactos de sustentabilidade junto às comunidades.17

Em suma, desenvolver a Amazônia por meio de seu maior ativo – a floresta em pé – passa por uma constelação de grandes obstáculos, só não maiores que as oportunidades possibilitadas por sua abundante biodiversidade, a maior expressão de vida que existe no planeta. É nesse contexto que, para superar problemas ou desenvolver oportunidades, cresce a importância de instituições públicas e privadas que ajudem na criação de infraestrutura para a operação dos empreendimentos. Por conta disso, argumentamos que qualquer tentativa de orquestração efetiva deve envolver, além do ecossistema de empreendedorismo sustentável, no mínimo mais dois arranjos de atores que podem influenciar diretamente a economia da floresta em pé: as metaorganizações, que fornecem apoio e fomento a essas iniciativas e conexão com operações mais justas de mercado, e o Estado, presente por meio de um governo atuante que garanta não somente a infraestrutura e o ambiente institucional necessários, mas também opere como articulador do movimento.

Da Commodity ao Chocolate Fino

O caso da Cacauway, marca paraense de chocolates criada pela Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica (Coopatrans), ilustra muito bem como empreendimentos comunitários com base na sociobiodiversidade podem ser vetores de transformação social.

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Ao explorar o cacau (fruta nativa da região) a partir da lógica da sustentabilidade, da agregação de valor e do compartilhamento de ganhos, a Cacauway tem conseguido obter resultados significativos em frentes que vão da regeneração de áreas degradadas ao próprio fortalecimento setorial da cacauicultura na região. Além de gerar empregos e renda, tal atividade tem contribuído significativamente para a proteção do solo e para a redução das emissões de gases de efeito estufa no estado do Pará, em que 99,54% das plantações de cacau estão localizadas fora de qualquer área de preservação, terra indígena ou assentamento quilombola18. Uma das confirmações do viés sustentável da cultura cacaueira na Amazônia é a produção caracterizada fortemente pela adoção dos sistemas agroflorestais (SAFs), que conjugam o cacau com outros frutos.

Apesar de ser um negócio de pequeno porte, a experiência da Cacauway como uma das pioneiras na produção de chocolate de alta qualidade com terroir amazônico, em um território complexo como o da Transamazônica, corrobora o poder das articulações com o

índices de poluição, além de melhorar o aproveitamento de recursos produtivos para a agricultura, para as cadeias de oferta de alimentos e também no uso da biodiversidade voltada a fármacos, à energia e a novos materiais. Tal abordagem orientou os agricultores desse território, que sofreram muitos impactos sociais e ambientais negativos da construção da rodovia, a promover uma economia sustentável na região.

Com o apoio do Programa de Fomento à Agricultura do Estado do Pará, a proposta de criação de uma cooperativa nasceu no âmbito das discussões sobre as necessidades de aperfeiçoamento do Código Florestal brasileiro, no fim da década de 1990. Esse movimento gerou crescente interesse pelo cacau da Amazônia como produto que poderia incrementar a economia local, bem como contribuir para melhorar as precárias condições de vida da população residente às margens da rodovia Transamazônica.

Desenvolver a Amazônia por meio de seu maior ativo – a floresta em pé – passa por uma constelação de grandes obstáculos, só não maiores que as oportunidades possibilitadas por sua abundante biodiversidade.

Mobilizados pela preocupação com as precárias condições socioeconômicas e ambientais locais, as quais ansiavam transformar, e movidos por ideia coletiva, os agricultores da região passaram a debater a viabilidade da produção cacaueira, auxiliando na elaboração do Programa de Aceleração do Crescimento e Consolidação da Cacauicultura no Estado do Pará (PAC CACAU/PA) e do Fundo de Apoio a Cacauicultura do Estado do Pará (Funcacau), ambos muito importantes para o desenvolvimento do setor. Graças aos recursos obtidos por meio desses programas e ao apoio de organizações como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), os agricultores criaram então a Coopatrans e sua marca de chocolate, a Cacauway.

governo local e com organizações não governamentais engajadas com o fomento da bioeconomia. Para compreender melhor esse processo, é preciso conhecer um pouco mais sobre o contexto territorial no qual ela se insere e sobre a história da própria Coopatrans, fundada em 2010 no munícipio de Medicilândia.

Iniciada na década de 1970, a construção da BR-230 tinha como objetivo promover o desenvolvimento econômico da região. Essa visão era marcada por um projeto de ocupação do território como garantia da segurança nacional, para o qual pessoas de outras partes do Brasil e do mundo eram estimuladas a emigrar a fim de “promover a integração da Amazônia na economia nacional”. Em linhas gerais, o projeto da Transamazônica incentivava a implementação da agricultura e da pecuária intensivas, o que provocou muitas alterações no território e marcas profundas na floresta e na comunidade local. Como mostra o documentário Transamazônica – Uma Estrada para o Passado19 (premiado recentemente no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2022), as promessas de desenvolvimento socioeconômico ficaram apenas no papel e o rastro de mazelas aflige a região até hoje.

Cerca de 50 anos mais tarde, o governo local adotou outra estratégia de desenvolvimento: o incentivo a setores econômicos aderentes ao potencial e à realidade regional. Um desses setores estimulados foi o do cacau, já inserido num contexto de valorizar – e discutir – a economia da floresta em pé. Essa visão partia do princípio de que a manutenção dos ecossistemas é decisiva para absorver as emissões de gases de efeito estufa, atenuar o impacto de enchentes, purificar a água, diminuir os

Considerada a primeira fábrica de chocolate da Amazônia, a Cacauway estabeleceu como objetivo “ampliar a renda dos cooperados, cuidando para que as amêndoas de cacau produzidas por eles fossem beneficiadas no próprio local”. Tem como missão produzir, industrializar e comercializar cacau e chocolate com alto padrão de qualidade, agregando valor e sustentabilidade à cadeia produtiva e proporcionando maior geração de renda aos cooperados.

Com foco na conscientização do agricultor acerca do papel que desempenha na cadeia produtiva e de como seus esforços de cultivo resultam na regeneração do espaço natural, a Cacauway ofereceu treinamentos e desenvolveu um protocolo de qualidade que a permitiu agregar entre 30% e 50% de valor na amêndoa de cacau, repassado diretamente aos cooperados. Estudos já apontavam uma transformação na paisagem de Medicilândia, 20 em grande parte como resultado da aplicação dos SAF. Antigas pastagens e áreas de cultivo anual têm sido, pouco a pouco, substituídas por florestas secundárias e/ou pelo cultivo de cacau e ressoam o impacto positivo e regenerativo das práticas aplicadas por agricultores no município. Medicilândia é atualmente o maior produtor de cacau do Brasil.

Como relatou o cooperado Massao Alves Shimon em entrevista aos autores: “Sempre foi dito que nosso cacau era ruim, e aí nós conseguimos provar que isso não é verdade. Então, o mundo todo hoje olha a Transamazônica e olha o Brasil com bons olhos pela qualidade do cacau que está sendo produzido. Isso tudo é fruto de um trabalho que vem sendo feito ao longo de 12 anos. [...] E a ideia do

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estado era essa, acho que foi uma ideia acertada, a cooperativa realmente inovou e provou essa capacidade de transformar nosso cacau, antes considerado de péssima qualidade e hoje briga lá nas cabeças. Então eu acho que isso é uma transformação bastante grande”.

A Cacauway nasceu como parte da estratégia de verticalização da produção, cujo objetivo era ir além da venda do cacau como commodity, incrementando seu valor como sua matéria-prima e incluindo não apenas o beneficiamento, mas também a produção de chocolates de alta qualidade e de forte identidade com o território da Amazônia. Foi a primeira empresa de chocolate do estado a trabalhar sob a lógica tree to bar, cujo foco se concentra na verticalização da produção, da amêndoa de cacau ao produto final, o que agrega valor à matéria-prima e, simultaneamente, melhora a qualidade de vida de seus cooperados. Como aponta a cooperada Hélia Félix, “a cooperativa surge da iniciativa de alguns agricultores da região de Medicilândia, com o objetivo de evitar que as amêndoas de cacau produzidas passassem pelas mãos de atravessadores e fossem gerar emprego em outro estado. Que é o que acontece muito. Queríamos processar as amêndoas no próprio local, gerar mais emprego e renda para as pessoas dali”.

Atualmente, a Cacauway conta com mais de 40 produtos em seu portfólio, como barras de chocolate, trufas, cacau em pó, nibs, amêndoas de cacau e geleias. Além disso, a marca tem importância histórica para o Pará, por ser a primeira a representar o estado em eventos internacionais, como o Salon du Chocolat em Paris, na França, e o Festival de Óbidos, em Portugal. Embaladas pelos esforços da Cacauway, diversas outras marcas de chocolate foram criadas e têm contribuído para o reconhecimento do chocolate de origem amazônica no Brasil e no mundo – Abelha Cacau, KaKao Blumen, Ascurra, De Mendes, Da Cruz e Gauden são ótimos exemplos dessa dinâmica.

Diante de desafios de crescimento e obtenção de recursos, em 2020 a Cacauway foi selecionada para participar do programa de aceleração da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA), um arranjo que adota design metaorganizacional para fomentar diferentes negócios e cadeias produtivas da sociobiodiversidade da Amazônia, reunindo esforços e recursos de múltiplos atores para alavancar a bioeconomia local. O que nos leva, por sua vez, a outro elemento central na orquestração desse movimento.

Metaorganizações: um Arranjo Necessário

Ao engendrar estruturas, práticas e processos inovadores, modelos alternativos de organização têm conseguido contornar dificuldades (operacionais, políticas e institucionais) e prover soluções mais robustas para os desafios contemporâneos. Com destaque para arranjos concebidos pela literatura como metaorganizações – organizações cujos membros são também organizações.21 Embora se caracterizem por certa fragilidade estrutural, decorrente da forte dependência dos seus membros e da ausência de recursos próprios, essas organizações estão conseguindo estabelecer plataformas de decisão coletiva22 e têm favorecido o surgimento de inovações sustentáveis,23 mostrando-se aptas à governança de problemas complexos como o aquecimento global e a preservação dos oceanos.

Embora o conhecimento sobre a dinâmica dessas organizações no Sul Global ainda seja bastante incipiente, estudos apontam que elas existem em abundância na Amazônia e que apresentam relevância ímpar para superar os desafios da região.24 O que não surpre-

ende, visto que organizações tradicionais não só foram incapazes de conduzir processos transformadores na Amazônia (já caracterizada como “fora do estado de direito”), como, por vezes, se revelaram as principais vilãs dos problemas que a ameaçam. Em suma, seja pelo “filme” da história, seja pela “foto” do presente, é urgente que ousemos formas inovadoras de organização em prol da Amazônia, e metaorganizações configuram um avanço nesse sentido.

No contexto da bioeconomia, a importância dessas formas organizacionais se sobressai por diferentes motivos. Em geral, a atuação de cada ator e instituição costuma ser pautada por uma visão particular e por um conjunto específico de objetivos. Logo, assimetrias de poder fazem com que determinada visão de bioeconomia prevaleça sobre as demais, o que atrapalha o desenvolvimento desse movimento ou até mesmo gera danos para alguns atores e territórios envolvidos. Por serem arranjos calcados em relações horizontais e em decisões baseadas no consenso, cria-se, portanto, um ambiente no qual diferentes atores conseguem trabalhar numa mesma página, fazendo das suas diferenças um vetor de complementariedade, e não uma barreira à cooperação. Assim, organizações podem reunir saberes, perspectivas e recursos humanos, financeiros e tecnológicos em prol da economia da floresta. Vários exemplos demonstram o potencial dessas organizações no fomento e na consolidação de negócios da sociobiodiversidade, como é o caso das experiências da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) e da Origens Brasil.

A Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) se apresenta como uma plataforma de ação coletiva liderada pelo setor privado, com foco no fomento de soluções conjuntas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Por meio de quatro grupos temáticos (GTs) – empreendedorismo, bioeconomia, mercados e territórios –, a iniciativa tem conseguido captar recursos financeiros para subsidiar negócios com foco socioambiental, fomentar parcerias estratégicas e compartilhar práticas de empreendimentos com capacidade de gerar renda a partir da biodiversidade, respeitando os recursos naturais e garantindo qualidade de vida para as comunidades da região. Graças aos seus programas, dezenas de empreendimentos baseados nos insumos locais têm sido originados ao longo dos últimos anos.

Já a rede Origens Brasil ilustra o potencial de iniciativas formadas por atores de múltiplos setores e níveis, e vem promovendo negócios sustentáveis na Amazônia em áreas prioritárias de conservação, com garantia de origem, de transparência, de rastreabilidade da cadeia produtiva e de promoção do comércio justo e ético. Desde 2016, a rede funciona como um elo entre quem produz e quem compra, originando conexões capazes de gerar impactos positivos para as populações e seus territórios. Apesar dos entraves característicos da região, o programa apresenta um portfólio diversificado, que abrange produtos do extrativismo (óleos vegetais, resinas, sementes e extratos), do agroextrativismo (mel, pimenta, farinha e chocolate) e itens provenientes da cultura material e imaterial do território (artesanatos indígenas, pinturas em tela, cerâmicas, cestarias, vestuários e calçados, entre outros). Trata-se de um caso emblemático por demonstrar que é possível não apenas criar valor a partir da rica sociobiodiversidade amazônica, mas também distribuir valor de modo mais equitativo entre os verdadeiros protagonistas desse movimento: os pequenos empreendedores e as comunidades locais.

Para subsidiar as decisões e operações pertinentes a sua gestão, a Origens Brasil mantém uma estrutura de governança muito partici-

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pativa. O conselho gestor tem status deliberativo e orienta o conteúdo das políticas e regras gerais, desenvolvimento, funcionamento e avaliação contínua do sistema visando seu aperfeiçoamento e credibilidade. Formado por pessoas e instituições que participaram do processo de desenvolvimento da Origens Brasil ou que são consideradas especialistas temáticos, o conselho é ainda a instância máxima para resolução de conflitos e desempenha o papel de supervisionar os comitês territoriais. Estes, por sua vez, são constituídos por organizações de atuação destacada nos territórios, cuja atribuição é supervisionar e monitorar a implementação do sistema a nível local.

Nas palavras de uma liderança de uma organização indígena envolvida pelo Origens, esse desenho incentiva a troca de conhecimento entre as organizações participantes, já que “a gente faz intercâmbio em troca de conhecimento, tudo isso é bom para as associações. [...] A gente aprende um com o outro a fazer as coisas, traz o conhecimento deles e eles levam o nosso conhecimento. Tudo isso pra nós é bom”.

Além disso, a organização está se notabilizando pela capacidade de mostrar o que há por trás dos produtos e insumos da região, ao revelar a realidade desses indivíduos e coletivos, assim como o processo de fabricação e manejo, o que tem ajudado a aproximar o consumidor final do produtor e a mostrar os aspectos positivos da economia da floresta em pé. Como destaca a integrante de uma cooperativa, a iniciativa tem sido capaz de “contar a história do nosso povo, da nossa relação com a natureza, então a Origens Brasil é o início de uma caminhada pela qual o mundo vai nos ver como os guardiões da floresta”.

ços ecossistêmicos, investimentos em ciência e tecnologia, combate ao desmatamento, cumprimento de leis e proteção de unidades de conservação. Afinal, sem floresta, não há como forjar a economia da floresta.

Ao mesmo tempo que essa situação pressupõe desafios, é preciso lembrar que o Estado possui um amplo conjunto de órgãos historicamente engajados com a bioeconomia, muitos deles com capital humano de alto nível e com capilaridade nos territórios amazônicos, como universidades e instituições de pesquisa, elementos que favorecem a articulação desse movimento, ainda caracterizado pela ausência de uma governança central e de diálogos entre os atores fundamentais para o seu desenvolvimento.

Apesar do descompasso entre a urgência do presente e o andamento das ações realizadas, é importante reconhecer que alguns estados da Amazônia Legal já endereçam estratégias com foco na bioeconomia da floresta, com destaque para o Pará – segunda maior unidade federativa do Brasil. De eventos internacionais, como o Fórum Mundial de Bioeconomia (realizado em 2021 na capital, Belém), ao financia-

Só com essas sinergias será possível explorar o potencial desse modelo de produção inclusivo e consciente, no qual preservar e produzir, além de não serem verbos antagônicos, podem originar uma “boa dupla”.

Paralelamente aos esforços de várias organizações engajadas com a bioeconomia na Amazônia, a coexistência das duas metaorganizações, PPA e Origens, tem fortalecido diversos negócios da biodiversidade na região. Alguns empreendimentos passaram pelo PPA em programas de aceleração e hoje estão na plataforma da Origens para viabilizar o acesso a novos mercados consumidores, em particular junto a grandes corporações, como Wickbold, Unilever e Natura, entre outras. Ainda assim, é importante salientar que a ação dessas iniciativas é limitada por problemas estruturais e desafios históricos de elevada complexidade, cujo equacionamento demanda a presença imprescindível de um ator: o Estado. Sem ele, é improvável que empreendimentos e metaorganizações, por mais pujantes e engajadas que sejam, consigam estabelecer a bioeconomia como vetor de transformação da realidade local na Amazônia.

O Estado na Bioeconomia da Amazônia

A relação histórica do Estado com a degradação da floresta deveria implicar, de modo mandatório, um engajamento ativo dos diferentes níveis de governo com o fortalecimento da bioeconomia na Amazônia. Não sendo esse o caso, espera-se que tais atores ouçam a voz da ciência, como os alertas do Science Panel for the Amazon,25 que tem frisado a capacidade desse modelo converter problemas em oportunidades e a necessidade de melhorias que vão da infraestrutura física e tecnológica e do arcabouço legal-institucional a questões urgentes, como o desenvolvimento de mecanismos de remuneração pelos servi-

mento de pesquisas científicas sobre cadeias produtivas da sociobiodiversidade, o estado contabiliza uma gama ampla de projetos com foco nessa agenda.

Em conjunto, todas essas ações se alinham e fortalecem o Plano Estadual de Bioeconomia (PlanBio), 26 lançado recentemente pelo governo do Pará, uma iniciativa inédita por alinhar diferentes secretarias e órgãos públicos em torno da temática e pela forma como foi concebida. Atento às peculiaridades da bioeconomia no contexto amazônico27 e às assimetrias que existem no próprio estado, esse plano foi construído a partir de um amplo processo de escuta em todas as macrorregiões do Pará e envolveu atores do setor produtivo, ONGs, academia e comunidades tradicionais. Com isso, o Pará almeja combater os índices alarmantes de desmatamento, promover o bem-estar de sua população e alavancar a economia local, e se firmar como uma liderança nacional na transição para uma economia de baixo carbono, apesar das contradições evidentes no estado em termos de infraestrutura básica. Tudo isso, porém, também depende bastante de ações por parte do governo federal, sobretudo no sentido de reverter o aumento de desmatamento e ameaças à floresta em pé.

Orquestrando a Economia da Floresta em Pé

A coexistência de problemas multicausais em um bioma tão estratégico para o mundo possibilita enquadrarmos a proteção e o desenvolvimento sustentável da Amazônia como um grand challenge da contemporanei-

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dade. Assim como as mudanças climáticas, a extrema pobreza, o envelhecimento populacional e outras questões críticas, a região também é marcada por desafios complexos que perpassam sistemas e atores de múltiplos níveis, com impactos locais e globais. Trata-se de uma verdadeira corrida contra o tempo, cujo resultado está intimamente ligado ao engajamento que as organizações das mais distintas esferas e segmentos terão com a transformação da realidade dessa região tão rica, mas paradoxalmente com tão pobre desenvolvimento.

A partir de um extenso levantamento e de anos acompanhando empreendimentos socioambientais na região, defendemos que forjar um novo capítulo na história da Amazônia passa, obrigatoriamente, pelo fortalecimento de uma economia da floresta em pé, calcada no uso inovador e sustentável da sociobiodiversidade presente no bioma amazônico. Se é bem verdade que a bioeconomia apresenta seus próprios limites e não resolve todos os problemas da Amazônia,28 é igualmente verdadeiro que sem ela não poderemos seguir adiante. O que obriga a um movimento bem orquestrado, que inclua, não só no planejamento, mas também na operacionalização, a articulação de, ao menos, esses três atores fundamentais: pequenos empreendimentos (de ordem individual e coletiva), metaorganizações e o governo, bem como todas as organizacões em prol da floresta em pé.

Por saber que a Amazônia é bastante plural em suas dinâmicas socioterritoriais29 e que a bioeconomia, além de possuir diferentes modalidades (biorrecursos e biotecnológica),30 é muito mais que um setor econômico, não pretendemos receitar fórmulas, mas acreditamos que exemplos de empreendimentos cooperativos como a Cacauway, de metaorganizações inovadoras como PPA e Origens Brasil e de governos como o do estado do Pará são emblemáticos por evidenciar a importância de cada um desses atores e, sobretudo, o papel vital da cooperação nesse processo de orquestração. É unicamente por meio dessas sinergias que conseguiremos explorar o potencial incalculável desse modelo de produção inclusivo e consciente, no qual preservar e produzir, além de não serem verbos antagônicos, podem originar uma “boa dupla”.

Parafraseando a metáfora de Aristóteles em Ética a Nicômano, procuramos enfatizar, portanto, que “uma andorinha só não faz primavera”. Ao ressaltar a importância da migração em bando à procura de clima favorável para a sobrevivência, tal imagem nos lembra que somente ações colaborativas e bem orquestradas são capazes de enfrentar os incontáveis desafios presentes na maior floresta tropical do planeta. Que possamos ter muitas andorinhas voando juntas para a economia da floresta em pé na Amazônia! n

Notas

1 Bolle, W.; Castro, E.; Vejmelka, M. (orgs.). Amazônia: Região Universal e Teatro do Mundo. São Paulo, Globo, 2010.

2 Aragón, L. E. “A Dimensão Internacional da Amazônia: um Aporte para sua Interpretação”. Revista NERA, vol. 21, n. 42, p. 15-33, 2018. Disponível em: <doi. org/10.47946/rnera.v0i42.5676>. Acesso em: 29 nov. 2022.

3 Instituída por lei em 1953, a Amazônia Legal define a delimitação geopolítica da região para efeito de planejamento social e econômico.

4 Lima, I. B.; Buszynski, L. “Local Environmental Governance, Public Policies and Deforestation in Amazonia”. Management of Environmental Quality: An International Journal, vol. 22, n. 3, p. 292-316, 2011. Disponível em: <doi. org/10.1108/14777831111122888>. Acesso em: 29 nov. 2022.

5 Castro, E. “Políticas de Estado e Atores Sociais na Amazônia Contemporânea”. In: Bolle, W.; Castro, E.; Vejmelka, M. (orgs.). Amazônia: Região Universal e Teatro do Mundo. São Paulo, Globo, 2010.

6 Imazom. Boletim do Desmatamento (2022). Disponível em: <https://imazon.org.br/ categorias/boletim-do-desmatamento/>. Acesso em: 10 out. 2022.

7 Lovejoy, T. E.; Nobre, C. “Amazon Tipping Point. Science Advances”. Science, vol. 4, n. 2, 2018. Disponível em: <doi.org/10.1126/sciadv.aat2340>. Acesso em: 29 nov. 2022.

8 Fearnside, P. M. “The Roles and Movements of Actors in the Deforestation of Brazilian Amazonia”. Ecology Society, vol. 13, n. 1, art. 23, 2008. Disponível em: <www. ecologyandsociety.org/vol13/iss1/art23/>. Acesso em: 29 nov. 2022.

9 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2017. 147 p.

10 Comini, G. Rumos para a Economia da Floresta. GV Executivo, 2022.

11 Abramovay, R. et al. “The New Bioeconomy in the Amazon: Opportunities and Challenges for Healthy, Standing Forests and Flowing Rivers”. In: Science Panel for the Amazon. Amazon Assessment Report. New York/São José dos Campos, Science Panel for the Amazon, 2021.

12 Nobre, C. A. “To Save Brazil’s Rainforest, Boost its Science”. Nature, vol. 574, p. 455, 2019.

13 Wunder, S. “Poverty Alleviation and Tropical Forests – What Scope for Synergies?”. World Development, vol. 29, p. 1817-33, 2001. Disponível em: <doi.org/10.1016/ S0305-750X(01)00070-5>. Acesso em: 29 nov. 2022.

14 Cardoso, F. H.; Müller, G. Amazônia: Expansão do Capitalismo [online]. Rio de Janeiro, Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. 168 p.

15 Oliveira, R. R.; Zatta, F. N.; Both, L. P.; Castro, D. S. P.; Almeida, D. A. “Desafios Logísticos na Amazônia Legal: Estudo de Caso de uma Agroindústria”. Espacios, vol. 36, n. 5, p. 8, 2015.

16 Hindle, K. “How Community Context Affects Entrepreneurial Process: a Diagnostic Framework”. Entrepreneurship and Regional Development, vol. 22, p. 599-647, 2010. Disponível em: <doi.org/10.1080/08985626.2010.522057>. Acesso em: 29 nov. 2022.

17 Lima, D. M.; Peralta, N. “Developing Sustainability in the Brazilian Amazon: Twenty Years of History in the Mamirauá and Amanã Reserves”. Journal of Latin American Studies, p. 1-29, 2017. Disponível em: <www.researchgate.net/publication/315985608>. Acesso em: 29 nov. 2022.

18 Venturieri, A.; Oliveira, R. R. S.; Igawa, T. K.; Fernandes, K. A.; Adami, M.; Oliveira Júnior, M. C. M.; Almeida, C. A.; Silva, L. G. T.; Cabral, A. I. R.; Pinto, J. F. K. C.; Menezes, A. J. A.; Sampaio, S. M. N. “The Sustainable Expansion of the Cocoa Crop in the State of Pará and Its Contribution to Altered Areas Recovery and Fire Reduction”. Journal of Geographic Information System, vol. 14, p. 294-313, 2022.

19 Transamazônica - Uma Estrada para o Passado. Direção de Jorge Bodanzky e Fabiano Maciel. HBO, 2021. Documentário, 6 episódios.

20 Godar, J.; Tizado, E. J.; Pokorny, B. “A Expansão da Fronteira na Transamazônica: o Impacto Comparado da Agricultura Familiar e da Pecuária”. Universidad de León, 2008.

21 Ahrne, G.; Brunsson, N. “Organizations and Meta-Organizations”. Scandinavian Journal of Management, vol. 21, p. 429-49, 2005. Disponível em: <doi:10.1016/j.scaman.2005.09.005>. Acesso em: 29 nov. 2022.

22 Berkowitz, H.; Bor, S. “Why Meta-Organizations Matter: a Response to Lawton et al. and Spillman”. Journal of Management Inquiry, vol. 27, p. 204-11, 2018. Disponível em: <doi.org/10.1177/1056492617712895>. Acesso em: 29 nov. 2022.

23 Berkowitz, H. “Meta-Organizing Firms’ Capabilities for Sustainable Innovation: A Conceptual Framework”. Journal of Cleaner Production, vol. 175, p. 420-30, 2018. Disponível em: <doi.org/10.1016/j.jclepro.2017.12.028>. Acesso em: 29 nov. 2022.

24 Fernandes, J. A. L.; Lopes, F. D. “Matrioskas na Floresta – Uma Agenda de Pesquisa sobre Meta-organizações na Amazônia”. NAU Social, vol. 13, p. 887-903, 2022. Disponível em: <doi:10.9771/ns.v13i24.45423>. Acesso em: 29 nov. 2022.

25 Science Panel for the Amazon (SPA). Amazon Assessment Report 2021. (United Nations Sustainable Development Solutions Network, 2021).

26 Plano Estadual de Bioeconomia do Pará (PlanBio Pará) 2022. Governo do Estado do Pará. Disponível em: <www.semas.pa.gov.br/wp-content/uploads/2022/11/Planoda-Bioeconomia-versão-FINAL_01_nov.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2022.

27 Bergamo, D.; Zerbini, O.; Pinho, P.; Moutinho, P. “The Amazon Bioeconomy: Beyond the Use of Forest Products”. Ecological Economics, vol. 199, 2022. Dispoível em: <doi.org/10.1016/j.ecolecon.2022.107448>. Acesso em: 29 nov. 2022.

28 Pokorny, B.; Pacheco, P. “Money From and For Forests: a Critical Reflection on the Feasibility of Market Approaches for the Conservation of Amazonian Forests”. Journal of Rural Studies, vol. 36, p. 441-52, 2014. Disponível em: <doi.org/10.1016/j. jrurstud.2014.09.004>. Acesso em: 29 nov. 2022.

29 Mendes, A. D. A Invenção da Amazônia. Belém, UFPA, 1974.

30 Bugge, M. M.; Hansen, T.; Klitkou, A. “What Is the Bioeconomy? A Review of the Literature”. Sustainability, v. 8, n. 691, p. 1-22, 2016. Disponível em: <doi:10.3390/ su8070691>. Acesso em: 29 nov. 2022

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É Hora de Colocar o Setor de Combustíveis Fósseis sob Cuidados Paliativos

Para sobreviver à crise climática precisamos abandonar os combustíveis fósseis por meio de uma transição justa e ordenada. Os modelos mais indicados para esse processo são triagem, eutanásia e unidade de cuidados paliativos.

Oque deveríamos esperar de uma companhia socialmente responsável que explora combustíveis fósseis em um planeta ameaçado por mudanças climáticas?

A resposta é simples, porém bastante desafiadora: essas empresas e seus gestores precisam aplicar seus recursos financeiros, técnicos e políticos numa transição justa e ordenada que as afaste dos combustíveis fósseis. Mais que isso, eles devem decretar o fim dessa indústria da forma como ela existe na atualidade.

Como deveríamos proceder? Nossa sugestão é aplicar os modelos adotados na assistência compassiva a pessoas doentes, seus entes queridos, cuidadores e todos os envolvidos, quando o caso é considerado gravíssimo ou até terminal e demanda cuidados extremos. A sociedade e o setor de combustíveis fósseis enfrentam problemas muito graves. Se a humanidade quiser desfrutar de um ambiente estável no final deste século, a indústria de combustíveis fósseis deve acabar. Seu estado apresenta um quadro irreversível. Com esse prognóstico sombrio, só há três possíveis formas de tratamento: triagem, eutanásia e unidade de cuidados paliativos.

Essa reflexão sobre o procedimento é, na verdade, uma provocação para discutir um dilema real da sociedade hoje. Estamos diante de uma crise existencial que exige uma atitude radical se quisermos agir com a abrangência e a escala necessárias. A ideia

de um setor industrial que decreta sua própria extinção nos faz pensar em questões complexas e inusitadas, mas extremamente relevantes para a gestão empresarial e para o ensino de administração. A magnitude dessa decisão agrava ainda mais seu grau de dificuldade: não existe outro setor industrial mais complexo e integrado que o segmento de combustíveis fósseis para realizar essa ação, e também não existe problema mais complexo e integrado para motivar essa ação que a crise climática. Se lidarmos com essas questões, será mais fácil avaliar o enorme desafio sistêmico que temos pela frente.

O Prognóstico

O primeiro passo no tratamento compassivo de uma doença terminal é ajudar o paciente e seus entes queridos a entender o fato de que o estado do paciente é realmente muito grave, que ele está morrendo e que precisa de cuidados especiais. Três conjuntos de reflexões conduzem ao prognóstico do estado terminal da indústria de combustíveis fósseis.

Identificar plenamente o problema | As mudanças climáticas são mais que uma questão ambiental. Elas representam o colapso sistêmico com sérias implicações para a vida no planeta. Não é um exagero –é uma constatação científica global, e essa conclusão mudará para

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ILUSTRAÇÃO DE KEITH NEGLEY

sempre a natureza de nossa economia. A atividade antrópica está contribuindo para aumentar a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera e é responsável pelo aumento de, na média, 1ºC na temperatura da superfície do planeta desde a era pré-industrial.1 Estamos lutando para impedir que esse aquecimento continue e chegue a 2ºC até 2050. O planeta mais quente poderá tornar o clima ainda mais instável e provocar mais secas, incêndios florestais, insegurança alimentar, escassez hídrica, inundações em áreas costeiras, proliferação de doenças e distúrbios sociais.

As mudanças climáticas são uma das nove fronteiras planetárias identificadas pelos cientistas que, se ultrapassadas, nos colocam sob risco extremo. Essas fronteiras representam “limiares abaixo dos quais a humanidade pode viver em segurança. Além delas a estabilidade dos sistemas em escala planetária não é mais confiável”. Os “indicadores-chave de desempenho” do planeta, segundo Gail Whiteman, professora da Lancaster University, sinalizam perigos.2 Ao ultrapassar os limites de sustentabilidade para uso da terra, poluentes (incluindo plásticos), nitrogênio e resíduos fosfóricos, e descarte de outros produtos químicos, ou qualquer outra atividade nociva ao ambiente, contribuímos para reduzir os índices de produtividade agrícola, degradar ecossistemas marinhos e, principalmente, aumentar o número de espécies em extinção. Este último impacto, conhecido como a “sexta extinção em massa”, poderá provocar o desaparecimento de metade das espécies atuais do planeta até 2100.3 Assim como ocorreu na catastrófica extinção natural dos dinossauros, espécies viáveis hoje estão sujeitas a uma catástrofe similar devido a ações antrópicas que alteram os ecossistemas da Terra.4 Em resumo, com o crescimento da população mundial e da economia que a sustenta, estamos interferindo na biosfera de forma sistemática sem precedentes e ainda pouco compreendida.

Se não forem contidas, as mudanças climáticas provavelmente causarão prejuízos econômicos globais de até US$ 22,5 trilhões até 21005 em perda de produtividade de mão de obra, redução de safras, falta de alimentos, mortes prematuras, danos materiais, colapso de redes de infraestrutura, escassez hídrica, poluição do ar, enchentes, incêndios e outras catástrofes. Em 2020, o Banco de Compensações Internacionais, uma organização que protege os bancos centrais mundiais, alertou que as mudanças climáticas poderão gerar um dos maiores desastres econômicos da história.6

Se quisermos estabilizar a temperatura global, precisamos reduzir muito as emissões de gases de efeito estufa, eliminá-las ou até mesmo recapturá-las. Segundo o economista Dimitri Zenghelis, da Cambridge University, uma meta tão radical “significa que a forma e a estrutura do capitalismo moderno precisam mudar”,7 já que o setor de combustíveis fósseis sustenta boa parte da economia atual. Além desse diagnóstico realista, enfrentamos o prognóstico moral das consequências desastrosas que a falta de ações efetivas, imposta por uma pequena minoria, causará injustamente à maior parte da humanidade, não só hoje, mas também no futuro. Duane Elgin, ativista do clima, pergunta: “Quando a humanidade manifestará sua indignação moral afirmando que é errado devastar um planeta inteiro de inúmeras gerações futuras, simplesmente para satisfazer o desejo consumista de uma fração da humanidade em uma única geração?”.8

Reconhecer o papel limitado das soluções da política econômica | Para enfrentar as mudanças climáticas, alertam os economistas, é preciso

ANDREW J. HOFFMAN é professor de Empreendimentos Sustentáveis na University of Michigan, Ross School of Business e na School for Environment and Sustainability.

DOUGLAS M. ELY é aluno de pós-graduação da Ross School of Business e da School for Environment and Sustainability, da University of Michigan.

Os autores gostariam de agradecer a Henry Lee, Dan Schrag, e aos participantes no 2021 BP/Harvard/Tufts Symposium on Climate and Energy Policy e na série 2022 Harvard Kennedy School Energy Policy Seminar pela opinião e discussão das versões anteriores deste artigo

precificar o carbono para criar sinais mercadológicos que forcem a estratégia corporativa e a atividade empresarial a se engajar em atividades descarbonizantes. Embora seja uma ferramenta importante para enfrentar o problema, essa medida não será suficiente para fomentar a mudança de sistemas gigantescos e zerar as emissões de carbono na escala de tempo necessária. Ela estimulará somente pequenas transformações graduais, que não mudarão de forma significativa a causa do problema, mas continuarão a piorá-la.

Para início de conversa, os ajustes do mercado consideram o sistema econômico como completamente isolado do sistema planetário. Essa premissa é falsa. Os dois sistemas estão profundamente interconectados, embora sigam cadências bem diferentes. É o ritmo da mudança do sistema planetário que deve ditar o ritmo do sistema econômico –, e não o contrário. Em 2021, a concentração média global de CO2 na atmosfera era de 413,2 partes por milhão (ppm), batendo um novo recorde ao superar em 3,3 ppm os níveis de 2019 e em 150% o nível pré-industrial. Essa foi a quinta maior marca anual em 63 anos dos registros da National Oceanic and Atmospheric Administration (Administração Atmosférica e Oceânica dos Estados Unidos), apesar da desaceleração da economia mundial devido à pandemia de Covid-19.9 A temperatura média global superou o nível pré-industrial em 1,1ºC, e tanto as emissões quanto a temperatura estão aumentando, independentemente do ritmo da mudança de nossa economia. Para piorar esse cenário, a taxa do aumento da concentração de CO2 agora está mais rápida que as 2 ppm por ano previstas.10

Se não chegarmos a um acordo sobre as mudanças climáticas até 2030, os danos ao clima global serão irreversíveis.11 Modelagens científicas indicam que uma concentração de CO2 de 450 ppm poderá elevar a temperatura média global acima de 2ºC – o limite máximo estabelecido pela comunidade internacional como “perigoso”. Se chegarmos a 3ºC, o risco de ultrapassar valores extremos irreversíveis aumentará de maneira significativa, provocando o colapso das camadas de gelo, elevação do nível do mar e extinção substancial de espécies.12 Se continuarmos nessa trajetória, a temperatura poderá subir mais que 4ºC até o final do século.13 É o tempo que nos resta para mudar o sistema econômico.

Portanto, não tomarmos medidas drásticas imediatas e esperarmos que o mercado apresente soluções enquanto o planeta ultrapassa esses limiares críticos, não conseguiremos mais adaptar ou criar um caminho para sair da crise. Os seres humanos não sobreviverão às temperaturas medidas pelos termômetros de bulbo úmido acima de 35ºC, um limiar já ultrapassado por algumas regiões do planeta. Em maio de 2022, a Índia e o Paquistão enfrentaram uma onda de calor recorde, que, segundo os especialistas, pôs em jogo “os limites da capacidade de sobrevivência humana”.14 Mesmo se zerássemos as emissões de CO2 hoje, a temperatura seguiria aumentando, por-

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que as emissões já liberadas continuariam a superaquecer a atmosfera.15 A ordem final ditada pela realidade científica e pragmática é: parem de queimar combustíveis fósseis. E essa mudança precisa ser muito mais rápida que as soluções das políticas econômicas sozinhas conseguem realizar.

Aceitar que reduzir substancialmente as emissões de gases de efeito estufa é um desafio existencial para a indústria | A lógica econômica para a produção de hidrocarbonetos consiste em explicitar os custos para a vida humana e não humana. Enquanto as empresas de petróleo e gás se esforçam, sem sucesso, em contribuir para a solução dos problemas climáticos, na verdade, o que elas propõem são somente soluções paliativas e insuficientes, que não tocam na raiz do problema.

Primeiro, muitas empresas do setor de combustível fóssil (e outros emissores de carbono, como fábricas de cimento) estão apostando tudo em tecnologias para captura e sequestro de carbono para compensar suas emissões. Mas essas tecnologias ainda não estão prontas para produzir efeito no mercado – na verdade, a maioria emite mais CO2 do que captura. De acordo com um artigo publicado no The Climate Herald, “não é possível para a maioria dos métodos de captura e utilização do carbono reduzir o suficiente as emissões industriais de CO2 dentro dos prazos previstos pelas metas do Acordo de Paris”.16 Seria tolice apostar o futuro em tecnologias não comprovadas.

Segundo, e mais importante, embora 12 das maiores organizações mundiais de combustíveis fósseis planejem cortar 50 milhões de toneladas de emissões de carbono e metano ao ano até 2025, essas metas não precisam necessariamente ser cumpridas e não incluem as emissões do Escopo 3 – emissões produzidas pela queima de petróleo, gasolina e óleo diesel que as empresas vendem.17 Para a ExxonMobil, as emissões do Escopo 3 representam aproximadamente 90% da pegada de carbono da companhia.18 A BP, outra grande empresa petrolífera, também assumiu o compromisso de reduzir algumas emissões do Escopo 3 em 20%. Mas a empresa define essas emissões de forma muito restrita – somente aquelas nas quais a BP tem participação acionária, ou seja, emissões de CO2 da combustão upstream de petróleo bruto, gás natural e gás natural liquefeito.19 Para as empresas petrolíferas, zerar efetivamente suas emissões é um desafio gigantesco, talvez até impossível, e zerar as emissões downstream do Escopo 3 é um desafio existencial, uma vez que essas companhias terão de fechar ou vender seus ativos de combustíveis fósseis (upstream se refere à exploração e produção de petróleo e gás e downstream aos processos aplicados depois da extração até a entrega ao consumidor).

A destruição criativa também obrigou as empresas a se reinventarem. Quando a Nokia, multinacional finlandesa, foi fundada em 1865, era uma fábrica de papel, e a partir daí começou a diversificar seus produtos, fabricando cabos elétricos, botas de borracha, pneus e finalmente hardware e software de telecomunicações. A 3M, fundada em 1902 como a Minnesota Mining and Manufacturing Company (Companhia de Manufatura e Mineração de Minnesota), produzia inicialmente lixas e rebolos. Hoje a empresa fabrica uma grande variedade de produtos, como equipamentos de proteção pessoal, películas para vidros, produtos dentários e ortodônticos, equipamentos médicos, produtos para estética automotiva, softwares para assistência médica, e foi a inventora do Post-it. Esses são exemplos de empresas que se adaptaram a um mercado em mudanças, e não de setores inteiros que desapareceram por razões não relacionadas ao mercado.

Alguns setores específicos definharam devido a algumas regulamentações governamentais – como a legislação americana que em 1972 proibiu a utilização de DDT, em 1989 decretou o fim da indústria do amianto e agora está prestes a acabar com a produção de substâncias fluorosurfactantes (PFAs). Mas naquela época a economia global e a sociedade não dependiam tanto desses setores como dependem hoje dos combustíveis fósseis.21

Atualmente, uma vasta rede física, econômica e política tem dependência do petróleo, carvão, gás e do setor de petroquímicos, e essa rede não pode simplesmente ser substituída sem uma disrupção política, social e tecnológica de grande escala. Por isso, nosso desafio agora não é administrar a “destruição criativa”, mas enfrentar a “destruição compassiva” no setor de combustíveis fósseis, na qual todos os elementos complexos e diversificados do setor se transformam de forma justa e ordenada em uma economia sem carbono.

Destruição Compassiva

A história é marcada pela extinção recorrente de setores prósperos causada pelas forças competitivas do que Joseph Schumpeter denominou “destruição criativa”,20 na qual o mercado “revoluciona a estrutura econômica internamente, destruindo continuamente a antiga e criando continuamente uma nova”. Com o surgimento dos computadores pessoais, as fábricas de máquinas de escrever desapareceram, e a produção de lâmpadas incandescentes diminuiu à medida que a alternativa a lâmpadas de maior eficiência luminosa, como as lâmpadas fluorescentes compactas e os diodos emissores de luz, se tornou mais competitiva.

Opções de Tratamento Desde o início da Revolução Industrial, quando surgiram as primeiras máquinas a vapor alimentadas a carvão, os combustíveis fósseis fornecem a energia que alimenta a maior parte da atividade econômica mundial. Embora fontes de energia nuclear e renováveis também estejam disponíveis, quase 80% da energia utilizada mundialmente é obtida pela queima de combustíveis à base de carbono. Interromper esse padrão não é fácil. Larry Fink, CEO da empresa de investimentos Black Rock, adverte: “Desinvestir em setores inteiros – ou simplesmente transferir ativos que produzem carbono de mercados públicos para privados – não fará o mundo zerar suas emissões de carbono”. Segundo Fink, focar somente em reduzir o fornecimento e não reduzir a demanda só aumentará o preço da energia e fará crescer ainda mais a reação à produção de energia limpa.22 No entanto, a complexidade, centralidade e interdependência dos combustíveis fósseis na economia cria um paradoxo. A desativação do setor precisa ser cuidadosamente orquestrada e isso leva tempo. Mas a urgência imposta pelas mudanças que já estão ocorrendo no ambiente natural indica que o jogo precisa acabar rapidamente.

O paciente carece de atendimento urgente. Para aplicar o tratamento adequado é preciso reconhecer que as corporações adquiriram certos direitos e responsabilidades que, historicamente,

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eram convenientes à sociedade. E nos fazer a seguinte pergunta: uma corporação deve receber os mesmos cuidados de uma morte assistida que um ser humano? No caso afirmativo, como fornecer uma assistência compassiva e solidária ao paciente agonizante e a todos os afetados por sua morte? Podemos considerar três modelos diferentes.

Triagem | O primeiro modelo é indicado quando é preciso tomar decisões difíceis diante de prioridades conflitantes e recursos limitados. De acordo como as normas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos para cirurgias emergenciais de guerra, a triagem é “um processo de seleção para identificar e priorizar o tratamento que leva em conta as limitações da situação, da missão e dos recursos disponíveis (prazos, equipamentos, suprimentos, pessoal e capacidade de evacuação)”.23 Ela inclui a decisão sobre tratamentos para diferentes condições do paciente e, em casos mais graves, a decisão de amputar um membro ou extrair um órgão comprometido. Então, como aplicar a triagem corporativa em uma empresa de combustíveis fósseis?

O fundo multimercados Third Point é um exemplo. Em 2021, o fundo exigiu que a Royal Dutch Shell fosse dividida em “várias empresas independentes”, para separar as linhas de negócios sustentáveis das antigas linhas de negócios de combustíveis fósseis. O argumento da Third Point é que “amputar” o negócio de extração, desenvolvido para maximizar a sobrevivência da Shell, forçaria a companhia a acelerar a transição para a descarbonização e ainda manteria a imagem da corporação depois da “cirurgia”.24 Nesse caso, um investidor externo prescreveu o modelo da triagem, mas empresas de outros setores optaram pela automedicação. Depois da invasão russa à Ucrânia, em 2022, a BP se desfez de seus 19,75% de ações da companhia russa de combustíveis fósseis, Rosneft, incorrendo em encargos que atingiram US$ 25 bilhões.25

A triagem também pode promover uma transformação real e criar uma nova organização. Em 2022, um multimilionário e uma empresa gestora de ativos canadenses lançaram uma proposta conjunta inusitada para assumir a companhia de energia australiana AGL Energy e transformá-la numa empresa de energia renovável, encerrando as atividades de suas usinas de carvão antes do previsto.26 Em 2014, a CVS Pharmacy também aplicou a triagem ao passar de uma rede de drogarias para uma operadora de saúde privada, descontinuando a venda de produtos derivados de tabaco. Embora esses produtos constituíssem uma parte lucrativa do negócio na época, Larry Merlo, presidente e CEO da CVS, declarou: “A venda de derivados de tabaco é inconsistente com nosso objetivo”, que era “melhorar a saúde das pessoas”.27

Eutanásia | De acordo com o dicionário Michaelis, eutanásia é a “ação ou prática de provocar ou permitir a morte rápida e sem sofrimento de um ser humano (ou animal doméstico) em caso de moléstia incurável”.28

Esse conceito não é estranho em economia. John Maynard Keynes certa vez referiu-se “à eutanásia da classe rentista” – pessoas que obtêm lucro ou renda, mas não geram riqueza para a economia,29 e que, nas palavras de Joseph Stiglitz, “destroem a riqueza como um subproduto do que retiram de outros”.30 Atualmente, as companhias de combustíveis fósseis produzem petróleo, que é queimado para sustentar a economia, mas emitem gases de efeito estufa que destroem os bens de outros, contribuindo para

o aumento de secas, incêndios florestais, insegurança alimentar, escassez hídrica, inundação de regiões costeiras, proliferação de doenças e agitação social. No futuro talvez seja necessário sacrificar um setor inteiro para conter as mudanças climáticas.

A decisão de aplicar a eutanásia corporativa compassiva é um processo deliberativo. No caso de pacientes humanos, os protocolos para a eutanásia incluem diagnóstico terminal, atestado de junta médica, exames psicológicos e exposição de alternativas que incluem cuidados paliativos e opções para controle da dor. No caso de pacientes corporativos, os protocolos podem ser similares, mas devem ser conduzidos preferencialmente pelo governo e incluir o paciente e todos os afetados.

Em 1964, o secretário de Saúde dos EUA recomendou a implantação de um controle rígido sobre o tabagismo com o intuito de proteger a saúde pública. Grandes empresas do setor do tabaco, como R. J. Reynolds e Brown & Williamson, que, certamente, perderiam bilhões de dólares se o cigarro fosse associado ao câncer, criaram variadas campanhas para gerar dúvidas e confusão nas pesquisas que associavam o câncer ao fumo.31 Foram necessárias quatro décadas para que o consumo de cigarros fosse controlado pelo governo, mas durante esse período muitos fumantes adoeceram ou morreram. Em 1998, as quatro maiores empresas americanas do setor aderiram ao Tobacco Master Settlement Agreement (MSA), o maior acordo sobre o tabaco já realizado no país, que obrigava as companhias a pagar uma indenização anual aos 46 estados signatários como reembolso das despesas de assistência médica dispensada aos cidadãos com doenças relacionadas ao tabagismo. O MSA também dissolveu várias associações comerciais do tabaco (como o Instituto do Tabaco) e proibiu a veiculação da maioria dos comerciais de cigarros.32

Um passo importante da eutanásia é aceitar a difícil decisão a ser tomada envolvendo paciente, o médico e outros afetados pelo resultado. Muitos participantes da indústria de combustíveis fósseis negam as previsões climáticas e criam campanhas de desinformação e desorientação, como ocorreu com a indústria do tabaco, para impedir as ações que visavam combater as mudanças climáticas.33 O setor de combustíveis fósseis continua a isentar as corporações de responsabilidade e, para isso, utiliza a narrativa da demanda do consumidor.34 O setor de combustíveis fósseis não está pronto para enfrentar o prognóstico que a indústria do tabaco enfrentou. Ao contrário, continua a focar no que faz melhor: prospectar, extrair, refinar e comercializar combustíveis fósseis.

Na verdade, essas empresas tomaram poucas medidas concretas em relação ao clima. De acordo com um estudo recente de seus relatórios anuais, lucros e despesas, elas continuam a explorar mercados de combustíveis fósseis.35 Diante do declínio desses mercados, causado, entre outros fatores, pela eletrificação da frota de veículos, essas organizações começaram a se interessar por novos mercados, principalmente o de produtos químicos – mais especificamente o de plásticos. O Fórum Econômico Mundial prevê que a produção de plásticos deverá dobrar até 2035 e quadruplicar até 2050, e projeta que até 2050 os oceanos conterão mais plásticos que peixes (por peso).36 Essa transição só muda o problema: nos deixa mais próximos de cruzar uma fronteira planetária (mudanças climáticas) e mais distantes de cruzar outra (uma nova ameaça ou a poluição química).

O paciente nega seu estado terminal e procura negociar. A

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expectativa permanente da indústria de combustíveis fósseis é que a captura e sequestro de carbono possam salvá-la, assim como um paciente em estado terminal espera que um milagre seja capaz de curá-lo. Os líderes do setor também costumam culpar a demanda para se eximir de responsabilidade.37 Em 24 de fevereiro de 2022, algumas horas depois da invasão russa à Ucrânia, o Instituto Americano do Petróleo começou a exigir que a Casa Branca “garantisse a segurança energética nos EUA e no exterior”, permitindo mais perfurações de petróleo e gás em terras públicas, ampliando a perfuração de poços em águas territoriais americanas e eliminando as normas que limitam as atividades de prospecção.38 O setor de combustíveis fósseis mostra leves sinais de que pode limitar sua capacidade de prospectar, extrair, refinar e comercializar combustíveis fósseis. No entanto, tal como aconteceu com a indústria do tabaco no passado, as empresas respondem a processos judiciais da Procuradoria Geral dos estados por enganar a população sobre as mudanças climáticas e omitir os perigos causados pelo uso de combustíveis fósseis.39

Dez Estratégias para Administrar o Fim

dos Combustíveis Fósseis

Uma transição justa e ordenada da indústria de petróleo e gás só será possível se houver um esforço conjunto da gestão corporativa, de toda a economia, do governo e da sociedade em geral. Esse gerenciamento refere-se a:

ESTRATÉGIA DA EMPRESA

1. Desativar completamente o setor por meio de colaboração corporativa.

2. Proteger os empregados e evitar a fuga de mão de obra durante a transição.

3. Superar a resistência social e política à mudança.

IMPACTOS ECONÔMICOS GERAIS

4. Analisar a extensão do impacto financeiro da transição.

5. Controlar o destino de produtos explorados ou não.

6. Proteger os empregos indiretos da cadeia de produção.

QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS

7. Tratar todas as comunidades com justiça e equidade.

8. Desativar, recuperar e reaproveitar a infraestrutura específica.

9. Alavancar o poder do governo.

PAPEL DA LIDERANÇA CORPORATIVA

Cuidados paliativos | O terceiro modelo é aplicado quando o paciente aceita sua condição terminal. O US National Institute on Aging (Instituto de Envelhecimento dos Estados Unidos) define cuidados paliativos como um tratamento que “procura melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças graves e apoiar seus familiares, quando ... tentativas de curar a doença são suspensas. Cuidados paliativos são indicados a paciente em estado terminal quando os médicos acreditam que ele terá, no máximo, seis meses de vida se a enfermidade progredir naturalmente”.40

10. Rever os currículos dos cursos de gestão para priorizar pessoas e o planeta.

À medida que os líderes do setor de combustíveis fósseis discutem se seu prognóstico é terminal, começam a surgir sinais de que o tratamento é viável. Embora muitos continuem a marcar passo nos quatro primeiros estágios do sofrimento que a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross associa ao luto –negação, raiva, negociação e depressão –, alguns já começam a aceitar41 que a crise climática é real e que a indústria que lideram é a principal causa da crise. A Agência Internacional de Energia, uma coalizão multilateral cujo objetivo é garantir segurança e estabilidade energética global, lançou em 2021 um manifesto exigindo que os investimentos em novos projetos de petróleo e gás natural cessem imediatamente e que a venda de novos veículos a gasolina e diesel seja interrompida até 2035, para que a indústria de combustíveis fósseis possa zerar suas emissões de carbono até 2050.42

Durante o processo deliberativo é importante manter o controle e a dignidade, o que os cuidados paliativos procuram oferecer ao considerar as complexidades físicas, sociais e emocionais. A essência dessa abordagem está na “crença de que cada um de nós tem o direito de morrer sem sofrimento e com dignidade e que parentes e amigos receberão o conforto, consolo e compaixão necessários”.43 Da mesma forma, os cuidados paliativos corporativos podem ajudar os atores internos ou externos de uma organização ou setor a se organizar para planejar o fim do que consideram inevitável e se preparar para o futuro.

Médicos são treinados para preservar a vida de pacientes. Assim Da mesma forma, líderes são treinados para preservar as empresas. Embora falência e liquidação sejam situações comuns, não é comum optar por essas alternativas quando a saúde financeira da empresa é boa. Assim como os médicos se preocupam com a qualidade de vida do paciente e não só o tempo que lhes resta, os líderes empresariais também precisam saber quando não há mais alternativa viável para equilibrar as necessidades do planeta, da humanidade e da corporação. A morte da organização deve ser planejada e essa é uma decisão que afeta os stakeholders sob vários aspectos e marca emocionalmente os mais próximos. Muitas vezes, os funcionários associam o trabalho à sua própria identidade, e decidir deixar tudo para trás e seguir novos rumos pode ser assustador. Para os clientes, investidores, fornecedores e outros stakeholders essa decisão também pode ser frustrante.

A morte, sob qualquer aspecto, não é simplesmente um fim, mas o início de uma transformação – seja uma transformação espiritual da alma ou uma transição física do corpo. De forma análoga, a complexa rede formada pelo setor de combustíveis fósseis deve morrer ou apenas se transformar? Assim como ocorre com a doação de órgãos, parte do capital econômico e humano do setor pode ser reorganizado em torno de um novo propósito. As pessoas que trabalham nesse setor têm expertise financeira, analítica e geofísica notável e podem (e devem) ser reconhecidas como um potencial ativo para um futuro sustentável. Além disso, os logotipos de marcas tradicionais como Shell, ExxonMobil e BP podem atrair os donos de carros elétricos para seus postos de recarga como símbolos de abastecimento. Outros ativos físicos também poderão ser redirecionados – em 2021, uma refinaria de petróleo ociosa em Newfoundland, no Canadá, foi comprada e será reformada para produzir biocombustíveis a partir de óleo de cozinha descartado, óleo de milho e gordura animal.44 Para chegar a esse

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resultado, o processo precisa se basear em tratamento compassivo, consentimento deliberado bem informado e consulta a todas as partes afetadas.

Administrando o Fim

Estimativas do investimento necessário para uma transição energética para abandonar o setor de combustíveis fósseis nas próximas três décadas variam de US$ 100 trilhões a US$ 150 trilhões.45 Esse valor representa tanto oportunidades históricas de empreendedorismo como uma desarticulação massiva cujos efeitos colaterais precisam ser administrados para que a transição seja justa e ordenada.

Para os gestores corporativos, os modelos de triagem, eutanásia e cuidados paliativos são um desafio novo e desconhecido. Ao optar por um processo de atendimento e tratamento compassivo, o líder precisa entender a complexidade do ecossistema corporativo e identificar pontos de alavancagem para a inovação e mudanças em pelo menos quatro níveis: corporativo, econômico, social e a própria liderança. Sugerimos dez reflexões e perguntas específicas importantes. (Veja o quadro “Dez Estratégias para Administrar o Fim dos Combustíveis Fósseis”).

da família e os amigos, uma transição justa e ordenada não pode deixar ninguém desamparado.47 Quando uma companhia petrolífera anuncia um plano para encerrar suas atividades, os funcionários que tiverem outras oportunidades de trabalho abandonarão a empresa, deixando-a sem seus talentos para realizar a transição? Como será administrada a perda de vagas de trabalho? Algumas habilidades podem ser rapidamente substituídas (por exemplo, contadores e vendedores), enquanto outras são muito específicas do setor (por exemplo, trabalhadores em campos de petróleo). As estimativas sobre o número de empregados no setor de combustíveis fósseis variam muito, de 1 milhão48 a 2,6 milhões de pessoas.49 A Secretaria de Estatísticas Trabalhistas dos EUA estima que 565.000 pessoas trabalham no setor de mineração, pedreiras e extração de petróleo e gás, e 133.300 em subsetores que dependem da extração de petróleo e gás.50 Os economistas calculam que se o consumo de combustíveis fósseis fosse completamente interrompido durante um período de 20 anos (um cenário radical), em média, 53.600 empregos seriam perdidos por ano.51 A Agência Internacional de Energia Renovável estima que aproximadamente 8 milhões de postos de trabalho poderão desaparecer do setor no mundo todo até 2050.52

Gerenciando a Estratégia da Empresa

As consequências da triagem, eutanásia e cuidados paliativos na corporação são profundas e exigem uma cuidadosa reflexão para uma transição ordenada. Ao optar por esses tratamentos, os líderes corporativos assumem a responsabilidade de analisar como essas medidas afetarão seus funcionários e as comunidades onde atuam.

1. Desativar completamente o setor por meio de colaboração corporativa. Para encerrar as atividades do setor de combustíveis fósseis, é preciso contar com a participação e colaboração de vários atores. Devem participar não só empresas de capital aberto, como a ExxonMobil, a BP, Total SA e Chevron, mas também empresas petrolíferas estatais que sustentam a economia de países como China, Arábia Saudita, Rússia, Brasil, Índia, Irã e Venezuela. Se uma empresa petrolífera simplesmente parar de produzir, qualquer outra a substituirá, talvez uma menos preocupada com padrões ambientais, sociais, políticos e de segurança. Esse nível de cooperação global atingiu uma escala nunca vista antes.

A “colaboração pré-competitiva” é um modelo de negócios para gerenciar ações conjuntas em que os líderes executivos procuram chegar a um consenso sobre os rumos futuros do setor de combustíveis fósseis e da economia em geral.46 Essa colaboração utiliza uma estrutura participativa e interativa que reúne todos os atores relevantes para coordenar seus interesses, prioridades e ações. Dessa forma, o foco pode estar além das soluções incrementais, para atacar a raiz do problema a partir de diferentes pontos de vista. Por isso, esse processo deve envolver não só os CEOs de empresas transnacionais do ramo de combustíveis fósseis, mas também representantes de governos, associações comerciais, centros de pesquisa, ativismo ambiental, grupos indígenas locais e outros interessados.

2. Proteger os empregados e evitar a fuga de mão de obra durante a transição. Da mesma forma que o atendimento compassivo dispensado a um paciente em estágio terminal ajuda a confortar os membros

À medida que as indústrias de combustíveis fósseis reduzem suas atividades, a transição precisa ser administrada com dignidade e oferecer aos funcionários desligados requalificação, formação profissional e benefícios como forma de agradecimento por terem contribuído para criar um mundo moderno. Esse esforço também pode ajudar a identificar oportunidades paralelas em setores que carecem de habilidades similares, como perfuração geotérmica, rastreamento da captura de carbono e novas prioridades conjunturais. Exatamente como no caso de pacientes em estado terminal, é preciso assegurar que seus dependentes recebam a devida atenção. Para garantir esses cuidados, é preciso ter uma perspectiva clara e planejar uma transição que promova a inclusão e incentive uma reforma de longo prazo que estimule os funcionários talentosos a encarar novos desafios.

3. Superar a resistência social e política à mudança. O declínio e o fim do setor de combustíveis fósseis precipitarão reações políticas, econômicas e sociais. Todos os que sofrerem alguma perda na transição procurarão defender seus interesses. Em vários estados, a organização conservadora sem fins lucrativos Conselho de Intercâmbio do Legislativo dos EUA (American Legislative Exchange Council) propôs leis para colocar na lista negra empresas que boicotarem o setor de combustíveis fósseis, como uma forma de proteger as empresas do setor de uma disparada na venda de títulos e outras medidas para enfrentar a crise climática.53 Em janeiro de 2022, em carta aberta à Controladoria do Estado do Texas, o vice-governador Dan Patrick acusou Fink, CEO da BlackRock, de “discriminar sem justificativa a indústria de petróleo e gás” e enfatizou: “Se Wall Street virar as costas para o Texas e a nossa pujante indústria de petróleo e gás, o Texas não negociará mais com Wall Street”.54 A indústria de combustíveis fósseis é essencial econômica e culturalmente para estados como o Texas e é a base da prosperidade e do poder geopolítico de países como a Arábia Saudita, Venezuela e Rússia. A liderança corporativa terá de identificar os stakeholders e envolvê-los na transição e suas consequências. Da mesma forma que o planejamento do fim da vida inclui elaborar um testamento, uma transição justa e ordenada inclui um plano para ajudar os excluídos.

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Gerenciando os Impactos Econômicos Gerais

Os efeitos da triagem, eutanásia e cuidados paliativos não se restringem às companhias de combustíveis fósseis que se submetem a esses processos. Toda a economia também é afetada e os impactos precisam ser administrados, da mesma forma como é preciso administrar os impactos sofridos pelos membros da família, amigos e colegas de um paciente em estado terminal.

4. Analisar a extensão do impacto financeiro da transição. O rápido crescimento do setor de energia limpa se deve, em grande parte, à inovação tecnológica e às escolhas políticas. Algumas estimativas contabilizam uma empregabilidade de 3,3 milhões de pessoas, o que supera o número de empregados no setor de combustíveis fósseis em mais de 3 para 1.55 O custo médio de energia eólica instalada diminuiu de US$ 0,07 por kWh em 2009, para menos de US$ 0,02 por kWh em 2019.56 O preço da energia solar fotovoltaica teve uma redução de 99% entre 1980 e 2012.57 Em 2020, o faturamento global do setor de energia renovável foi de US$ 692,8 bilhões,58 enquanto as empresas de petróleo e gás faturaram globalmente cerca de US$ 2,1 trilhões.59 Analistas de mercado estimam uma taxa de crescimento anual de combustíveis renováveis de mais de 8% entre 2021 e 203060, mas menos de 2% para o petróleo no mesmo período.61 Da mesma forma que as transições do mercado, o setor de combustíveis fósseis, no seu papel de base energética da economia moderna, precisa desempenhar um papel relevante tanto no processo como no resultado da transição de energia em curso, incluindo uma redistribuição dos ativos financeiros.

As dez maiores empresas globais de combustíveis fósseis acumulam uma capitalização de mercado de US$ 3,3 trilhões.62 De 2016 a 2020, 60 dos maiores bancos comerciais e de investimento aplicaram juntos US$ 3,8 trilhões em combustíveis fósseis.63 Nos primeiros nove meses de 2021, 24 das maiores companhias de petróleo e gás tiveram um lucro líquido de US$ 174 bilhões, e 11 delas juntas distribuíram aos acionistas US$ 36,5 bilhões.64 Como esses investimentos serão mantidos e transicionados? Se uma empresa anunciar um plano para encerrar suas atividades, os investidores debandarão, deixando-a sem capital para executar seus planos? E os investidores que continuarem na empresa verão seu capital diminuir? E, finalmente, as companhias de combustíveis fósseis e seus investidores serão indenizados pelos combustíveis fósseis que permanecerem inexplorados – combustível contabilizado na avaliação dessas empresas e que atraiu os investidores logo no início?

5. Controlar as reservas dos produtos explorados ou não. A reserva mundial de petróleo é de 1,65 trilhão de barris, o que corresponde a 46,6 vezes o consumo anual mundial, portanto, suficiente para nos abastecer por, pelo menos, mais 50 anos.65 A Agência Internacional de Energia prevê um pico de demanda entre 2020 e 2040. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) prevê um aumento na demanda e uma estagnação a partir de 2035. Na hipótese de todo esse petróleo ser consumido, as modelagens científicas preveem que as temperaturas globais não poderão mais ser mantidas em níveis seguros para a vida humana. Mas como administrar esse “ativo encalhado”, construindo uma solução equitativa, sem recorrer ao mercado negro? Como impedir que os desertores continuem extraindo o líquido precioso?

Para responder a essas perguntas precisamos incluir restrição

de fornecimento (isto é, fiscalização da proibição de extração), restrição de demanda (isto é, redução do preço do petróleo pela oferta de fontes alternativas) e, pelo bem da igualdade, incluir várias normas mundiais que permitam a países em desenvolvimento utilizarem o petróleo por um determinado período da transição para satisfazer suas necessidades básicas. Podemos reduzir os prejuízos econômicos localmente se tentarmos unir necessidades e expertise (por exemplo, usinas geotérmicas contratam especialistas em perfuração, enquanto novas empresas de energia precisam de expertise em comunicações e sistemas energéticos).

6. Proteger os empregos indiretos da cadeia de produção. Para cada trabalhador da indústria petrolífera diretamente afetado pelo fim das atividades do setor, existem vários outros empregados que dependem do setor. Na Índia, cada mineiro assalariado que trabalha nas minas de carvão gera, ao menos, mais dez empregos indiretos locais graças a seu poder de compra. Se o trabalho do mineiro desaparecer, esses outros empregos locais também desaparecerão.66 Nos Estados Unidos a indústria de combustíveis fósseis gera aproximadamente 7,2 milhões de empregos indiretos. Os bens de capital do setor de petróleo e gás natural adquiridos de fornecedores americanos representam uma movimentação da economia de US$ 177 bilhões em novos equipamentos e estruturas.67 Até mesmo empresas que repudiam publicamente os combustíveis fósseis (por exemplo, confecção de roupas) dependem de produtos químicos derivados de petróleo e gás natural. O alcance desses impactos pode ser apenas regional, mas a transição de energia precisa se empenhar em proteger também a economia regional.

Gerenciando Questões Políticas e Sociais

A decisão sobre triagem, eutanásia e cuidados paliativos de corporações é um processo difícil, porque, além dos motivos já apontados, é preciso considerar os complexos impactos sociais e como eles se distribuem para avaliar equitativamente quem arcará com os custos.

7. Tratar todas as comunidades com justiça e equidade. Até 2050, milhões de empregos da indústria de combustíveis fósseis poderão desaparecer, mas a distribuição da falta de desemprego não será uniforme – alguns setores serão mais afetados que outros. No estado de Wyoming, aproximadamente 8.400 pessoas trabalham nas minas de carvão,68 e cerca de 68.000 na exploração de petróleo e gás.69 Juntas, essas indústrias são responsáveis por cerca de 16,6% dos empregos do estado.70 Além disso, o setor de combustíveis fósseis gera mais da metade da receita arrecadada pelos impostos municipais e estaduais.71 Outros estados como Oklahoma, Dakota do Norte, Texas, Louisiana, Alasca, Novo México e Virgínia Ocidental também dependem fortemente do setor. A economia desses estados poderá ser devastada se o setor desaparecer e nenhuma medida for tomada para compensar o impacto econômico. Poderemos assistir à repetição do desastre similar provocado pelo desemprego no setor de manufatura que transformou o Meio-Oeste dos EUA no cinturão de ferrugem da década de 1980. A produção de combustíveis ainda é uma fonte de empregos extremamente importante no mundo todo, e nesse setor os empregos geralmente oferecem salários mais altos e melhores benefícios.72

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Como proteger a economia de países em desenvolvimento conforme o setor de combustíveis não renováveis diminui ou desaparece? Esses países conseguirão fazer os investimentos necessários em infraestrutura e gerar empregos suficientes durante a transição para a descarbonização? Conseguirão se proteger da pressão dos interesses da indústria petrolífera para receber os royalties de receitas perdidas? Em 2021, os produtores de combustíveis fósseis acionaram judicialmente governos do mundo todo buscando uma indenização de mais de US$ 18 bilhões pelas medidas tomadas contra as mudanças climáticas que ameaçavam seus lucros. Os processos foram instaurados com base no Tratado da Carta de Energia, cujos protocolos estão disponíveis no International Centre for Settlement of Investment Disputes (Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos) do Banco Mundial e se aplicam aos sistemas jurídicos internos dos países.73

8. Desativar, recuperar e reaproveitar a infraestrutura específica. É preciso considerar também a enorme infraestrutura do setor de combustíveis fósseis. Como exemplo, os Estados Unidos possuem mais de 4 milhões de quilômetros de oleodutos,74 129 refinarias em funcionamento,75 milhares de vagões e caminhões-tanque, aproximadamente 542.000 tanques subterrâneos de armazenamento76 e um número equivalente de tanques na superfície,77 e mais de 150.000 postos de abastecimento (95% deles pertencentes a operadores independentes)78 para abastecer 287 milhões de carros registrados e 38 milhões de caminhões. No mundo todo há mais de 600 refinarias em operação79 e 810 grandes navios petroleiros (cada um com capacidade para transportar mais de 2 milhões de barris de petróleo bruto). Como esses ativos serão redistribuídos ou desativados? Além disso, há um enorme legado de resíduos perigosos acumulados pela mineração do carvão, exploração, refino e transporte do petróleo e produção do gás de xisto, que exige contínua manutenção. Quem pagará essa conta?

9. Alavancar o poder do governo. A transição de energia em curso só poderá avançar se houver envolvimento e cooperação sem precedentes de todos os governos. O papel dos governos é decisivo na determinação do nível de inovação tecnológica sem carbono por meio de políticas tributárias, subsídios, garantias fiduciárias, aprovisionamento e apoio à pesquisa e desenvolvimento.80 Os governos devem, e precisam, continuar comprometidos, pelo menos, com as metas de redução de carbono estabelecidas pelo Acordo de Paris em 2015, para que as empresas possam confiar nos sinais do mercado. A Equinor, companhia petrolífera norueguesa, afirmou claramente que, para atingir as metas de destinar mais da metade de sua receita bruta anual aos combustíveis renováveis ou alternativas de baixo carbono até 2030, é preciso que os líderes europeus e globais cumpram seus compromissos com o clima.81 Os governos precisam reduzir, eliminar ou remanejar os US$ 423 bilhões de subsídios anuais da indústria dos combustíveis fósseis,82 ajudar financeiramente na requalificação dos empregados em risco, apoiar os empreendedores locais e investir na infraestrutura necessária.83 O poder do governo precisa ser fortalecido diante da pressão dos operadores históricos de combustíveis fósseis e seu poder lobista, que investem aproximadamente US$ 200 milhões por ano para atrasar, controlar ou impedir políticas de enfrentamento às mudanças climáticas.84

Gerenciando o Papel da Liderança Corporativa Para tomar uma decisão sobre triagem, eutanásia e cuidados paliativos corporativos é preciso criar uma nova forma de liderança corporativa. É preciso rever a formação dos gestores para incluir todas as facetas das mudanças sistêmicas que essas decisões acarretam: transformações corporativas, econômicas e sociais.

10. Rever os currículos dos cursos de gestão de modo que priorizem pessoas e o planeta 85 Como mostram claramente as sombrias formas de tratamento – triagem, eutanásia e cuidados paliativos – e a lista de questões relevantes levantadas, fazer a transição do setor de combustíveis fósseis é um desafio sistêmico gigantesco. Para enfrentá-lo precisaremos de uma liderança setorial robusta e meticulosa, além do apoio de líderes de negócios, governos e sociedade civil. Também será necessário reavaliar a formação dos futuros líderes. O ensino de administração precisa ser reformulado levando em conta essas premissas.

Nos Estados Unidos,86 na União Europeia87 e em outros países, várias faculdades de administração começam a perceber a crescente necessidade de reduzir os efeitos climáticos e já propuseram a incorporação do tema na grade curricular. O que motivou essa percepção foi a escala com que as mudanças climáticas interferem no mercado, que pode chegar a US$ 26 trilhões até 2030 e criar 65 milhões de novos empregos de baixo carbono. Essas faculdades acreditam que mais de 700.000 mortes prematuras causadas pela poluição do ar poderão ser evitadas.88 Para transformar essa realidade e, elas estão redirecionando seus currículos para o desenvolvimento de novos produtos, serviços e práticas e analisando formas de transformar os modelos de negócios, a tecnologia e a inovação.89

Essas medidas, embora importantes, são insuficientes, pois contemplam somente um lado da equação: a oportunidade financeira ou o ganha-ganha. As faculdades, em geral, não se preocupam muito com o outro lado da equação: a possibilidade do ganha-perde em alguns setores.90 Essa falha as impede de preparar bem os alunos para administrar uma transição justa e ordenada, quando decisões difíceis precisarão ser tomadas para resolver a crise climática em todas as suas dimensões. Normalmente, as faculdades ensinam os alunos a lançar, desenvolver e manter as corporações, mas não a planejar seu fim. Os futuros líderes precisam aprender a fazer o que as gerações passadas raramente fizeram: pensar criticamente no papel das empresas na sociedade, em seu próprio papel como gestores à frente dessas empresas e em todo o sistema corporativo no qual atuarão.91 Lembrando das palavras de Donald David, reitor da Harvard Business School, em seu ensaio de 1949, “Business Responsibilities in an Uncertain World” (“Responsabilidades Empresariais em um Mundo Incerto”), as empresas precisam de líderes que tornem seus empreendimentos parte de uma “boa sociedade” e que contribuam construtivamente para o bem maior da população e do país.92

As discussões apresentadas abrem novas portas para uma reflexão sobre o papel das empresas na sociedade e como elas funcionarão no século 21. Se os alunos aprenderem a desenvolver as habilidades necessárias para desmontar uma indústria tão complexa e integrada como o setor de combustíveis fósseis, poderão ter uma visão mais completa da intrincada rede de sistemas que forma uma corporação multinacional moderna. É mais simples adotar essas medidas quando a empresa já enfrenta uma situação falimentar ou

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de liquidação, mas quando a situação financeira da empresa é boa, o nível de complexidade é muito maior. Assim como o mecânico é capaz de entender a complexidade de um motor de combustão interna desmontando-o, o gestor que aprender a desmontar uma companhia e seu setor estará mais bem preparado e será mais bem-sucedido ao construir outro negócio ou setor. A crise climática atual é uma oportunidade perfeita para repensar o ensino da gestão e a forma como ela enfoca setores inteiros, a economia e a natureza do próprio capitalismo.

É Hora de Agir

Planejar o fim do setor de combustíveis fósseis significa resolver questões tão complexas e interconectadas quanto as próprias mudanças climáticas e sua principal causa: os combustíveis fósseis. Se conseguirmos solucionar essas questões, veremos com mais clareza a dimensão do desafio sistêmico a ser enfrentado e poderemos começar a implementar passos proporcionais ao tamanho do desafio. Se não as solucionarmos, teremos de nos resignar a continuar dependentes dos combustíveis fósseis e nos submeter à calamidade ambiental e econômica.

Todas as questões levantadas se inserem perfeitamente no amplo debate atual sobre o papel das corporações no mercado e no ambiente político e o futuro do capitalismo. Empregados, investi-

Notas

1 Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), “Summary for Policymakers”, Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability, 2014.

2 Andrew J. Hoffman, “The Next Phase of Business Sustainability”, Stanford Social Innovation Review, Primavera de 2018.

3 Stockholm Resilience Center, “The Nine Planetary Boundaries”.

4 Elizabeth Kolbert, The Sixth Extinction: An Unnatural History, New York: Henry Holt & Co., 2014.

5 Stephen Fidler, “Environmental Risks Loom Large Among World Economic Forum Members”, The Wall Street Journal, 15 jan. 2020.

6 Jack Ewing, “Climate Change Could Blow Up the Economy. Banks Aren’t Ready”, The New York Times, 23 jan. 2020.

7 Dimitri Zenghelis, “Decarbonization: Innovation and the Economics of Climate Change”, The Political Quarterly, vol. 86, n. S1, 2015.

8 Andrew J. Hoffman, “Climate Change and Our Emerging Cultural Shift”, Behavioral Scientist, 30 set. 2019.

9 World Meteorological Organization, “Four Key Climate Change Indicators Break Records in 2021”, 18 maio 2022.

10 Angela Fritz e Rachel Ramirez, “Earth Is Warming Faster Than Previously Thought, Scientists Say, and the Window Is Closing to Avoid Catastrophic Outcomes”, CNN, 9 ago. 2021.

11 Jonathan Watts, “We Have 12 Years to Limit Climate Change Catastrophe, Warns UN”, The Guardian, 8 out. 2018.

12 Myles R. Allen et al., “Summary for Policymakers”, IPCC, 2018.

13 Ibidem.

14 Rhea Mogul et al., “India and Pakistan Heatwave Is ‘Testing the Limits of Human Survivability’, Expert Says”, CNN, 2 maio 2022.

15 Richard B. Rood, “If We Stopped Emitting Greenhouse Gases Right Now, Would We Stop Climate Change?”, The Conversation, 7 jul. 2017.

16 Petya Trendafilova, “Study Says Carbon Capture Does Not Reduce Emissions Sufficiently”, Carbon Herald, 23 fev. 2022.

17 Karin Rives e Allison Good, “Oil Group’s Net-Zero Goal Shuns Emissions Cuts

dores, seguradoras e outros stakeholders esperam ansiosamente que as companhias ajam com mais vigor no enfrentamento dos atuais desafios sociais e ambientais. Em 2018, em sua carta anual aos CEOs de empresas de capital aberto, Fink, da BlackRock, escreveu que é responsabilidade deles não só entregar lucros, mas também “contribuir positivamente para a sociedade”.93 A organização sem fins lucrativos Business Roundtable,94 o Fórum Econômico Mundial95 e outros grupos endossaram as palavras de Fink. Diante desse cenário, como as companhias de combustíveis fósseis podem pôr em prática essas pretensões?

Elas precisam agir. Empresas de combustíveis fósseis responsáveis enfrentam a realidade pragmática de que o setor, como o conhecemos, precisa acabar. Precisamos olhar para o mercado e trabalhar com ele para cumprir essa decisão. O mercado – formado por corporações, governo, organizações não governamentais e vários stakeholders que atuam no mercado, como consumidores, fornecedores, compradores, companhias de seguros, bancos e outros – é a força organizadora mais poderosa do planeta, e as empresas são as entidades mais poderosas dessa força. Embora o governo seja um árbitro importante e até vital para o mercado, as corporações transcendem as fronteiras do país e gerenciam recursos que superam os de muitos países. Na verdade, se o mercado não propuser soluções, elas não existirão.96 O mercado está causando as mudanças climáticas, e precisamos impedir que continue. n

That Would Threaten Core Assets”, S&P Global Market Intelligence, 29 set. 2021.

18 Hannah Seo, “ExxonMobil’s ‘Net-Zero’ Goals Don’t Address Its Biggest Source of Carbon Emissions”, Popular Science, 19 jan. 2022.

19 BP, BP Net Zero, 2022.

20 Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy, London: Routledge, 1942.

21 Há também exemplos de organizações públicas que provocam o seu próprio desaparecimento. Por exemplo, o Exército Continental desmantelou-se em grande parte após a Guerra Revolucionária; as primeiras formas de estatutos corporativos foram desmanteladas por desígnio após cumprirem o seu objetivo; as pequenas cidades com populações em declínio votam frequentemente para se desintegrar; novos governos formados após a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) desmantelaram empresas públicas, eutanizando o Estado a fim de vender os seus bens; grupos de defesa votaram a favor do desmantelamento quando receavam que as suas organizações fossem capturadas e utilizadas para fins antitéticos à sua causa; os governos podem apelar a uma convenção constitucional para redesenhar o seu propósito.

22 Larry Fink, “Larry Fink’s 2022 letter to CEOS”, BlackRock, 2022.

23 Miguel Cubano e Martha Lenhart, eds., Emergency War Surgery, Departamento de Defesa dos Estados Unidos, 2014.

24 Stanley Reed, “Third Point, an Activist Investor, Is Calling for a Breakup of Royal Dutch Shell”, The New York Times, 28 out. 2021.

25 Ron Bousso and Dmitry Zhdannikov, “BP Quits Russia in up to $25 Billion Hit After Ukraine Invasion”, Reuters, 28 fev. 2022.

26 Adam Morton e Peter Hannam, “Mike Cannon-Brookes and Brookfield in Bid to Take Over AGL and Shut Down Coal Plants Earlier”, The Guardian, 20 fev. 2022.

27 CVS Health, “CVS Caremark to Stop Selling Tobacco at All CVS/Pharmacy Locations”, 5 fev. 2014.

28 Dicionário Michaelis, www.michaelis.uol.br.

29 John M. Keynes, “The General Theory of Employment”, The Quarterly Journal of Economics, vol. 51, n. 2, 1937.

30 Joseph E. Stiglitz, “Inequality and Economic Growth”, The Political Quarterly, vol. 86, n. S1, 2015.

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31 Naomi Oreskes e Erick M. Conway, Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues From Tobacco Smoke to Global Warming, New York: Bloomsbury Press, 2010.

32 Jonathan Cohn, “Winning the War on Tobacco—and Public Cynicism, Too”, The Milbank Quarterly, vol. 94, n. 4, 2016.

33 Geoffrey Supran e Naomi Oreskes, “Rhetoric and Frame Analysis of ExxonMobil’s Climate Change Communications”, One Earth, vol. 4, n. 5, 2021.

34 Ibidem

35 Mei Li, Gregory Trencher e Jusen Asuka, “The Clean Energy Claims of BP, Chevron, ExxonMobil, and Shell: A Mismatch Between Discourse, Actions, and Investments”, PLOS One, 16 fev. 2022.

36 Fórum Econômico Mundial, The New Plastics Economy: Rethinking the Future of Plastics, jan. 2016.

37 Supran e Oreskes, “Rhetoric and Frame Analysis”.

38 Oliver Milman, “US Fossil Fuel Industry Leaps on Russia’s Invasion of Ukraine to Argue for More Drilling”, The Guardian, 26 fev. 2022.

39 Nate Raymond, “Exxon Must Face Massachusetts Climate Change Lawsuit, Court Rules”, Reuters, 24 maio 2022.

40 US Department of Health and Human Services, National Institutes of Health, National Institute on Aging, “What Are Palliative Care and Hospice Care?”.

41 Elizabeth Kübler-Ross, Living With Death and Dying, New York: Scribner, 1997.

42 IEA, Net Zero by 2050, maio 2021.

43 National Hospice and Palliative Care Organization, “Hospice Care Overview for Professionals”, 2019.

44 CBC News, “Come by Chance Refinery Sold, Will Become Biofuel Operation by Mid-2022”, 30 nov. 2021.

45 Saijel Kishan e Alastair Marsh, “Brookfield Sees ‘Massive’ Opportunities in Energy Shift”, Bloomberg, 9 dez. 2019.

46 Naomi Barker et al., Enacting Systems Change: Precompetitive Collaboration to Address Persistent Global Problems, University of Michigan and IMAGINE, 2021.

47 Adam Mayer, “A Just Transition for Coal Miners? Community Identity and Support from Local Policy Actors”, Environmental Innovation and Societal Transitions, vol. 28, n. 9, 2018.

48 Dean Baker e Aiden Lee, The Employment Impact of Curtailing Fossil Fuel Use, Washington, D.C.: Center for Economic and Policy Research, 2021.

49 PWC, Economic Impacts of the Oil and Natural Gas Industry in the US Economy in 2011, jul. 2013.

50 Andrew Winston e Hunter Lovins, “Fossil Fuel Jobs Will Disappear, So Now What?”, MIT Sloan Management Review, 13 maio 2021.

51 Baker e Lee, The Employment Impact

52 Xavier Garcia Casals, Bishal Parajuli e Rabia Ferroukhi, Measuring the SocioEconomics of Transition: Focus on Jobs, Abu Dhabi: Agência Internacional de Energia Renovável, 2020.

53 Chris McGreal, “Rightwing Lobby Group ALEC Driving Laws to Blacklist Companies That Boycott the Oil Industry”, The Guardian, 8 fev. 2022.

54 Dan Patrick, “Lt. Gov. Dan Patrick: Letter to Comptroller Hegar to Place BlackRock at the Top of the List of Financial Companies That Boycott the Texas Oil & Gas Industry”, 19 jan. 2022.

55 Silvio Marcacci, “Renewable Energy Job Boom Creates Economic Opportunity as Coal Industry Slumps”, Forbes, 10 dez. 2021.

56 Betsy Lillian, “DOE Report Confirms Wind Energy Costs at All-Time Lows”, North American Windpower, 15 ago. 2019.

57 Goksin Kavlak, James McNerney e Jessika Trancik, “Evaluating the Causes of Cost Reduction in Photovoltaic Modules”, Energy Policy, vol. 123, n. 12, 2018.

58 Business Wire, “Global Renewable Energy Industry Guide 2021: Value and Volume 2016-2020 and Forecast to 2025”, 2 set. 2021.

59 Investopedia, “What Percentage of the Global Economy is the Oil and Gas Drilling Sector?”, 9 jul. 2021.

60 Cision PR Newswire, “Renewable Energy Market to Garner $1,977.6 Bn, Globally, by 2030 at 8.4% CAGR”, 24 jan. 2022.

61 GlobeNewswire, “Base Oil Market Size to Reach $41.7 Billion by 2030”, 22 mar. 2022.

62 Govind Bhutada, “Ranked: The Largest Oil and Gas Companies in the World”, Visual Capitalist, 25 out. 2021.

63 Catherine Clifford, “60 Largest Banks in the World Have Invested $3.8 Trillion in Fossil Fuels Since the Paris Agreement,” CNBC, 24 mar. 2021.

64 Oliver Milman, “Exclusive: Oil Companies’ Profits Soared to $174bn This Year as US Gas Prices Rose”, The Guardian, 6 dez. 2021.

65 Worldometer, “Oil Left in the World”.

66 Johannes Urpelainen, “Fossil Fuels: Save the Workers, Kill the Industry”, The Hill, 30 abr. 2020.

67 PWC, Economic Impacts

68 ScottMadden, “Fossil Has More Than 50% of Energy Industry Jobs Yet Renewables Drive Future”, 21 jun. 2017.

69 API, “New Analysis: Wyoming-Made Natural Gas and Oil Drives US Economic Recovery, Strengthens All Industries”, 20 jul. 2021.

70 PWC, Economic Impacts

71 Brad Plumer, “Quitting Oil Income Is Hard, Even for States That Want Climate Action”, The New York Times, 7 jul. 2022.

72 Urpelainen, “Fossil Fuels”.

73 Hannah Thomas-Peter, “Fossil Fuel Firms Sue Governments Across the World for £13bn as Climate Policies Threaten Profits”, Sky News, 16 set. 2021.

74 US Department of Transportation Pipeline and Hazardous Materials Safety Administration, “General Pipeline FAQs”.

75 US Energy Information Administration, “Frequently Asked Questions (FAQs)”.

76 US Environmental Protection Agency, “Underground Storage Tanks (USTs)”.

77 US Government Accounting Office, Aboveground Oil Storage Tanks: Status of EPA’s Efforts to Improve Regulation and Inspections, 18 jul. 1995.

78 API, “Service Station FAQs”.

79 McKinsey Energy Insights, “Refinery Reference Desk”.

80 Mariana Mazzucato, “Innovation, the State, and Patient Capital”, The Political Quarterly, vol. 86, n. S1, 2015.

81 Ole K. Helgesen, “Equinor’s Energy Transition Plan Promises Resilience … Within Limits”, Upstream, 27 abr. 2022.

82 Tania Bryer, “World Spends $423 Billion a Year to Subsidize Fossil Fuels, UN Research Says”, CNBC, 29 out. 2021.

83 Tomer, Kane e George, How Renewable Energy

84 Sandra Laville, “Top Oil Firms Spending Millions Lobbying to Block Climate Change Policies, Says Report”, The Guardian, 21 mar. 2019.

85 Andrew J. Hoffman, “Business Education as If People and the Planet Really Matter”, Strategic Organization, vol. 19, n. 3, 2021.

86 John A. Byrne, “Columbia Business School’s Big Bet on Climate Change”, Poets and Quants, 13 dez. 2021; Claire Stowe, “Georgetown to Launch New Masters Program for Environment, Sustainability Management”, The Hoya, 1º set. 2021; NYU Stern Center for Sustainable Business, “A Better World Through Better Business”.

87 Riley Webster, “The Business School Putting Sustainability at the Center of Its MBA”, Poets and Quants, 17 dez. 2021; HEC Paris, “Leading European Business Schools Unite to Accelerate Business Response to Climate Crisis”, 10 dez.2021.

88 Organização das Nações Unidas, “Financing Climate Action”.

89 Concepción Galdón et al., “Business Schools Must Do More to Address the Climate Crisis”, Harvard Business Review, 1º fev. 2022.

90 Anand Giridharadas, Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World, New York: Alfred A. Knopf, 2018.

91 Andrew J. Hoffman, Management as a Calling: Leading Business, Serving Society, Palo Alto, California: Stanford University Press, 2021.

92 Donald Kirk David, “Business Responsibilities in an Uncertain World”, Harvard Business Review, maio 1949.

93 Fink, “Larry Fink’s 2022 Letter”.

94 David Gelles e David Yaffe-Bellany, “Shareholder Value Is No Longer Everything, Top CEOs Say”, The New York Times, 19 ago. 2019.

95 Klaus Schwab, “Davos Manifesto 2020: The Universal Purpose of a Company in the Fourth Industrial Revolution”, Fórum Econômico Mundial, 2020.

96 Andrew J. Hoffman, Management as a Calling: Leading Business, Serving Society, Redwood City, California: Stanford University Press, 2021

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Como Construir Redes mais Resilientes

Momentos de crises existenciais são inevitáveis também para as redes de impacto social. No entanto, elas podem se preparar para essas situações respondendo às perguntas certas.

Oescritório visitado por Michelle Shumate era espaçoso e moderno. Abrigava muitas das mais de cem organizações educacionais sem fins lucrativos que estavam comprometidas com a The Literacy Organization (Organização para Alfabetização, em tradução livre). Depois de um tour, o diretor executivo, Jerry, lhe explicou o motivo de ele a ter chamado.1 Eles conversaram sobre os desafios que as redes frequentemente enfrentam, incluídos os custos associados à gestão e a dificuldade de determinar se os esforços estavam fazendo alguma diferença. Ele queria saber se Michelle poderia ajudar a Literacy Organization a medir seu impacto social.

Jerry iria se desapontar.

“Gosto da missão da rede, e o escritório é impressionante”, disse ela. “Mas as conexões entre as atividades que estão fazendo e o impacto social que sua rede alega ter são tênues, na melhor hipótese. Duvido que gerem o impacto que declaram. Suas organizações-membros podem estar criando esse impacto, mas sua rede não.” Michelle se ofereceu para ajudá-los a avaliar o trabalho de formação que estava sendo feito para as organizações parceiras, algo que via como uma contribuição autêntica da rede. Mas lembrou que seria falso atribuir impacto social – isto é, melhorias nos resultados municipais em educação – ao trabalho da rede.

Não muito tempo após esse encontro, a pandemia da Covid-19 fechou o lindo escritório com espaço compartilhado que os líderes adoravam mostrar aos financiadores e a parceiros em potencial. Então, em maio de 2020, o assassinato de George Floyd e os protestos que se seguiram evidenciaram a brancura dos integrantes da

rede, o que os levou a considerar se estavam desafiando a estrutura de poder de uma cidade racial e economicamente diversa. Um grande financiador reduziu sua contribuição para os custos operacionais devido a sua própria crise financeira. Juntas, essas circunstâncias se provaram desafiadoras demais para serem superadas. A organização finalmente foi dissolvida, para desânimo de Jerry e de muitos líderes que haviam iniciado a rede.

Essa história não é a única. Em nossas pesquisas, estudamos centenas de redes, coalizões e projetos colaborativos organizados cuja meta era o impacto social. Associamos insights de décadas de investigação a novos estudos, incluído um plurianual de pesquisa sobre redes com base comunitária, com análise de mudança de rede, para escrever Networks for Social Impact (“Redes para Impacto Social”, ainda não lançado em português). Muitas das mais de 50 redes sobre as quais nos debruçamos para o projeto Networks for Social Impact in Education2 (Redes para Impacto Social em Educação), que resultou no livro3 , passaram pelo que chamamos de “momento de encruzilhada”. Esses períodos não eram somente desafios comuns, como a aposentadoria dos seus integrantes ou o desenvolvimento de novas iniciativas, e não necessariamente se relacionavam à turbulência geral da Covid-19. Mas todos estavam causando problemas do tipo “aja ou morra'' para as redes que estudamos.

Como as redes de impacto social podem sobreviver e até mesmo florescer nesses momentos de encruzilhada? Nossa pesquisa sugere que quase todas as redes os enfrentam, e as decisões tomadas antecipadamente podem influenciar as escolhas e, por extensão, os resultados. Aquelas que provam ser resilientes abraçam práticas que as

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preparam para as questões que todas as redes deverão responder quando essas encruzilhadas surgirem. Elas descentralizam suas lideranças, identificam e alinham suas teorias de mudança com recursos e desenvolvem estratégias para gerenciar os conflitos. Quando o momento de encruzilhada chega, os verdadeiros líderes de redes mostram a realidade e guiam suas organizações-membros por um conjunto de perguntas fundamentais de tal forma que o resolvem.

O Que São Redes de Impacto Social?

Redes de impacto social são grupos com três ou mais organizações focadas em um propósito comum. Elas existem em um espaço liminar entre a autonomia e a interdependência entre organizações-membros. Como resultado, administrar os períodos de encruzilhada como um líder de rede é mais desafiador do que abordá-los nas organizações: sua responsabilidade é a mesma dos tradicionais líderes de organizações de impacto social, mas não sua autoridade.

O projeto de rede não é tão conhecido como o de organizações tradicionais. Projetos de rede diferem entre si de formas variadas. Alguns exibem filiações de centenas de organizações, outros têm pouco mais que uma dúzia de membros. Algumas redes são formadas por organizações sem fins lucrativos que trabalham juntas. Outras incluem empresas, agências governamentais e organizações sem fins lucrativos. Uma organização central (backbone) administra algumas redes por meio da supervisão de suas funções administrativas, ao passo que outras –muitas vezes aquelas menores ou mais inclusivas nas filiações comunitárias – tomam decisões coletivas. Algumas redes emergem de lideranças locais que tentam solucionar um problema emergencial local. Já outras são formadas por grupos com um guarda-chuva de serviços técnicos (como AmericaServes, StriveTogether, The Campaign for Grade-Level Reading) que trabalham com líderes locais.

A diferença mais importante entre as redes é sua teoria de mudança, ou a forma que escolhem para enfrentar um problema que queiram resolver; o foco pode estar em uma única teoria da mudança ou em múltiplas abordagens, que podem ser simultaneamente estratégicas em grandes redes ou redes bem financiadas com muitos recursos para serem usados em múltiplas abordagens, por exemplo. Outras redes podem ter uma forma de trabalho sequencial e adotar diferentes teorias de mudança conforme o entendimento do problema evolui. No livro Networks for Social Impact, descrevemos as cinco teorias da mudança mais comuns adotadas pelas redes.

As teorias de mudança baseadas em projetos são focadas na criação e na entrega de um novo programa ou produto a partir de uma atividade conjunta de redes. Por exemplo, Ready, Set, Parent! e coletivos que incluem a Every Person Influences Children (EPIC) e a Baker Victory Services. Essas teorias de mudança são as menos complicadas entre as cinco, com uma rede que se forma para lançar um novo e definido projeto e, em seguida, se dissolve ou reduz seu envolvimento quando ele é concluído. O impacto social da rede depende da qualidade ou do serviço do programa.

As teorias de mudança baseadas em catalisadores operam quando

MICHELLE SHUMATE é diretora-fundadora do Network for Nonprofit and Social Impact (NNSI), um laboratório de pesquisa dedicado a maximizar a rede de impacto das organizações sem fins lucrativos. Ela é professora de Estudos Comunicacionais e professora associada do Instituto de Pesquisa Política da Northwestern University. É também coautora do livro Networks for Social Impact

KATHERINE R. COOPER é professora assistente de Estudos Comunicacionais da DePaul University. Sua pesquisa está focada nas organizações sem fins lucrativos, colaboração interorganizacional e intersecção de interesses organizacionais e comunitários em resposta a problemas sociais. É também coautora do livro Networks for Social Impact

as redes tentam escalonar uma prática efetiva. Ao mesmo tempo que as organizações também escalonam individualmente suas práticas eficazes, as teorias de mudança baseadas em catalisadores resultam em uma solução em nível de rede. A Graduate! Network, por exemplo, inicialmente queria criar uma rede comunitária para ajudar estudantes a retomar os estudos e completar sua formação universitária. A rede inclui líderes universitários, financiadores locais, agências de desenvolvimento econômico, conselhos de investimentos, empregadores interessados em expandir sua força de trabalho, lideranças da cidade, agências de aconselhamento de crédito ao consumidor, bibliotecas e outros espaços públicos na comunidade e organizações sem fins lucrativos. O modelo da sede na Filadélfia foi replicado em 41 comunidades e chegou a atingir mais de 80 mil estudantes.

As teorias de mudança baseadas em políticas, por sua vez, dependem de muitas alterações legislativas e regulatórias por meio de lobby direto no governo ou de mudanças legais. Redes assim formadas geram impacto social quando o advocacy é bem-sucedido. Tome por exemplo a RE-AMP. Fundada em 2004, a rede tem mais de 130 organizações-membros no Centro-Oeste dos Estados Unidos e seu objetivo é reduzir, equitativamente, as emissões de gases de efeito estufa na região. A RE-AMP aumentou a produção de energia renovável por meio de esforços estaduais de advocacy, barrando o desenvolvimento de novas usinas de carvão e desmantelando outras existentes.

Em geral, redes que adotam a teoria de mudança baseada na política são muito grandes e se juntam para planejar campanhas e influenciar alvos específicos. Os integrantes da RE-AMP, por exemplo, não apenas se concentram em prioridades legislativas estaduais, mas também em coordenar seus esforços entre os estados. Essa ação coletiva possibilita que tais redes obtenham maior sucesso ao influenciar políticas do que os integrantes individuais de organizações podem alcançar por si mesmos.

As teorias de mudança baseadas em aprendizagem têm como foco

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Os líderes de rede entendem que a dinâmicas que enfrentam estão sujeitas às mudanças, antecipam mudanças potenciais e formulam estratégias para superá-las.

melhorar a qualidade de serviços que as organizações já oferecem. A Center for Communities That Care usa esse modelo de abordagem em suas coalizões. Ela se apoia em lideranças comunitárias – que podem representar escolas, assistência médica, organizações sem fins lucrativos, o sistema judiciário ou o governo local – que aprendem práticas com base em evidências para reduzir riscos comportamentais entre jovens, incluído o abuso de drogas. Seu impacto social depende do grau de aprendizado das organizações-membros e da adoção das práticas com base em evidências através de suas comunidades.

As redes levam vantagem sobre as organizações individuais na coleta de dados comparativos de performance e de atividades por meio de organizações diversas semelhantes (quando organizações individuais coletam dados independentemente, muitas vezes não têm outras referências além das performances passadas). A Chicago Benchmarking Collaborative utiliza uma abordagem de aprendizagem comparativa, embora as organizações-membros se diferenciem em seus objetivos e público-alvo. Algumas atendem adultos, outras focam na primeira infância e, uma vez que esses grupos operam de maneiras diferentes em suas vizinhanças, a população a que servem varia em termos de raça, etnia e língua nativa. Mais do que focar somente no que suas organizações estavam realizando, as lideranças ficavam curiosas por saber se a combinação de esforços poderia fazer uma grande diferença em Chicago. As organizações-membros identificaram os programas e os resultados educacionais que poderiam ser medidos em todas as suas organizações. Mas a rede não parou com a coleta de dados. Os membros também se comprometeram a compartilhar práticas, revisar seus resultados e estabelecer metas conjuntas. Cada um incorporou ao menos uma prática que aprendeu de outro membro colaborativo no plano de melhoria de sua organização. Sua atividade em rede possibilitou a comparação de dados de forma mais robusta, o que levou a obter um melhor entendimento de seus resultados, aprender e aplicar estratégias distintas e, em última análise, melhorar seus resultados educacionais entre os públicos-alvo de sua organização.

Finalmente, as teorias de mudança baseadas no alinhamento de sistemas coordenam um programa de adesão das organizações-membros e exploram lacunas em seus serviços. Comparadas com teorias de mudança que dependem do lançamento de um novo projeto, ao escalar uma prática, introduzir uma política ou facilitar o aprendizado de um integrante, essas redes aplicam uma comparação sistêmica e de ajuste de esforços organizacionais existentes. As atividades organizacionais podem ser reduzidas, combinadas ou alteradas para criar uma abordagem mais compreensível que atenda a um ambiente mais amplo, que vai além dos benefícios de uma única organização. As redes baseadas no alinhamento de sistemas provocam impacto social somente quando os programas trabalham juntos para melhorar os resultados para a população.

Recentes investimentos federais em sistemas de cuidados coordenados sugerem que mais redes estão tentando o alinhamento de sistemas. 4 O programa de Assistência Contínua do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA, por exemplo, cria uma rede de provedores de lares que rapidamente realoca indivíduos e famílias em situação de rua. Os Centros de Medicare e os Serviços de Medicaid para Estados dão orientações sobre a utilização das isenções para ajudar as redes a definir seu próprio caminho na

abordagem de determinantes sociais da saúde, alinhando benefícios, programas e serviços em todas as organizações.

A AmericaServers, por exemplo, dá suporte a 11 redes voltadas para veteranos, apoiando famílias e os membros que estão na transição do serviço militar para a vida civil. Seus sistemas de cuidados asseguram que nenhum encaminhamento a outra organização na rede seja desconsiderado. E utiliza uma tecnologia5 de referência com dados da comunidade que rastreia o status de todas ocorrências mapeadas. Cada rede conta com uma coordenação central que monitora o status das ocorrências e pode ser acionada quando alguma delas não avança. O tempo médio de resposta é de menos de 48 horas, uma melhoria tremenda em relação à lista de espera que é mais comum no atendimento a veteranos. A AmericaServes aplica a teoria de mudança baseada no alinhamento de sistemas, no qual, em vez de uma organização criar um novo programa ou serviço, a rede melhora o acesso e a coordenação desses serviços. Para isso, utilizam uma plataforma referência com recursos compartilhados da comunidade e um centro de coordenação dedicado a fazer, rastrear e gerenciar as referências entre as organizações.

As redes se formam a partir de um interesse compartilhado em um problema social e pela crença de que as organizações podem causar impacto por meio de um trabalho conjunto. Articular uma teoria de mudança é tipicamente suficiente para atrair alguns integrantes e alguns financiamentos. Contudo, uma vez que o trabalho está em andamento, as redes em geral passam por certas mudanças. Algumas vão tentar manter sua estrutura inicial e a teoria de mudança para honrar o comprometimento inicial com financiadoras ou com a comunidade na qual atuam. Outras fazem experimentações com múltiplas teorias de mudança e sentem o que é possível realizar dentro de suas comunidades antes de decidir por uma ou mais teorias de mudança. Algumas vezes, as redes atualizam seus modelos baseados no que aprendem – um tipo de maturação de rede. Esses experimentos são comuns à medida que elas lidam com mudanças internas e externas. Mas, em outras vezes, as redes enfrentam momentos de encruzilhada que as levam a questionar praticamente todas as decisões iniciais sobre como uma rede deve operar – e se, em seu formato atual, pode sobreviver tempo suficiente para obter algum impacto.

Cinco Momentos de Encruzilhada Comuns

As redes enfrentam alterações constantes. Membros individuais e organizações entram e saem. Os recursos organizacionais e das redes mudam. Além disso, elas operam em ambientes flutuantes. As questões sociais mudam conforme a opinião pública, a liderança política e os precedentes legais influenciam nossa compreensão sobre os contornos acerca dos problemas e as possíveis soluções. Os líderes de rede entendem que as dinâmicas que enfrentam estão sujeitas a mudanças, antecipam desafios potenciais e formulam planos estratégicos para superá-los.

Os momentos de encruzilhada diferem das situações cotidianas que os líderes de rede enfrentam. São eventos radicais e disruptivos que colocam em questão os pressupostos de funcionamento da rede. Como as pesquisadoras Deborah Agostino, Michela Arnaboldi e Martina dal Molin escrevem: “Se o desafio de uma encruzilhada é superado, então uma nova fase da colaboração é ativada; caso

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contrário, a própria colaboração se dissolverá”.6 Em nossa pesquisa dos últimos cinco anos, identificamos cinco momentos cruciais e, embora a maioria das redes não passe por todos eles, quase todas vão vivenciar ao menos um deles.

Financiadores reduzem seu apoio | Muitas redes de impacto social dependem de financiamento em seus primeiros anos. Os subsídios ajudam a dimensionar seu trabalho, desde o empenho voluntário de algumas organizações até a contratação de pessoal para gerenciar e executar a rede. Mas a dependência de financiamento pode criar um ciclo de expansão ou de retração.

As redes mais maduras enfrentam um momento de encruzilhada quando são excessivamente dependentes de um único doador para dar continuidade ao trabalho. Com frequência esses doadores são os fundadores financiadores, que podem até ter desempenhado um papel no estabelecimento da rede em um primeiro momento. Quando o financiamento termina, isso pode significar uma crise.

Tomemos, por exemplo, a Flint & Genesee Literacy Network e seus esforços para melhorar os resultados educacionais em sua comunidade de Michigan. A organização perdeu o subsídio nacional ao mesmo tempo que mudou a liderança de rede. A combinação desses dois eventos deixou a rede lutando para descobrir como poderia continuar seu trabalho sem grandes financiamentos. Basicamente, os integrantes remanescentes da rede centralizaram uma teoria de mudança baseada em projetos comprometida com o trabalho-estudo de alunos da universidade local e com os programas da AmeriCorps.

Pandemia derruba atividades da rede | Nos últimos dois anos, as redes de impacto social tiveram que se adaptar a dois acontecimentos significativos, a pandemia da Covid-19 e as discussões nacionais sobre o tema racial após o assassinato de George Floyd. Muitos dos programas e serviços das organizações-membros migraram para o virtual ou pararam quando não podiam ser realizados de forma presencial. A insegurança alimentar e a necessidade de conectividade com a internet para as crianças em idade escolar mobilizaram algumas redes e suas organizações-membros para assumir novas atividades. O movimento Vidas Negras Importam levou muitas organizações e stakeholders a olhar criticamente para as pessoas que facilitaram e participaram da rede de impacto social – e a quem essas redes se destinavam a servir.

Muitas redes de impacto social com as quais temos trabalhado experimentaram uma encruzilhada nos últimos dois anos, especialmente aquelas que atendem alunos da educação básica.

Um líder visionário se afasta | As mudanças de liderança podem apresentar desafios existenciais para algumas redes, especialmente se elas perderem um campeão – um líder fundador visionário ou transformacional. Embora as redes de impacto social operem por meio de esforços coordenados e coletivos, a maioria das iniciativas de mudança social está associada a líderes individuais que podem convencer outros a se juntarem à causa.

Organizações-membros e financiadores podem interpretar a saída de um deles como perda de visão da rede e temer o declínio do entusiasmo, do financiamento e das conexões. Na Pittsfield Promise, uma rede que atua com educação, a saída de vários líderes importantes levantou preocupações sobre a perda de outros participantes da rede. Muitos parceiros organizacionais tinham se juntado à rede a pedido desses indivíduos. Quando esses primeiros

defensores da Pittsfield Promise saíram de suas respectivas organizações e, portanto, da rede, alguns membros questionaram seu próprio compromisso com a rede.

Uma organização poderosa absorve o trabalho da rede | Os líderes de rede intermedeiam, muitas vezes, as relações entre os mais e os menos poderosos membros da rede. Como as redes são baseadas em acordos entre as organizações, o gerente – se a rede tiver um – frequentemente tem muito pouca autoridade formal sobre o que as organizações fazem. Em alguns casos, as organizações mais robustas podem absorver o trabalho da rede.

Essas organizações poderosas geralmente reconhecem que os programas da rede se enquadram em sua área central de competência e que pode ser mais eficiente executá-los de forma independente da rede. Por exemplo, em duas redes de ensino que pesquisamos, o distrito escolar internalizou o trabalho da rede. Na Hartford Partnership for Student Success, em Connecticut, a nova superintendência das escolas ficou tão impressionada com o projeto das escolas comunitárias que decidiu internalizar o trabalho e se comprometeu a financiar a iniciativa. A superintendência expandiu o trabalho a outras escolas, aumentando o número de alunos atendidos. Embora o trabalho estivesse dentro das escolas, a rede teve um papel menor. A fadiga de reuniões leva ao esgotamento dos integrantes | Muitas das redes que analisamos sabem que estão tentando satisfazer a uma série de demandas conflitantes. Em um dos dilemas mais comuns, líderes de rede tentam demonstrar seu progresso para uma comunidade ansiosa por mudanças sociais generalizadas, destacando conquistas menores. No entanto, o outro lado desses projetos iniciais é que os líderes de rede geralmente têm dificuldade em lançar algo rapidamente se muitas partes interessadas estiverem envolvidas. Os pesquisadores de rede referem-se a essa dificuldade como uma tensão entre eficiência e inclusão.7 Muitas redes que seguimos decidiram gerenciar esse dilema organizando reuniões regulares abertas a quaisquer interessados. No curto prazo, esses encontros podem estimular as pessoas e proporcionar uma sensação de transparência e inclusão. No entanto, as reuniões são demoradas, e ninguém pode comparecer a todas, apesar dos melhores esforços dos líderes de rede em marcarem reuniões em horários convenientes e em lugares de fácil acesso. Então, a longo prazo, as reuniões podem levar ao esgotamento dos integrantes.

Veja o exemplo da Education for All,8 outra rede comunitária destinada a melhorar os resultados educacionais da primeira infância ao ensino superior. Em um esforço para ser acessível a líderes organizacionais e membros da comunidade, a rede organizou três tipos de encontros. O primeiro, para líderes organizacionais tomarem decisões relevantes ao seu trabalho; o segundo, para pessoas menos envolvidas em atividades da rede se atualizarem; e o terceiro, para equipes de ação compostas por organizações ou comunidades-membros que queiram se envolver mais. Sensível às preocupações que as pessoas podem ter se perdem uma reunião, eles até realizam sessões informais de atualização sobre reuniões anteriores antes dos encontros informativos. Embora tivessem a intenção de ser inclusivos, os líderes da Education for All reconheceram mais tarde que “a fadiga dos encontros” prejudicou os participantes.

As redes frequentemente vivenciam a rotatividade de seus membros – algo que há muito reconhecemos em nossa pesquisa.9 Apesar de várias maneiras de envolvimento, nenhuma estrutura de reunião

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garante a participação ou a sensação de inclusão de todos os atores da rede. Os líderes da Education for All ficaram consternados ao ver que algumas pessoas da comunidade acreditavam que, em vez de promover mudança social, “tudo [que a rede faz] é falar”..

O Trabalho Preparatório de Redes Resilientes

Se os membros ficam cansados ou uma rede perde seu financiamento, os momentos de encruzilhada colocam em risco o futuro da rede. A rede deve então mudar de maneira significativa a forma como opera ou se dissolver. No entanto, nossa pesquisa descobriu que algumas redes se empenham em práticas que as tornam mais resilientes antes do momento de encruzilhada. Elas se concentram em reduzir os riscos associados à liderança centralizada, teorias neutras de mudança e atenção inadequada à gestão de conflitos. Em suma, redes resilientes fazem investimentos para isolar sua rede do choque provocado por um momento de encruzilhada. Oferecemos três recomendações gerais com base nas estratégias que se mostraram eficazes.

Considere descentralizar a liderança da sua rede. | Qualquer rede resiliente deve suportar a rotatividade de seus integrantes individuais, incluídos seus líderes transformacionais ou fundadores. Algumas das que estudamos apostam em uma liderança centralizada, abordagem que depende fortemente de uma organização líder ou dorsal, na qual os líderes tomam decisões em consulta com outros integrantes da rede. Em redes governadas de forma centralizada, as mudanças de liderança normalmente inquietam a estrutura.10

de mudança, mesmo que tenha que mudar o plano original.

As redes devem começar determinando qual das cinco teorias de mudança querem abraçar, mas não devem parar por aí. Redes robustas esquematizam sua teoria de mudança fazendo um planejamento reverso, em que identificam seu objetivo e como os resultados de suas atividades influenciam esse objetivo.11 As redes mais robustas detectam indicadores avançados e falhos para que possam testar a validade de sua teoria de mudança.

Tal processo requer dos líderes de rede serem realistas sobre como sua teoria de mudança corresponde aos recursos que possuem ou possam cultivar. Momentos de encruzilhada normalmente têm a ver com a flutuação de recursos ou conflitos de rede entre seus integrantes ou a comunidade. No entanto, antes de acontecerem os momentos de encruzilhada, os líderes de rede podem refletir sobre se eles contam com os recursos de que necessitam para sustentar a rede. Em uma época em que organizações sem fins lucrativos e iniciativas de impacto social são muitas vezes encarregadas de fazer mais com menos recursos, escolher uma teoria particular da mudança pode até ser libertador. Tal decisão pode afastar a rede

pesquisadores que há muito tempo estudam redes colaborativas e ocasionalmente participam dessas atividades, entendemos a tendência de superestimar a boa vontade das pessoas.

Alternativamente, algumas redes estabelecem liderança estruturada na descentralização distribuída da governança entre a rede. Nossa pesquisa descobriu que essas redes eram mais resilientes ao choque de um momento de encruzilhada. Considere a Family Success Alliance em Orange County, na Carolina do Norte, focada em quebrar o ciclo da pobreza, e a Campaign for Grade-Level Reading em Marshalltown, no Iowa, que se concentra em melhorar a leitura dos alunos da terceira série. Ambas se apoiam em estruturas descentralizadas que possibilitam à atividade de rede continuar caso as lideranças principais saiam. Nas duas, a liderança descentralizada também inclui o empoderamento de diversos stakeholders. Na Family Success Alliance, por exemplo, o envolvimento de diferentes organizações para supervisionar a programação e o envolvimento da comunidade de stakeholders – como um conselho de pais – garantiram diferentes tipos de ator com papéis de liderança, mais do que somente uma figura de rede. Em Marshalltown, o fortalecimento de coalizões comunitárias e a construção de laços entre diferentes integrantes permitiu à rede seguir após a aposentadoria de seu líder original, que esteve no comando da organização local por 40 anos.

Identifique e alinhe a teoria de mudança da rede com os recursos. | Algumas redes nunca identificam exatamente como suas atividades levarão ao impacto social que desejam alcançar. Ao identificar sua teoria de mudança, uma rede pode enfrentar melhor as mudanças no financiamento, liderança, operações e, muito mais, pode questionar como continuar a atuar de uma forma que apoie sua teoria

do que não faz bem para se concentrar no que faz bem. Articular uma teoria de mudança também oferece o benefício de prestação de contas aos financiadores e aos stakeholders da comunidade interessados em apoiar ou avaliar os esforços da rede.

As teorias de mudança baseadas em projetos geralmente exigem menos recursos e, com o tempo, os projetos podem ser executados sem depender da rede que os gerou. O alinhamento de sistemas, por sua vez, é uma teoria de mudança de longo prazo. Os líderes de rede que obtêm o alinhamento de sistemas apoiado por doações no curto prazo ou sem a participação de líderes governamentais estão em situação precária. Assim como as empresas subcapitalizadas, as redes que não conseguem alinhar sua teoria de mudança com os recursos existentes são mais vulneráveis à dissolução.

Estabeleça abordagens para lidar com conflitos. | Como pesquisadores que estudam há muito tempo redes colaborativas e ocasionalmente participam dessas atividades, entendemos a tendência de superestimar a boa vontade dos participantes. Muitas redes assumem que um interesse compartilhado na melhoria dos resultados educacionais ou de saúde, por exemplo, pode ser forte o suficiente para superar qualquer discórdia em potencial.

O conflito é fundamental para as redes. Desentendimentos inevitavelmente surgem entre indivíduos e entre organizações com diferentes objetivos e procedimentos operacionais. Os membros da comunidade podem não abraçar a abordagem da rede. Uma das

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Como

melhores preparações para conflito é adotar processos formais de tomada de decisão que criam uma expectativa de que a tomada de decisão se destina a ser ativa ou inclusiva, como ocorre na tomada de decisão por consenso.12 A deliberação por consenso leva um pouco mais de tempo, e isso pode desencorajar os integrantes ansiosos da rede a ver mudanças em suas comunidades. Mas o processo garante que os membros da rede sejam ouvidos, entendam como as resoluções são feitas e fiquem menos propensos a sair por causa da forma como uma decisão foi tomada. Processos decisórios formais ajudam a equilibrar interesses poderosos em uma rede e a criar um procedimento padrão para lidar com muitos tipos de conflito.

Os líderes de rede também devem cultivar habilidades de gerenciamento e avaliação de conflitos, um processo no qual os gerentes determinam a natureza do conflito e as possibilidades de intervenção. Devem avaliar seus estilos de gerenciamento de conflitos e desenvolver estratégias específicas, como lidar com perspectivas ou mediar negociações.

Além disso, vimos algumas redes que se beneficiam de um mediador terceirizado quando o conflito excede as habilidades dos líderes de rede ou quando o conflito parece particularmente arraigado.

Não há como isolar totalmente uma rede de uma crise – e, de fato, nenhuma rede séria de impacto social deve esperar alcançar seus objetivos sem superar obstáculos.

Considere a Coalition for New Britain’s Youth, uma rede educacional com um projeto que cobre do berço à carreira, com foco no ensino superior ou na preparação para uma carreira em Connecticut. Quando começamos a conversar, em 2017, a rede operava havia cerca de 16 anos e apresentava uma organização dorsal com alguns funcionários, incluído um diretor-executivo. Em 2020, quando os entrevistamos, a rede vivia um momento de encruzilhada. A equipe havia deixado a organização e a rede abraçou uma nova missão, visão, valores e estrutura. Enquanto a coalizão havia anteriormente focado em resultados educacionais, a nova missão e os novos valores se concentraram em apoiar famílias inteiras e a centrar vozes juvenis. No entanto, a mudança mais significativa foi pedir aos financiadores para não mais participar das reuniões de coalizão e integrar um grupo separado de doadores. Essa transição exigiu mais de um ano.

Nem toda rede apresenta as mesmas escolhas durante um momento de encruzilhada. O tipo de momento de encruzilhada e as decisões que as redes fazem antes de enfrentá-lo determinam suas opções. Nós chamamos esse princípio de “dependência do caminho”. Uma rede que adota uma abordagem inteiramente nova de estrutura de governança, missão ou teoria de mudança não o faz simplesmente rebobinando o relógio ou começando do zero. Reconstituir uma rede é frequentemente mais difícil do que iniciar uma nova.

Nas Encruzilhadas

Os líderes de impacto social acham difícil admitir que chegaram a uma encruzilhada. Geralmente eles sentem um choque e uma tristeza pela perda do modo como a rede operava no passado. Imaginam como esse momento poderia ter sido superado. Os líderes eficazes reconhecem a encruzilhada e falam a verdade sobre isso, e usam a oportunidade para responder a questões fundamentais, como:

• Por que nossa rede precisa existir?

• Qual impacto social buscamos causar e qual é a nossa teoria de mudança?

• Como nossa rede deve tomar decisões?

• Como financiaremos o trabalho?

Às vezes, os líderes podem responder a essas perguntas de pronto, especialmente quando sua rede já se preparou para tal crise. Se já articulou sua teoria de mudança, e como tomará decisões difíceis e qual é seu valor para a comunidade e para seus integrantes, a rede pode tomar o momento de encruzilhada como uma oportunidade de se revisitar e se comprometer novamente com os seus objetivos. Em redes nas quais as respostas a essas perguntas são ambíguas ou estão sempre mudando, um momento de encruzilhada pode ser incapacitante e exigir meses de conversas para reconstituir a rede, se isso acontecer.

Por exemplo, as redes com teorias de mudança baseada em projetos, política ou catalisadores experimentam momentos de encruzilhada de formas diferentes das redes com teorias de mudança de aprendizagem ou de alinhamento de sistemas. Em nossa pesquisa, redes que exigem que as organizações-membros assumam tarefas que excedam suas operações diárias ou atividades normais são mais vulneráveis aos momentos de encruzilhada. Participar de campanhas conjuntas, por exemplo, muitas vezes está fora do domínio normal das organizações. Teorias de mudança catalisadoras em geral requerem integrantes de rede que olhem além de seus esforços locais para ter seu impacto escalável.

Um momento de encruzilhada em geral resulta em encerramento se a rede opera um único programa, como a Ready, Set, Parent! Na verdade, quando as companhias seguradoras reduziram o tempo de permanência dos pais em hospitais, os parceiros da organização não dispunham de mais recursos financeiros ou tempo para apoiar o programa. A parceria então se desfez. O término do programa não é reflexo da demanda pelo programa ou dos esforços realizados pelos parceiros – Ready, Set, Parent! ganhou o Prêmio de Colaboração da Fundação Lodestar. Mas um recorde de sucesso e uma lista de parceiros comprometidos nem sempre são suficientes para sustentar uma rede durante um momento de encruzilhada.

Redes que dependem sobretudo de teorias de mudança com base em aprendizagem e alinhamento de sistemas concentram-se em aperfeiçoar as operações já existentes das organizações envolvidas. Essas ações podem se dar por meio da aquisição de melhores práticas ou do alinhamento de esforços com outros programas. Ambas as teorias de mudança apoiam o trabalho organizacional que já existe e, como tal, são menos vulneráveis a esses momentos.

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A Covid-19 apresentou um momento de encruzilhada para muitas das redes que pesquisamos, testando sua resiliência e flexibilidade. Por exemplo, durante o primeiro ano da pandemia, nossa equipe entrevistou os funcionários de 11 redes locais da AmericaServes. Como mencionamos, essas redes fornecem referências confiáveis para 21 diferentes tipos de benefício, programa e serviço, variando de alimentação a moradia e enriquecimento espiritual. Com esse sistema, os clientes nunca serão informados de que precisarão entrar em contato com outra pessoa para usar o serviço, porque qualquer provedor faz o encaminhamento correto. Durante a pandemia, muitas das organizações-membros que atendem os veteranos fecharam suas portas, ao menos por um tempo, e tiveram seus funcionários trabalhando remotamente, mas suas redes se adaptaram rapidamente às necessidades com novas estratégias para cumprir os mesmos objetivos.

A PAServes, uma rede da AmericaServes, não era capaz de chegar presencialmente aos veteranos com necessidades. Mais: uma das organizações parceiras da rede não podia oferecer seus programas por não trabalhar online. Então a PAServes mudou. A organização usou as listas de veteranos de eventos da comunidade e começou a usar e-mail marketing para torná-los cientes dos recursos disponíveis para alimentação e os serviços básicos. Isso incentivou os parceiros mais próximos do programa a oferecer entregas de comida e de remédios – algo que nunca havia sido feito antes. E adicionou um novo mecanismo para responder a mais necessidades concomitantes (por exemplo, de habitação, alimentação e assistência a emprego) ao mesmo tempo, melhorando sua eficiência para lidar com o novo fluxo de pessoas atendidas. Porque a PAServes sabia como sua rede causava impacto social, ao conectar veteranos a vários serviços que atendessem a suas necessidades, poderia girar rapidamente. E porque as organizações de serviço para veteranos reconheceram que o PAServes conectou os veteranos a serviços que já ofereciam, continuaram a investir na rede.

Uma Rede Mais Resiliente

O que é preciso para uma rede transpor bem um momento de encruzilhada? A Voyage, de Wilmington, na Carolina do Norte, destaca-se. A teoria de mudança da rede está criando caminhos bem-sucedidos para jovens e famílias. A Voyage apresenta uma teoria híbrida de mudança composta por coordenação multiagências (baseada em projetos) e seu programa de assinatura de apoiadores de alcance comunitário (alinhamento de sistemas). Um apoiador comunitário trabalha com uma família para identificar seus bens e seus objetivos. Juntos, elaboram um plano de ação, e o advogado ajuda a conectar a família a benefícios, programas e serviços apropriados que os membros da rede fornecem.

Nos anos anteriores a seu momento de encruzilhada, a Voyage deu alguns passos que mais tarde foram importantes. Primeiro, a liderança da rede descreveu sua teoria de mudança em seus documentos de fundação e website, de forma que sua abordagem fosse conhecida por todos. Segundo, montou equipes com múltiplas ações e conselhos comunitários. Ao fazer isso, descentralizou sua liderança e distribuiu papéis e responsabilidades por toda a rede, em vez de depender excessivamente de uma figura central. Terceiro, a Voyage confrontou conflitos que ameaçavam a viabilidade da rede em seus estágios iniciais. Quando as organizações sem fins lucrativos locais

se preocuparam com que a rede pudesse minar os esforços organizacionais – um conflito familiar em nossa pesquisa –, a Voyage se dedicou a trabalhar essas preocupações e construir a confiança.

O momento de encruzilhada da Voyage começou quando um líder transformacional deixou a rede. O novo diretor-executivo mudou a rede para desenvolver uma abordagem mais holística, que olhou para as relações, a família, as comunidades e as instituições que influenciam a vida cotidiana. A rede mudou seu nome para refletir os valores transformados, de Blue Ribbon Commission to End Youth Violance para Voyage. E continuou a crescer, mais do que dobrando o total de alunos em seu programa e expandindo significativamente o número de famílias atendidas. Em 2017, eram cerca de 30 organizações na rede; em 2019, esse número aumentou para 51. A experiência da Voyage, com base em uma preparação adequada, destaca-se nitidamente, em contraste com a The Literacy Organization.

Os líderes de rede podem estar certos de que vão vivenciar um momento de encruzilhada, sugere nossa pesquisa. Algumas vezes, eles podem antecipar esses momentos, em outras, uma crise os cegará. Algumas redes fecharão, seja porque o esforço terminou, seja porque a rede não foi construída para sobreviver à crise. Outras redes vão se ajustar e prosperar. Um período de recuo estratégico não é desperdiçado em redes que podem mudar. Dessa forma, os líderes de rede demonstram que a rede é receptiva às necessidades de seus integrantes e à comunidade e focada no verdadeiro valor que ela oferece.

Não há como isolar totalmente uma rede de uma crise – e, de fato, nenhuma rede séria de impacto social deve esperar alcançar seus objetivos sem superar obstáculos. Mas as redes resilientes navegam por esses momentos, confiantes de que podem continuar servindo suas comunidades. O momento de encruzilhada pode transformá-las, mas elas emergem mais focadas do que antes em sua teoria de mudança e em seus valores. n

Notas

1 Os nomes da organização e do diretor-executivo foram alterados para proteger suas identidades.

2 Network for Nonprofit and Social Impact, “The Networks for Social Impact in Education”, 2021, https://nnsi.northwestern.edu/education-series.

3 Michelle Shumate e Katherine R. Cooper, Networks for Social Impact, Oxford: Oxford University Press, 2022.

4 Michelle Shumate, Mapping the Navigation System of Pennsylvania: Opportunities for the Future, Social Impact Network Consulting, 2022.

5 Yuri Cartier, Caroline Fitchenberg e Laura Gottlieb, Community Resource Referral Platforms: A Guide for Health Care Organizations, Social Interventions Research and Evaluation Network, Universidade da Califórnia San Francisco, 2018.

6 Deborah Agostino, Michela Arnaboldi e Martina Dal Molin, “Critical Crossroads to Explain Network Change: Evidence from a Goal-Directed Network”, International Journal of Public Sector Management, vol. 30, n. 3, 2017.

7 H. Brinton Milward e Keith G. Provan, A Manager’s Guide to Choosing and Using Collaborative Networks, IBM Center for the Business of Government, 2006.

8 O nome da organização foi alterado para proteger sua identidade.

9 Katherine R. Cooper e Michelle Shumate,“Interorganizational Collaboration Explored Through the Bona Fide Network Perspective”, Management Communication Quarterly, vol. 26, n. 4, 2012.

10 Rong Wang, Katherine R. Cooper e Michelle Shumate, “The Community Systems Solutions Framework”, Stanford Social Innovation Review, Inverno de 2020.

11 Maoz Brown, “Unpacking the Theory of Change”, Stanford Social Innovation Review, Outono de 2020.

12 Seeds for Change, Consensus Decision Making: A Guide to Collaborative DecisionMaking for Activist Groups, Co-ops, and Communities, (2. ed., 2020).

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Escuta Ativa

Desenvolver técnicas de escuta atenta é fundamental para criar entendimento e os relacionamentos genuínos necessários para mudança social.

Amaior parte dos líderes do terceiro setor deseja trabalhar de maneira colaborativa com as pessoas que atendem. Para impulsionar mudanças sistêmicas, organizações sem fins lucrativos e financiadores precisam entender as pessoas que são diferentes deles e incluir as perspectivas de um conjunto diversificado de stakeholders em seus processos de tomada de decisão. Tal abordagem pode ajudar líderes a perceber o mundo através da compreensão dos relacionamentos e da complexidade dos sistemas. Aqueles que se dedicam a ouvir e empreender esforços participativos tendem a construir práticas mais equitativas, indicam os estudos. Além disso, apresentam maior comprometimento com a inclusão e causam um impacto positivo nos participantes e membros da comunidade, que se tornam mais qualificados para se colocar ou cobrar os responsáveis.

Em 2020, a pandemia mundial de Covid-19 e os protestos contra o racismo aumentaram a conscientização das desigualdades e das disparidades de poder entre líderes de mudança social e seus beneficiários, filantropos e as ONGs que eles apoiam, bem como entre pessoas brancas e negras que trabalham dentro das organizações. Filantropia e empreendedorismo social tradicionalmente atuam a partir de uma abordagem vertical, mas líderes de diferentes setores admitem que precisam aprender a ouvir de maneira mais eficaz para se conectar com os stakeholders e compreender suas necessidades.

“Sabemos que as comunidades mais próximas aos problemas

têm uma percepção única das soluções”, afirmou Darren Walker, presidente da Ford Foundation, em fala sobre sua visão para a filantropia, em 2019. “É por isso que… devemos garantir que as pessoas impactadas por nosso trabalho tenham a garantia de que sua voz será ouvida durante a elaboração e a implementação do trabalho.”

A escuta ativa é fundamental para a compreensão das necessidades dos stakeholders e da comunidade. Também chamada de escuta atenta, escuta reflexiva ou escuta radical — caracteriza-se por como o ouvinte entra e se envolve em uma conversa. Sua curiosidade, empatia e seu respeito pelo falante, bem como a autoconsciência de suas próprias crenças e preconceitos, tudo isso influencia sua capacidade de ouvir com atenção e de se relacionar de forma genuína com quem fala, de tal modo que possa intuir as emoções e o real significado de suas palavras.

Neste artigo explico a abordagem da escuta ativa e discuto os desafios de sua prática. Tomando como base a experiência de empreendedores sociais e filantropos, além da minha própria pesquisa e atuação prática, os parâmetros usados aqui abrangem audições individuais. Contudo, alguns de seus métodos também podem ser aplicados corporativamente, em práticas que envolvem várias pessoas ou grupos. Outros insights no campo da escuta organizacional foram compartilhados pelo professor de comunicação pública Jim Macnamara, da University of Techology de Sydney, cujo trabalho pioneiro identificou dez erros comuns na escuta organizacional, bem como suas correções.

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Embora a escuta ativa não se faça necessária em toda conversa, os leitores podem vir a desejar incorporar seus elementos em uma grande variedade de discussões — com parceiros, beneficiários, colegas e até com seus familiares. A prática não exige que o ouvinte concorde com a mensagem do falante; na verdade, é preciso apenas reconhecer e compreender a perspectiva daquele que fala. A abordagem é, portanto, uma ferramenta poderosa em situações em que o falante e o ouvinte encontram-se em lados opostos de um assunto e quando há uma dinâmica de poder desigual.

Atenção e Intenção

O componente fundamental da abordagem da escuta ativa é como o ouvinte se apresenta para a discussão — tanto com relação à sua intenção como ao tipo de atenção que dá ao falante. Entrar em uma conversa com humildade é uma forma simples, porém potencialmente transformadora, de ajudar a criar encontros mais profundos.

Para definir sua intenção e atenção, o ouvinte precisa começar trabalhando internamente. A escuta ativa é uma prática cultivada, não sendo, para a maioria das pessoas, natural. Pesquisadores de neurociência cognitiva explicam que nosso cérebro é programado para obter informações rudimentares e essenciais e rapidamente avaliar uma nova pessoa que conhecemos com base em nossas experiências prévias. Antes mesmo de uma pessoa começar a falar, o ouvinte já começa a julgá-la. É provável que esses préjulgamentos

EMILY KASRIEL é diretora de projetos especiais da BBC World Service. Ela foi a líder do evento BBC’s Crossing Divides e é coach executiva. Kasriel ensinou escuta ativa para 200 pessoas no BBC 5 Live Crossing Divides Festival; 150 jovens libaneses em uma parceria da BBC World Service e do British Council; executivos da IBM; coaches executivos de diversas organizações; e grupos de líderes de impacto no Forward Institute, no Reino Unido. Ela também pesquisou escuta ativa no Marshall Institute, na London School of Economics.

A autora gostaria de agradecer a todos que contribuíram com este artigo: ao professor Avraham Kluger, que ministra um curso de mestrado em escuta no qual a autora falou e o qual ela frequentou; e a Gary Friedman e Catherine Conner, que oferecem o curso de mediação de conflitos, ministrado pelo SolutionsJournalism.org e frequentado pela

autora. Além dos citados no artigo, também gostaria de agradecer àqueles que dedicaram seu tempo para compartilhar suas ideias: Raquel Ark, apresentadora de podcast; Charlie Beckett, professor de mídia da LSE; Stephan Chambers, diretor do LSE Marshall Institute; Peter Coleman, diretor do Centro Internacional para Cooperação e Resolução de Conflitos do Morton Deutsch; Julie Fernandes, diretora associada do Rockefeller Family Fund; Mary Gordon, presidente da Roots of Empathy; Guy Itzchakov, da Universidade de Haifa; Corine Jansen, Chief Listening Officer da JoConnect; Vuslat Dogan Sabanci, fundador da Fundação Vuslat; Amanda Ripley; Andrew Sheridan e David Knox, do British Council; Douglas Stone, da Harvard Law School; Matthew Taylor, CEO da NHS Confederation; a More in Common e a the Behavioural Insights Team; e a todos que colaboraram em seu treinamento de escuta ativa

niões fortes que podem ser estimulados por aquilo que ele está ouvindo. Essa avaliação interna permite que o ouvinte reconheça, aceite e libere o controle que os julgamentos têm sobre suas percepções e se abra para a narrativa da outra pessoa.

sejam mais extremados se o ouvinte partir do pressuposto de que o falante parece diferente ou não tem a mesma origem que a dele.

Esses atalhos cognitivos prejudicam a capacidade de quem ouve de entrar na conversa de maneira aberta para escutar, principalmente quando é dono de uma opinião forte sobre o assunto que está sendo discutido; ademais, segundo os psicólogos Akiva Liberman e Shelly Chaiken, o ouvinte registra apenas informações que fortalecem suas crenças. Para lidar com esses desafios, os ouvintes precisam se colocar, nas palavras de Martin Vogel, coach de comunicação e mindfulness, em um lugar “de ignorância” — afastando as expectativas em relação àquilo que o falante dirá.

Tanto a literatura acadêmica quanto a literatura em geral sobre o assunto recomendam, muitas vezes, que o ouvinte não julgue o falante. Contudo, Gary Friedman, mediador de conflito e veterano instrutor de escuta ativa, defende que essa instrução não é efetiva porque julgamentos são os mecanismos que usamos para compreender o mundo. Ele defende, na verdade, que o ouvinte volte-se para si mesmo e procure notar quaisquer preconceitos e/ou opi-

Esse primeiro trabalho interno ajuda a preparar o terreno para uma conversa genuína. “Quando se está alinhado e sem brigar consigo mesmo, esse tipo de sentimento — centrado, calmo e presente para, de fato, ouvir — auxilia os demais a se sentir ouvidos, bem-recebidos e prontos para se expressar”, afirma Kinari Webb, fundadora da organização ambiental sem fins lucrativos Health in Harmony, que usa escuta ativa em comunidades indígenas de regiões bastante afetadas pelo desmatamento. Avraham Kluger, especialista no assunto, também afirma que projetar uma vulnerabilidade genuína ajuda a criar uma sensação de segurança: “Aprendi que se sou corajoso o bastante para compartilhar uma fraqueza, isso demonstra, de alguma maneira, que me aceitei, que posso aceitar os outros, não importa o quão estranho eles sejam para mim, uma vez que estou disposto a aceitar minha própria estranheza”.

A escuta ativa precisa ser praticada com intencionalidade porque o ouvinte precisa substituir a maneira preferida do cérebro atuar — por meio de atalhos cognitivos e preconceitos baseados em experiências prévias. Em vez disso, o ouvinte tem de demonstrar uma curiosidade genuína e, para desenvolver sua intenção e atenção, pode seguir os seis passos seguintes:

Não se apresse | Reserve tempo para refletir sobre suas intenções antes de um encontro — seja para influir na conversa, para obter informações ou para desenvolver um bom relacionamento. Pode ser que você deseje assumir o controle da conversa para descobrir o que você, aquele que ouve, acredita precisar saber. Praticar escuta ativa exige deixar de lado sua agenda para conseguir ficar aberto a quem fala e ao que ele considera importante.

Elimine as distrações | Atente-se sobre o que pode ser motivo de distração, coisas como seu telefone celular ou outros aparelhos

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A prática da escuta ativa não exige que o ouvinte concorde com a mensagem do falante; na verdade, é preciso apenas reconhecer e compreender a perspectiva daquele que fala.

eletrônicos, e os coloque no modo silencioso e fora de sua visão para que possa dedicar atenção total ao falante.

Avalie seu estado mental | Reflita sobre seu atual nível de atenção. Você está distraído? Irritado? Empolgado? Observe onde esses sentimentos se manifestam em seu corpo e, então, respire fundo, permitindo que deixem seu corpo à medida que você expira.

Controle sua resistência | Lembre-se de que é seguro baixar sua guarda psicológica — não há necessidade de se defender ou colocar-se na defensiva durante uma conversa. Admita para si mesmo que aquele encontro pode transformá-lo de maneira que você é incapaz de prever ou controlar.

Observe o espaço a seu redor | Sinta a abertura do espaço diante de si; ao seu redor — valendo-se de sua visão periférica; atrás de você; sobre você; e no chão em que você pisa. Sinta-se pronto para acolher a outra pessoa como um todo no espaço que vocês criarão juntos.

Confie em si mesmo | Confie na sua capacidade de compreender plenamente o outro — não por meio de sua destreza intelectual, mas por estar aberto e, em certo sentido, vulnerável.

A psicóloga Monisha Pasupathi realizou experimentos que demonstram os efeitos da atenção à narrativa do falante. Em um deles, o ouvinte está distraído com outra atividade, como contar as palavras usadas pelo falante que começam com as letras “th”. Quando escutamos atentamente sem distrações, segundo indicam as evidências de Pasupathi, demonstramos estar respaldando o que o falante está dizendo. Essa percepção de atenção, por sua vez, pode permitir que o falante conte histórias mais coerentes, bem como mais detalhes sobre elas, e as compartilhe por um período mais longo.

Ouvir não é uma atividade passiva. A pesquisa da psicóloga Janet Bavelas, por exemplo, demonstrou que a escuta em tempo real é um processo ativo no qual o ouvinte cria, juntamente com o falante, a narrativa. Essa criação conjunta se dá por meio de um back channel de respostas, tanto verbais quanto não verbais.

Ferramentas Não Verbais

A abordagem da escuta ativa exige que o ouvinte examine tanto seu próprio comportamento quanto o modo como esse é percebido pelo falante. Expressões faciais como sorrisos e cara fechada podem influenciar a escolha das palavras do falante e da forma como vai dar continuidade à sua narrativa, se é que dará sequência a ela. Em um experimento realizado pelo psicólogo social Camiel Beukeboom, participantes que discutiam o trecho de um filme com ouvintes sorridentes mostraram-se mais propensos a oferecer uma interpretação própria porque a expressão facial positiva encorajou-os a se sentir mais aceitos e compreendidos. Por outro lado, aqueles que conversaram com ouvintes carrancudos limitaram os comentários sobre o que tinham assistido à mensagem funcional do filme — elementos factuais e a sinopse — porque sentiram-se menos seguros e, por conseguinte, menos dispostos a dividir perspectivas mais pessoais.

Nosso corpo indica tanto para nós quanto para nosso interlocutor se estamos escutando atentamente. Podemos estar com a respiração suspensa, ansiosos por intervir, ou respirando de forma profunda e lenta, sugerindo calma, paciência e receptividade. O

ouvinte pode se inclinar para frente demonstrando interesse, ter uma postura aberta que transmita receptividade, ou adotar uma posição fechada, braços cruzados, para indicar que está na defensiva. Além disso, manter contato visual com o falante não apenas permite que o ouvinte capte mensagens nos gestos de quem fala — morder o lábio inferior ou apresentar olhares furtivos — mas, também, comunica atenção e respeito.

O silêncio é uma ferramenta não verbal poderosa que permite ao falante sentir-se confortável e ponderar, uma vez que diminui a excitação psicológica que interfere no pensamento reflexivo. Escutar de maneira empática significa dar espaço para o silêncio após o outro ter concluído sua fala; isso, por sua vez, cria condições para que tanto o falante quanto o ouvinte formulem respostas mais elaboradas. Um novo estudo, publicado no Journal of Applied Psychology, do psicólogo social Jared R. Curhan e dos pesquisadores da área de comportamento organizacional Jennifer R. Overbeck, Yeri Cho, Teng Zhang e Yu Yang mostra que instruir um ou os dois envolvidos em negociações bilaterais a adotar a técnica do silêncio prolongado promove a mudança da percepção fixa de soma zero (quando se supõe que a vitória de um é a perda do outro) para a criação de soluções mais criativas. Esse estudo também demonstra que as pessoas superestimam o número de segundos que ficam em silêncio, indicando que os ouvintes podem precisar contar os segundos de silêncio antes de responder.

Contudo, o silêncio nem sempre é uma ferramenta construtiva, podendo ser utilizado para intimidar, ignorar ou indicar discordância. Quando os ouvintes não querem escutar nem discutir o que o falante está dizendo, podem parar de prestar atenção ou ignorar, deliberadamente, o interlocutor. Um ouvinte silencioso pode, ainda, transmitir a mensagem de que está desinteressado, silenciando de fato o falante. Os seis passos para a prática não verbal da escuta atenta apresentados a seguir baseiam-se em um trabalho interno e de autopercepção:

Perceba seus julgamentos | Tenha consciência de quaisquer julgamentos que você possa ter em relação ao falante e ao que ele está dizendo. Perceba se você deseja mudar a outra pessoa e, então, afaste esses pensamentos.

Centre-se | Reflita sobre o tom da sua voz e perceba o que acontece quando você se permite valer-se da quietude que existe dentro de você.

Observe seu corpo | Reserve um tempo para pensar sobre seu corpo, para ter consciência a seu respeito. Que mensagem você está transmitindo com seu corpo, sua respiração, seus ombros e suas mãos?

Mantenha contato visual | Olhar para o ouvinte mostra que você está interessado no que ele está dizendo. Em conversas virtuais, o contato visual é mais complicado porque se você estiver olhando para a câmera não poderá olhar também para o falante e observar sua linguagem corporal.

Faça silêncio | Após o falante ter terminado sua ideia, conte até dez antes de responder.

Incorpore um silêncio cúmplice | Procure incorporar um silêncio paciente, cúmplice, em detrimento de um crítico ou desinteressado.

Repetir a Ideia

Sinais não verbais são importantes, mas não suficientes. O ouvinte pode demonstrar ter ouvido o que o falante disse sintetizando a

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mensagem do interlocutor, repetindo o que foi dito para o falante a fim de que ele confirme se as duas partes chegaram a um mesmo entendimento. Essa técnica dá ao falante a oportunidade de esclarecer suas ideias, desenvolver o que já foi dito e alcançar uma compreensão mais profunda que pode, então, ser compartilhada com o ouvinte.

Essa prática exige que aquele que ouve use todos os seus sentidos e sua capacidade de raciocinar e demonstrar empatia para compreender de fato o que o falante está dizendo. Depois, deve determinar os principais pontos da narrativa do falante e, então, expressar sua interpretação para conferir se o entendeu corretamente. Repetir a mensagem central ouvida significa incluir focar e repetir as palavras que são ditas com vigor, bem com aquelas carregadas de emoção. O ouvinte deve dar atenção especial ao uso de linguagem figurativa, metáforas e hipérboles, e de superlativos — tudo isso indica que o significado dessas palavras é importante para o falante.

Uma conversa dá ao ouvinte várias chances de repetir o significado da mensagem ouvida, o que pode provocar a confirmação do falante em relação ao que o ouvinte entendeu ou a correção, ou expansão, do que foi dito. Um diálogo que tem como objetivo esclarecer um significado para criar uma compreensão mútua mostra-se bem-sucedido quando o falante confirma aquilo que o ouvinte está repetindo. O ouvinte pode, então, dar sequência com perguntas — “Eu deixei alguma coisa passar?” ou “Você pode falar mais sobre isso?” — para demonstrar interesse, bem como encorajar o falante a expandir e aprofundar sua narrativa. Fazer essa checagem com o falante por meio de um resumo do que o ouvinte entendeu permite ao falante expressar sua história de outra maneira ou a entender de forma distinta, em uma espécie de processo em espiral que tece nuances e perspectivas diferentes em cada iteração, criando uma imagem melhor tanto para o falante quanto para o ouvinte.

No processo de escuta ativa o ouvinte deve repetir não apenas o significado do conteúdo, mas, também, sua compreensão das emoções de quem fala. Esse tipo de repetição exige pressupor os sentimentos do falante por meio da avaliação de suas expressões faciais, tom de voz, ritmo de sua fala e nível de vigor. Se o ouvinte não conseguir replicar o estado emocional do interlocutor — ainda que tenha compreendido o significado perfeitamente —, é menos provável que o falante sinta que foi, de fato, ouvido, explica o psicanalista Donnel Stern. “Precisamos sentir que o outro, em cuja mente existimos, está emocionalmente receptivo para nós, que se preocupa com aquilo que experimentamos e com o modo como nos sentimos em relação àquilo.” Repetir a emoção, em outras palavras, demonstra empatia.

Repetir não exige que o ouvinte concorde com o interlocutor. Na verdade, isso transmite respeito ao falante e desejo de compreender sua mensagem e intenção. Por exemplo, quando, em uma reportagem que fiz para a BBC, conversei com produtores de leite da fronteira entre Inglaterra e País de Gales que demonstravam ceticismo diante da mudança climática, eu tinha consciência de que não concordava com suas crenças; contudo, consegui usar essa consciência para estimular minha curiosidade de compreender suas convicções. Ao colocar de lado meus julgamentos e demonstrar uma postura aberta, passei uma sensação de respeito. Tentei transmitir a compaixão que, segundo os psicólogos Carl R. Rogers

e Richard E. Farson, no artigo Active Listening, é fundamental para uma comunicação eficaz — uma atitude que diga: “respeito suas ideias e mesmo que não concorde com elas, sei que são válidas para você”.

Coloco, a seguir, seis dicas para fazer uso da repetição: Ouça as dicas | Escute atentamente o que o interlocutor está dizendo e aquilo que parece ser mais importante para ele, valendo-se de dicas: metáforas e superlativos, palavras que trazem consigo vigor e aquelas carregadas de emoção.

Compreenda o mais importante | Reserve um tempo para compreender o cerne da mensagem que você ouviu quando o interlocutor acabar de se expressar. Avalie o que você sentiu enquanto ele falava e o que você depreendeu do significado por trás das palavras.

Confirme o mais importante | Confirme o que você acredita ser o principal daquilo que você ouvir. Inclua as emoções que podem ter sido expressas de forma não verbal.

Repita | Ofereça, humildemente, sua síntese do significado e das emoções.

Confira | Confira com seu interlocutor para garantir que você o entendeu completamente. Se ele disser que não ou confirmar de maneira hesitante, pergunte o que você deixou passar ou não compreendeu corretamente.

Reitere | Continue a reiterar até obter uma confirmação incontestável do falante. Você pode, então, fazer perguntas extras para aprofundar seu entendimento da narrativa; pergunte: “O que mais?” em vez de “E alguma outra coisa?”.

Transpor Divergências

A escuta ativa pode ser particularmente eficaz quando as pessoas que conversam encontram-se em lados opostos. É uma ferramenta poderosa para aqueles que trabalham na resolução de conflitos e na transposição de divergências ideológicas ou sociais.

Ser ouvido diminui de forma considerável a ansiedade social e convida os falantes a se engajar em um processo mais profundo de introspecção e autoconhecimento que pode levar a atitudes menos extremadas, segundo estudo dos especialistas em comportamento social Guy Itzchakov, Avraham Kluger e Dotan Castro. Em um experimento, eles leram um artigo a respeito de um assunto controverso para um grupo de alunos de graduação. Metade deles foi colocada em dupla com ouvintes que usaram a abordagem da escuta ativa, ao passo que a outra metade juntou-se a ouvintes inexperientes. Os pesquisadores observaram que a escuta ativa fez com que os alunos tomassem atitudes menos extremadas, se mostrassem mais capazes de compreender os dois lados de uma discussão e mais cientes das próprias contradições — independentemente de o assunto abordar o conflito entre Israel e Palestina, a taxação de alimentos de baixo valor nutritivo, ou a eutanásia.

Durante o treinamento virtual de escuta ativa que fiz com 150 pessoas no Líbano, em 2021, cada participante teve oportunidade de praticar a abordagem com um colega que tinha um ponto de vista contrário ao seu sobre um assunto polêmico. Uma delas, Loulou, contou como o processo de repetição ajudou a mitigar a divergência ideológica que existia entre ela e seu interlocutor. “Eu percebi que sempre que nós parafraseávamos o que o outro estava dizendo percebíamos que o que estava sendo dito não era

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totalmente errado ou absurdo. Essa experiência vai, com certeza, fazer com que eu seja menos teimosa nas próximas discussões.”

Para conseguir escutar atentamente assuntos divergentes, precisamos equilibrar o jogo entre nossa capacidade analítica e nossas emoções. Em Strangers in Their Own Land, a socióloga Arlie R. Hochschild explica que “muros de empatia” (empathy walls) são um “obstáculo para a compreensão plena do outro, um obstáculo que pode fazer com que nos sintamos indiferentes ou até hostis em relação àqueles cujas crenças são diferentes das nossas ou cuja infância tem raízes em circunstâncias diferentes”. Para resolver essa situação, cada um precisa compreender de que maneira o outro vivencia o mundo. Por exemplo, em seu esforço para entender os apoiadores do Tea Party em Louisiana, Hochschild descreve o relacionamento que ela manteve com Sharon, uma mãe solteira, branca, que permitiu que Hochschild a acompanhasse em seu trabalho como vendedora de plano de saúde. Hochschild conquistou a confiança de Sharon graças ao modo como ouvia suas histórias e experiências. “Eu percebi que o tipo de relação que Sharon oferecia era mais valiosa do que eu tinha imaginado no começo — funcionou como a construção de um andaime para uma ponte de empatia”, explica. “Nós, dos dois lados, imaginávamos, erroneamente, que ter empatia pelo outro lado impediria uma análise lúcida, quando, na verdade, é do outro lado que as análises mais importantes podem surgir”.

Existem, claro, desafios importantes na escuta ativa para pessoas com pontos de vista e crenças opostos, tais como o incômodo que sentimos ao ouvir informações que se opõem àquilo que sabemos ou acreditamos. Enfrentar esse incômodo e criar empatia pelo interlocutor traz consigo a possibilidade — e, para alguns, o risco — de nos transformar, mudando quem somos e no que acreditamos. “É preciso muita segurança interna e coragem para conseguir se arriscar a compreender o outro”, afirmam Rogers e Farson.

indesejáveis e/ou necessidades que ele não pode ajudar a solucionar. Em Listening to Those Who Matter Most, the Beneficiaries, os especialistas em filantropia efetiva Fay Twersky, Phil Buchanan e Valerie Threlfal sugerem que os financiadores “têm medo do que os beneficiários podem dizer, que por não serem especialistas eles podem estar mal-informados ou equivocados. Talvez [os financiadores] tenham medo de que a gente saiba alguma coisa que seja importante nessa abordagem”.

Por outro lado, os beneficiários — ou aqueles em uma posição de menor poder e/ou aporte financeiro — podem se mostrar céticos diante da intenção e da atenção do ouvinte, podendo não acreditar que o ouvinte realmente deseja escutar sua real perspectiva e, por isso, se policiar ou mesmo se calar — ou sentirem-se impelidos a partilhar apenas feedback positivo a fim de assegurar ou manter seus financiamentos ou serviços.

Como podemos combater esses desafios na prática? Monica Nirmala, atualmente consultora do governo no combate à Covid-19 na Indonésia, passou anos praticando escuta ativa como diretora executiva da filial da Health In Harmony naquele país. “Na Indo-

Obstáculos

Enfrentados para Transpor Divergências

Líderes do Terceiro Setor engajados na mudança social e sistêmica devem ouvir com atenção aqueles que, tradicionalmente, são excluídos de posições de poder. Isso é imperativo em especial na filantropia americana, onde são brancos 92% dos presidentes de fundações, 83% de outros executivos, e 68% dos que trabalham nos programas. Dada a extensão da exclusão e dos desafios de assegurar financiamento para pessoas negras, a escuta ativa é essencial para efetivamente atender aos beneficiários e entender suas necessidades.

No entanto, existem desafios na escuta entre poderes divergentes. Quando o ouvinte está em uma situação de maior poder — por exemplo na posição de um empreendedor social ou filantropo que disponibiliza fundos ou serviços para uma pessoa que fala em nome de sua comunidade —, ele pode tentar evitar ouvir verdades incômodas. Pode fazer perguntas fechadas e tendenciosas e deixar pouco tempo para as respostas de modo a evitar fatos reveladores

nésia, a questão hierárquica é muito forte”, explica. “Quando as pessoas conversam com funcionários do governo, tendem a dizer coisas boas e positivas e não revelam os verdadeiros problemas”. Nirmala superou essa divergência de poder sendo “deliberada na hora de ouvir. Mostrando que eles sabiam mais do que eu, que suas experiências eram valiosas, ajudando as pessoas a serem honestas sobre quais são os verdadeiros problemas”, conta.

Embora estar mais ciente de prejulgamentos e preconceitos nos ajude a trabalhar a forma como ouvimos e respondemos, é mais fácil criar confiança se o falante e o ouvinte tiverem origem, cultura e/ou linguagem similares. Meg Bostrom, cofundadora da Topos, empresa de comunicações voltada para pesquisas, afirma que para projetos sobre igualdade racial, a identidade racial de sua equipe é similar à do ouvinte e do à falante. Para outros projetos, a Topos envia dois ouvintes — um com uma perspectiva interna e outro com uma perspectiva externa — para fazer a pesquisa. Para aprender por que comunidades indígenas estão promovendo desmatamento florestais, a Health in Harmony envia uma dupla de ouvintes, uma pessoa da região que fale o mesmo idioma da comunidade indígena em questão e outra de uma cultura diferente. Ambas as perspectivas ajudam a construir o entendimento juntos: o local conhece o idioma e a cultura da região, o que ajuda a criar confiança, ao passo que o externo pode fazer com que o falante explique coisas que não foram ditas.

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Ser ouvido diminui de forma considerável a ansiedade social e convida os falantes a se engajar em um processo de introspecção e autoconhecimento que pode levar a atitudes menos extremadas.

Preocupações éticas existem em todas as instâncias da escuta atenta, mas, em especial, naquelas em que há uma divergência de poder significativa entre falante e ouvinte e, principalmente, quando a conversa é proposta pelo ouvinte. Assim, este deveria estar consciente de sua responsabilidade na criação de um ambiente de confiança no qual o falante encontra-se vulnerável, explica o psicólogo Alex Gillespie. Para tanto, o ouvinte deve dar ao falante certo controle sobre a conversa, além de efetivamente repetir o ponto de vista daquele que fala. Pode-se garantir isso abordando os outros em ocasiões diversas, concedendo-lhes tempo para ponderar sobre os assuntos e refletir sobre aquilo que disseram.

Desenterrando Narrativas Escondidas

O poder da escuta ativa também está na capacidade de chegar ao que está além das informações acessíveis e superficiais que, muitas vezes, são dadas como respostas automáticas para questionamentos genéricos. A escuta ativa pode desenterrar narrativas escondidas — sobre história e conhecimento institucionais, por exemplo — necessárias para compreender sistemas complexos, uma vez que essas narrativas são responsáveis por criar e organizar identidades.

Compreender as narrativas escondidas das comunidades sub-representadas é um passo importante para resolver vários desafios sistêmicos. Por exemplo, para encontrar soluções para o aumento da emissão de gases de efeito estufa precisamos entender o raciocínio daqueles que se mostram céticos diante das mudanças climáticas, ou que as negam. Quando ouvi os produtores de leite, fui capaz de escrever uma história sobre “homens sem rosto dentro de corredores escuros” em busca de um bode expiatório me valendo daqueles que os produtores viam como os suspeitos de sempre. Alguns dos fazendeiros compartilharam sua raiva e frustração em relação a sua falta de recursos, bem como sua desconfiança para com as autoridades científicas. Eles veem a mudança climática como a mais recente desculpa para responsabilizá-los, uma vez que foram culpados, no passado, por criar mazelas sociais, desde causar câncer até a disseminação de tuberculose bovina.

O tempo é um fator crucial para a escuta atenta. Quando ouvimos alguém, é usual termos uma pergunta a responder ou um assunto específico do qual queremos saber mais. Embora repetidas conversas com diversas pessoas de uma comunidade sejam, com o tempo, mais propensas a extrair narrativas mais ricas e autênticas, esse trabalho intenso nem sempre é prático. Independentemente do tempo que você tenha, seja honesto com as pessoas com quem conversa, compartilhe com elas a pergunta mais ampla que você busca responder e, então, lhes dê oportunidades para elaborar suas respostas.

contextos, incluindo aquele no qual organizações sem fins lucrativos ou empresas treinam suas equipes para compreender seus clientes e consumidores melhor. A Proximity Design é uma empresa social com sede em Myanmar que cria produtos para ajudar produtores rurais a aumentar suas receitas, ensinando a eles técnicas que vão desde escolha de sementes a bombas de água movidas a energia solar. Para entender as necessidades dos clientes, a equipe de vendas faz um treinamento de três semanas que inclui práticas de escuta e dramatização. O programa ressalta habilidades de escuta ativa como repetição, esperar um tempo antes de responder e aprender a se sentir confortável quando outras pessoas compartilham o que sentem. “Nós redesenhamos nosso relacionamento com pequenos produtores ao tratá-los como clientes perspicazes e empreendedores que querem ter escolha e dignidade, e que precisam de foco e atenção”, afirma a fundadora da empresa Debbie Aung Din. “É essencial que as pessoas se sintam ouvidas”.

Mesmo um treinamento curto de escuta ativa pode fazer a diferença. Eu dei um curso para 200 pessoas de diferentes comunidades no BBC Crossing Divides Festival, em Manchester, no início de 2020. Ao final, 73% dos participantes estavam mais confiantes para falar com pessoas com quem não concordavam e 76% sentiam mais empatia por eles. Como a maior parte dos profissionais que trabalha com escuta defende que o curso deve se estender por um determinado período para que os participantes possam ter tempo de refletir e praticar durante as sessões, eu prolonguei a duração do curso de escuta ativa para três semanas quando, neste ano, o ministrei, de forma virtual, para os libaneses.

Os facilitadores que observaram as conversas de grupos menores notaram progressos significativos. Na primeira sessão, os participantes estavam “fazendo comentários”, “interrompendo” e “negligenciando” as técnicas; na última, porém, se mostravam mais dispostos a repetir o que o falante havia dito para saber se tinham entendido corretamente. Eles também se tornaram mais abertos a ouvir pontos de vista distintos. Antes do treinamento, 21% dos participantes afirmavam, de forma veemente, ser capazes de ouvir alguém expressar uma opinião diferente sem o interromper. Depois de três sessões de treinamento, 58% concordavam com essa afirmação.

Quanto tempo demora para que o treinamento de escuta ativa seja eficaz? “É possível treinar alguém em dez minutos? Sim. Um período de dez anos seria melhor? Sem dúvida”, afirma a mediadora de conflitos Catherine Conner. “Quando treinamos as pessoas, vemos isso mais como uma introdução que traz consigo alguma prática inicial.”

Colocar a Abordagem em Prática

Para que a escuta atenta provoque uma mudança sistêmica, as pessoas precisam aprender como praticar essa abordagem de maneira individual e coletiva. Segundo Kluger, “o que é essencial no processo de treinar as pessoas a ouvir atentamente é lhes oferecer a experiência de ser ouvido com atenção”. Refletir sobre essa experiência, incorporando-a, permite que o ouvinte realmente entenda o poder da escuta atenta e possa colocá-la em prática.

O treinamento de escuta atenta pode ser realizado em diversos

A escuta ativa incorpora uma maneira de ser que pode ser vista no dia a dia no contato com as pessoas e que se baseia no reconhecimento fundamental de sua humanidade e dignidade. É uma abordagem que líderes de impacto social podem usar para realizar suas ambições e promover mudanças sistêmicas e uma ferramenta para jornalistas melhor compreenderem comunidades que sempre foram sub-representadas. Praticar a escuta ativa é particularmente valioso em um contexto no qual os cidadãos temem grandes divergências políticas e no qual ideias extremadas tornaram-se dominantes. A abordagem da escuta ativa pode fomentar conversas mais sinceras e autênticas para que consigamos nos entender melhor — um primeiro passo necessário rumo à criação de uma sociedade mais coesa e resiliente. n

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PONTO DE VISTA

A Efetividade do Encontro Importa

Antes de correr para retomar grandes reuniões presenciais, devemos criar estratégias para saber como podemos torná-las mais impactantes.

r andes eventos presenciais foram cancelados em todo o mundo devido a restrições relacionadas à Covid-19. Você sentiu falta deles? Em retrospecto, quão valiosas eram essas reuniões? Durante os lockdowns, se sentiu compelido a participar de encontros online? Se não, por qual motivo? Se você participou, quão claros foram os objetivos dos eventos, e até que ponto efetivamente eles avançaram nas questões com as quais você mais se importa?

A razão para reunir pessoas e organizações em torno de objetivos em comum para promover ação coletiva pode parecer óbvia. Os desafios do nosso tempo clamam por colaboração e reunir as pessoas e fornecer a elas um espaço seguro para exploração e inovação pode concretizar oportunidades incríveis, entusiasmo e ideias, como diz Sarah Zak Borgman, que dirige o Fórum Mundial Skoll sobre empreendedorismo social.

No entanto, muitas vezes esses encontros não se concentram em resultados e as organizações que os planejam não são guiadas, necessariamente, por considerações quanto à eficiência. Chegamos a essa conclusão depois de avaliar encontros diversos sobre desenvolvimento internacional e do setor social dos Estados Unidos. Nossas avaliações debruçaram-se sobre a idealização dos encontros, seu poder e efetividade e a nossa revisão dos objetivos desses compromissos encontrou referências vagas ao estabelecimento de conexões e aprendizagem, ou até

mesmo a ausência de objetivos. Um tema comum em nossas entrevistas é a fadiga com o excesso de reuniões. Um líder em política global de educação queixou-se de ter viajado para três continentes para participar de três conferências diferentes sobre o assunto nas quais encontrou as mesmas pessoas. Outros expressaram frustração sobre oportunidades perdidas e eventos que não geraram nenhuma ação ou desdobramento.

A efetividade dos encontros importa. Reuniões que não conseguem provocar mudanças são perda de tempo e dinheiro, geram emissões de gases de efeito estufa (especialmente quando associadas a viagens aéreas), implicam custos desproporcionalmente assumidos por aqueles com recursos mais escassos e dão a aparência de ação e resultados, embora na verdade não

os entreguem. No pior dos casos, podem fazer causas retrocederem, fragmentar um movimento, afetar sua força e prejudicar a reputação das organizações convocadoras. Seria melhor se seus participantes gastassem dinheiro e tempo com outras coisas.

Depois de mais de dois anos de pandemia, vamos coletivamente buscar um equilíbrio entre aliviar nosso isolamento físico e não voltar à rotina intensa de ficar saltando entre eventos. Sejam presenciais ou online, os encontros vão inevitavelmente desempenhar algum papel – somos, afinal, uma espécie social com desejo inato de se conectar. Mas as organizações devem aproveitar a oportunidade para reavaliar sua efetividade. Sugerimos que a resposta não é se apressar em realizar mais encontros, mas sim dedicar algum tempo para traçar estratégias sobre como fazer encontros melhores e com maior propósito.

Reunir Para Q uê?

Organizações com missões sociais promovem encontros para mobilizar atenção e ação para suas causas. Elas se reúnem porque não podem ser efetivas agindo isoladamente; devem galvanizar a força coletiva, desafiar a sabedoria convencional e buscar, elevar e amplificar soluções compartilhadas para problemas sociais complexos. Assim, reúnem membros diversos da esfera das organizações sem fins lucrativos, negócios, governo, fundações e academia para colaboração intersetorial.

Dito isso, o setor social desenvolveu um gosto por encontros, que muitas vezes são organizados sem a devida avaliação de seu valor estratégico. Para alguns profissionais, a atitude padrão é saltar de encontro a encontro. Apenas um pequeno número de pessoas reserva tempo para refletir sobre o valor e os resultados dessas sessões recorrentes.

Esses encontros têm significados diversos, e isso se comprova nas instituições em que trabalhamos. Para o Grupo de Avaliação Independente (IEG, na sigla em inglês) do Banco Mundial, do qual Rasmus Heltberg faz

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DAS LINHAS DE FRENTE
INSIGHTS
ILUSTRAÇÃO DE CHRIS GASH

parte, trata-se de “reunir atores relevantes para agir coletivamente para enfrentar desafios comuns”. Já para o TCC Group, no qual Jared Raynor trabalha, o conceito remete à “‘espaços’ criados para diversos grupos de interessados influenciarem futuras ações coletivas e individuais orientadas para soluções envolvendo um determinado tópico”. Nós do setor social acolhemos esses espaços para juntos tentarmos criar uma transformação sistêmica. Steve Waddell destaca quatro tipos de mudança social: fazer, forçar, direcionar e cocriar mudanças. Encontros se enquadram na última categoria: participantes se reúnem com a esperança de colaborar e coevoluir a transformação social. A ocasião exige um amplo acordo de que a mudança é necessária, junto com crenças, valores e compromisso compartilhados por uma causa comum ou com a capacidade de criar uma causa comum.

O IEG identifica três tipos de efeitos positivos que encontros podem ter: compreensão compartilhada, soluções compartilhadas e implementação compartilhada. O IEG usou essas categorias para avaliar a efetividade dos encontros e diferenciar ganhos relevantes de progresso modesto. Compreensão compartilhada é quando os atores alcançam uma formulação comum do problema e sua solução – por exemplo, por meio de declarações conjuntas, forças-tarefa e análises. Soluções compartilhadas são geradas quando os atores negociam maneiras comuns de resolver um problema compartilhado – por exemplo, ao alinhar suas estratégias, políticas, ferramentas ou metodologias. Implementação compartilhada ocorre quando os atores implementam um programa em conjunto – por exemplo, ao adotar um novo mecanismo financeiro para custear a ação coletiva.

O Caminho para Maior Eficácia Então, como gerar melhores resultados a partir de nossas reuniões? Práticas de monitoramento e avaliação, por vezes, enviam o sinal errado e devem ser revistas. Organizações frequentemente coletam dados sobre a execução, tais como o número de eventos e de participantes e pesquisas de satisfação. Esses dados podem incentivar

JARED RAYNOR é diretor de avaliação e aprendizagem do TCC Group.

Liderou dezenas de avaliações para fundações, instituições sem fins lucrativos e filantropias corporativas. Seu trabalho de avaliação e aprendizagem foca na efetividade de ideias e estratégias emergentes, incluindo coalizões e redes, advocacy político, desenvolvimento de capacitação, prêmios e competições, responsabilidade do financiador e desenvolvimento de liderança.

o foco no volume de atividades e eventos autogeridos. Em contrapartida, as organizações raramente avaliam os resultados de seus encontros e o quanto eles contribuem para reuniões e eventos conduzidos por outros – ainda que tais dados ajudassem a informar os gestores sobre sua eficiência.

Organizadores eficazes de encontros são conscientes da mudança que procuram fomentar e discutem o objetivo estratégico no início do processo de planejamento de seus compromissos. As organizações podem se tornar mais eficientes nos encontros ao seguir sua liderança e rever sistematicamente seus objetivos na fase de planejamento. E devem ser explícitas sobre a relevância e valor estratégico da questão que as motiva e da razão pela qual acreditam que a conjuntura fora da organização pode abrir uma janela para que a mudança ocorra.

Organizadores eficazes de encontros também estão cientes de que alcançar a transformação social leva tempo. Eles planejam o acompanhamento após o encontro, ao criar um grupo de trabalho interorganizacional para revê-lo e avaliá-lo antes do próximo evento, ao apoiar projetos específicos que emergem como resultado e ao utilizar comunicações estratégicas para atingir públicos que podem alavancar o trabalho que dele emergiu.

As organizações também precisam considerar seu poder convocatório, que reside na credibilidade, relacionamentos e recursos que possuem. Para o Banco Mundial, por exemplo, sua capacidade de produzir dados confiáveis e pesquisas sobre as questões com as quais trabalha é uma fonte desse tipo de poder. Essa autoridade provém ainda do que chamamos de prestígio – a capacidade de atrair as pessoas e organizações certas para seus encontros. A falha em considerar o objetivo e o poder convocatório leva a encontros malsucedidos, que não alcançam resultados significativos.

O Banco Mundial deu passos positivos nesse sentido. A instituição enfrenta imensa demanda para liderar ou dar apoio a encontros sobre inúmeras questões, além das dificuldades em estabelecer prioridades. A resultante multiplicação de iniciativas pode tornar a capacidade e os recursos do Banco

Mundial escassos em muitas agendas. Com início por volta de 2015, a Prática Global de Resiliência Social, Urbana e Rural do Banco Mundial encarou essa situação e adotou uma metodologia objetiva e disciplinada para encontros. A gestão empregou, como linha de negócio, uma abordagem estruturada para as parcerias. E decidiu que o critério principal para a seleção de compromissos seria o vínculo com o trabalho operacional. Para minimizar a proliferação de reuniões, a Prática Global agrupou iniciativas menores em programas guarda-chuva maiores e redirecionou algumas solicitações de encontros para parceiros que poderiam conduzi-los de maneira mais adequada.

Organizações podem sistematizar como gerenciam procedimentos de convocação. Devem considerar a integração de encontros em sistemas de gestão rotineiros para coletar dados básicos e apoiar seu planejamento. Nessa tarefa, têm de complementar os dados sobre a execução do encontro, pesquisas de satisfação do participante e assim por diante, com avaliações de resultados. No mínimo, organizadores de encontros devem ter clareza de propósito e visão realista sobre seu poder de cocriar mudanças. Isso deveria ser senso comum na prática da gestão, daí pode parecer estranho que muitas organizações não o façam. Suspeitamos que muitas pessoas acreditam ingenuamente que, se você apenas organizar uma conferência para discutir um assunto, a mudança vai acontecer. Também nos perguntamos se muitos encontros são de fato motivados pela busca por resultados de transformação social ou se apenas buscam publicidade e sinalizar o domínio da organização sobre determinada questão.

Organizações com propósito social devem esforçar-se para maximizar o valor dos encontros como alavanca da mudança coletiva. Devem, antes de promover reuniões, fazer avaliações para elucidar os resultados pretendidos, refletir sobre seu poder e capacidade de convocação e calcular o retorno sobre o investimento. Só assim podem garantir que estão contribuindo para reuniões que gerem maior impacto e, em última instância, para um setor social mais eficaz e eficiente. n

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RASMUS HELTBERG é economista de desenvolvimento e consultor com experiência em diferentes departamentos do Banco Mundial. Como principal especialista em avaliação no Grupo de Avaliação Independente (IEG, na sigla em inglês) do Banco Mundial, liderou avaliações importantes sobre prioridades estratégicas do Banco Mundial, bem como sobre iniciativas para reformular sistemas de avaliação.

PONTO DE VISTA

Tratando das Crises do Clima e de Cuidados

Na luta contra as mudanças climáticas, devemos garantir que as soluções não sobrecarreguem indevidamente mulheres e meninas.

66 a sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW, na sigla em inglês) das Nações Unidas, cujo tema foi “Mudanças Climáticas, Meio Ambiente, Redução do Risco de Desastres”, terminou em março deste ano. O encontro reconheceu o dano desproporcional que mulheres e meninas vão sofrer a partir das mudanças no clima, bem como o papel central que desempenharão na conquista do desenvolvimento sustentável.

Embora as declarações pronunciadas sejam verdadeiras e importantes, um novo relatório da Oxfam argumenta que, se nessa agenda não houver foco central no trabalho de cuidado, os esforços voltados para a relação entre mudanças climáticas e gênero podem acabar aprofundando as desigualdades nesse âmbito, em vez de enfrentá-las.

“Trabalho de cuidado” se refere ao trabalho cotidiano e geracional que os seres humanos empreendem para renovar e sustentar a vida, as sociedades e os ambientes. Inclui trabalho remunerado e não remunerado no atendimento direto às pessoas (por exemplo, banho, alimentação e apoio ao bem-estar psicológico), assim como as atividades indiretas, que fornecem as condições necessárias para a prestação do cuidado (cozinhar, limpar, fazer compras, entre outras). O trabalho de cuidado é em grande parte invisível quando comparado com os aspectos “produtivos” do trabalho, em geral monetizáveis, que tendem a dominar as políticas públicas. Há poucas fronteiras entre ambos, e as mesmas pessoas se envolvem nos dois.

O cuidado tende a ser realizado de forma desproporcional por mulheres e meninas em todo o mundo. Dados de pesquisas indicam que elas costumam trabalhar mais horas totais do que os homens por causa da responsabilidade adicional que assumem com tarefas desse tipo. E como o trabalho de cuidado é desvalorizado, as mulheres veem limitadas suas chances de alcançar igualdade econômica e política. Falta-lhes tempo para se envolver em geração de renda ou em atividades como educação, participação cívica e lazer.

As privações que resultam dessas questões constituem a “crise de cuidados”, segundo pesquisadores, organizações feministas e um número crescente de instituições que inclui Nações Unidas e o Banco Mundial. Embora algumas evidências indiquem que a atual distribuição desigual do trabalho de cuidado dentro das sociedades e famílias esteja

melhorando, as mudanças climáticas devem agravar a crise existente.

Esforços de Mitigação e Adaptação

Os impactos das mudanças climáticas na crise de cuidados vão se manifestar por três vias: aumento da necessidade por atividades de cuidado, maior dificuldade na prestação desse trabalho e agravamento das injustiças que já existem em torno da responsabilidade desigual de trabalhadores de cuidado. Considere os cenários que explicam essas vias: com eventos climáticos extremos mais frequentes, crescem ferimentos, doenças, desnutrição e sofrimento psíquico, o que ampliará a demanda por atividades de cuidado; cuidadores que enfrentarem fome, doenças, dor física, ou estresse psicológico, serão menos capazes de exercer seu ofício e terão dificuldade caso a infraestrutura que sustenta esse trabalho (por exemplo, escolas, hospitais, água e saneamento) for afetada por eventos climáticos mais frequentes; por fim, caso a crise do clima implique a necessidade de percorrer distâncias mais longas para acessar água e combustível, por exemplo, haverá o agravamento do risco de violência de gênero com mulheres se expondo a mais riscos de abuso.

O papel das mudanças climáticas no agravamento da crise de cuidados pode ser mais agudo entre as cerca de 2 bilhões de pessoas que vivem em países de baixa renda e estão envolvidas com a agricultura de subsistência. Com menos acesso à infraestrutura de prestação de cuidados, essas populações também devem assumir tarefas adicionais na forma de cuidados ambientais – por exemplo, cuidar de hortas comunitárias ou manter os recursos florestais. Os impactos nocivos da mudança climática tornam as tarefas de cuidado mais difíceis.

Enquanto a crise do clima vai seguir agravando a de cuidados, os esforços para enfrentar as mudanças climáticas podem ter, paradoxalmente,

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ILUSTRAÇÃO DE CHRIS GASH

o mesmo efeito. Os esforços de mitigação e adaptação que alteram o acesso aos recursos ou exigem mudanças de comportamento acabam por influenciar a prestação de trabalho de cuidados e podem aprofundar a desigualdade de gênero.

Da mesma forma, muitas iniciativas climáticas envolvem programas de educação ou conscientização que demandam dedicação intensiva e podem sobrecarregar ainda mais aqueles com maiores responsabilidades de cuidado. Até mesmo programas de empoderamento econômico dirigidos às mulheres têm ignorado as normas sociais que determinam a responsabilidade pelo trabalho de cuidado, o que resulta em mais demandas no tempo das mulheres.

Esforços para enfrentar as mudanças climáticas que ignorarem as dinâmicas de cuidados estão fadados a sofrer um de dois destinos. Em situações em que as inovações requererem mudanças de comportamento ou a adoção de novas tecnologias, estas simplesmente serão ignoradas se significarem carga adicional no tempo das pessoas. Por outro lado, se tais intervenções forem inevitáveis, evidências passadas sugerem que, frequentemente, a situação das mulheres fica pior do que era antes da intervenção.

A E strutura de 5R Não podemos adiar ou diminuir nossas ambições na luta global contra as mudanças no clima e cabe aos países industrializados, que carregam a maior responsabilidade pelas mudanças climáticas e que têm maior capacidade para enfrentá-las, esforços agressivos de mitigação e de financiamento climático para apoiar os países mais pobres e vulneráveis.

Esses esforços, no entanto, devem tornar-se sensíveis à forma como o trabalho de cuidado é feito atualmente em diferentes sociedades. É preciso conceber iniciativas de clima que abordem as necessidades de adaptação e de mitigação e enfrentem as forças sistêmicas que modelam a distribuição desigual do trabalho de cuidado. Infelizmente, é improvável alcançar esse duplo objetivo se apenas ajustarmos as iniciativas climáticas para aparentar

serem “responsivas às questões de gênero”. Os fatores estruturais que moldam a distribuição do trabalho de cuidado são altamente específicos de cada contexto, enraizados em diferentes conjuntos de normas e relações de gênero, bem como na interação com questões de classe, raça, etnia e orientação sexual.

Acrescenta-se a esse complicado quadro a cautela que se deve ter a respeito de como são caracterizadas as injustiças em torno do cuidado. Embora seja verdade que a responsabilidade desproporcional das mulheres pelo trabalho de cuidado impulsiona desigualdades estruturais de gênero, o engajamento nesse tipo de ofício muitas vezes se revela uma importante fonte de significado e status social.

Iniciativas climáticas devem avaliar de que forma as responsabilidades moldam os meios de subsistência e o bem-estar individual. Esse requisito demanda a centralização das vozes e perspectivas dos cuidadores na concepção, implementação e avaliação das ações relacionadas ao clima. Para garantir que suas necessidades sejam consideradas, recomendamos a estrutura de 5Rs que se origina no trabalho da cientista social Diane Elson e do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas: 1) reconhecer a importância do trabalho de cuidado na sociedade e as injustiças associadas com a responsabilidade desproporcional das mulheres para realizá-lo; 2) reduzir a carga geral dos cuidados, de tal forma que as mulheres tenham mais tempo para se dedicar a outras prioridades; 3) redistribuir a responsabilidade pelo trabalho de cuidado, seja alterando as normas que atribuem as responsabilidades por interseccionalidade de gênero para o trabalho de cuidado (ou seja, normalizá-lo como trabalho que homens e meninos realizam em igualdade de condições), seja coletivizando o trabalho de cuidado por meio, por exemplo, do investimento do governo em infraestrutura de cuidado, como escolas, assistência à saúde, água e saneamento; 4) proporcionar representação aos cuidadores – por meio de organizações políticas e participação facilitada – para que possam desenvolver programas e políticas que afetam suas vidas; e 5) recompensar cuidadores pelo trabalho que realizam pela remuneração direta (uma abordagem

com alguma controvérsia) ou por meio da provisão de direitos básicos.

No contexto das mudanças climáticas, a estrutura de 5R sugere três áreas para priorização estratégica. Primeiro, o apoio a investimentos em tecnologia e infraestrutura identificados pelos cuidadores como necessários para aliviar as crises gêmeas do clima e do cuidado – por exemplo, infraestrutura de energia e água ou tecnologias agrícolas que economizam mão de obra.

Segundo, investir em infraestrutura social de longo prazo e mecanismos de apoio, como garantias de emprego, pensões, recursos financeiros, programas de transferência de ativos e microsseguros. Entre as populações de baixa renda em países menos industrializados, tais mecanismos tendem a ser aplicados apenas limitadamente e em tempos de crise aguda. Dada a crescente complexidade e dado o leque interligado de riscos que pessoas pobres e vulneráveis enfrentam, abordagens estreitas e limitadas serão insuficientes para construir a resiliência dos mais pobres e marginalizados e aliviar os complexos desafios com que os cuidadores se defrontam.

Terceiro, buscar esforços que unam as iniciativas climáticas àquelas que compartilhem o trabalho de cuidado de forma mais igualitária em nível doméstico. Por exemplo, trabalhar para mudar as normas de gênero (de tal forma que todas as tarefas sejam vistas como igualmente aceitáveis para homens e mulheres), como parte da programação climática.

Alguns leitores podem ficar surpresos com o fato de que a agenda climática dominante seja tão indiferente às questões relativas ao trabalho de cuidado e à desigualdade. É reconhecidamente desafiador combinar os esforços de mitigação e adaptação do clima com a atenção à dinâmica do cuidado. Mas o fracasso nessa tarefa pode significar que os esforços de estabilização do clima sensíveis às questões de gênero aprofundem esse tipo de desigualdade em vez de corrigi-la, causando cada vez mais danos a mulheres e meninas em todo o mundo. E, tão importante quanto, tal fracasso poderia, em última análise, minar os próprios esforços relacionados às mudanças climáticas. n

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JAMES MORRISSEY é pesquisador sênior e trabalha com temas como energia, clima e indústrias extrativas na Oxfam America. SHERILYN MACGREGOR é professora de política ambiental na Manchester University. SEEMA ARORA-JONSSON é professora de desenvolvimento rural na Swedish University of Agricultural Science.

PESQUISA

A Dança entre Empresas B e Incumbentes

medida que empresas, especialmente as de capital aberto, adotam metas ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês), os mercados começam a precificar a adesão de corporações a valores diferentes dos relacionados com o capitalismo rígido de shareholder

Um novo artigo científico tem como foco empresas que estão no centro de um movimento que visa criar companhias legalmente comprometidas com a defesa dos valores ESG. Conhecidas como Empresas B, elas alcançam uma certificação formal do B Lab, organização sem fins lucrativos que mostra seu compromisso em promover o bem público para uma gama mais ampla de stakeholders

Suntae Kim, professor assistente de gestão e organização do Boston College, e Todd Schifeling, professor assistente de gestão da Fox School of Business da Temple University, ambas nos Estados Unidos, –analisaram os efeitos mútuos entre Empresas B e empresas incumbentes. Utilizando bancos de dados de corporações, eles calcularam demissões em massa, desigualdade de renda entre executivos e trabalhadores de salário médio, bem como recompras de ações – todas evidências de um clássico comportamento de capitalismo industrial de shareholders. Ao fazer a comparação com o catálogo

de Empresas B do B Lab, eles descobriram que, quanto mais empresas em uma indústria exibem esses comportamentos, maior a prevalência de formação de Empresas B no setor.

Os professores mensuraram também a adesão pública das corporações à responsabilidade social empresarial (RSE), examinando marcas comerciais, reputação pública de RSE e aquisições de empresas com responsabilidade RSE.

Os dados mostraram que uma maior atividade de RSE em uma indústria aumenta a formação de Empresas B. Empresas orientadas pelo lucro aparentemente reagiam ao nível de interesse do mercado pela RSE, demonstrando publicamente sua fidelidade à ideia, e durante o mesmo período empresas socialmente atentas se movimentavam para

codificar sua própria RSE e buscar a rigorosa certificação de Empresa B.

Os autores constataram que as Empresas B mencionaram duas razões principais para conseguir a certificação. Primeiro, “o desejo de ir contra essa maximização do valor dado ao acionista por corporações hipercapitalistas, insensíveis, e ‘mudar o mundo’”, afirma Kim.. Segundo, empresas orientadas pelo lucro usam a sustentabilidade como marketing, as Empresas B sentiram que eram “negócios sustentáveis originais” e queriam ser reconhecidas por seus esforços de longo prazo, diz ele.

Kim se interessou em estudar as Empresas B nos primórdios do movimento, em torno de 2010. “As Empresas B estavam surgindo não só contra corporações que priorizam os shareholders, mas também contra aquelas que abraçavam a sustentabilidade e publicidade, desenvolvendo muitas atividades relacionadas com RSE”, diz ele.

O esforço das Empresas B para se diferenciar foi uma das descobertas mais surpreendentes da pesquisa, afirma Kim. Também inesperada foi a maneira como a onda de Empresas B mudou ao longo do tempo, mantendo “um tênue equilíbrio entre a expansão do movimento e a preservação do seu ethos original”. Movimentos alternativos anteriores, como o do comércio justo ou da agricultura orgânica, focaram na expansão, o que possibilitou a participação de players como Starbucks ou Nestlé. Como resultado, “seus padrões têm sido diluídos e seus movimentos foram cooptados pelas incumbentes”, afirma Kim. Os adeptos das Empresas B, por outro lado, tomaram um caminho intermediário, expandindo aos poucos suas fileiras sem enfraquecer suas certificações.

Essas descobertas trazem amplas implicações para a teoria industrial. Os pesquisadores concluem que a “contramobilização das incumbentes não só atenua ameaças ao seu domínio em curto prazo, como estimula a evolução de movimentos desafiadores, semeando desafios revitalizadores em longo prazo. Portanto, a contestação segue, não apesar da resistência das incumbentes, mas exatamente por causa dela”.

Corporações comuns e Empresas B continuam a lutar pela dominância do rótulo ESG, uma batalha que não vai acabar até que os capitalistas de shareholders alterem suas estruturas organizacionais inteiramente – o que os tornaria mais alinhados com o capitalismo de stakeholders, concluem.

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ILUSTRAÇÃO DE ADAM MCCAULEY
NEGÓCIOS
CHANA R. SCHOENBERGER é jornalista e vive na cidade de Nova York. Escreve sobre negócios, finanças e pesquisa acadêmica. Ela pode ser encontrada no Twitter: @cschoenberger.

“O caso das Empresas B levanta a possibilidade de que a adesão meramente aparente das corporações à crítica pode revigorar a oposição, piorando a crise no longo prazo”, escrevem os pesquisadores. “Para evitar maior perigo, líderes corporativos teriam que acolher as críticas, alterando não apenas a fachada, mas a substância de suas operações.”

A importância do artigo está na constatação de que os esforços das empresas de shareholders para parecerem sustentavelmente atualizadas tornou as empresas de stakeholders ainda mais determinadas em fortalecer seu movimento contra essa forma de governança, afirma Michael Lounsbury, professor da Alberta University.

“O artigo mostra que, se tivermos uma visão mais ampla e institucional do movimento RSE, veremos como os esforços das corporações para responder a esses princípios de maneira meramente simbólica catalisam novos movimentos de reforma (como o movimento de Empresas B), o que pode, em conjunto, levar a uma mudança mais substantiva do sistema em favor do capitalismo de stakeholders”, diz Lounsbury.

Segundo ele, a pesquisa também aponta para uma nova descoberta sobre como as organizações reagem a desafios externos: “O artigo sugere que, quando uma onda origina outra, a trajetória de mudança institucional também pode mudar de evolutiva para mais revolucionária”. n

Suntae Kim e Todd Schifeling, “Good Corp, Bad Corp, and the Rise of B Corps: How Market Incumbents’ Diverse Responses Reinvigorate Challengers”, Administrative Science Quarterly, 2022.

Doação de Tempo x Doação de Dinheiro

or que os doadores optam por apoiar organizações sem fins lucrativos como voluntários em vez de doar dinheiro, mesmo quando essas organizações prefeririam receber valores monetários? E como as organizações sem fins lucrativos podem incentivá-los a alterar essa postura e doar dinheiro?

Em um novo artigo, John Costello, professor assistente de marketing do Mendoza College of Business da Notre Dame University, e Selin Malkoc, professora associada de marketing do Fisher College of Business da Ohio State University, examinam a base psicológica para essa preferência através de uma série de sete estudos para testar potenciais razões pelas quais doadores escolhem doar dinheiro ou tempo. Na raiz da questão está a percepção sobre controle: doadores gostam de ter controle sobre sua doação e se veem com maior possibilidade de fiscalização por meio da doação de seu tempo. “Entendemos que esses doadores em potencial sentem maior controle pessoal sobre a doação de seu tempo (vs. dinheiro), o que leva a um maior interesse na doação e na quantidade da doação”, propõem os pesquisadores.

Uma vez que os doadores

sintam que podem estar perdendo o controle sobre como o seu dinheiro seria usado, eles muitas vezes decidem substituir por tempo de voluntariado. Isso permite que apoiem uma organização sem fins lucrativos ao mesmo tempo que têm acesso direto ao que a entidade beneficente faz com os recursos doados, bem como dirigem suas próprias atividades.

“Nossos resultados mostram que, quando o senso de controle dos doadores está ameaçado, as doações de tempo podem ser usadas como estratégia de compensação, e que simples intervenções linguísticas podem aumentar a percepção de controle e as doações em dinheiro, habitualmente”, afirmam.

Malkoc e Costello indagaram: “É possível que estejamos mais propensos a doar tempo por ser algo tão fundamental de quem somos?”.

O oferecimento de tarefas voluntárias é uma estratégia de marketing que serve como um primeiro passo em direção a uma maior participação. “Na maior parte das vezes é uma maneira de envolver as pessoas para que possam doar dinheiro”, observa Malkoc.

O fator crítico é como as pessoas se comportam quando confrontadas com a escolha entre doar dinheiro ou tempo para apoiar uma causa. “Quando penso em doar dinheiro, eu literalmente imagino estar me separando dele”, afirma Malkoc. O inverso é verdade com o voluntariado: “Quando dou tempo, não vou perder o controle sobre esse tempo”.

Costello e Malkoc fizeram 40 estudos durante sua

investigação sobre o fenômeno, que revelaram consistentemente o mesmo efeito. “Nós fazemos muita pesquisa e é raro encontrar algo tão robusto”, diz Malkoc, para quem esse foi o aspecto mais surpreendente do artigo.

Os resultados corroboram a necessidade humana inata de exercer controle sobre nosso entorno. Quando optamos por fazer uma doação, preferimos doar o recurso que nos permite manter nosso senso de controle.

O que as organizações sem fins lucrativos que preferem doações financeiras podem fazer a respeito dessas descobertas? Os pesquisadores testaram diferentes intervenções. Preparar alguém para fazer doação em dinheiro requer “destacar a separação entre a minha pessoa e meu recurso”, observa Malkoc. A palavra que funcionou melhor era “gastar”. Os pesquisadores constataram: “Se você pedir às pessoas para doar dinheiro e doar tempo, elas estarão dispostas a doar tempo. Se você lhes pedir para gastar dinheiro ou gastar um tempo com caridade, elas vão gastar dinheiro. Embora não pareça importante, a escolha das palavras possibilita que o ouvinte mude ou não sua percepção.

“Quando as pessoas falam sobre doar, na verdade estão falando sobre uma troca – controle, outras pessoas vão decidir o que é feito com a doação. Quando pensam em gastar, elas somente pensam em si mesmas”, finaliza Malkoc. n

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John P. Costello e Selin A. Malkoc, “Why Are Donors More Generous with Time Than Money? The Role of Perceived Control over Donations on Charitable Giving”, Journal of Consumer Research, 2022.
FILANTROPIA E FINANCIAMENTO

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

O Impacto de Renda para a Primeira Infância

os últimos anos, um conjunto crescente de pesquisas comportamentais e das ciências sociais tem enfatizado a importância de cuidados e de educação com a primeira infância para o bem-estar da sociedade e da família.

Um estudo extenso, “Os Primeiros Anos do Bebê”, é uma colaboração interdisciplinar em curso entre pesquisadores de seis instituições, concebido para “avaliar o impacto da redução da pobreza na vida familiar e no desenvolvimento cognitivo, emocional e cerebral de bebês e crianças pequenas”. Descobertas iniciais já confirmaram que algumas políticas voltadas para crianças pequenas podem apresentar profundos efeitos positivos de longo prazo.

Um novo artigo de Andrew Barr, professor de economia da Texas A&M University, Jonathan Eggleston, economista no US Census Bureau, e Alexander A. Smith, professor de economia

na West Point US Military Academy, se soma a esse conjunto de pesquisas. O estudo revela que o primeiro ano de vida de uma criança é um momento crítico no qual liquidez financeira adicional, mesmo uma pequena transferência de dinheiro, para pais de primeira viagem e de baixa renda pode fazer uma enorme diferença para o bem-estar de seus filhos em longo prazo.

Os pesquisadores examinaram os critérios de qualificação para um programa de crédito fiscal para trabalhadores com rendas baixas a médias, com base em uma amostra de famílias de baixa renda cujos filhos nasceram em um recorte temporal até 1º de janeiro. Com foco no período 1993 a 1998 e rastreando dois grupos – aqueles elegíveis para receber benefícios em dinheiro no primeiro ano de vida da criança e aqueles com filhos nascidos depois de 1º de janeiro (tornando-os elegíveis só depois de seu primeiro

aniversário) –, o estudo constatou aumentos nos rendimentos dos pais e evidências sugestivas de maior estabilidade conjugal, o que provavelmente contribuiu para melhores resultados para as crianças do primeiro grupo. Com base em dados fiscais, foi possível acompanhá-las até a idade adulta e estimar os efeitos de recursos extras no primeiro ano. Os dados mostraram um aumento de 1% a 2% nos rendimentos das crianças cujas famílias contaram com transferência de renda no primeiro ano de vida, mais do que compensando o gasto governamental.

“O volume da transferência em termos de valores não é enorme, mas em relação aos ganhos médios das famílias que estudamos é significativo”, afirma Andrew Barr. “E vem em um momento de estresse elevado, após o nascimento de uma criança, quando os ganhos podem ser menores.”

O benefício recebido pelas famílias equivaleu a cerca de US$ 1.300,00 ou 10% de sua renda. Quando famílias de menor renda têm contratempos, como despesas médicas ou desemprego repentino, até mesmo um pequeno benefício reduz o estresse financeiro e fornece apoio adicional que pode melhorar os resultados das crianças mais tarde na vida, segundo Barr e seus colegas.

“Embora um número crescente de estudos causais tenha vinculado aumentos de renda a melhorias na saúde, no comportamento e no sucesso escolar infantil, este é um dos primeiros a investigar o efeito dos aumentos de renda familiar no primeiro ano de vida”, diz Greg

DANIELA BLEI é historiadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Seus artigos podem ser encontrados em daniela-blei. com/writing. Ela twitta esporadicamente: @tothelastpage.

J. Duncan, economista e professor emérito da School of Education da California University, em Irvine. “Sabemos que o desenvolvimento é particularmente sensível a adversidades no início da vida. Este estudo mostra que atenuar as adversidades econômicas nos primeiros anos parece acarretar vantagens mais tarde.”

Em paralelo aos dados do Censo dos Estados Unidos, os pesquisadores examinaram dados administrativos de escolaridade da Carolina do Norte para entender os efeitos de transferência de renda em médio prazo. Essa fonte independente de dados constatou que as notas, suspensões e índices de conclusão de escolaridade eram melhores para alunos cujas famílias receberam o benefício. Essas informações ajudaram a explicar a magnitude dos efeitos de aumento de renda constatados mais tarde na vida.

A investigação sugere que os benefícios fiscais para famílias com filhos devem estar disponíveis de maneira imediata, em vez de estruturados de acordo com o ano fiscal. “Há evidência convincente de que esse período inicial – a transição para a paternidade – de fato importa”, afirma Barr. “Nós ainda poderíamos fazer outras pesquisas para estudar os efeitos de benefícios potenciais para o segundo ou o terceiro filho, ou se é na transição para a paternidade que ocorre maior impacto.” Famílias de maior renda também recebem benefícios fiscais, explica Barr, geralmente através de isenção tributária de dependentes, mas muitas vezes elas apresentam menos restrições por liquidez financeira, o que significa que mudanças semelhantes em

Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022 65 ILUSTRAÇÃO DE ADAM M c CAULEY

longo prazo não são tão perceptíveis, se é que ocorrem.

Os pesquisadores também descobriram que o impacto do benefício no primeiro ano de vida foi ainda mais evidente para bebês do sexo masculino. Alguns estudos indicaram que o ambiente de primeira infância exerce maior influência sobre os meninos, eles comentam, mas outros fatores, como idade com que se casam e como declaram imposto de renda, podem explicar as diferenças de gênero. Para fornecer evidências conclusivas, futuras pesquisas serão necessárias, conclui Barr. n

se revelaram difíceis devido à longa história de opressão e marginalização desses povos.

Novas Parcerias entre Empresas e Comunidades

POR DANIELA BLEI ez anos atrás, Cristina B. Gibson participou de um programa da University of Western Australia, na qual era membro do corpo docente. Concebido para promover a colaboração entre acadêmicos e organizações, o projeto viabilizou visitas de professores a algumas das maiores empresas do país. Em uma delas, Gibson ouviu um diretor de relações corporativas de uma mineradora contar os desafios que enfrentou no trabalho com parceiros indígenas na comunidade, que também eram proprietários de terras. A comunicação e o estabelecimento de relações com essa população

A conversa inspirou a ambiciosa pesquisa de impacto social realizada por Gibson, agora professora de gestão na Grziadio School of Business da Pepperdine University. Em um novo estudo, ela apresenta um modelo para desenvolver e sustentar o benefício mútuo nas parcerias corporações-comunidade. Em todo o mundo, empresas investem bilhões de dólares nas comunidades nas quais mantêm seus negócios, “mas muitas vezes é de uma única vez ou com total supervisão do doador”, analisa Gibson. “E os fundos falham em fazer face às prioridades e necessidades da comunidade”, diz. Em alguns casos, o investimento corporativo faz mais mal do que bem. Para evitar esse risco, ela criou um programa no qual, para estabelecer laços duradouros com parceiros locais, os integrantes das empresas deveriam passar de seis semanas a três meses nas comunidades.

Para Alan Meyer, professor emérito de gestão no Lundquist College of Business da Oregon University, Gibson traz à tona uma pergunta importante ao indagar como a implementação do investimento corporativo nas comunidades contribui para o mútuo desenvolvimento de corporações e comunidades. “A metodologia e a abordagem do modelo de Gibson desvendaram o processo recíproco de mudança social”, diz.

Gibson começou o trabalho com um grupo de pequenas empresas e recrutou uma organização sem fins lucrativos para fazer a ponte entre comunidades

indígenas com necessidades específicas e corporações australianas com a expertise necessária para apoiá-las. “O que diferencia este programa dos outros é que são os membros da comunidade que identificam as prioridades e não um grupo de especialistas externos que vêm para dizer às comunidades como desenvolvê-las”, avalia a pesquisadora. Em pouco tempo, Gibson reuniu um consórcio de 11 das maiores empresas australianas, todas procurando alcançar maior impacto social e retornos sustentados em seus investimentos em comunidades.

Com métodos qualitativos – revisão de entrevistas, observações, narrativas e diários de reflexão –, Gibson estudou o que estava ocorrendo na comunidade. Ela também monitorou o comportamento dos participantes da empresa e acompanhou o que transpareceu dentro da corporação de forma mais ampla.

“Voluntários das empresas tornaram-se membros da comunidade”, relata Gibson. “As empresas continuaram a pagar seus salários enquanto estavam trabalhando na comunidade, socializando com seus membros, fazendo refeições juntos, participando de eventos culturais e esportivos e realizando atividades habituais que as pessoas fazem em suas vizinhanças. Essa abordagem simbiótica estimulou mudanças comportamentais que acarretaram impactos de longo prazo para empresas e comunidades.

Após analisar os dados, Gibson desenvolveu uma teoria de codesenvolvimento bem-sucedido, em que processos relacionais, como “tomada de

perspectiva mútua, respeito recíproco e defesa comunitária”, ocasionaram impactos positivos em ambos os lados. Parceiros indígenas se beneficiaram de dignidade, proatividade, planejamento estratégico e capacitação. Parceiros corporativos, por sua vez, melhoraram suas competências interculturais, comportamento estratégico e insights sobre onde as operações devem ser localizadas e como devem progredir. A profundidade e a longevidade do desenvolvimento surpreenderam as empresas, os parceiros indígenas e até mesmo a própria Gibson.

O projeto resultou em novos cuidados com idosos e instalações para jovens, programas de alfabetização, campanhas nutricionais e de combate ao abuso de substâncias nocivas, bem como aumento nas taxas de conclusão do ensino médio e redução da criminalidade nas comunidades. No lado das empresas, houve melhoria no desempenho dos funcionários, reforço no compromisso com a organização e benefícios reputacionais. O modelo de Gibson sugere que a boa vontade de se envolver com a comunidade e passar um tempo no local para entender suas prioridades e conceber iniciativas conjuntas podem criar um impacto profundo e duradouro.

“O respeito de Gibson por seus interlocutores indígenas –assim como pelas corporações por ela estudadas – é exemplar e inspirador”, finaliza Meyer. “Pesquisas como essa fazem do mundo um lugar melhor.” n Cristina B. Gibson, “Investing in Communities: Forging New Ground in Corporate Community Co-Development through Relational and Psychological Pathways”, Academy of Management Journal, 2022.

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Andrew Barr, Jonathan Eggleston e Alexander A. Smith, “Investing in Infants: The Lasting Effects of Cash Transfers to New Families”, The Quarterly Journal of Economics, 2022

Chegar a Zero

Os autores Michael Lenox e Rebecca Duff pedem por inovações disruptivas e reconfiguração radical das indústrias para descarbonizar o planeta até 2050.

ão há melhor maneira para tocar sua criança interior e ao mesmo tempo entender a crise climática global do que visitar uma fábrica de cimento. Gigantes em escala, opressivamente quentes e seussianas (referência ao autor americano Dr. Seuss) em complexidade, as fábricas de cimeno são a apoteose da era industrial – já que tornaram possíveis todos os trabalhos monumentais da civilização moderna, dos arranha-céus em Dubai às pontes suspensas na China.

A produção de cimento é também um dos principais impulsionadores da mudança climática, responsável por 7% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2). Se essa indústria fosse uma nação, apenas a China e os Estados Unidos poderiam emitir mais. Para resolver este problema, precisamos encontrar uma maneira de produzir o “cimento verde", dizem os professores Michael Lenox e Rebecca Duff, da University of Virginia Darden School of Business. Esta é apenas uma solução para centenas de desafios técnicos examinados no mais novo livro deles, The Decarbonization Imperative: Transforming the Global Economy by 2050 (O Imperativo da Descarbonização: Transformando a economia global até 2050, em tradução livre), o qual apresenta uma abordagem setorial para “fornecer uma visão ampla da disrupção tecnológica (...) necessária para descarbonizar a economia global até 2050” – a data, amplamente aceita, na qual a sociedade terá que alcançar emissões zero para evitar uma catástrofe.

Um fato curioso que os leitores tomarão conhecimento em The Decarbonization Imperative é que a maior parte das emissões do setor de cimento não vem da enorme potência térmica utilizada para produzir o

material, mas de uma reação química no processo que libera CO2. Eu já conhecia os problemas com cimento quando tive a oportunidade de visitar uma fábrica em Pueblo, no Colorado (EUA), como parte de um conselho estadual trabalhando para resolver a poluição por carbono. Eu queria entender as complexidades da produção para fazer políticas melhores nesse sentido. Depois de uma apresentação de slides introdutória, perguntei: "Você está me dizendo que a maneira como se faz cimento é colocar calcário, argila e areia em um balde e cozinhá-lo? A resposta curta: “Sim”.

A fábrica que visitei era basicamente um gigante forno propositadamente construído ao lado de uma pedreira de calcário. Há algo mais irônico? Esse é o problema climático em poucas palavras: estamos ainda administrando uma sociedade que funciona

com a queima e cozimento de coisas que cortamos ou desenterramos.

Tentar enquadrar esse círculo – descobrindo como o mundo pode modificar rapidamente 200 anos de economia presa ao carbono – é o trabalho que Lenox e Duff se propuseram realizar. Eles o fazem diligentemente, não deixando pedra sobre pedra. O livro é um verdadeiro manual técnico que avalia os cinco grandes setores (energia, transportes, indústrias – bens de capital como o aeroespaço, defesa e engenharia –, construção e agricultura) que precisam ser descarbonizados, propondo múltiplas soluções para cada setor.

Na análise sobre o arroto do gado – um dos mais intrigantes desafios climáticos decorrentes da indústria bovina e de laticínios –, por exemplo, os autores propõem uma solução engenhosa que utiliza tecnologia avançada na produção. “Em 2009, o sequenciamento do genoma do gado doméstico forneceu aos cientistas e agricultores a oportunidade para identificar o rebanho mais produtivo em carne e leite para reproduzi-lo com base nas características desejadas”, observam. “Uma dessas características poderia ser a produção de baixo metano.” Modificações genéticas que produzem gado de baixo metano é apenas uma resposta potencial de muitas outras para a indústria da carne e de laticínios.

Os autores evitam cair na armadilha de identificar erroneamente e exagerar correções climáticas por serem movidos pela esperança, não pelo fato. A seção deles sobre carbono no solo abrange todas as abordagens convencionais que chamaram muita atenção nas últimas décadas – muitas das quais, ao que parece, sem base científica. Os autores concluem, de forma justa, que “a descarbonização da agricultura é improvável até 2050”.

Eles são igualmente pragmáticos sobre veículos elétricos. “Parece que a disrupção sustentável do transporte é iminente”, observam. “A grande questão pode não ser se, mas em quanto tempo, essa interrupção ocorrerá. O tempo é a essência. Mesmo que todas as vendas de veículos novos no mundo fossem de elétricos, ainda levaria uma década, no

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LIVROS

mínimo, para ocorrer a troca das frotas de veículos existentes e a total descarbonização do transporte.” Eu tenho percebido esta discrepância no tempo – entre tomar uma urgente ação necessária e o tempo que leva para implementar a mudança – no meu próprio trabalho como elaborador de políticas climáticas no Colorado. Lutamos por meio de ações judiciais, tortuosos encontros públicos e massivos atrasos burocráticos para aprovar uma política que exigiria que apenas 6% das vendas de veículos fossem de elétricos – algo quase nada revolucionário.

Saber quando uma tecnologia começa a reduzir as emissões pode ser uma das mais

ções políticas), esta observação desconsidera o fato de que nossa economia de carbono foi intensionalmente construída ao longo de décadas de ganho governamental pela indústria de combustíveis fósseis, ofuscação da ciência e do legado de subsídios. Em tal ambiente, uma melhor tecnologia pode não ser realmente adotada. Há uma razão para a caminhonete Ford Ranger de hoje fazer a mesma quilometragem de 25 anos atrás – e não é porque uma versão mais eficiente não seja desejável.

A verdade sobre a crise climática é que, com poucas exceções, sempre soubemos como resolver tecnicamente o problema.

Nossa economia de carbono foi intencionalmente construída ao longo de décadas de ganho governamental pela indústria de combustíveis fósseis, ofuscação da ciência e do legado de subsídios.

importantes questões na formulação de políticas climáticas. Ajudar a encontrar uma resposta tem sido o papel desempenhado por modeladores climáticos como os da organização sem fins lucrativos Climate Interactive, cujas simulações mostram que pequenos módulos de reatores nucleares, os favoritos de Bill Gates e mencionados concisamente como uma tecnologia promissora no livro, não vão começar a reduzir as emissões até 2053. Isso indica que a próxima geração de armas nucleares é muito menos importante (e possivelmente irrelevante) quando comparada com as tecnologias que irão parar a queima de combustível fóssil hoje.

O conhecimento dos autores de empreendedorismo e inovação influencia a análise deles. No início do livro, eles observam que “o fracasso na adoção de tecnologia limpa (...) tipicamente reflete uma realidade de mercado, que a tecnologia limpa não é tão desejável como tecnologias alternativas nas dimensões existentes de interesse”. Ainda que os autores não estejam sugerindo remotamente que a inovação irá nos salvar (eles articulam firmemente a necessidade de solu-

Também geralmente entendemos o conjunto de políticas necessárias para implementar essas tecnologias. Este livro é uma visão geral magistral dessas correções e parte de uma crescente e necessária literatura recente que inclui publicações da organização sem fins lucrativos Project Drawdown, entre as quais Como Evitar um Desastre Climático, de Bill Gates (na qual ele erra completamente na visão da política como uma solução essencial), e talvez mais próxima em escopo e ambição, e Electrify (Eletrizar, em tradução livre), de Saul Griffith. Mas o problema que a sociedade enfrenta não são quais correções tecnológicas ou políticas implementar, mas como colocá-las e implementá-las.

As estratégias promissoras que Lenox e Duff recomendam não podem e não irão chegar, a menos que haja um forte movimento cidadão em apoio a ações climáticas agressivas. A verdade é que, em nenhum aspecto, a cultura americana está preocupada o bastante sobre o clima para fazer dela uma prioridade nacional.

A falta de cuidado com essa questão pelos formuladores de políticas, o público e a mídia,

explica por que eu penso que mesmo manuais técnicos como esse precisam se aprofundar exatamente na pergunta de como as soluções tecnológicas e as propostas políticas ganham suficiente tração política para que aconteçam. Esse tópico – o trabalho de base de organizações sem fins lucrativos como a Extinction Rebellion, 350.org, a POW e o Sunrise Movement – provavelmente será a próxima tendência dos livros climáticos, como Regeneration: Ending the Climate Crisis in One Generation (Regeneração: Terminar a crise climática em uma geração, em tradução livre), de Paul Hawken, o qual tenta combinar justiça, clima, biodiversidade e dignidade humana em um plano para reduzir as emissões a quase 50% até 2030.

As ideias dos autores sobre como fazemos progressos, por exemplo, incluem uma melhoria global de acordos climáticos que desde a Rio-92 (Cúpula da Terra realizada em 1992 no Rio de Janeiro) tem focado “em grandes metas de emissões nacionais que poucos países são capazes de atender com sucesso”, explicam. “Uma perspectiva de inovação tecnológica sugere outra abordagem. Em vez de se concentrar em metas de emissões, focar em mudanças tecnológicas.” Eles, então, sugerem uma gama de abordagens, sendo a mais empolgante a ideia de criar uma coalizão de nações e fabricantes de aviões (o duopólio Boeing-Airbus produz 91% das novas aeronaves) focada na descarbonização. Esta ideia é tanto refrescante quanto realista – porque é devastador deixar todas as cúpulas globais climáticas com uma caixa cheia de metas que não são vinculadas ou são impossíveis de atender.

Outra forma de fazer crescer o movimento é garantir que os livros sobre o assunto sejam apaixonantes. Enquanto The Decarbonization Imperative é um recurso educacional incrível, e muito disso foi fascinante para um sabichão como eu, pode não ser tão atraente para leitores fora dessa área. Ainda, a necessidade de escrita acadêmica não precisa ser mantida. Uma prosa brilhante pode oferecer oportunidades para galvanizar e inspirar leitores – e quem se dedica a buscar soluções climáticas, um

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AUDEN SCHENDLER é vice-presidente sênior de sustentabilidade na Aspen Skiing Company e presidente do conselho da organização sem fins lucrativos Protect Our Winters. Ex-integrante da Comissão de Controle da Qualidade do Ar de Colorado, é autor do livro Getting Green Done

grupo universalmente abatido, desalinhado e depressivo, que precisa de toda positividade que possa conseguir.

A ancoragem acadêmica do livro afeta não somente o estilo de escrita, mas também a vontade dos autores de ter diversão. No capítulo sobre energia, por exemplo, Lenox e Duff mencionam “turbinas eólicas flutuantes” em uma das passagens e, em seguida, movem-se rapidamente para outro ponto, como se fossem pais insatisfeitos. Turbinas eólicas flutuantes? Esta é uma oportunidade

para trazer um pouco de alegria a uma batalha lúgubre e ilustra a incrível criatividade e virtuosismo tecnológico no coração de muitas soluções climáticas.

Mas essas críticas são coisas menores. The Decarbonization Imperative é um guia vital para a transição humana mais importante da história. O livro deve ficar em todas as mesas como uma referência para pesquisadores, formuladores de políticas, cidadãos e outros para inspirar e ajudar a concretizar sonhos de um planeta mais saudável. ■

Abrace o Processo

Cynthia Rayner e François Bonnici recomendam que as organizações que buscam mudanças sistêmicas se concentrem menos nos resultados e mais nos princípios e na prática.

s debates atuais sobre o progresso social questionam a eficácia de medidas fragmentadas de reforma para abordar os maiores desafios de hoje. Alguns pensadores importantes, incluindo Steven Pinker e Peter Diamandis, afirmam que o progresso social sustentável é alcançado por meio de mudanças graduais em sistemas já existentes

Outros, como o ativista Edgar Villanueva e o jornalista Anand Giridharadas, argumentam que o agravamento das crises sociais – do aumento da desigualdade às mudanças climáticas – comprova que as medidas de reforma são ineficazes porque os sistemas existentes estão quebrados. Para eles, é improvável a mudança gradual desacelerar, muito menos reverter, essas crises crescentes.

Em The Systems Work of Social Change: How to Harness Connection, Context, and Power to Cultivate Deep and Enduring Change (O Trabalho Sistêmico para Mudança Social: como aproveitar a conexão, o contexto e o poder para cultivar mudanças profundas e duradouras – ainda

sem tradução para o português), Cynthia Rayner e François Bonnici afi rmam que não há uma maneira fácil de gerar mudanças sistêmicas. Eles mergulham em oito estudos de caso de organizações da socie-

dade civil no mundo todo para propor um caminho pragmático de transformação social. Todas elas têm o compromisso de priorizar as pessoas em suas atividades –e rejeitam as abordagens tradicionais, de cima para baixo, para a mudança social que muitas vezes negligenciam as comunidades que servem. “O trabalho no dia a dia no longo arco da mudança social é confuso e não linear”, escrevem. “Os efeitos raramente podem ser atribuídos a uma única causa profunda e os resultados quase nunca são proporcionais aos insumos.”

A definição dos autores sobre “mudança sistêmica” enfatiza o gradual, muitas vezes sub-reconhecido, trabalho feito por organizações sem fins lucrativos. “Em vez de apenas promover resultados bem-sucedidos, essas organizações estão concentradas no processo de mudança, criando sistemas novos, que são mais responsivos a um mundo em rápida transformação e mais representativos da diversidade e crescimento populacional global”, explicam.

“Os valores e as abordagens com as quais essas organizações estão operando não são novos, mas geralmente têm ocorrido abaixo da superfície (...). Passamos a chamar esses princípios e práticas de trabalho sistêmico.” A definição dos autores difere da compreensão de mudanças sistêmicas que reduz problemas sociais a questões técnicas menores, que são então analisadas isoladamente e resolvidas pelo “escalonamento daquilo que funciona”, enquanto medem diligentemente os indicadores de desempenho até que o trabalho seja concluído.

Com ênfase no processo e na prática, The Systems Work of Social Change é metódico. A primeira parte examina 200 anos de esforços de mudança social para identificar três princípios de trabalho sistêmico que funcionam: fomentar conexões pela construção de identidades coletivas que permitem aprendizado, crescimento e mudança; abraçar o contexto, equipando os atores primários para responder aos desafios do dia a dia; e reconfigurar hierarquias de poder, colocando a tomada de decisão e recursos nas mãos dos atores primários, a

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fim de assegurar que esses sistemas sociais representem as pessoas que os vivem.

Na segunda seção, ao longo de quatro capítulos, os autores apresentam as práticas adotadas pelas organizações. Centradas nas pessoas, elas destacam a importância dos indivíduos que fazem o trabalho e o público a quem as organizações sem fins lucrativos atendem. Rayner e Bonnici se concentram em cultivar coletivos e conexão humana, especialmente através da mídia social; equipar quem está em ação com recursos para ter tempo, habilidade e apoio para realizar o trabalho; promover plataformas que conectam ativistas para que aprendam uns com os outros e para colaborarem no desafio das estruturas organizacionais estáticas; e favorecer a disrupção de políticas e padrões que perpetuam discriminação e resultados desiguais.

A seção final avalia as redes de suporte – de atores internos, como gerentes e consultores, a atores externos, como financiadores – que as organizações de propósito social precisam para prosperar. E aqui os autores recomendam uma reavaliação de como obter recursos e mensurar a mudança de trabalho social. Este trabalho requer repensar os valores subjacentes à mensuração – qual valor está sendo medido? E quais são, perguntam eles, os “valores invisíveis”, como o poder dos relacionamentos e as interações humanas que estão sendo negligenciadas e/ou são difíceis de quantificar?

A ideia provocadora de Rayner e Bonnici, de que processo importa tanto quanto ou mesmo “muito mais” do que os resultados quantificáveis, deve irritar aqueles que investem em uma gestão de cima para baixo na abordagem de transformação social. Eles defendem a construção de instituições locais que sejam adaptáveis, duradouras e descentralizadas e que ainda trabalhem em rede com organizações similares para que possam ser “unificadas” sem precisar de serem “uniformes”.

Na opinião deles, o entusiasmo por esforços simplistas para encontrar soluções para problemas complexos tornou-se uma religião secular e uma “ilusão” resultante

da incapacidade das elites filantrópicas em ver as interconexões e a natureza mutável dos problemas da sociedade. Muito melhor, eles afirmam, é colocar “atores primários”

– “as pessoas mais imersas no contexto de uma questão social, muitas vezes com a experiência vivida do próprio problema” – no centro da rede de respostas para as questões sociais e atribuir aos financiadores e especialistas as funções de apoio.

Rayner e Bonnici criticam a atual obsessão em medir resultados de curto prazo que valorizam números em vez de pessoas. “As métricas de mudança social”, afirmam, “muitas vezes têm mais a ver com a facilidade de serem quantificadas do que com seu valor para aqueles que buscam ou que esperançosamente se beneficiam dos esfor-

diferentes, reconhecendo que o objetivo principal é determinar ‘o que está acontecendo’ em vez de ‘o que funcionou’”.

ços de mudança social.” A confiança nesses indicadores de resultado também pressupõe que nós saibamos o que deve ser medido e que os benefícios dessa mensuração superem os custos, incluindo os custos de oportunidade – suposições duvidosas, na melhor das hipóteses. Os autores nos lembram que o resultado de métricas são efetivamente julgamentos de valor.

Além disso, destacam que a avaliação de esforços tende a se concentrar em tentar provar se uma determinada técnica funciona melhor em um horizonte de curto prazo (geralmente relacionado ao ciclo orçamentário de um projeto), em vez de buscar uma melhoria de desempenho nas organizações. Como resultado, o “aprendizado vital” é sacrificado no “altar da responsabilização” pelas elites sacerdotais. Eles propõem um novo paradigma focado em medir para aprender, em que “as organizações são capazes de fazer perguntas

Rayner e Bonnici organizam esses pontos como parte do desafio maior deles para o pensamento linear de mudança social. Eles notam que, quando “tratamos os esforços de mudança social com começos e fins definidos, quase sempre nos sentimos frustrados, uma vez que nossa compreensão do que precisa mudar é necessariamente um alvo em movimento”. Em vez disso, recomendam focar no “processo de mudança – fazendo questões críticas como: ‘quem merece’?; quem projetou?; quem decide? –, (para que) possamos avançar para o futuro com uma grande capacidade de adaptação”. Elevar os processos de mudança social acima dos resultados, argumentam, poderia resultar em um progresso mais rápido sobre problemas socioambientais.

O livro tem algumas limitações dignas de nota. Os autores não conseguem lidar com as consequências de desconsiderar especialistas e conhecimento – como é evidente nos movimentos anticiência e no populismo anti-intelectual nos Estados Unidos e em outros lugares que têm frustrado os esforços para controlar a pandemia de covid-19. Por vezes, Rayner e Bonnici são acríticos das organizações apresentadas em seus estudos de caso e, como resultado, o livro luta para se manter fundamentado em realidades, paradoxos, ambiguidades e compromissos do confuso trabalho de mudança social.

Por exemplo, a organização da sociedade civil Child and Youth Finance International (CYFI) fez progressos impressionantes ao aumentar o financiamento da alfabetização

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Às vezes, o livro luta para se manter fundamentado em realidades, paradoxos, ambiguidades e compromissos do confuso trabalho de mudança social.

de crianças antes de encerrar suas atividades após breves nove anos. A afirmação surpreendente da organização de que eles alcançaram seus objetivos e não eram mais necessários é inquestionavelmente aceita pelos autores sem exame. Em outro estudo de caso, a descentralização – uma abordagem elogiada em outras partes do livro –reverte muito do impressionante progresso alcançado pela fundação educacional sem fins lucrativos Fundación Escuela Nueva, na Colômbia. Em vez de investigar se eles poderiam ter antecipado essa mudança ou se adaptado melhor a ela, os autores afirmam sem evidências que os muitos aspectos de abordagem centrada no aluno de alguma forma sobreviveram.

Para dar outro exemplo, o estudo de caso da mothers2mothers, uma organização internacional sem fins lucrativos que se dedica a erradicar a transmissão do HIV de pais para filhos, ligeiramente exagera sua eficácia em desacelerar a taxa de

transmissão (arredondando a taxa de 1 em 52 para 1 em 60), enquanto os autores deixam o contexto útil (a taxa de referência de transmissão) para o anexo. Mais frequentemente, eles se referem às conquistas dessas organizações com informações vagas ou imprecisas. Essas omissões e outras lacunas no rigor da análise diminuem o poder dos casos estudados e semeiam dúvidas sobre se enfatizar o processo muitas vezes intangível, em detrimento de mais resultados quantificáveis, é uma aposta sábia no final das contas.

Os autores também não lidam com as questões práticas. Por exemplo, de reunir atores primários quando eles não compartilham uma linguagem comum, ou das pessoas mais marginalizadas serem excluídas quando se formam grupos com pessoas um pouco mais prósperas. Se as imponentes organizações que eles apresentam resolveram ou, pelo menos, administraram tais problemas, este livro poderia ter sido mais

rico e ter provido mais orientação aos líderes de mudança social se oferecesse mais explicações. Talvez uma sequência mais orientada para praticantes de mudança sistêmica poderia preencher essas lacunas.

Da mesma forma, Rayner e Bonnici não reconhecem que muitos esforços bem-sucedidos não estão de acordo com os princípios deles. Eles poderiam ter fornecido melhores explicações sobre as compensações que são tão comuns no complexo e real mundo da mudança social e na construção de “instituições do povo” – termo que fiquei satisfeito por eles reviverem.

No entanto, longe de ser um esforço fugaz para aproveitar a última moda filantrópica, Rayner e Bonnici demonstram o poder de construir instituições capazes de análise integrada e aprendizagem adaptativa, bem como de nos desafiar a confrontar velhas formas de pensar que podem ter servido em uma era anterior, mas claramente não mais agora. ■

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Retratos do Mundo

Mais de 100 milhões de pessoas no mundo foram forçadas a deixar suas casas este ano. Conflitos, guerras, violência e também as mudanças climáticas obrigaram homens, mulheres e crianças de todas as idades a deixar seus lares, laços e afetos, segundo dados da Agência da ONU para Refugiados. A partida é difícil, e a chegada traz novos desafios.

Acolher os que chegam com suas diferentes culturas significa expansão, crescimento e diversificação. Em São Paulo, o projeto Cores do Mundo, da ONG Estou Refugiado, presta homenagem à coragem e à determinação dos refugiados. São obras de 15 artistas, como Ezatullah Matin Wakily, que chegou recentemente ao Brasil fugido do Talibã. O retrato de uma noiva da Nigéria do designer gráfico e fotógrafo afegão abre uma janela que amplia o olhar e a sensibilidade para outras nuances do mundo.

72 Stanford Social Innovation Review Brasil | Dezembro de 2022 IMAGENS QUE INSPIRAM ÚLTIMO OLHAR

movimentobemmaior.org.br

Elie Horn Chairman da Cyrela Eugênio Mattar Chairman da Localiza Pedro Bueno CEO da DASA Rubens Menin Chairman da MRV Bia Vidigal Filantropa independente Jayme Garfinkel Acionista controlador da Porto Seguro Luciano Huck Apresentador de TV
CONHEÇA QUEM JÁ FAZ PARTE DO MOVIMENTO
Christian Klotz Sócio representante da Brasil Capital

O Brasil vai fazer uma Reforma Tributária em 2023. Você já pensou o que está em jogo?

Recente estudo do Centro de Estudos da Metrópole, realizado com o apoio da Samambaia Filantropias, revelou que desde 1988, entre todas as medidas tributárias propostas no Congresso Nacional, apenas 5% poderiam ser consideradas progressivas, enquanto 67% criavam isenções e regimes especiais para grupos específicos, agravando a concentração de renda e reduzindo as oportunidades para crescimento econômico. Precisamos de uma racionalização tributária que retire a regressividade do sistema tributário atual, e assim nos permita crescer mais e melhor desde já.

A Samambaia Filantropias está nessa. Vem com a gente. Vamos fazer parte de um movimento para que o Brasil tenha uma política econômica com foco em crescimento econômico sustentado e regenerativo. É o futuro melhor, que vamos fazer chegar.

Aguardamos suas ideias e colaborações: samambaia@samambaia.org https://samambaia.org/

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