Temporalidades 16

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Ficha Catalográfica Temporalidades [recurso eletrônico] /Departamento de História, T288

Programa de Pós-Graduação em História. – v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. Quadrimestral a partir de 2013 Títulos e resumos em português e inglês ISSN: 1984-6150 Modo de acesso: http://www.fafich.ufmg.br/temporalidades/revista 1. História - Periódicos 2. Historiografia - Periódicos I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História. CDD 901

Publicação Indexada Sumários.org Periódicos Capes Latindex Diadorim Endereço: Temporalidades Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG Av. Antonio Carlos, 6627 - Campus Pampulha. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), 4º andar. 31270-910 – Belo Horizonte/MG e-mail: temporalidades@gmail.com temporalidades@fafich.ufmg.br homepage: www.fafich.ufmg.br/temporalidades

Os direitos de publicação desta edição são da Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Departamento de História – Abr./2015

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Expediente Universidade Federal de Minas Gerais Reitor: Jaime Arturo Ramírez Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Diretor: Fernando de Barros Filgueiras Departamento de História André Luis Pereira Miatello Colegiado de Pós-Graduação Coordenador: Luiz Carlos Villalta Editor Chefe Prof. Magno Moraes Mello Conselho Editorial Cássio Bruno de Araújo Rocha Gabriel Verdin de Magalhães Igor Barbosa Cardoso Márcio Mota Pereira (Suplente) Maria Visconti Sales Rafael Vinícius da Fonseca Pereira Valdeci da Silva Cunha Conselho Editorial Consultivo Nacional Adriana Romeiro (UFMG) Adriana Vidotte (UFG) Beatriz Gallotti Mamigonian (UFSC) Benito Bisso Schmidt (UFRGS) Bruno Tadeu Salles (UEG) Carlos Alvarez Maia (UERJ) Diego Omar da Silveira (UEA) Durval Muniz Albuquerque Júnior (UFRN) Eduardo França Paiva (UFMG) Eliana Regina de Freitas Dutra (UFMG) Francismary Alves da Silva (UNIR) George F. Cabral de Souza (UFPE) Henrique Estrada Rodrigues (UFMG) Igor Salomão Teixeira (UFRGS) Iranilson Buriti de Oliveira (UFCG) João Pinto Furtado (UFMG) Jonas Marçal de Queiroz (UFV) Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (UFBA) José Antônio Dabdab Trabulsi (UFMG) José Carlos Reis (UFMG) Júnia Ferreira Furtado (UFMG) Kátia Gerab Baggio (UFMG) Leandro Duarte Rust (UFMT) Márcia Sueli Amantino (Universo) Marco Morel (UERJ) Maria Juliana Gambogi Teixeira (UFMG) Mauro Lúcio Leitão Condé (UFMG) Milene de Cássia Silveira Gusmão (UESB)

Patrícia Maria Melo Sampaio (UFAM) Paulo Pinheiro Machado (UFSC) Raquel Costa Santos (UESB) Regina Helena Alves da Silva (UFMG) Renato Pinto Venâncio (UFMG) Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG) Samantha Viz Quadrat (UFF) Sérgio Ricardo da Mata (UFOP) Soleni Biscouto Fressato (UFBA) Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano (UFPB) Tiago Luís Gil (UnB) Virginia Maria Trindade Valadares (PUC-MG) Conselho Editorial Consultivo Internacional Claudia Damasceno Fonseca (Universidade Paris 3- Sorbonne Nouvelle) Fátima Sebastiana Gomes Lisboa (Université PaulValéry, Montpellier III) Fernanda Olival (UÉvora-CIDEHUS) Fernando Jesus Bouza Alvarez (Universidade Complutense de Madrid- UCM) Hal Langfur (University of Buffalo) Hernán Pas (Universidad Nacional de La Plata) José Manuel Santos (Universidad de Salamanca) Mafalda Soares da Cunha (UÉvora) Nuno M. M. P. Tarouca Camarinhas (CEDIS) Pedro António de Almeida Cardim (UNL) Roberta Giannubilo Stumpf (Centro de História do Além-Mar – CHAM) Seth W. Garfield (University of Texas) Revisão Cássio Bruno de Araújo Rocha Gabriel Verdin de Magalhães Igor Barbosa Cardoso Márcio Mota Pereira Maria Visconti Sales Rafael Vinícius da Fonseca Pereira Valdeci da Silva Cunha Diagramação Maria Visconti Sales Capa Valdeci da Silva Cunha

Site/Banco de Dados

Cássio Bruno de Araújo Rocha Valdeci da Silva Cunha

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Agradecimento ao Conselho Editorial (mar. 2014/mar. 2015) Indispensável seria tecer aqui algumas linhas na forma de agradecimento ao Conselho Editorial que se despede de Temporalidades. Neste momento de transição, onde as dúvidas sobre os procedimentos andam de mãos dadas com o encantamento de poder contribuir para que vários novos estudos venham à luz da historiografia, a importância de uma transição transparente, segura e eficiente é demonstrada com a publicação deste novo número, possuidor da mesma qualidade dos anteriores, o que não teríamos conseguido sem o valoroso apoio técnico, acadêmico e moral dispensados por: Kellen Cristina Silva, Lucas Madsen da Silveira, Mateus Rezende de Andrade, Polyana Valente Vareto, Regina Mendes de Araújo, Rute Guimarães Torres e Virgílio Coelho de Oliveira Júnior.

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Agradecimento aos pareceristas ad hoc e do Conselho Consultivo A revista Temporalidades é uma publicação discente, que almeja divulgar trabalhos científicos de excelência, que contribuam para o incremento dos debates na área de História. Esse objetivo vem sendo atingido graças à colaboração prestimosa de inúmeras pessoas, em especial dos pareceristas ad hoc, que, a partir de todas as regiões do Brasil, disponibilizam seu tempo e seus conhecimentos para a avaliação criteriosa dos textos confiados ao periódico. Agradecemos a esses pesquisadores pelo seu trabalho voluntário, na certeza de que, graças ao seu empenho e dedicação, esta edição de Temporalidades desponta como mais um capítulo de sucesso na trajetória acadêmica da revista. Agradecemos também, nesse espaço, aos membros do Conselho Consultivo que estão sempre a nossa disposição. Adriano Comissoli (UPF) Alexander Martins Vianna (UFRRJ) Allison Marcos Leão da Silva (UEA) Amanda Silva Martins (UFRGS) Ana Carolina Eiras Coelho Soares (UFG) Ana Heloisa Molina (UEL) Ana Maria Mauad de Sousa Andrade Essus (UFF) Antônio Otaviano Vieira Júnior (UFPR) Bruno Viveiros Martins (UFMG) Camila Rodrigues (USP) Carlos Mauro de Oliveira Júnior (UERJ) Cláudio Monteiro Duarte (UFMG) Cristiano Lima Sales (UFSJ) Cristina Jeannes Rozisky (IFSul) Daniel Aarão Reis Filho (UFF) Daniel Vasconcelos Campos (UFSCAR) Elisa Maria Verona (Unesp) Fábio José Rodrigues da Costa (URCariri) Frederick Gomes Alves (UFG) Glauber Miranda Florindo (UFF) Joachin de Melo Azevedo Sobrinho Neto (UFPB) Jonas Marçal de Queiroz (UFV) José Alves Dia (UESB) José Vieira da Cruz (UFAL) Juliana Alves Martins (USP)

Leandro Hecko (UFPR) Lucas Braga Rangel Vilela (UDESC) Luis Felipe Martins de Salles Roselino (UFSCAR) Maicon Camargo (UFGO) Marcela Telles Elian de Lima (UFMG) Márcia Almada (UFMG) Maria Cláudia Badan Ribeiro (Unicamp) Méri Frotscher (Unioeste) Michel Goulart da Silva (UFSC) Michelle Reis de Macedo Macedo (UFF) Mônica Maria Lopes Lages (UFMG) Mônica Pimenta Velloso (FCRB) Osvaldo Batista Acioly Maciel (UFAL) Pedro Demenech (IFET-ES) Pedro Vilarinho Castelo Branco (UFPI) Rafael Rosa Hagemeyer (UESC) Rafaella Lúcia de Azevedo Ferreira Bettamio (FBN/FGV) Reginaldo Benedito Dias (UEM) Rogéria Moreira de Ipanema (UFRJ) Ronaldo Pereira de Jesus (UFJF) Sônia Regina de Mendonça (UFF) Thiago José Borges (UNB) Ulisses do Vale (UFG) Vera Maria Pereira Theodozio (USP) Walter Luiz de Andrade Neves (UFRJ)

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Sumário Editorial ............................................................................................................................................................. 4

Dossiê Apresentação do Dossiê ................................................................................................................................... 10 Profa. Dra. Adriane Vidal Costa A experiência estética e política da geração simbolista no Brasil finissecular / The aesthetic experience of the Symbolist generation in Brazil at the XIX century ............................................................. 14

Mariana Albuquerque Gomes

O conceito de "barroco": entre a arte e a identidade / The concept of "baroque": between art and identity ..................................................................................................................................................................35

Bruce Souza Portes

Gloriosa conquista ou cruel destruição? A Grande Guerra (1914-1918) representada em cartões-postais alemães e franceses / Glorious conquest or cruel destruction? The Great War (1914-1918) represented on postcards from Germany and France .................................................................. 49

Marco Antonio Stancik

A revista “A Defesa Nacional”: o autoritarismo, os intelectuais e os militares no Governo Vargas (1930-1937) / On "Defesa Nacional" magazine: Authoritarianism, Intellectuals and the military in Vargas' government (1930-1937) ....................................................................................................................... 63

Fernanda de Santos Nascimento; Antônio Manoel Elíbio Júnior Corpos que escrevem: vivências e práticas históricas a partir dos lugares textuais em Guimarães Rosa / Bodies that write: historical experiences and practices from the textual places in Guimarães Rosa ........................................................................................................................................................ 79

Danilo Almeida Patrício

A arte teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, 1961-1964

/ The theatrical art of the Popular Culture Center of the National Union of Students, 19611964............................................................................................................................................................................ 100

Carla Michele Ramos

Entre estratégias e táticas: Paulo Menten e as IX e X Bienais de São Paulo (1967 e 1969) / Between strategy and tactics: the insertion of Paulo Menten in the arts field in São Paulo in the mid-1960s .................................................................................................................................................................................... 115

Priscilla Perrud Silva

“É chegada a hora de escrever e cantar, talvez, as derradeiras noites de luar”: leituras sobre a Corrida Espacial na canção Brasileira / “It's time to write and sing, perhaps the ultimate moonlight nights": Readings on the Space Race in the brazilian song ........................................................... 134

Suelen Maria Marques Dias

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Letras, suor e cerveja: o literato na prosa de Arthur Engrácio / Letters, perspiration and beer: the writer in Arthur Engrácio’s prose .................................................................................................................. 144

Vinicius Alves do Amaral

Artigos Os mapas na Idade Média: representações das concepções religiosas e das influências da Antiguidade Clássica / The maps in the Middle Ages: representations of religious ideas and influences from Classical Antiquity ......................................................................................................................................... 163

Lucas Montalvão Rabelo

O ver e o fazer: os Reis Magos e a análise das imagens na história / Seeing and doing: the Kings Magi and the analysis of images in the history ....................................................................................... 182

Jacqueline Rodrigues Antonio Sobre a sociedade de corte na França do Antigo Regime e a constância dos sentimentos de honra / The court society in France of the Ancient Regime and the permanence of the feelings of honor ........................................................................................................................................................................ 200

Thiago Rodrigo Nappi

Bem Casar: exogamia e estratégias Matrimoniais (Comarca do Rio das Mortes – Minas Gerais, séculos XVIII e XIX) / Marrying Well: Family and Matrimonial Exogamy Strategies (Comarca do Rio das Mortes - Minas Gerais, eighteenth and nineteenth centuries ...................................................... 220

Isaac Cassemiro Ribeiro

Abram as cortinas: a mulher representada no teatro da Fortaleza da virada do século XIX para o XX / Open the curtains: the woman depicted in the Fortaleza of the turn of the nineteenth to the twentieth century theater ....................................................................................................................................... 238

Camila Imaculada Silveira Lima A patrimonialização da produção de louças e porcelanas em Pedreira, São Paulo: um estudo de caso / The patrimonialization of the making process of china and porcelain in Pedreira, Sao Paulo: a case study .................................................................................................................................................. 260

André de Sousa Miranda; Mariana Gonçalves Moreira; Raul Amaro de Oliveira Lanari; Rodrigo Augusto Silva Freitas Os trabalhadores em tempos de coronéis: política e cultura associativa operária no sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna) na década de 1920 / The workers in Coronel’s times: politic and working assiciative culture (Ilhéus e Itabuna) in the 1920’s ............................................................................................ 285

Philipe Murillo Santana de Carvalho

Do Carnaval ao social: a caricatura de Andrelino Cotta – 1919-1928 / Carnival of the social: a caricature of Andrelino Cotta - 1919-1928 ......................................................................................................... 306

Raimundo Nonato de Castro

Crises, polarizações e lutas: notas sobre o processo político que derrubou o governo João Goulart (1961-1964) / Crises, struggles and polarizations: notes on the political process that overthrew the government of João Goulart (1961-1964) .................................................................................................... 326

Natalia Granato

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A rua vai ao ateliê e vice-versa: arte como resistência em Claudio Tozzi / The street goes to studio and vice versa: art as resistance in Claudio Tozzis ................................................................................ 339

Alexandre Pedro de Medeiros

Fim da história? Uma reflexão sobre as possíveis implicações políticas do regime de historicidade presentista / End of History?: a reflection on the possible political implications of the presentist regime of historicity .............................................................................................................................. 364

Danilo Marques “Não temos nada, nada”: políticas públicas voltadas aos sertanejos em períodos de estiagem na microrregião de Sobral na década de 1970 / "We have nothing, nothing" Public policies aimed sertanejos years in drought periods of Sobral in the micro 1970s ........................................ 375

Luciane Azevedo Chaves

Entrevistas Entrevista com a Professora Doutora Liliana Weinberg .......................................................... 395 Adriane Vidal Costa; Virgílio Coelho de Oliveira Júnior; Lucas Madsen da Silveira; Maria Visconti Sales; Igor Barbosa Cardoso

Resenhas LÖWY, Michael. A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Boitempo, 2014 .................................................................................................................................................................................... 401

Glauber Miranda Florindo

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Editorial É com muita satisfação que anunciamos o primeiro número do sétimo volume da revista Temporalidades, com a qual apresentamos além de uma resenha crítica, uma entrevista e doze artigos livres, o dossiê temático intitulado “Linguagem, artes e política: interseções”, composto por nove trabalhos produzidos pelo corpo discente de diversos cursos de História e áreas afins de quase todas as regiões do Brasil. Sob a responsabilidade de novo conselho editorial, vinculado ao Departamento de PósGraduação em História da UFMG, a Temporalidades procura manter a qualidade, a transparência e a isonomia de todo o processo de seleção, ao garantir o anonimato de todos os artigos recebidos quando submetidos aos pareceristas, aos quais desde já deixamos nossos sinceros agradecimentos. É graças ao empenho de muitos que podemos contribuir no desenvolvimento da pesquisa histórica, servindo de intermediários entre autores discentes, pesquisadores e públicos. A intenção, no decurso do ano de 2015, é de ampliar o legado deixado pelos conselheiros das gestões anteriores e ajudar a consolidar a revista como importante canal de interlocução entre os mais jovens historiadores brasileiros, cada vez mais inseridos no debate internacional. Com efeito, procuraremos expandir os mecanismos que permitem o crescimento e reconhecimento da revista, com o desenvolvimento da comunicação por site e redes sociais, o alargamento das bases de indexação e o aperfeiçoamento técnico da revista. Ficamos honrados com a presença da professora Adriane Vidal Costa, vinculada ao Departamento de História da UFMG, que apresenta o dossiê temático nesse número. Atuando acerca das dimensões culturais do exílio latino-americano e tendo diversas publicações a respeito da interseção entre história e literatura, Adriane Vidal Costa faz parte da renovação historiográfica que entende a vida política na dinâmica e significação do imaginário social. Abrindo o dossiê, Mariana Albuquerque Gomes, em “A experiência estética da geração simbolista no Brasil finissecular”, problematiza o conceito de Modernidade, compreendido como nova forma de compreensão do mundo nos fins do século XIX, a partir de alguns aspectos da experiência estética do Simbolismo na literatura brasileira, em contato com sua vertente francesa. No artigo “O conceito de ‘barroco’: entre a arte e a identidade”, Bruce Souza Portes faz, por meio de metodologias próprias da história cultural, uma análise da trajetória do conceito do barroco, relacionando-o aos programas nacionalistas e identitários, desde os finais do século XIX à contemporaneidade. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Marco Antonio Stancik realiza, com “Gloriosa conquista ou cruel destruição? A Grande Guerra (1914-1918)” representada em cartões-postais alemães e franceses”, instigante investigação acerca das representações iconográficas associadas à Primeira Guerra Mundial (19141918), tendo como fontes cartões-postais produzidos e circulados na Alemanha e na França durante a guerra. O autor identifica mensagens verbais e não-verbais nestes cartões, através das quais os imaginários coletivos relativos ao conflito eram divulgados, reafirmados e mesmo construídos. Com “A revista A Defesa Nacional: o autoritarismo, os intelectuais e os militares no governo Vargas (1930-1937)”, Fernanda de Santos Nascimento e Antônio Manoel Elíbio Júnior discutem a influência de ideais conservadores nos circuitos militares brasileiros a partir da crise das democracias liberais europeias, após a Grande Guerra. Para os pesquisadores, ao compartilhar valores autoritários de intelectuais como Alberto Torres e Oliveira Vianna, a revista A Defesa Nacional, dirigida por militares, procurou afirmar e difundir, no decurso da década de 1930, a importância do papel do Exército na formulação da identidade brasileira com a educação militar, anticomunista e antiliberal, sem deixar de promover o ideário capitalista. A dimensão histórica das transformações nos sertões com a modernidade no Brasil da segunda metade do século XX é enriquecida por meio da ficção roseana, de acordo com Danilo Almeida Patrício, em “Corpos que escrevem: vivências e práticas históricas a partir dos lugares textuais em Guimarães Rosa”. História e ficção, através de personagens variados, enredos e linguagens múltiplas, entrelaçam-se na trama de Corpo de Baile para enfatizar a complexidade do viver sertanejo ao meio da promessa e do ideal de progresso. Em “A arte teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, 1961-1964”, Carla Michele Ramos traz à tona o intenso debate travado no interior do CPC-UNE em torno da estética teatral, a partir das diferentes respostas dadas por dois importantes teatrólogos alemães, Erwin Piscator e Bertolt Brecht, a mesma questão: de que forma pode-se obter uma comunicação cênica efetiva com o público? A autora revela como as influências de ambos os autores se alternaram conforme as disposições históricas, podendo ser analisadas nos próprios textos teatrais brasileiros. Priscilla Perrud Silva nos apresenta a trajetória do artista visual Paulo Menten (19272011), que, tendo abandonado o serviço de bancário para se dedicar à carreira artística, buscava sua inserção no meio com participações na IX e X Bienal de São Paulo, realizadas em 1967 e 1969, respectivamente. Com “Entre estratégia e táticas: a inserção de Paulo Menten no campo

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das artes em São Paulo em meados dos anos 1960”, Priscilla Silva aborda os aspectos artísticos sem perder de vista a conjuntura sócio-política e cultural durante o regime militar no Brasil. O artigo “‘É chegada a hora de escrever e cantar, talvez, as derradeiras noites de luar’: Leituras sobre a Corrida Espacial na canção brasileira” da mestre Suelen Maria Marques Dias busca compreender a forma como algumas artistas e compositores brasileiros viram o episódio da Corrida Espacial no século XX. Através das canções, esses artistas narraram o fenômeno à sua maneira e, por meio deles, busca-se compreender a produção artística como fonte histórica. Em “Letras, suor e cerveja: o literato na prosa de Arthur Engrácio”, Vinicius Alves do Amaral analisa as representações ambíguas do escritor presentes na obra ficcional e não-ficcional. Comentando as representações de escritores e as propostas feitas por Arthur Engrácio a fim de mudar a precariedade do universo artístico de Manaus, o autor procura compreender a inserção do literato no Clube da Madrugada como parte de construção de uma proposta coletiva. A entrevista com Liliana Weinberg, antropóloga, crítica literária e ensaísta, realizada por Adriane Vidal Costa, coloca em questão a relação entre história, literatura e verdade, um dos temas de maior importância na discussão contemporânea. Além de se posicionar frente a um denso debate teórico, Weinberg fala das construções identitárias latino-americanas como um dos eixos centrais na produção literária e de sua repercussão internacional. Na seção de artigos livres, Lucas Montalvão Rabelo aborda, em “Os mapas na Idade Média: representações das concepções religiosas e das influências da Antiguidade Clássica”, não apenas a tradicional função geográfica de um pequeno universo da rica e colorida cartografia medieval, cumprindo também seu papel de historiador ao destrinchar as concepções da Terra e do universo, imergindo nos mais distintos aspectos culturais, sociais e devocionais presentes em alguns destes documentos. O autor acaba por nos revelar desde as mais recônditas particularidades materiais existentes nas entrelinhas cartográficas até aquelas presentes no imaginário do homem do medievo como, por exemplo, a divisão dos três continentes frente à imensidão esférica do globo. O artigo “O ver e o fazer: os Reis Magos e a análise das imagens na história” da mestranda em História Jacqueline Rodrigues Antonio visa analisar a ideia dos Reis Magos pelo viés da História Cultural, buscando compreender os simbolismos utilizados na sua representação iconográfica. Neste sentido, observa-se elementos como as roupas e as cores, para entender estas obras e sua narrativa, inserindo a imagem como uma fonte histórica de extrema relevância. Por meio da literatura política da França nos século XVI a XVIII, Thiago Rodrigo Nappi, em “Sobre a sociedade de corte na França do Antigo Regime e a constância dos sentimentos de Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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honra”, analisa o que era a honra para nobreza no Antigo Regime francês e de que maneira aquela configuração social utilizou-se do que entendeu ser a honra para distinguir-se dos demais estratos da sociedade. Isaac Cassemiro Ribeiro analisa a prática da exogamia familiar enquanto estratégia matrimonial no período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, na região da comarca do Rio das Mortes. Com “Bem Casar: Exogamia Familiar e Estratégias Matrimoniais (Comarca do Rio das Mortes - Minas Gerais, séculos XVIII e XIX)”, Ribeiro procura, entre outros aspectos, compreender as variações nos padrões das uniões exogâmicas levadas a cabo pela primeira geração de um grupo familiar recém-chegado à região das Minas, proveniente de Portugal. Já Camila Imaculada Silveira Lima percorre, em “Abram as cortinas: a mulher representada no teatro da Fortaleza da virada do século XIX para o XX”, os bastidores da cena teatral de Fortaleza na virada do século XIX para o XX a fim de refletir as representações do papel social da mulher presentes em textos dramatúrgicos. Para tanto, a autora analisa as comédias de costume O Dote, de Arthur Azevedo, e As doutoras, de França Júnior, em busca dos significados sociais atribuídos à figura da mulher no contexto dado. No artigo coletivo “A patrimonialização da produção de louças e porcelanas em Pedreira, São Paulo: um estudo de caso”, André Miranda, Mariana Moreira, Raul Lanari e Rodrigo Freitas discutem o processo de construção e consolidação da prática de fabricação de louças e porcelanas no município paulista de Pedreira e analisam as mudanças observadas na prática cultural ao longo das últimas décadas, com o abandono de alguns aspectos tradicionais e a adoção de métodos industriais, tendo por objetivo atingir novos públicos. Procura-se mostrar como a produção da porcelana, seja ela em escala industrial ou artesanal, contribuiu para a formação de um universo simbólico para a população local. Philipe Carvalho, em “Os trabalhadores em tempos de coronéis: política e cultura associativa operária no sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna) na década de 1920”, estuda a formação da cultura associativa operária e sua relação com autoridades/intelectuais políticos ao final da Primeira República (década de 1920) no sul da Bahia em um período de fértil associativismo no sul da Bahia, especialmente nas suas duas maiores cidades, Ilhéus e Itabuna. Entre os trabalhadores, várias foram as categorias que inauguraram suas sociedades, entre elas, os estivadores, os caixeiros, os artistas e os operários. Raimundo Nonato de Castro aborda em seu artigo “Do Carnaval ao social: a caricatura de Andrelino Cotta – 1919-1928” o trabalho do professor, pintor e caricaturista paraense Andrelino Cotta. Considerado um dos maiores expoentes do desenho político na Amazônia, Andrelino Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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ilustrava os carnavais de Belém e não perdia a oportunidade de relacionar os políticos da época com os personagens mais caricatos dessa festa popular. Outro famoso viés de sua personalidade artística insistia em condenar a realidade urbana de Belém, famosa por seus luxuosos palacetes que contrastavam, a poucos quilômetros, com miseráveis casebres e revelavam uma cidade que era por um lado próspera e, por outro, sem infraestrutura básica. O artigo de Natália Cristina Granato, intitulado “Crises, polarizações e lutas: notas sobre o processo político que derrubou o governo João Goulart (1961-1964)”, problematiza os fatores que levaram ao rompimento democrático e a instalação da ditadura militar em 1964. Entre eles, a autora destaca o processo de ascensão e reivindicação dos movimentos sociais urbanos e rurais e o acirramento das lutas ideológicas entre os principais partidos políticos surgidos no período pós1945. A arte visual do paulista Claudio Tozzi vem à luz de Temporalidades através das mãos de Alexandre Pedro de Medeiros, sob o título “A rua vai ao ateliê e vice-versa: arte como resistência em Claudio Tozzi”. Delimitado o período compreendido entre 1964 e 1968 como recorte temporal de estudo, Alexandre problematiza o engajamento político e social de Tozzi em um dos mais conturbados períodos da história brasileira demonstrando, ainda, a habilidade do artista em apropriar-se das imagens que faziam clara referência ao regime e em utilizá-las em suas obras com o minucioso cuidado de subverter seus significados originais na intenção de fazer o público refletir acerca das relações cotidianas daquele tempo. Em “Fim da História?: uma reflexão sobre as possíveis implicações políticas do regime de historicidade presentista”, Danilo Marques tem como o objetivo a reflexão sobre as possíveis implicações políticas do que o historiador francês François Hartog denominou “regime de historicidade presentista” ao afirmar que, na articulação das categorias metahistóricas de “espaço da experiência” e “horizonte de expectativa”, “ficamos habitando um presente hipertrofiado que tem a pretensão de ser seu próprio horizonte”. O artigo chama a atenção para a necessidade de se repensar o formato da ação política tendo em vista a irrupção de uma ordem do tempo centrada no presente. A autora Luciane Azevedo Chaves, com seu artigo “’Não temos nada, nada’: Políticas públicas voltadas aos sertanejos em períodos de estiagem na microrregião de Sobral na década de 1970”, analisa as políticas públicas implementadas pelo Estado durante a década de 1970 na microrregião de Sobral-CE como formas de obter lucros e angariar votos, estabelecendo práticas assistencialistas como mecanismos de dominação sobre os trabalhadores rurais. Para tanto, a autora utilizou os periódicos cearenses Correio da Semana e Correio do Ceará como fontes principais Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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para discutir os modos de vida sertanejos na região e a mitificação construída pela imprensa e pelo Estado sobre a mesma microrregião. Por fim, apresentamos a resenha do livro de Michael Löwy, “A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano”, pelo doutorando Glauber Miranda Florindo, que propõe uma análise aprofundada sobre a associação entre o otimismo da vontade e o pessimismo da razão, sem deixar de lado as diferenças fundamentais entre Marx e Weber. Conselho Editorial

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Apresentação Adriane Vidal Costa Professora Adjunta do Departamento de História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais

A 16ª edição da revista Temporalidades traz o dossiê “Linguagens, artes e política: interseções”, com a finalidade de contribuir para um profícuo debate acerca do tema e colocar em destaque propostas metodológicas e reflexões teóricas ligadas à arte e à política em interface com a história. A escrita da história está em constante movimento e se adaptando às “demandas” e transformações do seu tempo. A introdução de novos temas, novos objetos e o uso de novas fontes, permitiu aos historiadores a construção de novas metodologias de investigação histórica e novos métodos de produção do conhecimento. O alargamento do caráter interdisciplinar – ou a aproximação com outras áreas do saber – permitiu ao historiador aprimorar ainda mais a produção historiográfica. O presente dossiê, nessa perspectiva, coloca em destaque uma multiplicidade de análises e de fontes a “serviço” da escrita da história e amplia o entrecruzamento de temas, ideias e fronteiras. O dossiê apresenta, em suma, uma pluralidade de enfoques e diversidade de aparatos conceituais nos artigos que o integram. O uso de diferentes linguagens como fonte histórica é o ponto de interseção entre os artigos que compõem o dossiê. A linguagem – um termo polissêmico, definido e discutido em vários campos do saber – pode ser compreendida como um conjunto específico e abrangente de signos que contem uma mensagem. Assim, podemos afirmar que as diversas formas de arte, que são manifestações de linguagens, como a literatura, o ensaio, a música, o cinema e as artes plásticas e performáticas transmitem, com linguagens que lhes são próprias, uma mensagem ou mensagens ao seu receptor, ao seu público ao seu intérprete. A arte expressa diferentes manifestações – das mais clássicas às mais vanguardistas – e expressões culturais de uma época. Formas de arte como o teatro, a música, a literatura, o cinema, podem traduzir tanto situações comuns do cotidiano quanto relações de poder e dominação e formas de organização política e também ideias, resistências e contestações. Em grande medida, as diversas manifestações de arte são dotadas de um sentido político. São incontáveis na história os exemplos de Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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manifestações políticas através da arte, o que torna perfeitamente legítimo que o historiador faça, em suas pesquisas e reflexões, relações entre arte e política. Ao utilizar as linguagens artísticas como fonte e relaciona-las com a política, como demostram os artigos do dossiê, o historiador não pode se furtar da análise estética como também não se deve restringir a análise da arte somente à sua estrutura e forma, é necessário abranger outros aspectos que se articulam e se complementam, como, por exemplo, a análise contextual. As linguagens artísticas estão inseridas e são produzidas em determinados contextos sociais. Por isso, interessa, sobremaneira, ao historiador, compreender de forma mais abrangente a sociedade em que as linguagens foram criadas, seus valores, costumes e o papel de quem as produziu. Enfim, importa ao historiador conjugar a análise estética com a análise histórica. O dossiê é formado por nove artigos e uma entrevista. No primeiro artigo, “Por uma história do conceito de ‘barroco’: entre a arte, a identidade e outras representações coloniais”, Bruce Souza Portes, a partir dos aportes teóricos da nova história cultural e da história dos conceitos, traça e reflete sobre a trajetória do conceito de barroco com o intuito de mostrar como o termo passa por transformações e variações semânticas de acordo com os usos e apropriações que se fazem dele ao longo do tempo. Com um recorte abrangente, que vai do século XVIII à contemporaneidade, o autor estabelece relações entre as transformações do conceito de barroco com importantes transformações sociais, políticas, culturais e econômicas operadas na Europa Ocidental e na América Latina, principalmente no Brasil e em Minas Gerais. Com o artigo “A arte teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, 1961-1964”, Carla Michele Ramos analisa, em estreito diálogo com a arte engajada e revolucionária, as atividades do setor teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE), e também as concepções da entidade sobre a função da arte e do papel político do teatro. A autora mostra que o CPC da UNE surge de um processo de renovação do teatro brasileiro e das contradições econômicas e políticas do período em análise. Além disso, reflete sobre o papel que a entidade desenvolve ao fomentar um amplo debate sobre a cultura nacional e a cultura popular que alimentam suas campanhas anti-imperialistas entre 1961 e 1964. “Corpos que escrevem: vivências e práticas históricas a partir dos lugares textuais em Guimarães Rosa” é o título do artigo de Danilo Almeida Patrício, no qual analisa a obra Corpo de Baile (1956) de João Guimarães Rosa, colocando-a em diálogo com as entrevistas e correspondências do escritor mineiro. Trabalhando na interface da história com a literatura, o autor do artigo propõe uma chave interpretativa para a obra roseana: conceber a produção literária constituída de práticas Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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históricas. A partir de então, Danilo Almeida Patrício reflete sobre as experiências dos sertões brasileiros por meio, principalmente, dos personagens “os pobres do mato”, sem deixar de dialogar com o contexto de escrita da obra Corpo de Baile. Analisar o pensamento autoritário entre os militares durante a década de 1930 por meio da revista A Defesa Nacional, criada em 1913, é o desafio proposto pelos autores Fernanda de Santos Nascimento e Antônio Manoel Elíbio Júnior no artigo “A revista A Defesa Nacional: o autoritarismo, os intelectuais e os militares no Governo Vargas (1930-1937)”. O objetivo central do artigo é refletir sobre como a revista se constitui em importante espaço e veículo de discussão de assuntos militares e políticos destinados à oficialidade do Exército brasileiro no período de 1930 a 1937. Os autores mostram como muitos dos textos publicados na revista expressam críticas ao liberalismo e ao comunismo e defendem ideias autoritárias e centralizadoras. No artigo “Gloriosa conquista ou cruel destruição? A Grande Guerra (1914-1918) representada em cartões-postais alemães e franceses”, Marco Antonio Stancik analisa as representações iconográficas de temáticas associadas à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) veiculadas por cartões-postais produzidos na Alemanha e França durante o conflito. Os postais são analisados como portadores de memórias e recordações que não deixam no esquecimento acontecimentos da Grande Guerra. De conteúdo fortemente patriótico e belicoso, os cartões-postais produzidos no período, segundo o autor, nos colocam “em contato com pequenos fragmentos dos imaginários coletivos que orientavam a construção daquelas formas de representação de si, bem como do inimigo – fosse ele alemão ou francês –; do grande conflito”. Os aspectos da experiência estética do simbolismo na literatura brasileira de fins do século XIX são analisados no artigo “A experiência estética e política da geração simbolista no Brasil finissecular”, de Mariana Albuquerque Gomes. A autora, a partir de reflexões sobre a modernidade, mostra o diálogo da geração finissecular no Brasil com o simbolismo e analisa aspectos da configuração da modernidade por meio das relações entre estética e política e entre cultura e poder. Considerando as especificidades do caso brasileiro, a autora apresenta uma reflexão sobre a modernidade por meio de narrativas literárias e os espaços de sociabilidade nos quais estavam inseridos os literatos e “reconstitui”, do ponto de vista dos espaços de produção cultural, parte da “dinâmica social e histórica oitocentista”. A autora Priscilla Perrud Silva, no artigo “‘É chegada a hora de escrever e cantar, talvez, as derradeiras noites de luar: leituras sobre a Corrida Espacial na canção brasileira,” traz uma reflexão sobre o potencial da produção musical como fonte para a pesquisa histórica e, consequentemente, Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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contribui para alargar a discussão teórico-metodológica sobre o assunto. O objetivo central do artigo é analisar como alguns artistas e compositores brasileiros representam a Corrida Espacial, no contexto de Guerra Fria, em suas canções. No artigo “Letras, suor e cerveja: o literato na prosa de Arthur Engrácio”, Vinicius Alves do Amaral analisa a obra do escritor Arthur Engrácio, um importante representante da literatura amazonense. Reflete em especial sobre os contos e os ensaios produzidos nas décadas de 1970 e 1980, nos quais o escritor denuncia “a precária condição do universo artístico em Manaus” e apresenta propostas possíveis para mudar tal cenário. Além disso, analisa a trajetória intelectual de Arthur Engrácio, marcada por ambiguidades, e o insere no movimento de renovação artística regional conhecido como Clube da Madrugada. O dossiê ainda abre espaço para receber com grande satisfação a entrevista realizada com a argentina, radicada no México, Liliana Weinberg. Ensaísta, crítica literária e editora, ela atua como pesquisadora vinculada à Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Sua produção vincula-se, em grande medida, à teoria do ensaio e ao estudo dos gêneros discursivos em sua relação com a história da cultura e a história intelectual. É autora de destacados livros dedicados ao ensaio, assim como de numerosos artigos sobre as temáticas acima apontadas. A entrevista girou em torno de sua produção ensaística e de suas pesquisas e de como ela compreende as relações entre arte e produção do conhecimento, entre ensaio e ficção e entre literatura e história, e também sobre a importância da história intelectual. Para finalizar, agradecemos a todos os que colaboraram com a viabilização do dossiê e salientamos que nosso intuito foi o de despertar inquietações para além das fórmulas já consagradas de pensar as interações entre história, arte e política. Esperamos que a leitura dos textos que compõem a presente edição possibilite reflexões enriquecedoras para a construção de novos conhecimentos e a ampliação dos debates sobre o tema.

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A experiência estética da geração simbolista no Brasil finissecular

Dossiê

The aesthetic experience of the Symbolist generation in Brazil at the XIX century Mariana Albuquerque Gomes Mestranda Universidade do Estado do Rio de Janeiro mariana.albuquerque.gomes@gmail.com Recebido: 03/11/2014 Aprovado: 22/11/2014 RESUMO: Neste artigo, propõe-se trabalhar com as questões acerca da Modernidade, entendendo aqui a concepção do moderno como uma nova compreensão do mundo. Mais especificamente, serão abordados aspectos da experiência estética do Simbolismo na literatura brasileira de fins do século XIX, através de um paralelo com sua vertente francesa. PALAVRAS-CHAVES: Modernidade, Simbolismo, Literatura brasileira. ABSTRACT: In this paper, we propose to work with issues about modernity, understood here as the modern conception of a new understanding of the world. More specifically , will be worked aspects of the aesthetic experience of Symbolism in Brazilian literature of the late nineteenth century, through a parallel with the French one. KEY-WORDS: Modernity, Symbolism, Brazilian literature. Para o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), a Modernidade é o transitório, o fugidio, a metade da arte cuja outra metade é o eterno – L’Art est long et le Temp est court.1 Considerando a definição baudelairiana, Jauss apresenta a modernité, “consagrado na França, sobretudo com Baudelaire, como a palavra de ordem de uma nova estética”2, como um neologismo que deve designar a dupla natureza do belo, que permite a compreensão simultânea de vida moderna, do cotidiano histórico e da atualidade política. A consciência da Modernidade integra, na experiência histórica – que coincide com a experiência estética – o aspecto do eterno como antítese do transitório e não como oposto do “passado”. Como ressalta Laura Nery, em sua tese A caricatura: microcosmo da questão da arte na modernidade, “o histórico para Baudelaire não é mais um ponto remoto ao qual o observador atual se dirige. Para o poeta, o hiato entre presente e passado realça o que há de contingente no [“A Arte é longa e o Tempo é breve”]. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. [Trad. Ivan Junqueira] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de bolso), p. 152. 2 JAUSS, Hans Robert. “Tradição literária e consciência atual da modernidade”. In: OLINTO, Heidrum Krieger [org.]. Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 47. 1

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eterno”.3 Assim, a modernidade para Baudelaire deixa de se opor ao clássico ou ao passado e passa a opor-se a si mesma, deixando de ter relação com o passado ou com o futuro, ou seja, ela assume consciência de si mesma. Essa concepção do moderno como uma nova compreensão do mundo – que se tornará palavra de ordem de uma nova estética – é moldada ao longo do século XIX. O século XIX é definido, por Eric Hobsbawm, como a era de um “revolucionarismo endêmico”4. Para o historiador, o oitocentos foi uma época de efervescência política, social e cultural, na qual, imbuídos de um forte espírito de liberdade, artistas e literatos buscaram modificar a percepção do acerca mundo. Para tal, esses propunham novas experimentações estéticas. Em Vozes da Liberdade: escritores engajados do século XIX5, Michel Winock apresenta um panorama de como essa efervescência cultural e sua luta pela liberdade foi travada na arena pública. Através dos textos desses escritores engajados, o autor investiga o contexto político oitocentista francês a partir das ideias, laços ou desavenças intelectuais e artísticas das diferentes gerações, iniciando pelos primeiro românticos – cuja figura central foi Victor Hugo (1802-1886) – até o grupo que viveu a guerra franco-prussiana e assistiu ao surgimento da literatura naturalista, capitaneada por Èmile Zola (1840-1902). Winock mostra como essa liberdade, advinda da Revolução de 1789 – que fracassou por não ter recebido uma base institucional para enraizá-la nos costumes – fez seu percurso ao longo do século e como ela foi ora defendida, ora sublimada pelos discursos e ideias políticas. O princípio da liberdade é renovador e, para esses escritores, reivindicá-lo na arte era também reivindicar a liberdade de imprensa e de expressão, ou seja, tal demanda significava uma renovação nas artes, na política e na sociedade. Como escreve Victor Hugo, “é o princípio de liberdade que [...] acaba de renovar a arte, como renovou a sociedade”6. É nesse contexto do século XIX francês, também marcado pela valorização do lucro, da cientificidade e da técnica, e sob a divisa do progresso, que a literatura simbolista se apresenta como uma ousada experimentação ao privilegiar o sonho em detrimento da produtividade capitalista. Seus escritos se caracterizaram pelo desafio aos cânones da literatura da época – NERY, Laura Moutinho. A caricatura: microcosmo da questão da arte na modernidade / Laura Moutinho Nery; orientador: Luiz de França Costa Lima Filho. Tese (doutorado em História). PUC-RJ, Departamento de História, Rio de Janeiro, 2006, p. 150. 4 HOBSBAWM, Eric. A Era das revoluções: 1789 – 1848. [Trad. Maria Tereza Teixeira; Marcos Penchel] São Pulo: Paz e Terra, 2010, p. 184. 5 WINOCK, Michel. As Vozes da liberdade: os escritores engajados do século XIX. [Trad. Eloá Jacbina] Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 6 HUGO, Victor. Apud: WINOCK, Michel. As Vozes da liberdade, p. 153. 3

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embalados pelo naturalismo e positivismo – e a ocupação de posições diferenciadas no interior do campo literário. Mais amplamente, a noção de campo, elaborada por Pierre Bourdieu, caracteriza-se por espaços sociais, onde as ações individuais e coletivas se estabelecem dentro de uma normatização, que é criada e transformada por essas mesmas ações. Roger Chartier, em palestra na Universidade Federal do Rio de Janeiro, elucida a amplitude da noção: Os campos, segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e hierarquias. São definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria delimitação e constituídos por redes de relações ou de oposições entre os atores sociais que são seus membros.7

Em As regras da arte, Bourdieu esclarece o porquê da noção de campo ser importante nos estudos literários. Conforme o teórico, essa permite superar a oposição entre leitura interna e análise externa, abordagens tradicionalmente percebidas como inconciliáveis, sem perder suas aquisições e exigência: Conservando o que está inscrito na noção de interxtualidade [...] pode-se levantar a hipótese [...] de uma homologia entre o espaço das obras definidas em seu conteúdo propriamente simbólico e, em particular em sua forma [grifo do autor], e o espaço das posições no campo de produção [...] com efeito, em razão do jogo das homologias entre o campo literário e o campo do poder ou o campo social em seu conjunto, a maior parte das estratégias literárias é sobredetermindada e muitas das ‘escolhas’ têm dois alvos, são a um só tempo estáticas e políticas, internas e externas.8

Em seu estudo sociológico acerca da conquista da autonomia pelo campo literário, Bourdieu apresenta a estrutura quiasmática desse espaço. Neste, coexistem uma hierarquia segundo o lucro comercial que percebe os gêneros como empreendimentos econômicos – em função do preço do produto, da demora do ciclo de produção, da rapidez com que os lucros são obtidos e do volume e da qualidade social de seus consumidores – e outra que impõe a sua própria lógica, conforme o campo ganha autonomia, distinguindo os gêneros em função do crédito simbólico que estes detêm e conferem – e que tende a ser inverso ao lucro econômico. De acordo com Bourdieu, a reação simbolista deve ser percebida dentro da lógica do campo, assim como dentro da dinâmica do processo de autonomização por qual esse passa ao longo do século XIX. O oitocentos é acompanhado por um “renascimento espiritualista” em todo o campo de poder, o que – na perspectiva bourdieuniana – fornece condições para o aparecimento e sucesso relativo do movimento simbolista. Assim, a dimensão social e política da

CHARTIER, Roger. Bourdieu e a história: debate com José Sérgio Leite Lopes. Revista Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2002, p. 140. 8 BOURDIEU, Pierre. As Regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. [Trad. Maria Lucia Machado] São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 234. 7

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reação simbolista era opor uma arte artista e espiritualizada, que cultivava o senso do mistério, a uma arte social e materialista, baseada na ciência e no progressismo. A proposição literária simbolista chega ao Brasil através dos “primeiros baudelairianos”9, conforme explica Antonio Candido, num Brasil comprometido com certa ideia de progresso difundida através de jornais e romances naturalistas, que acompanhavam os modos de pensar progressistas e acadêmicos da geração finissecular. Porém, para os nossos simbolistas, a crença otimista no mundo moderno não existiu. De modo historicamente distinto, mas não inteiramente diferenciado da experiência francesa, os poetas brasileiros dessa geração10 deram à linguagem poética um caráter de reflexiva contestação sobre esse mundo. Como aponta Andrade Muricy, os simbolistas julgavam ser possível viver dentro do seu sonho, na sua poesia, no entanto, não assumiam uma postura “antihumana”, mas contra a sociedade do seu tempo. Nesse sentido, nos parece possível refletir a partir daí sobre o cenário em que se configura a

chamada

Modernidade,

suas

vertentes

transnacionais,

realçando

continuidades

e

descontinuidades. O tema aqui apresentado estaria, assim, situado na interseção entre política e cultura, espaço que constitui chave fundamental para o desenvolvimento desse artigo. Ao pensar as relações entre estética e política, cultura e poder nas (recon)figurações produzidas pela Modernidade, este artigo se organizará a partir de dois eixos conceituais – um que se apoia na leitura de textos teóricos e historiográficos; e outro que abrange textos e suportes literários (que se configuram como fontes) – e três subdivisões temáticas que pensam o contexto em que se dá essa Modernidade, a partir dos elementos boemia e marginalidade (literária), sobretudo na Paris do século XIX, o contexto brasileiro na recepção dessa nova estética moderna simbolista no fin de sciècle e as aproximações e particularidades da experiência simbolista parisiense e tropical . Desse modo, a partir das especificidades do caso brasileiro, pretende-se verificar como esta Modernidade, que se configura uma experiência ao mesmo tempo estética e política, se apresenta na literatura do Brasil de fins do século XIX. Referência ao termo designado por Antonio Candido a esses primeiros leitores, tradutores e propagadores da estética baudelairiana, no ensaio “Os primeiros baudelairianos”, disponível no livro A Educação pela noite e outros ensaios, de 1989. 10 Por “geração”, entendemos o conceito sociológico a partir da proposição clássica de Karl Mannheim, hoje ampliada e problematizada em novas abordagens, que enfatiza não apenas a coincidência de datas de nascimento e a participação no mesmo momento social e histórico. Como explicam Alda Britto da Motta e Wivian Weller, por geração o autor entende também o “tipo de participação em uma prática coletiva, seja ela concreta ou virtual, que produz um vínculo geracional a partir da vivência e da reflexão coletiva em torno dos mesmos acontecimentos [...] em uma mesma conexão geracional existem distintas unidades geracionais que correspondem a diferentes perspectivas ou posições em relação a um mesmo acontecimento”. Ver “Dossiê A atualidade do conceito de gerações de Karl Mannheim”. Sociedade e Estado, Brasília, v. 25, nº 2, Ago. 2010. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922010000200004&lng=en&nrm=iso. 9

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Boemia e marginalidade

Conforme Winock, o século XIX foi “um século trepidante, contraditório, por vezes desesperador, mas cujas obras de pensamento permanecem nossa herança inalienável”.11 Tais obras trazem marcas indeléveis da constituição da sociedade moderna, capitalista e burguesa – no caso francês, caracterizada pela crescente burguesia industrial; no brasileiro, marcada pela escravidão, pelo poder dos proprietários de terras e por uma tímida burguesia urbana. Essas questões remetem, ainda, a mais um tema central quando se pensa no século XIX: a cidade. De acordo com Carl Schorske, surgiu na França, com Baudelaire, uma nova maneira de sentir e pensar, que incluiu – inevitavelmente – a cidade.12 Sua relação com os hommes de lettres passou a se dar não mais por um julgamento ético, mas pela experimentação estética em sua plenitude: [...] estava a cidade, com todas as suas glórias e seus horrores, suas belezas e suas feiuras, como base essencial da existência moderna. O objetivo dos novi hommes da cultura moderna tornou-se não julgá-la do ponto de vista ético, mas experimentá-la em sua plenitude pessoalmente.13 (Grifos do autor)

Se antes, a cidade era situada entre passado e futuro pelo pensamento urbano – quer fosse o futuro da translação da ordem social à realidade física quando da fundação das cidades ordenadas14, quer fosse a alocação entre passado de trevas e futuro róseo da visão iluminista – com a Modernidade, o locus temporal entre passado e futuro é suprimido por uma dimensão hic et nunc apreendida pela transitoriedade. Todavia, essa transitoriedade carrega em si não só o efêmero, mas também o permanente. Trata-se, conforme Baudelaire, de retirar da moda o que essa pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório – “infini sur le fini”15. Assim, o poeta torna-se “pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno”16 Nesse sentido, o complexo contexto histórico e social das grandes cidades se faz pano de fundo da ação desses literatos. A rua torna-se personagem principal e as identidades individuais dão lugar a uma multidão de tipos fugidios – la mediante, les vieillards, las petites vieilles, les aveugles, le WINOCK. As Vozes da liberdade, p. 19. SCHORSKE, Carl E. “A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler”. In: Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. [Trad. Pedro Maia Soares]. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 66. 13 ______. “A ideia de cidade no pensamento europeu”, p. 67. 14 RAMA, Angel. A cidade das letras. [Trad. Emir Sader ]. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27. 15 “Berçant notre infini sur le fini des mers”, verso de “Le Voyage”. BAUDELAIRE. As flores do mal, p. 422. 16 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. [Org. Teixeira Coelho] Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 13. 11 12

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laboureur, la passante17 – que pedem para ser decifrados, compreendidos. Para tal, e em meio a esse espetáculo de forças incontroláveis e ameaçadoras da multidão na paisagem urbana, o olhar desenvolveu um papel fundamental para esses literatos, como aponta Walter Benjamin em seus estudos sobre a Modernidade e Baudelaire18. Conforme Maria Stella Bresciani, a importância do olhar – que pode durar um instante – decorre da própria vida cotidiana, na qual: O estar submetido a longos trajetos pelas ruas, a pé ou dentro de meios de transporte coletivo, impõe aos olhos a atividade de obversar coisas e pessoas; a vida cotidiana assume a dimensão de um permanente espetáculo. Esse olhar pode se resumir a um relance.19

Podemos captar a sensação da eternidade do olhar fugaz nos versos do poema “A une passante”, quando o olhar do eu-lírico encontra num relance a figura de uma mulher que ao passar suspende o tempo e a gritaria da rua ao redor. Do acaso20, o fugidio encontro que vai além: La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, em grand deuil, douleur majesteuse, Une femme passa, d’une main fastueuse Soulevant, balançant le feston et l’ourlet; [...] Um éclair... puis la nuit! – Fugitive beauté Dont le regar m’a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l’éternité? Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être! Car j’ignore ou tu fuis, tu ne sais ou jê vais, O toi que j’eusse Aimeé, ô toi qui le savais!21

Não obstante, o surgimento da multidão, sobretudo na Paris do século XIX, estimulou a aparição de algumas formas de afirmação de identidade nos indivíduos. A fuga da normatividade e a resistência à rígida divisão de papéis sociais do espaço moderno encontraram corpo na figura do flâneur, que era, ao mesmo tempo, ator e espectador desse processo.

A mendiga, os velhos, as velhinhas, os cegos, o trabalhador, a passante. Todos esses tipos são encontrados nos quadros parisienses [Tableaux parisiens], de Baudelaire. Ver: BAUDELAIRE. As flores do mal, p. 303-358. 18 Questões abordadas em seu ensaio “Paris do Segundo Império”. Ver: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. III. [Trad. José Carlos Martins Barbosa; Hermeson Alves Baptista] São Paulo: Brasiliense, 1989. 19 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 11. 20 Acaso que terá sua máxima expressão literária em Stéphane Mallarmé, com o poema tipográfico Un coup de dês jamais n’abolira le hasard (1914). 21 BAUDELAIRE. As flores do mal, p. 332-333. [A rua em torno era um frenético alarido. / Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, / Uma mulher passou, com sua mão suntuosa / Erguendo e sacudindo a barra do vestido. //... // Que luz... e a noite após – Efêmera beldade / Cujos olhos me fazem nascer outra vez, / Não mais hei de te ver senão na eternidade? // Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! / Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, / Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!]. 17

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O flâneur não existe sem a multidão, ainda assim, não se confunde com ela. Ele caminha em meio à multidão, confortavelmente, desafiando a divisão do trabalho, negando a operosidade e a eficiência do especialista. Não se submete ao tempo útil do trabalho, ao contrário, submetido ao ritmo de seu próprio devaneio, ele sobrepõe o ócio ao "lazer" e resiste ao tempo da indústria, do trabalho. Para Baudelaire, só o mergulho na multidão permite ao poeta tornar-se moderno: A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. [...] Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia.22

Outra importante figura para compreendermos a experiência estética da modernidade é o dândi. Para Baudelaire, o dândi não se define apenas por aquele que tem uma preocupação excessiva com a toilette23. Antes, indumentária e elegância são símbolos da superioridade aristocrática de seu espírito. Como nos deixa transparecer, Barbey D’Aurevilly: Ceci [le Dandysme] est presque aussi difficile à décrire qu’à définir. Les esprits qui ne voient les choses que par leur plus petit côté ont imaginé que le dandysme était surtout l’art de la mise, une heureuse et audacieuse dictature en fait de toilette et d’élégance extérieure. Très certainement c’est cela aussi; mais c’est bien davantage. Le dandysme est toute une manière d’être, et l’on n’est que par le côté matériellement visible. C’est une manière d’être, entièrement composée de nuances, comme il arrive toujours dans les sociétés très vieilles et très civilisées, où la comédie devient si rare et où la convenance triomphe à peine de l’ennui.24

Podemos dizer que o Dandismo é, antes de tudo, esse modo de ser que, cheio de nuances, busca pela distinção em meio a uma necessidade de originalidade dentro dos limites das conveniências – “necessidade, muito rara nos homens de nosso tempo, de combater e destruir a

BAUDELAIRE. Sobre a modernidade, p. 20. O termo toilette, aqui, se refere ao conjunto de vestimentas e acessórios combinados, geralmente usados em ocasiões mais formais. 24 [Isso (o Dandismo) é quase tão difícil de descrever quanto de definir. Aqueles que veem apenas por uma perspectiva imaginam que Dandismo seja principalmente a arte de vestir-se, uma audaciosa e feliz ditadura da indumentária e da elegância exterior. Certamente, é isto também; mas é muito mais. O Dandismo é um modo de ser, e não é apenas o lado materialmente visível. É uma maneira de ser, composto inteiramente de nuances, como sempre acontece em sociedades muito antigas e muito civilizadas, onde a comédia se torna tão rara e a conveniência triunfa com o apoio do tédio.] [Tradução livre]. BARBEY D’AUREVILLY, Jules Amédée. Du dandysme et de George Brummell. Caen: B. Mancel éditeur, 1845, p. 12. 22 23

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trivialidade” 25. Através dele, buscava-se reestabelecer o caráter vertical do indivíduo diante da crescente horizontalização da sociedade parisiense do século XIX.26 Todavia, ao contrário do que se pode imaginar, o Dandismo, ainda que instituição à margem das leis, possuía – ele próprio – leis rigorosas27 Le dandysme, au contraire, se joue de la règle et pourtant la respecte encore. [...] il la domine et en est dominé tour à tour : double et muable caractère ! Pour jouer ce jeu, il faut avoir à son service toutes les souplesses qui font la grâce, comme les nuances du prisme forment l’opale, en se réunissant.28

Para Baudelaire, o Dandismo, em seu caráter de oposição e de revolta, era o último lampejo do heroísmo na decadência francesa. Descreveria-o, ainda em 1963, como um sol poente; o astro que declina, magnífico, sem calor e cheio de melancolia.29 Imagem decadente que tornaríamos a ver nos versos de Langueur (1883) – “Je suis l'Empire à la fin de la décadence, / Qui regarde passer les grands Barbares blancs / En composant des acrostiches indolents/ D'un style d'or où la langueur du soleil danse”30 – de Paul Verlaine (1844-1896), que coroariam o Decadentismo, ao lado do romance de Joris Karl Huysmans (1848-1907), À Rebours (1884).31 Posto isso, podemos notar que o que há de específico no espaço e no tempo dessa modernidade é captado e definido, primeiramente, por Baudelaire, em sua poética, "flexível e nervosa", que surge dos choques com a grande cidade, dessa nova sociedade. Desse novo mundo paradoxal fruto de uma dupla revolução, como aponta Hobsbawm: Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nesta época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o com seu exemplo, que a revolução industrial com seu horror, enquanto a sociedade burguesa, que surgiu de ambas, transformava sua própria experiência e estilos de criação.32

O movimento da afirmação do sonho, do ideal, da fantasia, trazido pela estética simbolista, também se caracteriza como uma crítica ao mundo em que vive. A busca pela criação BAUDELAIRE. Sobre a modernidade, p. 51. “Daí a resistência crítica do dandy a esse espaço que homogeneiza a todos, anulando a singularidade dessa figura que se destaca pela elegância do figurino exclusivo”. GOMES, Rentato Cordeiro. João do Rio: vielas do vício, ruas das graças. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Prefeitura, 1996, p. 36. 27BAUDELAIRE. Sobre a modernidade, p. 48. 28 [O dandismo, ao contrário, joga com a regra e por isso ainda a respeita. (...) ele domina e é dominado por sua vez: caráter duplo e mutável! Para jogar este jogo, é necessário ter todas as levezas que fazem a graça, como as nuances do prisma ao se reunirem em opala.] [Tradução livre]. BARBEY D’AUREVILLY. Du dandysme et de George Brummell, p. 15. 29BAUDELAIRE. Sobre a modernidade, p. 51. 30 [“Eu sou o império no fim da decadência, / Que olha passar os grandes Bárbaros brancos / Compondo acrósticos indolentes / Num estilo de ouro onde o langor do sol dança”]. “Langor” [Trad. Álvaro Cardoso Gomes]. In: GOMES, Álvaro Cardoso. O Simbolismo. São Paulo: Ática, 1994, p. 11. 31 Para uma leitura mais específica sobre simbolistas e decadentistas, ver: KAHN, Gustave. Symbolistes et Décadents. 1902. 32 HOBSBAWM. A Era das revoluções, p. 403. 25 26

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de outra realidade – que tampouco é sólida – é uma espécie de negação do mundo. Esses escritores, através de seus textos literários, criticam seu mundo e propõem uma realidade poeticamente recriada. Marginais, eles cruzavam as barreiras, nem tão rígidas, que separavam a sociedade burguesa do país da Boêmia. A Boêmia, como fenômeno social definido e reconhecido, surgiu no século XIX, nas décadas de 1830-1840, e, de acordo com Jerrold Seigel, “na intersecção da ação e do significado, do gesto e do conhecimento. Era ao mesmo tempo uma forma de vida e uma interpretação dramatizada, tanto de si mesma quanto da sociedade para qual era uma resposta”. 33 O poeta mergulhava nesse mundo, transformando sua própria vida em uma obra de arte, como reintera Seigel: foi a apropriação dos estilos de vida marginais pelos burgueses jovens e não tão jovens, para a dramatização da ambivalência em relação às suas próprias identidades e destinos sociais. Muitos não boêmios experimentaram a mesma ambivalência, mas não dedicaram suas vidas a expressá-las. As pessoas eram ou não boêmias dependendo da intensidade na qual partes de suas vidas dramatizavam essas tensões e conflitos para elas próprias e para os outros, tornando-os visíveis e exigindo que fossem confrontados.34

Tal boêmia se construiu em contraste à imagem da burguesia. O que, num primeiro momento, pode levar a acreditar erroneamente que boêmia e burguesia, boêmio e burguês se constituíram como pólos opostos, intocáveis. Essa imagem pode ser desfeita se atentarmos à experiência histórica; no momento em que a boêmia se estabelecia, a sociedade burguesa também estava em processo de construção. O que existe é uma convergência entre esses pólos – boêmio e burguês – que são partes de um mesmo campo. Essa dupla-caracterização se materializa em vários escritores, um exemplo é o poeta romântico – com traços simbolistas – Gérard de Nerval (1808-1855). Consoante a Marta Kawano, a condição financeira e social de Nerval era a mesma de muitos outros contemporâneos, que, oriundos da burguesia, não conseguiam obter ganhos condizente com o esperado pela classe social que ocupavam.35 O que acabava gerando uma espécie de marginalização compulsória que caracterizava estes como boêmios e “os situava em uma zona de penumbra entre a ingenuidade e a criminalidade”.36 O próprio Nerval traça um retrato desse escritor e sua condição:

SEIGEL, Jerrold. Paris boêmia: cultura, política e os limites da vida burguesa, 1830-1930. [Trad. Magda Lopes] Porto Alegre: L&PM editores, 1992, p. 21. 34 _______. Paris boêmia, p. 20. 35 KAWANO, Marta. Gérard de Nerval: a escrita em trânsito. São Paulo: Ateliê editorial, 2009. 36 SAINT-C. “De la position sociale des artistes”, L’artiste, IV, nº5, 1832, p. 53. APUD: SEIGEL. Paris Boêmia. p. 13. 33

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Aqueles que não puderam, como Voltaire, fazer fortuna com as especulações financeiras, aqueles que não puderam, como Beaumarchais, garantir sua independência futura vendendo fusis [sic] aos americanos revoltados com a Inglaterra; aqueles, enfim, que não devem ao acaso do nascimento algumas das elevadas posições [...] que permitem cultuar as musas à sombra das tílias plantadas por seus pais; aquele, ainda, que não vendem suas penas de maneira alguma e sob pretexto algum, são naturalmente relegados à classe dos boêmios.37

Essa marginalização possibilitou, na maioria das vezes, o aparecimento de uma irreverência comportamental, como o uso de vestimentas extravagantes – Nerval passeava em meio o jardim de Toulerie com sua lagosta de estimação. Outro comportamento recorrente entre os artistas participantes dessa boêmia romântica e irreverente era a adoção de pseudônimos e apelidos – como o caso de Gérard de Nerval, que nasceu sob o signo de Gérard Labrunie. A adoção/incorporação de outros nomes pode ser compreendida como uma marca do desejo de escapar do lugar-comum, podendo também chocar a ordem estabelecida. Assim, esses artistas eram vistos como pessoas socialmente problemáticas, que se situavam dentro e fora da sociedade estabelecida, simultaneamente. Os estigmas sociais aos quais esses boêmios e literatos eram expostos compreendiam desde o exótico ao louco. Os estigmas que carregavam ressaltavam o caráter de marginalidade dos que viviam na boêmia e eram considerados, portanto, figuras marginais. Nesse sentido, de acordo com Seigel, tendo a Boêmia se expandido para onde os limites da existência burguesa eram obscuros e incertos, nos quais as fronteiras e margens sociais eram testadas, seus artistas compartilharam a experiência de uma existência marginal. Inclusive porque muitos se recusavam ou eram incapazes de aceitar uma identidade social estável e limitada, conforme a “receita” burguesa. Não obstante, tal comportamento não era desprovido de sentido. Ao contrário, era uma maneira de questionar o mundo em que viviam, assim como os valores predominantes dessa sociedade. Segundo Seigel, essa seria a configuração da boêmia, não como um reino exterior à vida burguesa, mas como a expressão de um conflito que surgiu em seu meio. Nesse sentido, apesar das fronteiras e margens que delimitavam a Boêmia e a sociedade burguesa, a primeira não foi exterior à segunda – inclusive, muitos artistas vieram da burguesia – mas sim a expressão de conflitos que surgiram no âmago dessa sociedade e que constituíram um dos aspectos mais importantes da Modernidade.

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La Presse, 7 de outubro de 1850. Apud: KAWANO. Gérard de Nerval. p. 164. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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O Fin de sciècle no Brasil

No Brasil, a cena finissecular era diferente da França. Aqui, o fin de sciècle configurou-se como um momento de crise no Império do Brasil, sobretudo, em função de uma efervescência social e política que acabou por determinar a derrocada do sistema dominante. Nesse momento, o partido Republicano ganhava força, sobretudo nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, o movimento abolicionista se estruturava – também tinha início uma inquietação nas forças militares. Em “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”, Nicolau Sevcenko ressalta que no Brasil, em fins do século XIX e meados do XX, houve um fluxo de transformações atingiu vários níveis das relações sociais.38 Marcado pela abolição da escravatura e pela proclamação da República, num contexto de avanço da industrialização, de reformas urbanas, e por uma crescente imigração, vivia-se sob a égide do progresso – do fim de um império para a consagração de uma República. José Murilo de Carvalho mostra as intensas transformações que marcaram, sobretudo, a cidade do Rio de Janeiro no conturbado período de transição do Império para a República e durante a primeira década desta.39 Dentre tais transformações, o autor destaca o crescimento demográfico – associado ao êxodo rural – e o aumento da imigração que, aliado ao cenário pósabolição, gera problemas habitacionais e de baixa remuneração – que recai o problema da marginalidade. No âmbito financeiro, o período foi marcado por uma febre especulativa de um desejo por enriquecimento, pela constante emissão de moeda e instabilidade cambial. Esta trouxe uma série de problemas inflacionários que refletiram em um aumento do custo de vida, que não acompanhado por um aumento salarial, resultou em uma forte instabilidade socioeconômica. Não obstante, a década de 1880 também foi marcada pela politização da sociedade, embora, a memória de 1889 tenha deixado registrada a ideia de que não havia povo no momento da proclamação da República. Segundo Aristides Lobo: “O povo assistiu [à proclamação] bestializado”. A frase, presente em muitos livros de história, também serviu de mote para o estudo de José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados. Nesta obra, entretanto, o autor problematiza o termo e discorre sobre a participação política fluminense nos anos iniciais da SEVCENKO, Nicolau. “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In: NOVAIS, Fernando [org.]. História da vida privada no Brasil-República: da belle époque à era do rádio. v. 3. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 7-48. 39 CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 38

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República, apontando para uma explicação a respeito deste fenômeno. Segundo o autor, o povo era ausente dos “mecanismos formais” do jogo político, sobretudo nas eleições; por outro lado, o povo estava presente nas festas populares ou no carnaval. [...] havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participação popular. Só que este mundo passava ao largo do mundo oficial da política. A cidade não era uma comunidade no sentido político, não havia o sentimento de pertencer a uma entidade coletiva. A participação que existia era de natureza antes religiosa e social e era fragmentada.40

Entretanto, para Maria Tereza Chaves de Mello, em A República consentida: cultura democrática e científica do final do Império, o debate de ideias se dava na praça pública, que era percebida como o lugar da representação nacional e popular, ao abrigar o uso público da razão e da crítica, segundo os termos da época.41 Ainda que grande parte da população permanecesse iletrada, as notícias chegavam a todos através da leitura, em voz alta, dos jornais e das conversas cotidianas realizadas nos espaços públicos. Nesse sentido, acordamos com a historiadora no que tange a importância em considerar a oralidade como forma de difusão de ideias, por intermédio de redes informais de comunicação, uma vez que “não há como dimensionar a ampliação da esfera pública na década de 1880 sem ter em mente a cultura auditiva brasileira”.42 Da vida nacional, as principais artérias em que reverberavam as discussões sobre política, economia, literatura, moda, dentre outros assuntos – alguns, inclusive, de foro particular – eram formadas pela Rua do Ouvidor e suas adjacências, na cidade do Rio de Janeiro, a capital federal, então. Ali, se concentravam as redações dos jornais, as sedes das revistas, as editoras, as livrarias, os cafés, as confeitarias, o comércio, os teatros, dentre outros. O cronista Luís Edmundo (18761961) faz um registro desse Rio de Janeiro do seu tempo, ressaltando o caráter preponderante da Rua do Ouvidor como artéria principal da cidade: A artéria principal da cidade, a mais elegante, a mais limpa, a de aspecto menos colonial, ainda é a Rua do Ouvidor. [...] Nesse trecho, com pouco mais de cem metros de extensão, é que palpita a vida elegante da cidade, trânsito obrigatório dos que chegam dos arrabaldes à parte central da cidade, a compras ou a passeio.43

CARVALHO. Os Bestializados. p. 38. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A Republica consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. 42 _______. A Republica consentida. p. 52. 43 EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. (1938). Brasília: Senado Federal, 2003, p. 39-40. 40 41

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A Rua do Ouvidor era o palco dos grandes acontecimentos nacionais e a passarela da sociedade fluminense; lugar de exibição dos literatos. Pelas suas calçadas, viam-se todos os tipos de pessoa44 Assim era a Rua do Ouvidor, a pequena artéria da vida nacional, por onde perambulava todo tipo de gente; vitrine da moda, das ideias, dos acontecimentos; lugar de exibição dos talentos, da boêmia, das celebridades. Era um tambor cujo eco se ouvia em todo país. O que nela acontecia, quem nela se projetasse, ganhava.45

De acordo com Maria Tereza Chaves de Mello, essa concentração na Rua do Ouvidor foi possibilitada pelo uso generalizado dos bondes como meio de transporte para o centro da cidade. De fato, para se pensar a vida na cidade do Rio de Janeiro na virada do século, inclusive a vida literária, é preciso compreender o impacto das reformas urbanas realizadas pelo governo federal de Rodrigues Alves e a municipal de Pereira Passos. Tais intervenções urbanísticas foram realizadas em dois eixos, sob duas perspectivas distintas, a da modernização – no Cais Pharoux, pelo governo federal – e outra organicista – mais ampla e planejada pela prefeitura. A modernização da zona portuária aparecia como agente propiciador da civilização através do progresso material. Já o segundo eixo, planejado por Pereira Passos, e que envolvia a integração do centro – pela Avenida Central – com outras áreas da cidade, operava com uma percepção organicista de cidade. Conforme apresenta o historiador André Nunes de Azevedo: Pereira Passos operava com uma visão de cidade organicista, que idealizava a cidade como corpus continente de diversos órgãos vitais, no qual é fundamental a ligação destes para o funcionamento harmônico do corpo urbano. Sendo assim, a ideia de integração urbana rege o processo de urbanização, pois a cidade passa a ser vista com suas funções interligadas, uma vez que é percebida como uma totalidade, um verdadeiro organismo que justifica o sentido de existência dos diversos órgãos interligados que o sustentam.46

A concepção do Rio de Janeiro como cidade organismo foi subordinada à ideia de civilidade, sendo esta baseada em um conjunto de valores – sobretudo, urbano-burgueses – desenvolvidos pela sociedade europeia ao longo da modernidade. As avenidas constituíam o principal instrumento de remodelação da cidade, pois, ao mesmo tempo em que possibilitava a circulação urbana, provocava uma transformação na ocupação social dos espaços urbanos. Além de Luís Edmundo, Paulo Barreto – o João do Rio – também contribuirá com o registro dos tipos sociais dessa sociedade em suas crônicas, reunidas em A Alma encantadora das ruas. Ver: RIO, João do. A alma encantadora das ruas. [Organização Raul Antelo]. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 45 MELLO. A Republica consentida. p.61. 46 AZEVEDO, André Nunes. “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana”. Revista Rio de Janeiro, n. 10, maio-agosto, 2003, p. 44. 44

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Quatro princípios básicos são enumerados por Nicolau Sevcenko como fundamentais para o transcurso dessa metamorfose urbana: A condenação dos hábitos e costumes ligados à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.47

E, assim, o “Rio civiliza-se”48, com a modernização do porto, a abertura de novas avenidas para integrar a cidade, a demolição das casas – cortiços e casas de cômodos – do centro para a construção dos novos prédios ornados em Art Nouveau e os novos espaços – então civilizados – reocupados socialmente.49 É colocada abaixo a velha cidade colonial para a construção do cenário moderno: cidade dual – “cena” e “obcena” – conforme Renato Cordeiro Gomes50. Segundo Laura Moutinho Nery, em Cenas da vida carioca: Raul Pederneiras e a belle époque do Rio de Janeiro51, era “preciso representar-se à altura do cosmopolita, especialmente o modelo francês”. É possível perceber como se dá essa encenação, a partir de uma passagem – irônica – em Luís Edmundo: Nós, porém, vivemos satisfeitos, acreditando que habitamos a mais branca, a mais linda e a mais adiantada das metrópoles do mundo, conformados, até, com o espectro da febre amarela; sem indústria, mandando buscar calçados na Inglaterra, casimiras na França e até palitos em Portugal, com um comércio todo de estrangeiros, com uma agricultura que não cuida do plantio que possa fazer concorrência a “nações amigas” [...].52

Encenado e, portanto, sem tradição, o cosmopolitismo excluía da modernidade as formas de transformar os homens, como demonstra Antonio Edmilson Martins Rodrigues em “História da urbanização no Rio de Janeiro”. Ao mesmo tempo, esse cosmopolitismo acentuava a dependência externa, inviabilizando a formação de um mercado interno. 53

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.43. 48 Expressão utilizada pelos cronistas, jornalistas e literatos que vivenciavam as reformas urbanas na capital federal. 49 A estética do Art Nouveau não se restringiu à arquitetura, tendo transitado nas Letras também. José Paulo Paes tem estudos interessantes acerca do artenovismo na literatura brasileira. 50 GOMES. “A cena e a obsena”. In: João do Rio, p. 31-37. 51 NERY, Laura Moutinho. Cenas da vida carioca: Raul Pederneiras e a belle époque do Rio de Janeiro/ Laura Moutinho Nery; orientador: Margarida de Souza Neves. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de História, 2000, p. 117. 52 EDMUNDO. O Rio de Janeiro do meu tempo, p. 26. 53 RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. “História da urbanização no Rio de Janeiro. A cidade: capital do século XX no Brasil”. In. CARNEIRO, Sandra de Sá; SANT’ANNA, Maria Josefina Gabriel [orgs]. Cidade: olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 85-119. 47

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Sendo assim, no que se refere à cidade do Rio de Janeiro, especificamente, uma das faces mais fortes do progresso representava a transformação da, agora, sede da República através da higienização e saneamento da paisagem urbana e social. Da construção de avenidas – inspiradas nos boulevares parisienses – e prédios no estilo Art Nouveau, perpassando a adoção de padrões e valores europeus no que dizia respeito à moda, às artes e ao comportamento, é concebido o plano de cidade ideal sob o lema do positivismo. Conforme Renato Gomes, rege a ideia de “destruir para construir, apagar o passado identificado com o atraso”.54 As ideias de ordem e progresso que se fortaleceram no período que sucede a Proclamação, nos inícios da república brasileira, culminaram no ideário da chamada belle époque. Entretanto, dentro desse quadro que se apresentava como progressista e cosmopolita – ainda que no discurso predominasse a ênfase da ruptura com as práticas monárquicas – permaneciam características do antigo regime na nova ordem republicana. É nesse cenário brasileiro – de mudanças físicas, materiais e simbólicas – que essa nova poética chega através da leitura de Baudelaire nos círculos literários.

Simbolismo: o parisiense e o tropical A publicação da obra Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, em 1857, é considerada o marco de uma nova estética literária. Baudelaire reflete sobre o tédio que os tempos modernos – no contexto da revolução industrial, da lógica capitalista-industrial – lhe inspiram; o poeta fala da solidão existencial e dos vícios do homem, dos amores fracassados. Ele propõe, sobretudo, uma nova abordagem da vida na cidade cosmopolita, inaugurando uma nova perspectiva crítica e temática. Desse outro patamar, temas menores ou cotidianos considerados sórdidos e repugnantes, como uma carcaça ganham tratamento inovador, enquanto estímulos a uma reflexão sobre a experiência urbana moderna, sobre a beleza atual, ao mesmo tempo decaída e inspiradora. Como podemos observar no poema “Une charogne” (“Uma carniça”): Rappelez-vous l’objet que nous vîmes, mon âme, Ce beau matin d’été si doux: Au détour d’um sentier une charogne infame Sur um lit semé de cailloux, Les jambes em l’air, comme une femme lubrique, Brûlante et suant le poisons, Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique GOMES. Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 106. 54

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Son ventre plein d’exhalaisons. Le soleil rayonnait sur cette pourriture, Comme afin de la cuire à point, Et de rendre au centuple à la grande Nature Tout ce qu’ensemble elle avait joint; Et le ciel regardait la carcasse superbe Comme une fleur s’épanouir. La puanteur était si forte, que sur l’herbe Vous crûtes vous évanouir. [...]55

O que Baudelaire apresenta, ao nível do poético, é um descontentamento com o mundo em que está inserido e, igualmente, com o modo de pensá-lo e de conceber a arte, em geral. Sua linguagem carregada de metáforas, alusões e símbolos é precursora do Simbolismo. O Simbolismo se configurou, enquanto escola literária, no período entre 1885 e 1895, compreendendo “um movimento literário de ampla filiação, um cénacle que publicava manifestos, patrocinando revistas literárias”.56 Literariamente, o Simbolismo intensificou a ideia romântica de que só se pode captar a essência misteriosa das coisas pela palavra evocadora, portanto, para os simbolistas, fazer poesia implicava em – através dos símbolos – aludir, sugerir e não mostrar os objetos diretamente. A estética do movimento tem como princípio o uso do símbolo, da musicalidade, da expressão indireta dos estados de espírito e das correspondências para expressar as complexas intuições de uma realidade oculta e inacessível. Sua forma de expressão é vaga, aberta, uma vez que seu verso é símbolo de realidades ocultas, transcendentais e suprassensíveis que não podem ser apreendidas objetivamente. Para o poeta Paulo Leminski, o simbolismo mudou de sentido: do olho para o ouvido. Assim o poeta simbolista seria um músico, de palavras, sílabas, vogais e consoantes. 57 Verlaine foi um dos expoentes desses poemas sinfonias, a exemplo dos versos “Les sanglots long / Des violons / De l’automne / Blessent mon coeur / D’une langueur / Monotonne”.58

[Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos / Numa bela manhã radiante: / Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, / Uma carniça repugnante. // As pernas para cima, qual mulher lasciva, / A transpirar miasmas e humores, / Eis que as abria desleixada e repulsiva, / O ventre prenhe de livores. // Ardia o sol naquela pútrida torpeza, / Como a cozê-la em rubra pira / E para ao cêntuplo volver a Natureza / Tudo o que ali se reunira. // E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça / Como uma flor a se entreabrir. / O fedor era tal que sobre a relva escassa / Chegaste quase a sucumbir // (...)].BAUDELAIRE. As flores do mal, p. 186-187. 56 BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. [Trad. José Bonifácio] São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 11. 57 LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 65. 58 [“Os soluços / Longos dos violinos / Do outono / Ferem meu coração / De um langor / Monótono”]. “Canção do outono”. VERLAINE, Paul. Apud: GOMES. O Simbolismo, p.26. 55

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Com Arthur Rimbaud (1854-1891), experimenta-se uma linguagem desregrada de todos os sentidos e que busca integrar os diversos tipos de sensações – como podemos perceber já no primeiro verso de “Voyelles” (“Vogais”): “A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleau: voyelles”. 59 Esses poetas provocaram uma revolução na linguagem poética, que passou a apresentar uma concepção metafísica da poesia. Entretanto, essa experiência estética não estava divorciada do contexto histórico e cultural no qual evoluiu. O caráter hermético do simbolismo, que possibilitou a exploração das imagens evocadas, a linguagem velada que sugere sua “condição de coisa misteriosa”, a fusão das sensações físicas com as espirituais, o tornou universal. Como ressalta Balakian: Com o simbolismo, a arte deixou de ser nacional e assumiu as premissas da cultura ocidental. Sua preocupação maior era o problema não-temporal, nãosectário, não-geográfico e não-racional da condição humana.60

Por volta de 1890, teve início o momento de irradiação do simbolismo parisiense, do qual vários poetas de diferentes nacionalidades retiraram os principais traços estético-temáticos, transportando-os e os adaptando para seus próprios idiomas e realidades sócio-históricas. Por isso, o simbolismo alcançou diversos países, assumindo diferentes formas. No Brasil, essa renovação estético-literária foi marcada pela publicação de Broquéis, em 1893, de Cruz e Sousa (1861-1898). De acordo com Alfredo Bosi, nada “se compara em força e originalidade à irrupção da obra cruz-sousiana, que renova a expressão poética brasileira”.61 Enquanto a sociedade burguesa francesa era, sobretudo, urbana e industrial, a sociedade brasileira, no início do XIX, ainda tinha em suas bases uma economia agrícola, sustentada pelo trabalho escravo. Entretanto, no decorrer da segunda metade do século XIX, a sociedade brasileira passaria por mudanças fundamentais nos campos político, econômico e social. O Brasil do XIX era um país marcado pela ciência, que penetrava como moda e depois como prática e produção, conforme aponta Lília Schwarcz, em sua obra O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.62 De acordo com a historiadora, o país consumia os modelos evolucionistas e social-darwinistas, difundindo uma ideia de progresso apoiado nas inovações científicas através de jornais e romances naturalistas. Nesses, os

[“A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais”]. “Vogais”. RIMBAUD, Arthur. [Trad. Álvaro Cardoso Gomes]. Apud: GOMES. O Simbolismo, p. 41. 60 BALAKIAN. O Simbolismo, p. 15. 61 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 270. 62 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 59

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personagens eram condicionados pelas máximas deterministas e os enredos inspirados em Darwin e Spencer, ou pelas teorias raciais da época. Os modelos evolucionistas e social-darwinistas, que já estavam bastante ultrapassados na Europa, eram usados para definir e reforçar a ideia da inferioridade dos negros em relação aos brancos. Segundo Schwarcz, as ideias científicas entraram nas cidades através da adoção de programas de higienização e saneamento, com o objetivo de implementar projetos de cunho eugênico que visavam eliminar doenças, assim como separar a loucura e a pobreza. Todas essas mudanças, que ocorreram de forma lenta, atuaram na maneira de ver e entender dos poetas que estavam vivendo essa nova realidade. A geração finissecular de poetas brasileiros pôde experimentar o início uma industrialização e o crescimento de algumas cidades, principalmente com o processo de urbanização e modernização da cidade do Rio de Janeiro. Como já dito, esse período também compreendeu mudanças na vida política, pois o país vivenciava o momento de transição de um Império para uma República, além da questão da abolição e do fim da escravidão. É nesse sentido que Cruz e Sousa, enquanto poeta de – e para além de – seu tempo, nos defronta, conforme Vera Lins, com o nosso trauma da escravidão.63 A crítica literária chama a atenção para percebermos como sua experiência, enquanto poeta-negro-filho-de-escravos, se transfigurou em linguagem poética: O vinho negro do imortal pecado Envenenou nossas humanas veias Como fascinações de atrás sereias De um inferno sinistro e perfumado. O sangue canta, o sol maravilhado Do nosso corpo, em ondas fartas, cheias, Como que quer rasgar essas cadeias Em que a carne o retém acorrentado. E o sangue chama o vinho negro e quente Do pecado letal, impenitente, O vinho negro do pecado inquieto. E todo nesse vinho mais se apura, Ganha outra graça, forma e formosura, Grave beleza d’esplendor secreto.64

LINS, Vera. Poesia e crítica: uns e outros. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.108-109. CRUZ E SOUSA, João da. “Vinho negro”. Apud: MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 178-179. 63 64

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No campo das belas artes, o Simbolismo brasileiro foi sufocado pelo Parnasianismo – ao contrário do que se deu nos países europeus. A literatura realista parnasiana acompanhava fielmente os modos de pensar progressistas e acadêmicos da geração finissecular brasileira. Sufocado pela “homogeneização parnasiana, solidamente estratificada e cultuada pela maioria dos artistas oficiais do momento”65, o Simbolismo no Brasil não exerceu a função relevante que o diferenciou na vertente europeia. No entanto, ainda que o Simbolismo brasileiro tenha encontrado resistência frente ao prestígio da estética literária legitimada – especialmente marcada pelo realismo-naturalismo e, na poesia, pelo parnasianismo, cânones da produção ficcional de fins do século XIX – ele coexistiu, como ressalta Antonio Candido, com essa literatura da tradição e se misturou. Ao mesmo tempo, o Simbolismo brasileiro colocou em jogo uma série de concepções e práticas que acabaram por dissolver o formalismo dessa estética canônica. Para os simbolistas, a crença otimista no mundo moderno não existiu. Conforme o historiador da literatura Andrade Muricy: [...] os simbolistas julgavam poder viver dentro do seu sonho, na sua poesia, quer dizer: nos seus momentos contemplativos, e que não assumiam, então, postura anti-humana; anti-social sim, mas contra a sociedade do seu tempo, contra o ‘burguês’, como diziam Flaubert e Huysmans.66

Segundo Vera Lins, no artigo “Os Simbolistas: virando o século”67, os simbolistas brasileiros aderiram inicialmente às novas propostas, sendo ardorosos republicanos e abolicionistas, mas depois se desencantaram com o rumo tomado por esses movimentos, especialmente sua extração positivista e liberal. Todavia, não se excluíram do mundo em torres de marfim. Ao contrário, os poetas simbolistas deram à linguagem poética um caráter de reflexiva contestação sobre esse mundo que lhes dava a sensação de estar em crise. Tal contestação – que, na Paris de Baudelaire, assume uma crítica ao novo mundo urbano industrial – assume, no Brasil, em alguns poetas, traços de interesse social e cultural. Como vimos a questão racial no poema cruz-sousiano “Vinho Negro”, e que em “Emparedado”, prosa poética do mesmo autor, apresenta traços de revolta.

PEIXOTO, Sergio Alves. A Consciência criadora na poesia brasileira: do barroco ao simbolismo. São Paulo: Annablume, 1999, p. 194. 66 MURICY. Panorama do movimento simbolista brasileiro, p. 46. 67 LINS, Vera. “Os Simbolistas: virando o século”. In. Revista o eixo e a roda. v. 14. Rio de Janeiro: 2007, p. 113-125. 65

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Para os simbolistas, a realidade era muito complexa para ser apreendida e descrita de maneira racional e objetiva, como pretendia o Parnaso, o Naturalismo e o Realismo. Então, eles voltaram sua escrita para o universo interior e os aspectos não racionais e não lógicos da vida, como o sonho e o transcendental, o que lhes garantiu, muitas vezes, um caráter místico – algumas vezes gnóstico – de suas obras. Segundo Vera Lins, com o simbolismo, o “artista é atravessado pelo mundo, sua linguagem é o lugar em que a experiência se articula com pensamento sem reduzir aquilo sobre que se pensa, como ideias estéticas, que não cabem conceitos”.68 Vemos, então, o simbolismo tomar corpo nesse Brasil finissecular que passava por intensas e radicais transformações, como a proclamação da República e a abolição da escravidão. Ambos os processos modificaram as estruturas políticas, econômicas e sociais que haviam sustentado a sociedade, agrária e aristocrática, do Império. Concomitantemente, começam a serem idealizados e realizados, os projetos de urbanização dos grandes centros – sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo – além de um incipiente momento de crescimento industrial e, consequentemente, de expansão da burguesia e formação de uma classe operária. Em um país que lentamente se industrializava, ainda sustentado, sobretudo pela agricultura e dependente de importações de produtos, a indústria editorial engatinhava. As editoras existentes privilegiavam os autores parnasianos, positivistas e naturalistas, que se integravam aos cânones da literatura. Dessa forma, a grande maioria das criações simbolistas circulava através de revistas literárias, nas quais se debatia sobre a nova estética moderna que agitava o meio artístico-literário, como a Folha Popular – periódico a partir do qual se formou o grupo simbolista liderado por Cruz e Sousa. Vale ressaltar que muitos autores colaboraram como cronistas, caricaturistas e desenhistas gráficos para esses periódicos e revistas literárias. Desse modo os simbolistas tiveram significativa contribuição para a evolução do mercado de periódicos, ao lançarem grande número de revistas – ainda que os títulos durassem, na maioria das vezes, apenas alguns números, o que pode ser um indicativo da fragilidade do mercado editorial e da estética literária simbolista no Brasil finissecular – assim como representaram grande avanço nesse setor editorial, notavelmente pelo seu apuro gráfico. Sendo assim, e de acordo com Flora Sussekind, é importante que se faça uma história da literatura brasileira que leve em conta suas relações com uma história dos meios e formas de

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LINS. Poesia e crítica, p.112. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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comunicação, inclusive porque suas inovações e transformações afetam tanto a consciência de autores e leitores quanto as formas e representações literárias propriamente ditas.69 Dentre as revistas simbolistas se destacaram, principalmente, as cariocas Rio-Revista e RosaCruz. Mas também outros centros urbanos tiveram revistas que devem ser igualmente destacadas de modo a compor o conjunto singular de publicações do movimento. Assim, poderemos recorrer aos periódicos paranaenses Clube Curitibano, O Cenáculo e O Farol, as mineiras Horus e A Época, ao baiano Nova Cruzada e a importante revista cearense Padaria Espiritual, que lançou o periódico O Pão. Na primeira década do século foram publicadas as revistas literárias que ficariam famosas, sobretudo, pela sua qualidade editorial e gráfica. Como é o caso das cariocas Kosmos e Fon-Fon!. As inovações tipográficas – relembremos aqui o poema tipográfico de Stéphane Mallarmé (18421898), “Un coup de dés jamais n'abolira le hasard”70 – realizadas pelos simbolistas possibilitaram a publicação de poemas figurativos, que exploravam as possibilidades linguística-estéticas, e páginas coloridas, a partir das tecnológicas de impressão. Ao mesmo tempo, esses impressos ajudavam a melhorar a qualidade da indústria gráfica no país. Nesse sentido, o texto literário pode ser encarado como objeto histórico, transformandose em instrumento da criação de novas culturas políticas, da formação de novas sociabilidades e de representações tanto de status e poder, quanto de marginalidade. Por conseguinte, não somente expressão de uma experiência histórica específica, mas também agente de transformação dessa mesma experiência. Podemos perceber, então, o Simbolismo, que se apresentou como uma alternativa estética, como parte de uma das culturas políticas contemporâneas ao Parnaso, mas que foi – no caso brasileiro – abrangido pela cultura política dominante. Sendo assim, refletir sobre a Modernidade através da boemia, das narrativas literárias e seus suportes, desses literatos e os espaços de sociabilidade nos quais estavam inseridos é, portanto, considerar simultaneamente os espaços oficiais de produção cultural dos quais estes mesmos escritores estavam marginalizados, reconstituindo a dinâmica social e histórica oitocentista.

SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 26. 70 “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. [Tradução livre] 69

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O conceito de "barroco": entre a arte e a identidade

Dossiê

The concept of "baroque": between art and identity Bruce Souza Portes Graduado em História pela UEMG-Favale Especialista em Cultura e Arte Barroca pela UFOP Mestrando em História pela UFSJ Email: bruceopmg@yahoo.com.br Recebido: 03/11/2014 Aprovado: 02/03/2015 RESUMO: Nesse artigo discutiremos algumas questões relacionadas ao conceito de “barroco”, especialmente a partir dos estudos críticos que vêm revisitando sua acepção generalista. Buscaremos posicionar nossa proposta de análise conceitual do “barroco” a partir das novas perspectivas historiográficas legadas pela nova história cultural e, em especial, pela história dos conceitos. Por fim trataremos propriamente da trajetória desse conceito, enfatizando suas transformações semânticas ocorridas desde o século XVIII, a fim de relacioná-las com os programas nacionalistas e identitários que encabeçaram essas apropriações, desde os estados nacionais europeus de fins do séc. XIX até a intelectualidade latino-americana contemporânea, com especial destaque aos casos brasileiro e mineiro. PALAVRAS CHAVE: Barroco, História dos conceitos, Mineiridade. ABSTRACT: In this article, we will discuss some issues related to the concept of "baroque", especially from the critical studies that have revisited its general sense. We will seek to position our proposal of a conceptual analysis of the Baroque from new historiographical perspectives bequeathed by the new Cultural History, and in particular, the History of Concepts. Finally, we will properly address the course of this concept, emphasizing its semantic transformations that have occurred since the Eighteenth Century, in order to relate them to the Nationalism and identity programs that led these appropriations, from the European Nation-states of the late Nineteenth Century to the contemporary Latin American intellectuals, with special emphasis to the Brazilian and Mineiro cases. KEYWORDS: Baroque, History of concepts, mineiridade. Introdução: Pendulando entre as esferas artística e identitária ao longo de todo o século passado, a ideia de "barroco" 1 como um conceito estilístico compreendido nos limites da história da arte, encontra-se há muito deteriorada pelo alargamento desse conceito aos domínios historiográficos das mentalidades, cultura e identidade coletiva, dentre outros. Pressupondo a questão estilística Para especificar nossa proposta de análise conceitual do barroco, optamos por representar o termo sempre entre aspas quando tratar-se do conceito de barroco, como se as aspas substituíssem a expressão o conceito de. Nos demais casos, em que barroco for utilizado como mera adjetivação de obras, artistas ou período histórico, as aspas não se farão presentes. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 1

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ou da evolução dos tipos 2 - apenas como a ponta visível do iceberg que envolve a construção do conceito, falar de "barroco" torna-se uma empreitada tão complexa quanto a de compreendê-lo. Lançando mão de algumas ferramentas teóricas legadas pela historiografia contemporânea, buscamos analisar criticamente a construção histórica das acepções mais usuais e consagradas do conceito, propondo a compreensão de "barroco" como uma representação formada por um conjunto de conceitos cunhados desde os fins do séc. XIX, que ora se complementam, ora se contradizem, conforme o programa estético, intelectual ou político então hegemônico. Refutando a ideia de que qualquer acepção específica de "barroco" possa representar uma suposta definição correta do conceito, contrapondo-se então às demais variações ditas erradas ou imprecisas, propomos a compreensão dessa diversidade semântica construída ao longo de todo o século como a própria representação do conceito. Deste modo, compreender o conceito de barroco como uma representação nos moldes aqui apresentados, implica necessariamente na negação de uma suposta divisão entre a objetividade das estruturas e a subjetividade das suas representações em determinado processo histórico.3 Aplicado à proposta de uma história do conceito de barroco como aqui pretendemos, entendê-lo enquanto uma representação implica em considerar todas as suas variações semânticas cunhadas ao longo do tempo como um todo intrínseco e indissociável daquilo a que chamamos de "barroco". Esta visão não implica em aceitar a ideia de que essas definições partem necessariamente de ideias complementares que nos permitam traçar um perfil evolutivo do conceito representado. Pelo contrário, descartamos tacitamente a ideia de uma atuação supostamente cooperativa das ditas comunidades acadêmica e artística ao longo do tempo em prol da construção de um conceito mais ou menos homogêneo de "barroco" 4. Essas definições, a bem da verdade, além de comumente contraditórias, originam-se sistematicamente de ferrenhas lutas de representação entre as elites intelectuais pela apropriação de "barroco" e, por conseguinte, dos louros políticos, econômicos e turístico advindos dos seus usos. Sobre “evolução dos tipos”, estamos nos referindo à proposição metodológica de Heinrich Wolfflin para a história da arte, que pressupunha, sob forte influência positivista, uma dinâmica própria ao campo das formas artísticas que fosse cognoscível autonomamente, independente das variáveis históricas atuantes no contexto de produção da obra. A esse respeito ver WOLFFLIN, Heinrich. A Evolução dos Tipos. In: Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália. Tradução: Mary Amazonas Leite de Barros e Antônio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.103 - 130). 3 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Tradução: Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002, p. 72. 4 A esse respeito, seguimos a análise de Pierre Bourdier a respeito das lutas de representações no meio científico, publicadas em seu artigo "O campo científico", onde o autor desconstrói minuciosamente a ideia de uma comunidade científica supostamente coesa e homogênea em prol da produção de conhecimento. Ver: BOUDIER, Pierre. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato. (org). Pierre Bourdieu - coleção grandes cientistas sociais. São Paulo: Editora Ática, 1983, p. 122-155. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 2

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Arquitetura, escultura, pintura, literatura, música, história nacional, organização social, miscigenação racial, mentalidades, festejos e danças coletivas, religiosidade, práticas funerárias, estilo discursivo, estado de consciência, enfim, praticamente nada há na história das sociedades ocidentais dos séculos XVI ao XVIII – especialmente nesta capitania mineradora - que atualmente não possa ser em maior ou menor grau vinculado à etiqueta “barroco”, seguindo o mesmíssimo receituário que a historiografia tradicional aplicou às noções de "antigo" ou "medieval", dentre tantas outras. A despeito das delimitações de forma, espaço e tempo propostas na cunhagem original do estilo em fins do séc. XIX pelo historiador da arte suíço Heinrich Wolfflin, “barroco” chegaria aos dias atuais remetendo à totalidade um período histórico supostamente unificado em suas manifestações sociais, política, culturais e espirituais pelo uso do conceito, não sendo este - como atesta Adalgisa Campos - “apenas um estilo artístico, mas uma visão de mundo envolvendo formas de pensar, sentir, representar, comportarse, acreditar, criar, viver e morrer.” 5.

Por uma história do conceito de "barroco". Compreendemos inicialmente que analisar “barroco” como conceito não refuta ou imprime juízo de valor sobre as definições estilísticas, culturais, históricas ou comportamentais cunhadas a partir do termo. Visto que esse julgamento do mérito das rotulações seria uma proposta metodológica mais própria a uma história da arte, o que nos cabe aqui em uma proposta de análise conceitual de "barroco" é compreender e demonstrar como essas sucessivas conceituações oriundas dos mais diversos ramos intelectuais – inclusive, mas não somente, o artístico - constituem uma trajetória estreitamente ligada aos programas estéticos e políticos das elites intelectuais em questão, compondo uma complexa trajetória marcada por ferrenhas lutas de representações. Lutas estas que passam pela consolidação de um passado cultural unificador dos estados nacionais europeus, pela emancipação cultural das nações latino-americanas sobre a herança metropolitana, pela construção de um Brasil modernista culturalmente autônomo e, por fim, pela construção de uma “mineiridade” capaz de criar uma identificação coletiva para esses "povos da montanha" 6 - nos termos de Affonso Ávila - a partir de uma herança cultural barroca. Pensar uma história do conceito de barroco presume a definição clara do que aqui entendemos por “conceito” e mesmo por “história do conceito”. Vejamos o que define o Pequeno

CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introdução ao Barroco Mineiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2006, p. 7. AVILA, Affonso. Apud: AGUIAR, Melania Silva de. Prefácio. In: MENDES, Nancy M. O Barroco Mineiro em textos. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 33. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 5 6

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Dicionário Filosófico de Mark Rosental e Pavel Iudim, cuja publicação original remete ainda ao ano de 1939, a respeito do verbete “conceito”: Uma forma do pensamento que generaliza grupos de dados, de elementos, de fenômenos diversos, formando noções ou termos que representam as relações entre esses elementos. Por ser uma abstração da realidade, o conceito se altera de acordo com a situação histórica, o local, as condições e interesses envolvidos; assim sendo, deve ser explicado em termos destas realidades. 7

Se é inequívoco que essa sucinta definição contribui para uma noção mais historicizada do termo por presumir a atuação de forças externas à mera dinâmica vernacular na mudança de significados, convém ressaltar que para fins metodológicos, ainda parece-nos carecer de uma demonstração mais clara das peculiaridades do conceito que o tornam tão mais distinto quanto valioso em relação à palavra comum. É essa carência, ou a busca em saná-la, que nos conduzem à teoria do historiador alemão Reinhart Koselleck e suas proposições a respeito da história dos conceitos, onde a multiplicidade da realidade e da experiência histórica está diretamente agregada á pluralidade de significados adquiridos por um conceito ao longo do tempo. Para Koselleck, a peculiaridade do conceito sobre a palavra dar-se-ia, sobretudo, pelo fato de que naquele, o significado e o significante coincidem na mesma medida em que a multiplicidade da realidade e da experiência histórica se agrega à capacidade de plurissignificação de uma palavra. Nos termos do autor: O sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso. Um conceito, ao contrário, para poder ser um conceito, deve manter-se polissêmico. Embora o conceito também esteja associado a uma palavra, ele é mais que uma palavra: uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstâncias políticosociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ele.8

É justamente essa totalidade histórica agregada aos conceitos, chamada por Koselleck de “espaço de experiência”, que determina o juízo de valor sobre sua apropriação, trazendo os méritos e deméritos da experiência pretérita do termo para qualificar aquilo que se pretende rotular no presente e que, por usa vez, direciona as perspectivas de significação futura do objeto conceituado, criando para ele um novo “horizonte de expectativa” 9. Portanto, conclui Koselleck que: a investigação do campo semântico de cada um dos conceitos principais revela um ponto de vista polêmico orientado para o presente, assim como um

ROSENTAL, Mark.; IUDIM, Pavel. Pequeno Dicionário Filosófico. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1959, p. 89 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 109. 9 A respeito das proposições teóricas de Koselleck sobre "espaço de experiência" e "horizonte de expectativa", ver: KOSELLECK, Reinhard. Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas. In: Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto / Ed. PUC-Rio, 2006, p. 305 - 327 Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 7 8

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componente de planejamento futuro, ao lado de determinados elementos de longa duração da constituição social e originários do passado.10

Apesar de Koselleck desenvolver suas propostas teóricas e metodológicas para uma história dos conceitos sociais e políticos, consideramos que suas formulações oferecem uma chave de leitura apropriada e perspicaz para a trajetória de “barroco". Isto se deve ao fato desse conceito, apesar de originalmente ter uma acepção estilística própria à história da arte, ter sido apropriado sistematicamente ao longo do tempo para atender a programas das mais diversas naturezas, da estética à história nacional, da emancipação cultural à identidade regional. Dito isto, ratificamos que propor uma história do conceito de barroco como aqui o fazemos, pressupõe o reconhecimento de que o aspecto estilístico ou da “evolução dos tipos" não esgota o conceito. Muito pelo contrário, comumente as empreitadas intelectuais em torno de "barroco" nas quais se lançaram muitos historiadores da arte, ensaístas, intelectuais e pesquisadores diversos ao longo do séc. XX, foram precedidas ou acompanhadas de programas políticos, econômicos e culturais que fizeram da definição do estilo apenas a faceta mais visível de um complexo jogo de interesses e representações. O resultado foi a transformação de "barroco" de um conceito estilístico definido e sistematizado originalmente por Heinrich Wolfflin, em uma generalidade semântica que, segundo Lourival Gomes Machado, perdeu-se na "vaguidão de aventuras pseudofilosóficas, que pretendiam explicar a forma barroca por um indefinido espírito barroco". 11 A categorização estilística de Wolfflin. O convívio com a auto-rotulação das vanguardas artísticas contemporâneas pode conduzir-nos ao equívoco do anacronismo quando, aplicando-se conceitos estilísticos cunhados a posteriori, generalizamos a prática de etiquetar determinadas manifestações artísticas de outros tempos. Estas etiquetas, que têm em "barroco" um exemplo marcante, comumente abarcam traços psicologizantes e preceitos pós-românticos emergidos a partir do séc. XIX - tais como a originalidade como inovação, autoria como propriedade intelectual ou a criação como expressividade do artista - que, se aplicadas sem as devidas ressalvas podem condicionar o desenvolvimento de uma análise anacrônica e transistórica sobre as manifestações artísticas em questão. Nesse sentido, o caso de “barroco” é exemplar, com a sinuosa trajetória do conceito vendo uma acepção pejorativa aplicada a pérolas irregulares e disformes até meados do século XVIII, transformar-se já nas primeiras décadas do século passado numa etiqueta positiva KOSELLECK. Reinhart. Futuro Passado, p. 101. MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003 (Col. debates - arte, nr. 11), p. 153. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 10

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caríssima aos projetos nacionalistas e identitários de muitas elites intelectuais e artísticas contemporâneas, especialmente as latino-americanas. No início do séc. XVIII, o padre Raphael Bluteau apresentou o verbete "barroco" no seu Vocabulário portuguez & latino, como “pérola tosca, & desigual, que nem he comprida, nem redonda [...], chato de uma banda & redondo da outra”.12 Em fins desse mesmo século, Antônio de Moraes Silva publica em Lisboa seu Diccionário da Língua Portugesa, versão revisada e acrescida da obra de Bluteau, onde o mesmo verbete aparece definido como “Pérola irregular, com altibaixo. Penedo pequeno irregular”.13 Por fim, já no século XIX, o Diccionário da Língua Brasileira publicado em Ouro Preto por Luiz Maria da Silva Pinto em 1832, apresenta "barroco" de forma ainda mais sucinta, definido como “Pérola tosca com altibaixos”.14 A conclusão imediata que se apresenta a partir dessas definições é a de que aqueles aos quais identificamos e analisamos atualmente por artistas “barrocos”, não só desconheceram essa palavra como um rótulo estilístico, como jamais o aceitariam por seu sentido depreciativo à época de suas existências. Tendo transcorrido todo o século XVIII e o XIX sem significativas alterações semânticas, “barroco” recebe sua primeira acepção positiva já em fins do Oitocentos, com os estudos de Heinrich Wolfflin, escritor e historiador da arte suíço, discípulo de Jacob Burckhardt. Em seu livro Renascença e Barroco de 1888, Wolfflin categorizou pela primeira vez “barroco” como um estilo autônomo e positivo na história da arte, rompendo com a longa duração do caráter pejorativo do verbete e fixando, em nosso entendimento, o marco inicial para uma história desse conceito nos moldes aqui propostos. Agora devidamente categorizado como estilo artístico, "barroco" ganharia suas primeiras delimitações de forma, espaço e tempo histórico: Costuma-se designar como o nome de barroco o estilo no qual se dissolveu a Renascença ou – como se diz muitas vezes – o estilo que resultou da degeneração da Renascença [...]. Não existe um barroco italiano geral e homogêneo. Mas entre as transformações que sofre a Renascença e que diferem entre si conforme as regiões, só a que se processou em Roma pode reivindicar o valor da tipicidade, se me é lícita a expressão [...] Finalmente, o barroco romano é a transformação mais completa e radical da Renascença [...]. Quanto ao passado, o Barroco está limitado pela Renascença, quanto ao futuro, pelo

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico [...] Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, 2° volume, p. 58. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1>. Consultado em 13/11/2013. 13 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, v. 1, p.267. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/2/barrooco>. Consulta em 13/11/2014. 14 PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832, volume único, p. 19. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/ptbr/dicionario/3/barroco>. Consultado em 28/10/2014. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 12

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Neoclassicismo, que começa a surgir depois de meados do séc. XVIII; ao todo o Barroco ocupa cerca de duzentos anos.15

Quase três décadas mais tarde, Wolfflin daria novos contornos ao seu conceito de “barroco”, definindo no seu livro Conceitos Fundamentais para a História da Arte, publicado em 1915, uma metodologia objetiva para identificação de uma obra de arte “barroca”, baseada em cinco pares de conceitos comparativos e opostos ao classicismo renascentista: 1. A leitura pictórica: enquanto o clássico é linear e plástico, o barroco é pictórico. A linha limita e isola os objetos da visão, por isso a leitura da obras clássica é nítida e distinta, cada elemento é concreto e perfilado. No barroco houve uma evolução para linhas mais livres, luzes e sombras, que conferem movimento e até dissolvem a figura. 2. A superposição dos planos: a arte clássica se revela na superfície, pois o plano é o elemento próprio da linha. No barroco a imagem se organiza através da superposição de planos e a visão se dá em profundidade. A desvalorização do contorno é responsável pelo desaparecimento da representação em superfície. 3. A forma aberta: do clássico ao barroco a evolução se dá da forma fechada para a forma aberta. Embora toda a obra de arte se apresente como uma forma fechada e completa em si mesma, a comparação entre as formas clássicas e barrocas revela o segundo muito mais solto e flexível, enquanto o clássico obedece às leis rígidas de construção. 4. A unidade da composição: a multiplicidade caracteriza o clássico, e a unidade, o barroco. No primeiro caso há pluralidade de elementos que, autônomos, formam um conjunto. No barroco os elementos isolados perdem a expressividade, uma vez que é a visão única, globalizada, a primeira que se percebe. 5. O contraste luz e sombras: a clareza absoluta no clássico evolui para a clareza relativa no barroco. A clareza está intimamente ligada à forma de representação. A linha e a composição em superfície favorecem a leitura da obra de arte, enquanto que a clareza fica prejudicada em estilos pictóricos construídos com diversos planos de profundidade, movimentados por contrates de luz e sombra, característicos do barroco. 16

A profunda formação filosófica de Wolfflin, certamente teve reflexo na sua análise e construção do conceito. Contudo, as delimitações explícitas de forma, espaço e tempo, bem como a sua objetividade metodológica para identificação do estilo, mantiveram o “barroco” original sempre nos limites das manifestações artísticas. Mesmo defendendo que as linguagens plásticas de uma determinada época tendem a adquirir características comuns, as ambições unificadoras de "barroco" em Wolfflin limitavam-se às manifestações artísticas em questão, quais sejam, o legado arquitetônico, escultórico e pictórico da Itália pós-renascimentista. Da Europa para o Novo Mundo.

WOLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália. Trad.: Mary Amazonas Leite de Barros e Antônio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 25-26 (Col. Stylus, n. 7). 16 SILVA, Regina Helena Dutra Rodrigues Ferreira da. Wolfflin: estruturas e forma na visualidade artística. In: WOLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália. Trad.: Mary Amazonas Leite de Barros e Antônio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 16 (Col. Stylus, n. 7). Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 15

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Como a criatura que foge ao controle do criador, “barroco” expandiu-se rapidamente por toda a Europa encaixando-se como uma luva nos programas ideológicos dos estados nacionais que buscavam, sobretudo, a construção de um passado comum para suas populações. Rastreando os artifícios de construção dessas “comunidades imaginadas” em que se constituiriam os estados nacionais modernos, Benedict Anderson nos alerta que para além dos mapas e dos sensos demográficos, um terceiro instrumento foi fundamental na construção do nacionalismo moderno, qual seja, os museus, espaços privilegiados de apresentação palpável da memória coletiva unificada sob a representação de uma herança histórica e cultural comum.17 Nesse contexto, “barroco” tornou-se um artifício simbólico caríssimo às elites nacionalistas, sendo apropriado sistematicamente como ícone de um passado artístico nacional, legado por uma herança cultural comum dessas populações.

Se é inegável que o aspecto estilístico foi, a qualquer tempo, o tronco central de "barroco", é igualmente inegável que nas apropriações programáticas do conceito tal aspecto jamais o esgotou, sendo fundamental que a etiqueta "barroco" homogeneizasse toda uma herança cultural expressa também nas letras, nas mentalidades, nas tradições comportamentais, dentre outros. O “barroco”, como nos lembra João Adolfo Hansem, extrapolaria agora os limites do estilo para designar sociedades inteiras: Desde que Wolfflin usou o termo como categoria estética positiva, a extensão dos cinco esquemas constitutivos de ‘barroco’ – pictórico, visão em profundidade, forma aberta, unificação das partes a um todo, clareza relativa – passou a ser ampliada, aplicando-se analogicamente a outras artes do séc. XVII, como as belas letras, apropriadas como ‘literatura barroca’ em programas modernistas e estudos de tropos e figuras feitos segundo a conceituação romântica de retórica como estilística restrita à elocução psicologicamente subjetivada, para em seguida classificar e unificar as políticas, as economias, as populações as culturas, as ‘mentalidades’ e, finalmente, sociedades européias do séc. XVII, principalmente as ibéricas contra-reformistas, com suas colônias americanas, na forma de essências: ‘o homem barroco’, a ‘cultura barroca’, a ‘sociedade barroca’. 18

Portanto, após uma longa duração da acepção pejorativa original da qual nos relata Bluteau ainda no século XVII, “barroco” ganhara com Wolfflin em 1888 uma categorização estilística que entendemos ser a pedra fundamental para história desse conceito. História essa que

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 37. 18 HANSEN, João Adolfo. Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas. In: Teresa: revista de literatura brasileira. São Paulo: FFLCH - USP, n. 2, 2001, p. 10. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 17

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se de fato se inicia no campo estilístico próprio à história da arte, rapidamente transborda para os campos da cultura, das mentalidades, das belas letras, enfim, da história nacional. Já devidamente estabelecido como um estilo de época na Europa, “barroco” aporta no Novo Mundo como o germe da emancipação cultural das nações latino-americanas sobre a herança colonial. Deste modo, apropriado pela intelectualidade local para a construção de uma identidade nacional que significasse o rompimento com a dominação cultural metropolitana, não bastaria que ele fosse “barroco”, teria de ser distinto da sua matriz européia. Devidamente tropicalizado e mestiçado por historiadores, pesquisadores e ensaístas locais, "barroco" agora se apresneta como “colonial”, “americano” ou “tropical”, dotado de características peculiares à história e à paisagem latino-americana que fossem, sobretudo, inacessíveis ao universo europeu metropolitano. Bem ilustrativo a esse respeito é a análise de Ricardo Averini: Antecipo uma conclusão: o barroco dos países latino-americanos é a primeira forma de arte co-natural e legítima na qual se exprimem a progressiva ascensão daquelas populações e a aspiração, que já não se pode deter, a uma estruturação social orgânica e civil, diferenciada da metropolitana: delas nascerá a consciência de nacionalidades autônomas e distintas.19 Nenhuma forma vegetal européia pode sofrer o confronto, com extensão e ímpeto dinâmico, ponhamos o caso, com as talhas fitomórficas do arco de alcova do Mansi em Lucca: na cidade toscana a presença de tal obra de arte pode ser naturalmente considerada o fruto duma ampliação fantástica, duma imaginação excitada e exorbitante. Mas a folha enrolada dum ‘imbauba’ brasileiro ou de uma ‘orelha de elefante’ tolera perfeitamente a comparação, não digo com as volutas e talhas dos países europeus, mas com os próprio fortes cotovelos e obliqüidades da alfaia de talha duma obra de arte como a Matriz de Tiradentes.20

O "barroco" no Brasil: nacionalismo e mineiridade. Assentado no novo mundo desde os fins do séc. XIX, “barroco” cai rapidamente nas graças da intelectualidade brasileira, fervorosa com o programa modernista de "redescoberta" cultural do Brasil implementado a partir dos anos de 1920. Nesse contexto, "barroco" é apropriado para etiquetar a herança legada pelas manifestações artísticas luso-brasileiras dos séculos XVII e XVIII, sobretudo na capitania mineradora, mas não sem antes, receber os caracteres peculiares requisitados pelo programa nacionalista em questão. Já devidamente tropicalizado, “barroco” vê agora sua mestiçagem migrar da matriz indígena privilegiada por alguns intelectuais latino-americanos, para a matriz negra e mulata abundante na América portuguesa e nas Minas Gerais. Esse “barroco” nacionalista, buscando enfaticamente identificar a AVERINI, Ricardo. Tropicalidade do Barroco. In: AVILA, Affonso. Barroco teoria e análise. Belo Horizonte: Cia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997, p. 26. (Coleção Stylus, n° 10). 20 ______. Tropicalidade do Barroco, p. 28. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 19

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arte colonial como a “primeira grande cristalização artística de uma autêntica cultura brasileira”,21 toma o mulatismo como um fenômeno cultural característico dessa arte, elege um artista símbolo como gênio original, e constitui-se, deste modo, no germe de uma cultura genuinamente brasileira. Nada mais natural que por essas bandas essa responsabilidade recaísse sobre Antônio Francisco Lisboa, o gênio mulato Aleijadinho, conforme ilustra a célebre passagem de Mário de Andrade a respeito do artífice mineiro: Por outro lado, ele coroa, como gênio maior, o período em que a entidade brasileira age sob a influência de Portugal. É a solução brasileira da Colônia. É o mestiço e é logicamente a independência. [...] Era de todos, o único que se poderá dizer nacional, pela originalidade das suas soluções. Era já um produto da terra, e do homem vivendo nela, e era um inconsciente de outras existências melhores de além-mar: um aclimado, na extensão psicológica do termo. [...] De fato, Antônio Francisco Lisboa profetizava para a nacionalidade um gênio plástico que os Almeida Juniores posteriores, tão raros! São insuficientes para confirmar. É um mestiço, mais que nacional. Só é brasileiro porque, meu Deus! Aconteceu no Brasil. E só é o Aleijadinho na riqueza itinerante das suas idiossincrasias. E nisto em principal é que ele profetizava americanamente o Brasil [...].22

O pensamento militante de Mário de Andrade ecoaria nas décadas seguintes dando o tom da apropriação nacionalista que dominaria "barroco" no Brasil. Ademais, como observa Affonso Romano de Sant'Anna, o "olhar estrangeiro" atuaria fortemente na consolidação e difusão desta acepção nacionalista do conceito, sobretudo pelos estudos de renomados pesquisadores como Roger Bastide, Germain Bazin, Curt Lange e Riccardo Averini.23 Analisando essa apropriação modernista de “barroco” em contraposição aos relatos dos viajantes estrangeiros do século XIX sobre a arte colonial mineira, Guiomar de Grammont aponta que: No discurso modernista, o movimento é contrário: revalorizar a arte local para integrá-la no vasto programa de ‘redescoberta’ das raízes da arte brasileira, enfatizando aspectos como a miscigenação racial e cultural. O que chamamos ‘redescoberta’, contudo, em nossa perspectiva significou efetivamente a invenção de um país que ó o Brasil modernista, para que o que a ‘redescoberta’ das raízes culturais _ inclusive do ‘barroco’_ é fundamental. [...] Em sua maior parte, os modernistas eram jovens da elite que tiveram mais ou menos contato com a cultura européia, e, em um fenômeno comum a esse tipo de experiência, o confronto com o ‘velho’ mundo os fez indagarem-se sobre sua própria identidade. Eles inventam uma pátria a qual possam ter orgulho de pertencer. 24

BOSCHI, Caio Cesar. Barroco Mineiro: artes e trabalhos. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 7. (Coleção Tudo é História, n. 123) 22 ANDRADE, Mário de. A arte do Aleijadinho. In: MENDES, Nancy Maria. Barroco Mineiro em textos. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 88. 23 SANT'ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 268. 24 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 40. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 21

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Apesar de fazer uso de “barroco” para tratar da arte colonial mineira e do Aleijadinho mesmo que de forma imprecisa e titubeante - curiosamente não encontramos em Mário de Andrade qualquer menção ao conceito de um "barroco mineiro”, mesmo com as abundantes referências nacionalistas para esta arte barroca produzida nas Minas Gerais. Isso se deve à primazia do aspecto nacional no programa modernista e que se refletia diretamente nos seus usos de "barroco". Segundo sugere Myriam Ribeiro de Oliveira, a primeira insinuação do conceito de "barroco mineiro" coube a Lourival Gomes Machado em seu referencial estudo O Barroco em Minas Gerais, publicado postumamente na coletânea Barroco Mineiro.25 Na esteira da proposta conceitual de Machado, percebemos em meados do século passado as primeiras investidas intelectuais de grupos de pesquisadores e ensaístas mineiros em busca da apropriação regional de "barroco" e da consagração da ideia de uma vertente "mineira", como quem requer pra si os louros de uma herança artística própria que há décadas vinha sendo cultivada por uma intelectualidade forasteira. A partir de então entra em cena nos anos de 1960 uma verdadeira cruzada intelectual e política que se estenderia pelas décadas seguintes a fim de tornar hegemônica no cenário nacional esta representação "mineira" de "barroco". Esta luta de representações tupiniquim em torno de “barroco”, ganharia o centro do debate sobre as artes e cultura no Brasil ao longo de toda a segunda metade do século XX, resultando no êxito retumbante dessa proposta conceitual mineira, que transformou "barroco" nos dias de hoje, seja para o senso comum ou para a crítica especializada, em um sinônimo de Minas Gerais. Concentrados, sobretudo, em torno do Centro de Estudos Mineiros da UFMG e da Revista Barroco, criada e dirigida por Affonso Ávila por três décadas, historiadores, artistas e ensaístas do barroco desencadearam uma empreitada intelectual cuja proposta conceitual encontraria no isolamento da capitania, na atuação maciça de artistas negros e mulatos e no uso de matérias primas locais como a pedra-sabão, o tripé particularizador que a noção de um “barroco mineiro” requisitava.26 A partir dessa proposta é que Minas Gerais veria nas últimas décadas a consolidação das suas cidades históricas como o palco por excelência de contemplação da verdadeira arte barroca, e sua identidade regional se construir a partir da ideia de uma herança

MACHADO, Lourival Gomes. O Barroco em Minas Gerais. In: Barroco Mineiro. São Paulo: Perspectiva, 2003 (Col. debates - arte, nr. 11), p. 151-176. 26 Quanto à origem de “barroco mineiro”, não se sabe ao certo quem utilizou essa expressão pela primeira vez. Miriam Ribeiro de Oliveira sugere, conforme observa Nancy Maria Mendes, que Lourival Gomes Machado poderia tê-lo criado em seu artigo ‘O barroco em Minas Gerais’. Todavia, o tema ainda é uma lacuna aberta a pesquisas mais conclusivas sobre essa questão. Ver: MENDES, Nancy Maria. Barroco Mineiro em textos. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 39. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 25

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cultural "barroca" comum a "esses povos da montanha" 27. É o "barroco mineiro" tomado como pilar fundamental de construção de uma "mineiridade". O pensamento militante de Affonso Ávila talvez seja o mais ilustrativo dessa concepção, ao defender que “o barroco dá o tônus da formação do organismo da sociedade mineradora, com suas festas públicas, solenidades religiosas, e seu cenário de formas e cores.”

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O poeta ratifica

esta posição de “barroco” como um estilo de civilização em outro trecho notório: Transplantou-se para Minas dessa época um estilo mais de civilização do que estritamente de arte, o qual, favorecido pelas condições geográficas da região, acabou cristalizando-se no seu insulamento e marcando fundamentalmente a trajetória mental do povo das montanhas.29

“Barroco mineiro” agora, tal como "barroco" desde outrora, consolidar-se-ia como um estilo de civilização, tornando-se junto à vasta gama de pesquisadores e ensaístas que debruçavam-se sobre a história da capitania mineradora, uma categoria privilegiada para rotular, descrever e condicionar em maior ou menor grau, a interpretação de tudo o que diz respeito à vida e à história dos habitantes dessas terras. Um conceito caro à elite intelectual mineira que, à imagem e semelhança de "barroco", extrapolou rapidamente os limites da forma e do estilo para abarcar elementos sociais, políticos, culturais e comportamentais, comumente a serviço de programas identitários, econômicos e turísticos.30 Considerações finais: novas perspectivas para "barroco" É possível identificar duas tendências razoavelmente distintas no tratamento de "barroco" pela historiografia da arte, pesquisadores e ensaístas do tema ao longo do tempo, para as quais esses autores tendem em maior ou menor medida. Uma que retoma e aprofunda as delimitações estilísticas do conceito e outra que, ao contrário, propõe sua ampliação para além dos limites da arte e do estilo, transformando-o numa categoria unificadora do passado que, em última instância, cumprirá o papel de espelho cultural da contemporaneidade. Essas duas tendências,

AVILA, Affonso. Apud: AGUIAR, Melania Silva de. Prefácio. In: MENDES, Nancy M. O Barroco Mineiro em textos. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 33. 28 ______. Iniciação ao Barroco Mineiro. São Paulo: Nobel, 1984, p. 7. 29 ______. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1964, p.111. 30 A respeito dos usos econômicos e turísticos de “barroco mineiro”, ver o estudo de caso sobre a cidade de Tiradentes feito por Rodrigo Neves em sua dissertação de mestrado, onde o autor investiga a construção do cenário colonial da cidade nas últimas décadas, concluindo que "a área central e 'histórica' passou por reconfiguração material e simbólica que a transformou em mercadoria rentável, atraindo significativos volumes de gastos de consumo, ao mesmo tempo em que, gerando forte especulação imobiliária, excluiu e deslocou a maioria da população de origem tiradentina que habitava e vivia nesse local.” NEVES, Rodrigo. História e turismo: a “mercadorização” do patrimônio histórico e a elitização da área central de Tiradentes, Minas Gerais (1980-2012). Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de São João del Rei, Programa de Pós-Graduação em História, São João del Rei, 2013, p. 123. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 27

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chamadas por Benito Pelegrin de "arqueológica" e "neológica" 31, ilustram de forma simplificada porém apropriada a trajetória dos usos de "barroco" desde sua caracterização como conceito estilístico ainda em fins do Dezenove até os dias atuais. Atualmente, entendemos que os usos generalistas do conceito têm sido amplamente dominantes, com "barroco" sendo aplicado pelo senso comum e pela crítica especializada para rotulações de toda sorte, tais como a identidade cultural brasileira em exposições internacionais 32, os festejos populares das cidades históricas

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ou até mesmo o feitio Divino 34. Nesse contexto atual, o debate nacional sobre "barroco" têm nos apresentado duas propostas antagônicas no tratamento do conceito. Por uma lado, alguns teóricos e pesquisadores como João Adolfo Hansem, advindos sobretudo das letras coloniais, acenam para o completo abandono do conceito por se tratar, nos moldes como hoje se tem apresentado, de "uma etiqueta totalmente dispensável quando se trabalha com os resíduos do século XVII e ainda do XVIII" 35. Por outro lado, conceituados pesquisadores ligados a história da arte, como Myriam Ribeiro de Oliveira36, Rodrigo Espinha Baeta37, dentre outros, têm produzido nas últimas décadas reflexões sistemáticas sobre os limites conceituas de "barroco" que, em última instância, tentam resgatar a funcionalidade do conceito, seja para análises específicas sobre arquitetura colonial mineira ou para a reavaliação dos princípios essenciais de um espírito barroco que teria dominado o mundo

PELEGRIN, Benito. Visages, virages, rivages du baroque. Apud: GRAMMONT, Guiomar de. O Conceito de Barroco: um jogo de espelhos? In: Revista do IFAC, n. 2. Ouro Preto, dez. 1995, p. 94. 32 Faço aqui referência à exposição Brasil Barroco: entre o céu e a terra, promovida no Petit Palais de Paris entre Novembro de 1999 e Fevereiro do ano seguinte, como parte das festividades oficiais pelos 500 anos de descobrimento do Brasil. 33 Aqui me refiro ao slogan "Do barroco ao profano" adotado pela Secretaria de Turismo de Mariana para rotular e promover o carnaval de 2015 do município. 34 Faço aqui referência a declarações do pintor e pesquisador José Efigênio Pinto Coelho, responsável por atribuições altamente duvidosas a obras do Aleijadinho, onde confessa em entrevista à Revista de História da Biblioteca Nacional que "o meu Deus tem cara de barroco mineiro". Ver: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro: SABIN (Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional. Ano 5, nr. 51, Dezembro de 2009, p. 18 35 HANSEM, João Adolfo. Sobre alguns usos de "barroco". São Paulo: DLCV - FFLCH - USP, s/d; p. 18. 36 A respeito das críticas de Myriam Ribeiro ao uso generalizado de "barroco" sobre a arquitetura colonial mineira e que, segundo a autora, tem erroneamente ofuscado a presença das soluções maneiristas e rococós produzidas na capitania, ver: OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. Reavaliação do barroco mineiro. In: MENDES, Nancy Maria. O Barroco Mineiro em textos. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 127-130. 37 Nos dois estudos do autor que nos foram fruto de apreciação, O Barroco, a arquitetura e a cidade nos século XVII e XVIII, publicado em 2010 pela editora da UFBA, e Teoria do Barroco, publicado pela mesma editora dois anos mais tarde e onde Baeta se debruça com muita propriedade sobre os aspectos teóricos que pavimentaram a construção do conceito ao longo do século XX, o autor parece apontar para uma mesma proposta sobre o conceito e que, não por acaso, já se apresenta na orelha do segundo livro citado, qual seja, a de promover uma investigação que alcance um recorte teórico seguro sobre o conceito de Barroco. Apesar de continuar investindo na ideia de um "espírito barroco" que teria caracterizado o mundo ocidental durante os séculos XVII e XVIII, o autor deixa claro a necessidade de uma revisão crítica dos usos correntes do conceito que, nos moldes como se apresentam atualmente, não oferecem sustentação a qualquer construção teórica pretensamente coerente e viável de "barroco", para a análise das manifestações artísticas em questão, no caso do autor especialmente arquitetura e a conformação urbana do chamado período barroco. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 31

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ocidental por cerca de dois séculos. De qualquer modo, o que nos parece certo é que "barroco" adentra no século XXI fadado a trilhar a mesma estrada sinuosa que o conduziu pelo debate sobre as artes e a cultura ocidental ao longo de todo o século passado, e cujo destino final é tão incerto quanto instigante aos que se aventuram no tema.

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Dossiê

Gloriosa conquista ou cruel destruição? A Grande Guerra (1914-1918) representada em cartões-postais alemães e franceses Glorious conquest or cruel destruction? The Great War (1914-1918) represented on postcards from Germany and France

Recebido: 29/10/2014 Aprovado: 27/11/2014

Marco Antonio Stancik* Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG marcostancik@hotmail.com

RESUMO: O trabalho analisa representações iconográficas de eventos associados à Primeira Guerra Mundial, ou Grande Guerra (1914-1918), veiculadas por cartões-postais produzidos e circulados na Alemanha e na França ao longo do conflito. Através da comparação, constata-se que aqueles pequenos souvenirs comunicavam mensagens de caráter verbal e não-verbal, não apenas divulgando e/ou reafirmando determinados elementos constituintes dos imaginários coletivos relativos ao conflito, como ainda empenhavam-se no sentido de contribuir para a sua construção. PALAVRAS-CHAVE: Primeira Guerra Mundial, Cartões-postais, Imaginário. ABSTRACT: The paper examines iconographic representations of events associated with the First World War or the Great War (1914-1918) conveyed by postcards produced and circulated in Germany and France during the conflict. Through the comparison, it is observed that those little souvenirs communicating verbal and nonverbal messages, helping to disseminate and/or reaffirm present aspects in the collective imaginary relating to conflict and also contributing to its construction. KEYWORDS: First World War, Postcards, Imaginary. Introdução Em meados do mês de abril de 1917 um cartão-postal foi despachado de Béziers, no sul da França. O nome do destinatário, bem como o endereço de sua residência não foram registrados por Ernest, seu remetente. Naquele contexto, em plena Grande Guerra, conflito iniciado em 1914 e que ainda se estenderia por mais um ano e meio1, para além da mensagem *

O presente estudo se insere no Projeto de Pesquisa Continuada “História e imagens: discursos imagéticos e representações”, coordenado pelo autor junto à UEPG. 1 Sobre a Primeira Guerra Mundial, ou Grande Guerra (1914-1918), consultar: CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Trad. Berilo Vargas e Laura T. Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 2014; Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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manuscrita, merece particular atenção a imagem que estampa seu anverso, pois também ela constitui significativa mensagem. Nela, um combate aéreo não especificado foi representado através de uma ilustração cuidadosamente colorizada a mão. Na cena, a ação era acompanhada atentamente por dois soldados: um integrante da infantaria francesa e outro da cavalaria russa (Figura 1). Similares a este, que tem origem francesa, incontáveis cartões-postais daquele período foram produzidos por diferentes países envolvidos no conflito, estampando cenas de caráter nitidamente belicoso. Ao fazê-lo não apenas contribuíam para manter o assunto presente, como muitas vezes mostravam-se propensos a reafirmar a necessidade de combater ao inimigo. Para tanto, tendiam a exibir divergentes interpretações daquilo que vinha se passando, tanto na frente de combate, como no front doméstico, onde as mulheres tiveram que substituir aos homens, tanto nas fábricas, como no campo2. Sendo assim, é possível tomar contato com diferentes elementos constituintes dos imaginários coletivos3 do período através do questionamento de tais formas de representações iconográficas presentes nos cartões-postais e, além destes, nos muitos outros recursos que se serviram de discursos iconográficos ou não, produzidos naquele contexto e que também tiveram a Grande Guerra como temática. É o caso de periódicos, cartazes, selos postais, entre tantos outros. Por isso essas formas de comunicação assumem especial relevância no campo do simbólico, uma vez que veiculavam não necessariamente formas de “reprodução” ou “cópias” do real, impossíveis de obter, mas reconstruções do mesmo. Ou seja, embora em muitas delas fosse FERGUSON, Nial. O horror da guerra: uma provocativa análise da Primeira Guerra Mundial. Trad. Janaína Marcoantonio. São Paulo: Planeta: 2014; FERRO, Marc. História da Primeira Guerra Mundial. 2. ed. Trad. Stella Lourenço. Lisboa: Edições 70, s.d.; HASTINGS, Max. Catástrofe - 1914: a Europa vai à guerra. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014; HOWARD, Michael. Primeira Guerra Mundial. Trad. Rosaura Eichenberg. Porto Alegre, RS: LPM, 2010; ISNENGHI, Mario. História da Primeira Guerra Mundial. Trad. Mauro Lando e Isa Mara Lando. São Paulo: Ática, 1995; KEEGAN, John. Agosto de 1914: irrompe a Grande Guerra. Trad. Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Renes, 1978; KEEGAN, John. História ilustrada da Primeira Guerra Mundial. 3. ed. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004; KEEGAN, John. Uma história da guerra. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia. das Letras, 2006; SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial. Trad. Roberto Cataldo. São Paulo: Contexto, 2013; WILLMOTT, H. P. Primeira Guerra Mundial. Trad. Cecília Bartalotti, Myriam Campello e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. Observe-se que as indicações referem-se apenas a obras traduzidas para o português. 2 Para estudos relativos ao emprego de postais no contexto da Grande Guerra, tal qual aqui se propõe, consultar STANCIK, Marco Antonio. Representações fotográficas do feminino em cartões-postais franceses relativos à Grande Guerra (1914-1918). Patrimônio e Memória, Assis/SP, v. 9, n. 1, p. 171-195, 2013. Disponível em: http://pem.assis.unesp.br/ index.php/pem/article/view/323/627; STANCIK, Marco Antonio. O imaginário sobre o militar em cartões-postais franceses (1900-1918). História, Franca/SP, v. 31, n. 1, p. 101-120, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/his/v31n1/a06v31n1.pdf. 3 Para uma breve e elucidativa discussão em torno da noção, aqui concebida como um “estado de espírito que caracteriza um povo [...]. Uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável”, consultar: MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade: entrevista a Juremir M. da Silva. Revista Famecos, mídia, cultura e tecnologia, Porto Alegre, n. 15, 2001. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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patente a inspiração em eventos reais, não se pode lhes atribuir uma pretensa “exatidão”. No caso específico dos cartões-postais emitidos ao longo da Grande Guerra, constata-se que: [...] mais que captar a realidade, eles realizaram uma manipulação/ reinterpretação/teatralização, de forma a expor versões tidas como aceitáveis daquilo que se passava no período. Empreenderam, afinal, um trabalho de produção de sentido, que é social, cultural, histórico.4

E assim comunicavam mensagens de caráter não-verbal, não apenas divulgando e/ou reafirmando determinados elementos constituintes dos imaginários coletivos, como ainda evidenciavam o empenho de seus autores no sentido de contribuir para a sua construção5. Sendo assim, esses postais são tratados no presente estudo na forma de verdadeiros souvenirs, quer dizer, lembranças. Ou seja, são percebidos como pequenas dádivas ou presentes, mas também se considerando sua ligação com a memória, o não-esquecimento, o recordar6, para o qual contribuíram ao oferecerem uma determinada interpretação. Isso fez deles recursos também empregados na condução da guerra, pretendendo-se assim viabilizar seu prosseguimento. Especialmente por se caracterizar, e em escala até então inédita, conforme o modelo da moderna guerra total. Tratava-se, portanto, de uma conflagração que envolvia não apenas combatentes, mas também civis de ambos os sexos e até mesmo de várias idades; que afetava e era travada não apenas na linha de frente, mas que também causava gigantesca destruição nos centros urbanos; e que assim exigia praticamente todos os tipos de recursos que uma nação se revelasse capaz de produzir. Conforme resume Marc Ferro, “em 1914, os alemães avaliavam a aliança com a Romênia em divisões de infantaria. Em 1916, era avaliada em milhões de quintais de trigo”.7 Para que isso pudesse se concretizar, corações e mentes teriam que estar continuamente mobilizados. E assim, apesar de sua aparente inocência, pequenos souvenirs como os cartõespostais eram destinados não apenas a falar sobre a guerra, assunto premente naqueles tempos, como também muitos deles o faziam de maneira nitidamente favorável ou até mesmo apologética. É isso que se pretende evidenciar por intermédio da análise comparativa de uma pequena amostra de postais daquele período, produzidos e circulados na França e na Alemanha, sempre com temática associada ao conflito8. Em outras palavras, trata-se de discutir o seu STANCIK. Representações fotográficas do feminino, p. 192. Sobre a relevância dos postais enquanto meio de comunicação amplamente utilizado por diferentes segmentos sociais nos tempos da Belle Époque, consultar STANCIK. Representações fotográficas do feminino, p. 172-175. 6 STANCIK. O imaginário sobre o militar, p. 118. 7 FERRO. História da Primeira Guerra Mundial, p. 158. 8 O acervo utilizado nas reflexões aqui apresentadas pertence ao autor e é composto atualmente por aproximadamente 450 exemplares originais, entre os quais aproximadamente 50 por cento foram produzidos na 4 5

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emprego como verdadeiras armas de guerra, embora de aparência singela, por intermédio das quais, entre outras finalidades, seus criadores empenhavam-se no sentido de estimular e tornar possível o seu prosseguimento, mediante a intenção de obter não apenas a adesão como ainda o convencimento de militares e civis, quando não o desencorajamento dos inimigos. Isso é realizado através da análise do discurso verbal e não-verbal, de caráter iconográfico e iconológico9 impresso em seu anverso. O que, de qualquer forma, não significa assumir como evidente e/ou irresistível o seu poder de convencimento, sujeito a diferentes formas de apropriação10, mas constitui um esforço de leitura daquelas mensagens com conteúdo intensamente patriótico e belicoso. Observe-se ainda que, no presente trabalho, não são analisadas as mensagens manuscritas pelos remetentes, restringindo-se a reflexão aos elementos impressos pelos editores dos postais. Combates e combatentes franceses e alemães nos postais Retornando ao postal remetido por Ernest em 1917 (Figura 1), cuja autoria é desconhecida, cabe destacar que se trata de exemplar produzido provavelmente no final de 1914, ou em 1915. Isso é sugerido pela presença da figura do militar francês que porta fuzil e exibe quepe e calças vermelhas, tendo-se em vista que tal uniforme era utilizado pela Infantaria francesa até 1915, quando foi descartado o uso de cores chamativas em favor da camuflagem.

França no contexto da Grande Guerra ou imediatamente anterior. Os originários da Alemanha, inseridos no mesmo contexto, totalizam 43. A coleção está em contínua expansão através da aquisição junto ao comércio especializado no Brasil e no exterior, apresentando, portanto, origem diversificada. Quanto à seleção da amostra analisada, buscou-se contrapor o discurso iconográfico veiculado por exemplares franceses e alemães por volta do ano de 1915, momento em que a guerra revelava-se muito mais duradoura e mortal que o inicialmente previsto. 9 Sobre o a análise iconográfica, consultar: BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru, SP: Edusc, 2004; GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: quatro ensaios de iconografia política. Trad. Federico Carotti, Joana Angélica d’Avila Melo, Júlio C. Guimarães. São Paulo: Cia. das Letras, 2014; KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2. ed. rev. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2001; PANOFSKY, Erwin. El significado en las artes visuales. Trad. Nicanor Ancochea. Madrid: Alianza, 1987. Sobre o trabalho com postais da Grande Guerra, consultar: STANCIK. Imagens sentimentais, mensagens belicistas; STANCIK. O imaginário sobre o militar. 10 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Figura 1 – Autor/Editor não identificados. Cartão-postal série Revanche, n. 100. França.

Constatamos ainda tratar-se de uma representação de um combate entre, de um lado, aeronaves pertencentes às forças germânicas e, do outro, integrantes da Tríplice Entente, da qual faziam parte a França, o Reino Unido e o Império Russo11. Ou seja, trata-se da representação da união contra um inimigo comum. No centro da cena, um grande dirigível ou zeppelin alemão é representado no exato momento em que é atingido pelo fogo inimigo. Subentende-se que está prestes a vir abaixo, abatido, pois figura partindo-se ao meio, dada a intensidade e precisão do ataque sofrido. Isso resulta em ligeira alteração na sua posição de navegação, originalmente horizontal. Não surpreende o fato do postal francês ilustrar um combate em que o alvo é um dirigível, pois entre 1914 e 1916 a Alemanha fez uso de um total de 115 aeronaves daquele tipo.

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CLARK. Os sonâmbulos, p. 149-195; HASTINGS. Catástrofe - 1914, p. 25-141. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Elas eram utilizadas em missões de reconhecimento e bombardeios. Seus ataques não se restringiam a objetivos militares, mas também visaram cidades como Paris e Londres12. Tal fato tornava ameaçadora sua presença nos céus. Logo acima do dirigível figura a aeronave responsável pela façanha, em posição transversal, indicando sua ação combativa. Na sua lateral pode-se ler claramente inscrição que a associa de forma inequívoca à Entente. Em seu apoio, outras três aeronaves se aproximam do dirigível, em formação de combate, direção ascendente, o que lhes empresta forte ímpeto combativo e contribui para sugerir como inevitável a derrota alemã. Atraindo a atenção do observador, a cor mais avermelhada que ocupa o espaço entre as duas principais aeronaves da cena faz alusão aos disparos e explosão que teriam abatido aquela utilizada pelos germânicos. Sinal inequívoco de sua situação precária, ela lança no ar espessa nuvem de fumaça. A parte inferior da cena é ocupada, à esquerda do observador, por embarcações britânicas que se aproximam da costa. Segundo legenda inserida abaixo destas, os ingleses afirmariam estar correndo em socorro – “j’accours!”, oferecendo assim auxílio, caso necessário. Também na parte inferior, dois combatentes são exibidos: um integrante da infantaria francesa, localizado mais ao centro e em primeiro plano, e um da cavalaria russa, com sua montaria, posicionado à direita do observador. É inequívoco o contraste entre a firmeza, segurança e tranquilidade esboçada por estes integrantes das forças da Tríplice Entente, que permanecem em solo firme, demonstrando estar prontos para o combate, se para isso fossem chamados, e o militar alemão, que literalmente voa pelos ares após a explosão que atingiu sua aeronave. O destino deste último - cuja nacionalidade é identificada por ostentar um pickelhaube, famoso capacete em couro dotado de ponteira e então utilizado pelos militares alemães -, pode-se novamente antever, é a morte ou ser feito prisioneiro por aqueles que o observam com tranquilidade. Aliás, e sempre em conformidade com aquilo que foi exposto no postal, é mais razoável supor sua morte. Mesmo porque, abaixo do militar que foi arremessado pela força da explosão, há outra legenda que remete à sua pretensa percepção daquilo que estava se passando e de seu destino próximo. Nela pode-se ler que o alemão estaria ciente que, contra os três integrantes da Entente, ele nada poderia, vindo a “arrebentar” ou morrer.

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KEEGAN. História ilustrada, p. 132-133. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Enquanto isso, legenda inserida abaixo do francês lhe atribui afirmação segundo a qual estaria pronto – “Je suis prêt” -, ao que responde o russo, também através de legenda: “Moi aussi” – “também estou”. As mensagens resultantes da conjugação dos elementos não-verbais e textuais presentes no anverso do postal tendiam, naquele período, a ser claras. Elas não somente aludiam aos lados então em oposição na guerra, como enfatizavam aquilo que era apresentado como uma tentativa – no caso proposta como fracassada – de agressão e, possivelmente, invasão alemã. Esta teria sido pronta e eficazmente interceptada e frustrada pelas forças aliadas da Tríplice Entente. O povo francês, representado pela figura serena do integrante da infantaria, não estaria solitário naquele empreendimento. Ele podia contar com o apoio de outras nações amigas, todas elas muito bem preparadas, segundo indicava o postal. Aos germânicos, por outro lado, seriam atribuídas não apenas as intenções belicosas, como ainda uma pretensa incapacidade para vir a obter êxito em tal empreendimento. Já à Entente, representada como bem articulada, adequadamente preparada e serena em suas ações, tanto no ar, como no mar ou em solo firme, estariam reservados o sucesso e a vitória inequívocos. Aliás, conforme pretendia convencer o cartão-postal, de forma que seria reconhecida até mesmo por seus inimigos. Aquela mensagem presente no anverso do postal constituía-se assim na forma de propaganda política destinada a influenciar ambos os lados em conflito. Desenvolvendo estratégia discursiva orientada em sentido muito distinto, postal produzido na Alemanha e postado no início do ano de 1915 invertia completamente a situação exposta pelo francês. Neste, o sucesso alemão na execução da estratégia de invasão da França é representado como alcançado de forma segura, eficaz e irresistível. É o que pode ser observado no exemplar reproduzido na Figura 2.

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Figura 2 – Autor/Editor não identificados. Deutscher Flieger über Paris. Cartão-postal. Berlin. Postado em 05 jan. 1915. Fonte: acervo do autor.

Nele,

em

primeiro

plano

temos

a

Torre

Eiffel,

centralizada,

ocupando

aproximadamente dois terços de uma imagem bastante escura, que parece remeter ao período da noite, especialmente pela presença de um facho de luz proveniente do topo do monumento. Atrás da torre, é possível observar o rio Sena. Trata-se assim de inequívoca referência à Paris, através daquela que, em suas duas décadas e meia de existência, já se tornara um de seus símbolos mais conhecidos. Acima da torre, destaca-se um Rumpler Taube, ou apenas Taube – “pomba”, em alemão -, frágil e desprotegida aeronave alemã, como o próprio nome indica. Ela sobrevoa tranquilamente a cidade, que a imagem revela ter sofrido bombardeios em, pelo menos, três pontos diferentes, nos quais observa-se a presença de fumaça. Esta, contribuindo para emprestar tons mais escuros

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ao cenário, parece se espalhar por todo o céu parisiense, talvez se confundindo com as densas nuvens. Apesar de sua fragilidade e mesmo certa obsolescência já naquele período, o postal representava e, mais que isso, comemorava, rememorando, o feito de um frágil e solitário monoplano Taube alemão representado logo após cumprir, sem contratempos, sem resistência, a ousada tarefa de atacar a sede da República Francesa13. Ou faria ele alusão a uma nova missão semelhante, que estaria se encaminhando para o momento culminante ao ter como alvo a própria torre? Receio este que se mostrava fundamentado. Sendo assim, tanto uma situação, como a outra, ou seja, o acontecimento recente, ou uma alusão a sua repetição, atingindo ou não a Torre Eiffel, era representada de maneira profundamente simbólica para ambos os lados então em conflito. Talvez exatamente por isso a legenda inserida na parte superior da imagem destacava, de maneira aparentemente despretensiosa e singelamente descritiva, fazendo uso das esmeradas letras góticas: “Aviador alemão sobre Paris” – “Deutscher Flieger über Paris”. E então nem o aviador alemão, tampouco qualquer pretenso defensor francês, se deixaram observar na imagem. Por isso, expressões como “aviador” e “Paris” tendiam a remeter não a um ou outro indivíduo específico, mas ao coletivo, ou seja, a ambas as nações em conflito. E em uma situação na qual a primeira, personificada pelo piloto, se mostrava capaz de atacar com facilidade a segunda. Invertia-se assim, na perspectiva alemã, o discurso francês analisado a partir do postal reproduzido na Figura 1. Em outros termos, tratava-se novamente de propaganda política cujo objetivo era estimular o espírito combativo daqueles que, de forma genérica, eram representados pelo anônimo, mas heroico aviador. No postal se fazia presente, portanto, a alusão à pretensa superioridade alemã, mesmo quando se servindo de uma frágil aeronave, como era o Taube. Na mesma medida sua mensagem objetivava intimidar ao seu oponente, a nação francesa, fragilizada naquela representação e atormentada pela rememoração de recente episódio em que os céus de Paris foram assaltados por uma aeronave inimiga capaz de semear artefatos explosivos sobre a população civil. Retornemos assim aos cartões-postais franceses, desta vez tentando perceber a construção discursiva de mais um exemplar manuscrito no ano de 1915, que traz o mapa da França e de partes dos países vizinhos. Nele o observador se depara com nova e bem distinta representação da presença alemã em territórios franceses e belgas. Tendo em sua base a inserção 13

WILLMOTT. Primeira Guerra Mundial, p. 51. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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dos anos 1914-1915, observa-se que o mesmo se reporta à invasão alemã da Bélgica e, a seguir, do território francês. Trata-se do postal reproduzido na Figura 3.

Figura 3 – M. Pantel (Ed.). Cartão-postal. Lyon. Manuscrito pelo remetente em 04 out. 1915. Fonte: acervo do autor.

. Tanto quanto os demais exemplares analisados, trata-se de postal pleno de elementos simbólicos destinados a influenciar os imaginários coletivos das partes em conflito. Novamente constata-se a representação de bombardeios e combates, indicados através da inserção de labaredas em três diferentes pontos sobre o mapa belga e em seis no mapa da França, o que era feito em alusão ao avanço inicial empreendido pelas tropas alemãs. Cravada no território francês, uma imensa cruz destaca-se no centro da imagem. Tratase de uma cruz plantada naquela que sempre se percebeu como a grande nação católica europeia.

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Parte de um de seus braços aparece quebrado, à direita do observador, o que remete ao desrespeito aos valores por ela representados. No entanto, mais que a religião, ela remete à morte. A grande cruz cravada sobre a França é preenchida por quatro diferentes cenários de destruição, destacados como decorrentes da passagem alemã – “Aprés le passage des Allemandes” -, conforme pode-se ler em seu centro. Isso novamente remete à representação de bombardeios e combates, dos quais resultaram destruição e mortes, conforme indicam as imagens. Na base da cruz há a alusão à Bélgica ocupada. Logo acima imagens e texto fazem referência a Arras e, no topo, a Reims. Remetia-se assim aos dois centros vitais para a rede ferroviária francesa, recuperados com a vitória obtida sobre os alemães na Batalha do Marne, ocorrida em setembro de 1914.14 No mapa, intensa fumaça emana dos pontos assinalados com a imagem das chamas. Ela ocupa a parte superior da imagem, preenchendo algo em torno de dois terços da cena. Assim, empresta ao céu um tom extremamente escuro e um tanto quanto melancólico. É exatamente diante desse cenário que se pode observar uma ave negra de asas abertas, pousada no topo da cruz. Trata-se de um corvo cuja cabeça foi coroada por um estilizado pickelhaube. Portanto, a ave personificava, de maneira inequívoca, a Alemanha. Do seu bico escorre sangue, que goteja sobre a cruz. Trata-se de provável referência às consequências da invasão dos territórios belga e francês, ao longo da qual milhares de militares e civis perderam a vida durante os duros combates que se seguiram. Tendo em vista sua representação por intermédio de um sangrento corvo, torna-se significativa a inserção do questionamento “Kulturland?”, ou “país de cultura?”, exibido sobre a pequena parte visível do território alemão no mapa que ilustra o postal. Nele, portanto, se está diante de um discurso que se afasta do objetivo de tentar evidenciar e enaltecer a pretensa bravura, união e capacidade de luta dos franceses ou da Tríplice Entente, conforme observado no exemplar reproduzido na Figura 1. Com a cruz sobre a qual foram estampadas cenas de destruição e com o corvo proposto como símbolo de uma Alemanha impiedosa, o postal empenhava-se para destacar não a pretensa bravura daqueles que enfrentavam os invasores, mas para apresentar o inimigo como cruel, insensível, capaz de semear a destruição sobre uma nação que se percebia como civilizada e católica. E que fora ferida nesses dois aspectos. Sobre a Batalha do Rio Marne, consultar: KEEGAN. História ilustrada, p. 124-136; WILLMOTT. Primeira Guerra Mundial, p. 52-56. 14

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Um segundo postal de origem germânica, também ele datado do ano de 1915, pode nos colocar em contato com outros aspectos dessa luta de representações empreendida entre a França e a Alemanha ao longo da Grande Guerra. O exemplar em questão, reproduzido na Figura 4, traz em seu anverso o retrato de um grupo de prisioneiros franceses, mantidos sob a guarda de militares alemães.

Figura 4 – H. Schanz (Ed.). Kriegsgefangene 1914/1915 – Franzosen. Cartão-postal. Soest. Postado em 15 jun. 1915. Fonte: acervo do autor.

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Diferente dos cartões-postais anteriores, todos construídos a partir de ilustrações, os prisioneiros de guerra franceses foram apresentados por intermédio de retrato fotográfico cujo autor não foi identificado. Isso associa à imagem um particular caráter de pretensa veracidade, dada essa crença que sempre tendeu a acompanhar o registro fotográfico, desde sua invenção, no ano de 183915. Acentuando esse caráter de suposta veracidade, o retrato foi colorizado a mão. Com isso ganharam particular realce as calças de intensa cor vermelha utilizadas pela Infantaria francesa, à qual pertenciam os prisioneiros. O pronunciado colorido do uniforme dos prisioneiros facilitava a imediata identificação daquele que era um dos motivos de orgulho do povo francês, zeloso em manter em uso aquela tradicional herança do século XIX, que já se revelava anacrônica e muito em breve seria abandonada em favor da camuflagem. 15

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Ao todo, fizeram pose para o retrato 22 franceses. Eles, assim como os três militares germânicos que os ladeavam, mantiveram o olhar dirigido à objetiva da câmera fotográfica. Nenhum dos prisioneiros portava qualquer tipo de arma, enquanto que, entre os alemães, somente um exibia o rifle. Todo o grupo figurou ao ar livre, aparentemente distante da frente de combate, em um pátio com calçamento de pedras, no qual não é possível perceber qualquer sinal de destruição ou de combates. Tampouco há indícios de ferimentos, ou que os prisioneiros fossem submetidos a maus tratos, ou ainda a trabalho forçado. Parte deles permaneceu sentada, sendo que todos mostraram-se aparentemente à vontade, buscando uma posição confortável, nada formal, ao fazer pose para o retrato. O fato de serem exibidos em seus uniformes militares e de estes passarem por cuidadoso acréscimo de cores é significativo, contribuindo para evidenciar sua procedência e, por extensão, tornar patente quem seria o vitorioso naquela situação em particular. Assim, ao que tudo indica, o objetivo de semelhante postal era simplesmente mostrar vencedores e derrotados, posando lado-a-lado. E assim se buscava demonstrar que o vitorioso alemão, sem maiores esforços, mantinha sob sua guarda os derrotados franceses. Estes mantem o olhar insistentemente orientado para a câmara fotográfica, como se perguntassem quando seriam finalmente libertados ou resgatados. Isso se revela com especial intensidade na expressão incisiva, porém melancólica do francês que figura em primeiro plano, à direita do observador. Ela é reforçada pelos olhos semicerrados e pelo bigode – ou seriam suíças? -, cuja direção realçam o sentimento de desconforto emocional. Assim exibidos os prisioneiros franceses, sem armas, à vontade, mas abatidos sob a custódia alemã, tornava-se evidente que estariam totalmente impossibilitados, mais que isso, desmobilizados, para a guerra. Derrotados, deixavam eles de cumprir sua obrigação de lutar, naquele ano de 1915, ainda no início da Grande Guerra. E, na versão alemã dessa situação, isso se daria sem maiores esforços, sem necessidade de recorrer à violência, praticamente sem ter que fazer uso das armas. Sob tais condições, submetidos pelo inimigo, forçosamente conformados com tal situação, os franceses, embora trajando uniforme, não podiam representar a orgulhosa figura do militar. O que se torna mais ultrajante em tempos de guerra, momento em que isso lhes é exigido ao máximo. Considerações Finais

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Os cartões-postais analisados, nos quais se desconsiderou as mensagens manuscritas pelos remetentes, foram concebidos por seus editores de forma a aludir a situações reais. É o caso da constante ameaça aérea, novidade da Grande Guerra, seja por intermédio do voo solitário de uma aeronave alemã, como o Taube que bombardeou Paris, ou pelo deslocamento silencioso de imensos zepelins. Seja ainda rememorando o drama da invasão alemã e da Batalha do Marne, ou então exibindo apáticos prisioneiros de guerra, que fitam a objetiva como se perguntassem o que será feito deles. Situações estas que, embora muito reais, tendiam a ser representadas de forma intensamente simbólica, prenhe de significados. Por isso, o que mais se destaca nos cartõespostais do período não é necessariamente sua veracidade. Em seu lugar, esse “algo mais” de que se revestem todas as mensagens assim veiculadas revelam aspectos por vezes pouco explorados daqueles longos e sangrentos quatro anos que inauguraram verdadeiramente o conturbado século XX. Afinal, a despeito de sua enganosa aparência de inocentes e despretensiosos souvenirs, os postais inseriam-se assim no cotidiano daqueles que encontravam-se afetados pela guerra. Ao fazê-lo, tomavam parte de lutas simbólicas, por intermédio das quais militares e civis eram estimulados a prosseguirem lutando, ou talvez fossem desmotivados por mensagens que intentavam convencê-los de que isso seria impraticável. E nesse empreendimento elementos de destaque, ou mesmo pequenos detalhes tornavam-se pronunciadamente significativos: um pickelhaube, como distintivo dos alemães, assim como o vermelho intenso das calças usadas pela Infantaria francesa, ou um monumento como a Torre Eiffel. Aspectos esses que tendiam a atrair a simpatia/veneração, ou a aversão, conforme a origem daquele que os observasse. Os cartões-postais produzidos naquele período veiculavam portanto mensagens impressas de caráter verbal e não-verbal que podem assim nos colocar em contato com pequenos fragmentos dos imaginários coletivos que orientavam a construção daquelas formas de representação de si, bem como do inimigo - fosse ele alemão ou francês -; do grande conflito e de como lutá-lo e a ele sobreviver; dos modos de, fazendo uso dessa arma ainda muito recente – os postais são invenção da década de 1870 –, visar não apenas enfrentar ao inimigo, desmoralizando-o, mas, não menos, mobilizar civis e militares para levar adiante o esforço de uma guerra que se tornara não apenas mundial, mas total.

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A revista A Defesa Nacional: o autoritarismo, os intelectuais e os militares no governo Vargas (19301937)

Dossiê

On A Defesa Nacional magazine: authoritarism, intellectuals and military in Vargas’ government (1930-1937) Fernanda de Santos Nascimento Doutoranda em História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul fernandaisrael@gmail.com Antônio Manoel Elíbio Júnior Doutor em História Social Universidade Federal do Rio Grande do Norte tonyelibio@gmail.com Recebido em: 13/03/2014 Aprovado em: 21/04/2014 RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a influência do pensamento autoritário entre os militares durante a década de 1930 através da revista A Defesa Nacional. Fundada em 1913, a revista foi um importante canal de discussão de assuntos militares e políticos para a oficialidade do exército brasileiro. No período aqui pesquisado, muitos artigos publicados na revista expressam a crença na falência do liberalismo e na necessidade de se instituir um projeto nacional de acordo com a realidade brasileira. Tal ocorrência demonstra a influência, entre os militares, das ideias relacionadas ao autoritarismo e a centralização do papel estatal, preceitos que se desenvolveram no Brasil principalmente durante os anos de 1930 e 1940. PALAVRAS-CHAVE: Autoritarismo, A Defesa Nacional, Militares. ABSTRACT: The objective of this paper is to analyze the influence of authoritarian thinking in the military during the 1930s through the magazine National Defense. Founded in 1913, the magazine was an important channel to discuss military and political affairs for the officers of the Brazilian army. In the period studied here, many articles published in expressing the belief in the failure of liberalism and the need to establish a national project according to the Brazilian reality. This occurrence demonstrates the influence of the military, the ideas related to authoritarianism and centralization of state role, precepts that developed in Brazil mainly during the 1930s and 1940s. KEYWORDS: Autoritarism, A Defesa Nacional, Military.

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Introdução Em outubro de 1913 foi fundada a revista A Defesa Nacional. A publicação alcançou, logo após o lançamento, seu grande objetivo: discutir os problemas do exército nacional e suas soluções em uma publicação mensal dirigida por militares e voltada ao público militar. A ideia partiu de um grupo de jovens tenentes que, após um estágio no exército alemão, percebeu a necessidade de discutir os problemas relacionados à modernização do exército e à própria nação brasileira. A revista perdura até hoje, embora tenha passado ao longo das décadas por mudanças administrativas e financeiras1. Assim, este artigo tem por objetivo analisar a crítica desenvolvida pelos redatores da revista A Defesa Nacional (ADN) em relação a democracia liberal, durante a década de 1930, especialmente durante os anos anteriores ao Estado Novo. A revista A Defesa Nacional foi fundada em 1913 e alcançou grande amplitude entre o corpo de oficiais durante os anos iniciais da década de 1930. Os textos publicados na ADN eram escritos por oficiais militares e, embora voltados ao corpo de oficiais da Marinha e do Exército, a revista buscava inserir-se também no meio civil. Em nota, publicada em 1926, os redatores esclareceram que dentre os exemplares gratuitos estavam destinadas as edições a Assis Chateaubriand, Pandiá Calógeras, Everardo Backheuser, Miguel Calmon, Oliveira Vianna e Barbosa Lima Sobrinho. Para os redatores, esta ação significava saltar “os muros do meio militar, derramando-se aos quatro ventos à divulgação em larga escala” do pensamento dos militares. A ideia era exteriorizar o pensamento militar cada vez mais, já que era urgente que a nação conhecesse o Exército que tinha e que deveria ter 2. A abertura maior da revista, através também de sua venda avulsa, deveria atrair o concurso de técnicos civis que discutissem nas páginas de A Defesa Nacional “problemas como o dos transportes, das indústrias químicas, da metalúrgica, da viação marítima, fluvial, rodoviária e ferroviária (...) enfim, todos os problemas vitais para a organização militar do país”.3 Durante a década de 1920, foram representantes de ADN, entre outros militares, Pedro Aurélio de Góes Monteiro, João Carlos Gross, Mascarenhas de Moraes, Emílio Médici, Orlando Geisel e Valentim Benício. No corpo mantenedor teriam destaque Eurico Dutra, João Batista Magalhães, Tristão de Alencar Araripe, Humberto Castelo Branco, Pantaleão Pessoa, Mário

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Para maiores informações sobre a revista A Defesa Nacional, ver: NASCIMENTO, Fernanda de Santos. A Revista A Defesa Nacional e o Projeto de Modernização do Exército Brasileiro (1931-1937). 240 f. Dissertação (Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação em História, Porto Alegre, 2010. E CAPELLA, Leila. As malhas de aço no tecido nacional: A revista A Defesa Nacional e o Serviço Militar Obrigatório. 200 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós Graduação em História, Niterói, 1985. 2 Revista A Defesa Nacional, “Dando Exemplo”, Agosto de 1926. 3 Revista A Defesa Nacional, “Dando Exemplo”, Agosto de 1926. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Travassos e Daltro Filho, além dos fundadores da revista Bertholdo Klinger, Parga Rodrigues, Leitão de Carvalho, entre outros tradicionais jovens turcos. Todos esses militares teriam destaque nas décadas seguintes da história nacional. Durante a década de 1930, a revista terá destaque no meio militar: por volta de 1932 a publicação tinha cerca de 150 militares como sócios, além do corpo de redatores. Cerca de 27% dos generais da ativa faziam parte deste grupo. Eram sócios da publicação os generais Bertholdo Klinger, Pedro Aurélio de Góes Monteiro, Raymundo Barbosa, Franco Ferreira, Ferreira Johnson, Deschamps Cavalcanti, Aranha da Silva, Álvaro Mariante, João Gomes Ribeiro Filho e Pantaleão Telles. Destes, os cinco primeiros foram ao posto de General de Brigada por conta das promoções efetuadas em fevereiro de 1931 e chegaram justamente a este cargo por estarem em conformidade com os ideais da Revolução de 1930, principalmente em relação ao Exército. Sua presença no corpo de sócios de ADN revela a importância que a revista toma nesse novo contexto de trabalho, para a reorganização da Instituição. Mais ainda: destes dez generais, seis estavam engajados com o projeto de ADN desde o final da década de 1910. Em 1935 foi criado o Grupo de Redatores e o Grupo de Auxiliares que, junto do Grupo de Administração, mantinham a revista. Nessa época a revista contava com cerca de trinta e dois oficiais envolvidos diretamente com a sua publicação. Esta dinamização permitia a existência da revista em caso de crises políticas ou militares, pois tornou mais forte a sua base – com a criação do corpo de sócios - e composição, com a admissão de mais de duas dezenas de militares envolvidos na sua produção. As mudanças editoriais ocorridas no ano de 1935 tinham outro objetivo também: aumentar a tiragem da publicação que era de 1.500 exemplares por mês. Logo, a solução encontrada foi a reestruturação quase que completa da publicação: o formato foi alterado, novas seções foram criadas, novos oficiais passaram a compor o grupo responsável pela publicação da revista e o editorial foi suprimido Durante a década de 1930, diversos textos escritos e reproduzidos pelos redatores da revista A Defesa Nacional trazem uma crítica ao liberalismo econômico e a democracia liberal, como sistema político inaceitável para o Brasil. O discurso demonstra a influência de ideais conservadores e autoritários que, a partir de década de 1920, tornam-se comuns ao discurso político mundial, como resposta ao fim da I Guerra Mundial e da crise das democracias liberais europeias. O discurso autoritário: Intelectuais e Militares

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Após a Primeira Guerra Mundial houve, na Europa, uma emergência de governos de caráter autoritário e/ou fascista. Os regimes de Stalin, na Rússia e Mussolini, na Itália, já durante a década de 1920 se faziam presentes. Regimes de caráter autoritário e de caráter fascista existiam também na Hungria (1919), na Espanha (1923), na Albânia (1925), na Polônia, em Portugal e na Turquia (1926). Durante a década de 1930, a Alemanha implantaria o nazismo como sistema político e social. Tais regimes podem ser compreendidos no contexto de crise do liberalismo, só evidenciada após a Primeira Guerra e acentuada com a queda da bolsa americana em 1929 e a crise das democracias liberais. A desilusão, o ceticismo e as incertezas perante o futuro levaram ao descrédito total do sistema liberal democrático. Este sistema era visto por muitos intelectuais como individualista, desagregador e até antinacional. Ao privilegiar os interesses dos grupos financeiros e industriais, o capitalismo demonstrou ser um falho sistema econômico, associado indelevelmente ao sistema liberal, gerando pobreza, incertezas e desconfianças. A crise de 1929 reforçou ainda mais a crença que somente um Estado autoritário, que conduzisse a política e a economia com mãos de ferro, resolveria o problema. No Brasil, as ideias autoritárias já estavam em discussão desde a década de 1910 e Alberto Torres consagrou-se como um intelectual antiliberal. Seus escritos influenciaram uma nova geração de intelectuais que emergiram nas primeiras décadas do século XX. Seu pensamento caracteriza-se por ser nacionalista e antiliberal. O nacionalismo deriva da atmosfera social do início do século XX, que é “fortemente carregada de ressentimentos contra o colonialismo predatório e de temor face ao expansionismo das grandes potências”.4 O caráter antiliberal deriva tanto da crise do sistema, a partir da primeira década do século, como também da própria experiência do intelectual na vida pública: Torres foi político e encontrou grande resistência dos grupos rurais quando presidente do Estado do Rio de Janeiro (1901-1903). Sua experiência demonstrou a dificuldade de se trabalhar em um país totalmente dividido, onde sobrava autonomia às unidades federadas e faltava poder à União5. A obra de Torres foi resgatada no pós-1930 e suas ideias acabaram por influenciar uma gama de intelectuais de destaque entre as décadas de 1920 e 1930, como Azevedo Amaral e Oliveira Viana. Por seu caráter antiliberal, Torres foi associado à corrente autoritária de pensamento. O autor também se ocupou dos problemas do nacionalismo e da nação brasileira. Segundo Torres, a nação brasileira deveria ser criada pelo Estado, justamente pelo fato de o Brasil 4

LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república. In: FAUSTO, Boris (org). O Brasil Republicano: Sociedade e Instituições (1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 356. 5 Informações retiradas do prefácio feito a 4ª edição da obra lançado em 1982 pela editora da Universidade de Brasília. IN TORRES, Alberto. Problema nacional brasileiro. 4. ed. Brasília (DF): Univ. de Brasília, 1982. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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não possuir uma identidade própria. Esta identidade era associada à cultura, já que para o autor “nunca chegamos a construir cultura própria, nem mesmo uma cultura geral [...] Não temos opinião e não temos direção mental. Não temos ilustração. Não temos cultura”.6 Cabe, portanto, ao Estado construir esta identidade. E o Estado a constrói com a participação de intelectuais que, a serviço do Estado, criaram uma unidade nacional. Este pensamento de Torres foi levado a cabo durante o Estado Novo, quando os intelectuais assumiram este papel. O nacionalismo de Torres não se apegava ao problema da inferioridade racial brasileira, tema bastante discutido por alguns intelectuais da Primeira República, como Álvaro Bomilcar7. Assim como Manuel Bonfim, Alberto Torres acreditava que o abatimento da ordem social do Brasil era resultado, acima de tudo, de condições inadequadas de desenvolvimento, mais do que de um problema racial. De acordo com Lamounier, o pensamento dos críticos da primeira República e dos ideólogos autoritários “pode ser vista como uma construção intelectual que sintetiza e dá direção prática a um clima de ideias e aspirações políticas de grande relevância”.8 Este pensamento condensa uma reação filosófica ao iluminismo e ao utilitarismo, fortemente carregado de ideias positivistas. Daí decorre o anti-individualismo, tópico de suma importância para a construção do pensamento autoritário. Por outro lado, a oposição ao modelo econômico – o liberalismo, adaptado ao Estado e fazendo dele sua representação e generalização, formou o outro polo para a construção do pensamento autoritário. Assim, além da solução para os problemas nacionais, esses intelectuais também discutiam as questões em torno da organização do poder político, sugerindo a necessidade de um poder estatal forte para organizar o país. Este poder era “necessário não somente para erradicar os males do passado, cuja força de inércia só pode ser superada por uma cirurgia enérgica, como também para manter sob controle o próprio processo de mudança, assegurando a sobrevivência do que porventura existia de bom”.9 O poder estatal era necessário para organizar um país considerado essencialmente desorganizado e amorfo. Esta ideia foi característica de Torres, embora Oliveira Vianna, a partir da década de 1920, se dedicasse a desenvolver com mais propriedade este conceito. Para Torres: No Brasil, destruídos os rudimentos de organização que já tivemos [refere-se aqui à escravidão], lançados em mau terreno, nada ficou de definitivo, e a fachada da nossa civilização oculta a realidade de uma completa desordem. Não 6

Citado por SOUZA, Ricardo Luiz De. Nacionalismo e autoritarismo em Alberto Torres. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 13, jan/jun 2005, p. 302-323. 7 Em sua análise histórica do Brasil, Bomilcar culpa os portugueses pelo atraso e pelas condições em que o país se encontrava; ligava, ainda, o problema do nacionalismo à imprensa que, estando nas mãos de portugueses, não divulgava corretamente as obras de cunho nacionalista. Parte dessa conclusão era derivada justamente de uma obra escrita pelo autor em 1916, chamada O preconceito de raça no Brasil, que foi pouco divulgada e acabou esquecida. 8 LAMOUNIER, Formação de um pensamento político autoritário na primeira república, p. 357. 9 ______. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república, p. 362. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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há uma só instituição no Brasil, como também provavelmente, em quase todas, se não em todas as outras repúblicas sul-americanas, assente sobre bases próprias para um crescimento evolutivo regular10.

Dessa forma, no Brasil a vida pública não passava de crônicas de anedotas pessoais e escândalos, o trabalho não tinha valor, o mérito não tinha estímulo e o povo não tinha opinião. Parte deste processo é consequência da própria colonização do Brasil pelos portugueses, um povo que já estava em declínio durante a fase dos descobrimentos. O improviso da colonização, a fraqueza dos descobridores, as diferenças de clima e de terra e a interrupção do processo nacional pela independência foram fatores que impedem o “surto de sociedade” no Brasil. Por consequência, também não existe no país uma consciência nacional. Para Torres, “nós não exprimimos o interesse pela conservação nacional, senão como forma dramática do culto da bandeira e do ardor militar”.11 A desorganização nacional é sintetizada pela falta de uma política pública, de uma economia nacional e objetiva e pela falta da própria consciência nacional. A desorganização teve como consequência o regionalismo, que ameaçava o país de desmembramento e decomposição. Durante a década de 1930, sobretudo após o Estado Novo em 1937, o autoritarismo passou para a pauta de discussões do governo. Muitos intelectuais como Francisco Campos, Azevedo Amaral e Oliveira Vianna encontraram abrigo em cargos políticos de relevância. Campos, por exemplo, foi Ministro da Justiça e autor da carta constitucional de 1937. O Estado Novo getulista colocou em prática os principais conceitos desses intelectuais conduzindo assim a uma modernização conservadora, ou seja, o Estado teria como principal dever organizar a nação em relação ao seu desenvolvimento econômico e social. Estas ideias tiveram grande eco nos meios de comunicação, sobretudo na revista “Cultura Política”, periódico editado pelo DIP e propagador dos ideais estatais12. Do ponto de vista político e social, o Estado Novo reforçava os propósitos da revolução de 30, ligados a maior repressão e controle da questão trabalhista e social13. Logo, a necessária

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TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. Rio de Janeiro: Nacional, 1914, p. 28. 11 TORRES. O problema nacional brasileiro, p. 56. 12 BONET, Fernanda dos Santos. Autoritarismo e nacionalismo: o discurso oficial sobre o envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial, através das páginas da revista "Cultura Política”. Porto Alegre: PUC-RS, 2010. (Dissertação). 13 Para muitos historiadores a “revolução de 1930” foi um movimento com claros objetivos de afastar o movimento operário da arena de debates políticos. Com expectativas de inserção na política, o movimento operário se organiza através do Bloco Operário Camponês, em 1928 e também do Partido Comunista Brasileiro, em 1922. Graves embates na segunda metade da década de 1920, entre sindicatos e fábricas, alertam os industriais brasileiros para o “perigo comunista” havendo a necessidade de reduzir a influência destes grupos no debate político. Foi a CIESP, em aliança com o Partido Republicano Paulista, que criou paulatinamente a ideia de “perigo comunista”, principalmente após os avanços das leis trabalhistas em 1928 (a Lei de Férias e o Código de Menores) e a maior participação do Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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modernização política brasileira estava pautada em caracteres capitalistas sem ser, necessariamente, liberal. O corporativismo, em substituição ao liberalismo econômico, ampliava as possibilidades de uma maior intervenção do estado na economia. De acordo com Silene de Moraes Freire, Não obstante, todos aqueles que no Brasil pensaram a construção da modernidade em 1930, como Getúlio Vargas, Azevedo Amaral, Oliveira Vianna, Francisco Campos e muitos outros - ou mesmo antes da “revolução”, como é o caso dos representantes do movimento modernista - em realidade estavam preocupados com a modernidade capitalista. Não por acaso, a Primeira República pareceu, aos olhos de muitos, precocemente envelhecida para guiar um projeto em consonância com a modernização percebida e desejada, sendo definida antes mesmo de 1930, por vários intelectuais, como República Velha14.

O autoritarismo não implicava em substituição do modelo capitalista. Ao contrário: ao assumir as prerrogativas econômicas, o Estado moderno e autoritário deveria ser industrial. Assim, tanto o fortalecimento do Estado quanto o aumento da intervenção nos assuntos econômicos e sociais são os elementos centrais do modelo político autoritário. O estado moderno deveria ser, portanto, autoritário e antiliberal. As ideias autoritárias de cunho fascista encontraram eco na fundação da Ação Integralista Brasileira (AIB), em 1932, por Plínio Salgado. O integralismo se definiu como uma doutrina nacionalista, anticomunista, que pregava o fortalecimento do Estado (Estado “integral”) frente à economia, além de trabalhar com a consciência individual ao redor do mote “Deus, Pátria, família”. Com ideias tributárias do fascismo, como a existência de apenas um partido e a personificação do Estado através de seu chefe, o integralismo encontrou seus adeptos nas classes médias urbanas e nos militares. O partido encontraria o seu fim quando decidiu aliar-se a Getúlio Vargas, por conta do golpe que inaugurou o Estado Novo, em novembro de 1937. Prometendo uma série de benefícios ao partido, principalmente sua maior inserção no governo, Getúlio encampou o apoio da AIB. Embates entre o governo e os integralistas fazem com que estes tentem a derrubada do governo, através de um ataque frustrado ao Palácio da Guanabara, em maio de 1938.

BOC no debate político. Os constantes entraves entre os movimentos levaram o BOC a decretar uma greve de mais de 70 dias no estado de São Paulo em 1929, levando o movimento para a arena do debate revolucionário, ao invés do político. Com esta manobra, o movimento da pequena burguesia retira seu apoio ao BOC varrendo o movimento, definitivamente, da arena do debate político. Estas ideias são defendidas por DE DECCA, Edgar. O Silencio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1997 e TRONCA, Ítalo. Revolução de 1930: a dominação oculta. São Paulo: Brasiliense, 1985. 14 FREIRE, Silene de Moraes. Pensamento autoritário e modernização conservadora no país. In: XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 2009, Rio de Janeiro. Captado em: www.sbsociologia.com.br/portal/index.php?option=com/sbs2009_GT15_Silene_de_Moraes_Freire.pdf. Acesso em: 8 de abril de 2014. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Identificamos os primeiros sinais de uma crítica ao liberalismo nas páginas da revista A Defesa Nacional em fevereiro de 1934, quando foi publicada uma tradução de artigo escrito por Emile Corra, um famoso positivista francês. Quem traduz o texto é J. B. Magalhães, oficial que deixa transparecer simpatia pelo positivismo, embora muitos militares considerassem a doutrina banida dos quartéis. Quartim de Moraes demonstra, em artigo, que o positivismo ainda exercia influência no meio militar, pelo menos até o final da década de 192015. Nesse sentido, também Maria Cecília Forjaz demonstra que o positivismo persistia, não como uma influência direta e explícita, mas como ideias persistentes, difusas e atenuadas de seu completo domínio intelectual16. Para Forjaz, a ideia de que a educação seria um fator de progresso, a insistência na regeneração moral da política e a artificialidade do liberalismo são concepções tipicamente positivistas, assimiladas pelo movimento tenentista17. Vimos, no entanto, que estas concepções estavam, em menor ou maior grau, também, nas páginas de ADN durante a década de 1920. Por outro lado, o positivismo chegava aos militares, também, através de Alberto Torres e Oliveira Vianna, que influenciaram não só o pensamento dos tenentes, mas dos militares de uma forma geral. Além disso, o positivismo continuava vivo e atuante através da política do Rio Grande do Sul e Getúlio Vargas era, de fato, um adepto do positivismo18. O texto de Corra é uma crítica à democracia, à ideia de soberania no povo e ao sufrágio universal. O autor não se refere especificamente sobre as Forças Armadas, embora acentue o papel que o Estado deve desempenhar nos desígnios de uma nação. O autor conclui que um governo não deve ser comandado por ideologias nem por personalismos políticos, pois: É preciso fugir das ideologias. O bom senso aconselha que o Governo só se deixe influenciar por uma ideia preconcebida: o interesse geral. Por isso mesmo deve preocupar-se, antes demais nada em manter a harmonia social e não ter preferência por panaceias políticas como os radicalismos, os socialismos, comunismos e outras mais que se confundem fenômenos de ordem objetiva e subjetiva19.

Ao analisar o programa tenentista no pós-1930, Forjaz acentua que: são traços comuns a todas as forças políticas envolvidas na reconstrução do sistema político brasileiro após a revolução de 1930 uma perspectiva antiliberal, autoritária, elitista e estadista. Esses componentes gerais do quadro ideológico

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MORAES, João Quartim. O positivismo nos anos 20, entre a ordem e o progresso. In: COSTA, Wilma Peres da (org.). A Década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: UNESP, 1997. 16 FORJAZ, Maria Cecília Spina. Tenentismo e forças armadas na revolução de 30. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 44. 17 ______. Tenentismo e forças armadas na revolução de 30, p. 51. 18 FONSECA, Pedro Cesar Dutra. A gênese regional da Revolução de 30. Captado em: http://www.ufrgs.br/decon/publionline/textosprofessores/fonseca/REVOL30-REE.pdf. Acesso em: março de 2010. 19 A ideologia POLÍTICA, Em A Defesa Nacional, fevereiro de 1934. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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da época aparecem, no entanto, dosados diferentemente e voltados para a obtenção de distintos alvos políticos20.

Dessa forma, o autoritarismo surgia como forma de combate à hegemonia oligárquica em um primeiro momento e, mais tarde, como uma forma de manutenção do poder pelos novos grupos políticos. O próprio movimento tenentista encontrou apoio na crítica ao liberalismo no discurso autoritário. Suas intenções eram centralizadoras e bastante radicais, excluindo do debate político todas as oligarquias, independentemente de seu poder de persuasão política. Seu autoritarismo se manifestava também pela restrição do voto, pela propagação da ditadura revolucionária no pós1930 e pelo adiamento das eleições da Assembleia Constituinte. Sabidamente, os tenentes receberam forte influência de Alberto Torres e Oliveira Vianna, sobretudo em relação às questões nacionais discutidas por estes dois autores. Se, de um lado, os militares de ADN já vinham, há bastante tempo, criticando o regionalismo, a politicagem, a falta de organização nacional e a própria falta de civismo do povo, por outro os tenentes aprofundavam as críticas ao liberalismo, levando o debate com mais força para dentro da instituição militar. Acentuamos aqui como o clima ideológico do pós 1930 estava imbuído de ideias autoritárias e antipartidárias, sintetizadas em diversas críticas ao sistema liberal democrático. Em junho de 1934, é publicado artigo intitulado “A liberal Democracia e os Exércitos”. O autor cita a incompatibilidade da democracia liberal com as instituições militares, constituindo “teórica e praticamente má companhia para a existência dos Exércitos”.21 Ele acredita que nas democracias liberais tudo é ficção, é convencional, é abstrato. Esta abstração consiste justamente na ideia de soberania do povo que “tudo pode teoricamente, mas que, na prática, apenas pode votar e eleger representantes em quem de fato vai cair o verdadeiro poder”. A liberal democracia também conduz a uma natural falta de disciplina na sociedade e este fato é principalmente perverso para a existência dos exércitos. Para o autor, não se aplicam, portanto, num exército, os métodos próprios da direção das sociedades democráticas sem que sua disciplina sofra, isto é, sem que se deforme ou enfraqueça sua organização e sem que ele venha a vacilar em face do inimigo. É por tais razões que o Exército Francês converteu-se, dentro da democracia francesa, no grande mudo e que o exército vermelho dos russos comunistas existe sob férrea disciplina22.

A referência ao “grande mudo” francês aqui é emblemática: esta teria sido uma das lições passadas pela Missão Militar Francesa, ou seja, a de que os militares jamais deveriam se envolver 20

FORJAZ. Tenentismo e forças armadas na revolução de 30, p. 65. Revista A Defesa Nacional, “A liberal Democracia e os Exércitos”, Junho de 1934. 22 ______. “A liberal Democracia e os Exércitos”. 21

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na política e dela tomar partido.23 Mas, foram também os franceses responsáveis pela ideia de que o problema da defesa nacional depende diretamente da preparação da Nação para a guerra e da total planificação da política com os objetivos militares. O autor conclui seu texto afirmando que “os ambientes e processos das democracias liberais não são favoráveis e tornam-se malsãs aos organismos militares”. Embora o texto não forneça claramente uma opção ao regime democrático liberal, está claro que também não o aceita. Em 1934, ao ser convidado a ocupar a pasta de Guerra do então Governo Provisório, Góes Monteiro elaborou um relatório sobre os problemas e as necessidades do Exército Brasileiro. Em um ensaio anexo, o general não se furtou em tecer algumas considerações sobre os problemas brasileiros relacionados à economia e à política. Góes faz uma alusão ao movimento constitucionalista paulista como uma resistência ao projeto de “uma nova e sólida organização do Estado”, levando o governo provisório à necessidade de recorrer ao “processo clássico do liberalismo moribundo, convocando a reunião de uma Assembleia Constituinte”. Atribui a reuniões desse tipo, resultados medíocres e a sua existência mantém “os vícios e as ligações do passado”, em clara alusão aos procedimentos dos governos da primeira República24. Em relatório do Ministério da Guerra, apresentado em 1935 ao presidente Getúlio Vargas, Góes admite que “a prática do regime político que adotamos e que tem o seu prestígio devido ao erro de haver sido entregue o bastão da soberania a uma multidão composta, em sua maioria, de indivíduos falhos de educação racional, tem facilitado os males de que nos queixamos”.25 Nesta frase fica claro o seu ceticismo em relação ao regime democrático e, principalmente, ao sufrágio universal adotado pela Constituição de 1934. Em março de 1935, os redatores de A Defesa Nacional publicam artigo e incluem, antes de seu início, uma nota em que afirmam a sintonia do pensamento dos redatores com as ideias expressas no artigo. O artigo em questão, escrito pelo tenente Wiedersphan, inicia com forte crítica ao sistema atual de governo que domina o mundo, bem como ao seu individualismo intrínseco. O autor compreende que esse individualismo traz uma série de problemas para a sociedade, sendo o principal a falta de interesse em relação ao todo e também a falta de civismo e 23

Com o término da I Guerra Mundial e a necessidade de modernizar o exército brasileiro, iniciam-se as discussões sobre a contratação de uma missão militar estrangeira para a instrução do Exército brasileiro. Como vitoriosa na I Guerra, a Missão Francesa parecia a escolha acertada para orientar o Exército brasileiro. O contrato com a Missão Militar Francesa foi fechado em 1919 e durou até 1939, embora a partir de 1935 a influência francesa no exército brasileiro tenha sofrido um grande decréscimo de importância, passando o exército brasileiro ser influenciado pelo exército americano. 24 Centro de Documentação da Fundação Getulio Vargas – CPDOC, Arquivo Oswaldo Aranha AO cp 1934.01.29/2. O documento GV cp 34.01.18/2 completa este. 25 Relatório Apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo General de Divisão Góes Monteiro. Rio de Janeiro: Imprensa do Estado-Maior, 1935. p. 22. Captado em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/guerra.html. Aceso em: 12 de dezembro de 2009. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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patriotismo que este tipo de sistema traz consigo. Este meio torna-se propício ainda às infiltrações da persistente “propaganda dissolvente e materialista” na sociedade, além de refletir na própria caserna, através da infiltração “marxista no próprio seio do único sustentáculo da unidade e da grandeza nacionais”. A única solução para estes problemas é um sistema de governo com base na tradição e na força. O autor questiona se deve o oficial quedar diante destas ameaças, simplesmente cumprindo seu dever, de braços cruzados passivamente. Afirma que não. O oficial deve saber distinguir as questões políticas daquelas sociais, afastando-se da política, mas deve estar atento às questões sociais que exigem o seu cuidado. Nesse sentido, inferimos que o oficial refere-se ao perigo comunista, não só na caserna, mas em toda a sociedade. Em artigo publicado em maio de 1935, o Capitão A. F. Correia Lima faz longa crítica aos sistemas liberais e às questões sociais no mundo. O autor acredita que vários países já estão colocando no centro de seus interesses o “todo” da população e não apenas aqueles grupos que são diretamente ligados ao poder. Esses países utilizam diferentes formas, como o comunismo e o fascismo, e ainda não estão provadas as modificações que estes regimes fizeram. De qualquer forma, no Brasil o mal do liberalismo é crônico: influenciou o país em sua quase desagregação, levou elites políticas que não se preocupavam com os interesses nacionais ao poder. Chega à conclusão de que “Nas liberais-democracias cuida-se somente de eleição”, quando as plataformas eleitorais “tem se limitado a vãs promessas [...] destinadas exclusivamente à arregimentação eleitoral”.26 Para Correia Lima, “os adeptos das liberais democracias, regimes que permitem uma politicagem rasteiramente partidária e individualista, só tem uma preocupação, morbidamente obcecante: o acesso ao poder e a mais longa permanência nele”. De acordo com o oficial, o momento é de fragilidade, pois existe, ainda, o mal das doutrinas exteriores que se travestem de questões sociais para, principalmente, dividir o Exército. É necessário ao oficial não se ater às questões político partidárias, mas urge ao Exército estar vigilante e pronto “a repelir as tentativas de desagregação nacional”, que são movidas pelos derrotistas. O oficial conclui que “nós, militares, devemos ser exclusivamente soldados, mas soldados conscientes e compenetrados dos nossos deveres para com a Pátria”. Para os militares, o agnosticismo liberal em assuntos morais e econômicos, além da estrutura política baseada no sufrágio universal fez surgir fenômenos sociais preocupantes. Assim, no Brasil, a influência de ideias liberais gerou falta de lideranças interessadas no coletivo, a falência do patriotismo e a falta de energia para lutar pelos problemas do país. Na economia, conduziu a formação de um grupo potencialmente rico, opressor de um grupo pobre, iniciando assim a famosa luta de classes. Na política, criou o personalismo político e o individualismo, onde 26

Revista A Defesa Nacional, “Orientação Político Social”, maio de 1935, p. 533. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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os grupos brigam apenas pelo poder. Estes fenômenos têm como consequências as crises sociais e econômicas. Declara-se abertamente a morte da liberal democracia nas páginas de ADN. Em artigo intitulado “Rumos do Estado Moderno”, Olímpio Mourão Filho qualifica o Estado moderno: este Estado não é uma ditadura, porque estas não são possíveis; é um Estado onde o sufrágio universal não pode ser concedido, onde a economia não pode seguir o laissez-faire e onde o Estado atua diretamente na educação, a fim de afastar o mal do comunismo. Este Estado moderno terá sua estruturação política baseada no sufrágio econômico ou profissional, possibilitando que o Estado seja formado de todas as classes produtoras. Não se pode deixar de levar em conta, neste caso, a filiação de Mourão Filho ao partido Integralista. Mas, considerando que as ideias integralistas foram amplamente influenciadas por Alberto Torres27, tais reflexões ganham relevância no pensamento militar e na influência das ideias autoritárias. Em fevereiro do mesmo ano, em matéria intitulada “Forças Armadas, Partidarismo e Política” o capitão Sérgio Marinho questiona se seria necessário um conceito novo de Forças Armadas nesse período, já que o papel de simples guardião das instituições liberais estava superado28. Sua resposta é positiva e indica, em seu artigo, as medidas que o Estado deve tomar a fim de dispor de doutrinas positivas e modernas. Todas estas concepções discutidas pelos militares provêm de um período marcado intensamente pela produção intelectual. Os militares estavam inseridos em um contexto de debates em torno da questão republicana e nacional e podem ter sido potencialmente influenciados por este discurso. Tanto Alberto Torres quanto Oliveira Vianna influenciaram o pensamento dos militares. Lembramos que durante a década de 1920, Vianna, assim como Torres, era frequentemente citado pelos autores de A Defesa Nacional, além de receber, mensalmente, exemplares gratuitos da publicação. Vianna foi um crítico sagaz do liberalismo em solo brasileiro, crítico das elites políticas, do regionalismo e das práticas políticas, consequência da existência de uma elite bronca e clientelista. Suas principais ideias, como a utopia de cartas constitucionais, principalmente a de 1891, foram expressas em obra publicada em 1922, intitulada O idealismo da Constituição. Para Vianna, a solução do problema brasileiro era uma só: “segurar com mãos fortes as rédeas da direção política do país. Seria este o único caminho ‘realístico’ e eficaz para assegurar a unidade e a soberania nacionais”.29 Este projeto, de cunho autoritário, não demandava trazer soluções externas para o país. Para Vianna, era necessário criar um projeto político próprio que se 27

FAUSTO, Boris. O pensamento nacionalista autoritário. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2000, p. 27 Revista A Defesa Nacional, “Rumos do Estado Moderno”, junho de 1935, p. 629. 29 LAMOUNIER. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república, p. 296. 28

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adaptasse à realidade nacional; referindo-se às inadequações da política liberal e, consequentemente, das Constituições elaboradas sob esta política. Para o Brasil, tanto as instituições democráticas quanto a política liberal eram utopias que só agravavam ainda mais o problema nacional. Maria Stella Bresciani lembra que durante os anos de 1920-1930 vários intelectuais partilhavam dessa ideia – a inadequação da doutrina liberal no Brasil – e cita como exemplo Sergio Buarque de Holanda30. O exemplo não podia ser mais interessante: Holanda foi crítico ferrenho de Oliveira Vianna após a queda do Estado Novo. O exemplo sustenta a ideia de lugar-comum, isto é, argumentos e opiniões no pensamento crítico, compartilhados por vários intelectuais e também por setores da sociedade brasileira. Vianna e outros intelectuais do período viam como responsáveis pela mudança, tanto os intelectuais, quanto a elite política, que deveriam se adequar aos novos tempos. Embora não tenha teorizado sobre o papel dos militares em seus escritos, estes se encarregaram de fazê-lo, principalmente através das páginas de A Defesa Nacional. Vimos até aqui como o discurso militar em relação ao Brasil guardava similaridades com o discurso de intelectuais como Oliveira Vianna e Alberto Torres, principalmente em relação a este último e sua crítica à política regionalista do país. Pelos textos publicados em A Defesa Nacional, compartilhavam das ideias dos intelectuais autoritários, configurando-se o lugar-comum. Não apenas Góes Monteiro, mas muitos oficiais redatores de ADN tinham afinidades com o pensamento dos intelectuais autoritários, mesmo que discordassem em alguns pontos. Góes Monteiro, por exemplo, insistiu desde sua ascensão militar ao lado dos revolucionários, na ideia de que o Exército constituía uma elite capaz de, ao lado do Estado, resolver os problemas do país. Este discurso pode ser tomado das páginas de ADN onde, desde sua fundação, o Exército era considerado como o ente mais organizado do Estado, pronto a defender os interesses da nação e da própria Instituição. Os militares, a partir da década de 1930, passam a tese de falência do liberalismo e das instituições democráticas, bem como a falta de uma elite organizada que está “presa a teorias do século passado, demagoga e prenhe de um espírito jurídico incompatível com o fato brasileiro”.31 Em julho de 1935, o capitão Sergio Marinho acredita que as Forças Armadas têm sido usadas como coringa no jogo político, entre grupos que almejam o poder. Logo, as Forças Armadas são um instrumento da política “que deve nortear todas as decisões do Estado. E assim, em última análise, elas se resolvem em umas das expressões políticas da Nação”. 32 E por isso não

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BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a sedução da objetividade. UNESP: São Paulo, 2005. Centro de Documentação da Fundação Getulio Vargas – CPDOC, Arquivo Oswaldo Aranha AO cp 1934.01.29/2. O documento GV cp 34.01.18/2 completa este. 32 Revista A Defesa Nacional, “Forças Armadas, partidarismo e política. As forças armadas e os partidos políticos”, Julho 1935. 31

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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podem ficar indiferentes aos destinos da Nação, “como tal não poderão viver insuladas do resto da Nação, estáticas ante a sua permanente mutabilidade, estranhas às suas palpitações [...] e anseios”. Para o autor, tem se tentado há muito tempo afastar a Instituição da política, afastandoa da Nação; a consequência dessa ação foi a partidarização do corpo de oficiais, ou seja, o corpo de oficiais partidarizou-se, deixando que a política partidária, prejudicial à sua disciplina e à sua força moral, entrasse na Instituição. O capitão Marinho acredita que é necessário disciplinar politicamente o Exército, considerando-o como elemento político. Desta forma, as Forças Armadas são fiéis à Política com “P maiúsculo”, aquela política com objetivos sucessivos em relação à Nação. Os exércitos fascistas e comunistas seguiriam este exemplo e obteriam sucesso nesta relação com o Estado. Portanto, o “grande mudo” francês não é mais um exemplo a seguir. O exército francês deixou de se renovar, não se adequando às novas realidades. Marinho conclui que é necessário estabelecer uma política para doutrinar o Exército e mesmo a sociedade; e o Estado tem este dever. Mas os militares estavam atentos, também, à reação da sociedade ao seu discurso mais incisivo em relação à política e à instituição de um Estado forte: em julho de 1935 o capitão João Ribeiro Pinheiro alerta que a intromissão do Exército na vida administrativa do país tem criado um ressentimento na sociedade em relação à instituição militar. É necessário, portanto, afastar esse ressentimento, já que o Exército é depositário das tradições patrióticas do país. O mundo civil precisar ver o Exército com confiança e não como elemento opressor. Para isso é preciso criar a consciência do papel do Exército na população, através de uma educação militar desde a infância. Em novembro de 1936, a ADN publica texto escrito por Pedro da Costa Rego, jornalista e político que, desde 1932, mantinha uma coluna no jornal O Correio da Manhã. Em seu texto ele reflete sobre os últimos acontecimentos na Espanha (a Guerra Civil) e conclui que a democracia só pode manter-se como sistema político amparada no autoritarismo. “Os regimes de autoridade não atacam a democracia: suprem-na. Felizes os povos em cujo seio eles aparecem, porque o fato de aparecerem revela uma espécie de governo tático, a força latente que se opõe e que se impõe”.33 Está claro que, ao publicar um texto como este, os redatores de ADN estão de acordo com seu conteúdo. Na ocasião do Golpe do Estado Novo, em 1937, o General Dutra lança um manifesto intitulado “Proclamação ao Exército”. Neste documento de três páginas são encontradas as ideias já expressas antes por outros militares: Dutra acusa os defeitos e lacunas da Constituição de 1934 33

Revista A Defesa Nacional, “Democracia e Autoridade”, novembro de 1936. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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que, “inspirado[a] em princípios que colidem com a agitação mundial a que não podemos fugir”, é posta de lado em favor de uma carta mais adequada ao “regime democrático, melhor aparelhado[a] para a continuidade federativa”.34 Dutra salienta, ainda, o caráter democrático do regime em várias passagens do manifesto. Este ponto será melhor elucidado quando Oliveira Vianna vier a lançar, em 1938, a segunda edição de “O Idealismo da Constituição”, com adendos elogiosos ao golpe de 1937 e com a exposição de seus argumentos em favor da real democracia instituída com o Estado Novo. O Major Correia Lima – antes capitão Correia Lima – torna-se redator da seção de Estudos Sociais da revista A Defesa Nacional em 1935 e considera que: O Estado Liberal (...) também não subsistirá por muito tempo, nos países que ainda o adotam, porque entrega uma nação aos caprichos heterogêneos e inarmônicos de assembleias legislativas, cujos membros não se compreendem e até se combatem35.

Para Correia Lima, o Brasil havia trilhado pelo caminho certo ao instalar um regime forte, capaz de condizer com os desígnios nacionais, sendo este “um ato político, indispensável e esperado, [que] veio para a salvação nacional, com a atual carta magna, partindo a iniciativa do próprio governo como cabia de ser”.36 Em 1938, em nota oficial, os editores de A Defesa Nacional acreditam que “tudo o que se tentou fazer em nossa terra em benefício da defesa nacional, desfez-se ou desfazia-se ante o acervo enorme de obstáculos opostos por um regime político incapaz do mais elementar gesto de sadio patriotismo”.37 A frase deixa claro que o regime, antes liberal, foi incapaz de resolver os problemas não só do Exército como da sociedade em geral. Assim, as Forças Armadas saúdam o Estado Novo, não só como guardião da democracia e da nacionalidade, mas também como regime forte e capaz de organizar as Forças Armadas, arauto do civismo e do patriotismo. O discurso de Viana também indicava que o Brasil deveria se defender das ameaças a que estava submetido. De acordo com Bresciani, esta ameaça poderia ser “interna de desagregação estimulada pelas ideias, doutrinas e instituições importadas, e ameaça externa propiciada pela

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Centro de Documentação da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC – Arquivo Eurico Dutra ED vp 1936.01.07 Não confundir este oficial com Luiz A. Correa Lima, também redator de A Defesa Nacional durante a década de 1920. Luiz A. Correia Lima faleceu em 1930 e é considerado o patrono dos Centros de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR). Luiz Correia Lima foi intenso colaborador de ADN durante a década de 1920, notadamente em textos sobre a relação das promoções e da inépcia de muitos oficiais em relação à profissão militar. A. F. Correia Lima se destaca na ADN a partir de 1935, quando passa a publicar textos notadamente sobre a relação entre os militares e a política. 36 Revista A Defesa Nacional, “O Exército em face do Estado Novo”, setembro de 1938, p. 385. 37 Revista A Defesa Nacional, “As palavras do Presidente da República”, janeiro de 1938, p. 18. 35

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fragilidade do país frente à força expansionista e integradora das grandes potências”. 38 De fato, o conturbado momento político da década de 1930 indicava a necessidade de fortalecimento: as doutrinas e instituições importadas a que se refere Vianna se materializavam, principalmente, no socialismo e no bolchevismo, ameaças comuns também à instituição militar. Considerações finais O Exército que sai da Revolução de 1930 é uma instituição em frangalhos: dividida em setores, sem uma liderança coesa e com sérios problemas hierárquicos, esteve à beira da desagregação completa. Em 1931 era visto como séria ameaça ao país, devido ao seu estado de anarquia. Oswaldo Aranha não confiava no Exército e acreditava que este poderia dar um golpe militar nos primeiros meses após a revolução39. Entre 1932 e 1935, uma série de rebeliões ocorre no seio da Instituição, culminando com o levante de 1935. É sintomático, portanto, que o recurso do autoritarismo como saída aos problemas brasileiros oferecesse, também, uma solução ao problema militar da coesão e da organização interna das Forças Armadas. Além disso, com o projeto interventor comandado pelos militares vencedores pós-1930, sobretudo Góes Monteiro, as ideias pregadas pelos pensadores autoritários caíram como uma luva – dadas as questões internas do país, bem como o cenário internacional. Através dos inúmeros artigos publicados na revista A Defesa Nacional fica claro que os militares compartilhavam da ideologia autoritária, configurando-se o lugar-comum do pensamento crítico brasileiro. Todos estes vértices do problema estavam sendo discutidos, amplamente, pelos redatores da revista desde a sua fundação. Embora ao discurso tenham sido adicionados novos pontos, como a retórica anticomunista a partir de 1935, ele se manteve de forma relativamente coesa ao longo das décadas de 1910, 1920 e 1930. O discurso dos militares em relação aos problemas nacionais, ao autoritarismo, ao comunismo e mesmo à indústria foi a formação de uma base de pensamento que encontrou eco durante muitas décadas na instituição militar e que teve em A Defesa Nacional, um dos grandes responsáveis pela disseminação desse discurso, ao longo da década de 1930.

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BRESCIANI. O Charme da Ciência e a sedução da objetividade, p. 324. CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 15. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Corpos que escrevem: vivências e práticas históricas a partir dos lugares textuais em Guimarães Rosa

Dossiê

Bodies that write: historical experiences and practices from the textual places in Guimarães Rosa Danilo Almeida Patrício Doutorando em História Programa de Pós-Graduação em História da UFMG/Bolsista Fapemig danilopatricio1@gmail.com Recebido: 03/11/2014 Aprovado: 02/12/2014 RESUMO: O artigo aborda questões envolvendo linguagem e olhares políticos a partir do livro Corpo de Baile (1956), de João Guimarães Rosa. Concebendo a produção artística constituída de práticas históricas, percorre-se o corpus literário das narrativas em diálogo com entrevistas e correspondências do escritor, lendo-se a criação artística, simultaneamente, como uma forma de escrever a história, pela estória, que evidencia experiências dos sertões brasileiros, através dos Gerais mineiros, e realiza crítica ao progresso desenvolvimentista no Brasil – presente no contexto da escrita – principalmente através das trajetórias de personagens como “os pobres do mato”. Vivenciando experiências culturais diversas nos sertões, eles reagem também com estranhamento às regras decorrentes de poderes que falam e agem a partir das cidades. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Práticas, Guimarães Rosa. ABSTRACT: The article deal with questions involving political language and looks from the Corpo de Baile book (1956), by João Guimarães Rosa. Understanding the artistic production constituted by historical practices, travels around the literary corpus of narratives in dialogue with interviews and correspondences of the writer, reading the artistic creation, simultaneously, as a way of writing history, for the story, which highlights the experiences of Brazilian hinterlands (sertões), through the Gerais mineiros, and criticizes the developmental progress in Brazil – be present in the context of writing - mainly through the trajectories of the characters such as “os pobres do mato”. Living different cultural experiences in the hinterlands, they also react with strangeness against the rules which are derived from powers that speak and act from cities. KEYWORDS: Literature, Practices, Guimarães Rosa. Introdução: Arte e Linguagem, Lugares de História “Não preciso inventar contos. Eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los”.1

A fala do escritor brasileiro nos faz perguntar: de qual lugar chegam esses contos? O que eles carregam e, nesse existir de coisas, de experiências, quem escreve com o artista os textos desses contos? Um caminho, aqui seguido, é o de pensar Corpo de Baile, livro poético fragmentado lançado João Guimarães Rosa em entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz, em 1965: LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. São Paulo: EPU, 1973, p. 315-55. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 1

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em 1956, como matéria textual formada com práticas históricas que, embora inseridas – e lidas – em ‘sistemas de representações’, constituem-se e são geradas a partir de vivências que, tocadas pela trajetória do escritor, elaboram-se partindo de informações que deságuam em Leituras2. A elaboração estética se faz histórica no percurso entre artista e práticas vividas, externando olhares, que por sua vez continuam a se inscrever quando em contato com os leitores. Corpo de Baile, uma dança potencial, para movimentar-se requer a Leitura como inserção de repertórios vividos, a partir das trajetórias dos leitores. Assim elas dão movimento aos temas – a partir de enredos e personagens – cruzando experiências de mundo com o corpus artístico, tocando o contexto histórico de produção do livro e as possibilidades da linguagem3 que carregam temporalidades, que se desdobram em Leituras. São nesses lugares históricos, operantes em linguagem, que se dão as cisões daquele que é denominado autor, mas que não conseguiria sozinho apresentar-se, como criador de obras, sem a existência vivida que toca a trajetória pessoal do artista. Trata-se de um percurso que aponta para a impossibilidade de um escritor se constituir sem os outros. Em Corpo de Baile, exerce Lugar de Arte – escritor e personagens, incluindo os artistas – a condição permanente do outro como recurso estético provocador para o dizer. Seria a condição de viajante permanente do artista – viajante participante - uma forma que exterioriza de modo intenso o outro, em Lugares diversos, como o outro letrado da escrita e o outro vivente do sertão rural? Temos em Corpo de Baile um sempre-outro? É Walter Benjamin quem nos lembra que nem todas as vivências do mundo encontram narradores, indivíduos criadores4, que as projetem artisticamente. A advertência nos possibilita pensar as citações5, além de referências em diálogo com obras anteriores – O Sertanejo, de Alencar, e A Divina Comédia, de Dante, entre os exemplos em Corpo de Baile -, como encontros entre experiências vividas cruzadas no escrever da história. Perpassando a trajetória do ficcionista, no texto rosiano a citação configura-se como indicativo artístico aberto ao vivido, projetando imagens-vida como a Festa e a Violência. Compreendendo o percurso feito por Guimarães Rosa como viajante-participante, os quadros avistados na escrita ganham movimento ao tomarmos a CHARTIER, Roger; HANSEN, João Adolfo. Debate Literatura e História. Revista Topoi. Rio de Janeiro, v. 1, 2000; CHARTIER, Roger. El passado em El presente: literatura, memória e história. Revista ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 13, 2006 (p.7-19) 3 WHITE, H. Teoria da história e escrita literária. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGR, v.7, n. 13, 1994. Discussão do texto a partir de diálogo com a professora Adriane Vidal e alunos da disciplina História e Literatura na América Latina – século XX, por ela ministrada em 2014.1, no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. 4 FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XIX. 5 BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D`Água Editores(Antropos), 1992. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 2

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Viagem, temática literária, como deslocamento espacial que tece temporalidades históricas, externando valorações na escritura artística, projetadas em lugares como solidariedade, medo, comemoração e sexualidade. Mais do que um espaço casual, são criados lugares palpáveis nesse terreno. Lugares de um Livro em trânsito onde se esboçam vivências. Neles se situam materiais diversos, nem sempre gerados em perspectiva de autoria como propriedade. Com esse peculiar encontro, as práticas do vivido tornam-se concretudes, não como mero relato do real, traduzível em uma suposta ilusão fidedigna de um acontecido. Elas são tocadas no cruzamento do percurso de viagem e, trabalhadas em texto, lançadas ao futuro pela força artística. Os repertórios históricos desse texto móvel, em dança, continuam em escrita pelos contatos com os infinitos e diversos leitores, também interlocutores das mediações onde se localiza o escritor.

“O corpo, que alterava a espessura do tempo”.6 Publicado em 1956, Corpo de Baile constitui-se como Lugar oportuno para se refletir sobre esse peculiar encontro, envolvendo a obra literária, carregada de práticas, e a trajetória de João Guimarães Rosa. Pela criação artística, avista-se este Lugar como histórico pensando as práticas existentes na ficção, considerando o formato não convencional de Corpo de Baile, que irá se desdobrar em três livros a partir da 3ª edição (1964-65). Desdobra-se em outros livros sem deixar de ser o mesmo livro. Corpo de Baile foi lançado com este título em 1956, formado por 7 estórias (novelas/contos), cada uma com autonomia de leitura e ao mesmo tempo se comunicando com as demais. Em dimensão mais ampla projetada no (suposto) livro, a dança movimenta-se pela trajetória do menino Miguilim, que, na primeira novela, Campo Geral, deixa o sertão-Mutum para viver na cidade, para onde parte levado por um médico que caçava nos Gerais de Minas. Ao quase-final do livro, em Buriti, o personagem Miguilim adentra o Buriti Bom já como homem feito, o veterinário Miguel. A 1ª edição de Corpo de Baile foi lançada em janeiro de 1956, dividindo as 7 estórias em 2 volumes. Em 1960, a 2ª edição foi lançada reunindo todas as estórias em volume único. Na 3ª edição (1964-65), o livro foi repartido em 3 volumes, cada um recebendo título próprio na distribuição das 7 narrativas: Manuelzão e Miguilim (1), No Urubuquaquà, no Pinhém (2) e Noites do Sertão (3). Enredos: histórias nas estórias

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ROSA, João Guimarães. Buriti. In: Noites do Sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 186. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Um menino sai de casa para outros mundos repartindo a própria vida pelos dois territórios, o rural e a cidade. Passa a carregar duas vidas, a que irá viver com os saberes letrados da cidade e a que não conseguirá esquecer, na lembrança afetiva da família e de paisagens. A vida que poderia ter sido a deste menino, Miguilim, com os seus, no espaço histórico rural, confrontase com a vida que segue em busca de outros repertórios, de recursos, sem saber como e para que usá-los quando toca novamente o espaço rural (retorno?), com a distância dos que não consegue esquecer, principalmente os familiares, mais notadamente o irmão Dito, falecido na dor inesquecível de criança. Esse entremeio situa-se entre o que se deixa e o que se carrega em sofrimento de lembrança, de quase, de lamento. Existe em Migulim-Miguel a força para os novos desafios e a esperança em ver de novo o mundo do sertão matriz da criança. Ela se constituirá em ilusão na medida em que, assim como o Migulim que se faz Miguel na cidade, percebe-se cruamente – com o choque, sentido no espaço afetivo, pelo tempo decorrido - que esse sertão físico muda – faz brotar outros, movimenta-se. É esse o ritmo do livro que se abre em outras Estórias, seis, que carregam cada uma das narrativas, como fragmentos poéticos em comunicação com o viver. “Mas as palavras não se movem tanto quanto às pessoas”, dispara sorrateira a narração de Buriti7. Além do trauma de ter perdido o irmão e de ter se separado dos familiares para não mais encontrá-los, os sofrimentos do protagonista são intrínsecos à dor de quem viveu a pobreza e tocou a miséria. Não estão restritos a uma saudade superficial, mas sim ligados diretamente a trajetórias históricas vividas no Brasil na maior parte do século XX. A condição migrante está associada à busca de outras sortes nas cidades, que não se dá sem o apartar-se da paisagem social de nascimento, que reúne afetos de desejo e de repulsa. Estes são os passos de Miguilim que escrevem histórias em diálogo com as populações rurais. Semelhante e diverso aos convencionais retirantes do país no século XX, em geral fugidos de secas em busca do trabalho urbano, Miguilim externa também alguma culpa ante aos que ficaram no campo e não migraram para a cidade, que são refletidos de modo trincado na trajetória de Miguel. O percurso escrito é de quem nasceu nos sertões e, tornando-se o veterinário Miguel, diluiu-se na sociedade industrial, vivendo como Miguilim crescido, na impotência de seu poder de infância. Pelo deslocamento espacial entre as narrativas das duas novelas – Campo Geral e Buriti -, tem-se uma crítica singular feita, simultaneamente, à violenta expropriação dos pobres no campo e aos vazios da sociedade industrial, nos trilhos do progresso desenvolvimentista no Brasil da segunda metade do século XX. São críticas, diga-se passagem, 7

ROSA, João Guimarães. Noites do Sertão, p. 124. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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construídas na intensidade poética da linguagem, com o poder de se prolongar a novas leituras, portadoras de futuro8, consistentes ante a permanência das duas frentes de poder, por sinal bem alinhadas, como mostram os caminhos de viagem de Recado do Morro, novela do mesmo livro. Os enredos das sete narrativas possuem o campo como cenário predominante, mas sempre mencionando as cidades, aludidos em diferentes ângulos a partir dos sertões que se movimentam, em dança. Nessas vivências mencionadas nas narrativas sobre o mundo urbano, opaco, aquele oriundo dos sertões vive com estranheza. Essa condição é um descompasso estrangeiro para os que, como Miguel, voltam aos sertões em visita, a trabalho, vivenciando a condição deslocada, de entremeio. “Era um estranho; continuava um estranho, tornara a ser um estranho? Ao menos, pudessem recebê-lo com alegria maior que a surpresa”.9 Além dessa condição de estranheza, a dor de Miguel tem lugar em seu entendimento ingênuo sobre o viver no espaço rural. Em meio aos retornos para os sertões ele supõe um tempo estático para aqueles de quem ele se distanciou na trajetória. É o que vemos, por exemplo, com o “pensar” excessivo de Miguel sobre Maria da Glória, a filha do fazendeiro Liodoro, com quem ele tem a pretensão de se casar. “Você pensa demais”, diz Glória a Miguel, em conversa dos dois durante o jogo de sedução noturno. No segundo retorno aos sertões, Miguel é ainda mais um “homem da cidade”, que percorre o espaço pilotando seu jeep. Confiante na técnica, um poder usado no trabalho – carro, vacinas da ciência, empregados -, o veterinário já ignora a sociabilidade vivida do percurso, a qual não consegue perceber enquanto se desloca. É um solitário no caminho e essa condição o isola, abrindo vazios, na medida em que ele passa a conceber os sertões como ausentes de movimento histórico. O texto literário mostra essa outra historicidade vivida que não é percebida por Miguel. Historicidade desencadeada pelos corpos, como no enlace do grotesco Gualberto Gaspar, o Gual, com a filha do fazendeiro Liodoro, Glorinha, a mesma com quem Miguel planeja se casar, vendo-a como simples e “inocente”. Entre a novela primeira, Campo Geral, e os (des) enlaces de Buriti, de Miguilim só se saberá, através das outras novelas, que ele está na cidade, Curvelo, para estudos e trabalho. A trajetória do personagem matriz é aludida pelos seus familiares nas narrativas seguintes, como fazem os irmãos do protagonista, em “A Estória de Lélio e Lina”. Eles recebem notícias vagas sobre o irmão. Escutam dizer de modo impreciso sobre o ente querido, recebendo sinais de quem passou pela cidade, como o vaqueiro Lélio. As ações se desenrolam nos sertões que se KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006. 9 ROSA, João Guimarães. Noites do Sertão, p. 117. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8

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repartem, na vida dos que não partiram com Miguilim, os que se espalharam vivendo histórias em outros espaços brasileiros, produzindo tempos, perceptíveis na forma ficcional. Sertões e cidade são corpos afastados e diversos na formação histórica do país, que tocam um ao outro pelos movimentos de viagem que os personagens exercem incessantemente. São idas e vindas entre os territórios que mostram as diferenças existentes no Brasil e, a partir dos sertões, configuram-se como permanentes buscas que se dão em meios às duras condições de trabalho. Buscas de familiares, de amigos, de amores, do novo, que nas histórias é outra felicidade possível, diferenciando-se, o novo, da novidade do progresso, gerada historicamente no mundo urbano como promessa. São procuras que se lançam de modo intuitivo no contexto de Cultura, em busca de realizações dos personagens onde estão os “pobres do mato”. diária”.

“(...) uma noite pode ser mais durada de espaços que a vida toda de um,

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Com a arte dando forma a vida, como esboçou Nietzsche11, essa condição viajante presente na linguagem deteriora sobrevivências de estereótipos que ainda poderiam sustentar visões estáticas vinculadas às experiências sertanejas no Brasil. Um olhar sobre a escrita de Corpo de Baile em dimensão histórica é enriquecida quando marca a intensidade do vivido nos sertões do país e, ao mesmo tempo, configura-se como crítica à modernização brasileira12, disparada com os golpes da obra aos ares de desenvolvimentismo no Brasil da segunda metade do século XX. Tal Leitura percorre o texto interrogando-o para pensar a história13, imaginada e remexida pela Estória. A potência das práticas históricas na obra em questão espalha-se no curso de dois caminhos: vivência de sertões, evidenciando-o como espaço histórico, e crítica ao progresso, em vestes desenvolvimentistas no Brasil, a partir da maneira de como são impostos poderes a partir das cidades. Duas veredas que se bifurcam, para lembrar a expressão de Borges14. Em Corpo de Baile temos, em amálgama, a história em curso, o vivido, e o olhar que a escreve, posto em movimento na trama. Temos uma História dentro da Estória, conforme as composições da Festa de Manuelzão/Uma estória de amor, umas das novelas integrantes do livro. Sobre ela, Guimarães Rosa comenta ao seu tradutor italiano: “V. sabe, eu escutei, mesmo, no sertão, essa prodigiosa

ROSA, João Guimarães. Dão-lalão (O Devente). In: Corpo de Baile, p. 87. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008. 12 STARLING, Heloísa Maria Murgel. Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Revan, UCAM, IUPERJ, 1999. 13 LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 15-28. 14 ARRIGUCCI JR., Davi. Borges ou o Conto Filosófico. In: Ficções. São Paulo: Globo, 1999, p. 9-24. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 10 11

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estória, contada mesmo pelo Velho Camilo [personagem de Corpo de Baile]. (Naturalmente alterei coisas.)”.15 A fala de Guimarães Rosa nos mostra que a obra é gerada pelo existido, que o escritor não a inventa com poderes de outro mundo, mas sim conversa e participa de um corpus de ações presente no texto literário, integrado e com uma obrigação de trabalhar experiências que, com suas forças, querem integrar a ficção. A criação artística não reproduz a repetição de um real, e nem pode. A prática vivida se inscreve como uma reapresentação, já marcada pelo olhar do artista16, com quem a experiência elabora a ficção. Carregada do possível, essa experiência não mais se desvincula da reflexão de quem a media, marcando-se por estas alterações, pelas ruminâncias, para lembrar a analogia de Rosa sobre o processo criativo. A Festa de Manuelzão em Corpo de Baile não é apenas um relato informativo da vida do vaqueiro Manuel Nardy. E ao mesmo tempo é sim A Estória de Manuelzão, que, na trajetória de longos anos, vive experiências pelos sertões dos Gerais. Elas encontram o escritor e escrevem a obra com trajetórias outras: pessoas, bois, vegetações. O vaqueiro vive experiências e, à sua maneira, as conta ao João Rosa, conforme Manuelzão se referia ao também escritor, jorrando falas, e sendo escutado pelo artista, que se situa como intérprete singular no Brasil do século XX. É esse tempo escutado e convivido que se projeta na formação da obra literária, trabalhado em linguagem pelo escritor-pesquisador, sendo também substrato de uma vanguarda artística que se constrói pelo político. Manuelzão, Camilo, Joana Xaviel e muitos outros anônimos identificáveis no existido possuem vivências históricas com presença na obra. Elas constituem pontos de partida que, em linguagem e leituras, se projetarão a outros mundos, que se formarão no caminho entre a participação do leitor e os que viveram o existido nos sertões, contado em narrativa, onde tece o escritor. Articulada ao vivido sem poder repeti-lo, a literatura ganha também a condição de “discurso teórico dos processos históricos”.17 Essa dimensão de teoria possui a perspectiva de uma reflexão sobre as práticas sociais, o ocorrido, implicando em desdobramentos na escritura do artista, como ação, na abertura de um espaço para o “pensável” sobre as experiências. “Quando mais tarde chegou o tempo em que eu não quis continuar escrevendo instintivamente

Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizarri, em 28 de outubro de 1963, em um dos “auxílios” do escritor na tradução de Corpo de Baile para o italiano. BIZARRI, Edoardo; ROSA, João Guimarães. 1908 – 1967. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri.- 3.ed. - Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003, p. 59. 16 CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. 11 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Coleção Debates: 001/dirigida por J.Guinnsburg). 17 CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 92. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 15

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[apenas com a técnica], em que quis ser “poeta” [aspas como grifo do autor em alusão à Literatura], comecei a fazê-lo conscientemente”.18 A imbricação que converge vivido, a reflexão sobre este e a projeção para Leituras abre-se aqui para uma concepção de Literatura - e mais amplamente de ficção criadora – que toca uma historicidade na dimensão do intenso, evitando um entendimento das fontes como meramente ilustrativas e auxiliares de um delimitado real, a ser comprovado, onde exclusivamente estaria a história, a ser descoberta e paralisada em um status de sacralização. Mais do que material de comprovação, e para além do diálogo – vivido, ficção teórica, criação, leituras -, o documento, em formas diversas, projeta dimensões narrativas artísticas que escrevem e pensam história, através das estórias. Também por isso é que o trabalho histórico com a ficção, no caso a literatura rosiana, constrói-se com olhares que realizam novos diálogos a partir da obra, considerando-a sempre potencialmente histórica. Evita-se assim cair na armadilha de conceber o texto como produto decifrável, seja possuindo significado único, a ser descoberto, seja na crença de um entendimento do mesmo como explicável em si, com essência, blindado a Leituras pela auratização da linguagem, propriedade de um autor, nos riscos do autoritário sagrado. É também em uma carta de Rosa a Bizarri que se pode avistar a complexidade de presenças: “Quando eu escrevi o livro, eu vinha de lá, dominado pela vida e paisagem sertanejas”.19 Nesse sentido, Corpo de Baile se abre para Leituras em seu intenso movimento, fugindo à visão do texto artístico como mera representação direta de uma dada realidade, que estaria delimitada. A força estética dos personagens em Corpo de Baile está também em seu movimento como corpus vivente que, em vez de provar algo pontual, escreve a história artisticamente, carregando práticas na condição ambivalente da literatura: fixar-se, no suporte livro, e propagarse, nos sucessivos contatos com os leitores. Corpo de Baile, diga-se aqui de passagem, carrega de modo peculiar essa condição literária, na medida em que questiona a própria condição de livro20, transformando-se, em formato e esteticamente, em outras linguagens, como o teatro e o cinema. Personagens, enredos: trajetórias Em vez de entendermos as ações nos enredos como ocorridas apenas em um determinado local, a força política da escrita nos contos que vivem pode ser vista no percurso de

LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina:, p. 325. BIZARRI, Edoardo; ROSA, João Guimarães. 1908 – 1967. João Guimarães Rosa, p. 90. 20 ROWLAND, Clara. A forma do meio: livro e narração na obra de João Guimarães Rosa. Campinas: Unicamp; Edusp, 2011. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 18 19

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personagens que, em vez de representantes de algo nominado, se reapresentam21 nas narrativas. Elas se afirmam em um cenário onde se imbricam espaço e tempo, com este tomando forma pelos deslocamentos intensos de “um mundo sem paredes”, como vive o bobo Chefe Zequiel, personagem da novela Buriti. Em vez de receitas nos enredos, a busca dos personagens se dá pelo viver livre do corpo, lugar de história, em texto e experiências. Arredios a modelos de vida racionais, os corpos históricos dos pobres, em desajuste inquieto, transitam, entre as fazendas e as cidades, em busca na dimensão comunitária, em um mundo que acontecido na informalidade das relações. Trata-se de um mundo cru, feito no contato de experiências diretas, que destoa das instituições mediadoras organizadas a partir da cidade, embora esse mundo não esteja isolado e diga sobre ela, a cidade, como através do uso da ironia. Apresenta-se pelas narrativas um mundo escrito vivido artisticamente que, com o imemorial poético, põe em xeque o progresso redentor, falseado, prometido à maioria das populações históricas dos sertões. Ante ao poder das fazendas, de muito trabalho e poucas glórias, vê-se em alguns dos envolventes personagens das tramas a utilização de recursos como a invenção narrativa de estórias que eles teimam em contar: os artifícios corporais - sexualidades, violências - como gestos da suposta bobice que, com astúcia, burlam os poderes que as tocam. Nos enredos, estes personagens, como os bobos, são os mais sedutores e surgem como inadequados ao duro trabalho, à condição de capturáveis, assim como o texto literário foge ao decifrável de sentido único, não se sujeitando à classificação de gênero literário. Personagens marginais [na obra], imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros. Eles é que formam o corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e plateia. O autor e as personagens nunca são completamente distintos. Usam a mesma língua, a ponto que volta e meia aquele passa a palavra a estas sem que se note qualquer mudança de plano22.

OTTE, Georg. Rememoração e citação em Walter Benjamin. Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v.4, 1996, p. 211-223. Tive acesso a este e outros importantes textos a partir da Disciplina “Mito e Modernidade”, ministrada pelo autor na Pós-Graduação em Letras da UFMG, quando partilhadas importantes leituras e debates, continuados nas atividades do Núcleo Walter Benjamin (NWB - FALE/UFMG), como o IV Colóquio Internacional do NWB: “Fantasmagorias” – Belo Horizonte, set. 2014. 22 ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 18. Oportuna explanação do crítico Paulo Rónai, em apresentação da obra presente já nas primeiras edições. O crítico manteve relação respeitosa com o escritor, que destacou entre os críticos Rónai e Antonio Candido, nomeadamente, como referências de bons leitores da obra. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 21

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Uma suposta condição metafísica atribuída à obra de Rosa, por críticos e pelo próprio escritor23, pode se configurar em armadilha para não percebermos a complexidade histórica no percurso de intensidade dos personagens. Em Corpo de Baile, além daqueles que se deslocam entre diversos sertões brasileiros (incluindo “os do Norte”), estão os que chegam aos sertões vindos da cidade, apresentável como imagem fugidia, turva, espalhando imaginários sobre um espaço outro. No reverso de retirantes da literatura brasileira, como nos anos de 1930, tais personagens de Corpo de Baile são oriundos do meio rural e, após período na cidade, adentram os sertões em rememorações que vislumbram futuros, driblando um entendimento nostálgico passadista, pelo fato de, ante às agruras, se situarem na vontade permanente de recriar a vida. Exemplo que marca esta condição é a trajetória do vaqueiro Lélio (novela “A Estória de Lélio e Lina”), que chega à fazenda do Pinhém apresentando-se como filho do afamado Higino, conhecido de outros tempos nos Gerais pela habilidade na lida com o gado bovino. As trajetórias desses personagens configuram-se como janelas por onde se enxergam dimensões políticas. Na narrativa, Lélio chega à Fazenda e é seguido pelo cachorro Formôs, pertencente à Dona Rosalina, com o animal marcando a ideia de homem como parte da natureza viva, em vez de detentor de poderes sobre a mesma. Na cidade, Lélio havia ‘esbarrado’ no ofício de caminhoneiro. Com auxílio de um amigo, tenta a profissão que alude à condição de andarilho, viajante, mas que não o entusiasma no trato com a máquina. A rememoração é também um recurso na trajetória do personagem, mas principalmente está ligada às buscas permanentes no enredo, que se desdobra em planos múltiplos. Não se trata da procura de algo específico, mas de descobertas que só acontecem à medida que o vaqueiro vive coisas novas em seu percurso. A partir da imagem do pai que inquieta o filho, do exímio vaqueiro que supostamente, conforme ouvira o protagonista, abandonara a mãe e à família, a ele próprio, Lélio parte para novos sertões, descortinando seus passos nessa articulação temporal, que se abre aos que estão a seu lado, iguais e diversos, aos que ele encontra pelos caminhos que vai abrindo na narrativa. Aceito no Pinhém, após palavras e breve demonstração de habilidades na lida da fazenda, reforçada a descendência vaqueira, Lélio vai percorrendo os caminhos de pessoas e lugares dos BOLLE, Wille. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004. No livro grandesertao.br, o alemão Willi Bolle menciona a “linha espiritual” como uma das cinco frentes que se esboçam na crítica rosiana. Guimarães Rosa utiliza autores dessa perspectiva, pela tradição filosófica da metafísica, e menciona valorações de pontuação como presença desse campo na obra. Atribuo esta preocupação à intenção, no contexto de publicação, de evitar as tentativas de rotular genericamente a produção rosiana dentro do campo classificado de regionalista, a partir de uma essencialização que se explicaria apenas principalmente pela metafísica. 23

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sertões – trabalho, amores, revoltas, solidariedades – que o leitor conhece pela trajetória do personagem vaqueiro. O tatear do personagem projeta lugares como o espaço de Conceição e Tomé, as tias, mulheres que recebem os vaqueiros para os prazeres sexuais, principalmente aos domingos. Existido dentro da fazenda, o espaço-tempo das tias é adverso de tempo às regras rotineiras da fazenda, onde se localiza, e às posturas comportamentais padronizadas pelas falas que adentram os sertões. Falas e usos sobre como vestir-se, comer, dizer, portar-se de maneira geral, que externam novos poderes que se lançam aos Gerais. No Pinhém, tais forças históricas desencadeiam a automatização da fazenda vendida a novos donos, provocando o escapar de Lélio para novas buscas, já em companhia da sabedoria de Dona Rosalina, a cavalo, armado com a natureza viva. Lélio rememora e elabora criações. Resiste e se reinventa diante dos obstáculos, esboçando novas passagens que movimentam personagens e forças no texto literário. Temos um texto que se move, projetando-se com os personagens andarilhos. Lembrando a pesquisa sobre o andarilho José Osvaldo e a ficcionalização de personagem em um dos textos de Ave Palavra, Eneida Souza destaca em Guimarães Rosa a condição de trânsito permanente de personagens que não se prendem a normas, desafiando a imposição de regras, em uma ficção que “escapa à tirania do referente” concebendo os documentos como “fragmentos de vida”.24 Nessa condição histórica, fogem das definições de identidade, afirmando-se em uma liberdade próxima ao perigo, onde por vezes arriscam a própria vida, em ambivalência, na medida em que se voltam para o prazer de sempre perseguir novas experiências. Em Corpo de Baile, os personagens deslocam-se entre as estórias. Localizam-se em uma novela própria e ao mesmo tempo percorrem as demais narrativas, que fragmentariamente compõem a obra. Eles se interpõem, passeiam entre as sete estórias, com rápidas passagens e às vezes comentários dos personagens sobre temas e personagens outros das outras estórias. Essa forma literária provoca sobressaltos, choques25, despertando a ânsia de se saber sobre o outro, sempre lembrável ainda que oculto quando lido apressadamente na trama. É essa permanente condição histórica de trânsito dos personagens associa-se à condição de viagem na literatura mediada por Rosa, o que está intensificado em Corpo de Baile, um livro não convencional que, na forma impressa, carrega a condição de dança, como indica o título, esboçando-se como forma duplamente cênica: encenação do vivido e práticas históricas SOUZA, Eneida Maria de. Rosa Residual. In: MIRANDA, Wander Melo; SOUZA, Eneida Maria de. Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.52-53. 25 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D`Água Editores(Antropos), 1992. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 24

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encenadas. Como obra artística, Corpo de Baile abre-se a outros formatos, elaborando-se em linguagens diversas como a música, a presença da poesia constante e a perspectiva narrativa do cinema, agregando técnicas dessa linguagem, desencadeando sempre planos simultâneos em cortes e aberturas que se desdobram26. Escritas vivas Tais questões de forma se entrelaçam com a perspectiva intensa de trânsito dos personagens andarilhos que estão em permanente busca. Em uma sinalização política, fogem às capturas e vivem riscos em seu viver, conforme as narrativas. Essa dimensão dos personagens na forma literária, por conseguinte, não está apartada da trajetória do escritor. Guimarães Rosa vive intensamente o lugar de outro. Para além do trânsito, pode-se pensar na ausência de uma origem e na existência de um sempre-outro. Nascido em 1908 em Cordisburgo, Minas Gerais, Rosa deixa a cidade ainda criança, partindo para estudos em Belo Horizonte. As sucessivas mudanças na trajetória do escritor envolvem a busca contínua pelo contato com o letramento, habitando diferentes cidades, por conta da profissão de médico, depois trocada pela de diplomata, simultânea à dedicação literária27. A infância já se constitui como época em que o menino Joazito, como era chamado28, exerce o lugar de outro, estranhado pelos familiares e as demais crianças, quando trocava as brincadeiras pelas curiosidades literárias e as aulas de idiomas. No espaço da cidade, reconheciase como pertencente ao sertão, situando-se entre o mundo que havia habitado e o que passava a criar com a poesia de paisagens e olhares sobre as pessoas. Na trajetória, não perde nunca o contato com o corpus cultural sertanejo, seja em visitas de férias escolares ou, mais adiante, já no caminho de escritor, com as permanentes solicitações a amigos e familiares para envio de informações em cartas sobre repertórios do mundo vivido no interior. Como adulto, as viagens eram o gozo, principalmente a que realizou em maio de 1952, quando por dez dias acompanhou a condução de uma boiada, vivendo com vaqueiros e anotando intensamente o que ouvia, participando.

A novela Cara-de-Bronze, a mais experimental da obra, é composta por diversos formatos artísticos, com a presença da escrita teatral, de um roteiro de cinema e vários planos narrativos que, na viagem do vaqueiro Grivo, se abrem em comunicação direta com as citações escritas da Divina Comédia, de Dante Alighieri. 27 PEREIRA, Maria Luiza Scher. O intelectual em trânsito num texto híbrido – “Páramo”, de Guimarães Rosa, In: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de. Modernidades Alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. 28 COSTA, Ana Luiza Martins Costa. Via e viagens: a elaboração de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Cadernos de Literatura Brasileira do (Edição Especial Comemorativa de 10 anos). São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2006. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 26

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Nascido no sertão, nutrindo por ele afeto imenso, Rosa era o outro entre os vaqueiros, visto como o doutor letrado, que tinha ido encontrá-los para, com o mote de anotar para fazer livros, conviver com os vaqueiros, lançando-se em corpo para sentir em proximidade. Ao mesmo tempo, nos bancos escolares, na escola de medicina e nas consultas do Doutor, nos gabinetes diplomáticos, enfim, nos lugares de saber letrado, Rosa não se desfazia esquecido do pertencimento afetivo ao sertão, a ele ligado como região histórica29 afetiva. Como cenário, o sertão fazia-se a lembrança desejada de um terreno querido e nunca esquecido, a partir do qual, como lugar histórico de Cultura, passaria a pensar e escrever sobre o mundo através da literatura. Além de se nomear como sertanejo - o que para além de estereótipos faz pensar sobre a dimensão ampla dos sertões -, os lugares letrados de saber na trajetória, incluindo os literários, passaram também a reconhecer Guimarães Rosa como homem do sertão brasileiro, a diferenciálo nesse outro espaço do outro. Uma suposta origem, caso existisse, estava sempre distante, atribuída que era pelo outro, como o sertão sempre indicado em outro lugar, e nomeado externamente. Restava então, repartida a vida, estar sempre em busca dele, criado permanentemente com as experiências de outros sertanejos. Lélio, Doralda, Manuelzão, Pedro Orósio, Miguilim e Soropita, por exemplo, são personagens que, nos enredos, não vivem nos lugares onde nasceram, habitando outros sertões. Como o escritor, eles estão em um sertão onde são vistos e, por vezes, nomeados como estrangeiros (Manuelzão saindo do Maquiné para o sertão da Sirga, por exemplo). Eles estranham a vivência onde se inserem e, nessa estranheza, tornam-se pertencentes a ela, nessa condição, identificando-se aos repertórios, integrando-se por diversos modos, sem anulação da própria trajetória, que demarca na trajetória do escritor a complexidade de uma solidão povoada. Esse lugar do indivíduo possui sim lacunas, provocando o desejo de estar na paisagem histórica sertaneja concomitante ao de embeber-se do saber letrado, a ser usado para inscrição de olhares através do artístico. No entanto, talvez mais interessante seja pensar Guimarães Rosa em viagem permanente, participando dos referidos universos de modo a se apropriar de repertórios – experiências, saberes – para uso na literatura, onde se pode avistar essa escrita em movimento. As lacunas encontram-se mais nas distâncias espaciais, e até mesmo constituem-se como composição do fazer literário quando, por exemplo, o espaço sertão é esboçado também como recurso que, ao descrever a História de populações – em movimento – evidencia também o entremeio, vista privilegiada em Corpo de Baile. Além do contexto de conflito vivido pelos pobres no ambiente

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AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n.15, 1995, p.145-151. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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rural, a ficção histórica descortina na obra outros cenários através dos repertórios oriundos da cidade, anunciados como progresso. O escritor Guimarães Rosa situa-se, portanto, nesse meio do caminho, sem paralisar-se em um dos dois universos espaciais, como se isso aludisse às suas rápidas passagens pelas muitas cidades ao longo da trajetória e os muitos retornos aos sertões que carrega a seu modo. Tal lugar, que se galvaniza na escritura de práticas lançadas como olhares, assemelha-se à condição de viagem permanente, ininterrupta, como a do vaqueiro Grivo, personagem de Corpo de Baile que, na estória Cara-de-Bronze, descortina visões sobre o mundo com os repertórios surgidos nos deslocamentos espaciais, construindo a poesia no percurso de uma permanente travessia, espalhada em linguagem, que também é política e demarca a trajetória do escritor como parte da autoria. A importante viagem realizada pelos sertões dos Gerais em 1952 revela, nas anotações do escritor e nos relatos dos vaqueiros – como os proferidos à imprensa – que a atividade de pesquisa não impede que Guimarães Rosa participe intensamente da viagem como realização prazerosa do homem, inscrevendo-a na própria trajetória. Trata-se de uma participação que extrapola o registro anotado, com o escritor integrado à viagem não como apêndice, mas se incorporando à dimensão viva da natureza30, na mira de degradação do progresso, e em Corpo de Baile, presente como força ativa nos enredos. É com esta força que na obra é narrada a dimensão histórica das populações, principalmente através de personagens como o grotesco Gualberto Gaspar que, com as suas ações, desarma o pretenso poder que chega da cidade e se diz mais sábio. Assim se apresentam as concepções de Lalinha, deslocada de Belo Horizonte para o Buriti Bom. Após ter o casamento desfeito com Irvino, que foge com outro amor, a fina mulher da cidade, Leandra, a Lalinha, é levada para morar na casa do ainda (!?) sogro, Liodoro. Grande proprietário da fazenda, o patriarca, exercendo autoridade, a leva da cidade para a fazenda com a justificativa de manter-se a honra até que o filho retorne. Instalada no “casarão de limpeza e riqueza”, que “formava uma feição de palácio”, Lalinha passa a viver no quarto noturno com Liodoro um aflorado e, para ela, doloroso romance, quando sente frustrarem as expectativas de dominar/controlar o amante, com os “valores da cidade”, que se mostram insuficientes para impedir os sofrimentos existenciais da mulher na relação. A natureza viva é metaforizada pela sexualidade – prazeres e armadilhas do brejão do umbigo e do tronco do buriti, regiões da fazenda nomeadas corporalmente – e expandida nos 30

MEYER, Mônica. Ser-tão Natureza: A natureza em Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 129. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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impulsos sexuais prazerosos de Gualberto. Proprietário que enriquece ante a decadência econômica do poder aristocrático de Liodoro, Gualberto empreende a lida do gado em meio aos cheiros animalescos e germes advindos com o progresso de novos tempos31. Este corpo inquieto, cheios de malícias, “sujo”, avança e mistura-se aos prazeres ávidos de descobertas de Glória, a filha do grande proprietário Liodoro, supostamente ingênua em sua imagem bucólica inicial. Com os modelos burgueses da relação, livres, porém com limites, Lalinha lança o julgamento que externa o horror ao ato sexual entre Glória e Gual. Um asco que para ela amplia-se como regulação dos costumes diante da sinalização de Glória para casar-se com Miguel, o Miguilim nascido em um sertão que tentava retornar o tempo de modo idealizado, como se nos intervalos de sua ausência a História não tivesse sido vivida. O corpo é o caminho por onde se escreve essa história, e o lugar que a escreve. Uma história que, pela ficção, trata de seres que não são “modernizados como sujeitos” e que ao mesmo tempo – também por isso – escapam à captura política do progresso desenvolvimentista propalado no Brasil dos anos 1950. A escrita política dessas práticas na obra literária é também uma forma de desautorizar essa modernização, incomodando o que esta exalta – normas, nobreza, automação -, que passa a ser ironizado pelos recados da astúcia, com humor32, que partem de experiências indisciplináveis não adequadas a um modelo (apenas) prometido. Sendo o Sertão uma nomeação externa dada ao espaço do interior brasileiro, em Corpo de Baile ele se desdobra em sertões diversos, com a ação política de quebra de um espaço único – como nomeado pelo lugar classificatório – que se fragmenta na intensidade de vivências, descritas nas tramas que carregam incompletudes, abertas historicamente. “Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais, pois isso diminuiria sua humanidade”.33 As experiências em dança, que não se moldam, formam a obra carregando latente o trabalho de fazer saltar o lugar do outro, ocultado ou classificado como menor: arcaico, atrasado, inferior. São estes outros, em seus movimentos, que apontam as “falhas” do saber idealizado no progresso como falseamento. Nessa dimensão estão ausentes as lacunas do progresso prometido no Brasil, como a ciência em conquista coletiva, iguais oportunidades e direitos compartilhados. Nas tramas do livro, esses que seriam ideais elaboram-se como ilusões, sem conexão com as RONCARI, Luiz. Buriti do Brasil e da Grécia: Patriarcalismo e dionisismo no sertão de Guimarães Rosa. São Paulo: Editora 34, 2014. 32 FREUD, Sigmund. Os chistes e a sua relação com o inconsciente (1905). Rio de Janeiro: Imago: 2006 (v. VIII). 33 LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. São Paulo: EPU, 1973, p. 350. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 31

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vivências dos personagens, ou ainda ausentes do cotidiano destes. Essa distância se torna mais perceptível quando nas narrativas é enfatizado o olhar modernizador que concebe – no exemplo de Lalinha e outros personagens - a complexidade dos sertanejos como seres que vivem em desordem social, a ser regulada, também a partir das posturas comportamentais da Cultura. Essa dimensão de sociabilidade vivida está presente na visada para os pobres, escritos esteticamente em Corpo de Baile. As diferenciações são demarcadas espacialmente, em contraponto com a cidade, pelos deslocamentos que projetam valores no tempo histórico. Em exemplo geral, na escrita em movimento que é a obra, podem ser avistados uma gama diversa que não se adéqua ao progresso citadino, como os bobos, os que sacrificam prazeres na busca arrivista, como Alípio, filho de Rosalina, e aqueles que, embora se abalem, saiam do prumo, possuem alguma crença em crescer economicamente fora dos sertões, como Delmiro, acabam por desistir de procurar outros negócios, no caso do personagem, acertando casamento na Fazenda do Pinhém. Na trajetória de Rosa, a passagem pela Alemanha, como Cônsul de Hamburgo, é emblemática no contato do escritor com a perspectiva de modernização e progresso científico34. Admirada no início do período em que esteve no país, entre 1938 e 1942, o uso da ciência e da tecnologia com o avançar da 2ª Guerra Mundial consiste na grande decepção que tanto entristece o artista, que chegou a ser espionado pelos nazistas e enquadrado por estes diante das críticas feitas, incluindo as veiculadas na imprensa alemã.35 O período da trajetória do escritor é importante para se pensar aspectos que, ao longo dos anos na produção literária, passa cada vez mais a se constituir como arte que se preocupa em escrever a História em perspectiva ampla e que, ao lado das tensões humanas, incorpora nas narrativas vivências de outros seres em integração com a natureza, como a exuberante vegetação, minada pela técnica, e os animais, sofredores com os usos da mesma aplicada pelo homem, como observa Rosa nos diários em relação às sequelas dos animais após os bombardeios de guerra em Hamburgo. Esteticamente, pode-se observar nas novelas de Corpo de Baile uma intensa proximidade dos personagens com os outros seres vivos presentes nas narrativas, também presentes na condição histórica de personagens. Exemplos estão nas passagens dos cachorros, de “Campo Geral” e de “Lélio e Lina”, na voz da terra e nas pedras como habitação humana na novela “O recado do morro”. A crítica e a ironia ao progresso na segunda metade do século XX parte do SOUZA, Eneida Maria de. Rosa Residual, p. 45-47. Informações do Diário Alemão, no Centro de Escritores Mineiros (UFMG), a partir de pesquisa e comentários de Projeto coordenado pelos professores (FALE-UFMG) Eneida de Souza, Georg Otte e Reinaldo Marques, aqui em diálogo com o filme Outro sertão, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 34 35

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lugar de vivência onde se encontram os sertanejos em sua informalidade, rude, crua, e nem por isso sem História, embora não se encaixem na representação de uma nação idealizada, aludida em uma suposta essência do rural. É neste mundo informal, escorregadio às definições, que estão as pulsões que escrevem com Rosa, como vemos nas anotações feitas pelo escritor em suas cadernetas. Na caderneta 8 (IEB-USP)36, pode-se enxergar um pouco deste mundo por “onde Jesus Cristo não andou”, seus personagens e histórias vividas, ficcionadas na obra. Neste mundo existível habita Seu Neca, “um louco manso que anda muito pela cidade [Cordisburgo], no sol, na chuva, de guarda-chuva aberto ou fechado, e falando sozinho”. A despeito de um tempo correto, exato, é ele “o consertador de relógios da cidade e o tomador de conta do relógio da tôrre da Igreja”, como se simbolizasse os passos do vivido na feitura de tempos da ficção a partir das experiências. Os contatos do escritor com essas experiências – vivências de infância, cartas do pai, escritos de viagem – externam falas domésticas que se fazem públicas pela arte, como a de Pedro Montes Claros, que “brigou com a família, trocando o nome” de Pedro Amorim (caderno 2), e falas que circulam pelas fazendas, vilas, pequenas cidades: “O Gustavo, o Titó, sobrinho do padre, (diziam que não era sobrinho nada, era filho). Débil mental completo. Pernas tortas e abertas, em curvas para fora, braços em arcos, mãos encostando-se na frente. Bebia um balde de água de uma vez. E babava sem parar” (caderneta 8). Na Literatura, são com estes seres históricos, corpos, que o escritor faz a crítica ao poder local e ao progresso civilizatório que os toca, a partir da cidade, conversando esteticamente com os mesmos, valendo-se, por exemplo, de recursos nos moldes dos chistes, que imprimem uma estética sedutora, também pelo estranho, ressoando interrogações sobre concretudes de uma aparente condição arcaica e estática que, pinçadas de um presente vivido, servem artisticamente para defrontar-se com o desenvolvimentismo, esvaziando qualquer valor político que pretenda exaltar o tempo como evolução para um progresso. As práticas vividas de bobos, loucos, estranhos e abjetos formam com a natureza viva e o escritor a autoria histórica de Corpo de Baile. Comentando os processos de composição envolvendo a escrita, Guimarães Rosa observa: “seja como for, tenho que compor tudo isso (...), que quero deixar bem claro, está fundido com elementos que não são de minha propriedade particular,

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Os trechos que seguem resultam de pesquisa que fiz no Arquivo do IEB/USP em julho de 2013. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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que são acessíveis para todos os outros”.37 Inserido também em outras convenções de trabalho que limitam o artista, principalmente na diplomacia, é na condição de escritor, como parte da autoria, mediador e poeta, que Guimarães Rosa imprime sua marca à história, não apenas como manifestação de arte elevada, mas como prática política produtora de ideias que se espalham no debate histórico, palpável às Leituras. Se ao final do século XIX o sertão era espaço reivindicatório para inclusão no Nacional, como em José de Alencar38, nos caminhos de periferia para um pretendido centro, as elaborações de Corpo de Baile demarcam essa tentativa como ilusão a se esquecer, já no entendimento que este Nacional, em trajes de desenvolvimentismo do progresso, avança para ampliar desigualdades embora ainda prometa resolvê-las. Em vez de fundação do nacional único, o movimento das narrativas em dança é de desmonte de um permanente anúncio que mais exclui. Se ainda é possível uma mensagem, um recado, para se aludir a uma das novelas de Rosa, ele é dado pelos bobos, deslocados da cidade como espaço prometido, como progresso regulador, e situados nas falas que incomodam um sertão idealizado, como lemos em uma possível e também (apenas) sedutora menção do escritor Guimarães Rosa sobre a referida criação artística: Pedro Orósio não sabe que está correndo grave perigo: seus falsos companheiros maquinam assassiná-lo. Mas a própria natureza tenta avisá-lo do perigo. O Morrão, Morro da Garça. Pedro, ele mesmo, nada escuta, nada capta. Quem apreende o recado, inicialmente, é o troglodita e estrambótico Gorgulho. E, no seguir dos dias, o “recado” do Morro vai sendo transmitido, passado de um a outro ser receptivo – um imbecil (o Qualhacôco), um menino (o Joãozezim), um bobo de fazenda (o Guégue), um louco (o Nominedônime), outro dôido (o Coletor), até chegar a um artista, poeta, compositor (o Pulgapé)39.

Mais do que segredos de cada personagem a se desvendar, como os bobos em questão, o texto carrega Lugares de historicidade onde a perspectiva política se faz pela Cultura, como recados que se espalham produzindo novos significados40, considerando ainda cada contexto de recepção. Também no texto rosiano, a obra difunde-se mais notadamente pela criação artística, materializada em livro, e pela trajetória do escritor. Assim, pelos debates em torno da autoria, o que se pode ler como função textual Guimarães Rosa está imbricado em práticas históricas41, LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. São Paulo: EPU, 1973, p. 338. 38 ALENCAR, José de. O Nosso Cancioneiro. Campinhas, São Paulo: Pontes, 1993. 39 Carta de Guimarães Rosa ao padre João Batista, de Curvelo, enviada pelo escritor a partir do Rio de Janeiro, em 26 de agosto de 1963, respondendo com atenção sobre “O recado do Morro”, uma das sete narrativas de Corpo de Baile. Obtive o documento na Casa da Cultura do município de Morro da Garça, Minas Gerais, em março de 2014, gentilmente reproduzidos pela equipe de funcionários do Espaço. 40 CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise, p. 106-110 41 CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino e Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFScar, 2012 Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 37

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projetando artisticamente experiências e temporalidades através de personagens, enredos e temas presentes na obra. Ela não nos chega, portanto, apenas através do escritor, com suas marcas estéticas e políticas, mas em companhia de desse outros que a habitam, expandindo lugares no tempo. Evitase assim a ideia de um escritor extra-histórico, genial e solitário, condições que Benjamin viu como problemas de uma idealização em Proust, conforme observa Jeanne Marie Gagnebin. Tratando de história e temporalidade pelos caminhos de Benjamin, ela oportunamente nos atenta para a “relação intensiva do objeto [a escrita] com o tempo, do tempo no objeto, e não extensiva do objeto no tempo, colocado como por acidente num desenrolar histórico heterogêneo à sua constituição”.42 O texto de Corpo de Baile é construído como corpus histórico e artístico que se movimenta entre os acontecimentos vividos43 e a criação. A separação sobrevive apenas até as tentativas de definição do texto situadas em uma posição exterior à inserção na leitura. Nela, vivido e artístico envolvem-se em uma escrita que tem sua existência em uma linha44 que os atravessa, sustentandoos, sim, mas principalmente pondo-os em movimento de intensidade. O tempo do texto formase como corpus ao mesmo tempo histórico e artístico. A linha que toca e carrega viver e criar, fundindo-os, projeta leituras também como um traço temporal que diz sobre experiências, conta histórias através de estórias, narrativas onde os temas ganham concretudes. Linha, traço... A Escrita elabora-se em movimento que atravessa e leva junto o leitor, toca-o ao mesmo tempo para mundo vivido e carga artística, que se desdobra fragmentariamente em Corpo de Baile. É nesse jogo, sem se deixar apreender por uma interpretação acabada, que o espaço sertão ganha força histórica. Nos enredos de Corpo de Baile eles se notabilizam pela incompletude, sem um final claro. Trata-se de uma condição estética fértil ao interrogar sobre as ações no tempo. Por esse terreno aberto caminham possibilidades de porvir45, minadas pelo progresso homogêneo que visa separar estaticamente passado, presente e futuro.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 11. A obra rosiana possui vasta crítica envolvendo questões relacionados ao que passou a ser conhecida como Mapa, a partir de olhares entre o material literário e um topos relacional com o sertão, principalmente os Gerais, a partir de Minas. Estão presentes já nas primeiras críticas, como em Antonio Candido, observando que o texto “é e não é sobre os sertões mineiros”. A discussão do Mapa como tema está presente em Via e viagens: a elaboração de Corpo de Baile e Grande sertão: veredas, de Ana Luiza Martins Costa. Tema consolidado a partir de Wille Bolle, em Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, e abordado entre as tensões presente nas concepções de Livro da obra rosiana em A forma do meio, de Clara Rowland. 44 ROWLAND, Clara. A forma do meio, p. 173-85. Tal construção é feita a partir do diálogo com a abordagem da autora sobre a parábase, tomada da antiguidade grega e contextualizada em trajetória para reflexão sobre aspectos importantes na obra rosiana. 45 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado, p. 34. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 42 43

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Simultaneamente carregando vivido e inventivo, essa temporalidade intensa surge, pela escrita, como outro possível que se defronta com os entendimentos que supõem arte e vivido como afastados. De um lado, a busca a decifrar e traduzir um mapa tratando o texto como acessório. Explicado geográfica e socialmente, recorre à obra de arte para comprovar um real, na busca de fontes que confirmariam o pressuposto, antes do material artístico e exterior a ele. O livro seria apenas a consequência de uma realidade já dada com a intenção de endossar – de preferência ‘cientificamente’ – um universo macro como verdadeiro. Seriam os “dados históricos” daquela realidade única, identificados e reproduzidos na escrita, tida apenas como estritamente artística. No outro lado da linha encontramos o entendimento sacralizado da obra, minada a novos olhares e às muitas leituras possíveis. O obstáculo aqui é o de colocar a criação artística em diálogo com os contextos para além de uma “literatura de papel”46. Por essa óptica, a escrita é concebida apenas como resultado superior de realização do artista que, entre os riscos, quando não definido como situado “à frente de seu tempo”, possuiria uma condição peculiar de privilégio na história, entendida como depositária de fatos e nomes amontoados estaticamente. Pondera-se que a ficção não pode receber explicação única, como algo a ser desvendado, o que não pode ser pretexto para novos olhares que considerem simultaneamente forças históricas no amálgama do tecido artístico. O toque da escrita como linha de entremeio e força que traceja experiências recusa a preponderância de um pólo, sem se quedar a nenhuma das partes, supostamente separadas. É nesse lugar que as estórias de Corpo de Baile escrevem a história vivida. Ela é ruminada nas narrativas e lançada aos leitores que, em contato com a obra, tocam um espaço potente de acontecimentos. Pelas sete novelas do livro, ele se fragmenta e se desdobra em muitas possibilidades, incluindo as artimanhas de um texto literário que se faz com outras linguagens, como o teatro e o cinema, presentes mais explicitamente no terreno de “Cara-de-Bronze”. Essa mobilidade literária que sacode o campo tido como histórico – de modo geral permanências e transformações no tempo – impede, por exemplo, a concepção de uma tradição imóvel, presa ao passado e classificada entre os atrasos brasileiros. Os múltiplos deslocamentos pelas narrativas de Corpo de Baile escrevem a história de modo intenso. Personagens, enredos e linguagens são outras formas de escrevê-la, e de modo mais sedutor, envolvendo quem a lê. Com essa marca, lança-se uma História e tantas outras de A expressão é usada por Guimarães Rosa na entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz, citada neste artigo. Uma “literatura de papel” a ser combatida pela “literatura vida”. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 46

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bobos, prostitutas, fazendeiros, bichos, vaqueiros, plantas, agricultores, jagunços, crianças e mendigos. Eles vivem e, ao mesmo tempo, narram com o artista. E assim a história não quer escolher entre o vivido e criação. Desejará sempre seguir com os dois, emendando as estradas. Seguir presente no corpus textual histórico, sem se deixar capturar, indócil e inventivo. Segue na existência de um texto-vida, portador da beleza áspera, sempre aberto ao ruminar do tempo.

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A arte teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, 1961-1964

Dossiê

The theatrical art of the Popular Culture Center of the National Union of Students, 1961-1964 Carla Michele Ramos Mestre em História - UNIOESTE Docente do IFPR - Câmpus Irati carla.ramos@ifpr.edu.br Recebido: 30/10/2014 Aprovado: 20/12/2014 RESUMO: O presente artigo analisa as atividades do setor teatral do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE), entre 1961-1964, bem como suas concepções acerca da função da arte durante o período marcado pelas discussões em torno das “Reformas de Base”. Utilizando de fontes primárias e bibliográficas, este estudo privilegia as teses elaboradas pela entidade em relação ao papel político do teatro, além das diferentes percepções de intelectuais e artistas engajados em relação à estética teatral e à mensagem política das obras artísticas. Entre os resultados desta pesquisa verificou-se que a organização cepecista surgiu do processo de renovação do teatro brasileiro e das contradições econômicas e políticas dos governos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, e que a entidade fomentou uma ampla discussão em torno da cultura nacional e da cultura popular, responsável por campanhas populares e antiimperialistas, ocorridas antes da instalação do governo militar. PALAVRAS-CHAVE: Centro Popular de Cultura, Teatro Nacional, Arte Popular Revolucionária. ABSTRACT: The present article analyze the activities of the theatrical sector of the Popular Culture Center of National Union of Students (CPC UNE), between 1961-1964, as well as their conceptions of the role of art during the period marked by discussions around “Basic Reforms”. Using primary and bibliographical sources, this study focuses the theses compiled by the entity in relation to the political role of the theater, beyond the different perceptions of intellectuals and artists engaged in relation to theatrical aesthetic and political message of artistic works. Among the results of this research it was found that the cepecista organization emerged from the renewal process of Brazilian theater and of economic and political contradictions of Juscelino Kubitschek and Jânio Quadros governments, and that the organization fostered a wide discussion around the national and popular culture, responsible for popular and anti-imperialist campaigns, that occurred before the installation of the military government. KEYWORDS: Popular Culture Center, National Theater, Popular Revolutionary Art.

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Arte e Política no CPC da UNE Então perguntaríamos: Como, se o povo não tem consciência, este movimento pode chamar-se popular quando não há a sua participação? Respondendo – CPC inclue o povo não só como objeto de suas atuações, como também o coloca como seu material de forma, seu conteúdo. E se, a princípio, o CPC não está no povo, vai a ele para ser envolvido, colocando-se a serviço dele, o povo. Aí então o objeto passa a ser o sujeito conscientizado, utilizando um instrumento de classe, pretendendo suas reivindicações dentro de uma estrutura social que o envolve1.

O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) foi um movimento de militância que por meio das artes promoveu um amplo debate em torno da cultura popular e da cultura nacional, durante os anos de 1961 a 1964, inicialmente no Rio de Janeiro e depois difundindo-se por várias cidades do país. O grupo era constituído por intelectuais, estudantes de diferentes áreas e artistas profissionais e amadores, pessoas que possuíam certas afinidades políticas e culturais, e que apesar de terem suas próprias concepções acerca da arte e da política, estas não se prevaleciam às intenções que estabeleceram enquanto entidade no que diz respeito ao papel da arte no universo de mobilizações políticas. A entidade cepecista, como ficou conhecido o CPC da UNE, utilizava como espaço para suas reuniões a sede da UNE, localizada na Praia do Flamengo, nº132 no Rio de Janeiro. Durante a presidência de Carlos Estevam Martins manteve-se por meio de auxílios financeiros do Serviço Nacional de Teatro e do Ministério da Educação, além do dinheiro da venda de algumas de suas produções, doações oficiais e particulares2. Entre as várias atividades artísticas que conseguiram promover destacamos as programações culturais em bairros, sindicatos e universidades, por reproduzir as intencionalidades políticas através da arte. Em 1963, a organização possuía seis grupos de trabalho e um conselho diretor3. O conselho era composto por um presidente, dois representantes de cada grupo de trabalho e por um coordenador que era responsável pela parte administrativa e pelo entrosamento dos setores. Na direção da entidade passaram Carlos Estevam Martins (1961-62), Cacá Diegues (por um breve período de três meses) e Ferreira Gullar (196364)4.

O fragmento foi transcrito da folha 05 do documento intitulado Tese da Bahia da União Estadual da Bahia, elaborado durante o III Seminário de Estudos do Nordeste, ocorrido em João Pessoa no mês de outubro de 1962. 2 CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura. In: BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 443. 3 A divisão da entidade cepecista em 1963 era a seguinte: GT de Repertório (Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa), GT de Construção de Teatro (Carlos Miranda e João das Neves), GT de Cinema (Walter Pontes e Wilson de Carvalho), GT de Espetáculos Populares (Paulo Hime e Francisco Nelson), GT da Produtora de Arte e Cultura (Teresa Aragão e Almir Gonçalves) e por fim o GT de Reestruturação (Ferreira Gullar e Mânilo Marat). ______. Relatório do Centro Popular de Cultura, p.442. 4 BERLINCK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas: Papirus, 1984, p. 120. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 1

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Entre os seus setores artísticos, os quais tinham como objetivo a formação, criação e a divulgação de uma cultura de valores populares, o departamento teatral foi o primeiro a ser constituído5. O nascimento do movimento cepecista está relacionado ao processo de renovação do teatro brasileiro iniciado a partir do final da década de 1950, principalmente com a fusão entre o Teatro de Arena e o Teatro Paulista dos Estudantes. Vale ressaltar que o contexto político nacional, na época da gênese do CPC da UNE, estava marcado por uma intensa busca das chamadas “Reformas de Base” por agremiações sociais urbanas e rurais, contribuindo dessa maneira para o florescimento de grupos que defendiam uma arte nacional e popular. O CPC da UNE foi definido pelos editores da revista Movimento6, em uma edição de março de 1962, como a primeira experiência brasileira de arte para as grandes massas. Essa concepção, também está presente em um relatório redigido pela equipe diretiva desta entidade: A tomada de consciência, por parte de artistas e intelectuais, da necessidade de se organizarem para atuar mais eficaz e conseqüentemente na luta ideológica que se trava no seio da sociedade brasileira levou-os a criar o Centro Popular de Cultura. Partindo dessa tomada de consciência, o CPC se propõe, desde o seu nascimento, a levar arte e cultura ao povo, lançando mão das formas de comunicação de comprovada acessibilidade à grande massa, e aprofundar nos demais níveis da arte e da cultura o conhecimento e a expressão da realidade brasileira7.

Segundo documentos institucionais, o CPC da UNE propunha-se levar, através da arte, informação ao povo, de modo que pudesse favorecer a ampliação dos seus conhecimentos da realidade brasileira. Os cepecistas do Rio de Janeiro se envolveram nas campanhas em prol da reforma universitária realizadas pela UNE, porém, o grupo cepecista possuía administração independente e regimento próprio. Apesar dessa aparente autonomia o movimento estudantil influenciou muitas de suas atividades, como exemplo, a caravana UNE-Volante8.

Essa definição encontra-se num documento do Centro Popular de Cultura, intitulado Ofício nº17/61 de 12 de dezembro de 1961, texto onde a entidade solicita ao Diretor do Serviço Nacional de Teatro uma verba de Cr$100.000,00 (cem mil cruzeiros) para compra de material cênico e transporte do mesmo. O documento é assinado por Aldo S. Arantes (presidente da UNE) e por Francisco Nelson Chaves (diretor executivo do CPC da UNE). ARANTES, Aldo S. e CHAVES, Francisco Nelson. Ofício nº 17/61 do Centro Popular de Cultura. Rio de Janeiro, 12 de Dezembro de 1961. Não paginado. 6 A revista Movimento era um periódico da União Nacional dos Estudantes, publicada pela Editora Universitária com tiragem em torno de 10.000 exemplares. Geralmente a edição era bimestral. Em 1962 possuía como diretor César Guimarães e como editor Arnaldo Jabor. Em 1963 estava na direção Marcello Cerqueira e na edição Paulo Furtado de Castro. 7 CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura, p. 441-442. 8 A Caravana UNE-Volante foi um projeto da União Nacional dos Estudantes que consistiu na realização de várias excursões pelo país nos anos iniciais da década de 1960, com objetivo de promover a campanha da reforma universitária. Durante esse período a diretoria da UNE e os artistas do CPC viajavam pelas capitais brasileiras e se concentravam principalmente em centros universitários exibindo peças e documentários, vendendo livros e discos, apresentando shows e promovendo assembleias visando problematizar questões sobre o acesso às universidades, política imperialista, condições de vida dos trabalhadores brasileiros e economia nacional. Um dos desdobramentos Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 5

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Em uma carta enviada ao Serviço Nacional de Teatro, em dezembro de 1961, logo no início de suas atividades, o CPC da UNE estava “empenhado em efetivar o seu objetivo principal, qual seja o da formação especializada de jovens que se iniciam nas artes e o da divulgação de valores culturais de cunho popular”.9 Não se encontra, na afirmação cepecista, a definição clara de valores populares, mas parece que a entidade desejava estender as atividades culturais à participação do homem do povo. Para compreender o que seria essa cultura de valores populares é preciso verificar o que a entidade estava definindo como “povo”. O diretor do departamento de publicidade do CPC da UNE, Eduardo Mendível Peláez, destacou que “O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, organizado com o propósito de divulgar as conquistas do espírito humano no campo da cultura, entre as classes menos favorecidas da população carioca”,10 contava com vários setores artísticos e entre eles o teatral. Na definição de Peláez aparecem duas ideias centrais, o que nos permite uma melhor compreensão dos posicionamentos políticos e artísticos da entidade cepecista. Primeiramente o teatro foi concebido como um veículo de comunicação política que possuía o objetivo de atingir de forma eficiente um determinado público. Em segundo lugar a noção de que o povo era constituído por pessoas provenientes das classes menos favorecidas. Portanto, alcançar essas classes levando informações que pertenciam a elas mesmas era então o principal objetivo, naquele instante, da referida entidade. Mas por que oferecer a essas camadas sociais dados que lhe diziam respeito? Em seu relatório organizacional, redigido em fins de 1963, a equipe cepecista destacou que não era “propósito do CPC, popularizar a cultura vigente, mas sim, através da arte e da informação, despertar a consciência política do povo”.11 As diversas atividades realizadas pelo CPC da UNE, bem como as teses e as produções dos seus integrantes, tiveram como meta promover entre os mais variados setores sociais a capacidade de avaliarem a realidade brasileira e o funcionamento da sociedade, bem como os elementos que os mantinham em condições desfavoráveis. Por meio de atividades artísticas a entidade cepecista pretendia despertar no povo a lucidez política. É preciso enfatizar que não era finalidade levar somente consciência política, mas sim levar arte e conhecimento que pudessem ter como resultado uma postura mais crítica por parte da população brasileira. Todavia, esses desse projeto foi o surgimento em muitos estados brasileiros de Centros Populares de Cultura regionais. PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. A UNE nos anos 60: utopias e práticas políticas no Brasil. Londrina: Ed. da UEL, 1997. p. 198. 9 ARANTES, CHAVES. Ofício nº 17/61 do Centro Popular de Cultura, Não paginado. 10 PELÁEZ, Eduardo Mendívil. Matéria sobre o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Rio de Janeiro. [196-], Não paginado. 11 CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura, p. 441-442. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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posicionamentos oficiais não escondem divergências de opiniões e de estratégias de ações, pois havia no seio do CPC, assim como da própria UNE enquanto representação estudantil, posições variadas acerca da função da arte e dos rumos da política nacional12. O Setor Teatral do CPC da UNE Em relação ao setor teatral, o CPC da UNE por não ter uma casa de espetáculos, resolveu ir ao encontro do povo utilizando como palco de suas apresentações os salões de agremiações políticas e sociais, as assembleias estudantis e partidárias e até mesmo o espaço das praças e das ruas. Mas para concretizar essas atividades eram necessárias verbas que a entidade muitas vezes solicitava ao Serviço Nacional de Teatro.13 No final de 1961, Peláez remetia a uma coluna de jornal uma matéria destacando as atividades teatrais que o grupo já estava realizando em diversos espaços sociais. Este setor iniciou suas atividades com a encenação da peça “Eles não usam black-tie” de Gianfrancesco Guarnieri, no sindicato dos rodoviários a 3 de dezembro último – alcançando grande sucesso entre os sindicalizados daquela entidade. Dentro da característica itinerante que o CPC pensa dar a todas as suas atividades esta peça também foi levada no subúrbio de Campo Grande nos dias 9 e 10 dos correntes e está previsto em nosso calendário a sua encenação no sindicato dos bancários nos dias 19 e 20, na faculdade de direito dia 21, em São João do Meriti nos dias 26 e 27 e no sanatório de Curicica, no dia 30 – todas elas neste mês. No mês de janeiro, dia 7 no Ginásio Meritiense, dia 10 sindicato do Gás, dia 12 em Macaé est. Do Rio. Assim mesmo, encontra-se em fase adiantada de ensaio a peça “Miséria ao alcance de todos” que é uma tentativa de, por meio de um mural constante de cenas genéricas, fixar o imperialismo como sistema político, econômico e cultural14.

O CPC da UNE no início de suas ações, assumia a defesa de uma arte com características populares, uma arte voltada às classes menos favorecidas. Logo, levar a peça Eles Não Usam BlackTie aos sindicatos, faculdades, subúrbios e até a um sanatório representava a expansão do teatro entre aqueles que, financeiramente, não teriam condições de se dirigir a uma casa de espetáculo. A peça de Guarnieri, apresentada pela primeira vez em 1958, trazia uma problemática social para 12 Ver

referências: BORBA FILHO, Hermilo. Um teatro brasileiro. In: Revista Brasiliense. n.12. São Paulo: Brasiliense, p.180-188, Jul.-Ago., 1957; CULTURA POPULAR: MANIFESTO DE INTELECTUAIS. O Metropolitano, Rio de Janeiro: Órgão da União Metropolitana dos Estudantes, 26/09/1962; ESTEVAM, Carlos. A questão da cultura popular. In: OSMAR, Fávero (org.). Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro: Edições Graall, 1983; GUARNIERI, Gianfrancesco. O teatro como expressão da realidade nacional. Revista Brasiliense. n.25. São Paulo: Brasiliense, p.121-126, Set.-Out., 1959; GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão, Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002; MARTINS, Carlos Estevam. Por uma arte popular revolucionária. Movimento, Rio de Janeiro, n.2, Encarte 1, maio, 1962; SANTIAGO, Haroldo. Teatro nacional popular. Revista Brasiliense. n. 26. São Paulo: Brasiliense, p.198-201, Nov.-Dez., 1959; VIANNA FILHO, Oduvaldo. Do Arena ao CPC. Movimento, Rio de Janeiro, n.6, p.30-33, Out., 1962. 13 CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura, 441-456 p. 14 PELÁEZ. Matéria sobre o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, Não paginado. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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o palco, além de possuir uma linguagem bem próxima do pessoal da favela. O teatro passa a retratar a classe operária, os moradores do morro, o cotidiano da esposa que tem que trabalhar para ajudar no orçamento familiar, as contradições entre aqueles que afirmam ser a greve a única maneira de mudar de vida e outros que definiam a paralisação como atitude de vagabundos. No enredo, o conflito entre o pai, Otávio, e o filho, Tião, oriundo de seus posicionamentos em relação à greve, marca praticamente toda a encenação. O teatro objetivando revelar o mundo real dos trabalhadores, suas lutas e seus anseios. Sobre a peça de Guarnieri, Peláez não salientou o objetivo de suas encenações para os grupos populares, mas em relação à peça Miséria ao Alcance de Todos destacou que a intenção era fixar a luta contra o sistema imperialista no campo político, econômico e cultural. O teatro proposto, portanto, deveria informar, produzir conhecimento e entendimento sobre a realidade brasileira num momento marcado pela euforia das associações que defendiam a luta antiimperialista. Esse teatro itinerante foi uma experiência que nasceu da ausência inicial de uma casa de espetáculo e da proposta de levar cultura a um público mais carente de informações. Para Vianinha, um dos fundadores do movimento cepecista, esse teatro de sindicatos, de faculdades e de associações de bairro, era o teatro de rua, prática que marcou as primeiras atividades desta organização. A linguagem teatral utilizada era direcionada ao público visando à politização: O CPC da UNE resolveu se inicialmente pela revista, procurando reavivar e manter uma tradição de sátira impiedosa, de crítica de costumes – espetáculos com quadros isolados, com uma ligação dinâmica que permitia a permanente chamada de atenção do público, com música, poesia e as formas mais variadas que permitam sempre uma mudança no tom do espetáculo. Esta adaptação às condições objetivas nos parece fundamental em todo o tipo de realização de trabalho de cultura popular15.

Essa característica itinerante, presente nas ações teatrais cepecistas, levou o grupo a ter contato com diferentes realidades sociais e que acabaram produzindo reflexos em seus próprios trabalhos. Carlos Estevam Martins registrou que muitas vezes ninguém aparecia para assistir os espetáculos nos sindicatos e em decorrência disso o grupo resolveu sair às ruas encenando pequenas cenas em frente às fábricas e em praças públicas16. Nessas atividades era utilizada uma carreta que, quando aberta, formava um palco de sete por cinco metros. Mas, mesmo com toda essa movimentação, em alguns casos o CPC da UNE teve muita dificuldade para conseguir a atenção da maioria das pessoas que circulava por esses locais, segundo relatos de militantes. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Teatro de rua. In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha: Teatro, Televisão, Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 98. 16 MARTINS, Carlos Estevam. História do CPC (depoimento). Arte em Revista, nº 3, São Paulo: Kairós, 1980, p. 81. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 15

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O primeiro presidente cepecista chegou a relatar em vários depoimentos, que durante uma festa local, o CPC da UNE com a carreta equipada com luz e som fez apresentações artísticas para a população da comunidade e mesmo com todo esse equipamento do outro lado da praça havia um pessoal com um berimbau que conseguiu reunir mais gente do que eles. Para o presidente cepecista, o trabalho cultural estava sofisticado demais e o que tinha que ser feito era baixar o nível estético da produção artística, algo que os artistas, militantes do movimento, questionavam. Ao registrar esse episódio, Martins apontou que a questão da estética era bastante discutida entre os membros da entidade.17 Esse tipo de experiência e outras, provavelmente levaram o CPC da UNE a repensar os meios para alcançar uma comunicação mais eficiente com o público que desejava atingir. Martins, ainda chegou a destacar que aqueles que trabalhavam com o teatro de rua iam dias antes para o local onde seriam apresentados os espetáculos para conhecer a realidade da comunidade e que após essa observação tentavam misturar o texto teatral com as figuras mais populares do local. Essa foi uma forma que os cepecistas criaram para conseguir uma atuação bem-sucedida entre as camadas mais populares.18 O sociólogo Berlinck destacou alguns dos artistas que trabalhavam no setor teatral cepecista, entre eles Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), Francisco de Assis, Flávio Migliaccio, Armando Costa, Helena Sanchez, João das Neves, Carlos Miranda, Arnaldo Jabor, Joel Barcelos, Claudio Cavalcanti e Cecil Thiré19. Esses artistas muitas vezes entravam em conflito ideológico com outros intelectuais cepecistas que priorizavam o conteúdo ao invés da forma estética nas peças teatrais. Entre as peças montadas e encenadas pela entidade cepecista20, enfatizamos A Vez da Recusa, de Carlos Estevam Martins, representada em congressos estudantis em julho de 1961; Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, apresentada em organizações sindicais, durante dezembro de 1961 a fevereiro de 1962; Brasil-Versão Brasileira de Oduvaldo Vianna Filho, Miséria ao Alcance de Todos de Arnaldo Jabor e Auto dos 99%, de autoria coletiva. Estas três últimas peças foram encenadas durante a primeira UNE-Volante. Em julho de 1962 foram encenadas em concentrações populares, praças públicas e nas faculdades da Guanabara as peças Auto do Cassetete e Auto dos 99%; nesse mesmo mês ocorreu a representação do Auto do Relatório no congresso da UNE e Auto do Tutu Está no Fim em concentração operária no sindicato dos metalúrgicos. BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 89-90. 18 ______. CPC da UNE, p. 85. 19 BERLINCK. O Centro Popular de Cultura da UNE, p. 27. 20 CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura, p. 447-448. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 17

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Em dezembro de 1962 ocorreu a representação de Auto do Não, durante uma campanha do plebiscito, estreando em praça pública a carreta do CPC que funcionava como palco itinerante. Nos meses de fevereiro e março de 1963 foi encenada Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, em sindicatos e organizações de massa. A segunda UNE-Volante aconteceu de abril a junho de 1963, período em que ocorreu a montagem da peça Filho da Besta Torta do Pajeú, de Oduvaldo Vianna Filho, encenada em vários teatros, praças públicas, organizações sindicais e estudantis. A peça Auto dos 99% foi levada novamente para faculdades e associações de massa, dentro e fora da Guanabara no período de julho a setembro de 1963. Além da montagem e encenação de peças, o setor teatral do CPC da UNE criou em 1961 o Seminário de Dramaturgia, com a finalidade de elaborar pesquisas no campo do teatro popular e estimular a autoria de peças populares para o repertório da entidade. Nos anos de 1961 e 1963 também foram realizados dois cursos de teatro visando à formação de atores, com aulas de direção, expressão corporal, dicção e laboratório. A entidade possuía na área teatral dois tipos de ações: as de teatro para grupos sociais e teatro com os grupos sociais, que foram definidos da seguinte maneira pelo próprio movimento: No primeiro tipo, o CPC tem duas áreas de experiência: um teatro de agitação política, focalizando temas imediatos de reivindicações populares e denúncias de ações políticas, contrárias aos interesses nacionais, levado em praça pública, em carreta, em comícios populares; e um teatro que, partindo do que já foi alcançado e ganho na dramaturgia brasileira, visa a aprofundar essa experiência no sentido de aumentar seu grau de comunicação enquanto levanta os problemas fundamentais de libertação do nosso povo... Em sua outra área de experiência, o CPC sai do teatro de agitação política e encena peças de participação de autores contemporâneos brasileiros, como Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e outros21.

A equipe cepecista relatou que as experiências teatrais com estudantes foram bemsucedidas, devido ao nível mais elevado de “culturalização” deste público. Com os operários, o teatro isoladamente foi considerado sem muita eficiência para organizá-los enquanto ativistas da cultura popular, isto porque “limitados pela condição econômica que os sufoca, não têm atração por uma atividade que lhes parece lúdica, porque não se coloca nos níveis de suas necessidades mais imediatas”.22 Embora, a experiência junto aos operários não tenha sido totalmente satisfatória no que se refere à formação de ativistas da cultura popular, salientamos que a difusão de outros centros populares em vários estados brasileiros foi um dos maiores frutos dessa organização. Entre a mensagem política e o valor estético: dilemas cepecistas 21 22

CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura, p. 448-449. _______. Relatório do Centro Popular de Cultura, p. 449. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Enquanto participou do CPC da UNE, o sociólogo Carlos Estevam Martins defendeu que era preciso priorizar a mensagem em detrimento da forma estética, era uma luta constante, revelou o cepecista em depoimento, pois o “pessoal de vocação artística queria fazer coisas de valor estético”.23 Em relação às teorias estéticas chegou a expressar-se nos seguintes termos: O Chico de Assis queria aplicar técnicas de Brecht e eu disse: “Nada de Brecht por aqui”. Quer dizer, nós tínhamos tanta auto-confiança que vinha alguém falar de Brecht, no caso um teatrólogo, e nós dizíamos que Brecht não entendia nada daquilo que estávamos fazendo, que não queríamos efeitos de distanciamento, mas o máximo de aproximação possível24.

Como o setor teatral do CPC da UNE era composto na maioria por artistas, ou por jovens com pretensão de atuarem nessa área, a questão da estética tornou-se uma referência para aqueles que desejavam aprimorar conhecimentos em relação ao teatro. Essa questão permitia que os artistas lançassem o teatro dentro da problemática social, questionando assim a perspectiva, defendida principalmente por Martins, de que o teatro deveria ser usado somente como instrumento de pedagogia política. A dramaturgia do CPC foi marcada por duas influências alemãs, desenvolvidas no início do século XX – Erwin Piscator e Bertolt Brecht. Fernando Peixoto em depoimento, afirmou que a entidade cepecista nasceu sob o signo do dramaturgo Erwin Piscator. A gente andava com o livro Teatro político de Piscator debaixo do braço o tempo todo. Afinal, ele propunha um teatro de agitação, deliberadamente proletário, que procurava levantar as massas[...]Não estou querendo reduzir o CPC a Piscator, mas sim querendo dizer que essa noção meio sectarizada, meio dogmática que o Piscator tinha, penetrou muito no CPC. Piscator foi a primeira Bíblia de teatro político que caiu nas nossas mãos25.

O teatro proletário, no sentido atribuído por Piscator era o teatro que não pretendia proporcionar arte e sim uma propaganda consciente, logo significa utilizar a peça teatral para fazer política. Partindo desse princípio é que podemos compreender a influência piscatoriana em obras como os autos (Auto do Cassetete, Auto dos 99% e Auto do Relatório) e nas peças como A Vez da Recusa de Carlos Estevam Martins, Não tem Imperialismo no Brasil de Augusto Boal e O Petróleo Ficou Nosso de Armando Costa, encenadas em praças públicas, congressos estudantis e organizações sindicais, buscando denunciar a prática do imperialismo, os problemas da universidade e da sociedade em geral. Peixoto também destacou que no decorrer das práticas culturais o CPC da UNE passou a repensar o teatro a partir das concepções de Bertolt Brecht: BARCELLOS. CPC da UNE, p. 90. MARTINS. História do CPC, p. 81. 25 BARCELLOS. CPC da UNE, p. 203. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 23 24

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Quando Brecht chegou, começou a nos problematizar, já que ele propunha um teatro político oposto a esse. Brecht não colocava como norma a agitação, o esquematismo. Ao contrário, exigia aprofundamento[...]Brecht instaurou a questão da dúvida, da reflexão com a platéia, da relação produtiva e crítica entre palco e platéia não mais cenocrática (de uma sendo superior à outra), mas de igual para igual, dialética26.

O dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, membro ativo do setor teatral cepecista, já apresentava uma admiração pelo trabalho de Bertolt Brecht, declarando que esse teatrólogo era consciente de suas responsabilidades, pois fazia um teatro ético, enfatizando que a “arte para ele é o que trata da ética instintiva do homem que ele apanha empiricamente da realidade”27. Kathrin Sartingen aponta que “não é o material temático de Brecht o que em primeira linha interessa a Oduvaldo Vianna Filho, mas as ideias sobre construção e concepção dos diálogos, cenas e episódios”.28 O artista Vianinha defendeu o engajamento do teatro no processo de luta pela libertação do povo brasileiro. Na peça A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar29 de 1960, o dramaturgo utilizou recursos narrativos (coros, personagens, slides e música) para mostrar no palco a história de um operário que resolveu sair para descobrir a origem do lucro. Compreendendo a razão das condições de trabalho da classe operária, através do conceito da mais-valia esse operário decidiu partilhar seu conhecimento com os demais trabalhadores, que passaram a se organizar para mudar aquela realidade. No texto teatral citado, o dramaturgo procurou mostrar os fatores que condicionavam o ser humano em uma situação opressiva, no intuito de fazê-lo enxergar com maior clareza o porquê das condições vividas e assim levá-lo a se conscientizar politicamente, enfrentando então de outra forma aquela realidade. Por meio dos coros que impedem que o espectador seja levado pela ficção, Vianinha permitia que o público refletisse sobre o assunto abordado e se posicionasse como um agente transformador daquela realidade. O efeito de distanciamento, criticado por Carlos Estevam Martins, foi desenvolvido por Bertolt Brecht no intuito de que o espectador não ficasse preso às emoções encenadas no palco. Para impedir isso, utilizam-se recursos cênicos como: slides, coros, vozes, cartazes ou personagens narradores, que têm por finalidade permitir que o público faça uma reflexão crítica acerca das questões problematizadas. Brecht acreditava que a plateia deveria efetivar uma leitura BARCELLOS. CPC da UNE, p. 203-204. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Alienação e irresponsabilidade. In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha: Teatro, Televisão, Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 60. 28 SARTINGEN, Kathrin. Brecht no teatro brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 244-245. 29 VIANNA FILHO, Oduvaldo. A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar. In: MICHALSKI, Yan. Oduvaldo Vianna Filho/1 Teatro. Rio de Janeiro: Edições Muro, 1981. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 26 27

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própria e apurada do discurso teatral, portanto, o artista teria que fazê-la ter gosto pelo teatro. Acreditamos que o debate travado no interior do CPC, em torno da estética teatral, é resultado dessa direção apresentada por Brecht: como ter uma comunicação efetiva com o público? Essa problemática esteve presente na história cepecista. No CPC da UNE o teatro suscitava discussões acerca do uso da arte como meio de levar informações, por isso a valorização da mensagem em detrimento da forma; e a arte como expressão das classes populares, servindo aos seus interesses, portanto, a importância dada ao estético que poderia facilitar a aproximação entre artista e espectador. Para Erwin Piscator a cena teatral deveria ser colocada a partir dos interesses revolucionários, sendo assim, a mensagem contida nas peças ganhava dimensão com o intuito de provocar ações políticas30. A concepção de Brecht, priorizada pelo dramaturgo Vianinha, revela que o conteúdo e a estética são inseparáveis na produção cênica e a conclusão da temática encenada fica a cargo do público31. Embora essas diferenças tenham marcado as produções do CPC da UNE, é possível estabelecer em algumas obras elementos desses dois dramaturgos. Na peça A Vez da Recusa (1961), Martins denunciou o imperialismo e projetou no palco a mensagem da luta revolucionária finalizando o enredo com o hino da Juventude Socialista. Em Brasil-Versão Brasileira (1962), Vianinha também denunciou o imperialismo, a partir da luta de um empresário brasileiro contra os interesses estrangeiros que desejava sabotar a Petrobrás. Martins destacou as divergências políticas entre os estudantes e Vianinha abordou as diferentes posições no interior do Partido Comunista Brasileiro32. As temáticas trabalhadas pelos dois cepecistas citados em suas obras permitem concluir que o teatro era visto por eles como representação dos problemas sociais, capaz de estimular questionamento e participação do público no processo histórico. O emprego de coros, slides e vozes revelam o caráter narrativo de suas obras, influências do teatro épico33, desenvolvido pelos dois teatrólogos alemães referidos. A influência de Brecht na produção e nas formulações teóricas de Vianinha enquanto integrante do CPC da UNE pode ser evidenciada também em seu texto Teatro popular não desce ao povo, sobe ao povo, no qual destacou que não há que, “em nome da participação, baixar o nível

30 PISCATOR,

Erwin. Teatro Político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 39. SARTINGEN. Brecht no teatro brasileiro, p. 244-245. 32 PEIXOTO, Fernando. O melhor teatro do CPC da UNE. São Paulo: Global, 1989, p. 317. 33 Segundo o Dicionário de Teatro de Patrice Pavis, na década de 1920, Bertolt Brecht, e, antes dele, Erwin Piscator deram o nome de Teatro Épico a uma prática de representação baseada na tensão dramática, no conflito e na progressão regular da ação. Entre as características do Teatro Épico estão: a encenação de questões públicas e de interesse coletivo, o emprego de recursos narrativos e a constituição fragmentada das cenas, contendo elas um valor em si e um significado no conjunto da obra. Cf. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 130. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 31

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artístico das obras de arte, diminuir sua capacidade de apreensão sensível do real, estreitar a riqueza de emoções e significações que ela pode nos emprestar”.34 Para Vianinha o CPC da UNE, antes de ter sido colocado na ilegalidade, já tinha assumido essa posição de conceitualizar a obra de arte, deixando de aceitar o dilema que frequentemente estava em pauta – para que houvesse mensagem, não seria possível fazer arte35. Desse modo o artista afirmou que o momento exigia um debate com o público e que dessa interação artista e povo deveria ocorrer o aprimoramento do instrumento de comunicação, pois teatro popular, naquele instante, só existia enquanto um teatro que estava falando a linguagem do povo, enfocando os problemas coletivos. Como forma artística o teatro popular “não desce ao povo, sobe ao povo como coletividade, como problemática geral, e se instala no homem popular”.36 Ao revelar a influência das duas dramaturgias alemãs no cenário cultural brasileiro e na própria atuação do CPC da UNE, Ramos observou: A importância de Piscator e de Brecht está no sentido social que deram ao teatro brasileiro, transformando a cena teatral no processo político vigente, ora como meio de conscientização, ora como mobilização e intervenção. As influências de ambos se alternam conforme as limitações históricas e podem ser analisadas nos próprios textos teatrais construídos a partir de diferentes temáticas, mas de natureza e intenções muitas vezes semelhantes37.

O debate em torno do conteúdo/forma, ou seja, mensagem política/estética contribuiu para colocar em pauta no seio cultural a questão do teatro popular em um período em que diferentes movimentos sociais, políticos e culturais buscaram defender os interesses nacionais. Na edição do dia 03 de outubro de 1962 do jornal O Metropolitano, Vianinha publicou um texto cujo título era Novo crítico com velha crítica. Nesta publicação, o artista fez apontamentos sobre a situação que se encontrava o teatro brasileiro: O teatro brasileiro de hoje tem um limite histórico e social. É preciso levá-lo a esse limite. Arte só é arte na história. De qualquer maneira o novo teatro brasileiro que surge não pretende em primeiro lugar ser imortal: pretende, em primeiro lugar, alistar-se na luta de libertação do povo brasileiro. Uma infinita série de condições sociais, psicológicas, econômicas, etc. podem fazer desse

VIANNA FILHO, Oduvaldo. Teatro popular não desce ao povo, sobre ao povo. In: MICHALSKI, Yan. Oduvaldo Vianna Filho/1 Teatro. Rio de Janeiro: Edições Muro, 1981, p. 13. 35 VIANNA FILHO, Oduvaldo. Entrevista a Ivo Cardoso. In: PEIXOTO, Fernando. Vianinha: Teatro, Televisão, Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.177. 36 ______. Teatro popular não desce ao povo, sobre ao povo, p. 15. 37 RAMOS, Carla Michele. O CPC e o Auto dos 99%: a vanguarda em ação (1961-1964). 53 p. Monografia (Especialização em História) - Universidade Estadual de Londrina, Programa de Pós-Graduação em História, Londrina, 2006, p. 34. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 34

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teatro um teatro mais ou menos expressivo. Poderemos ficar na periférica, no esquema. Mas na periferia da luta. Jamais freando, fugindo ou negando a luta38.

É possível perceber na fala de Vianinha sua preocupação com o limite histórico e social existente no teatro brasileiro. Até aquele momento as atividades do setor teatral cepecista voltaram-se basicamente para as classes médias intelectualizadas, principalmente as classes estudantis, não que isso tenha sido visto pela equipe como um fracasso, mas a pretensão de levar arte aos operários, camponeses e moradores de favelas tornava-se uma necessidade cada vez mais constante e desafiadora para o grupo. Em um outro texto, da mesma época, Vianinha registrou a função do teatro: O teatro é a exposição de um personagem que enfrente um obstáculo qualquer, um obstáculo que fere os limites em que o personagem faz coexistir seus critérios de comportamento morais, políticos, religiosos, com suas necessidades etc. Uma peça será tanto mais teatral quanto mais impossível for a manutenção desse limite, quanto mais insustentável for a adaptação. O teatro é o movimento mesmo em que esse limite transparece para o público na sua tensão mais violenta. O nosso teatro social brasileiro investiga esse limite sempre subjetivamente. São sempre os critérios morais e as necessidades morais que se chocam. É sempre o que o personagem acha que deve ser feito, e o que deve ser feito que é fixado. O teatro político popular precisa ir além. É necessário um outro personagem, não tão próximo do realismo impressionista, que seja fixado no momento em que enfrenta um obstáculo que força, que rompe seus limites naturais de existência. O natural, o necessário, o irrefutável, o certo, em choque dentro de um mesmo personagem. As opções serão sempre as do sacrifício de alguma coisa absolutamente necessária. Para isso é necessária a fábula. Diminuir os desenhos subjetivos dos personagens e inundar o palco de acontecimentos exemplares. Fazer teatro com evidências39.

Portanto, para Vianinha o teatro não poderia ficar limitado em conduzir o povo para uma determinada ação ou direção. O espaço teatral, concebido por ele, é o lugar no qual o espectador entra em conflito com seu próprio eu, e a partir disso pode tomar suas próprias decisões. Dênis de Moraes destacou que esse artista, ao mesmo tempo em que participava das atividades cepecistas, “intensificava a militância no Comitê Cultural do PCB”,40 o que, no nosso entendimento, favoreceu a sua postura política diante da concepção por ele defendida, colocando assim a sua arte a serviço das reivindicações populares em voga naquele contexto político e econômico. Considerações Finais

VIANNA FILHO, Oduvaldo. Novo crítico com velha crítica. In: O Metropolitano, Rio de Janeiro: Órgão da União Metropolitana dos Estudantes, 03/10/1962, p. 3. 39 VIANNA FILHO, Oduvaldo. Do Arena ao CPC. Movimento, Rio de Janeiro, n.6, p.30-33, Out., 1962, p. 33. 40 MORAES, Denis de. Vianinha cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 114. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 38

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Partindo das informações presentes no Relatório do CPC, podemos dizer que a entidade cepecista, no ano de 1963, estava repensando seus projetos. Na última parte desse documento, a equipe registrou seus planos futuros que consistia na inauguração de uma casa de espetáculo, destinada à pequena burguesia e à liderança operária e a criação de núcleos de cultura popular, espaços onde os artistas iriam atuar com os grupos sociais mobilizando o povo em suas vanguardas41. O período de atuação da organização cepecista, até esse momento, foi definido da seguinte maneira: O CPC da UNE vê esses dois anos e meio de atividades como um longo período de consolidação. A luta para garantir a sua existência. Nada foi realizado com a necessária continuidade, muitos erros só puderam ser verificados, não houve a possibilidade material de refazer a experiência. A flutuação de quadros, inevitável, obrigou-nos a começar de novo uma série de atividades42.

O movimento cepecista propôs, na pessoa de alguns de seus integrantes, depois de dois anos e meio de “experiência”, fortalecer a ideia que norteou as discussões entre intelectuais e artistas nos anos finais da década de 1950 e que fez emergir esse grupo no cenário cultural brasileiro. O trabalho de criar núcleos de cultura popular em lugares de concentração populacional permitiria que os artistas produzissem suas obras ao lado do povo, privilegiando suas necessidades e seus conhecimentos, visando à organização cultural e política feita pela própria comunidade. Julgamos que esse tipo de atividade poderia responder às aspirações daqueles que defendiam a ampliação do público e o estímulo à produção artística nacional. No momento de uma auto-avaliação crítica do seu próprio papel como movimento político e cultural no cenário brasileiro, o CPC da UNE, juntamente com outros setores e experiências da sociedade, viu o golpe militar derrubar a democracia. Assim em 1964 a UNE e o CPC foram colocados na ilegalidade e os militantes artistas e intelectuais se dividiram na resistência clandestina ou no silêncio promovido pela censura instalada pelo novo regime político. Uma história para outros pesquisadores e para outras problemáticas, cujo momento atual debate os cinquenta anos do Golpe. Embora já se faça meio século de sua extinção oficial, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes ainda permanece na memória de artistas e intelectuais brasileiros, As primeiras atividades artísticas do CPC da UNE foram realizadas a partir da perspectiva de levar cultura às camadas populares, ou seja, arte “para o povo” e não “com o povo”. Os artistas que eram da classe média pretendiam se comunicar como o povo, utilizando uma linguagem popular que eles próprios criavam. Partindo dessa ideia podemos entender porque a entidade não se definiu como Centro de Cultura Popular e sim como Centro Popular de Cultura. Sobre a discussão que ocorreu em torno da definição do nome do grupo, ver o depoimento de Carlos Lyra em: BARCELLOS. CPC da UNE, p.95-106. 42 CPC. Relatório do Centro Popular de Cultura, p. 455. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 41

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que vivenciaram os anos finais de 1950 e início de 1960 e por tantos outros que se nostalgiam deste período. Portanto, analisar esta entidade é talvez preencher muitas lacunas presentes nos rumos da sociedade brasileira desde o golpe militar em 1964 e talvez tentar entender os posicionamentos culturais e políticos no cenário atual de ex-integrantes desta organização.

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Entre estratégia e táticas: a inserção de Paulo Menten no campo das artes em São Paulo em meados dos anos 1960

Dossiê

Between strategy and tactics: the insertion of Paulo Menten in the arts field in São Paulo in the mid-1960s Priscilla Perrud Silva Mestranda em História Social (Bolsista CAPES/DS 2014-2015) Universidade Estadual de Londrina (UEL) E-mail: llaperrud@gmail.com Recebido: 31/11/2014 Aprovado: 02/03/2015 RESUMO: Por meio deste escrito, objetivamos apresentar o artista visual Paulo Menten (19272011), cuja participação ocorreu em duas Exposições Bienais Internacionais de São Paulo: a IX Bienal de São Paulo em 1967 e a X Bienal de São Paulo em 1969. O artista buscava ser inserido no campo das artes no início da década de 1960, quando decidiu deixar o trabalho como bancário e seguir a carreira artística. Assim, de acordo com as proposições conceituais de Michel de Certeau, entendemos que Paulo Menten utilizou de táticas a fim de alcançar sua principal estratégia, expor suas obras na Bienal de São Paulo, esta que visava acima de tudo, sua inserção definitiva no campo das artes de São Paulo-SP. Considerando nesta linha de interpretação, a conjuntura sócio-política e cultural do período do Regime Militar no Brasil. PALAVRAS-CHAVES: Paulo Menten, Tática, Estratégia. ABSTRACT: By means of this written, we aimed to present the visual artist Paulo Menten (1927-2011), whose participation occurred in two Biennials International Exhibitions of São Paulo: the IX Bienal de São Paulo in 1967 and the X Bienal de São Paulo in 1969. The artist was seeking be inserted in the arts field in the early 1960s, when he decided to leave the job as a banking and follow the artistic career. Thus, as per the conceptual propositions of Michel de Certeau, we understand that Paulo Menten used tactics in order to reach their main strategy, exhibit their works in the Bienal de São Paulo, this which aimed above all, its definitive insertion in the arts field São Paulo-SP. Considering in this line of interpretation, the socio-political and cultural conjuncture of the Military Regime period in Brazil. KEYWORDS: Paulo Menten, Tactic, Strategy. Porque não é suficiente conhecer as obras de um artista – é também necessário conhecer quando ele as fez, por que, como, em quais circunstâncias [...]. Algum dia haverá sem dúvida uma ciência – pode ser chamada de ciência do homem – que procurará saber mais sobre o homem em geral por meio do estudo do homem criativo.

Pablo Picasso

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Conversas com Picasso1

A repressão imposta pelo Regime Militar no Brasil (1964 a 19852) foi agravada com sua sistematização na segunda metade década de 1960, durante o governo Costa e Silva (1967 a 1969) e com a instituição do Ato Institucional Número Cinco, o AI-5 em 1968. Assim, a produção de obras artísticas com temáticas de cunho crítico-social passou a ser um desafio, inclusive na área das artes visuais. Especialmente se considerarmos a exposição de obras com este caráter na maior exposição de arte do Brasil, a Bienal Internacional de São Paulo. Para tanto, o artista visual Paulo Menten (1927-2011) se utilizou de táticas a fim de alcançar tal estratégia (expor na Bienal de São Paulo), esta que visava, acima de tudo, sua inserção definitiva no campo das artes de São PauloSP. Nossa pesquisa busca parte de seu embasamento teórico-metodológico no historiador francês Michel de Certeau, em seu livro intitulado: A Invenção do Cotidiano (1996). Nele, o autor nos apresenta uma discussão de cunho sociológico sobre as operações dos usuários provenientes da cultura ordinária. Neste caso, o ordinário é posto no sentido do habitual, do comum, que se insere nas operações cotidianas, nas maneiras de fazer, nas habituais práticas culturais dos homens ordinários, das pessoas comuns. Assim, buscamos interpretar o artista visual Paulo Menten como um homem ordinário, comum, que conseguiu adentrar o campo artístico por meio da laboração e da efetivação de estratégias e táticas. Michel de Certeau define da seguinte forma o conceito de estratégia: Chamo de “estratégia” o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.3

Durante a década de 1960, a principal estratégia de Paulo Menten enquanto artista com a carreira em ascensão era a de expor suas obras em uma edição da Bienal Internacional de São Paulo. O artista havia se proposto a ser aceito nesta exposição em específico por conta de sua importância para meio artístico nacional e internacional. Assim, ele acreditava que expondo nesse evento, ele consumaria sua inserção no campo das artes e consolidaria seu reconhecimento

BRASSAÏ. Conversas com Picasso. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.; FICO, Carlos. Além do Golpe: Visões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2012. 3 CERTEAU, Michel de; GIARD, L.; MAYOL, P. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996, p.46. 1 2

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enquanto artista, lugar social que almejava. Paulo Menten deixou evidente este anseio, principalmente em seus diários pessoais: 05-01-1964 [...] Há um fato entretanto que, neste findo ano de 1963 alcancei! A consumação de um primeiro degrau para ser reconhecido como artista plástico. [...] É verdade que nenhum desses prêmios fizeram repercutir meu nome nem ressoaram na crítica especializada. Cumpre a mim com persistência e impertinência manter a posição alcançada, como também ultrapassar neste ano que se inicia essa conquistada posição. Não devo me esquecer que fui recusado na VII Bienal de São Paulo. [...] Devo iniciar meus trabalhos para entrar [...] na “VIII Bienal” além de me manter presente nos principais salões e pensar em exposições individuais. 4

A fim de alcançar tal estratégia, o artista se utilizou de diferentes táticas para atingir este objetivo: Denomino, ao contrário, “tática” um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade indivisível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O ‘próprio” é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática dependente do tempo, vigiando para “captar no vôo” possibilidade ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constante que jogar com os acontecimentos para os transformam em “ocasiões”. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estanhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos [...], mas a sua síntese intelectual tem por formam não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’.5

Por meio do uso de táticas (conscientes ou não), além de adentrar o campo artístico, o artista visual foi aprovado e inserido neste sistema das artes, ao ponto de posteriormente ser aceito para expor suas obras nas IX e X Bienais Internacionais de São Paulo, em 1967 e 1969 respectivamente. Dentre tais táticas utilizadas podemos incluir os contatos, as relações pessoais e profissionais que o artista fez ao longo da carreira artística e mesmo antes dela, sua posição dentro do campo artístico e em relação aos seus aparelhos e pares: exposições, salões, galerias, ateliers, marchands, casas de leilão, críticos de arte, historiadores da arte, curadores, museus, outros artistas, produtores culturais, escolas, universidades, movimentos artísticos, entre outros, além de sua poética e de linguagem estética desenvolvida. É interessante observar essa busca pelo reconhecimento enquanto artista visual até mesmo em seus retratos, datados em meados dos anos 1960 (Figura 1). Paulo Menten geralmente aparece em seu ateliê rodeado por suas obras, vestindo uma espécie de jaleco com as mangas arregaçadas e fumando cachimbo, retratando os

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Fonte: MENTEN, Paulo. Diário Pessoal, Vol.II, 1963-1969. Acervo Pessoal Paulo Menten. CERTEAU, Michel de; GIARD, L.; MAYOL, P. A Invenção do Cotidiano, p.47. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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processos de produção de suas obras, principalmente as gravuras, denotando assim uma maneira de evidenciar seu lugar social enquanto artista por meio do registro fotográfico.

Figura 1: Paulo Menten durante o processo de produção de uma xilogravura da Série "MulherDama e o Demônio". Autor Desconhecido, Meados da Década de 1960. Fonte: Acervo Pessoal Paulo Menten.

As táticas também lhe foram necessárias durante o período das referidas exposições (1967 e 1969) e antes até, a fim de evitar a censura e a repressão durante o Regime Militar, como veremos mais adiante, pois: Essas táticas manifestam igualmente a que ponto a inteligência é indissociável dos combates e dos prazeres cotidianos que articula, ao passo que as estratégias escondem sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição. 6

Mas como reconhecer e estabelecer tal estratégia e tais táticas? Em meio ao nosso trabalho de pesquisa nos deparamos com uma problemática de ordem metodológica: o discurso autobiográfico. Pois, as fontes jornalísticas que levantamos até o momento, em sua maioria, se baseiam em entrevistas por ele concedidas, as biografias e escritos sobre Paulo Menten, além dos documentos de caráter pessoal como cartas e diários, que localizamos também foram escritos pelo próprio artista. Faz-se necessário esclarecer que temos noção das implicações que envolvem a escrita de si7, nesse caso, o depoimento de Paulo Menten acerca de si mesmo, que tem a

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CERTEAU, Michel de; GIARD, L.; MAYOL, P. A Invenção do Cotidiano, p.47. GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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possibilidade de ser carregado de subjetivações a respeito de seu lugar na arte brasileira, de modo de talvez buscar a supervalorização de sua participação em eventos do passado ou não. Assim, buscamos orientar nosso levantamento, leitura e interpretação deste material de caráter autobiográfico conforme as proposições teórico-metodológicas apontadas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em seu escrito A Ilusão Biográfica (2006). Bourdieu nos alerta para a crítica do formato cronológico linear e da uniforme constância presente no discurso dos relatos biográficos e autobiográficos, pois: Sem dúvida, cabe supor que o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, com a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de um desenvolvimento necessário. 8

De acordo com a discussão apresentada por Bourdieu, essa busca pela uniformidade está também atrelada à concepção da identidade como única e permanente no indivíduo. Segundo o teórico cultural jamaicano Stuart Hall (1992), a identidade era entendida como sendo firmada no indivíduo por meio das relações de meio social, formada na interação das trocas entre o eu e a sociedade. Assim, a identidade era concebida como uniforme e estática por toda a vida do indivíduo, se caracterizando dessa maneira como um sólido alicerce no qual se constituía os valores culturais, unificando desta maneira o sujeito e seu mundo sociocultural. Contudo, conforme argumenta Hall, a identidade é agora compreendida enquanto um discurso de representação, social e historicamente construído, plural e em constante formação. Pois, as identidades pós-modernas (tanto as individuais como coletivas) são percebidas atualmente como “descentradas”, múltiplas, voláteis e fragmentárias, caracterizando assim o que o autor conceitua de “deslocamento” ou “descentração” do sujeito da pós-modernidade em sua “crise de identidade”, que passou a caracterizar o próprio processo de identificação como um todo 9. Todavia, esta questão não se encerra na conceitualização da identidade e de seus procedimentos de construção (neste caso principalmente no que tange a identidade individual), pois, esta uniformidade não é desinteressada: E é provável que esse ganho de coerência e de necessidade esteja na origem do interesse, variável segundo a posição e a trajetória, que os investigados têm pelo

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.184. 9 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. DP&A Editora, 1992, p.1-3. Outra vertente de discussão sobre o conceito de Identidade está presente nos escritos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, por meio de sua concepção de identidade líquida: BAUMAN, Zygmunt. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 8

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empreendimento biográfico. Essa propensão a tomar-se o ideólogo de sua própria vida, selecionando, em função de uma intenção global, certos acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles conexões para lhes dar coerência, como as que implica a sua instituição como causas ou, com mais freqüência, como fins [...].10

Durante a sistematização e leitura do diário pessoal de Paulo Menten escrito entre 1963 a 1969, percebemos que o artista “deixa escapar” em alguns momentos em seus escritos seu interesse neste citado empreendimento biográfico: 03-06-1965 Há uma longa história a qual transparecerá em meus artigos. O que não puder ser sugerido neles, contarei aqui. Quem sabe se um dia, estas notas não venham a interessar algum historiador das Bienais. Encontrará aqui os movimentos de bastidores, os que realmente fazem as Bienais e que não transparecerão no futuro. 11

Pierre Bourdieu então propõe a desconstrução deste referencial de análise baseado na busca pela sequência cronológica, da linearidade dos acontecimentos e da causalidade determinante dos modelos biográficos e apresenta uma proposição conceitual de trajetória: Ela conduz à construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações. 12

E esta trajetória está inserida no espaço social de um campo específico: Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra [...] evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado. O que equivale a dizer que não podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.13

Desta maneira, nossa interpretação da trajetória de Paulo Menten se sustenta a partir do estudo de seu espaço social, considerando a especificidade do campo artístico e do posicionamento do artista dentro do sistema das artes na cidade de São Paulo, principalmente durante a segunda metade da década de 1960, considerando a conjuntura do Regime Militar. Esta

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica, , p.184-185. Fonte: MENTEN, Paulo. Diário Pessoal, Vol.II, 1963-1969. Acervo Pessoal Paulo Menten. 12 BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica, p.189. 13 BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica, p.190. 10 11

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interpretação é possível de acordo não só com as proposições de Pierre Bourdieu, mas também nos é possibilitada pela utilização das fontes autobiográficas, pois: Ao ter acesso a esses fragmentos, o historiador espia por uma fresta a vida privada palpitante, dispersa em migalhas de conversas a serem decodificadas em sua dimensão histórica, nas condições socioeconômicas e na cultura de uma época, na qual público e privado se entrelaçam, constituindo a singularidade do indivíduo numa dimensão coletiva. Processo identitário que se define e redefine constantemente e elimina qualquer suposição de coerência e continuidade de atitudes, sentimentos ou opiniões.14

Então, por meio da interpretação das fontes autobiográficas, podemos esmiuçar e problematizar a trajetória histórico-social do artista: Paulo Francisco Menten nasceu em São Paulo-SP em 17 de junho de 1927 e faleceu em 28 de maio de 2011, aos 83 anos em São PauloSP. Iniciou seu emprego como bancário em 01 de setembro de 1948, no antigo Banco do Comércio e Indústria de São Paulo S.A., o Banco Comind15, onde atuou como secretário do subgerente encarregado das filiais do banco, Fernando Costa e Silva16. Concomitante ao seu trabalho no banco, Paulo Menten buscou conhecer o cenário efervescente da arte em São Paulo17, acompanhando inclusive a fundação do Museu de Arte de São Paulo (MASP) em 1947, do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) em 1948 e da primeira Bienal de São Paulo, que na época recebeu o título de I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 195118: “[...] Mas em 1950 comecei a descobrir a profundidade da importância da arte. [...] Vendo o trabalho de outros artistas, e visitando exposição nos museus de Arte e Arte Moderna, nas exposições que esses museus traziam para São Paulo.” 19. Entre os anos de 1949 a 1951, frequentou o Curso Livre de Desenho do MASP. O que, segundo o artista, iniciou sua possibilidade de inserção no sistema das artes, pois: “Foi a frequência no Curso Livre de Desenho no Museu de Arte, eu passei a espectador a “fazedor” de arte. Ali eu tive a oportunidade de me relacionar com artistas compartilhando a participação no movimento artístico de São Paulo.” 20. Assim, buscou dar continuidade à sua formação artística, o primeiro contato com a técnica da gravura deu-se posteriormente, em 1960, quando fez um curso

PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O Historiador e suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2013, p.200. 15 Fonte: BRIGUET, Paulo. O Homem que Gravava. Jornal de Londrina, Caderno Cultura, 31 de março de 2005, p.12. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Londrina. 16 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten: Uma Breve Biografia. S/D. Acervo Pessoal Paulo Menten. 17 Fonte: PEDREIRO, Ranulfo. Expressão na Ponta do Buril. Jornal de Londrina, Caderno Cultura, 27 de outubro de 2002. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Londrina. 18 OLIVEIRA, RITA ALVES. Bienal de São Paulo: Impacto na Cultura Brasileira. São Paulo Perspectiva, São Paulo, v.15, n.3, Julho 2001. 19 Fonte: Entrevista com Paulo Menten por Dolores Branco. São Paulo, 04 de abril de 2010. Acervo Pessoal Paulo Menten. 20 Fonte: Entrevista com Paulo Menten por Dolores Branco. São Paulo, 04 de abril de 2010. Acervo Pessoal Paulo Menten. 14

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de Xilogravura21 com Lívio Abramo (1903-1992), um dos grandes nomes da gravura brasileira, na Escola de Artesanato do MAM. Em 1961, participou do Curso de Desenho para Reprodução na Escola Senai de Artes Gráficas “Felício Lanzarra”, onde já em 1963, também frequentou o Curso de Arte Final de Publicidade22. Paulo Menten recebeu sua primeira premiação já em 1958, no I Salão Bancário de Arte em São Paulo-SP. Na ocasião, recebeu uma menção honrosa em pintura e o primeiro prêmio em desenho23. Ainda no início da década de 1960, compôs sua primeira série de gravuras que foi à exposição, quando aproveitou vários emborrachados utilizados pelo banco em que trabalhou como proteção e apoio para as batidas dos carimbos nas mesas dos seus colegas de trabalho e fez uma série de 14 lineogravuras24, e com elas participou da 1º Exposição Internacional de Gravura de São Paulo no MAM, organizada pelo Núcleo de Gravadores de São Paulo, o NUGRASP: “A convite de Diná Lopes Coelho solicitou que Izar do Amaral Berlinck presidente do NUGRASP selecionasse os melhores gravadores, para participarem da Exposição Internacional de Gravura no Museu de Arte Moderna.” 25. Continuou a participar de salões e exposições concomitantemente ao seu emprego como bancário, até que tempos depois, em meados de 1966, pediu uma licença de um mês ao Banco Comind a fim de ir para Salvador-BA, para participar da I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia: Eu estive para a primeira Bienal de Salvador, onde durante a inauguração o tempo todo que faziam discurso fiquei no Canto do Mosteiro conversando com Jorge Amado que discorria sobre a importância da cultura nordestina que um dia teria projeção internacional. Viajei para Salvador de ônibus junto com o Carelli. 36 horas de viagem. Essa primeira Bienal foi realizada em vários pontos culturais de Salvador. 26

Nesta mesma Bienal, dois anos antes do AI-5, Paulo Menten teve suas obras confiscadas e presenciou o início do fortalecimento dos movimentos repressivos contra as artes visuais: Participei com seis lineogravuras a primeira série influenciada pelo cordel. Houve intervenção dos revolucionários que haviam ocupado o país. O presidente da Bienal foi preso e confiscaram as obras e impedindo os Xilogravura: “Processo de gravura a partir de matrizes de madeira, no qual se faz o desenho em uma tábua lisa que é depois desbastada com formão, de maneira a sobrarem as partes que se quer imprimir. A matriz resultante é tintada com um rolo e pressionada sobre papel umedecido com uma prensa. Deste modo se consegue a gravura como cópia impressa.” MARCONDES, Luiz Fernando. Dicionário de Termos Artísticos. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1998, p.303. 22 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten – Gravuras – 75 anos. Londrina, 2002. Acervo pessoal da autora. 23 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten – Gravuras – 75 anos. Londrina, 2002. Acervo pessoal da autora. 24 Linoleogravura: “Técnica de gravura executada sobre chapa de linóleo.” CHILVERS, Ian (org.). Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.309. 25 Fonte: Entrevista com Paulo Menten por Dolores Branco. São Paulo, 04 de abril de 2010. Acervo Pessoal Paulo Menten. 26 Fonte: Entrevista com Paulo Menten por Dolores Branco. São Paulo, 04 de abril de 2010. Acervo Pessoal Paulo Menten. 21

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movimentos culturais. 1966. Os artistas queriam buscar suas obras mas foram aconselhados a não irem pois corriam o risco de serem presos. Na primeira Bienal alguns artistas foram barrados na entrada do Palácio do Governo em visita ao Governador do estado por estarem sem gravata. Mario Schenberg, crítico de arte, Carelli, Paulo Menten (isso foi feito pelo governo liberal da revolução). [...] Havia grande participação de paulistas, de todas as categorias de arte. O governador havia convidado os artistas a administração do Palácio é que impediu a entrada dos artistas; depois voltando atrás se propôs a receber os artistas sem gravata mas parte deles não foi [...]. 27

Apesar do acontecimento, durante essa viagem, visitou o Pelourinho, principalmente a zona de baixo meretrício em Salvador e seguiu em visita ao Nordeste28, lugares que inspiraram o artista a desenvolver várias séries de temática crítico-social, em diferentes vertentes artísticas, inclusive as que discutiremos mais adiante, que foram apresentadas nas referidas Bienais de São Paulo29. Paulo Menten pediu demissão do banco em que trabalhava em 15 de maio de 196730, foi neste período inclusive, que resolveu viver exclusivamente de seu trabalho como artista visual. Algumas hipóteses que formulamos sobre esta decisão são as de que se sua saída do Banco Comind não estava também relacionada com seu envolvimento com as lutas trabalhistas como bancário, pois era um elemento ativo do então Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de São Paulo desde 26 de janeiro de 194931. Inclusive, participou em 1951 da greve da categoria que durou 70 dias, que instituiu o Dia do Bancário na data de 18 de agosto32. Sua saída teria sido uma tática para evitar a repressão do Regime Militar, imposta aos movimentos sindicais trabalhistas? Se sim, esta tática vislumbraria somente sua vida profissional e sua derradeira escolha em ser um artista visual ou também estaria entrelaçada à sua vida pessoal? Seria uma forma de buscar proteger sua numerosa família33? Pois entendemos que: Outrossim, preferimos entender como “resistência” da classe trabalhadora não apenas sua “medição de forças” política com o Estado autoritário, mas sim sua capacidade de recriar alternativas de sobrevivência numa conjuntura como a que se apresentava. A nova política trabalhista e salarial adotada como um dos pilares do futuro “milagre” provocaria transformações drásticas na qualidade de Fonte: Entrevista com Paulo Menten por Dolores Branco. São Paulo, 05 de abril de 2010. Acervo Pessoal Paulo Menten. Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten: Uma Breve Biografia. S/D. Acervo Pessoal Paulo Menten. 29 Fonte: PEDREIRO, Ranulfo. Expressão na Ponta do Buril. Jornal de Londrina, Caderno Cultura, 27 de outubro de 2002. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Londrina. 30 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten: Uma Breve Biografia. S/D. Acervo Pessoal Paulo Menten. 31 Fonte: SINDICATO DOS EMPREGADOS EM ESTABELECIMENTOS BANCÁRIOS DE SÃO PAULO. Termo de Ratificação de Rescisão de Contrato de Trabalho. São Paulo, 16 de maio de 1967. Acervo Pessoal Paulo Menten. 32 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten: Uma Breve Biografia. S/D. Acervo Pessoal Paulo Menten. 33 Sete filhos de seu primeiro casamento. Fonte: MENTEN, Paulo. Diário Pessoal, Vol.II, 1963-1969. Acervo Pessoal Paulo Menten. Segundo Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein (2014), esta era a média da taxa de natalidade no Brasil entre as décadas de 1940 a 1960. LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Mudanças Sociais no Período Militar (1964-1985). In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). A Ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 80. 27 28

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vida do trabalhador, forçando-o à busca de alternativas no seu cotidiano familiar e político. 34

Porquanto um dos principais motivos de sua saída, também foi o do ganho financeiro para o sustento familiar e de sua produção artística. Lembrando que na segunda metade da década de 1960, os trabalhadores brasileiros sofriam com o chamado “arrocho salarial”: Também ocorreram diversas mudanças na área trabalhista. A mais importante foi a nova legislação salarial, com impacto direto sobre os reajustes de salário e a própria distribuição de renda. Até então, os salários eram reajustados anualmente, para compensar a inflação do período. A nova legislação corria-os segundo uma fórmula que considerava não só a inflação passada, mas também sua previsão para os doze meses seguintes. Como a inflação futura era sistematicamente subestimada, a nova legislação provocou perda salarial sistemática, com perversos efeitos distributivos. A redução deliberada dos salários reais, o chamado “arrocho salarial”, restringiu tanto a demanda agregada quanto os custos da mão de obra para a iniciativa privada. 35

Segundo o Termo de Ratificação de Rescisão de Contrato de Trabalho36, Paulo Menten recebia o salário de NCR$ 286,27 por mês, mas ao começar a ter ganhos financeiros com sua produção artística, Paulo Menten se surpreendeu: 15-01-65 A Galeria Atrium vendeu três trabalhos meus, em pequena dimensão, que me renderam cr$12.000. Unindo essa soma ao prêmio de Curitiba, de cr$80.000 e ao prêmio do ano retrasado do “Salão do Trabalho”, de cr$50.000, dá o total de cr$142.000! 37

Assim, “compensava” financeiramente seguir a carreira artística, o que foi uma forte influencia na decisão profissional do artista. Quando voltou a São Paulo, em finais da década de 1960 e início da década de 1970, foi chamado pelo NUGRASP para ministrar aulas de diferentes técnicas artísticas. Assim, montou um ateliê na sede do Núcleo, que se localizava no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, prédio da Fundação Bienal de São Paulo no Parque do Ibirapuera e conseguiu reunir cerca de 400 alunos. Por volta de 1972, o NUGRASP mudou de sede, mas Paulo Menten permaneceu no local. Contudo, sofreu pressão de outros artistas para mudar seu ateliê de lugar, então o levou para São Caetano do Sul-SP em meados da década de 1970, encerrando assim, que denominamos de primeiro ciclo de sua carreira artística.

MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil Recente 1964-1980. São Paulo: Editora Ática, 1988. p.26. 35 LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Transformações Econômicas no Período Militar (1964-1985). In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). A Ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p.94. 36 Fonte: SINDICATO DOS EMPREGADOS EM ESTABELECIMENTOS BANCÁRIOS DE SÃO PAULO. Termo de Ratificação de Rescisão de Contrato de Trabalho. São Paulo, 16 de maio de 1967. Acervo Pessoal Paulo Menten. 37 Fonte: MENTEN, Paulo. Diário Pessoal, Vol.II, 1963-1969. Acervo Pessoal Paulo Menten. 34

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A fim de nos auxiliar na interpretação do campo artístico e de sua posição em relação aos outros campos e à dinâmica social, encontramos novamente nos trabalhos do sociólogo francês Pierre Bourdieu nossa ancoragem. A primeira proposição conceitual de Bourdieu de que nos utilizamos para esta interpretação é a de poder simbólico: No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de “círculo cujo o centro está em toda a parte e em parte alguma” – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe são sujeitos ou mesmo que o exercem.38

Neste caso, entendemos como poder simbólico o conjunto de não-ditos que regem o campo artístico, determinadores das práticas dentro do mesmo, inclusive das de aceitação de um indivíduo como participante deste campo ou não. O campo artístico também possui seu próprio sistema simbólico39, assim, interpretamos que a vertente das artes visuais, por terem sido apropriadas e reivindicadas principalmente pelas elites (econômicas, intelectuais entre outras) é utilizada como status de simbolização de poder da cultura dominante40. No caso das elites econômicas de poder econômico e das elites intelectuais de poder cultural (capital simbólico). Uma questão interessante em relação às artes visuais, principalmente nos estudos sobre o Regime Militar no Brasil, é sua categorização de alienada e elitista enquanto outras vertentes artísticas como a música e o teatro teriam um apelo social mais próximo da população no geral, seja pela sua linguagem mais inteligível que a arte visual, por assim dizer, seja pela sua acessibilidade à população. Talvez a questão-chave aqui não seja somente a chamada alienação das artes visuais, mas também a exclusão, simbólica ou efetiva, da população dos meios e aparelhos artísticos (museus, galerias, entre outros), do sistema simbólico das artes por meio da violência simbólica: É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p.8. “[...] instrumentos de conhecimento e de construção do mundo dos objetos, como “formas simbólicas”, reconhecendo, [...] o “aspecto activo” do conhecimento.” BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, p.8. 40 “A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. Este efeito ideológico, produ-lo a cultura dominante dissimulando a função da divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela distancia em relação à cultura dominante.” BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, p.10-11. 38 39

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para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”. 41

Em nosso trabalho, buscamos problematizar a questão do poder simbólico no âmbito das referidas Exposições Bienais de São Paulo, não só em relação ao público visitante, mas também no que se refere ao jogo de poder entre os próprios artistas e também entre estes e o Regime Militar. Pensando também nos processos contemporâneos da produção artística dentro do funcionamento da dinâmica da economia das trocas simbólicas42, também determinadas pelas regras da arte43. Mais uma vez apontamos a importância das fontes autobiográficas, dentre elas diários pessoais e cartas, que nos possibilitam o vislumbre de Paulo Menten enquanto um homem ordinário e da dinâmica social registrada durante sua busca pelo reconhecimento enquanto artista. Mas essas fontes, aliadas as fontes fotográficas também nos permitem problematizar a subjetividade intrínseca ao processo de tecedura de seu destino de trabalho: O verdadeiro destino de um grande artista é um destino de trabalho. Em sua vida chega a hora em que o trabalho domina e conduz sua destinação. As infelicidades e as dúvidas podem atormentá-lo por muito tempo. O artista pode vergar sobre os golpes da sorte. Pode perder anos numa preparação obscura. Mas a vontade da obra não se extingue desde que ela encontrou uma vez seu verdadeiro foco. Começa então o destino do trabalho. O trabalho ardente e criador atravessa a vida do artista e confere a essa vida virtudes de linha reta. Tudo vai em direção à meta numa obra que cresce. Cada dia, esse estranho tecido de paciência e entusiasmo torna-se mais ajustado na vida de trabalho que faz de um artista um mestre. 44

Este, que entendemos como a poética do artista, nos traz a possibilidade de interpretação de suas escolhas socioculturais que influenciaram sua linguagem artística, a fim de atingirmos os sonhos de devaneio45 deste homem ordinário que foi Paulo Menten, e encontrarmos seu lado noturno. Para isso, entrelaçamos nossa discussão teórica com os escritos do filósofo francês

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, p.11. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013. 43 BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 44 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. São Paulo: DIFEL, 1986, p.31. 45 “O devaneio é o produto do cogito de um sonhador e tem como ponto de partida alguma coisa do presente ou do passado. Nasce na solidão, na paz, na tranqüilidade de uma alma feliz e sonhadora. Nesse repouso de suprema felicidade e bem-estar, o ser devaneante transpõe todos os limites ocasionados pela estática percepção. As barreiras impostas pelo tempo linear são superadas. As reminiscências de um longínquo passado retornam ao presente, alojando-se, abrigando-se na alma do sonhador.” FERREIRA, Agripina Encarnacion Alvarez. Dicionário de Imagens, Símbolos, Mitos, Termos e Conceitos Bachelardianos. Londrina: EDUEL, 2013, p.57. Sobre o devaneio em Gaston Bachelard é interessante ver também: BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Ed. WMF, Martins Fontes, 2009. 41 42

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Gaston Bachelard, em seu campo de trabalho noturno, referente à imaginação46 poética e aos devaneios. A princípio, por meio da fenomenologia da imaginação47, mas de uma imaginação criadora, a imaginação material inspirada pela ontologia das imagens48 e permeada de vontade49 durante os instantes poéticos dos devaneios ambientados na solidão daquele que sonha... Neste caso, o artista visual Paulo Menten. A imaginação material, segundo as proposições conceituais de Gaston Bachelard, vai contra certas correntes de pensamento da filosofia ocidental que estabelece a imaginação enquanto instância estreitamente visual50. O conceito de imaginação material nos orienta na busca por uma interpretação do processo artístico e de suas técnicas desenvolvidas por Paulo Menten, pois era principalmente um gravador, “A gravura, mais que qualquer outro poema, remete-nos ao processo de criação.” 51, além de pintor, escultor, desenhista, crítico de arte, escritor e poeta. Dentro das diferentes técnicas da gravura (principalmente da xilogravura e da gravura em metal) Paulo Menten dominava a técnica da madeira negra, melaço com água e açúcar, água-forte, águatinta, buril, ponta seca, entre outras52, totalizando mais de cerca de 8000 obras em diferentes séries53. A vertente artística da gravura dispõe de técnicas que aludem diretamente ao embate de forças da imaginação material e da vontade criadora que comandam as mãos: Um escritor romântico, pintor nas horas vagas, acreditava fazer voto de realismo ao proclamar: "'Para mim, o mundo exterior existe." O gravador se compromete mais: para ele, a matéria existe. E a matéria existe imediatamente sob sua mão obrante. Ela é pedra, ardósia, madeira, cobre, zinco. . . O próprio “Não é a faculdade de formar imagens da realidade, mas a força da audácia humana capaz de formar imagens que ultrapassem a realidade, de criar imagens que façam ver, que transformam o real, de revelar objetos novos a um olhar novo, de “ausentar-se” e de mergulhar numa vida nova, de desprender-se das estabilidades pensadas e de assumir a função do irreal que tenta um futuro.” JAPIASSÚ, Hilton. Para Ler Bachelard. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p.171. 47 “Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética no momento em que ela emerge na consciência como produto direto do coração, da alma, do ser homem tomado na sua atualidade.”. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores), p.184. 48 “Sob o ponto de vista filosófico, a ontologia é o estudo do ser enquanto ser. Na fenomenologia do imaginário bachelardiano, a ontologia consiste em se apreender o ser da imagem como produção criadora do poeta. A ontologia poética com relação à imagem está voltada à “consciência poética”, excluindo-se a “consciência de racionalidade”, que seria um elo de ligação entre as imagens poéticas na composição de um poema. Ao considerar-se apenas a imagem, “acentua-se a sua virtude de origem”, apreendendo o seu ser ontológico, independente de qualquer determinação. O surgimento de uma imagem depende da consciência de maravilhamento diante de um mundo imaginário.” FERREIRA, Agripina Encarnacion Alvarez. Dicionário de Imagens, p.142. 49 “A vontade é uma força, um poder que tudo comanda, desenvolvendo-se de acordo com o objeto ou o mundo circundante. A vontade é apreendida como força de devir quando a palavra ainda não foi enunciada. Nessa “ontogênese poética” unem-se a vontade e a imaginação. A vontade pancalista está vinculada à imaginação.” FERREIRA, Agripina Encarnacion Alvarez. Dicionário de Imagens, p.201. 50 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar, p.xiii. Sobre o assunto é interessante ver também: PALLASMAA, Juhani. Os Olhos da Pele: A Arquitetura e os Sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. 51 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar, p.53. 52 Fonte: BRIGUET, Paulo. O Homem que Gravava. Jornal de Londrina, Caderno Cultura, 31 de março de 2005, p.12. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Londrina. 53 Fonte: FRANÇA, Francelino. A Reciclagem nas Gravuras. Jornal Folha de Londrina, Caderno Folha 2, 11 de outubro de 2002. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Londrina. 46

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papel, com seu grão e sua fibra, provoca a mão sonhadora para uma rivalidade da delicadeza. A matéria é, assim, o primeiro adversário do poeta da mão. Possui todas as multiplicidades do mundo hostil, do mundo a dominar. O verdadeiro gravador começa sua obra num devaneio da vontade. É um trabalhador. Um artesão. Possui toda a glória do operário54.

“Toda a mão é consciência de ação.”

55

, ação de resistência provocada pelo mundo,

discutida por Gaston Bachelard em relação ao campo do trabalho da técnica de criação, formadora do processo de produção artística: “Já a imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem [...].” 56, mediante sua importância para a técnica da gravura, esta dinâmica de produção foi extensamente registrada pelo artista (Figura 2). Assim os escritos sobre teóricos acerca do homem noturno e sobre a vertente artística da gravura de Gaston Bachelard nos orientam inclusive na interpretação da poética criadora de Paulo Menten57.

Figura 2: Mãos de Paulo Menten durante o processo de entalhamento de uma matriz xilográfica. Autor Desconhecido, Meados da Década de 1960. Fonte: Acervo Pessoal Paulo Menten.

Paulo Menten participou de várias exposições nacionais e internacionais, tanto individuais como coletivas, mas sobre as Bienais, o artista afirmava que: “As Bienais de São Paulo trouxeram o que havia de melhor e de pior no mundo. Nada do que vinha de fora determinava o “fazer da arte” em São Paulo, mas era uma fonte de informação estética.” 58, assim, o artista percebia a Bienal como uma “vitrine”, um instrumento de divulgação e de recepção para sua obra. Em nossa pesquisa ainda estamos realizando o levantamento para buscar entender o porquê de seus trabalhos terem sido aceitos em específico nestas duas Bienais, lembrando que ele fora rejeitado

BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar, p.52. Interessante observar que Paulo Menten era conhecido como o “O Operário da Gravura”. Fonte: BRIQUET, Paulo. O Universo de Paulo Menten. Jornal de Londrina, 30 de agosto de 2009. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Londrina. 55 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar, p.53. 56 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar, p.xv. 57 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar, 1986. 58 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten: Uma Breve Biografia. S/D. Acervo Pessoal Paulo Menten. 54

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para expor nas edições anteriores. Seria uma decorrência somente de seu êxito em se inserir no sistema das artes paulistano ou sua aceitação estaria também relacionada indiretamente à repressão no período do Regime Militar por meio da censura de outros artistas para as exposições? O período em que se deram estas duas Exposições Bienais Internacionais de São Paulo, 1967 e 1969, foi marcado pelo mandato do segundo presidente do Regime Militar (1964-1985), o então marechal Arthur da Costa e Silva, que durou de 15 de março de 1967 a 31 de agosto de 1969. Após o período dos turbulentos acontecimentos que culminaram no Golpe Civil-Militar de 196459 e do governo de Castelo Branco, o governo de Costa e Silva foi marcado pelo endurecimento e pela radicalização da repressão contra as oposições e os movimentos sociais: A partir do final dos anos 1960, a “utopia autoritária”, que inspirava, de maneira diversa, os diferentes grupos militares, passou a ser interpretada segundo a chave dos setores mais extremados da linha dura, penetrando os diversos escalões governamentais e sendo aceita por concordância ou medo. 60

Também foi um período de enrijecimento da censura61 contra a imprensa, aos intelectuais dos mais diversos setores e às artes em suas diferentes vertentes, dentre elas, as artes visuais. Com isso, buscamos tentar vislumbrar as ressonâncias do regime político nestas exposições e nas obras de Paulo Menten, que registrava esta conjuntura também por meio de suas escritas ordinárias: 08-02-65 Dois pequenos pensamentos do ano passado: É hora da nossa contingência. Momento de nos enquadrarmos nas coordenadas e meridianos das condicionantes sociais. Geração temerosa de dar passos, expectadora. Influi nessa vacilação, o temor, as oscilação das contingências e oscilação da atmosfera política e social.

Entre o período destas duas Bienais, no ano de 1968, foi promulgado pelo governo Costa e Silva o Ato Institucional nº5, o AI-562, em 13 de dezembro, um dos mais conhecidos instrumentos repressivos por conta de sua posição direta contra os setores culturais63. Esta conjuntura sócio-política também influenciou a elaboração destas duas Bienais e a escolha dos artistas que nelas viriam a expor.

FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: O Golpe que Derrubou um Presidente, pôs fim ao Regime Democrático e Instituiu a Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 60 FICO, Carlos. Além do Golpe, p.81. 61 FICO, Carlos. Além do Golpe, p.87-109. 62 Fonte: Ato Institucional Nº 5, de 13 de Dezembro de 1968. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm>. Acesso em 23/08/14 às 13:30 Hrs. 63 NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.; NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: Utopia e Massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2014. 59

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Na IX Bienal de São Paulo, em 1967, Paulo Menten expôs duas pinturas com a técnica de óleo sobre tela e sobre madeira. A primeira foi “Sequências Brasileiras 201”, de 1967, com as dimensões de 210 cm X 75 cm. A segunda a ser exposta foi “Sequências Brasileiras 205”, do mesmo ano e com as mesmas dimensões64. Já na X Bienal de São Paulo, Paulo Menten expôs três xilogravuras. A primeira foi “Lampião e os Demônios”, de 1969, com as dimensões de 50 cm X 76 cm, a segunda “Mulher-Dama e Demônio”, de 1969, com as dimensões de 50 cm X 76 cm, e a terceira foi “Mulher-Dama e Demônio”, também de 1969 e com 50 cm X 76 cm65. As três xilogravuras apresentavam temáticas nordestinas, remetendo à estética das ilustrações dos livretos de literatura de cordel: “Paulo Menten, surpreso com o rico universo cultural da região – onde a fantasia convivia harmonicamente com a realidade – penetra no imaginário popular nordestino.”

66

. Inclusive, temos que observar que nesta Bienal o artista

recebeu o Prêmio Aquisição Itamarati, com a aquisição de uma de suas obras expostas pelo Governo Federal67, o que denota a eficiência de suas táticas de representação de um conteúdo crítico-social por meio de uma linguagem artística marcada pelo lirismo e pela representação metafísica não menos ciente de seu caráter de denúncia, influenciada pelo Modernismo. Paulo Menten compartilhava abertamente a linguagem do Modernismo Brasileiro, tanto na produção escrita quanto na visual. O Modernismo também influenciou não só a estética visual de seu trabalho, como também sua a temática e criticidade, sendo evidente sua relação com a chamada cultura do Nacional-Popular68 abordada por Marcos Napolitano (2014): Desde os anos 1920, uma nova elite cultural se formou em torno de dois objetivos: inventar um idioma cultural comum para uma nação cindida por graves fossos socioeconômicos e, assim, modernizar o Brasil sem perda de suas identidades culturais. Com base na busca de uma essência da nação-povo brasileira e de uma estética modernista, inventou-se uma nova “brasilidade”, incorporada pela direita e pela esquerda. Pela direita, pela mão do primeiro governo Vargas, sobretudo no período do Estado Novo e sua política cultural, este projeto se transformou em um discurso oficial e autoritário. Mas a esquerda, a começar pela esquerda comunista, não negou o nacional popular e o moderno como caminhos para uma cultura crítica e revolucionária. O nacional-popular era central na agenda estética e ideológica da esquerda desde os anos 1950, ainda predominando certa desconfiança em relação às estéticas

FUNDAÇÃO BIENAL. IX Bienal de São Paulo. São Paulo: 1967. FUNDAÇÃO BIENAL. X Bienal de São Paulo. São Paulo, 1969, p.43. 66 SIMONETTI, Juliana. Poiesis: Paulo Menten. Londrina: Edições Humanidades, 2006, p.11. 67 Fonte: MENTEN, Paulo. Paulo Menten – Gravuras – 75 anos. Londrina, 2002. Acervo pessoal da autora.; SCHROEDER, Caroline Saut. X Bienal de São Paulo: Sob os Efeitos de Contestação. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Universidade de São Paulo, 2011. p.189. 68 ““Nacional-popular” era a expressão que designava, ao mesmo tempo, uma cultura política e uma política cultural das esquerdas, cujo sentido poderia ser traduzido na busca da expressão da cultura nacional, que não deveria ser confundida nem com o regional folclorizado (que representava uma parta da nação) nem com os padrões universais da cultura humanista (vivenciada pela burguesia ilustrada por exemplo).” NAPOLITANO, Marcos. 1964, p.21. 64 65

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oriundas das vanguardas modernas. No começo dos anos 1960, tanto a Bossa Nova politizada, [...] quanto o Cinema Novo [...] promoveram o reencontro entre engajamento, pesquisa estética, cultura popular e nacionalismo. Este projeto não estaria isento de contradições e impasses. Entre eles, o de não estabelecer uma efetiva comunicação com as classes populares, que pareciam ser mais fonte de inspiração do que efetivo público consumidor das obras. 69

Em sua produção artística no geral, desenvolvida deste final dos anos 1950 até o ano de seu falecimento em 2011, principalmente nas gravuras, apresentou diversas temáticas de cunho crítico-social, como por exemplo, do Massacre dos Meninos da Candelária no Rio de Janeiro aos trabalhadores da Serra Pelada, pois para Paulo Menten, este tipo de temática estabelecia uma ponte entre a arte e o público: “A arte deve ser um espaço para o artista manifestar suas inquietações e também onde o sentimento do espectador pode encontrar estímulos para emergir. Na temática social, o artista consegue confluir estas expectativas.” 70. Este também é o caso de “Sequências Brasileiras”, “Lampião e os Demônios” e da “Mulher-Dama e os Demônios”. Estas séries em especial foram inspiradas nas viagens do artista à Bahia e ao Nordeste no início da década de 1960, de acordo com Juliana Simonetti (2006) principalmente em suas visitas aos prostíbulos e de suas pesquisas realizadas nesse período sobre a mitologia e a cultura popular nordestina, expressa na literatura e nas ilustrações de xilogravura dos cordéis. Mulher-Dama presente nestes trabalhos se refere a uma leitura lírica da figura da prostituta (Figura 3), conhecida como “mulher-dama” no Nordeste. Paulo Menten afirmou que: “A prostituição era vista pelos nordestinos como um acontecimento social natural e podia-se perceber até certa idealização em torno da mulher-dama. [...] Essas mulheres eram completamente diferentes do que imaginava. Eram sonhadoras e muitas alimentavam o desejo de ir para São Paulo ser estrela de cinema.”

71

. Com esta constatação, Paulo Menten busca

representar a figura da prostituta por meio do lirismo e da interpretação metafísica que perneava sua figura na cultura popular nordestina.

NAPOLITANO, Marcos. 1964, p.20. SIMONETTI, Juliana. Poiesis, p.04. 71 SIMONETTI, Juliana. Poiesis, p.12. 69 70

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Figura 3: Uma obra da Série "Mulher-Dama e Demônio". Autor Desconhecido, Sem Data. Fonte: Acervo Pessoal Paulo Menten.

O tema de “Sequências Brasileiras” foi: “Inspirado na riqueza de detalhes e de cores da arquitetura colonial dos prostíbulos baianos [...] As fachadas vislumbram-se em cores, linhas e formas geométricas que flertam com a abstração.” 72. Aqui novamente Paulo Menten propõe interpretação particular do cotidiano nordestino, com a busca por uma ressignificação dos casarões utilizados como prostíbulos ao dar evidência à sua estética arquitetônica.

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SIMONETTI, Juliana. Poiesis, p.13. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Figura 4: Uma obra da Série "Sequências Brasileiras". Autor Desconhecido, Sem Data. Fonte: Acervo Pessoal Paulo Menten.

Assim, Paulo Menten evidencia a influência do Modernismo e da chamada Cultura do Nacional-Popular, por meio de suas escolhas temáticas, assim como pela sua estética visual desenvolvida, estas também participantes de suas táticas, a fim de alcançar a estratégia de expor na Bienal de São Paulo, para sua efetiva inserção no campo das artes, mediante a conjuntura sócio-política do Regime Militar da segunda metade da década de 1960.

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“É chegada a hora de escrever e cantar, talvez, as derradeiras noites de luar”: leituras sobre a Corrida Espacial na canção brasileira

Dossiê

“It's time to write and sing, perhaps the ultimate moonlight nights": readings on the Space Race in the brazilian song Suelen Maria Marques Dias Mestre em História e Culturas Políticas pela UFMG Universidade Federal de Minas Gerais susutileza@yahoo.com.br Recebido: 01/11/2014 Aprovado: 28/12/2014 RESUMO: A Corrida Espacial foi um acontecimento marcante da história do século XX. Tal evento foi responsável por mais que o simples desenvolvimento científico e tecnológico e acabou por povoar a imaginação de toda uma geração. Para compreender melhor o período, buscaremos analisar de que forma alguns artistas e compositores brasileiros entenderam o processo e usaram o espaço de suas canções para descrevê-lo e cantá-lo. Além disso, a partir desse enfoque, procuraremos refletir sobre o potencial da produção artística, principalmente musical, como ferramenta para pesquisa histórica. PALAVRAS CHAVE: Guerra Fria, Corrida Espacial, Música Brasileira. ABSTRACT: The Space Race was a watershed event in the history of the twentieth century. Such an event was responsible for more than simply scientific and technological development and eventually populate the imagination of an entire generation . To better understand the period, we will seek to examine how some Brazilian artists and composers understood the process and used the space for their songs to describe it and sing it. Furthermore, from this approach, we aim to reflect on the potential of artistic production , especially music as a tool for historical research . KEYWORDS: Cold war, Space Race, Brazilian music. “Os artistas são antenas da raça”.1 Com essa célebre frase o escritor Ezra Pound descreveu a capacidade dos artistas de captarem e expressarem os principais acontecimentos do seu tempo. Assim, uma das formas de se ter contato com o pensamento de uma sociedade é através do conhecimento da arte produzida por ela. Esse trabalho se debruça sobre uma importante manifestação artística, a música, para tentar compreender um pouco da visão de um grupo de artistas a respeito dos acontecimentos da chamada Corrida Espacial.

1

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo, Cultrix, 1990, p.13. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Para Marcos Napolitano, a canção “tem sido termômetro, caleidoscópio e espelho não só das mudanças sociais, mas, sobretudo, das nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas mais positivas”.2 Nesse sentido, percebemos que as canções concebidas em uma determinada época podem se tornar uma importante ferramenta para a compreensão de suas mudanças, sociabilidades, sensibilidades, e ainda, do seu imaginário. A utilização de músicas como fonte pode fornecer um terreno promissor aos pesquisadores em História, uma vez que tal objeto é amplamente difundido em nossa sociedade, sendo acessível a diferentes públicos, nos mais diversos locais. Para Nicolau Scevcenco: pelo seu longo alcance social e sua capacidade extraordinária de ultrapassar fronteiras, fosse culturais, religiosas ou sociais, a música popular, tal como canalizada pelos novos meios de comunicação, se tornou desde cedo uma espécie de língua franca e termômetro emocional das grandes cidades. 3

Assim, por sua difusão e absorção, a canção acaba por se tornar muito mais do que simples entretenimento, ela se torna também uma linguagem através da qual as massas podem expressar seus sentimentos e debater algumas das questões do seu tempo. Além disso, a canção, justamente por sua grande difusão, é capaz de unir diferentes e distantes grupos através de sua capacidade de despertar emoções. Para João P. Furtado: a música reproduzida e/ou radiofonizada, por exemplo, pode ser considerada um objeto interessante, entre outros fatores, por seu grande alcance junto a largas camadas da população e por sua inerente capacidade de despertar, o que não é prerrogativa exclusiva sua, emoções e sentimentos que agregam, afetiva e momentaneamente, indivíduos que não se conhecem por vínculo direto.4

Portanto, devido ao seu alcance, as canções são capazes de unir diferentes grupos e despertar-lhes semelhantes emoções. Amplamente difundidas nas sociedades e capazes de difundir o pensamento de uma época, as canções tornam-se, dessa forma, ferramenta fundamental para a pesquisa histórica. Este trabalho buscará perceber de que forma as músicas produzidas nos primeiros anos da Corrida Espacial contribuíram para difundir entre uma parcela da população um pouco das discussões e especulações a respeito deste importante acontecimento. Iniciaremos nossa reflexão desenvolvendo um breve relato sobre os principais eventos que marcaram os momentos iniciais da conquista do espaço.

NAPOLITANO, Marcos. História e música. Belo Horizonte, Autêntica, 2002, p.77. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: No loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.111. 4 FURTADO, João P. A música popular brasileira dos anos 60 aos 90: apontamentos para o estudo das relações entre linguagem e prática social. Pós – História, Assis/ SP, n.5, p. 123-143, 1997, p. 124-125. 2 3

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No ano de 1957, o lançamento do primeiro artefato de construção humana na órbita da Terra abriu as portas para um maior conhecimento do universo. Esse novo passo dado pela humanidade representaria muito mais do que um avanço tecnológico e científico, e despertaria a imaginação de muitos sobre as possibilidades de conquista do homem no Espaço. Pela primeira vez a fronteira, por vezes tão longínqua, parecia mais próxima. Havia uma confiança no progresso, no engenho humano, uma certeza de que nada mais poderia parar o avanço da tecnologia e da humanidade. Desde tempos remotos o universo fascina os seres humanos. Civilizações milenares já se baseavam nos movimentos dos corpos celestes para se orientar, criar calendários, crenças, mitos e deuses. Da mesma forma, o desejo humano de ultrapassar a fronteira terrestre e alcançar o universo distante remonta a tempos longínquos. Contudo, somente no século XX, aquilo que até então não passava de especulação, de sonho ou de ficção, começou a se tornar realidade. O homem finalmente caminhava para a realização do seu antigo sonho, a conquista do espaço. Contudo, o desenvolvimento da tecnologia espacial não pode ser compreendido sem analisarmos o contexto no qual ele se insere, a Guerra Fria. O final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) marcou o surgimento de uma nova ordem. As potências europeias Inglaterra, França e Alemanha, encontravam-se totalmente arrasadas após o conflito e duas novas potências, Estados Unidos e União Soviética, apesar de também terem sofrido perdas materiais no confronto, despontaram fortalecidas. As novas potências passaram, então, a disputar a capacidade de influência no mundo. Essa não foi uma guerra no sentido tradicional, mas uma disputa que se desenvolveu em diversos campos: ideológico, tecnológico, cultural, e no campo militar. Assim, a Corrida Espacial pode ser considerada um desdobramento desse processo. Ao longo da Guerra Fria, o desenvolvimento das pesquisas espaciais se justificaria tanto pelos objetivos militares, quanto pelos fins propagandísticos de divulgar a superioridade tecnológica tanto dos Estados Unidos, como da União Soviética. O estímulo à Corrida Espacial foi promovido a partir de 1952, quando o Conselho Internacional de Uniões Científicas estabeleceu o Ano Geofísico Internacional que deveria ocorrer entre 1 de julho de 1957 a 31 de dezembro de 1958, período em que o ciclo de atividades solar, segundo os cientistas, estaria em seu máximo. Alguns países e, principalmente, as duas potências, Estados Unidos e União Soviética, passaram então a incentivar a criação de projetos que deveriam ser lançados no decorrer do Ano Geofísico Internacional.

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O primeiro artefato de fabricação humana foi lançado com sucesso na órbita terrestre pelos soviéticos em 04 de outubro de 1957. O Sputnik I5 era um satélite simples, uma esfera de 58 centímetros de alumínio, que carregava dois radiotransmissores que transmitiam um sinal, um beep-beep, que podia ser captado em vários pontos do planeta. Apesar da simplicidade do artefato, seu lançamento causaria um enorme impacto. A filósofa Hannah Arendt, no prefácio do seu livro A condição Humana, procura descrever o que teria sido o sentimento que invadiu os corações daqueles que presenciaram a chegada do primeiro satélite de construção humana ao espaço: O curioso porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma de suas obras, não foi de orgulho nem assombro ante a enormidade da força e da proficiência humanas. A reação, imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro “passo para libertar o homem da prisão na terra (...)”.6

Assim, segundo a autora, um sentimento que teria se apossado dos homens que vivenciaram aquele período seria menos de alegria, de orgulho, e mais de liberdade, seria uma sensação de alívio ao se perceber que o homem, graças a sua ciência, finalmente rompia a última barreira, escapava da Terra, sua última prisão. Estava dado o pontapé inicial para a conquista do espaço, a partir daí, palavras como foguete, satélite, astronauta e cosmonauta, passariam a fazer, cada vez mais, parte do vocabulário daqueles que vivenciaram os passos do homem em direção ao espaço. Um dos eventos mais marcantes da Corrida Espacial ocorreria em 16 de julho de 1969, quando os astronautas Neil Armstrong, Michael Collins e Edwin “Buzz” Aldrin partiram a bordo da Apollo 11, em uma viagem histórica, em direção à Lua. Armstrong e Aldrin se tornariam os primeiros seres humanos a entrarem em contato direto com outro corpo celeste. Através de uma câmera instalada na base do módulo lunar, um público de cerca de 600 milhões de pessoas ao redor do planeta, pode acompanhar a transmissão desse histórico acontecimento e ouvir as palavras de Armstrong que declarou: “Um pequeno passo para o homem. Um salto gigantesco para a humanidade”.7 Em todo mundo, milhões de pessoas assistiram, fascinadas, à concretização de um antigo sonho

Conforme o verbete “Sputnik” em: MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Dicionário Enciclopédico de Astronomia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. P.755, a denominação completa em russo é “Iskustvenyi Sputnik Zewli’, que significa “companheiro artificial da Terra”. 6 ARENDT, Hannah. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1983, p.9. 7“ One small step for man. One giant leap for mankind” de acordo com PUCCI, Luis Fábio S. Espaço, o último desafio: uma introdução à astronomia e à exploração espacial. São Paulo: Devon, 1997, p. 72. 5

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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humano, a Lua distante, que até então só iluminava a noite, os sonhos e as canções, passava agora a ser a Lua conquistada, onde tremulava a bandeira americana. Muitos outros episódios marcaram Corrida Espacial que foi responsável pelo surgimento de novas demandas, de novas questões para a humanidade. Mas, esse evento levantaria muito mais do que questões práticas, sobre a utilização do Espaço, e seria responsável pela mudança na forma de relacionamento do homem com o cosmos. O universo, até então longínquo e inacessível, tornava-se cada vez mais próximo. Tantas mudanças causariam impacto profundo em todo mundo e trariam novas formas de pensar, de sentir e de se relacionar com o espaço. Todas essas novidades acabaram sendo registradas de diversas maneiras por aqueles que viveram esse efervescente período. Procuraremos então, perceber de que forma alguns artistas brasileiros retrataram os acontecimentos relacionados à Corrida Espacial em suas canções. A grande variedade de músicas, de diferentes gêneros, compostas e interpretadas pelos mais diversos artistas nos mostra que a conquista do Espaço teve grande repercussão na época, atingindo um público amplo. É interessante perceber que, se por um lado a obra dos músicos deixa transparecer que eles não estavam alheios às questões do seu tempo, por outro, verificamos que esses artistas também contribuíam para disseminar alguns debates daquele momento, bem como para influenciar o pensamento de uma parcela da população. Cabe salientar que um dos grandes desenvolvimentos proporcionados pela Guerra Fria foi o aprimoramento da tecnologia bélica. Em poucos anos, foram construídos armamentos e bombas com enorme poder destrutivo e a humanidade adquiriu poderes de destruição, que chegavam a colocar em dúvida a sobrevivência da raça humana. Diante dessa perspectiva catastrófica, surgia a reflexão sobre quais benefícios e quais malefícios a tecnologia poderia trazer. O desenvolvimento do poderio bélico, aliado ao aperfeiçoamento da tecnologia espacial, trouxe ainda outra questão, que relacionava-se à expectativa sobre a possibilidade de fuga da Terra. Assim, considerando as conquistas do homem no Espaço e o risco causado pelos novos armamentos, muitos sonharam com a possibilidade de encontrar, fora do planeta, um lugar onde a humanidade pudesse recomeçar. É o caso, por exemplo, de Roberto Carlos, em sua canção O Astronauta, onde podemos ouvir seu desejo: Não tenho mais nem uma razão Pra continuar vivendo assim Não posso mais olhar tanta tristeza Por isso não vou mais ficar aqui Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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O mundo que eu queria não é esse O meu mundo é só de sonhos Bombas que caem, jato que passa Gente que olha um céu de fumaça Meu amor não sei por onde anda Será que os amores já morreram Um astronauta eu queria ser Pra ficar sempre no espaço Pra desligar os controles da minha nave espacial E pra ficar para sempre no espaço sideral E não voltar pra terra, não (...)8

Portanto, o poeta demonstra uma desilusão em relação à humanidade, num mundo de bombas, guerras e falta de amor, talvez não valesse mais a pena viver. Assim, a canção aponta seu desejo de fuga para o espaço, nela o eu-poético sonha em ser um astronauta para ficar para sempre no espaço, longe dos problemas e conflitos terrestres. Já o cantor e compositor Ary Lobo, mostra uma outra triste realidade do planeta que também inspira desejo de fuga. Embora seja paraense, o artista despontou no sudeste como representante da música nordestina e usou suas canções para criticar a situação de pobreza e exploração que as camadas menos favorecidas vivenciam naquela região. Para ele, a fuga do planeta significaria a oportunidade de uma vida melhor, é o que observamos na canção Eu vou pra Lua9, composta em parceria com Luis Boquinha: Eu Vou Prá Lua Eu vou morar lá Sair do meu Sputnik Do Campo do Jiquiá...(2x) Já estou enjoado aqui da terra Onde o povo a pulso faz regime A indústria, roubo, a fome, o crime Onde os preços aumentam todo dia O progresso daqui a carestia Não adianta mais se fazer crítica Ninguém acredita na política Onde o povo só vive em agonia (...)

Ary Lobo utiliza suas canções para denunciar problemas bem terrenos, como roubo, fome, crime carestia e a desilusão com a política, aos quais a população brasileira estaria submetida. A migração de nordestinos para outras partes do Brasil, em busca de uma vida melhor, já era um fenômeno frequente em nosso país naquele momento, mas no caso da canção, o retirante seria mais ousado, pois buscaria fora da Terra a oportunidade de uma vida melhor. A referência ao satélite Sputnik na música demostra como o vocabulário da Corrida Espacial invadia 8 9

CARLOS, Roberto. O Astronauta. LP Roberto Carlos, Rio de janeiro, Sony BMG, 1970. LOBO, Ary; BOQUINHA, Luis. Eu vou pra Lua. Compacto Eu vou pra Lua, Rio de Janeiro, RCA Victor, 1960. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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o cotidiano brasileiro e como a conquista do espaço poderia apresentar novas possibilidades para a humanidade. Além do desejo de fuga da Terra, outros sentimentos podem ser percebidos nas canções do período. Alguns artistas mostravam uma preocupação poética, com o futuro dos seus versos diante da invasão do Espaço pela tecnologia. O luar, fonte de inspiração para tantas poesias e letras de música, passava a ser ameaçado por satélites e foguetes que lhe roubavam o mistério e desvendavam os segredos. Assim, na canção Lunik 9, de Gilberto Gil, percebemos a recomendação: “poetas, seresteiros, namorados, correi! É chegada a hora de escreve e cantar, talvez, as derradeiras noites de luar”. 10 Klécius Caldas, Armando Cavalcanti e Brasinha, em sua marchinha de carnaval A Lua é dos namorados11, também deixam clara sua preocupação com o futuro do nosso satélite e exclamam repetidas vezes no refrão: “Todos eles estão errados, a Lua é dos namorados!” Assim, percebe-se que, para os autores, a Lua, território dos poetas e dos amantes, não deveria ser invadida pela frieza da ciência, assim os compositores completam: Lua , oh lua Querem te passar pra trás Lua , oh lua Querem te roubar a paz Lua que no céu flutua Lua que nos dá luar Lua, oh lua Não deixa ninguém te pisar

De acordo com essa canção, percebemos um apelo para que a Lua se proteja e se mantenha intocada e misteriosa, evitando as investidas da tecnologia espacial. O desejo não foi acatado, e ao longo de décadas nosso satélite vem sendo cada vez mais pesquisado pelos cientistas. Por outro lado, observamos que mesmo com todas as investidas da ciência, o luar jamais perderá sua poesia e beleza. Se por um lado havia certo receio diante do crescimento tecnológico da época, de outro havia, para muitos, uma euforia diante das novas possibilidades abertas ao homem e uma confiança na capacidade da humanidade. Dessa forma, nem todos viam de modo negativo o desenvolvimento da tecnologia espacial. Muitos artistas usaram sua música para exaltar os feitos e os grandes nomes da Corrida Espacial. É o que observamos em Take it ease my brother Charles, de GIL, Gilberto. Lunik 9. LP Louvação, Rio de Janeiro, Philips, 1967. CAVALCANTI, Armando; CALDAS, Klecius; BRASINHA. A lua é dos namorados. Compacto 78RPM Ângela Maria, Rio de Janeiro, Continental, 1961. 10 11

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Jorge Ben Jor, onde o que prevalece é o sentimento de liberdade nos dizeres: “(...) depois que o primeiro homem maravilhosamente pisou na lua/ eu me senti com direitos, com princípios e dignidade de me libertar (...)”.12 Além disso, havia uma exaltação da ideia de modernidade, uma euforia diante do novo, um desejo de ruptura com o passado, uma ansiedade pela concretização futuro. Os passos dados pelo homem na conquista do Espaço significavam uma grande novidade, algo nunca presenciado anteriormente, dessa forma, a Corrida Espacial passou a ser representada, em algumas músicas, como grande euforia. Em Marcianita,13 de José Imperatore Marcone e Galvarino Villota Alderet, mas que recebeu uma versão brasileira em 1959, observa-se tamanha confiança no progresso da ciência, que os autores são capazes de prever a conquista de Marte: Esperada, Marcianita, Asseguram os homens de ciência Que em dez anos mais, tu e eu Estaremos bem juntinhos, e nos cantos escuros do céu falaremos de amor (...) A distância nos separa, Mas no ano 70 felizes seremos os dois.

Na canção, o eu-poético, infeliz com sua situação amorosa na Terra, espera ansioso o progresso da Corrida Espacial para que possa encontrar, em Marte, a mulher ideal. É interessante perceber que, em 1959, ano em que foi lançada a canção, a conquista do espaço apenas ensaiava seus primeiros passos, mas os compositores imaginam que, em apenas 10 anos, o planeta Marte já estaria conquistado. Seu desejo não passou de utopia, até os nossos dias, apenas as sondas visitaram o planeta vermelho, mas é importante observar, que provavelmente, a mesma confiança na conquista do espaço presente na canção, fez parte da imaginação de muitas outras pessoas que vivenciaram aquele período. O desenvolvimento da tecnologia espacial trouxe à tona velhas questões que sempre permearam a relação do homem com o Universo. Seria o planeta Terra o único a conter vida na imensidão do Espaço? Qual seria nosso lugar no cosmos? Do mesmo modo que observamos os planetas, estaríamos nós também sendo observados? Esses e outros questionamentos fizeram parte do imaginário do período. Em Se eu quiser eu compro flores, gravada pelos Novos Baianos, nos deparamos com a afirmação: “Eu não me espanto com a Terra sendo a estrela de alguém.”

JOR, Jorge Ben. Take it easy my brother Charles. LP Jorge Ben Jor, Rio de Janeiro, Philips, 1969. MARCONE, José Imperatore.; ALDERETE Galvarino Villota. Marcianita. Compacto 78RPM Sérgio Murilo com Lyrio Pinacalli e sua orquestra, Rio de Janeiro, Columbia, 1959. 12 13

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Assim, para os compositores, da mesma forma em que observamos o céu em uma noite

estrelada, não seria espantoso que também estivéssemos sendo observados por outros seres inteligentes habitantes do enorme Universo. Já na canção A Lua e a Colombina, verificamos outra ideia interessante presente nas músicas do período, a de que a conquista seria uma característica inerente ao homem. Assim, da mesma forma como os navegadores aventuraram-se por oceanos desconhecidos em busca de novas terras, com a Corrida Espacial a humanidade ousava atingir uma nova fronteira, o Espaço. Em seus versos, o eu-poético nos confessa que, como Gagarin, deseja ser “o colombo dos espaços, levando Colombina nos seus braços.” 15 Os trechos citados representam apenas um pequeno universo das canções do período que abordaram a temática da Corrida Espacial.16 Percebemos que, muitos artistas conscientizando-se da importância do momento histórico que vivenciavam, resolveram utilizar o espaço de suas canções para relatar seu deslumbramento, anseios e angústias diante das novidades trazidas pela conquista do espaço. De certa forma, ao abordar o tema, esses artistas acabaram por se tornar cronistas do seu tempo, e hoje fornecem uma importante ferramenta para tentarmos compreender um pouco das impressões deixadas pela conquista do espaço em nosso país. Com a Corrida Espacial houve uma mudança na relação do ser humano com o cosmos, pois o Espaço deixava de ser tão distante e enigmático, para se tornar mais próximo da humanidade. Tantas mudanças foram assimiladas e interpretadas de diferentes formas pelos artistas do período, que utilizaram suas canções com espaço de reflexão e debate de tais questões. As músicas também serviram de suporte para divulgação de utopias e fantasias sobre o espaço que fizeram parte da imaginação do período. Este trabalho procurou brevemente relatar parte desse universo, buscando apreender um pouco das ideias, intenções e sentimentos contidos nas músicas daquele período. Através dele foi possível concluir que as canções são importantes

GALVÃO, Luiz; MOREIRA, Morais. Se eu quiser eu compro Flores. LP É Ferro na boneca, Rio de Janeiro, RGE, 1970. 15 CAVALCANTI, Armando; CALDAS, Klecius. A lua e a Colombina. Compacto 78RPM Francisco Carlos, Rio de Janeiro, RCA,1961. 16 Durante a pesquisa de mestrado desenvolvida na UFMG, outras canções foram analisadas: A lua é dos namorados, de Armando Cavalcanti, Klecius Caldas e Brasinha; Lunik 9, Show de me esqueci, A voz do vivo, Vitrines e Vamos passear no astral de Gilberto Gil; O Astronauta de Roberto Carlos; Colher de chá, de Tony Osanah; Eu vou pra Lua, Cheguei na Lua e Planeta Plutão de Ari Lobo, Triste Bahia, Alegria Alegria e Não identificado de Caetano Veloso; Marcianita de José Imperatore Marcone e Galvarino Villota Alderete, versão de Fernando César; A lua e a colombina, de Armando Cavalcanti, Klecius Caldas; Dois mil e um de Tom Zé e Rita Lee; Take it easy my brother Charles de Jorge Ben Jor; Essa moça tá diferente de Chico Buarque de Hollanda e Boêmio Demodê de Adelino Moreira. A lua disse de Gildo Branco, O Astronauta de Vinícius de Moraes e Baden Powell; Se eu quiser eu compro Flores de Morais e Galvão e BR3 de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. 14

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ferramentas para o estudo da História, pois revelam traços marcantes a respeito do pensamento, das posições e dos dilemas de uma determinada época. Apesar de ter representado um momento de grandes mudanças para toda a humanidade, a Corrida Espacial ainda é pouco estudada em nosso país. Buscamos, com esta breve reflexão deixar uma contribuição para as discussões a respeito do assunto. Esta é apenas uma análise entre tantas possíveis, mas esperamos que o trabalho tenha levantado algumas questões importantes que possam ajudar a aquecer o debate sobre a Corrida Espacial.

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Letras, suor e cerveja: o literato na prosa de Arthur Engrácio

Dossiê

Letters, perspiration and beer: the writer in Arthur Engrácio’s prose Vinicius Alves do Amaral Mestrando em História Social Universidade Federal do Amazonas (UFAM) viniciuscarqueija@gmail.com Recebido em 19/10/2014 Aprovado em 10/12/2014 RESUMO: Nosso objetivo é analisar as representações do escritor na obra ficcional e nãoficcional de Arthur Engrácio. Nos contos, as imagens construídas sobre os literatos denunciam a precária condição do universo artístico em Manaus, enquanto, nos ensaios, encontramos algumas propostas do autor para mudar esse cenário. Sustentamos que o escritor amazonense por um lado sugere um diálogo maior com povo em suas narrativas, mas por outro lado insinua em suas apreciações críticas que essa relação seja mais limitada. As ambiguidades de Engrácio nos permitem refletir também sobre a trajetória de um movimento de renovação artística regional do qual o próprio também fazia parte: o Clube da Madrugada. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Amazonas, Política. ABSTRACT: Our purpose is to analyze the representations of the writer in fictional and nonfictional work of Arthur Engrácio. In the tales the images constructed about literary men points to the precarious condition of the artistic universe in Manaus, while in the essays we found some of the author proposed to change this scenario. We hold that the Amazonian writer on the one hand suggests a greater dialogue with the people in their narratives, but then insinuates in his critical assessments that this relationship is more limited. The ambiguities of Engrácio allow us also reflect on the trajectory of a movement of regional artistic renewal which itself was also part: Clube da Madrugada. KEYWORDS: Literature, Amazon, Policy. Introdução A vitalidade da literatura de Arthur Engrácio se deve a sua descrição detalhada dos modos de viver do caboclo amazonense. Seus anseios e seus sofrimentos estão presentes na maioria de seus contos e ao denunciar seu abandono e sua espoliação esse autor acabou se notabilizando como um dos maiores escritores regionalistas do Amazonas. Sem dúvida, há um pouco de sua experiência pessoal em cada conto. Afinal, Engrácio nasceu em uma comunidade ribeirinha em Manicoré, às margens do Rio Madeira, em 1927, Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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mudando-se para Manaus apenas para cursar o secundário. Em busca de educação de qualidade ele repetiu um caminho feito por muitos interioranos: ainda que a capital amazonense estivesse enfrentando um difícil período de crise com o ocaso da economia da borracha, a cidade ainda era encarada como um centro de mil e uma oportunidades para os homens dos beiradões e barrancos. Claro que seus contos não podem ser encarados como reprodução extremamente fiel de sua vida. Dizer isso seria violar o pacto ficcional. Mas é preciso reconhecer que uma pequena parte da vivência do autor influi em sua obra, porque se é verdade que o objetivo da literatura é produzir um efeito de verossimilhança o escritor também pode fazer uso de elementos do seu próprio cotidiano para tornar sua narrativa crível aos olhos do leitor. Por mais interessante que seja identificar o lastro cultural do ribeirinho na prosa de Engrácio, nosso foco recairá em outro personagem: o literato. Como veremos no decorrer desse artigo, essa figura pertence a um universo bem peculiar que também está conectado a trajetória do próprio autor. Lembremos que Engrácio migrou para Manaus para concluir seus estudos. Ele conseguiu entrar na prestigiosa Faculdade de Direito do Amazonas, mas largou-a antes de se formar. Nesse momento, de acordo com seus depoimentos, já havia se enamorado pela literatura, enviando alguns sonetos e quadras para a imprensa local1. Posteriormente exercitou nesse mesmo espaço a crítica literária e o conto. Ingressou no movimento artístico responsável por introduzir de forma contundente o modernismo no Amazonas: o Clube da Madrugada. Ao lado de seus colegas clubistas ajudou a editar muitos suplementos culturais. Aliás, faleceu em 1997 ainda atuando na imprensa. Como a prosa de Engrácio se desenvolve em duas frentes, o conto e a ensaística, analisaremos as diferentes concepções de literatos que ele constrói em ambas. Utilizaremos aqui alguns contos presentes em Ajuste de Contos (1978) e Outras Estórias de Submundo (1988) e os artigos reunidos em A Berlinda Literária (1976) e Um Olho no Gato, Outro no Prato (1981). Uma ficção (quase) embriagada A divertida turma que frequenta o bar do conto Os Boêmios, do livro Outras Estórias de Submundo, distribui provocações a torto e a direito. Nem os transeuntes muito menos os colegas de copo estão imunes das pilhérias. Porém, o narrador esforça para poupá-los de qualquer julgamento negativo do leitor:

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ENGRÁCIO, Arthur. Poetas e prosadores contemporâneos do Estado do Amazonas: Súmula biobliográfica. Manaus: Universidade do Amazonas, 1994, p. 20. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Mas, todo boêmio é um puro, é um bom. Não brigam entre si nem se querem mal. As rusgas são passageiras. Os dramas e mágoas que atingem alguns deles acabam no bar. Ali eles se realizam, entrando pela noite, varando a madrugada. O tempo não conta para os boêmios, que o transformam num instrumento das suas conveniências pessoais. Felizes, despreocupados, são modestos, não tem ambição; não precisam de riquezas para conhecer outros mundos – no vapor do álcool mesmo viajam, engendrando sonhos, tecendo fantasias.2

Ora, se tal atmosfera é tão envolvente e criativa, porque Florisvaldo em Argumento de Boêmio esforça-se para sair dela? Segundo ele, grande apreciador de Marcel Proust, é preciso se afastar da boemia para que recupere o “tempo perdido”, para que finalmente produza algo (embora esse algo não fique suficientemente claro). Sua decisão incomoda o amigo Miguel, que tenta demovê-lo da ideia como pode. Finalmente Florisvaldo renuncia a seu retiro espiritual e mergulha em mais um porre homérico. Em outra época, Macedo, protagonista de A Interminável Ronda, seria um grande entusiasta de farras etílicas assim como Miguel. Mas no momento nem seus “magros vencimentos da repartição” nem sua nova disposição lhe permitem que se envolva em semelhante empreitada. Saturou-se, já, daquele ambiente. Das gozações sensaboronas do Machado, dos bêbados irritantes, dos falsos intelectuais querendo impor a sua filosofia barata. Quer fugir, enfim, da atmosfera baixa e poluidora tão típica dos bares! Há horas em que se desespera, sente vontade de explodir a sua revolta contra o mundo bandalho e enganador que o cerca.3

Macedo, “poeta e jornalista de méritos, com vários prêmios conquistados”, compartilha, então, do desejo de Florisvaldo de se afastar desse mundo. E, como o seu colega, não consegue largá-lo: toda noite senta na mesma cadeira e espera que algum amigo se ofereça para pagar uma rodada ou duas. Periandro, “modesto vendedor de livros”, não é um frequentador nato de botecos. Assim que somos apresentados a ele faz questão de deixar bem claro que é um trabalhador incansável. Saibam todos, de início: sou um rebelado com a vida. Antes já lhe dei algum crédito; hoje a desprezo. Saio de casa invariavelmente às seis da manhã para a luta com o mundo. E nos batemos como dois monstros anti-diluvianos. A princípio essas refregas não me arrefeciam o ânimo. Bom lutador, enfrentava os revezes da sorte com a impotência dos gladiadores romanos – o riso nos lábios, a arma sempre pronta para a estocada. Na arena da vida, se nem sempre triunfei, vendi muito cara a minha derrota.4

Se agora bebe um velho conhaque num bar qualquer é porque sua fibra de lutador não é mais a mesma depois de tantos anos. Observando o ambiente, Periandro pode divisar em suas 2

ENGRÁCIO, Arthur. Outras estórias de submundo. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1988, p. 174. ______. Outras estórias de submundo, p. 165. 4 ENGRÁCIO, Arthur. Ajuste de contos. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1978, p. 29. 3

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“memórias sem data” dois tipos de pessoas: as com problemas e as sem. Por mais simplória que essa classificação possa parecer ela aponta para o uso recreativo da boemia entre as classes mais abastadas. Até agora só a vimos como prazer profano de alguns pobres diabos, contentes ou não com isso. Na realidade o álcool já é encarado no universo engraciano como o mais elementar dos remédios para a ressaca de realidade que tantos personagens sofrem. Em seu livro de estreia, Histórias de Submundo (1960), o homem traído pela esposa, o pescador de jacarés que se lança a sua árdua tarefa, o seringueiro açoitado pelo patrão, todos esses personagens e alguns outros fazem uso da “marvada pinga”. Mas nos contos que abordamos aqui ela se torna a verdadeira base de um limbo existencial. Macedo e Periandro são atirados para esse local por conta de seu trato com a cultura letrada: um escrevendo e o outro vendendo livros. Este último quando reclama da dificuldade de vender obras em Manaus menciona dois casos que lhe fizeram ficar mais “rebelado com a vida” ainda. Primeiro, um “ex-jornalista, antigo colega de redação” que atualmente se encontra em uma ótima posição social, lhe humilha fazendo esperar por horas a fio na repartição apenas para dizer que não poderá lhe atender. Outro tipo, ignorantaço, a quem pretendi vender minha mercadoria, saiu-se com esta: não comprava os livros que lhe oferecia, porque já tinha livros em casa. A estante já estava cheia, já dava bem para enfeitar a sala...5

Os quatro contos elencados acima dão uma boa ideia da prosa engraciana: do ponto de vista formal inova muito pouco, mas tematicamente empreende uma ruptura com uma tradição local que negligenciava certos tipos sociais como o trabalhador interiorano e, no presente caso, o boêmio. Não é mais o homem massacrado pela natureza amazônica, como Euclides da Cunha consagrou em A margem da História e como seus epígonos na literatura amazonense e paraense reproduziram por anos a fio, que é o centro da narrativa. Encontramos nos contos de Engrácio homens sendo empurrados para becos sem saída por outros homens e, não raro, por si mesmos. Essa é também a percepção do escritor Márcio Souza quando analisa a obra engraciana: “O que ele quer é essa literatura com odor e suor; ele quer penetrar no silêncio amazônico que tanto envergonhara seus conterrâneos”.6 Quanto à estrutura narrativa, ela permanece extremamente lúcida e estável, ao contrário dos personagens que retrata. Nesse sentido, se assemelha ao livro Os Agachados (1985) do colega e 5 6

______. Ajuste de contos, p. 30. SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa Ômega, 1977, p. 197. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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também escritor Antísthenes Pinto, que mistura figuras reais e imaginárias em um relato objetivo sobre a boemia manauara. Por outro lado, Pinto em seus experimentos poéticos, próximos do concretismo, acaba retratando esse mesmo ambiente de uma forma muito mais caleidoscópica, como podemos verificar abaixo: Eu sou a rua pisada por mim. Luzes que não são as de que gosto desmancham o meu rosto. Ando com as pranchas do desgosto circulando os olhos em torno de mim. Árvores, virilhas, sobretudo choros me gritam e me emudecem. A rua aérea, a rua esquecida tal um cão machucado a rua do fim.7

Se Engrácio não chega a tentar criar uma linguagem embriagada, como Antísthenes Pinto o faz em sua poesia, é porque seu objetivo é outro. Muitos críticos tacharam a escrita simples e objetiva do escritor amazonense como sintoma de um autodidatismo falho. Talvez Antônio Cândido nos ajude a revisitar essa impressão. O crítico, quando se propõe a analisar as articulações entre produção artística e a posição social do artista, postula que no meio literário existam duas formas de arte. A primeira se inspira principalmente na experiência coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis. Procura, neste sentido, incorporar-se a um sistema simbólico vigente, utilizando o que já está estabelecido como forma de expressão de determinada sociedade. A segunda se preocupa em renovar o sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um número ao menos inicialmente reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da sociedade.8

Seguindo a classificação de Antônio Cândido podemos dizer que Arthur Engrácio se enquadra na primeira categoria. Assim, sua estilística deixa de ser enxergada como seu grande calcanhar de Aquiles para ser vista como condizente com sua opção pelo realismo crítico e popular. Aliás, o que demonstra sua sintonia com as próprias diretrizes do movimento cultural do qual participava. Das paredes da academia aos bancos da praça Em 22 de novembro de 1954, um grupo de estudantes e professores que já se reuniam há anos na Praça da Polícia para discutir Literatura fundou o Clube da Madrugada (CM). Pelo título da agremiação já se tem uma ideia do corte boêmio de seus membros. Proclamavam-se a necessária renovação da arte amazonense, que até então não tinha recepcionado o modernismo 7 8

PINTO, Antísthenes. Poesia reunida. Manaus: Puxirum, 1987, p. 107. CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2006, p. 33. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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contundentemente. Além disso, pregavam uma arte popular em contraponto ao que vinha sendo produzido num dos mais tradicionais circuitos da literatura local da época: a Academia Amazonense de Letras (AAL). A escolha da Praça da Polícia, espaço público e referência na sociabilidade cotidiana do manauara, como sede já indica uma crítica aos imortais barés que discutiam suas obras entre as quatro paredes de sua instituição. Em suas atitudes, os clubistas se aproximam da vanguarda modernista que debutou na imprensa nacional em 1922 com a Semana de Arte Moderna de São Paulo: pregam abertamente uma literatura que conjugue a contribuição da tradição artística internacional e os valores da terra e brincam o máximo que podem com os signos sagrados da cultura do bacharelismo em Manaus. Porém, sua produção literária se filia ao que vinha sendo produzido pela Geração Modernista de 1945, tradicionalmente identificada com um momento de revisão dos princípios esposados pelas gerações anteriores. Na década de 1950, graças a expansão do ideário desenvolvimentista e do fenômeno político do populismo, a intelectualidade brasileira também foi animada por um desejo de fomentar a proliferação de uma cultura eminentemente popular e nacional. Nos anos seguintes, a influência das esquerdas também foi essencial nessa redefinição do papel do artista. Renato Ortiz alega que se propagava uma visão de que a cultura popular (encarada como verdadeiro núcleo da brasilidade) possuía certa centelha transformadora que precisaria ser desvendada e divulgada pelos intelectuais, principalmente os literatos, para as demais pessoas com o intuito de convencêlas da necessidade de uma modernização nacional, em outras palavras, se livrar das amarras do imperialismo estrangeiro9. Com certeza, o Amazonas não esteve alheio a esse processo. O CM, por mais heterogêneo que fosse, apoiava explicitamente esse paradigma da arte compromissada. Alguns de seus membros nutriam enorme simpatia pelo programa trabalhista liderado inicialmente pelo advogado Plínio Coelho, que se tornou governador do Estado em duas oportunidades (de 1955 a 1958, sendo reeleito em 1963), e pelo funcionário público Gilberto Mestrinho, seu discípulo e sucessor (1959-1962). Histórias de Submundo, por exemplo, conta com uma dedicatória de Engrácio a Mestrinho. O padre Luiz Ruas, outro eminente clubista, ofereceu uma crônica ao mesmo personagem com o sugestivo nome de “O homem e a luz”10. A que se deve tanto entusiasmo pelo trabalhismo? Ora, seu discurso de valorização do trabalhador urbano e sua estratégia política de se aliançar com movimentos sociais antes 9 ORTIZ, 10

Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012, p. 71. RUAS, Luiz. Linha d’água. Manaus/ Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Amazonas/ Editora Arte Nova, 1970, p. 88. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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negligenciados pelo viciado jogo partidário local (concentrado nas mãos de uma pequena oligarquia comercial) podiam representar uma chance de inovação, semelhante ao que o CM se propunha a fazer na esfera da arte. Há também outro possível motivo, para além da expectativa de uma possível mudança: o trabalhismo como fenômeno político criado por Getúlio Vargas e consagrado por seu partido, o Partido Trabalhista Brasileiro, pautava-se pela distribuição de medidas que privilegiassem o trabalhador urbano, mas sua principal base partidária se encontrava nas classes médias, também beneficiadas por seus projetos. Sobre a origem social dos clubistas Jorge Tufic e Elson Farias, poetas e memorialistas do grupo, são unânimes em afirmar que basicamente a maioria pertencia à classe média emergente11. O entrelaçamento entre a esfera simbólica e social já é um dado tranquilo entre os debatedores da questão intelectual. Para Antonio Gramsci, não se deve procurar a definição do “homem de cultura” na distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual porque essas são dimensões básicas na vida de todos; assim, o mais adequado seria apresentar esse personagem como uma categoria especializada histórica e socialmente para exercer uma função intelectual.12 Analisando as origens do termo (que remontam à Rússia pré-revolucionária), Norberto Bobbio identifica já em sua raiz uma ligação com o poder: “intelligentsia” era uma palavra que assumia a conotação de verdadeira oposição aos desmandos czaristas, amparada pela razão.13 “Fração dominada dos dominantes”: a expressão de Max Weber é reutilizada por Pierre Bourdieu para demarcar bem a posição que os intelectuais ocupavam na sociedade. Valendo-se da noção de poder simbólico como dimensão essencial e não mero complemento do poder material, Bourdieu também defende que esse conjunto de atores sociais não é apenas um antagonista da classe dirigente, como a acepção primeira da palavra queria14. Tanto legitimam projetos políticos vigentes como defendem outros alternativos. Sua condição ambígua, entre os “dominados” e os “dominantes”, justificaria posturas mais próximas do povo ou das elites. Mas para o sociólogo francês não se deve desconsiderar as particularidades desse ambiente. O grau de complexidade que a sociedade contemporânea conquistou permite que eles possam delinear os contornos de seu campo de atuação e definir os critérios de participação (o habitus) e os temas em pauta. Nesse mundo relativamente autônomo, uma vez que não pode se TUFIC, Jorge. Clube da Madrugada: 30 anos. Manaus: Imprensa Oficial, 1984, p. 47; FARIAS, Elson. Memórias literárias. Manaus: Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas/ Uninorte, 2006, p. 65. 12 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: intelectuais, o princípio educativo, jornalismo. V. 2. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco A. Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 18. 13 BOBBIO, Norberto. Intelectuais e poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Trad. Marco A. Nogueira. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p. 121-122. 14 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 14ª ed. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 12. 11

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desprender das pressões sociais e políticas, existem lutas por posições privilegiadas. Indivíduos e grupos lutando para serem reconhecidos como autores consagrados e correntes hegemônicas15. Bourdieu credita essa conquista dos intelectuais de uma independência dissimulada à secularização e à expansão do ensino público na França do século XIX que permitiu a formação de um ávido público consumidor de cultura16. Gramsci alega que a ascensão do intelectual moderno (e relativamente autônomo) se deu com “o enorme desenvolvimento obtido pela atividade e pela organização escolar (em sentido lato) nas sociedades que emergiram do mundo medieval”.17 Acrescenta que por conta das atribulações na unificação italiana, seu país ainda necessita de uma modernização capaz de extinguir os intelectuais tradicionais, atrelados visceralmente a uma velha ordem senhorial. No Brasil, Sérgio Miceli elegeu o período entre 1870 e 1930 como essencial para a configuração do intelectual como profissional. Segundo Rebeca Gontijo, a grande novidade de seu estudo antológico foi revisitar uma geração negligenciada por autores anteriores que tinham os modernistas em alta conta e por isso pouco falaram sobre os “pré-modernistas”. E o fez através de um viés interpretativo onde “a origem social e as mediações de gênero constituíam forças determinantes na orientação de carreiras e da produção dos intelectuais”.18 Por meio de uma pesquisa minuciosa em memórias, biografias, jornais, entre outras fontes, Miceli faz um levantamento da filiação social desses intelectuais que acusa seu vínculo com as oligarquias decadentes da República Velha. Em outros termos, o acesso à posição de escritor aparece, nessa conjuntura, como o produto de uma estratégia de reconversão que se impõe por força do desaparecimento do capital de que a família dispunha outrora, ou ainda pela impossibilidade de herdar esse capital em toda a sua extensão.19

Para o autor de Intelectuais e Classe Dirigente, os membros da chamada Geração de 1870 transitavam numa zona intermediária entre política e cultura, abraçando grandes causas como o republicanismo e o abolicionismo. Porém, os artistas que vieram em seguida agiram para profissionalizar a produção literária atuando exclusivamente na imprensa diária. Posteriormente, com o desenvolvimento da burocracia estatal a partir de 1930, eles também preencheram muitas vagas no funcionalismo público.

15

______. A economia das trocas simbólicas. Trad. e org. Sérgio Miceli. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 190. ______. A economia das trocas simbólicas, p. 100. GRAMSCI. Cadernos do cárcere, p. 19. 18GONTIJO, Rebeca. História, cultura, política e sociabilidade intelectual. In: BICALHO, Maria Fernanda; GOUVEIA, Maria de Fátima; SOIHET, Rachel (Orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2005, p. 269. 19 MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 23. 16 17

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Daniel Pécaut não nega que a imprensa e a administração estatal foram importantes esferas de construção do meio literário brasileiro, mas critica a visão essencialmente classista de Miceli. Em substituição à noção de interesse20, Pécaut utiliza a ideia de missão, enfatizando o lado político e doutrinário na escolha pelo exercício intelectual. O pesquisador francês também questiona a tese de Miceli de que a especialização do ofício literário se deve unicamente a uma mobilidade decadente, a uma tentativa de reconversão de status por oligarquias enfraquecidas21. O grande mérito do trabalho de Pécaut é apontar o relacionamento ambíguo mantido por diferentes gerações intelectuais para com o povo identificado ora como espírito nacional ora como contingente populacional à espera de uma ideologia própria. Mas seu estudo também carrega alguns problemas: ele encaminha, por exemplo, para conclusão de que os diferentes grupos intelectuais nacionais no decorrer de um extenso espaço de tempo tenham conservado quase a mesma matriz de pensamento22. E no que tange ao Amazonas? O que podemos dizer desse processo no âmbito regional? Maria Luiza Ugarte Pinheiro em sua pesquisa sobre o periodismo manauara ressalta que a cultura letrada começou a expandir seu domínio no Amazonas por meio da instalação da província em 185023. A criação de estabelecimentos de ensino, de uma biblioteca pública e de uma imprensa oficial passou por um esforço de aparelhar burocraticamente a região. Marco Aurélio Paiva analisando a formação de um cânone literário amazônico sugere que o Amazonas tenha passado por uma situação semelhante à descrita por Miceli. No caso, as oligarquias comerciais urbanas que cresceram com a exploração extrativista ainda em meados do século XIX foram escamoteadas com a preferência do mercado internacional pelas plantações asiáticas após 191024. Não é por acaso que as primeiras iniciativas intelectuais de grande porte emergem nesse contexto: a Academia Amazonense de Letras e o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). O médico Djalma Batista foi um dos mais incansáveis defensores da renovação artística local. Justificava sua importância perante aos governantes lembrando que um plano de valorização econômica da Amazônia capaz de retirar a região da crise econômica que se Sérgio Miceli toma esse conceito emprestado de Pierre Bourdieu, que o define como anseio de atingir uma situação socialmente confortável. O interesse seria o desejo de ser bem sucedido nos diferentes campos em que os agentes sociais se inserem. Claro que cada campo carrega em si uma ideia de sucesso bem particular (BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise M. Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 127). 21 PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1990, p. 21. 22 GONTIJO. História, cultura, política e sociabilidade intelectual, p. 270-271. 23 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1880-1920). Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em História, São Paulo, 2001, p. 40-44. 24 PAIVA, Marco Aurélio Coelho de. A conquista intelectual do Amazonas (1900-1930). Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras, São Paulo, 2000, p. 4648. 20

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encontrava após o ocaso da borracha só poderia ser construído por uma elite intelectual nativa25. Com suas palavras manifesta o descontentamento das oligarquias locais para com o governo federal que tanto durante a República Velha quanto no Estado Novo produziu medidas ineficientes de resgate da pujança financeira do Amazonas. Ou seja, a intelectualidade podia representar tanto um investimento particular de redenção simbólica para as famílias decadentes como um investimento coletivo de redenção econômica da região. Como Manaus ainda era um centro intelectual insipiente e periférico, as estratégias de consagração intelectual passavam pelo aval dos grandes nomes da “república das letras” no Rio de Janeiro e em São Paulo. Para Paiva, a trajetória de Péricles de Moraes, crítico e ardoroso defensor da AAL, que ajudou a fundar em 1918. Já possuidor de uma importância significativa no meio literário regional ao longo dessa década de 1930, Péricles Moraes tentou firmar-se como referência da crítica literária nortista e romper os estreitos limites provincianos de uma vida intelectual pouco dinâmica ao trilhar pela via estratégica de uma relativa aproximação, ainda no curso da década de 1920, com o então escritor laureado Coelho Neto, de quem, aliás, chegou a produzir uma pequena biografia publicada em 1926.26

Mas as décadas de 1950 e 1960 tornam o quadro muito mais complexo: novos personagens e novas armas entram em cena. Não é apenas uma classe média emergente que dá as caras nesse momento. Mais que isso: são sujeitos históricos que veem suas pretensões intelectuais barradas pelo hermetismo das instâncias de consagração local, a saber, a AAL e o IGHA. A maioria dos clubistas teve algum dos imortais como professor (e ídolo) e inclusive organizaram agremiações estudantis em seus colégios aos moldes da Academia. O mais interessante é que esses jovens transformaram as desvantagens de sua condição em vantagens: renegados à pecha de simples boêmios fizeram da praça e dos bares suas tribunas e fundamentaram essa ação simbólica com referenciais intelectuais consagrados nos grandes centros culturais do país naquela altura, como o modernismo e o paradigma de arte compromissada e popular. Quanto às suas armas, Arcângelo da Silva Ferreira indica que “os cavaleiros de todas as madrugadas” (assim se tratavam os clubistas) entre 1957 e 1964 infiltraram-se no mass media, ou seja, nos principais meios de comunicação que a modernidade agora oferecia ao Amazonas:

BATISTA, Djalma. Amazônia: cultura e sociedade. 3ª ed. Manaus: Editora Valer, 2006, p. 90. PAIVA, Marco Aurélio Coelho de. O papagaio e o fonógrafo: os prosadores de ficção na Amazônia. Manaus: Fundação Universidade do Amazonas, 2010, p. 98. 25 26

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conquistaram um programa radiofônico, um suplemento dominical nos principais jornais, sem contar as filmagens por jovens realizadores de cinema de algumas de suas iniciativas27. Tal momento de expansão do CM coincidiu com o período em que o jornalista e escritor Aluísio Sampaio assumiu a presidência da entidade28. Formado em Direito pela faculdade local e oriundo de família tradicional, podemos supor que Sampaio desfrutasse de uma poderosa rede de contatos29. Afinal, é por seu intermédio que a família Archer Pinto concorda em conceder um espaço para o CM em seu jornal30. Espaço esse que completaria dez anos de duração em 1971. Sob seu mandato também foram “outorgados” os Estatutos do Clube da Madrugada. A obra de Arthur Engrácio é publicada justamente num período em que a intelectualidade amazonense se encontra polarizada. A crítica em Manaus, como destaca tanto Narciso Lobo quanto Ediney Azancoth e Selda Vale, era um “exercício de amigos”31. Assim sendo, Histórias de submundo e os demais contos publicados na imprensa diária no decorrer da década de 1960 são avaliados ora pelos colegas de CM ora pelos senhores da AAL. Estes animados ainda pelo espectro de Péricles de Moraes, cultor do virtuosismo, e aqueles tentando aliar sua formação clássica com seus ideais modernistas. O autor resiste à desqualificação que alguns lhe imputam cercando-se da apreciação crítica de personalidades de renome nacional, como Assis Brasil, Nelson Werneck Sodré e Mário Faustino. Cada edição de seus livros vem carregada desses fragmentos elogiosos. Por que encontramos pouca menção à avaliação de seus amigos do CM? Talvez porque tenha medo que o grau de imparcialidade desses julgamentos seja contestado. A tensão entre certos representantes de uma tradição acadêmica e erudita e a proposta popular de Engrácio é latente. Esses seus interlocutores não declarados são também o Outro de seus personagens do ciclo boêmio: são os poderosos amigos de Macedo que lhe tratam hoje com indiferença apesar de seu valor artístico, são a tribo dos “sem problemas” que Periandro cataloga em sua etnografia de botequim. Um dos argumentos utilizados por Miguel para impedir que seu 27

FERREIRA, Arcângelo da Silva. Na vaga claridade do luar: movimento Madrugada (1954-1964). Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura) - Universidade Federal do Amazonas, Programa de Pós Graduação em Sociedade e Cultura, Manaus, 2006, p. 76. 28 TUFIC. Clube da Madrugada, p. 34. 29 Engrácio em verbete biográfico revela que Sampaio além de pertencer ao CM, também era membro do IGHA (ENGRÁCIO, Arthur. Antologia do novo conto amazonense. 2ª ed. Manaus: Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas/ Editora da Universidade do Amazonas/ Uninorte, 2005, p. 39). 30 O Suplemento Madrugada n’O Jornal foi editado, entre outros, por Arthur Engrácio (ENGRÁCIO, Arthur. Antologia do novo conto amazonense. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1971, p. 43). 31 Ainda que seus estudos digam respeito respectivamente à crítica cinematográfica e teatral, também consideram a seara da crítica literária bem circunscrita (LOBO, Narciso Júlio Freire. A tônica da descontinuidade: cinema e política em Manaus dos anos 60. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1994, p. 35-36; AZANCOTH, Ediney; COSTA, Selda Vale. Cenário de Memórias: movimento teatral em Manaus (1964-1968). Manaus: Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas, 2002, p. 178). Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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amigo renuncie aos prazeres etílicos é de que ao fazer isso ele acabe se tornando um “dândi aburguesado”32. Logo, o pedantismo é desprezado pelo boêmio de fato, afinal ele é um puro e como tal não quer ostentar falsa erudição. Uma crítica sóbria Comecemos com uma questão: o que faz de Álvaro Lins um dos maiores críticos do Brasil, na opinião de Arthur Engrácio? O próprio responde: “A ampla cultura literária e o senso de sobriedade”33. Em artigo de 1959, o autor de Histórias de submundo sai em defesa de Lúcio Cardoso e seu livro, Crônicas da casa assassinada, que ganhou uma avaliação negativa do escritor Olívio Montenegro. Para Engrácio, essa crítica era inválida porque o autor tinha se apegado demais “(...) ao aspecto ético da obra, desprezando o estético, na verdade, o único que conta na apreciação de uma obra de arte”34. Com isso podemos imaginar que Arthur Engrácio sentia-se habilitado como crítico por perseguir os princípios da erudição e da objetividade, presentes em Álvaro Lins e ausentes em Olívio Montenegro. Ao desqualificar os versos de V. J. Magalhães Arnaud no polêmico artigo Literatura versus literatice, escrito em 1955, ele nos oferece sua visão do que considerava um exercício válido de poesia: “Lembre-se, bravo poeta, que a poesia é, antes de tudo, a manifestação do Belo. É uma arte que, como tal, requer para o seu culto não um remendão, mas um artista autêntico”.35 Ora, o conceito-chave dessa passagem é o Belo, noção estética platônica que concebia a obra de arte ideal aquela que reunisse visíveis valores emocionais e morais. Natural então que ele reaja com certa virulência contra o movimento literário concretista, que ameaçava abalar essa estrutura tradicional com suas inovações formais: “Implantando uma espécie de ditadura nas letras, sobre as quais passaram a exercer a mais severa vigilância, os adeptos da nova e já decadente corrente literária (...) não admitem Arte senão a trabalhada pelo pomposo figurino concretista”.36 A defesa de uma arte classicista perante os pseudo-literatos e os concretistas nos leva a crer que Engrácio era um grande devedor da cultura humanista que tanto estimavam os circuitos intelectuais do início do século XX. Ou ao menos buscava se afirmar como tal. Sobre esse ponto, Allison Leão sugere que o escritor amazonense estava sujeito a uma dupla solicitação:

ENGRÁCIO. Outras estórias de submundo, p. 77. ______. A berlinda literária. Manaus: Prefeitura Municipal, 1976, p. 11. 34 ______. A berlinda literária, p. 103. 35 ENGRÁCIO. Um olho no gato outro no prato. Manaus: União Brasileira dos Escritores- Seção Amazonas, 1981, p. 126. 36 ENGRÁCIO. A berlinda literária, p. 149. 32 33

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Como dar conta de um ‘universalismo’ que o credencie a estar no ‘mundo’ da literatura – o que se conhece, com todos os preconceitos e referências hegemônicas, como literatura universal – e ao mesmo ter um capital de diferença que o torne único nesse mercado de identidades.37

Quando o escritor Benjamin Sanches decide se aventurar por experimentalismos formais em seu livro O outro e outros contos (1965) Engrácio louva-o pela coragem e dedicação, mas cobra a “outra parte do ‘material’”: a construção de uma história crível e com personagens densos38. Eis uma de suas reclamações mais constantes no que concerne aos romancistas e contistas. Em outra oportunidade tenta explicar essa deficiência em face da falta de maturidade político-administrativa que o Amazonas desfrutava, diferente do Pará que já podia se orgulhar de ter muitos romancistas e contistas de envergadura como Dalcídio Jurandir e Abguar Bastos39. Djalma Batista concordaria com ele. No longo diagnóstico que faz sobre a crise da arte amazonense na segunda metade da década de 1950 enumera uma série de razões preocupantes que consolidam esse cenário desanimador: a migração desenfreada para o Sul e Sudeste do Brasil, os cabides empregatícios na burocracia estadual, a falta de aperfeiçoamento e a baixa remuneração dos professores e o ensino familiar lascivo (ele se refere aqui ao hábito de ler gibis em detrimento dos romances)40. Aos seus olhos, o Estado deveria intervir nessa seara organizando conferências, exposições, galerias e concursos literários. Em seus ensaios Engrácio sempre constata que há um ambiente desfavorável para a criação literária, numa campanha similar à de Djalma Batista para atrair a atenção dos quadros que entendia como capazes de realizar alguma mudança nesse status quo. Chamamos a atenção para o seguinte trecho de um de seus textos: Acutilada e desprestigiada, muitas vezes a literatura amazonense compara-se à ave da lenda cujo vigor e exuberância aumentavam à medida em que ela renascia das cinzas (...). Como o pobre – no dito popular -, o escritor amazonense vive de teimoso que é.41

Há uma dupla comparação aqui: a literatura está para a fênix enquanto o escritor está para o pobre. Insinua com isso que a literatura amazonense, embora sempre ameaçada pelo esquecimento, possui uma essência nobre, bem como seu humilde e desvalorizado servo, o literato. Afinal, se seu ímpeto não se perde diante da injusta situação da qual é vítima é porque ele reconhece o valor de sua função. O que exige dos escritores que analisa é a conjunção entre habilidade e devoção ao ofício. Ou seja, o verdadeiro escritor deve ser como o verdadeiro boêmio: um puro. LEÃO, Allison. Amazonas: natureza e ficção. São Paulo: Annablume, 2011, p. 161. ENGRÁCIO. A berlinda literária, p. 41. 39 ______. A berlinda literária, p. 73. 40 BATISTA. Amazônia, p. 82-86. 41 ENGRÁCIO. A berlinda literária, p. 85. 37 38

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Fica patente nos ensaios de Engrácio que se por um lado o Amazonas necessita de uma série de iniciativas extraliterárias, ou seja, a construção de uma política cultural capaz de conferir sustentabilidade ao ofício do escritor, por outro lado o desenvolvimento desse campo também depende de um exercício incansável daqueles que o integram. Como a crítica, nos moldes de um Álvaro Lins. Afinal: A necessidade de uma crítica criteriosa e imparcial em nosso meio literário é imprescindível, tanto mais quando se verifica que nesses últimos tempos um chorrilho de pseudo intelectuais tem surgido, assinando aqui e ali, nos jornais da capital, ajuntamento de parvoíces a que chamam pomposamente de crônica, conto, artigo, poesia e quejandos.42

Portanto, a crítica, quando sóbria e bem exercida, oferece uma forma de aperfeiçoamento da produção contemporânea e de regulação de uma expansão vindoura. Ela aponta as “parvoíces”, garantindo a purificação da comunidade cultural. A função que Engrácio atribui à crítica nos permite entender mais claramente porque Bourdieu credita à formação do campo artístico o caráter de um fechamento: (...) O processo conducente à constituição da arte enquanto tal é correlato à transformação da relação que os artistas mantêm com os nãoartistas e, por esta via, com os demais artistas, resultando na constituição de um campo artístico relativamente autônomo e na elaboração concomitante de uma nova definição da função do artista e de sua arte.43

Assim, Engrácio se oferece para lapidar talentos brutos e desmascarar charlatões, os “tipos ignorantaços” que povoam os contos já analisados. Dessa vez ele não se esconde atrás de um alter ego relativamente popular, como faz nos contos. Isso porque a crítica literária possui exigências e procedimentos diferentes da ficção. Quando o autor se propõe a analisar seus pares, ele busca se revestir de um manto de erudição. Ora, isso aponta para uma curiosa contradição: na prosa de ficção, Engrácio almeja a integração, conquistar para a literatura leitores de camadas sociais menos favorecidas, enquanto na apreciação crítica estimula a depuração da esfera literária, demarcando bem as fronteiras entre leitor e escritor. Aliás, o CM também guarda incoerências não muito diferentes. Dos bancos da praça aos gabinetes do palácio Parece que o CM conseguiu impactar de certa forma a sociabilidade de parte dos cidadãos de Manaus. Afinal seus saraus, concertos e feiras de artes plásticas eram realizados em logradouros públicos de ampla circulação. Quando festeja o amplo alcance de um desses eventos, Jorge Tufic acaba por denunciar duas coisas: o método e o objetivo dessa atração.

42 43

______. A berlinda literária, p. 123. BOURDIEU. A economia das trocas simbólicas, p. 101. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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As feiras de arte nos deram uma prova inequívoca do interesse da grande massa pelo trabalho dos nossos artistas, atraindo milhares de pessoas que, de repente, se viam diante de uma ‘coisa’ estranha, a que, decerto não estavam habituadas, mas capaz de produzir a satisfação de um intercâmbio de valores entre o gosto popular e a experiência criadora.44

O estranhamento cativa o transeunte e com isso lhe apresenta o maravilhoso mundo da arte. Percebam que o intercâmbio se dá entre posições bem definidas: “experiência criadora” e “gosto popular” referem-se respectivamente à produtores e consumidores simbólicos. As feiras bem como as oficinas estão comprometidas mais com um projeto de construção de sensibilidades que um diálogo propriamente dito. Seu programa, Dimensões, na Rádio Rio-Mar transmitia basicamente música clássica ao lado da agenda cultural da semana45. Estamos falando de uma ação educativa, de uma tentativa de incutir na população saberes e práticas do mundo artístico. Saberes e práticas que os clubistas entendiam como essenciais para o exercício de uma cidadania plena. Saberes e práticas eruditas. Bourdieu quando trata da habitual oposição entre “erudito” e “popular” insere um terceiro elemento nessa equação: a indústria cultural. Para ele, o campo erudito seria pautado por códigos constituídos pelos produtores simbólicos e que exigiam consumidores afeitos a esses códigos, enquanto a industrial cultural se define pelas leis do mercado, pelo desejo de alcançar um público indiferenciado46. Por um lado, fatores internos ao campo artístico influenciam a demarcação do “erudito” e, por outro, fatores externos formam o que entendemos como “indústria cultural” ou “arte média”. No entanto, isso não impede que tenham algo em comum: tanto um quanto outro valorizam a técnica e a divisão do trabalho simbólico (o objetivo implícito de produzir arte para apreciadores qualificados e arte para as “massas” carrega em si a noção de que existem emissores e receptores autorizados). E quanto ao “gosto popular”? Segundo o sociólogo francês “é difícil descrever em termos positivos a ‘estética’ que se exprime através das preferências ou das práticas das classes mais desprovidas de capital cultural, porque esta estética em si (e não para si) está fundada muito mais em uma privação do que uma recusa”.47 Refere-se aqui à relação estabelecida entre consumidores populares e obras eruditas. O que não significa que o campo popular seja ausente de signos e códigos próprios; ele certamente os tem, embora não sejam tão rígidos quanto os do campo erudito48. Com efeito, a maior crítica feita aos artistas que se entendiam como vanguarda estética

TUFIC. Clube da Madrugada, p. 31. ______. Clube da Madrugada, p. 52. 46 BOURDIEU. A economia das trocas simbólicas, p. 116/ 136. 47 BOURDIEU. A economia das trocas simbólicas, p. 286. 48 ______. A economia das trocas simbólicas, p. 144. 44 45

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e política do povo nas décadas de 1960 e 1970 basicamente versa sobre essa recusa à potência criadora da cultura popular, encarando-a como matéria bruta49. No caso do CM, o apreço pela cultura humanista e classicista, talvez fruto da formação de seus próceres nos tradicionais centros de estudo de Manaus (como o Colégio Estadual do Amazonas e o Colégio Dom Bosco), costuma ser ofuscado pela irreverência e a informalidade da conduta dos clubistas. Com certeza a proposta de atualização da arte amazonense ao credo modernista bastou para manter uma rivalidade com a AAL, porém existia um diálogo entre as duas entidades: Elson Farias lembra que o desembargador André Araújo e o médico Djalma Batista, membros da Academia, estimulavam a produção dos clubistas50. Estes senhores e seus jovens interlocutores compartilhavam o gosto pela tradição literária francesa e a meta de profissionalizar o ofício do escritor na cidade. Como falecimento de Péricles Moraes em 1956, a presidência da AAL passa por muitos nomes, incluindo o de André Araújo, antes de chegar ao desembargador Leôncio Salignac e Souza. Seu vice-presidente, Djalma Batista, será seu sucessor no comando do silogeu e será sobre seu mandato (1967-1973) que dois clubistas serão eleitos imortais: Elson Farias e Jorge Tufic 51. É possível que AAL e CM tenham superado suas divergências em prol da modernização do meio cultural local, mas também há de se levar em consideração a hipótese de que atingida a tão sonhada consagração com as hábeis estratégias de Aluísio Sampaio, a rebeldia dos cavaleiros de todas as madrugadas tenha perdido sua razão de ser e por isso arrefecido o suficiente para admitir dois de seus membros na academia. Afinal, os clubistas tanto quanto os imortais prezavam pelo cultivo de um cabedal literário de porte. Outro dado interessante: após Aluísio Sampaio se revezar por anos na presidência do Clube, é o jovem estudante de Direito e escritor Francisco Vasconcelos que ocupa seu posto a partir de 196452. Este afirma em depoimento à pesquisadora Luciane Páscoa que encontrou limitações em seu mandato não somente por conta da atmosfera de insegurança que o golpe de 1964 instaurou, mas também pela atitude de parte dos clubistas53. Um bom exemplo disso está na reação à reforma estatutária: Vasconcelos alterou as disposições do Estatuto de forma a facilitar a admissão de novos membros, em sua maioria jovens artistas como Carlos Gomes, Márcio Souza,

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 23-24. 50 FARIAS. Memórias literárias, p. 127/133. 51 BATISTA, Djalma. Lições do cinquentenário. Revista da Academia Amazonense de Letras. n. 12, Manaus, jul. 1968, p. 9-10. 52 Vasconcelos na época trabalhava como bancário e transitava entre a União Nacional dos Estudantes e movimentos de esquerda (ENGRÁCIO. Poetas e Prosadores Contemporâneos do Estado do Amazonas, p. 50). 53 PÁSCOA, Luciane. As artes plásticas no Clube da Madrugada. Manaus: Editora Valer, 2011, p. 133-135. 49

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Ernesto Renan Freitas Pinto e Hanneman Bacellar. Contudo, tal fato originaria uma “grande cisão” no interior do CM: Essa reforma consistiu na redução de três para duas sessões consecutivas, com 2/3 dos sócios, para votar nos candidatos. Clube, movimento, atmosfera, seu único defeito parecia estar nesse dispositivo legal. Resultado: os que estavam dentro ficaram e até envelheceram. E os que estavam de fora, na sua grande maioria, foram impedidos de entrar. A estes caberia a iniciativa de oposição iniciada nos anos 70, já fato notório de um choque de gerações, o que, de outro modo, poderia ocorrer dentro de um clima menos agitado e construtivo.54

O que podemos entender na passagem acima é que não houve maior esforço dos demais clubistas para se cumprir a nova determinação e com isso permitir a entrada de novos sócios. Esse episódio revela a pressão de uma fração do grupo para que ele se institucionalize, uma vez que sua batalha pelo reconhecimento foi bem sucedida na década anterior. Por que adotar mais membros? Seja como for, o conflito interno resultou na saída de muitos outros clubistas consagrados da entidade. Estes fundaram em 1966 a Seção Amazonense da União Brasileira dos Escritores (UBE-AM). Importante frisar que o regime instaurado em 1964 representou ao mesmo tempo uma barreira e um estímulo ao projeto do CM. Nos primeiros momentos da “Redentora”, quando irrompem as delações e perseguições, muitos clubistas foram interrogados e alguns até presos como o padre Luiz Ruas que aproveitou a estadia na cadeia para traduzir Uma Temporada no Inferno de Arthur Rimbaud55. Pairava no ar a acusação de comunistas. Com a indicação do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis como governador a situação começa a mudar: o próprio intelectual concede ao CM banquetes em sua nova residência, o Palácio Rio Negro. Reis publica ainda alguns de seus livros pelas Edições do Governo do Amazonas e convida elementos expressivos do Clube para trabalhar na administração pública56. As ações do historiador estão longe de serem atos de benevolência isolados. Muito pelo contrário: o ensaio de política cultural de Arthur Reis está sintonizado com as diretrizes que a nova ordem começava a delinear. São fundadas entidades governamentais (como o Conselho Federal de Cultura) com o objetivo de fomentar uma produção artística tutelada pelo Estado e livre de influências esquerdistas57. Entre 1964 e 1970, vemos uma quantidade expressiva de clubistas participarem das políticas públicas: Jorge Tufic fez parte do Conselho Estadual de Cultura e Elson Farias foi o TUFIC. Clube da Madrugada, p. 56. FARIAS. Memórias literárias, p. 67. 56 FARIAS. Memórias literárias, p. 108. 57 ORTIZ. Cultura brasileira e identidade nacional, p.83-84. 54 55

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primeiro presidente da Fundação Cultural do Amazonas58. O emprego garantia uma estabilidade invejável, mas também permitia que tentassem autonomizar o meio artístico amazonense. Claro, os obstáculos eram enormes. O lado nada aprazível da normatização da arte engendrada pelos militares era a censura, com a qual os “cavaleiros de todas as madrugadas” esbarraram diversas vezes. Além disso, a indústria cultural chegava à Manaus instituindo uma concorrência desleal para com os valores da terra: o impacto da televisão, segundo Márcio Souza, foi marcante e logo adestrou os “gostos” de uma ampla parcela da população59. Nesse quadro, nem todos os clubistas conseguiram aproveitar as poucas brechas abertas pelo ensaio de política cultural de Arthur Reis e seus sucessores. Arthur Engrácio é um bom exemplo. Partidário dos líderes trabalhistas que tanto incomodaram as oligarquias conservadoras da cidade, o escritor tornou-se persona non grata pela administração pública local após zombar de um dos governadores biônicos, como informa seu colega José Ribamar Mittoso: “Fez humor com a ditadura e foi retirado da redação de um jornal por uma tropa de choque, sob o riso de alguns colegas”.60 Na trajetória dos principais elementos do Clube podemos enxergar uma linha de raciocínio semelhante à de Florisvaldo: a boemia é realmente um lugar criativo e atraente, mas é preciso sair dela para realizar algo produtivo. Florisvaldo não sai da fase do planejamento, mas os clubistas aqui mencionados sim. Eles realizaram dentro do limitado espaço que dispunham uma tentativa de profissionalização do escritor, algo que os levara até mesmo a se aproximarem da AAL. Acrescente a isso também certa dose de interesse, tal como as interpretações de Miceli e Bourdieu postulam. E quanto à Engrácio? Ele bem poderia encarnar Macedo, um intelectual injustiçado. Mas claro que essa é uma associação demasiadamente livre e, por isso mesmo, frágil. Engrácio conquistou um espaço confortável como jornalista e crítico literário, algo muito longe da situação de penúria do protagonista de A Interminável Ronda. Considerações finais ou a “saideira”

Criado em 1967, o Conselho Estadual de Cultura em sua primeira formação era composto por Álvaro Páscoa (CM), Abdul Sá Peixoto, André Araújo (AAL/IGHA), Carlos Eduardo Gonçalves, Djalma Batista (AAL/IGHA), Djalma Melo, Genesino Braga (AAL), Jorge Tufic (CM), Maria José Moraes Lima, Mário Ypiranga Monteiro (AAL/IGHA), Samuel Benchimol (IGHA) e Severiano Porto (Revista da Academia Amazonense de Letras, Manaus, n. 12, jul. 1968, p. 204). A Fundação Cultural do Amazonas, por seu turno, foi criada no ano seguinte como resultado das discussões do Seminário de Revisão Crítica da Cultura Amazonense, realizado em setembro de 1967 (FARIAS. Memórias literárias, p. 110-111). 59 SOUZA. A expressão amazonense, p. 169. 60 MITTOSO, José Ribamar. Os artistas de março: um movimento artístico amazônico. Manaus: Editora Gens da Selva, 2004, p. 179. 58

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Em Manaus a associação entre escritor e boêmio tem uma conotação especial, como vimos. Foi defendendo uma atitude irreverente e informal, típica do ambiente boêmio, que o CM se situou como movimento renovador da arte amazonense. Porém, os “cavaleiros de todas as madrugadas” tinham um projeto de transformação cultural que implicava a participação tanto do povo quanto da classe dirigente. No entanto, não conseguiram dar prolongamento a seus planos coletivos, á sua missão, embora seus projetos individuais, incluindo aqui os de mobilidade social tenham sido coroados em muitos casos. Com certeza Engrácio se aproveita de toda essa experiência para denunciar os problemas estruturais da literatura amazonense em seus artigos e para constituir a atmosfera dos seus contos. Sua prosa está endereçada ora a seus pares, ora a uma fração menos favorecida da sociedade amazonense. Uma fração que ele pretende representar nos contos, mas da qual se afasta no exercício da crítica literária. Se movendo entre a integração e a diferenciação, Arthur Engrácio exemplifica muito bem não só as ambiguidades do movimento cultural de que fez parte, mas da própria condição do intelectual. O autor de Histórias de Submundo também é um lutador, como Periandro. Sua atuação nos suplementos literários, seja editorando ou analisando a obra dos novos talentos regionais, indica muito bem esse compromisso com a evolução do meio literário amazonense. E como o protagonista de Memórias Sem Data de Periandro, também não resiste ao movimento incansável do tempo. Na década de 1970, após vinte anos de agitação cultural, publica seus “contos boêmios” e neles fica perceptível um tom melancólico. Talvez as palavras de Periandro e Macedo em alguns momentos possam ser também o desabafo de um autor cansado. O rol da fama se encontra aberto aos charlatões e os verdadeiros devotos da “grande arte” se encontram na penumbra de algum bar mordiscando petiscos. Eis o fundo melancólico (e moralista) desses contos: o mundo está de pernas para o ar e, a dizer pelos últimos goles, girando e girando e girando...

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Os mapas na Idade Média: representações das concepções religiosas e das influências da Antiguidade Clássica

Artigos

The maps in the Middle Ages: representations of religious ideas and influences from Classical Antiquity Lucas Montalvão Rabelo* Mestrando em História Universidade Federal do Amazonas Lukas.lmr@hotmail.com

Recebido: 28/10/2014 Aprovado: 20/04/2015 RESUMO: Este artigo busca interpretar as formas de representação cartográficas medievais esquemáticas e simbólicas sobre o viés das novas perspectivas de estudos. Com base nos conceitos da História Cultural e da nova História da Cartografia que os mapas medievais são compreendidos. Eles relacionam-se a percepção da própria sociedade e da ideia que faziam sobre a configuração do planeta Terra e do universo. Assim, pautado nestes conhecimentos, os mapas, muito mais do que indicarem um desconhecimento geográfico, refletiam as crenças, os mitos, as concepções baseadas no pensamento religioso do período. O mapa dos Salmos e o mapa de Hereford, pertencentes ao século XIII, são exemplos que apresentam elementos ligados à retórica medieval de construção de mapas. PALAVRAS-CHAVE: História Cultural, Religiosidade, Cartografia medieval. ABSTRACT: This article seeks to interpret schematic and symbolic forms of medieval cartographic representation on the bias of the new perspectives of study . Based on the concepts of Cultural History and New History of Cartography that medieval maps are understood. They relate to society's perception of itself and the idea that they did on the configuration of the Earth and the universe . Thus , based on this knowledge , the maps indicate much more than a geographical ignorance , reflected the beliefs , myths , conceptions based on the religious thought of the period . The map of the Psalms and the map of Hereford , belonging to the thirteenth century , are examples that feature elements linked to medieval rhetorical construction of maps . KEYWORDS: Cultural History, Religiousness, Medieval Cartography. Introdução Este artigo visa apresentar um panorama sobre as novas perspectivas da História da Cartografia voltando-se para o período medieval. Inicialmente, serão expostos conceitos chave para a interpretação destes mapas: representação e imaginário. Na sequência apresentar-se-á um panorama da sociedade medieval e da presença da religiosidade cristã. Deste contexto parte-se *

Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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para o estudo dos mapas medievais e suas particularidades. O que remete a própria concepção da Terra e do universo para os homens do período. Com base nisto, foram formulados os mapas TO e zonais que serão apresentados como o mapa dos Salmos e o mapa de Hereford, além dos mapas zonais.1 Representação, imaginário e a nova História da Cartografia A nova interpretação dos mapas ocorreu paralela à renovação da disciplina histórica, assim uma nova História da Cartografia contribuiu para a percepção da complexidade do real.2 Ela está ligada fundamentalmente ao conceito de representação. Referência para qualquer coisa que possa ser alvo de estudo dos historiadores, o conceito foi incorporado a partir das formulações de Marcel Mauss e Émile Durkheim no início do século XX. Representação seria uma leitura que os homens fazem do mundo expressas por normas, instituições, discursos, ritos formando uma realidade paralela à existência dos indivíduos. Porém, faz com que os homens vivam dentro dela e por ela. Segundo Sandra Pesavento: “São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade.”3 Essa noção permite eliminar do campo de análise a tradicional separação entre o real e o não real. Pois, tudo que é percebido pelo homem, e que ele dá sentido é construído socialmente e internamente em seu intelecto. Não existe realidade por si, ela está diretamente ligada à lógica interna que os homens atribuem a qualquer coisa. O historiador Roger Chartier em O mundo como representação propõe pensá-la partindo de uma história das apropriações. Segundo ele: “A apropriação tal como entendemos visa uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os produzem”.4 A partir do conceito de representação é que esta pesquisa se desenvolve. Com isso, ela não se limita a pensar como o rio Amazonas aparece 1Aqui

não serão contemplados os mapas medievais produzidos no final do período, a partir das experiências náuticas, conhecidos como cartas portulano. 2Essa nova forma negava os processos antigos de construção do conhecimento. Eles estavam ligados ao marxismo e a escola dos Annales. Em ambas o sujeito histórico estava à margem do conhecimento. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p.14. 3 ______. História & História Cultural. p.39. 4Um exemplo da apropriação feita pelo autor refere-se a prática da leitura. Ao ler um texto, o leitor criaria um mundo próprio não correspondente necessariamente a aquele proposto pelo autor. Existiria, assim, uma distância entre o autor e o leitor. Ela referir-se-ia a questão material, o autor escreve texto, o livro é feito pelo editor, impressor e outros. Cada leitor atribuiria um significado específico a cada uma das formas materiais inseridas na obra lida. Além disso, a construção textual e o próprio sentido das palavras, de acordo com as próprias experiências do leitor, traria uma interpretação diversa. Segundo Chartier, a leitura é “vagabunda”, ela se acomoda e dá sentidos não pensados pelo autor. Desta forma, a distância entre o autor e o leitor final é que construiria o sentido. Pois, nesse meio termo há uma série de intermediações que aumentariam a distância entre o que gostaria de passar o autor e o que é lido pelo leitor. Ver: CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. São Paulo: Estudos Avançados, 1991, p.68. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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nos mapas enquanto consequência exclusiva do conhecimento geográfico do rio, no espaço americano, mas, de forma mais ampla, seja nas figurações, numa orientação fora da “realidade” ou em uma distorção desproporcional. Tudo isso interpretado não como devaneios daqueles que produziram, mas como partes inseridas em um conjunto de pensamento geográfico que dava sentido aquela figuração, ou seja: a representação do mundo daquele período histórico. Isso está diretamente relacionado com o pensamento do historiador da cartografia, Brian Harley. Para ele, os mapas seriam uma construção social do mundo expressa por meio da Cartografia. Longe de fugir de uma mera representação da natureza, verdadeira ou falsa, os mapas redescreveriam o mundo como qualquer outro documento. Tanto em termos de relações e práticas de poder, preferências e prioridades culturais. “Lo que leemos en un mapa está tan relacionado con un mundo social invisible y com la ideologia como con los fenómenos vistos y medidos en el paisaje.”5 Portanto, seriam uma representação do mundo real dentro de uma série de codificações que buscam torná-los inteligíveis para uma sociedade específica.6Além disso, os cartógrafos, para realizarem sua representação de mundo, se basearam nas histórias contadas sobre as viagens à América. Suas obras refletem uma mediação interpretativa. Compreendida de outra forma, eles praticavam uma espécie de interpretação gráfica da interpretação oral ou escrita dos viajantes referentes aos novos espaços. Algo próximo de uma “hermenêutica espacial”7. Dentro desta interpretação, estaria um conjunto de imagens sobre algo, ou seja, um imaginário. Segundo Gilbert Duran, o imaginário seria o “‘museu’ (…) de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a serem produzidas.”8 O autor propõe que as imagens sempre fizeram parte da sociedade ocidental, porém, a relação com elas ocorreu, ao longo do tempo, de maneira 5HARLEY,

J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica, 2005, p.61. disso, segundo Harley, os mapas também devem ser compreendidos nas suas formas de apropriação pelos indivíduos. Eles foram muito estudados ao longo da História da Cartografia, mas a questão da materialidade e da sua apropriação, nos moldes da proposta de Chartier, foi pouco pensada. 7Essa ideia de hermenêutica, amplamente utilizada pelos historiadores hoje, foi resgatada do filósofo alemão HansGeorg Gadamer, considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica. Ele suscitou os estudos de outros pesquisadores, como o filósofo francês Paul Ricoeur. Este propôs que existiria uma mediação tripla entre signos, símbolos e o texto. Sua visão conciliava o ideal explicativo das ciências da natureza e a interpretação das ciências humanas. Sua ideia hermenêutica colocaria fim ao ideal cartesiano de transparência do sujeito para ele mesmo. Não haveria imparcialidade em uma análise de algo. Não existiria como apagar os vestígios do autor. Pois, sempre haverá marcas da intervenção do homem. Com relação aos textos, Ricoeur afirma que sua compreensão resultaria da relação com um leitor, que sobrevém através de um confronto: o conjunto de signos textuais e a interpretação particular daquele que observa. Esse paradigma da leitura surgiu como uma solução ao paradigma metodológico das ciências humanas, e tornar-se-ia uma resposta para a divisão entre explicar ou compreender, cuja relação constituiria o “círculo hermenêutico”. Os historiadores lidarm com essa hermenêutica quando eles interpretam uma fonte histórica. Pois, para chegar ao “passado”, existe a necessidade de uma mediação pelos vestígios deixados pelo tempo. Portanto, conhecer o outro, em uma época passada, significaria se apoiar em uma leitura de outro indivíduo. Aí que a hermenêutica estaria constituída: relacionar-se com a alteridade em um mundo passado. Para mais detalhes ver: DOSSE, François. “Uma filosofia do agir: Paul Ricoeur” In: O Império do sentido. A humanização das ciências humanas. Bauru, SP: Edusc, (?). 8 DURAN, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. 6Além

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diferenciada. Ora negando, como no Iluminismo, ora utilizando-as, como no catolicismo. As imagens jamais desapareceram do pensamento ocidental, mas elas ganharam, ao longo do tempo, um status inferior em relação a outros tipos de conhecimento. Essa depreciação imagética estava intimamente ligada à sua subjetividade. Pois, com o cientificismo do século XIX, passou-se a negá-las como forma de conhecimento. Entretanto, com o desenvolvimento da Psicologia, e da Psicanálise, elas foram de fundamental importância. Porque possuíam uma ligação muito mais próxima com o inconsciente. Percebê-las significaria estar mais próximo da psique humana. Já o autor Cornelius Castoriade entendia a história humana enquanto uma história do imaginário humano e de suas obras surgidas diante da coletividade humana. Sendo, portanto, “um imaginário social instituinte que cria a instituição em geral (a forma instituição) e as instituições particulares da sociedade considerada, imaginação radical do ser humano singular.”9 Assim, seria o imaginário humano fundante dos elementos que comporiam a própria sociedade. Tudo aquilo que permearia os homens dentro de um convívio social dando sentido a ele. Com isso, poder-se-ia pensar em uma ideia de imaginário como “um saber-fazer que organiza o mundo produzindo coesão ou o conflito.”10 Tudo que é pensado pelo homem estava diretamente ligada as imagens. Aí é que reside a importância de interpretá-las em uma pesquisa histórica. Jacques Le Goff11 contribui para uma especificação maior do conceito quando afirma:

O termo ‘imaginário’ sem dúvida remete-nos à imaginação, mas a história do imaginário não é uma história da imaginação no sentido tradicional, trata-se de uma história da criação e do uso das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar, visto que resultam da mentalidade, da sensibilidade e da cultura que os impregnam e animam.12

Portanto, o imaginário estaria ligado, por exemplo, à forma como um local geográfico figurava em um mapa e, ao mesmo tempo, como sua sociedade achava natural sua feitura. Isso compreende todos os elementos que fazem parte de determinada representação. Pois, eles estão presentes porque encontram uma “validação” no próprio imaginário. Assim, para iniciar esta

9CASTORIADIS,

Cornelius. “Imaginário e imaginação na encruzilhada.” In: Do mundo da imaginação à imaginação do mundo. Lisboa: Fim dos séculos, 1999. 10 PESAVENTO, Sandra. História & História Cultural., 43. 11No entanto, o conceito de imaginário para Le Goff é diferente dos até aqui apresentados. o conceito de imaginário estaria mais limitado. Ele compreende imaginário com uma diferença de realidade: “O imaginário transborda o território da representação e é levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra. O imaginário constrói e alimenta lendas e mitos.” Desta forma Le Goff define o conceito como “(...) sistema de quimeras de uma sociedade, de uma civilização que transforma a realidade em visões ardentes do intelecto.” Assim, o autor exemplifica que esse conceito estaria mais além de um conjunto de representações do mundo afirmando que ele estabeleceria em sociedades e que estaria próximo a uma ideia de fantasia contrastando com a realidade. LE GOFF, Jaques. Heróis e Maravilhas da Idade Média.Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 12. 12 LE GOFF, Jaques. Heróis e Maravilhas da Idade Média, p. 13. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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pesquisa busca-se apresentar na sequência como seriam as formas consagradas de representação cartográfica no período medieval. A sociedade medieval e a religiosidade cristã Antes de adentrar especificamente no campo da Cartografia medieval, é necessário compreender que a disposição do mundo estava intimamente relacionada à concepção do homem medieval. Os mapas eram frutos de uma produção humana imersa num pensamento voltado à religiosidade cristã. Ou seja, a religião exercia importante influência na própria imagem do mundo. Estava presente nos variados aspectos da vida humana. O historiador Johan Huizinga forneceu alguns exemplos da grande influência do Cristianismo nos homens da época: Desde a tenra idade a imagem da cruz implantava-se no sensível coração infantil tão grande e tão exclusiva que deixava na sombra todas as outras afeições. Quando Jean Gerson era ainda criança viu o pai encostar-se a uma parede, abrir os braços em cruz e dizer: ‘Foi assim, rapaz, que crucificaram o teu Deus. Aquele que te criou e te salvou’. Diz-nos ele que esta imagem do pai lhe ficou gravada no espírito, tornando-se maior à medida que ele crescia, até a velhice. Por esse facto ele abençoava o pai, que morreu no dia da Exaltação da Cruz. Santa Collete, aos quatro anos, já ouvia a mãe rezar diariamente uma lamentação sobre a Paixão, sentindo na sua carne os açoites e os tormentos. Esta recordação fixou-se no coração hipersensível de Colette com tal intensidade que durante toda a vida, à hora da crucificação, sentia o coração violentamente opresso; e durante a leitura da Paixão sofria mais do que uma mulher com dores do parto.13

Neste trecho o autor expos exemplos da imagem da cruz que foi consolidada fortemente após o misticismo de São Bernardo, no século XII. A Paixão de Cristo estava presente no imaginário das pessoas, e, portanto, daria lógica para as ações dos homens. As explicações específicas ou universais passavam por um cunho teológico. Neste sentido, a arte não escapava deste funcionamento da sociedade14. De acordo com Arnold Hausser, a arte românica partilhava muito da ideia eclesiástica resultando em um grande poder da Igreja: A Igreja, que em todas as questões espirituais tinha plenos poderes de senhor feudal e que agia como seu advogado, reprimia toda e qualquer dúvida sobre a vontade divina ou imutabilidade da ordem existente. Colocou cada área da vida numa relação directa com a fé e fazia derivar do primado da doutrina religiosa o seu direito de impor as linhas mestras e fronteiras do esforço artístico. Só no contexto de uma ‘cultura autoritária obrigatória’ deste tipo é que se poderia ter desenvolvido uma linguagem formal tão homogênea e unívoca como a da arte do início da Idade Média. 15

HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. Lisboa: Editora Ulisseia, 1985, p. 199. arte medieval era voltada para o Criador e o temor a ele. Assim, arte medieval teria a função de “(...) oferecer a Deus as riquezas do mundo visível, (...) permitir apaziguar a cólera do Todo Poderoso e conciliar os seus favores. Toda a grande arte era então sacrifício.” DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 19. 15HAUSER, Arnould. A Arte e a Sociedade, p.147. 13

14A

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O trecho é importante por destacar a força da Igreja, que, segundo o autor, seria grande através do controle exercido sobre a sociedade. Porém, tributar exclusivamente essa função a Igreja seria retirar as particularidades e singularidades da Idade Média. Esta instituição teve, em diversos momentos, que enfrentar crises com os poderes temporais. O Imperador do Sacro Império Romano Germano era ora aliado e ora inimigo. Toda uma dinâmica estava por detrás das relações com o que o autor define genericamente como “poder feudal”.16 Mas, mesmo que seu poder não fosse universal, ele foi uma prova da grande força dos eclesiásticos e da própria fé no período medieval. É dentro deste contexto que os mapas medievais devem ser interpretados. Os mapas como reflexo das crenças da sociedade Os mapas reproduziram esquematicamente o pensamento do período, o que representou uma forma de cartografar que contrasta enormemente com a atual. Na obra A Geografia na Idade Média, editada pela primeira vez em 193817, George H. T. Kimble lembrou as distâncias entre esses mapas e os atuais. Uma vez que na Idade Média eles não representavam a totalidade do conhecimento: [Os mapas] refletiam ideias comuns da época, inclusive as teorias quase científicas dos gregos, as mitologias pagãs e os sistemas da cosmologia cristã. Pouquíssimos deles – quase nenhum antes do ano 1400 – refletiam a extensão real do conhecimento da época.”18

Neles, os sábios formularam padrões de representações do mundo conhecido que serviam como ilustrações para livros de teologia e filosofia. Os autores faziam uso de ornamentações que trariam ideias defendidas, personagens míticos, fábulas, crenças. Ou seja, “um mappamundi medieval, para ser devidamente apreciado, deveria, num grau considerável, ser visto como um romance ilustrado.19” O componente religioso estava quase sempre presente e muitos exemplares serviam para mostrar a extensão da fé cristã sobre a Terra, além de localizarem onde 16Jacques

Le Goff dá uma ideia da maior complexidade presente no período da Igreja Católica e as outras instituições religiosas: “[...] el rechazo de un poder teocrático, a diferencia del Ocidente bizantino. En Occidente, el poder religioso corresponde a la Iglesia y al Papa, el político al rey. El precepto evangélico regula la dualidad de poderes ‘Dad al César ló que es del César’. Europa va a escapar al monolitismo teocrático que paralizó a Bizancio y sobre todo al Islam después de haver favorecido su expansión.” LE GOFF, Jacques. La vieja Europa y el mundo moderno. Madrid: Alianza Editorial, 1995, p.17. 17 Apesar de ter sido produzido há quase 80 anos, a obra de Kimble oferece uma importante interpretação da geografia medieval. De acordo com Márcia Siqueira de Carvalho da Universidade Federal de Londrina em sua apresentação da segunda edição da obra de George Kimble no Brasil: “ A história da Geografia ainda recebe um tratamento secundário entre os próprios geógrafos e historiadores da ciência e são raros os livros que tratam deste assunto. Os que existem foram escritos há bastante tempo e, com edições esgotadas, tornaram-se livros de referência. Ver KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2. ed.Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. xi até xiii. 18KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2. ed.Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 219. 19 W. L. Bevan e H. W. Phillot Apud _______. A Geografia na Idade Media, p.222. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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acreditavam estarem os temas que faziam parte de suas crenças. Dos fatos presentes na Bíblia, os mais lembrados eram o Paraíso Terreno, localizado nos confins da Ásia, além das histórias presentes no Velho Testamento, como da Arca de Noé, a punição da esposa de Lot, a destruição de Sodoma e Gomorra, a passagem pelo Egito e o Êxodo, e as terras de Gog e Magog. Nestes mapas, a posição de Jerusalém era central, pois, como afirmou Kimble, ela se baseava na descrição do livro de Ezequiel: “Eu a coloquei no meio das nações e dos países que estão em torno dela.”20 Enfim, pensando na concepção geral dos mapas-múndi no Medievo resume o autor: Durante séculos, os mappaemundi tornaram-se cada vez mais afastados da realidade, pois eram muito grandes as amarras da tradição, tanto clássica quanto eclesiástica, sobre a mentalidade medieval e antes de aceitarem fatos incompatíveis com as suas maneiras de pensar, os cartógrafos geralmente preferiam ignorá-los e no seu lugar usar símbolos esquemáticos e imaginativos.21

Nessa passagem, o autor afirma que os mapas-múndi estariam afastados de uma realidade “geográfica” nos moldes de hoje. Assim, representavam o mundo da forma como foi convencionada no período, através do uso de formas esquemáticas e simbólicas, a “realidade” para a concepção da época. As distorções presentes mostravam o peso de locais importantes para a história da humanidade, uma dimensão simbólica. Isso não pode ser qualificado enquanto um “erro” cartográfico, uma vez que, a própria função do mapa é diversa da atual. No caso da Palestina, além de ser o centro do mundo, seu tamanho exagerado em relação ao restante das terras também se devia as inúmeras informações e fatos bíblicos localizados nela. Ou seja, tinha importância crucial no sistema imagético do mundo cristão ganhando destaque diante das outras terras. Desta forma, o simbolismo nas representações prevalecia em relação ao “real geográfico” com base nos moldes da cartografia contemporânea. Feita esta consideração, é importante ressaltar a visão padronizada do mundo no período. Ela não se limitava apenas a este aspecto, mas em diversos âmbitos, como exemplificado por Le Goff: “O pensamento do Ocidente medieval realizava-se através de um sistema simbólico, a começar pelas constantes correspondências entre o Novo Testamento e o Antigo Testamento, pois o primeiro é a tradução simbólica do segundo.” 22O símbolo era utilizado enquanto esquema para a representação das crenças. Assim, havia a constante utilização de padrões para a compreensão do mundo e para a explicação do surgimento da Terra e do universo. A Terra e o universo segundo o homem medieval

KIMBLE. A Geografia na Idade Media, p. 227. ______. A Geografia na Idade Media, p. 229. 22 LE GOFF, Jacques. La vieja Europa y el mundo moderno, p. 12. 20 21

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A ideia da Terra e do universo que estes homens se imaginavam inseridos realizava-se através de uma série de conhecimentos da Antiguidade Clássica aliados ao pensamento cristão. O autor W. G. L. Randles apresentou as justificativas da forma universal da Terra, vigentes entre os séculos XII ao XV, surgidas a partir de duas sínteses baseadas na cultura antiga e na Bíblia. Elas buscavam “(...) conciliar o mito bíblico da Terra plana com a ideia grega de uma Terra redonda: plana ao nível da ecúmena habitável, esfericamente unicamente ao nível da astronomia.” 23 Esta concepção provinha dos modelos propostos por Crates de Malo (c. 160 a. C.) e Aristóteles (384322 a. C.).24 A partir da ideia de Crates de Malo, autores como Marciano Capela (século V) e Macróbio (século V) e, posteriormente, Guilherme de Conches falavam sobre uma esfera preenchida na sua maior parte por água onde haveria quatro ilhas separadas por corredores de água. Uma dessas ilhas estaria povoada pelos cristãos e as outras não seriam habitadas devido à incomunicabilidade de ambas25. Assim, o único habitat dos humanos era plano se considerada a imensidão esférica do globo. Por outro lado, o modelo aristotélico, que não se liga diretamente ao Aristóteles clássico, foi defendido por João de Sacrobosco em sua obra Tratado da Esfera (princípios do século XIII). O mundo estaria dividido em duas partes: do éter e dos elementos. Esta última estaria composta por quatro partes: no centro a terra; na sequência a água; depois o ar; e por fim o fogo puro. Cada um desses elementos estaria em uma proporção de 1 para 10. Para garantir a sobrevivência da espécie humana, com base no Gênesis ou no Salmo 10326, Deus teria feito no terceiro dia a concentração das águas: E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e separação entre águas e águas. Fez, pois, Deus o firmamento e separação entre as águas debaixo do firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez. E chamou Deus ao firmamento Céus. Houve tarde e manhã no segundo dia. Disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e apareça a porção seca. E assim se fez. À porção seca chamou Deus Terra e ao ajuntamento das Águas, Mares. E viu Deus que isso era bom. 27

Assim, segundo a exegese bíblica, devido ao poder de Deus, uma pequena parte de terra ficou submersa diante da grande imensidão das águas. Com isso, a Terra habitável estaria plana

23RANDLESS,

W.G.L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: uma rápida mutação epistemológica. Lisboa: Gradiva, 1990, p. 11. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: uma rápida mutação epistemológica., p. 13. 25 Essa questão da povoação por humanos de outras terras, os chamados antípodas era muito complexo no período. Afirmar que existiriam esses locais seria retirar a autoridade da Igreja Cristã. Pois a palavra de Cristo teria sido pregada a toda a humanidade. Sobre essa questão ver ______. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: uma rápida mutação epistemológica, p. 16-19. 26Randles não menciona em sua obra um trecho específico dessa relação no Salmo 103, mas devido as traduções pode acontecer de ser uma numeração diferente. Segue-se o trecho correspondente a versão de João Ferreira de Almeida, no Salmo 104, a partir do versículo 9: “Puseste às águas divisa que não ultrapassarão, para que não tornem a cobrir a terra.” ver: A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, p.420. 27 A Bíblia Sagrada, p. 4. 24______.

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na pequena parte descoberta, e, esférica se considerada seu todo, com uma maior parte de água.28Era, portanto, a junção de dois modelos explicativos: o aristotélico e o bíblico (Bíblicoaristotélico). A estrutura do cosmos provindo da explicação Clássica, ligada ao milagre da presença de Deus, possibilitando a vida na ecúmene cristã. A partir dessa configuração terrena e universal, é que a cartografia medieval pode ser interpretada. Os mapas medievais T-O Um dos modelos de mapas mais divulgados no Medievo baseava-se nas ideias de Santo Isidoro de Sevilha (c.560-636)29 acerca da configuração do planeta e dos seus habitantes. O orbe terrestre estaria disposto em uma forma que lembraria as letras “T” e “O”, sendo, portanto, conhecidos como mapas T-O30 (figura 2). Nessa configuração, o “T” seria formado pelos corredores de águas internas: à esquerda o rio Don, à direita o rio Nilo e na vertical o mar Mediterrâneo; circundadas pelo grande “O” representando o grande Mar Oceano. O papel das águas enquanto divisora do mundo era crucial. Separavam as três grandes partes de terra da época: África, Ásia e Europa. Assim, neste esquema, a função dos rios Nilo e Don é fundamental enquanto uma espécie de “esqueleto” sustentando o orbe terrestre. A forma esquemática encontra-se no modelo todo. Pois os rios estão retilíneos e, juntamente as porções de terras, são semelhantes e simétricos. A disposição continental encontra-se da seguinte maneira: ao norte a Ásia, à esquerda a Europa e à direita a África. Os vestígios desta divisão continental remontam fins da Antiguidade.

28RANDLES,

W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: uma rápida mutação epistemológica, p. 14. ALEGRIA, ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da ExpansãoPortuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 29. 30Magali Gomes Nogueira refere-se a esses mapas como “OT” porque seriam a sigla de Orbis Terrarum. No entanto, a maior parte dos materiais consultados refere-se à forma como foi exposta no texto. Para mais detalhes ver: NOGUEIRA, Magali Gomes. “Portulanos, Presente de Reis” in: Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico volume XX. Cartografia Histórica. Tomo II. Belo Horizonte: UFMG, Museu de História Natural, 2011, p. 187-202. 29Conferir

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Imagem 1: Mapa-múndi "T-O" segundo Zacarias Lífio, Orbis Breviarum, Florença, 1493. (RANDLES, W.G.L 1990, p. 20)

A autora Gioia Conta realizou estudo sobre a carta mais antiga e completa sobre a cartografia romana, a Tabula Peutingeriana. Nela, teria sido exposto todo o conhecimento sobre o Orbis terrarum, o mundo conhecido à época, com a divisão continental seguindo as mesmas referências geográficas (rios Nilo e Don e o Mar Mediterrâneo) reproduzidas posteriormente 31. As águas destinavam-se a circundarem o orbe e dividi-lo semelhante ao esquema medieval exposto, mas sem o rigor esquemático. Rios menores também tinham importante função e ganhavam esquemas de representação. Sobre esta função, aponta Gioia Conta: Junto a los cursos fluviales más relevantes, com frecuencia son indicados cursos menores. Ello se explica teniendo presente el significado de los rios, creando siempre delicados problemas de tránsito y viabilidad. Los puntos de tránsito, que un mapa de carreteras debía poner en evidencia sobre todo donde mayores eran las dificuldades, pues imponían un momento de detención antes de enfrentar el obstáculo del rio. Ello favorece, en estos particulares lugares, el surgimento de “hosterías” preparadas, donde hombres y animales podían encontrar descanso, ayuda y médios necesarios. Asimismo recordemos que el origen de los rios es ubicado en una colina o cadena montañosa, sin

31Vale

ressaltar que apenas os pontos geográficos para a divisão dos continentes é semelhante. Nesta carta romana e até no conhecimento dos Antigos sobre a configuração do orbe, caso do mapa de Heródoto, o formato não lembra o modelo esquemático dos exemplares medievais T-O. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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existir alguna relación con la realidad física del curso fluvial. Ellos son pintados con un único color. 32

Assim, havia a estratégia de recorrer a cadeias de montanhas fictícias para estabelecer a nascente de algum rio. A não figuração de toda a extensão “real” de determinado rio, mas, pelo contrário, com suas origens surgindo em montanhas, sem corresponder necessariamente à realidade, foi uma estratégia de cartografar de fins do Império Romano e, como se verá adiante, no Medievo e até no continente americano. De volta ao período medieval, os mapas “T-O” eram interpretados dentro da simbologia cristã. Os três continentes teriam sido herdados, após o dilúvio universal, pelos filhos de Noé com o “T” representando a cruz do Cristo crucificado, além de estarem associados com os quatro pontos cardeais. Acima do entroncamento dos três cursos de água, na parte central, destaca-se a cidade de Jerusalém: centro do mundo e do universo. Dentro deste modelo bíblico de entendimento da Terra, importava muito mais uma analogia com as Sagradas Escrituras, do que uma equivalência geográfica.33 O Mapa dos Salmos O mapa dos Salmos (figura 3), encontrado no Livro dos Salmos, é um exemplo desta forma de cartografar. Produzido no século XIII (c.1250), de autoria desconhecida, desfrutou de um revigoramento da representação cristã. A forma visual do Cristo no alto do mapa representa bem isso. Não mais o sofredor do Românico, mas sim sereno e com o mundo em suas mãos 34. O modelo T-O tem algumas modificações: a parte superior do “T”, ao invés dos rios Don e o Nilo (como bem exemplifica a Figura 2), os “braços” do Mar Mediterrâneo ocupam a função; o corredor de água interno (Mar Mediterrâneo) encontra o “O” o Mar Oceano apenas ao sul. O exemplar foi, portanto, uma leitura mais livre da forma estabelecida com inúmeros referenciais de figurações importantes para a Cristandade do período, como mencionado anteriormente. 32CONTA,

Gioia. “La Cartografía Romana” in: Semanas de Estudios Romanos – Vol. XII. Valparaíso, Chile: Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, 2004, p. 43. 33Para mais detalhes sobre os mapas em estilo T-O conferir: THROWER, Norman J.W. Maps&Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO, s/d; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2. ed. Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005. 34 A aproximação do Mapa do Salmo com a ideologia surgida com o gótico é sintomática. Pois, como mostra George Duby em sua obra O Tempo das Catedrais, o pensamento do Abade Suger (século XII) para a concepção do estilo foi influenciado pelos textos do Pseudo-Dinis que remetiam a hierarquia celeste. O trecho que se segue deveria ser pensado aliando-se ao mapa exposto: “Deus é luz. Dessa luz inicial, incriada e criadora, participa cada criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina segundo sua capacidade, isto é, segundo o lugar que ocupa na escala dos seres, segundo o nível em que o pensamento de Deus hierarquicamente a situou. Proveniente duma irradiação, o universo é um fluxo luminoso que desce em cascatas, e a luz que emana do Ser primeiro instala no seu lugar imutável cada um dos seres criados.” DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais, p. 105-106. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Imagem 2: Mapa do Salmo (século XIII). (KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. 2. ed. Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 219).

O Paraíso Terrestre localiza-se no extremo norte da Ásia35, em seu interior há duas figuras humanas se entreolhando, possivelmente Adão e Eva, e no meio estaria uma árvore com o fruto proibido36. Logo ao sul do Paraíso, correm os quatro principais rios da Terra: o Ganges, o Finson, o Tigre e o Eufrates. No entanto, foi detectado um quinto rio. A representação destes elementos hídricos no mapa é uma interpretação visual direta das palavras do Livro Sagrado: A inexistência de uma referência escrita na obra não impossibilita que essa região seja identificada com o Paraíso Terreno. Pois, como os autores do período pensavam o mundo, o paraíso era a fonte dos quatro principais rios do mundo. E suas nascentes encontram-se centralizadas nessa região. 36Apesar da grande resolução do mapa dos Salmos disponibilizada pela Biblioteca da Austrália, a imagem não permite ter uma ideia conclusiva sobre o que estaria representado dentro do Paraíso Terreno. 35

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E saía um rio do jardim do Éden para regar o jardim e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. O primeiro chama-se Pison; é o que rodeia a terra de Havilá, onde há ouro. O ouro dessa terra é bom; também se encontra lá o bdélio e a pedra ônix. O segundo rio chama-se Gion; é o que circunda a terra de Cuxe. O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates.37

Como a passagem demonstra, os rios derivavam diretamente do Paraíso e correriam para lados divergentes. Junto a eles haveria riquezas, como o cobiçado ouro. A localização na Ásia estaria ligada também a um imaginário fabuloso do continente. Nesta associação, os escritos de Marco Polo, no século XIII, viriam a acrescentar a cobiça por esses tesouros. 38 Há ainda a presença de monstros na região39 da África (Bestiários)40.

37Gêneses2:

10-14 A Bíblia Sagrada,p. 4. uma das descrições que o navegador veneziano faz das riquezas do continente e que se tornou uma grande fonte para os homens renascentistas, notadamente Colombo, foi à descrição que realizou da ilha de Cipango, que seria o Japão, localizado no Extremo Oriente: “[A ilha] tem ouro em abundância, mas o rei não deixa levar, e por essa razão há lá poucos mercadores e por vezes ali vão as naus. Nenhum negociante ou estrangeiro chegou ao interior da ilha. Falarei a respeito dum palácio maravilhoso que um grande senhor da ilha possui. É um palácio grande, todo coberto de ouro fino, tal como são cobertas de chumbo as nossas igrejas. É dum valor incalculável.” POLO, Marco. O Livro das Maravilhas: a descrição do mundo. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 188. 39Eles remetem diretamente a uma discussão que o autor Guillermo Giucci realizou em sua obra intitulada Viajantes do Maravilhoso. Segundo ele, a presença de monstros está ligado a própria concepção que se desenvolverá posteriormente entre barbárie e civilização. Assim, os monstros guardariam o oposto das qualidades dos civilizados, e seriam caracterizados por viverem à margem dos locais centrais da época (Europa). Para mais detalhes ver: GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso: Novo Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,, p.26. 40Bestiário estaria ligado as formas maravilhosas de monstros que povoavam o imaginário do homem medieval. Para mais detalhes ver: CARVALHO, Márcia Siqueira de. O pensamento geográfico medieval e renascentista no Ciberespaço em: <http://www.geocities.ws/pensamentobr/medievalciber.pdf >.Acesso em: 07 setembro 2013. 38Em

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Imagem 3: Detalhe do Paraíso Terreno e dos quatro rios saindo dele mais um quinto no canto superior direito, no Mapa dos Salmos. (KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2. ed.Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005)

Desta forma, o mapa dos Salmos parece ser uma leitura particular do conteúdo bíblico que dava sentido a sociedade cristã ocidental. A forma majestosa como o Cristo salvador se apresenta diante do plano da geografia terrena, no meio dos dois anjos, segurando o orbe é indício desta relação. Poder-se-ia pensar também na contraposição entre estas três figuras celestes em contraposição ao bestiário dos monstros no canto inferior direito. Ou seja, no lado inferior estão as criaturas que se encontram à margem da sociedade ocidental. Aquelas que apresentam aspectos fundamentalmente diversos do homem cristão. Um dos casos é dos antípodas41. O mapa de Hereford

Crença de que haveria seres habitando o outro lado do mundo. Portanto, sua monstruosidade seria na sua forma de viver, ao contrário dos homens. 41

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Outro exemplo de um mapa estilo T.O, um pouco mais complexo42 que outros exemplares, é mapa de Hereford (c.1300) (figura 5). O autor G. R. Crone aponta o exemplar como o maior mapa circular do mundo que sobreviveu e atualmente encontra-se na catedral de Hereford. Seria uma mescla das influências medievais: El esquema general se parece al de los mapas T dentro de O, aunque algo deformado porque se trata de destacar la Palestina, Asia Menor, etc. Roma, Antioquia y París están claramente dibujadas, lo que da pábulo a la sugestión reciente de que uno de los “eslabones” es obra de un escribano francés. Otras ciudades y pueblos se representan con dibujos convencionales de torres y puertas; hay gran cantidad de montañas y rios, las primeiras com un perfil convencional. Casi todo el espacio, que de otro modo quedaría vacío, está lleno de dibujos primorosamente ejecutados que descrieben asuntos tomados de las narraciones y bestiarios populares en la época. A decir verdad, el mapa es como una enciclopedia de la ciencia medieval y abunda en interesantisimos materiales de estudio.43

Neste trecho Crone aponta que, ao invés de deixar os espaços desconhecidos incompletos44, eles eram preenchidos com elementos presentes no imaginário medieval, filiados em sua maior parte em temas voltados a religiosidade. Assim, o mapa de Hereford insere um grande número de lendas do período em seu desenho esquemático do mundo. No entanto, ele não se filia completamente nos modelos T-O clássicos. A configuração dos “T” e “O” encontra-se diferente do usual, uma vez que apenas o mar Mediterrâneo e sua ligação com o Mar Negro são utilizados como divisão dos continentes. De maneira mais acentuada que o mapa dos Salmos, o mapa de Hereford apresenta vários pequenos desenhos de caráter religioso ao longo de seu mapa. No centro do mapa, aparece um grande círculo que corresponde ao local onde fica a cidade de Jerusalém. Neste exemplar, como em outros com semelhante formato, o papel preponderante desta cidade é essencial. Como transposição das Sagradas Escrituras, a cidade onde o Cristo espalhou suas palavras finais seria o ponto central da ação de Deus. De lá propagaria, aos quatro cantos do orbe, o exemplo do redentor dos pecados humanos. Esta é uma das interpretações possíveis do mapa de Hereford dentro da religiosidade constituinte do pensamento medieval e, consequentemente, dos ilustradores. Este ponto se aproxima da leitura que a historiadora Maria Eurydice fez dos mapas medievais, em especial nos mapas dos séculos XII e XIII. Segundo ela, os mapas funcionam Segundo Maria Fernanda Alegria e outros, baseado na tipologia de D. Woodward, esse mapa e outros entraria em nos mapas tripartidos não esquemáticos. Os três continentes esquemáticos são mantidos, mas o desenho ganhou menor rigidez. Alguns se filiam a Paulo Orosius e outros de Santo Isidoro de Sevilha. Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda et alli, “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da ExpansãoPortuguesa.., p. 29. 43CRONE, G. R. Historia de los Mapas. México: Fondo de Cultura Económica, 1956, p. 26 e 27. 44Como seria de se esperar da Cartografia contemporânea, baseada nas concepções do cientificismo do século XIX. 42

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como narrativas sobre o mundo. Tanto em referência aos acontecimentos passados, quanto aos previstos nas profecias bíblicas. O mapa, desta forma, tem um sentido de mostrar ao observador seu passado e o que está por vir. Apresenta o futuro através das imagens nos seus arredores. Conta com a presença do seu Criador. Desta forma, os mapas medievais estavam junto a texto, mas, isto não significa que eles eram uma visualização do que foi lido. Mas, que representavam também um texto. Uma narrativa imagética.45 Os mapas zonais Além desses dois esquemas, ainda existia outro também muito divulgado na Idade Média, a teoria das zonas. As partes da esfera seriam delimitadas de maneira diferente dos anteriores. Atribuído a Parménides (século V a. C.), o modelo propunha a divisão da esfera horizontalmente em cinco zonas: uma ao redor de cada polo (inabitáveis); uma ao redor do Equador, a zona tórrida (inabitável); e as duas zonas temperadas (habitáveis). No período medieval, esse modelo junto aos outros foi partilhado graças ao mencionado tratado de João de Sacrobosco. Também em vigência, foram os chamados mapas zonais de Macróbio46. A Terra encontrar-se-ia divida em zonas marcadas pelo clima. Sendo comumente aceito que só a parte superior, abaixo do polo Ártico, seria habitada. Pois, a zona tórrida, na região equatorial, impossibilitaria o estabelecimento humano devido à intensidade dos raios solares e ao calor insuportável. Além de impedir a habitabilidade de quaisquer terras mais ao sul, mesmo que propícias à vida, pois, a zona tórrida impossibilitaria o acesso às regiões ao sul. 47

RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (século XIIXIII)”. In: Tempo, Rio de Janeiro, n°14, pp. 11-26, 2002, p. 12 e 13 46A concepção de Macróbio parte de um mapa criado por ele para expor suas ideias em um comentário a um trabalho de Cícero (51 a. C.) feito provavelmente no ano de 430 d.C.. Nesse mapa ele retoma Crates de Mallos (c.168 a.C.) com o orbe circundado pelo mar Oceano e ao meio um rio principal, Alveus Oceani. Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda et alli“Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da ExpansãoPortuguesa.., p. 30. 47Ver: RANDLES, Da terra plana ao globo terrestre: uma rápida mutação epistemológica, 1980. 45

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Imagem 4: Mapa de Hereford (c.1280). (KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2. ed.Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 219.)1

O mapa da figura 4 apresenta uma confecção do mapa imaginado através da exposição das ideias de Macróbio. É possível perceber a presença das cinco zonas: Frigida no extremo norte e sul; logo depois o que seria a zona temperada que envolvia o mundo conhecido, porém não nomeada; na outra região temperada, ao sul, a Teperata Antipodum nobis incognita; e, ao centro, no que seria a região equatorial, o Alueus Oceani. Essa concepção das zonas, filiada a Macróbio, remete as teorias de simetria dos gregos. Segundo eles, a geografia terrena seria sempre simétrica: “El pensamiento griego se regía por un principio general que afectaba la delineación de los Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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mapas, a saber: la simetría de la natureza.”48 Assim, a existência de uma porção de terras ao norte do globo (que alguns já calculavam) indicaria a presença de uma porção ao sul. Esta parte da Terra seria para os homens medievais, o continente antípoda.49

Imagem 5: Concepção do mundo no Medievo através das cinco zonas e com o continente antípoda ao sul de acordo com o modelo de Macróbio (c.1485). Frontispício (KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2. ed.Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005)

A constituição do mapa de Macróbio e suas consequentes reproduções imagéticas destoam claramente do esquema dos mapas esquemáticos, referidos anteriormente. A influência grega está claramente presente (ideia da simetria da natureza) e as referências bíblicas não ganham destaque. Outro padrão, portanto, que indicava influência Clássica diferente da bíblicoaristotélica.

CRONE, G. R Historia de los mapas., p. 15. as concepções dos gregos sobre a Terra e seus mapas ver “La Herencia Clásica y de la Alta Edad Media” in: ______, Historia de los mapas, p. 13-29. 48

49Sobre

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Conclusão Essas formas de representação exemplificam como a cartografia medieval era fortemente marcada por modelos esquematizados de representação da Terra50. Havia uma preponderância esquemático-simbólica do orbe terrestre ao contrário de uma correspondência espacial “fidedigna”, a exemplo da cartografia contemporânea. Figuravam em mapas os personagens bíblicos (Cristo crucificado, os reis magos, o Paraíso Terreno e outros), passagens históricas (triunfo de Alexandre, o Grande...), lendas da Antiguidade (as amazonas, colunas de Hércules...). Também deve-se diferenciar os mapas simbólicos. Enquanto o mapa dos Salmos e o mapa de Hereford são uma interpretação clara da Bíblia através da imagem do mundo, já no caso dos mapas baseados em Macróbio a situação é diversa. O objetivo é apresentar um panorama do mundo conhecido aliado às cogitações da forma total da terra. Outros continentes são imaginados e pensados. Portanto, dentro do período medieval não se pode considerar os mapas simbólicos esquemáticos apenas como filiados a uma matriz. Enfim, também pode-se afirmar que estes mapas representaram uma forma de cartografia que contrasta drasticamente com a atual. Segundo Kimble, “(...) [os autores] poderiam rotular qualquer homem como tolo, caso ele pensasse que poderia determinar a distância de Londres até Jerusalém ao se colocar uma régua no mapa.”51 A própria ideia de mapa estava ligada a uma interpretação espacial diferente, não sendo regida pelos princípios contemporâneos da Cartografia.

50Essas

não eram as únicas formas de cartografar da época. Ainda descendente dessa cartografia terrestre de pensar e conceber o mundo pode-se acrescentar o chamado mapa-mundo quadripartido do Beato de Libana (730-798). Seu exemplar encontra-se na obra Comentaria in Apocalipsin, de 776. Com base em Macróbio, ele figura além dos três continentes, um quarto que estaria desabitado pelo excessivo calor. Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda et alli, “Cartografia e Viagens”., p. 30. 51KIMBLE, A Geografia na Idade Média, p.222. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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O ver e o fazer: os Reis Magos e a análise das imagens na história1

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Seeing and doing: the Kings Magi and the analysis of images in the history Jacqueline Rodrigues Antonio2 Mestranda em História Universidade Estadual de Maringá - UEM lili240386@yahoo.com.br Recebido: 31/10/2014 Aprovado: 26/02/2015 RESUMO: As imagens são elementos essenciais para a comunicação. Analisá-las auxilia na compreensão da história da humanidade. Diante disso, neste artigo me dedico a demonstrar uma análise da temática dos Reis Magos sob a perspectiva dos simbolismos empregados para a sua representação, de modo que a materialidade colocada pelos artistas seja traduzida na imaterialidade vista pelo contexto e estudos das influências das obras. Ao utilizar uma metodologia pelo viés da História Cultural é percebível a construção e ressignificação dos elementos expostos, como as cores e as vestimentas. E, assim, é visualizado a sua narrativa e a sua linguagem. PALAVRAS-CHAVE: Arte e História, Memória e Identidade, Patrimônio Cultural. ABSTRACT: The images are essential elements for communication. Analyzing them helps in understanding the history of mankind. Given this, I dedicate this article to demonstrate the thematic analysis of the Kings Magi from the perspective of symbolism employees for their representation, so that the materiality placed by the artists to be translated in the immateriality view the context and studies the influences of the works. Using a methodology by bias of Cultural History is perceptible construction and ressignification of the exposed elements such as the colors and clothing. And thus is viewed his narrative and his language. KEYWORDS: Art and History, Memory and Identity, Cultural Heritage. Introdução Em todos os anos são montados presépios no mundo cristão, dentre os personagens postos, sempre estão os três Reis Magos. Também há uma festa popular, muito conhecida no Brasil, feita no dia em que há o desmonte dos presépios, 06 de janeiro, Folia de Reis.

1

Texto produzido a partir das discussões realizadas na disciplina “Linguagens e narrativas” ministrada pela Profa. Dra. Ivana Guilherme Simili na Universidade Estadual de Maringá (UEM). 2 Graduada em História e Especialista em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. Aluna do Programa de Pós-Graduação em História, na linha de Fronteiras, Populações e Bens Culturais pela UEM. Bolsista pela CAPES. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Ao visualizar a presença que os Reis Magos têm na sociedade pelas tradições natalinas que houve a difusão de sua materialidade, a sua imaterialidade ficou evidenciada por ter fácil incorporação à cultura popular regional, e dessa forma, percebemos a construção de seu imaginário3 desde os primórdios do cristianismo, em que há uma delimitação da quantidade e definição de quem são, até à atualidade, com representações de gaúchos e sertanejos como Reis Magos. Os simbolismos vistos nas imagens produzidas sobre os Reis Magos fazem com que um historiador da cultura analise a memória e a identidade sobre tal objeto, como também a maneira que aquela sociedade pensava a sua realidade. Não significando que tal fonte represente como era o período, mas como eles se pensavam através daqueles personagens e quais mentalidades estavam sendo construídas e propagadas. Para tanto é necessário nos voltarmos para a historicidade da cultura material, do qual admite aos historiadores “relacionar um conjunto de fatos marginais em relação ao essencial, o político, o religioso, o social, o econômico, em outras palavras, estudar “as respostas dadas pelos homens às sujeições dos meios onde eles vivem””4. Isto é algo que serve tanto para o estudo da pintura em si, como para os detalhes dos elementos composta na obra, dessa forma “ver” a memória inserida. Quanto à metodologia, há diversos modos em como “ver” uma imagem para que, assim, possa “fazer” uma análise historiográfica dessa imagem. Para este artigo será ressaltado o da iconologia e iconografia, propagado por Erwin Panofsky5, e exposta por Peter Burke6, por exemplo, no qual serve, para nós historiadores das imagens, como base para se iniciar os estudos deste tipo de representação. Assim, em posse de imagens sobre o seu tema, um historiador tem mais condições de notar a sensibilidade, como uma “rede que envolve sensações, percepção, sentimentos e

3Há

três referências: A primeira evidencia a representação, o simbólico e o ideológico. Na segunda referência diz respeito aos documentos em si, pois o imaginário do escrito é diferente dos demais, como a palavra, o monumento ou a imagem. Já na terceira está às imagens, algo que é distinto das representações e das ideologias. As imagens são concretas e estas pertencem à iconografia. (LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Estampa, 1994.) 4ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais: Nascimento do Consumo séc. XVII-XIX. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 12. 5Ver: PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 4ª reimpr. da 3ª ed. de 2001. Trad. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2011. 6 Ver: BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru, SP: EDUSC, 2004. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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conceitos, operando por meio do imaginário”7, e assim analisar o além da própria imagem, por ela conter simbologias ocultas num olhar superficial, tornando estas imagens o seu objeto de estudo, sendo por isso tão importante nos estudos culturais de algo tão antigo, como é a tradição dos Reis Magos. Por exemplo, é através das imagens que se pode notar que os Reis Magos nem sempre foram reis. As primeiras representações imagéticas os evidenciam como sendo simples Magos em seu sentido original, ligados à magia, somente após o reinado de Otto II que passam a Reis, e depois, próximo aos traslados de suas relíquias para a Europa que são transformados em santos, algo possível de se afirmar através das imagens. Portanto, as modificações estilísticas acompanham a mudança de mentalidade da sociedade medieval, e posteriormente à moderna, período em que se localiza o meu objeto de estudo para o mestrado, sendo necessário para a análise um estudo interdisciplinar, com Teologia e História da Arte. A fonte da pesquisa atual é uma representação dos Reis Magos que é atribuída sua confecção ao Jesuíta Belchior Paulo (1554-1619) no século XVI e incorporada à Igreja e Residência dos Reis Magos na ocasião do termino do altar-mor da Igreja, no ano de 1702, em Nova Almeida (antiga Aldeia dos Reis Magos), no Espírito Santo, Brasil. Também é posta a esta pintura o título de ser a primeira feita a óleo na América Portuguesa. É uma obra tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 21 de setembro de 1943 e já passou por algumas restaurações desde a década de 1940. Esta opção deu-se por essa imagem ter uma importância na História do Brasil, sendo considerada a primeira pintura a óleo feito em terras tupiniquins, e também pela simbologia que a imagem carrega em sua historicidade. Porém neste artigo será tratado das obras de mesmo tema que auxiliam na compreensão da construção dessa imagem. Dessa forma, o seguinte texto iniciará ressaltando as imagens dos Reis Magos com a iconologia e iconografia de Panofsky sendo à base da análise proposta, e finalizará com o imagético referente aos Magos destacando o simbolismo e o estudo dos detalhes. A iconologia e a iconografia nos estudos históricos No referente à metodologia é apresentada ao historiador das imagens como “um duplo desafio – analisar a arte em sua especificidade e em relação dinâmica com a sociedade que a

7MARTINI,

Maria Luiza Filippozzi. Rememorar o espetáculo e observar-se rememorando: Um estudo acerca do imaginário dos espetáculos. RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosângela; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org.) Imagens na História. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 88. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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produziu”.8 No caso aqui posto, o estudo de imagens está explicitamente ligado a um texto, em especial, bíblico. Dessa forma, é necessária a pesquisa das obras de mesmo tema produzidas anteriormente, e principalmente, os desdobramentos da oralidade e também da escrita desta imagem. Quanto à imagem em si, também se torna imprescindível que seja verificado o significado dos elementos representados em conformidade com o que a sociedade que o produziu deixou, ou seja, o que uma vestimenta, ou um elemento colocado significa para aquele período, o que auxilia na compreensão do que essa representação é para a época em que foi confeccionado, ou se foi um elemento de ornamento. Dessa forma, o sentido se prevalece ao pensamento, ou seja, o sentido de uma imagem antecede num estudo iconográfico. Para o estudo da construção da imagem dos Reis Magos, faz-se necessário iniciar com uma apresentação da origem mais remota do vestígio de tais personagens, o que foi levantado pela pesquisa é a Bíblia, que os mostram como advindos do Oriente. Neste aspecto houve a necessidade de recorrer à Teologia. Após isso, são permeadas as imagens e as literaturas produzidas, no sentido de acompanhar as transformações ocorridas acerca de tais personagens, visualizando o imaginário que foi se formando em torno desses personagens. Depois disso, é preciso perceber as mudanças estilísticas, buscando na História da Arte. E por fim, notar como a narrativa da imagem dos Magos chegou até o momento da confecção do quadro. Em meio a esse processo, o historiador das imagens se depara com diversos aspectos que pode ser considerado como “coisas banais”, que faz parte da cultura material do período que o artista o produziu, dentre eles há as vestes e as paisagens representadas e os seus detalhes. Isto é algo que a primeira vista passa por despercebido no universo de pesquisa, que acabam se voltando para o tema, os personagens, as questões estilísticas, já a atenção a estes elementos, que é a “análise de detalhes”, que Burke e Panofsky expõem, auxiliam no reconhecimento dos códigos culturais, aprimorando a leitura da imagem, da sociedade, do período, ou seja, a história de um povo na construção daquele tema.

8SCHMITT,

Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Trad. José Rivair Macedo. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 33. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Sabendo que para uma análise “é prudente iniciar pelo seu sentido [, pois as] imagens são feitas para comunicar”9, esbocemos a seguir o que é a iconografia e a iconologia enquanto método de análise, pois por meio delas demonstram tal sentido. Dessa forma, diversos historiadores, como Jean-Claude Schmitt10, evidenciam a análise das imagens por um método posto pelo historiador da arte Erwin Panofsky, a iconografia e a iconologia. Esta tendência é pertencente à História Cultural, especificamente, na fase da história social da arte, que iniciou nos anos de 1930, que trata de estudos que partem da sociologia, utilizam formulas ou esquemas culturais e perceptivas, nas quais identificava o estilo de cada pintor no campo das artes.11 Antes da definição do que seja iconografia e iconologia, Panofsky apresenta três níveis, que são importantes para entender o significado dos mesmos. O primeiro nível trata do Tema primário ou natural, no qual identifica formas puras e as expressões contidas, sendo uma descrição pré-iconográfica da imagem, sem um conhecimento além do contido na imagem. Neste nível se faz uma análise sobre linhas, cores, claro e escuro, profundidade, plano, tudo relacionado com o que está sendo visto. O segundo nível é nomeado por Tema secundário ou convencional, em que se tem um conhecimento a mais do que a imagem fornece, como decifrar os símbolos contidos na obra, do qual faz o espectador identificar os personagens retratados, é onde acontece a análise iconográfica da imagem. O terceiro é o Significado intrínseco ou conteúdo, a partir do qual permite ir além dos elementos e dos significados transparecidos na obra, pois há uma necessidade de um conhecimento sobre a época em que foi retratada, não somente de seu tema. Precisa que se investiguem outras obras de mesmo tema pintadas em diversas épocas, a própria época em que a imagem foi produzida e os personagens envolvidos, os que aparecem e não aparecem no quadro, portanto, trata-se da interpretação iconológica. Observemos o que seja iconografia e iconologia. Iconografia compreende um método descritivo. Nas palavras de Panofsky:

BURKE. Testemunha Ocular, p. 43. SCHMITT. O corpo das imagens. 11Ver: BURKE, Peter. O que é História Cultural?. 2ª ed. (revista e ampliada) Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 9

10Ver:

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A iconografia é, portanto, a descrição e classificação das imagens, [...] é um estudo limitado e, como que ancilar, que nos informa quando e onde temas específicos foram visualizados por quais motivos específicos [...], a iconografia é de auxilio incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer interpretações ulteriores. Entretanto, ela [...] coleta e classifica a evidência, mas não se considera obrigada ou capacitada a investigar a gênese e significação dessa evidência: a interação entre os diversos “tipos”; a influência das idéias filosóficas, teológicas e políticas; os propósitos e inclinações individuais dos artistas e patronos; a correlação entre os conceitos inteligíveis e a forma visível que assume em cada caso específico12.

Neste trecho é evidenciado o método da iconografia, que para nós historiadores da imagem torna-se de fundamental importância, pois para fazê-lo pressupõe um conhecimento histórico sobre o que foi retratado. Burke o coloca como “análise de detalhes” para uma interpretação de imagens. Basicamente Burke encaixa a iconografia como leituras de imagens, visão muito aproximada de Panofsky. Burke expõe também a importância de reconhecer os códigos culturais, para uma leitura mais aprimorada de uma imagem. Se iconografia implica no estudo dos elementos essenciais de uma imagem que precisam ser esclarecidos, o que seria iconologia? Uma iconografia interpretativa. Nas palavras de Panofsky: Iconologia, portanto, é um método de interpretação que advém da síntese mais que da análise. Assim como a exata identificação dos motivos é o requisito básico de uma correta análise iconográfica, também a exata análise das imagens, estórias e alegorias é o requisito essencial para uma correta interpretação iconológica13.

Vemos, dessa maneira, que a diferença entre iconologia e iconografia, está em que a iconologia é mais interpretativa, enquanto a iconografia é mais descritiva e analítica. Com base nos níveis propostos por Panofsky, faremos a seguir a aplicação dos mesmos níveis, Tema primário ou natural, Tema secundário ou convencional e Significado intrínseco ou conteúdo, que aqui são indicados respectivamente como, Análise pré-iconográfica, Análise iconográfica e Análise Iconológica, que são outras nomeações que Panofsky faz desses níveis. Enquanto Análise pré-iconográfica há uma identificação quanto ao estilo da pintura dos jesuítas no Brasil, a técnica utilizada no quadro específico, as disposições de cada uma das figuras, o tamanho da obra, as cores empregadas, os jogos de luz e sombra. Como também se há profundidade na figura ou se é plana e qual é o posicionamento do espectador frente a elas, 12 13

PANOFSKY. Significado nas artes visuais, p. 53. _____. Significado nas artes visuais, p. 54. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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dentre outros aspectos verificáveis. Estes itens indicados acima são necessários para se identificar a mentalidade da população da região em que se encontra a obra estudada. No sentido artístico constatamos ser do período maneirista, do qual reflete também a sociedade. Para a Análise pré-iconográfica, além de leituras de historiadores da arte, como Gombrich14, também serão realizados desenhos de cada figura do quadro a ser analisado. Ao isolar cada personagem, podemos verificar detalhes despercebidos antes, como a presença de mais figuras, o posicionamento delas e a origem da luminosidade. Abaixo segue um exemplo dos desenhos a serem produzidos. O desenho refere-se ao Mago do meio da obra que analiso no mestrado.

Figura 1 – Desenho do detalhe do quadro Adoração dos Reis Magos em Nova Almeida: O Mago do Meio. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os detalhes do personagem não foram possíveis serem reproduzidas neste desenho, uma vez que a imagem adquirida até o presente momento é de pouca qualidade, confirmando a necessidade de ir ao local em que a imagem se encontra e produzir a minha própria reprodução de qualidade superior. Um dos detalhes que foi possível observar é que a intenção é captar o momento que foi aberto a taça com ouro para ser oferecido ao recém-nascido, por isso os olhos abaixados. Para a Análise iconográfica, recorremos às literaturas que conceberam a cena estudada, a visita dos Magos a Jesus recém-nascido. Uma das literaturas em questão é fundamentalmente o livro canônico de Evangelho de Mateus 2, 1-1215. As outras literaturas são os livros apócrifos, como o Protoevangelho de Santiago, e os livros dedicados ao tema, como o Livro dos Magos de

Ver: GOMBRICH, E. H. A História da arte. 16ª ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2008. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. 2ª reimpr. Trad. Euclides Martins Balancin; Samuel Martins Barbosa; Estevão Bettencourt; et al. São Paulo: Paulus, 2003. 14

15Ver:

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Hildesheim, que contém a história dos Magos. Dessa forma, consideramos que a imagem clareia o texto e o texto ajuda a compreender a imagem16. A Análise iconológica compreende a reflexão sobre o período em que a obra foi concebida, no caso do quadro de Nova Almeida, os anos entre 1500 e 1600. É o momento das suposições com bases históricas. É nesta análise que é vista a vida do autor e do grupo do qual ele pertenceu, o motivo que levou a confeccionar tal obra. Este período da confecção desta obra é especialmente rico em transformações sociais, políticas e culturas, por se tratar do início da colonização brasileira. Para uma visão da época da produção do ícone17 sobre a visita dos Magos, como parte da Análise iconológica, será visto os documentos da antiga Aldeia dos Reis Magos, sobre a construção da Igreja, a colocação no retábulo que serve de altar-mor, como também procurar rastros da origem de tal quadro. Dessa forma, foi traçado a forma de “ver” a imagem e de “fazer” a análise dela. Os Reis Magos e as “coisas banais” Analisar os detalhes das vestes e as paisagens escolhidas e confeccionadas pelos artistas demonstram a necessidade destes em marcar sua pintura como original, tornando-a única. Mesmo escolhendo um tema tradicional como a adoração dos Reis Magos, as imagens são representadas de formas diferentes, sem que todas sejam meras reproduções uma das outras, caracterizando, dessa forma, a arte ocidental. Outro item a ser ressaltado, além da originalidade, é colocar nos Magos os vestuários que os representava segundo o imaginário construído em torno deles, como no caso do primeiro quadro a ser apresentado com vestes que denotam os Magos como associados à magia e astronomia, mas os artífices medievais, além de transparecer nas vestes a construção desses personagens, também evidenciam a “moda” do período da confecção da obra, como será visto na pintura de Giotto, pois é percebido, através da observação de diversas obras do Baixo Medievo, que para este não há mudança nas roupas utilizadas 1300 anos antes com as que eles usavam no momento da confecção das obras. Ver: DUPRAT, Annie. Images et Histoire. Paris: Berlin, 2007. posto no sentido mais conhecido, em especial, na Igreja Católica Oriental, que são imagens de santos ou de cenas bíblicas (Por mais que este texto trabalhe com o lado Ocidental, porém a tradição dos ícones e o reconhecimento deles como tais é da Oriental, e por isso o respeito e a referência à origem do termo). 16

17Aqui

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Quanto a este processo do vestuário Daniel Roche expõe o exemplo de Charles Darwin, o mostrando como evolução e diante a isto “convida a dar atenção aos pequenos fatos que traduziam a capacidade de informação do vestuário […] a análise da evolução do traje, mesmo sua descrição, se revelaram certamente mais infrutíferas do que sua interpretação”18, assim o vestuário dos Magos são vistos mais pela interpretação de seus simbolismos do que buscar a tal evolução dos trajes. Com o conhecimento destes, ao utilizar a teoria da História Cultural e a metodologia da iconografia e iconologia para minudenciar e ressaltar os detalhes das imagens em volto dos Reis Magos, tornando-se necessário que recorra como os elementos representados eram pensados no contexto de sua confecção. Contudo, as pistas mais plausíveis sobre isto se encontra nos estudos teológicos a respeito dos símbolos no universo bíblico e também na arte cristã, pois estas transmitem a mensagem imprescindível para compreensão de uma obra de cunho religioso. Na imagem da representação dos Magos ainda ligados à magia é um mosaico19 que se localiza em Santo Apollinare Nuovo, em Ravena, datado do século VI. Há dois elementos que revelam sobre a construção da memória em torno dos Magos: Primeiro, por já constar os nomes pelo os quais os Magos são conhecidos até hoje: Baltazar, Belchior (ou Melchior) e Gaspar. Segundo, pelo fato de não portarem coroas, como atualmente são reconhecidos, o que marca uma mudança nesta tradição.

Figura 2 – Adoração dos Magos, Santo Apolinário, o Novo, século VI. Fonte: HILDESHEIM, João de. O livro dos Magos. 1ª ed. Trad. Leonor Lucena Sibertin-Blanc. Milão: Lucerna, 2004, p. 74.

ROCHE. História das Coisas Banais, p. 256. uma técnica que consiste em embutir pequenas peças, em especial, de pedra, para preencher um plano formando um desenho. É utilizada como decorativa desde a Antiguidade. 18

19É

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Neste mosaico percebemos que os Magos estão trajando roupas exóticas, muito coloridas e estampadas, uma alusão ao imaginário popular construído do Oriente, local que é reconhecido como origem dos Magos desde a literatura canônica. As estampas indicam conjuntos de estrelas, lembrando que a estrela é um símbolo dos Magos, por serem associados à astronomia e astrologia, e também pela narrativa bíblica os expor seguindo-a. Das cores20 visualizadas as que predominam são: azul, verde, vermelho e o branco. O verde é a natureza, as plantas, mas também esperança, sendo a cor dos eleitos, o azul é associado ao céu, que é o símbolo da morada de Deus, de sua transcendência, já o vermelho, muitas vezes ligado aos pecados, é a cor da realeza, como também simboliza o amor misericordioso e o branco é a representação da alegria e festividade, como também a pureza perfeita e a inocência21. Em suas cabeças gorros, uma ligação dos Magos ao sentido original de magia, ao invés de realeza, como foi se construindo posteriormente, apesar de que os gorros se apresentam de cor vermelha. Também é posto que cada Mago tenha uma idade diferente, sendo o mais idoso o Gaspar, o mais jovem Melchior e na idade adulta, Baltazar. A paisagem vista, os nomes são integrante dela, ao fundo há uma paisagem não tão colorida como os Magos, porém há tamareiras sendo visualizados com os seus frutos. Para o cristianismo a árvore com frutos simboliza os homens bons22. Também há algumas flores brancas, podendo ser lírios, que indica simbolicamente a pureza, mas, principalmente, o símbolo do escolhido23. Dessa forma, a mensagem era perpetuada para os que a observava durante as homílias24. No alto, do lado direito, vemos a estrela, a sua presença para os Magos foi o sinal do nascimento de um rei, e ela, posteriormente, fica sobre a casa em que se encontrava o menino e a mãe. A simbologia em torno da estrela da narrativa mateana tem algumas considerações: o apócrifo Evangelho Árabe da Infância defende a ideia de ser um anjo; já Jacopo Varazze (123020“O

hebraico não tem designações propriamente ditas para as cores, mas as toma pelas coisas com cores características” (LURKER, Manfred. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos. 2ª ed. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 2006, p. 69). Lembrando que o cristianismo é de origem hebraica. “Em virtude de considerações meramente pictóricas, o emprego da simbologia das cores na pintura cristã pode-se constatar com alguma regularidade em determinadas pessoas” (LURKER. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos, p. 70). Como Cristo e Maria. 21Ver: LURKER. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos; HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte Cristã. 1ª ed. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994. 22 Ver: BÍBLIA. Ap 22,2. 23 Ver: BÍBLIA. Ct 2,2. 24Discurso proferido pelo celebrante de um culto religioso a fim de fixar e atualizar as leituras feitas do livro sagrado para tal religião. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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1298) em sua “Legenda Aurea” expõe que não é qualquer estrela, pois essa se difere por três motivos das demais estrelas, em localização, brilho e movimento, e ainda apresenta seu significado, que fica evidente no momento em que ele mostra a estrela com cinco definições: material, espiritual, intelectual, racional e supra-substancial. Ao comparar com Raymond Brown25, um teólogo da atualidade que trata sobre os Evangelhos da Infância, na questão dos Magos, ele expõe que a relação com a estrela é explicada pela sua afinidade à astronomia e astrologia. Este estudioso continua afirmando que há vários relatos que relaciona fenômenos astronômicos com as grandes personalidades, como no caso de Eneida, em que uma estrela guiou Enéias a Roma. Brown coloca que a estrela também era associada ao nascimento de pessoas de grande influência para a sociedade na qual nasceu, pois havia uma crença de que quando essa pessoa nascia uma estrela também nascia, e quando morria, esta morria junto com a pessoa. Nesta perspectiva que os Magos eram astrólogos, os teólogos atuais, representado por Brown, uma estrela nascente, teriam levado a eles associarem com o nascimento de um rei. Os recipientes que se encontram cada presente são bem ornamentados, em cada há uma substância diferente descrita na leitura evangélica26. Ouro, incenso e mirra que representam as “riquezas e perfumes da Arábia (Jr 6, 20; Ez 27, 22). Para os Padres da Igreja simbolizam a realeza (o ouro), a divindade (o incenso) e a paixão (a mirra) de Cristo.”.27 Ao olhar mais atentamente para cada elemento, percebe que o ouro é entregue pelo Mago mais velho, Gaspar, cheguei a essa dedução por ser objeto sólido, já a mirra pelo Mago “adulto”, por se tratar de um líquido esse recipiente parece ser mais favorável, e por fim o incenso pelo Mago mais novo, Melchior. Com isso há a possibilidade de unir todos esses detalhes, fazendo a leitura desse código cultural, deciframos o que os Magos estão significando e representando para essa sociedade. Dessa forma, todos esses detalhes indicam que a pretensão aqui era evidenciar os Magos perseguindo a estrela para entregar os seus presentes para o rei, do qual esperavam nascer, segundo a tradição Cristã28.

25Ver:

BROWN, Raymond E. O Nascimento do Messias: comentário das narrativas da infância nos Evangelhos de Mateus e Lucas. Trad. Barbara Theoto Lambert. São Paulo: Paulinas, 2005. 26 BÍBLIA. Mt 2, 1-12. 27 BÍBLIA. p.1705. (Nota de Rodapé dos tradutores). 28 BÍBLIA. Mt 2,1-12. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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As Coroas passaram a ser adotadas para retratar os Magos a partir do reinado de Otto II com seu Sacro Império Romano. A cena da adoração dos Reis Magos foi propícia para elevar o seu poder. Neste período há uma ilustração da cena com Magos-Reis, investidos de suas coroas de aro de ferro, que se prostram diante da sagrada família, que estão de frente do seu “estábulo”, que tem a arquitetura de uma pequena igreja, e humildemente entregam suas oferendas29. Já no Baixo Medievo os Magos em adoração são Reis, demonstrando que isto influenciou na transformação do imaginário popular ocorrida desde os Magos de Ravena. Assim, diversos artistas passam a os retratarem dessa maneira, porém, sempre em vista a questão da originalidade de sua obra, pois se trata de um período que o artífice, denominação da ocasião para artista, recebe destaque social. É neste momento que encontra as oficinas de artesãos, inauguradas por Cenni di Pepo, o Cimabue (1240-1302), mestre de Giotto di Bondone (1267-1337), “eram a célula base da vida comunal”.30 A colaboração dos aprendizes formados nessas oficinas é que auxiliam na geração de novidades nos estilos de cada artista no decorrer de sua vida artística. Também houve neste período uma libertação parcial do artista, pois lá se encontram documentos que referenciam o artista por sua obra, e por isso que a partir da Baixa Idade Média que começa a expor a questão da autoria e também do mecenas ou encomendador da obra como importantes.31 Isto é relevante na observação dos detalhes das obras, pois é ali que a se encontra a marca do artista e de seu encomendador. Neste contexto, temos a obra do artista considerado o pai do renascimento no campo das artes visuais, por Giorgio Vasari (1511-1574), o Giotto di Bondone. Aqui destacaremos uma das suas três pinturas, que se tem conhecimento até então, com o tema da adoração dos Reis Magos. A obra escolhida tem algo diferencial, além do uso das coroas, já citadas, há um elemento a mais para o imaginário sobre os Magos, o halo ou auréola dos santos nos Magos.

29Infelizmente

não tive acesso a essa imagem. Citado por RUSSO, Daniel. Les représentations mariales dans l’art d’Occident Essai sur la formation d’une tradition iconographique. In: IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Éric; RUSSO, Daniel. Marie: le culte de la vierge dans la société médiévale. Paris: Beauchesne, 1996. 30BOLOGNA, Ferdinando. Giotto. In: DUBY, Georges; LACLOTTE, Michel (org.) DUBY, Georges. História Artística da Europa: a Idade Média. Tomo II. Trad. Mário Dias Correia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 346. 31 Ver: LE GOFF, Jacques. (sob direção de). O Homem Medieval. 1ª ed. Trad. Maria Jorge Vitar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Figura 3 – Adoração dos Reis Magos, Giotto, Capela Arena, Pádua, 1302. Fonte: HILDESHEIM, João de. O livro dos Magos. 1ª ed. Trad. Leonor Lucena Sibertin-Blanc. Milão: Lucerna, 2004, p. 82-83.

A obra situada na Capela Arena, Pádua, na região do Vêneto, península itálica, é um afresco32 datado de 1302. Nesta imagem temos figuras humanas e animalescas exóticas para a região em que o pintor vive, tendo como centro das atenções, tantos dos personagens envolvidos, como do espectador, um bebê que é segurado por uma figura feminina. Há também figuras aladas, tendo uma delas participando da cena ao segurar um dos presentes oferecidos. Há ainda três personagens que trazem presentes ao recém-nascido. O cenário ou paisagem é composto de um solo montanhoso, identificado como um monte, que nas religiões, de modo geral, são vistos como centros cósmicos que unia o céu e a terra, o ponto que está mais próximo dos deuses.33 Na imagem em questão o espectador, o observando e somado à homília, é levado à mensagem que neste momento o céu e a terra se tornaram um só lugar. Há ao fundo um cometa/estrela que parece tocar o monte. Sobre a estrela há estudiosos que defende a ideia que seja um cometa, e que Giotto se inspirou no “Miles” ou

32Técnica

de pintura utilizada para obras em paredes. Numa superfície em que a argamassa ainda está fresca (por isso o nome), o artista, utiliza pigmentos em pó diluídos em água para o esboço, assim as cores penetram na parede e torna-se parte dela, mas por secar rapidamente, o artista não tem como fazer correções. Resulta numa maior durabilidade quando a região tem o clima seco, pois a umidade pode ocasionar rachaduras. A base de gesso ou nata de cal, ainda úmida, é utilizada atualmente para confecções de murais. 33 Ver: LURKER. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos; HEINZ-MOHR. Dicionário dos Símbolos. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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“Halley” especificamente.34 E também é visto um pequeno abrigo de madeira que acolhe as personagens centrais, um símbolo da simplicidade. Quanto às vestes, excetuando um dos Magos que está de azul e capa vermelha, são cores mais discretas, denotando a retirada da magia dos Magos. O elemento diferencial por excelência desta obra é halo ou auréola, como também a coroa, este vem num momento propício para a história da trajetória dos Reis Magos, pois o quadro analisado foi confeccionado poucos anos depois que ocorreu a transladação das relíquias, consideradas dos Magos, do Oriente para a Europa, que, depois de uma estadia em Milão, foi fixada em Colônia, local que se encontra atualmente.35 Dessa forma, conferindo uma nova mudança na construção do seu imaginário, agora são Santos Reis Magos. O halo ou auréola presente nos Magos originalmente não é símbolo cristão, vem da Ásia, e representa o sol e a coroa do rei visto na arte helênica nas figuras dos deuses. Com o advento da Idade Média tornou-se item de personagens considerados santos, algo que já fazia anteriormente com Jesus e Maria. Assim, neste momento os Magos são colocados neste hall. Já o uso das coroas, os Magos serem reis, desde religiões mais antigas, o rei é o deus visível, e também o representante do deus. Na Idade Média o rei era o representante de Cristo e receber a coroa significava receber o feudo de Cristo.36 Nos chama a atenção para presença de dois camelos no canto esquerdo, diferentes do que seria realmente um camelo, facilmente verificado ao observá-lo, pois estes têm olhos azuis, orelha de burro, e a face é uma mistura de cavalo com ovelha. Isso nos faz com que, um observador mais atento, acredite que Giotto nunca os viu antes, e, levando em conta o local de produção, Pádua, ser próximo de Veneza, uma zona portuária, seja possível que os desenhou apenas por descrições feitas a ele e fez questão de pô-los para demonstrar a origem destes Magos. Há também dois tratadores que se preocupam para com os camelos, o que mostra o cuidado de Giotto com os detalhes. Além dos camelos há outros animais, o que indica um título de Cristo, o Bom Pastor, mas especialmente, o presépio de São Francisco de Assis, que menos de cem anos antes da confecção

34WOLF,

Noberto. Giotto. Trad. André Marcelo. Lisboa: Taschen, 2007, p. 12; BOLOGNA, Ferdinando. Giotto, p. 344. 35Ver: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. (Tradução, introdução e notas: Hilário Franco Jr.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 36 Ver: LURKER. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos; HEINZ-MOHR. Dicionário dos Símbolos. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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dessa imagem foi pela primeira vez montada, e nesta havia diversos animais, pois com ele é fundado o amor aos animais e a convicção de que também eram criaturas de Deus. Ainda hoje há a presença de animais nas montagens dos presépios a cada natal.37 Também nos atentamos para a linguagem, em uma imagem enxergamos a narrativa do Evangelho de Mateus 2, 1-12, o que evidência, por estar situada numa Igreja, que era utilizada para fixar a mensagem transmitida pelo padre durante a homília. A pintura dos Magos na Idade Moderna com uma característica distinta das anteriores é obra do artista Albrecht Dürer, tem medidas de 100 cm x 114 cm, já a técnica utilizada é óleo sobre madeira38 de conifera, e pintada em 1504. Localiza-se na Galleria Uffizi, em Florença, na Itália, e está no acervo desde 1793, advinda das coleções de Rodolfo I, porém foi encomendado por Federico III, o Sábio, para a capela no Castelo de Wittemberg, na Saxônia39.

Figura 4 – Adoração dos Magos, Albrecht Dürer, Galleria Uffizi, Florença, Itália. Fonte: GINANNESCHI, Elena. Galeria Uffizi: Florença. São Paulo: Folha de São Paulo, 2009, pp. 74-75.

A imagem acima, em comparação com a anterior, há poucas personagens, tendo somente os três Magos, Jesus e Maria, identificados, há também animais e personagens ao fundo. Apesar das semelhanças, como do Mago mais velho ajoelhado com Jesus esticando o braço em sua

Ver: LURKER. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos; HEINZ-MOHR. Dicionário dos Símbolos. Técnica de pintura que oferece ao artista uma extraordinária versatilidade, sendo utilizada largamente a partir do século XIV. A tinta é obtida pela mistura de pigmentos com óleo, em especial, de linhaça e a viscosidade é modificada pela adição de solvente, como terebintina. A aplicação é feita por pinceis, espátulas ou outros meios. Sua secagem lenta permite ao artista alterar ou corrigir a obra, além da facilidade de misturar cores para obter outras tonalidades. 39 GINANNESCHI, Elena. Galeria Uffizi: Florença. São Paulo: Folha de São Paulo, 2009, pp. 74-75. 37 38

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direção e a presença da coroa. A grande diferença a ser analisada é a presença de um Mago enegrecido na imagem. Isto pode ter ocorrido por conta da simbologia dos Magos na visão teológica, em que defende que os Magos é o mundo que reconhece que Jesus é o Cristo e vai adora-lo recém-nascido. O negro ou mouro na arte cristã está relacionado a reinos (Rainha de Sabá em Reis), a quem busca a Cristo (Filipe em Atos dos Apóstolos) e também a santos e mártires. Um dos Magos sendo um negro encontra-se neste contexto de simbolismo, um sábio representante da África40. Portanto, isso denota uma saída da visão europeia para a imagem dos Magos, assim já é visualizado em obras de artistas contemporâneos à Giotto compondo os Magos com um Negro ou Mouro entre eles. E com a expansão marítima, e certa “globalização”, é cada vez mais enraizada essa proposta, ao ponto de ter, no mesmo período desta obra da América Portuguesa, outro quadro em Portugal com um dos Magos sendo um Índio do além-mar. Atualmente os Magos são pintados com vestimentas de diversas regiões do Brasil e também de distintas profissões. Nas vestes, aqui percebe uma volta a cores de mais destaque, o vermelho, e mais próximas ao imaginário do oriente, o que denota um retorno ao sentido primeiro dos Magos. Por se tratar de um estudo inicial sobre este tema, questões como a intencionalidade do autor, o contexto de produção, os simbolismos contidos na obra, histórico do artista e do grupo a qual pertenceu e os efeitos produzidos pela obra não foram ressaltados e trabalhados para este artigo. Elementos estes essenciais para que se faça uma análise de uma imagem para a dissertação. Considerações finais Com este artigo é possível visualizar que a análise sobre os Magos pelas imagens se torna viável com a História Cultural e com a iconologia e iconografia, pois é possível notar a construção da representação dos Magos de hoje por meio do imagético. Assim, este artigo demonstrou que faz parte dos estudos historiográficos a análises dos detalhes de uma obra imagética, encaixando a isso, como exposto por Daniel Roche, a “História das Coisas Banais”, pois nos detalhes estão as vestimentas, os objetos, a paisagem, tudo que 40

Ver: HEINZ-MOHR. Dicionário dos Símbolos. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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contribui para entender o sentido da obra, o seu simbolismo e identificar o contexto em que foi produzida. Para uma metodologia no estudo das imagens, faz-se necessário o conhecimento teórico a ser seguido na análise. Quão importante que a parte teórica, é a compreensão de como será feita a análise da imagem da qual se propôs. O mais relevante num estudo das imagens é buscar o seu sentido, ver a sensibilidade que nela foi impressa. Para tal, como se trata de uma imagem explicitamente ligada a um texto canônico, precisa percorrer a historicidade de sua narrativa, seja por meio de outras imagens produzidas anteriormente de mesmo tema, seja pela oralidade e textualidade feitas e assim podendo identificar o simbolismo contido nos detalhes das obras referente aos Magos e podendo entender como eles influenciaram no imaginário popular que nos chegou aos dias atuais. Também este artigo demonstrou que estudar as representações imagéticas dos Magos é inserir esta análise no campo da História Cultural, pois esta historiografia tem como uma das características a emergência de adotar objetivos que aproxime da dinâmica cultural da sociedade, como também a da colaboração dos outros campos do saber, neste caso, é inerente que tenha a Teologia e a História da Arte. Portanto, ter claro estes elementos antes que se inicie o estudo com as imagens é essencial. Dessa forma, é possível direcionar o nosso “ver”, para que o nosso “fazer” seja no campo historiográfico.

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Sobre a sociedade de corte na França do Antigo Regime e a constância dos sentimentos de honra

Artigos

The court society in France of the Ancient Regime and the permanence of the feelings of honor

Thiago Rodrigo Nappi Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá thiago-nappi@uol.com.br

Recebido: 28/07/2014 Aprovado: 08/12/2014 RESUMO: Nos séculos que marcaram o Antigo Regime, é possível observar que a nobreza foi regida em suas ações por um sentimento muito forte, o qual auxiliou a configurá-la como uma instituição singular daquele contexto. Tratava-se dos sentimentos de honra. Aquela configuração social utilizou-se muito daquilo que entendeu ser a honra, para distinguir-se dos demais estratos da sociedade, requerendo os privilégios e as distinções dos quais ela própria julgava ser merecedora. Por não se tratar de um conceito filosófico atemporal, a principal fonte de análise que pode ser focalizada para se entender o que foi essa honra para a nobreza é a literatura política da época, especialmente nas obras de Montesquieu. Com a discussão das questões relacionadas aos sentimentos da e pela honra, contribui-se para demonstrar a relevância e pertinência para o pensamento político dos séculos XVI ao XVIII ao estudar esse tema, o qual esteve finamente entrelaçado com as questões políticas daquela época. PALAVRAS-CHAVE: Antigo Regime, Honra, Ideias políticas. ABSTRACT: Over the centuries that established the Ancient Regime, can be observed a strong feeling that steer noblesse’s actions and assisted it to be a singular institution in that context. It was the honor’s feelings. The noblesse appropriately used what it understood to be an honor, asking to the privileges, to try being different from the other segments of society. The honor is not a timeless philosophical concept without a specific social structure. And the most important source of the analysis that helps to try understanding what was this honor for the noblesse, is the politics literature of the period, especially, Montesquieu. In proposing a discussion about the honor’s feelings and about the feelings by the honor, intended to show the merits of the political thinking from the XVI, XVII and XVIII centuries, which was interlaced with the political questions at that time. KEYWORDS: Ancient Regime, Honor, Political ideas. Detendo-se no período da Modernidade, é possível ver que no plano das ideias, do nascimento do Estado moderno até a Revolução Francesa, a filosofia política teve grande parte de suas teses reformuladas pelos autores, devido às mudanças ocorridas naquele período. O que se buscou nas novas empreitadas da modernidade iluminista, e que boa parte dos pensadores Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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afirmaram ter de alguma maneira realizado foi, segundo as afirmações do filósofo Christian Ruby, “desfazer as quimeras enganadoras” e “fortalecer a reivindicação de conferir à filosofia da ação uma configuração contrária aos dogmas políticos que aspiram a reforçar a crença numa autoridade divina”.1 Foi um momento de profunda complexidade para o plano das ideias.2 Além disso, as mudanças ocorridas principalmente no contexto francês do século XVII para o XVIII foram de considerável monta e a França da segunda metade do século XVII chegou a tornar-se o reino mais avançado da Europa.3 Quem comandava o reino na época era o Ministro Colbert (1619 – 1683), que conseguiu livrar a França de suas grandes dívidas, com isso provendo, ao mesmo tempo, Luís XIV (1638 – 1715) com os meios financeiros necessários para seu engrandecimento. De fato, o Antigo Regime – trata-se de um caso em que o contexto precede ao conceito, já que foi Mirabeau (1749 – 1791), e não Tocqueville (1805 – 1859) como costumeiramente se pensa, o primeiro a falar de um Ancien Régime – teve o seu desenvolvimento mais acentuado no século XVI e foi no século seguinte que atingiu o seu apogeu. Foi o período no qual o Estado monárquico (absolutista) alcançou todo o seu esplendor, conciliando, mesmo que mediante um equilíbrio instável, os diversificados corpos sociais e o aparelho da administração real. Ali esteve efetivado – claro que com ressalvas – pelo emprego das maquinações régias, a resolução das querelas entre nobreza e burguesia pela decisão soberana. Entretanto, essas questões são partes constitutivas de uma história mais abrangente e nada simples. Isso porque o XVII também foi o período em que as revoltas se espalhavam por todo o continente, não só em localidades esparsas, mas sim no interior de um mesmo reino, entre os mesmos grupos sociais. Toda essa manifestação de uma violência duradoura levou o francês Roland Mousnier a falar em uma “crise permanente” na Modernidade, com variados graus de intensidade.4 Por sua

RUBY, Christian. A modernidade e a unidade pela vontade (séculos XVI – XVIII). In: —. Introdução à filosofia política. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p.64. 2 “Como leitor de Montesquieu, Hume, Gibbon e Adam Smith, estou particularmente atento ao Iluminismo como fenômeno que ocorre na consciência histórica; os nomes que mencionei são todos de autores preocupados com a emergência da sociedade moderna, a partir da antiga, quer esta seja caracterizada como clássica, pagã e republicana, quer ela seja caracterizada – como era igualmente possível – como medieval, cristã, feudal e corporativa. O que ainda complica mais a nossa compreensão é que os anciens régimes, como lhes chamamos, que podiam obviamente ser descritos como medievais, feudais e de privilégio, poderiam com idêntica força, ser descritos, defendidos e atacados como modernos, comerciais e iluminados”. POCOCK, John G. A. Cidadania, historiografia e Res publica: contextos do pensamento político. Coimbra: Edições Almedina, 2013, p.216. 3 Cf. ARONDEL, Michel. La vie économique sous Louis XIV. In: —. et alii. (Org.). XVIe, XVIIe, XVIIIe siècles. Paris: Bordas, 1962; MAYER, Jacob P. El mundo nuevo del siglo XVII. In:—. et alii. Trayectoria del pensamiento político. Cidade do México: FCE, 1985; MÉTHIVIER, Hubert. Le “mythe” de Colbert. In: —. L’Ancien Régime en France: XVIe - XVIIe - XVIIIe siècles. Paris: Presses Universitaires de France, 1997; STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da Pré-História ao Pós-Moderno. 13. ed. Trad. Angela L. de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.62s. 4 Cf. MOUSNIER, Roland. Les XVIe et XVIIe siècles. Paris: Presses Universitaires de France, 1993, p.161s. 1

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vez, o contexto que tomou forma no século XVIII foi o de uma ruptura crítica entre as forças políticas e as sociais. E, segundo o historiador Hubert Méthivier, foi o momento no qual o poder de arbítrio do rei perdeu força, ao mesmo tempo em que a burguesia tornou-se um estrato social concorrente, muito mais do que antagônico, com relação à nobreza.5 As ideias e as instituições se encontravam em efervescentes transformações. Foi em meio a todos esses acontecimentos que Charles-Louis de Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu (1689 – 1755) elaborou o seu pensamento. Já nas primeiras décadas do século XVIII é possível notar que Montesquieu, que foi o representante de uma aguerrida nobreza que julgava a si própria de modo muito distinto, notou com muita sutileza o estado em que se encontrava o estrato social ao qual ele também pertencia. Falecido em 1715, o Rei-Sol reinou com toda a pompa e espetacularidade possível por sete décadas, chegando a ser considerado, claro que com algum exagero, o maior monarca que já existiu6, e isso até mesmo à sua época. Enquanto o tardio construtor de espelhos de príncipes7 Voltaire (1694 – 1778), rendeu louvores ao “maior monarca do universo”, o senhor de La Brède não pensou assim. Até mesmo porque a opinião de Voltaire não significava muita coisa para o seu contemporâneo, já que conforme a opinião de Montesquieu, ele “nunca escreverá uma boa história: ele é como os monges, que não escrevem para o objeto do qual tratam, mas para a glória de sua ordem; Voltaire escreve para seu convento”.8 Um dos motivos desse grande descontentamento por parte de Montesquieu com aquele momento político deve ser focalizado no fato de que com o “bom” articulador Colbert, Cf. MÉTHIVIER, Hubert. L’Ancien Régime en France, p.31s. “Existiu um mito de Luís XIV no sentido de que ele era apresentado onisciente [informé de tout], invencível, divino, e assim por diante. Era o príncipe perfeito, associado ao retorno da idade de ouro. Poetas e historiadores qualificaram o rei como “herói” e seu reinado como “série ininterrupta de maravilhas”, para usar as palavras de Racine. Sua imagem pública não era simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada”. BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. 2. ed. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p.18. 7 “O velho estilo literário medieval espelho de príncipes, adaptado e aprimorado como catecismo régio ao longo do Antigo Regime, foi o “fio metodológico” condutor de inúmeras Histórias da França produzidas no século XVII. Ao lado das instruções morais ao príncipe virtuoso, para guiá-lo no caminho reto rumo à salvação pública, houve uma valorização da realeza como centro sagrado, como ponto de equilíbrio e princípio organizador da sociedade política. O Grand Siècle assitiu ao triunfo da pedagogia real na História, a um retorno e rejuvenescimento dos miroir des princes, juntamente com uma quase divinização da realeza”. LOPES, Marcos Antônio. Idades da história. Figuras e ideias do pensamento histórico moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 2009, p.39. Ao afirmar que Voltaire pertenceu a esse gênero literário, especialmente com as suas Œuvres historiques, não se pretende caracterizá-lo exclusivamente como tal. Mesmo que se tenha significativa parte de sua obra inserida nesse estilo. Cf. BLUCHE, François. Louis XIV. Paris: Arthème Fayard, 1986; LOPES, Marcos A. Voltaire político: espelhos para príncipes de um novo tempo. São Paulo: Editora Unesp, 2004; SENELLART, Michel. Les arts de gouverner. Paris: Éditions du Seuil, 1995, p.52s; TYVAERT, Michel. L’image du roi: légitimité et moralités royales dans les histoires de France au XVIIe siècle. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, n.21, 1974, p.521-547. 8 MONTESQUIEU. Œuvres complètes I. Paris: Éditions Gallimard, 2004, p.1.252. (As referências citadas em língua estrangeira, em francês e em inglês, foram traduzidas livremente pelo autor. No que tange às passagens em espanhol, os originais foram mantidos). 5 6

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numerosos privilégios feudais foram suprimidos e entrou em cena, em definitivo, uma burguesia no sentido moderno do conceito,9 que não fazia nada além de apoiar a quem quer que fosse o detentor do poder do Estado, visando principalmente obter a proteção frente à posição arbitrária dos antigos senhores. Ele foi sem dúvida alguma um ministro competente para aquilo que se propôs e preparou o terreno para Luís XIV. Mas, apesar de seu inteligente ministro, no momento de sua morte, o Rei-Sol havia exasperado a todos e legado uma crise financeira sem precedentes. Esse monarca, que sempre se apegou ao luxo e à ostentação, não fez questão de esconder que visava fortemente à ideia de uma monarquia universal, alçando a França à condição de reino escolhido para governar as demais nações.10 Mas o que ele conseguiu foi arruinar o seu país, com exceção considerável, é necessário frisar, dos aspectos culturais.11 Esses dois fatos, tanto a supressão de tais privilégios, como a situação calamitosa que o governo de Luís XIV legou como herança, são fundamentais para se ter em mente quando se trata de um estudo sobre o filósofo político em questão. Ao analisar esse contexto, Jean Starobinski descreve com singular erudição a questão, expondo que foi o momento em que os valores de exemplaridade, antes preconizados pelo soberano, tornaram-se caracterizados pelos sinais de fracasso e zombaria. O rei pretendeu viver sob as inconstâncias do amor-próprio e da glória pessoal. Além disso, quisera ser um grande rei cristão, fazer de sua existência uma representação perpétua da grandeza, e assumira sucessivamente todos os papeis que o espírito de seu século rodeara, nos romances e nos poemas, de um respeito sagrado. Para o estudo em questão, a breve definição elaborada por Gian Bravo supre a necessidade de uma caracterização básica do conceito: “Num primeiro sentido, que perdeu muito de sua validade quando referido à atual sociedade, entende-se por burguesia a camada social intermediária, entre a aristocracia e a nobreza, detentoras hereditárias do poder e da riqueza econômica, e o proletariado, composto de assalariados ou mais genericamente de trabalhadores manuais [...] Num sentido mais fecundo e atual, à luz dos acontecimentos históricos contemporâneos, da Revolução Industrial, da revolução política de 1789 e da revolução social ainda em curso [...] A burguesia, pois, seria a classe que detém, no conjunto, os meios de produção e que, portanto, é portadora do poder econômico e político.” BRAVO, Gian M. Burguesia. In: BOBBIO, Norberto. et. alii. (org.). Dicionário de política. 5. ed. Trad. Carmem Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís G. P. Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. V. 1. Para uma interessante distinção entre aristocracia e burguesia nas suas respectivas maneiras de pensar e agir, cf. ELIAS, Norbert. A perigrinação de Watteau à Ilha do Amor. Trad. Antonio Carlos Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.36s. 10 As pretensões quase sempre declaradas de Luis XIV levaram o biógrafo francês Jean Lacouture a denominar o período do seu reinado como “autocracia solar”. Ele cita ainda o poeta François Fénelon (1651 – 1715), que caracterizava aquela época com a imagem de um verdadeiro “hospital em desolação” tamanha foi a precariedade em que se encontrava o reino ao final do governo do Rei Sol, devido ao seu anseio beligerante cujo foco se direcionava à expansão dinástica. Cf. LACOUTURE, Jean. Un millésime agité. In:—. Montesquieu. Les vendanges de la liberté. Paris: Éditions du Sueil, 2003, p.28s. Essencial ainda para uma compreensão nesse sentido é a análise das Mémoires, da autoria do memorialista Louis de Rouvroy, Duc de Saint-Simon (1675 – 1755), figura próxima ao rei. Grande parte da obra é dedicada a analisar Luis XIV e seu reinado, com destaque para os seguintes escrito: “La mort du Roi”, “Caractère de Louis XIV” e “Les dernières années du Roi”. Cf. SAINT-SIMON. Mémoires. Tomo II. Paris: Librairie Hachette, 1951. 11 Cf. BLITZER, Charles. O Rei Sol. In:—. A era dos reis. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1971. 9

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Amante apaixonado e grande capitão, vivera segundo o ideal romântico dos mundanos. Defensor da fé, dava o exemplo da piedade conquistadora. Contudo, depois de tanto fausto amoroso, casa-se secretamente com a viúva Scarron; após tantas campanhas gloriosas, o vencedor laureado vê seus exércitos e seu povo humilhados; e, depois do golpe espetacular que expulsou da França a heresia, descobre ter causado a si mesmo um mal incalculável. [...] Por ter desejado encarnar e ilustrar os valores míticos, o soberano envelhecido deu a melhor demonstração da inanidade das grandezas imaginárias.12

Montesquieu foi um autor de contundentes palavras. Ele “ousou” mais do que outros, diria John Pocock.13 Afinal ele mostrou o tempo todo uma insolente desenvoltura ao criticar as ideias e os sistemas políticos. O próprio Rei Sol em especial, que fazia a todos tremer perante sua imagem, não escapou das ofensivas do noble de robe.14 Para se ter um exemplo acerca de tal fato, é interessante observar um trecho da Carta XXXVII, de Usbek a Ibben, das suas Lettres persanes (Cartas persas), obra ficcional sobre os costumes da sociedade da época. Publicada anonimamente no ano de 1721, foi por meio dela que o autor satirizou sutilmente o soberano e seu governo: O rei da França é velho. Nós não temos exemplos nas nossas histórias de um monarca que tenha reinado por tanto tempo. Diz-se que ele possui em altíssimo grau o talento de se fazer obedecer; ele governa com o mesmo gênio a sua família, a sua corte, o seu estado. [...] Estudei o seu caráter, e encontrei contradições que me é impossível de esclarecer. Por exemplo: ele tem um ministro que tem só dezoito anos, e uma amante que tem oitenta; ele ama a sua religião, e não suporta os que dizem que é preciso observá-la com rigor; [...] frequentemente prefere um homem que o ajude a despir-se, ou que lhe traga o guardanapo quando se põe à mesa, a um outro que lhe conquista cidades ou vence batalhas. [...] Ele é magnífico, sobretudo em suas construções; há mais estátuas nos jardins do seu palácio do que cidadãos numa grande cidade.15

Foi ainda sob o governo de Luís XIV que uma determinada configuração social atingiu o seu ápice num processo que parece ter perdurado por todo o Antigo Regime. Trata-se das cortes reais, ou sociedade de corte, como melhor definiu Norbert Elias. Deve-se atentar sempre, segundo ele, ao fato de que os nobres instalados institucionalmente na corte do rei, por exemplo, na França, precisam ser analisados como uma configuração pertencente a um contexto social amplo, no qual o sistema de relações se caracterizava mediante uma pluralidade de

STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.46s. Cf. POCOCK, John G. A. El momento maquiavélico. El pensamiento político florentino y la tradición republicana atlântica. 2 ed. Trad. Marta Vásquez-Pimentel e Eloy García. Madrid: Editorial Tecnos, 2008, p.564s. 14 Comumente, Montesquieu por diversas vezes foi reputado como noble d’épée, já que, além de ter sido magistrado (daí noble de robe), descendia de uma linhagem que remontava aos anos finais do século XV. O historiador Roland Mousnier enxergou a diferença entre essas “duas nobrezas” como inerente ao próprio Estado francês: “Na França, é o Estado moderno que é a fonte de antagonismo social. A sociedade francesa é uma sociedade de Ordens e de Estados, o que significa dizer que a sua estratificação social se estabelece segundo a estima social, a dignidade, a honra, pertencentes a funções sociais que não tem por objetivo a produção de bens materiais. Na França, em princípio, é sempre a profissão hereditária das armas que eleva às primeiras linhagens da sociedade. Mas o desenvolvimento do Estado aumenta cada vez mais os magistrados, os robins enobrecidos que rivalizam com os gentis-homens”. MOUSNIER, Roland. Les XVIe et XVIIe siècles, p.170. 15 MONTESQUIEU. Œuvres complètes I, p.184s. 12 13

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interdependências. E é essa “dinâmica de interdependências” que é a “mola”, para utilizar um conceito de Montesquieu, que põe em movimento os indivíduos e até mesmo as instituições, rumo às transformações que são inerentes aos processos sociais. De modo simplificado, isso significa apontar para a existência inequívoca de relações constantes entre diversos estratos componentes desse social. Segundo a descrição de Elias, a mais importante entre todas as sociedades de corte que se desenvolveram à época do Antigo Regime foi a francesa. O conjunto de fatores que caracterizava esse tipo de sociedade – código de conduta, maneiras, gosto e linguagem – irradiava de Paris para as demais cortes europeias. Isso só foi possível porque no tempo em que a sociedade europeia em geral se transformava, inúmeras formações sociais análogas, constituídas por relações sociais semelhantes, surgiram por todos os cantos. Como consequência, os vários círculos aristocráticos modernos inspiraram-se na nação mais rica e poderosa, encarnando cada um a seu modo aquilo que julgavam adequado às suas próprias necessidades. Ao assumirem a etiqueta francesa e o cerimonial parisiense, os mais diversos governantes “obtiveram os instrumentos que desejavam para tornarem manifesta sua dignidade, bem como visível a hierarquia social, e fazerem todas as demais pessoas, em primeiro lugar e acima de tudo a nobreza de corte, conscientes de sua posição”16, que era a de dependência e subordinação. E esse apanágio da dignidade voltada em sua plenitude única e exclusivamente para o soberano, sendo o caso máximo focalizado na figura de Luís XIV, deu o tom crítico das ideias de Montesquieu. De fato, ele chegou até mesmo a definir o governo desse soberano como despótico; daí a ideia acerca do despotismo estar presente o tempo todo em seus escritos. Mesmo quando abordou os outros dois tipos de governo, a república e a monarquia, ele teve o foco analítico direcionado para o despotismo. Uma das causas desse fato é o próprio governo de Luís XIV, o qual Montesquieu considerava o registro histórico por excelência de um regime despótico no Ocidente, já que os governos despóticos, segundo ele mesmo, se encontravam no Oriente. Se a França ainda não o era, disse o filósofo, se encontrava na eminência de tornar-se um daqueles governos monstruosos que vicejavam do outro lado mundo. A ideia de honra foi um elemento constitutivo da teoria das formas de governo elaborada por Montesquieu. Em Do espírito das leis, observa-se que a cada forma de governo corresponde determinado princípio, que é o que lhe dá vida, a “mola propulsora” que o põe em ação. As leis precisam ser relativas à natureza de cada governo, porém, não o podem deixar de ser também ao princípio de cada um, o qual exerce sobre elas grande influência. É algo curioso essa ideia da ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Formação do Estado moderno. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p.17. 16

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“mola” que o filósofo cunhou, especialmente quando se observa a relação recíproca que estabelecem, ou pelo menos deveriam se não quiserem ser corrompidos o princípio e as leis. É uma relação simplesmente física mesmo, mas de importância ímpar. Dessa relação das leis com o princípio do governo, o resultado é que a mola (princípio) se comprime, é espremida, recebendo, assim, uma nova força, uma nova propulsão, enfim, uma maior potência, fazendo com que o princípio ganhe mais fôlego e que, dessa maneira, aja melhor sobre os cidadãos. Na síntese de suas elaborações, fica definido que o princípio da república é a virtude, o da monarquia a honra e, por fim, o do despotismo, que é o temor. Ao fazer magnificamente com que todos os laços sentimentais e os interesses convergissem através dele e exclusivamente em seu benefício pessoal, o Rei-Sol encarnou as esperanças de todos os homens nos mais diversos sentidos. Com isso, ele se estabeleceu como o auge do absolutismo, para isso utilizando-se até dos sentimentos vassálicos teimosamente vigentes. Daí a aproximação visualizada por Montesquieu de seu regime, que era efetivamente monárquico, com os do tipo despótico. E ele não foi o único autor daquele período a elaborar tais considerações. Em suas Memórias, Saint-Simon, apresentou uma caracterização semelhante a de seu contemporâneo. O grande detrator de Luis XIV assinalou que mesmo tendo sido agraciado pela natureza com um espírito abaixo do que se podia considerar medíocre, o regente soube como ninguém “formar-se” rei e governar arbitrariamente. Ele procurou com muito zelo “estar bem informado de tudo daquilo que se passava em cada canto, nos lugares públicos e nas casas dos particulares, no comércio do mundo, nos segredos familiares e de suas relações. Os espiões e relatores eram infinitos”.17 No final de tudo, segundo Saint-Simon, tudo podia se resumir num governo que, além de consumir milhares de vidas tanto dentro como fora do reino francês, “confundiu e extinguiu todas as ordens, as regras, as leis mais antigas e sagradas do Estado; reduziu a realeza a uma miséria irremediável, e a aproximou de sua perda total”.18 A nobreza talvez tenha sido a instituição por excelência do Antigo Regime, já que, como notou a historiadora C. B. A. Behrens, ela formou o eixo de um universo que girava essencialmente ao seu redor. Todo aquele contexto da corte, incluindo o exército, as artes, o comércio e a indústria, tinha o seu funcionamento voltado em benefício e em resposta às necessidades dos aristocratas.19 E o seu estudo se faz necessário porque, a observância mais “exata no comportamento das diferenças em posição torna-se daí em diante a essência da cortesia [...]. A aristocracia e a intelligentsia burguesa convivem, mas é um imperativo do tato observar as

SAINT-SIMON. Mémoires, p.153. ______. Mémoires, p.211. 19 Cf. BEHRENS, C. B. A. O Ancien Régime. Trad. Ana Lúcia de Sena Lino. Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p.82. 17 18

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diferenças sociais e lhes dar expressão inequívoca na conduta social”.20 Sendo assim, é preciso analisar as práticas desses nobres dos séculos XVII e XVIII, que possibilitaram a eles, como instituição, serem configurados como tal, e de que maneira, com sua percepção do social, lidaram com os espaços de interação enquanto estiveram na condição de dominantes da estrutura social. É interessante retornar mais uma vez às concepções de Elias quanto às atitudes daqueles indivíduos da aristocracia de corte. O autor enxerga a corte como uma espécie de bolsa de valores, onde uma avaliação do “valor” de cada um desses nobres está sendo feita o tempo todo. Mas em tal contexto, o valor não se fundamenta na riqueza ou mesmo nas realizações ou capacidade do indivíduo, porém na estima que o rei tem por ele, na influência de que goza junto aos poderosos, na sua importância no jogo das coteries da corte. Tudo isso, estima, influência, importância, todo esse jogo complexo e sério no qual estão proibidas a violência física e as explosões emocionais diretas, e a ameaça à existência exige de cada jogador uma constante capacidade de previsão e um conhecimento exato de cada um, de sua posição e valor na rede de opiniões da corte, tudo isso exige um afinamento preciso da conduta a esse valor. Qualquer erro, qualquer descuido reduz o valor do indivíduo na opinião da corte e pode por em xeque a sua posição.21

O autor não informa nesse trecho, mas as ações por parte desses nobres visavam, de um modo ou de outro, à honra. Claro que a um tipo bem específico de honra, bem diferente daquela preconizada pelos aristocratas da Idade Média.22 Sendo assim, é possível afirmar que, quanto aos sentimentos de honra, pelo menos à época de Montesquieu, o que importava era a opinião que os outros estabeleciam sobre essa ou aquela pessoa, não o que ela efetivamente era, mas aquilo que achavam que ela fosse no interior de um grupo ou de uma sociedade num determinado contexto. Nas palavras do historiador Jean-Pierre Vernant, que aqui cabem plenamente para caracterizar os sentimentos predominantes na Época Moderna, cada um “está sob o olhar do outro, cada um existe a partir desse olhar. Se é o que os outros veem de si. A identidade de um indivíduo coincide com sua avaliação social: da zombaria ao louvor, do desprezo à admiração”.23

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p.86. 21 ______. O processo civilizador. Formação do Estado moderno, p.226. 22 Segundo Alfonso Valdecasas, “En el hidalgo y en el gentleman vemos palpitar el ideal caballeresco que en cierta medida fué común a toda la Europa medieval. [...] para el hidalgo, por ejemplo, honor era más sustancial que él mismo. Por eso podía sacrificarle la vida; y por eso también ese honor era independiente de la posesión de un cargo o de una determinada participación en bienes de riqueza”. VALDECASAS, Alfonso Garcia. El hidalgo y el honor. 2 ed. Madrid: Revista de Occidente, 1958, p.56s. 23 VERNANT, Jean-Pierre. A "bela morte" de Aquiles. In: GAUTHERON, Marie. (Org.). A honra: imagem de si ou dom de si - um ideal equívoco. Trad. Cláudia Cavalcanti. Porto Alegre: L&PM, 1992, p.34. 20

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Na obra De l’esprit des lois (que foi a bíblia dos aristocratas, na opinião de Behrens24), publicada em 1748, Montesquieu afirmou que requerer distinções e privilégios era da própria natureza da honra, e ainda que ela possuía as suas determinadas regras e os seus variados caprichos.25 O filósofo expôs que “A honra possui as suas regras supremas e a educação é obrigada a conformar-se a elas. As principais são: nos é permitido fazer caso de nossa fortuna, mas nos é soberanamente proibido dar importância à nossa vida”. E na sequência, aponta ainda para uma segunda regra, a qual prescreve que “assim que nos encontramos estabelecidos numa posição, não devemos fazer nada nem tolerar nada que nos mostre inferiores àquela posição”.26 Com essas duas breves regulamentações, o autor caracterizou algo caro aos sentimentos de honra prevalecentes na Época Moderna, com os quais a nobreza esteve fortemente comprometida, sacrificando-se por eles. Entre as concepções dos filósofos políticos, parece ser possível visualizar que, desde os tempos de Aristóteles (384 a.C – 322 a.C.) e de Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), a honra é um objeto presente em suas obras. Entretanto, em ambas as épocas, a ideia acerca dos sentimentos de honra aparece de maneira esparsa. Aristóteles, por exemplo, no capítulo II do livro V da sua Política, notou que os “objetivos pelos quais os homens se revoltam são o desejo de ganho e o de honrarias [...] pois os homens também se engajam em revoluções nas cidades para livrar-se a si mesmos e a seus amigos de desonra e perdas”.27 Posteriormente, em Cícero, já é possível visualizar o conceito de honra pensado de uma maneira mais detalhada. Para o autor romano, agir temerariamente na batalha, “medir-se corpo a corpo com o inimigo, é pura truculência, que tem mais de animal que de humano. Entretanto, quando há necessidade, é preciso saber enfrentar a luta, preferindo a morte à escravidão e desonra”.28 Mas a honra para os modernos é única e não foi conhecida pelos antigos. Conforme a opinião de Alfonso Valdecasas, a honra na Antiguidade encontrava-se praticamente presa às questões da comunidade e às do bem público, determinada diretamente pelos direitos políticos dos cidadãos.29 A honra se adquire por nascimento ou por mérito. Porém, e isso é apontado como um fato essencial, a sua perda por parte do indivíduo é algo que está a todo momento na iminência de acontecer, ou seja, ele vive constantemente sob máxima pressão de tornar-se desonrado. Essa mobilidade, isto é, o declínio e ascensão social de famílias no seio da “sociedade de ordens, é “A concepção clássica de honra da aristocracia do século XVIII encontra-se formulada por Montesquieu no seu De l’esprit des lois, que se tornou a bíblia de todos os nobres da Europa. Era citado pela nobreza húngara, que em geral nunca abria um livro, e inspirava a aristocracia russa”. BEHRENS, C. B. A. O Ancien Régime, p.77. 25 MONTESQUIEU. Œuvres complètes II. Paris: Éditions Gallimard, 2001, p.285s. 26 ______. Œuvres complètes II, p.264s. 27 ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p.165. 28 CÍCERO, Marco T. Dos deveres. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.55. 29 Cf. VALDECASAS, Alfonso. G. El hidalgo y el honor, p.132s. 24

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determinada inicialmente por fatores sociais; ou seja, não é criada por nenhum indivíduo, por nenhum rei. [...] o declínio e a ascensão das famílias são a princípio manifestações da dinâmica inerente de tal figuração”.30 Tratava-se na verdade de um campo no qual os indivíduos estavam inseridos numa espécie de “jogo da honra”, onde se tinha um equilíbrio completamente instável. Nas ideias de Pierre Bourdieu, a competição pela honra assemelha-se à lógica de um jogo ou de uma aposta. Lógica essa que é ritualizada e institucionalizada. O que se põe em xeque é o amor próprio, o ponto de honra do indivíduo. E, segundo a teoria dos jogos, o indivíduo reputado como bom jogador é aquele que consegue enxergar o seu opositor como alguém capaz de discernir qual é a melhor estratégia a ser aplicada, regulando o seu jogo a partir da mesma. No jogo da honra cada uma das partes deve tomar a outra como dotada dessa deferência que se traduz no ato de jogar esse tipo específico de jogo segundo as regras do código de honra. Dessa maneira, conclui-se que o desafio e a sua aceitação “implicam que cada antagonista escolha jogar o jogo e respeitar-lhe as regras ao mesmo tempo em que assume cada qual que o seu oponente é capaz da mesma escolha. Respeito por si, respeito pela regra, respeito pelo oponente e convite ao respeito são inseparáveis”.31 E Jean Starobinski complementa a ideia exposta por Bourdieu, ao avaliar que a estrutura fundamental que, como afirmava o ideal clássico, liga um indivíduo a um outro por meio de um ato de julgamento, “é reconhecível sob diversas variantes estilísticas: essa relação é expressa, ora do ponto de vista daquele que revela sua perspicácia, ora do ponto de vista daquele que constitui o objeto de um sentimento. Um olha e o outro se expõe”. E o bom jogador ou juiz é aquele que “vê o valor de tudo”, que “aprecia”, que “aprova as boas coisas”; o homem de bem, se se mostra, saberá “merecer a estima”, “ser louvado”. A clara luz do julgamento racional parece, assim, coextensiva a toda a extensão do comércio da sociedade. Tudo pode ser apreciado em seu justo valor; nenhum gesto, nenhuma palavra se manifestam sem que estejam imediatamente destinados a receber uma qualificação, segundo um código estável de valores.32

Para Julian Pitt-Rivers, ao mesmo tempo em que a honra garante posição social, o contrário, isto é, a perda de tal posição, não deixa de ser verdadeiro.33 E por que a honra é perdida? De modo sucinto, pode-se afirmar que a honra está perdida, ou seja, que o indivíduo é agora alguém despossuído de qualquer reconhecimento honorífico, quando a sua respectiva posição social, com todas as suas ações nesse âmbito, não correspondem mais aos códigos ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.89. 31 BOURDIEU, Pierre. The Sentiment of Honour in Kabyle Society. In: PERISTIANY, John G. (Org.). Honour and shame: The values of Mediterranean Society. Chicago: The University of Chicago Press, 1974, p.204 32 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.60. 33 Cf. PITT-RIVERS, Julian. Honour and Social Status. In: PERISTIANY, John G. (Org.). Honour and shame, p.23s. 30

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presentes na sociedade na qual ele vive. Pois é o grupo mesmo que sanciona, pela estima dada a esse indivíduo, se ele é ou não um homem honrado, porque “mesmo que um homem (como a maioria faz) atribua a si mesmo o mais alto valor possível, o seu verdadeiro valor não será superior ao que for estimado por outros”.34 Já nas cortes do Antigo Regime francês, por seu turno, o nobre perderia a honra, o que seria a mesma coisa que perder a razão de sua própria existência, quando não mais gozasse do privilégio de se distinguir dos comuns, das petites gens35, os quais correspondiam aos que não estavam incluídos nos círculos que rodeavam o rei, a esfera própria de contato pessoal dos nobres. A essa altura, é interessante fazer um paralelo entre as atitudes dos indivíduos da esfera aristocrática em período já mais avançado e aquelas dos seus antecessores renascentistas. Como bem observou Quentin Skinner, a figura ostensiva do gentil-homem do Renascimento continuava a valer até mesmo nas décadas finais do século XVI. E muito das características que lhe davam forma, prevaleceram por períodos ainda mais avançados. Entretanto, afora esses resquícios algo pitorescos, a ideologia que rodeava o vir virtutis foi varrida quase por completo, pelo menos na Europa mais ao Norte, em meados do século XVII. Com seu código de honra – aberto a tanta suscetibilidade – e com sua incessante sede de glória, o herói típico da Renascença começou a parecer levemente cômico, em seu claro descaso pelo instinto natural de autoconservação: um instinto, aliás, defendido com todo o vigor por Falstaff em sua célebre denúncia da “honra” que lança os homens à batalha sem lhes ensinar como “tirar a dor de um ferimento”. Uma vez dispensado, com tão pouco pudor, o ideal central do vir virtutis, não demorou para que o edifício inteiro das teses sobre a virtude, a honra e a glória começasse a desabar.36

De fato, os nobres dos séculos XVII e XVIII já agiam seguindo maneiras mais ‘civilizadas’ e com um autocontrole exercido a todo tempo e em todos os ambientes. As formas cortesãs de agir já se encontravam arraigadas nos indivíduos do Século das Luzes, mas isso resultou de um processo de longuíssima duração, como estudado por Elias, que se desenvolveu desde o remoto século XII, atravessando inclusive o momento descrito por Skinner. “Não que as pessoas andassem sempre de cara feia, arcos retesados e postura marcial como símbolo claro e visível de sua perícia belicosa”37 nos séculos da Época Moderna, mas os indivíduos continuaram a brandir suas espadas perante os seus iguais em honra, especialmente os nobres. Mesmo porque, era extremamente fácil cair em desgraça plena. A vida no interior das cortes do Antigo Regime era um jogo desgastante, onde vivia-se uma tensão incessante. Com o tempo, mesmo tendo sido HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.77. 35 A nobreza francesa era denominada há séculos, e especialmente ao longo do Antigo Regime, como Les Grands, grupo detentor de todos os privilégios. Cf. BEHRENS, C. B. A. O Ancien Régime, p.62s. 36 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.122. 37 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes, p.198. 34

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expressamente proibido mediante resoluções régias, os duelos continuavam existindo para reparar as questões de honra; as espadas eram exibidas o tempo todo.38 Nem mesmo a tipificação do duelo como crime de lesa majestade, a mais grave de todas as infrações, conseguiu extinguir essa longa tradição peculiar da aristocracia europeia. Segundo a opinião de Norbert Elias, A determinação da aristocracia de não submeter desavenças pessoais entre os homens do próprio grupo a que pertencem, ao veredicto competente do rei e de seus tribunais de justiça, reivindicando, pelo contrário, o direito de resolvêlas independentemente – e violando assim o monopólio régio da violência ao combaterem mutuamente com uma arma na mão, segundo as regras de seu próprio código de honra – era, como já foi sugerido, uma expressão simbólica da concepção que a nobreza tinha de si mesma, não só como o mais alto estrato da sociedade mas também como a verdadeira personificação do Estado. Como tal, os membros do establishment seguiam suas próprias regras, padrões de comportamento e estratégias de vida; em certos aspectos, sentiam-se justificados ao transgredir as leis do país, as quais existiam para manter na ordem a massa do povo, os súditos do rei. Os membros da alta aristocracia eram especialmente recalcitrantes.39

Todavia, com o poder fortemente centralizado a partir da segunda metade do século XVII, o Estado absolutista tomou para si, de fato, a prerrogativa da punição dos delitos, tanto na esfera pública quanto na privada, claro que com importantes ressalvas.40 Essa transformação fez com que o moralista Jean de La Bruyère (1645 – 1696), por exemplo, rendesse louvores a Luis XIV. Poucos meses antes do nascimento de Montesquieu, numa passagem de Les caractères, La Bruyère exaltava como um grande monarca aquele que sabia “abolir os usos cruéis e ímpios, caso eles reinem; reformar as leis e costumes, se se encontrassem repletos de abusos; dar às vilas mais segurança e comodidade por meio de um policiamento”.41 Com essas palavras, o autor posicionava-se no debate de sua época contra a tradição do duelo, atrelada a da honra. Graças à formação desse monopólio da violência, a ameaça que um homem representava para os demais ficou sujeita a um controle mais rigoroso e tornou-se, assim, mais calculável. Dessa maneira, os nobres sofreram uma mudança capital em seus costumes, passando a exercer 38Cf.

WILHELM, Jacques. Paris no tempo do Rei Sol (1660 – 1715). Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.245. 39 ELIAS, Norbert. Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.69. 40 Na verdade, nenhum dos Estados modernos gozou de forma absoluta das prerrogativas dos indivíduos, fossem eles aristocratas ou burgueses. Havia limitações para isso, tanto as de ordem legal como as de caráter religioso, sendo essas últimas herança dos tempos medievais e que mantiveram boa dose de influência na Modernidade, mesmo após as inserções de realismo político elaboradas a partir de Maquiavel. Cf. ANDERSON, Perry. Classes e Estados: problemas de periodização. In: HESPANHA, António M. (Org.). Poder e instituições no Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984; HESPANHA, António M. A questão do absolutismo no sistema político da época moderna. In:—. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012; LOPES, Marcos A. O direito divino dos reis. In:—. O imaginário da realeza: cultura política ao tempo do absolutismo. Londrina: Eduel, 2012. 41 LA BRUYÈRE, Jean de. Les caractères ou les mœurs de ce siècle. Paris: Librairie Hachette, 1890, p.284. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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uma função básica, que era a de viver ao lado do rei, prestando serviços considerados meramente domésticos. Segundo Jacques Levron, os cortesãos se posicionavam em torno do rei de tal maneira que pareciam formar um verdadeiro balé.42 Mesmo porque, à medida que se viu despojada de seu papel militar, a nobreza precisava encontrar outros meios de justificar seus privilégios; tinha a necessidade de continuar a mostrar que era diferente dos outros. O certo é que, mediante todas essas questões, o refinamento dos modos sociais dos indivíduos estava consolidado. O fato importante desse anseio da aristocracia de se mostrar distinta dos demais está enraizado numa questão essencial quando se tem em mente as estruturas políticas e sociais à época do Antigo Regime. Para além das distinções pensadas como superficiais mas que eram de relevância ímpar, como tipos de vestimenta, etc., tratava-se de um tipo de sociedade denominada como deferente, conforme expressão de John Pocock.43 No seu interior, o que se tinha era a presença de uma elite detentora de prerrogativas e naturalmente aceita como superior, e de uma não-elite, que aceitava o seu papel de subjugada e o de dirigente político da primeira. As crenças nas aptidões naturais da aristocracia encontrando-se manifestadas espontaneamente, e não impostas, acabavam por culminar num complexo e enraizado entrelaçamento de esferas distintas: o público e o privado confundiam-se para os nobres. Segundo Marilena Chauí, a própria pessoa privada do soberano, “transfigurada, torna-se pessoa pública e o espaço público, privatizado, comporta duas e apenas duas formas de relação: a do favor (expressa no sistema de proteção e vassalagem) e a da imitação”.44 Como explicou o historiador Guy Chaussinand-Nogaret, o ato de servir ao soberano na corte foi o princípio e a essência que deram forma à nobreza ao longo do século XVIII. Era uma ambição pretendida por todos, e aqueles que não praticassem esse ato pleno de simbolismo, o deixavam de fazer não por vontade própria, mas sim pelos obstáculos impostos pela “roda da fortuna”. Possuir o direito para realizar tais serviços era considerado um privilégio essencial do estatuto nobiliárquico, e explicava um pouco acerca daquela hostilidade por parte da nobreza – hostilidade relativa e que comporta boas nuanças – para com os burgueses da época. “Servir ao rei é em primeiro lugar um direito, um dever e uma honra, e um nobre não saberia abster-se dessas obrigações morais”.45 Como observou Montesquieu, num tom crítico, para a sua época

Cf. LEVRON, Jacques. Les courtisans. Paris: Éditions du Seuil, 1961, p.37s. POCOCK, John G. A. Cidadania, historiografia e Res publica, p.93s. 44 CHAUI, Marilena. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto. (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.525. 45 CHAUSSINAND-NOGARET, Guy. La noblesse au XVIIIe siècle: De la Féodalité aux Lumières. Bruxelles: Éditions Complexe, 2000, p.73. 42 43

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“As riquezas, o nascimento, etc., são medalhas; a estima pública e o mérito pessoal são a moeda corrente”.46 É claro que a honra continuou a estar na ordem do dia na vida de tais pessoas. Mas, a partir de então, agiam das mais diversas formas para mantê-la ou adquiri-la, porém, agora de um jeito mais refinado e sutil. A adulação ao rei, fazendo com que este preferisse determinados indivíduos em detrimento de outros, por exemplo, foi uma estratégia largamente utilizada para tal fim, dentre inúmeras outras maquinações elaboradas por parte dos nobres cortesãos. O próprio Maquiavel, ao construir o seu peculiar espelho de príncipes, havia alertado, dois séculos antes de Montesquieu, sobre os aduladores, dos quais as cortes estão repletas: pois os homens se comprazem tanto com suas coisas, e de tal modo se enganam com elas, que com dificuldade se defendem dessa peste. E, caso queiram defender-se, correrão o risco de tornarse desprezados; porque um príncipe não tem outro modo de esquivar-se das adulações senão fazendo os homens entenderem que eles não o ofendem dizendo-lhe a verdade; porém, se todos lhe disserem a verdade, lhe faltará a reverência devida.47

Acerca das maquinações perniciosas da adulação, Jean Starobinski discorre de uma maneira que condiz em parte com as ideias de Maquiavel, e entrelaça-se finamente com as de Montesquieu. Segundo o historiador, o discurso moral da tradição clássica reencontra a mesma relação, porém mais acentuada, se isso é possível, quando se trata não mais do rico particular, mas do tirano ou do príncipe. Entre o adulador e o tirano, a aposta é ao mesmo tempo mais elevada e mais perigosa: o que está em jogo é o próprio poder, e o favor traduz-se por imensas riquezas. A lisonja dá livre curso à sua figura favorita, a hipérbole. Ela diviniza o príncipe; concede-lhe a satisfação de todos os seus desejos; remove todos os obstáculos que a virtude tentaria opor. Ao mesmo tempo, entrega todos os opositores à vindita do senhor: adulador e delator são uma e mesma coisa. [...] o poder do príncipe, longe de ser sem limites, aparece cada vez mais confinado às satisfações “infames”: prosseguida até o seu termo, a história, tal como a conhece Tácito, nos faz ver que esse deus é o menos livre possível.48

Nos séculos que avançam de Maquiavel a Montesquieu, visualiza-se de maneira pouco difícil que ocorreu um processo de secularização da personalidade. Ideia essa que se desenvolveu imbricada na projeção refletida por parte dos teóricos de uma sociedade que deixou de ser esotérica para tornar-se histórica. Aquele “deus” prisioneiro da função social citado por Starobinski já não era tão deus assim. Mas isso fica em segundo plano, quando se tem a ideia da profundidade da questão, pois Montesquieu poderia ter reiterado o reconhecimento

MONTESQUIEU. Œuvres complètes II, p.1.271. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2010, p.127. 48 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização, p.69s. 46 47

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anteriormente visualizado por Maquiavel acerca da virtude cívica, a qual era, em sua opinião, autônoma e profana, não sendo identificável com qualquer tipo de moralidade social fundada em valores exclusivamente cristãos.49 E quando aquele indivíduo vai aos poucos deixando de assemelhar-se a um santo, a sua personalidade cívica necessita mais e mais de uma virtù relacionada com uma moralidade fundada em valores sociais e materiais, e menos espirituais. Como observou John Pocock, o contraste entre o “patriota” e o “homem de comércio”, entre a virtude e a polidez, surgiu nos primórdios do século XVIII com Montesquieu, sendo não o primeiro expoente, mas o expoente de maior autoridade. Com a ascensão conjunta do comércio e da cultura, a virtude no sentido antigo tornou-se arcaica, pois novas formas de relacionamento social surgiram. Contudo, Montesquieu, apesar de descrever fartamente como le doux commerce refina e modera o comportamento – como a polis é substituída pela polidez à medida que a oikos é absorvida pela economia –, não dá o nome de “virtude” àquilo que toma o lugar da velha virtude. Consequentemente, embora possamos descobrir, pouco a pouco em seu texto, que algo, cujo princípio é a virtude, vem depois da república, ele não categoriza explicitamente o que é esse algo, e não nega a possibilidade de que o refinamento moderno corrompa a antiga virtude, sem substituí-la.50

Esse vocabulário político de novo conteúdo foi crucial para o pensamento político de Montesquieu, pois como ele mesmo notou, cada século teria o seu gênio particular e era o espírito de comércio que dominava no seu. Tal espírito fazia com que tudo, sem exceção, fosse calculado.51 A virtude mundana calcada no comércio já havia sido fortemente combatida pelo “esmiuçador dos Testamentos” Jacques-Bénigne Bossuet (1627 – 1704), mesmo porque ainda era o tempo em que, de certa maneira, “as metáforas religiosas ainda possuíam o efeito de verdade”52, servindo de contraponto a toda essa laicização. Como lembrou Lucien Febvre, para Bossuet, aquela espécie de virtude era falsa e enganadora, e se bastava na aparência. E para esse moralista era preciso que os pensadores utilizassem a honra, fazendo com que ela coincidisse com a virtude, a qual deveria tornar-se cada vez mais exigente. Essa foi parte da política construída por

Cf. POCOCK, John G. A. El momento maquiavélico, p.564s. Cf. POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. Trad. Fábio Fernandez. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p.154s. 51 Na opinião do autor, “Cada século tem o seu gênio particular: na Europa, um espírito de desordem e de independência se formou com o governo gótico; o espírito monástico infectou os tempos dos sucessores de Carlos Magno; na sequência, reinou aquele da cavalaria; o da conquista apareceu com os exércitos regulares; e hoje é o espírito do comércio que domina. Este espírito de comércio faz com que se calcule tudo”. MONTESQUIEU, Œuvres complètes II, p.1.306s. 52 LOPES, Marcos Antônio. Mestres do passado: clássicos da sabedoria política moderna. Londrina: Eduel, 2009, p.146 49 50

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Bossuet. Mas tal parece não ter sido a de Montesquieu, já que as suas assertivas constituíram uma resposta veemente aos autores de sermões.53 É na obra de David Hume (1711 – 1776) que ideias condizentes com as de Montesquieu podem ser focalizadas.54 Ao tratar sobre questões referentes ao governo britânico, ele afirmou que quando se observa “o crescente luxo da nação, nossa predisposição à corrupção, aliada aos grandes poderes e prerrogativas reais e ao comando da força militar, não há quem não desanime”.55 Hume reconhecia ainda, assim como o seu contemporâneo francês, a responsabilidade do comércio pelo refinamento dos indivíduos, pensando até mesmo que o “senso de honra, que é um princípio mais poderoso, constante e governável, adquire novo vigor com a educação”.56 Entretanto, em governos como o francês, a decadência que o comércio poderia vir a sofrer, não era devido ao fato de que lá ele fosse menos seguro, mas sim pelo fato de ser visto como menos honroso. E uma subordinação de classes se fazia extremamente necessária para que houvesse a manutenção da monarquia. “Nascimento, títulos e cargos devem ser honrados acima de indústria e riquezas. [...] todos os mercadores de vulto serão tentados a abandonar sua ocupação em prol de empregos com os quais obtêm privilégios e honras”.57 Foi no momento em que a propriedade passou a ser enxergada em termos de valoração simbólica que se expressava na moeda e principalmente no crédito, que as bases que fundamentavam a personalidade dos indivíduos tornaram-se imaginárias, passando a depender do consenso dos outros. Tratava-se daquilo que o jurista milanês Cesare Beccaria (1738 – 1794) denominou, alguns anos depois de Montesquieu, como “despotismo da opinião”. No ano de 1764, em seu Dos delitos e das penas, notou que com a aproximação dos homens devido ao comércio, e o respectivo progresso de suas ideias, ao longo daqueles séculos originou-se uma série infinita de ações e necessidades recíprocas sempre superiores à providência das leis e inferiores ao poder atual de cada um. [...] É a opinião que atormenta o sábio e o vulgo, que valorizou a aparência da virtude acima da virtude mesma, que converte em missionário até mesmo o celerado que nisso encontra o seu interesse. Portanto, a aprovação dos homens se tornou não só útil, mas necessária para não cair abaixo do nível comum. Portanto, se o

Cf. FEBVRE, Lucien. Honra e pátria. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.146s. “[...] a maneira de pensar do Iluminismo, relativamente ao futuro da humanidade, continuava a estar profundamente comprometida com o cepticismo e o pessimismo que estavam latentes na tradição humanísticocívica, tal como foi moldada pela linhagem maquiaveliana. Nem Montesquieu, nem Hume, nem tão pouco Smith ou Jeferson, eram verdadeiramente capazes de superar a visão proto-rousseauniana de um futuro em que o comércio, o progresso a e especialização corromperiam a civilização, mesmo que o tenham antecipado”. POCOCK, John G. A.Cidadania, historiografia e Res publica, p.119. 55 HUME, David. Ensaios políticos. Trad. Pedro Pimenta. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.38. 56 ______. Ensaios políticos, p.137 57 ______. Ensaios políticos, p.69. 53 54

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ambicioso a conquista por ser útil, se o vaidoso a mendiga como prova do seu mérito, o que se vê é o homem honrado exigi-la como necessária.58

Mas Beccaria não fazia mais do que endossar o discurso político de Montesquieu. Em 1725, o filósofo francês redigiu uma dissertação sobre a ideia de consideração e de reputação. O texto foi lido na Académie de Bourdeaux, e, com pesar, ele disse que “A consideração contribui muito mais para a nossa felicidade do que o nascimento, as riquezas, os cargos, as honras”, e que não saberia apontar “um papel mais triste no mundo do que aquele representado por um grande senhor sem mérito, que sempre foi tratado com expressões batidas de respeito, no lugar daqueles tratos ingênuos e delicados que a consideração faz sentir”.59 Dessa maneira, estes indivíduos existiam, até mesmo em suas próprias consciências, em função de um valor flutuante, o qual impunha a avaliação de cada um deles perante os outros; sendo públicas e constantes, esse tipo de valorização era efetuada de “una manera demasiado irracional como para merecer la consideración de decisiones políticas de la virtud. Fue entonces cuando la amenaza de la corrupción se hizo sentir en términos especialmente pronunciados”.60 E é justamente a denúncia dessa corrupção que ameaçava por todos os lados que foi a “mola” para a elaboração do pensamento político de Montesquieu, e que acabou por alterar até mesmo a sua concepção acerca da honra. Em De l’esprit des lois, o governo despótico constitui o fundo ameaçador, pintado na figura de um só indivíduo detentor do poder ilimitado, reinando pelo medo, e que constitui o momento derradeiro de um processo de degeneração ao qual todas as sociedades estariam expostas. É a corrupção da forma de governo. Por seu turno, nas Lettres persanes, em meio a todo o entrelaçamento das causas, o alerta dado pelo autor acerca das maneiras já havia sido enfático, pois o que se procurou ali foi o desmascaramento dos vícios e desnudamento da hipocrisia dos cortesãos; hipocrisia entendida, na verdade, como sinônimo de violência. Trata-se da corrupção dos indivíduos. E o autor lamentava-se que é “muito ruim que a maioria dos principais de um Estado sejam pessoas desonestas, e que os inferiores sejam gente de bem; que aqueles sejam enganadores, e que esses consintam em só serem enganados”.61 Montesquieu foi um crítico ávido dos círculos aristocráticos de corte, nos quais só conseguiu enxergar vícios em todos os tempos e em todas as épocas. “A ambição no ócio, a baixeza no orgulho, o desejo de enriquecer sem trabalho, a aversão pela verdade, a bajulação, a traição, a perfídia, o abandono de todos os comprometimentos, o desprezo pelos deveres do

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 3. ed. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.58. 59 MONTESQUIEU. Œuvres complètes I, p.120. 60 POCOCK, John G. A. El momento maquiavélico, p.565. 61 MONTESQUIEU. Œuvres complètes II, p.265. 58

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cidadão, o medo da virtude do príncipe”62, tudo isso somado dava como resultado algo que caracterizava a corte. Ao analisar a vida de Maquiavel, o historiador italiano Maurizio Viroli lança uma ideia que cabe muito bem para o contexto do pensador francês. Segundo ele, aquele indivíduo que se dedica honestamente ao interesse público, que canaliza o seu esforço para tentar compreender os males que assolam a sua pátria ao mesmo tempo em que procura as possíveis soluções para eles, deveria contar com a estima dos demais. Mas, uma vez que os homens são, “em sua maioria, invejosos e mesquinhos, acontece quase sempre o contrário: quanto mais alguém trabalha para o bem comum com retidão e inteligência, mais os outros o veem com suspeita e rancor e se esforçam para prejudicá-lo e impedi-lo de continuar sua obra”.63 Isso direciona o foco diretamente para as ideias de Montesquieu com relação à honra porque, como bem explicou Jean Starobinski, aquelas atitudes cortesãs pautadas exclusivamente num tipo de ambição que não focalizava o bem público foi exatamente o que Montesquieu reprovou em seus contemporâneos. “Essa reprovação atinge de fato a moral feudal da honra. Com o advento da monarquia absoluta, porém, a honra, como valor supremo e incondicional, tornara-se apanágio exclusivo do soberano”.64 Sendo assim, não é algo fora de propósito afirmar que as ideias do autor inserem-se no debate de sua época por meio de um vocabulário político que comporta conceitos distintos de honra: a honra com resquícios de feudalidade, destinada aos nobres por suas próprias características e a honra como aparência, relegada aos cortesãos e dependente dos humores do príncipe. E são as ideias do próprio Montesquieu que possibilitam sustentar tal afirmativa, já que é num tom de muito pesar que ele assegurou, em Mes pensées, que há “a aparência de que o que se denomina valor heroico vai se perder na Europa”, [...] “Esse espírito de glória e de valor se perde pouco a pouco entre nós”, e as “ideias antigas de heroísmo e novelas de cavalaria se perderam”. 65 Ao mesmo tempo em que percebeu os benefícios advindos com o progresso do comércio, o autor também mostrou o outro lado da moeda. Isso porque para ele os abastados fundos públicos, aliados às maquinações por parte dos príncipes, além das frivolidades dos cortesãos, acabaram por fazer com que “uma infinidade de pessoas vivesse na ociosidade e que por essa mesma ociosidade obtivessem a consideração”.66 Acerca disso, Montesquieu notou, num tom de reprovação, que à sua época

______. Œuvres complètes II, p.256. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau: história de Maquiavel. Trad. Valéria Pereira da Silva. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.131. 64 STAROBINSKI, Jean. Montesquieu, p.47. 65 MONTESQUIEU. Œuvres complètes I, p.1.305s. 66 MONTESQUIEU. Œuvres complètes I, p.1.306. 62 63

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Um homem honesto que goza de consideração em seu mundo, encontra-se no mais feliz estado onde poderia estar; ele desfruta a todo instante dos olhares de todos aqueles que o circundam; ele encontra em um nada que acontece, nas mínimas frases, nos mínimos gestos, as marcas da estima pública, e sua alma se entretém deliciosamente com essa satisfação que acarreta as demais satisfações, esse prazer que agrada aos próprios prazeres.67

E naquele contexto em que a vanglória parecia estar dominando, pois já não era buscado o amor pela pátria, Montesquieu conclui: “toda a guerra tem consistido mais na arte, do que nas qualidades pessoais daqueles que lutam [...] a nobreza não combate mais em corpo”.68 Entretanto, o que foi exposto acima não autoriza afirmar que o pensamento político do filósofo seja ambíguo ou anacrônico. Ele foi um nobre, noble de robe, mas também noble d’épée. Como os demais indivíduos, defendeu os privilégios políticos de sua casta. Mesmo porque, explicitamente, Montesquieu sempre esteve ligado a determinados valores que estabeleceram as suas ideias, valores dos quais ele nunca se libertou completamente: privilégios que deitavam raízes no período feudal, corpos privilegiados, poderes intermediários. Tudo isso confundia-se no seu olhar. Ele acreditava naqueles privilégios “naturais” da aristocracia, e isso fica claro nos livros finais de De l’esprit des lois, os quais pouco são lidos. Mas ao tornar-se nobreza de corte, aos moldes do último século do Antigo Regime, a classe nobre apelou somente “à satisfação do rei, de quem espera recompensas. Se Montesquieu renuncia ao ideal heroico, o que queria que o homem se superasse no sacrifício e na façanha, é porque esse ideal não pode mais ser vivido autenticamente”.69 Por sua vez, como foi frisado por Montesquieu, em sua época o sucesso e as honras eram relegados a aqueles que só sabiam adular e servir aos poderosos. Posteriormente, com o advento das sociedades ditas burguesas, nas quais prevaleceram os ideais republicanos, monarquias caíram, famílias aristocráticas foram banidas para todos os cantos da Europa, e as ideias políticas foram profundamente abaladas. Contudo, a honra parece ter sobrevivido a todos esses golpes. Pois se ainda é uma ideia que continuou a ser debatida (ou combatida, não raras vezes), é provavelmente porque algo daquela honra à l’Ancien Régime não se extinguiu com o solapamento das sociedades aristocráticas da Europa moderna. Algumas análises apontam que hoje a honra, nos seus enquadramentos teóricos de cunho burguês, republicano ou democrático, estaria relegada ao cumprimento de contratos e acordos.70 Pode até ser que tal ideia não esteja completamente equivocada. Mas essa é uma pesquisa que ainda está por ser realizada. Porém, é

______. Œuvres complètes I, p.120. ______. Œuvres complètes I, p.1.306. 69 STAROBINSKI, Jean. Montesquieu, p.47. 70 Cf. APPIAH, Kwame A. O código de honra: como ocorrem as revoluções morais. 1. ed. Trad. Denise Bottimann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 67 68

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pouco provável que a honra tenha perdido todo aquele seu conteúdo narrado pelos autores modernos, o qual resguardava o direito de alguns poucos à distinção em relação aos outros.

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Bem Casar: exogamia familiar e estratégias matrimoniais (Comarca do Rio das Mortes - Minas Gerais, séculos XVIII e XIX)1

Artigos

Marrying Well: family and matrimonial exogamy strategies (Comarca do Rio das Mortes - Minas Gerais, eighteenth and nineteenth centuries) Isaac Cassemiro Ribeiro Mestre em História Universidade Federal de São João del-Rei (UFJS) isaac.ribeiro7@gmail.com Recebido: 24/06/2014 Aprovado: 16/03/2015 RESUMO: O artigo tem como proposta apresentar e analisar a prática da exogamia familiar enquanto estratégia matrimonial no período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, na região mineira da comarca do Rio das Mortes. Para tanto, utilizamos de um estudo de caso no qual buscamos observar as variações nos padrões das uniões exogâmicas levadas a cabo pela primeira geração de um grupo familiar recém-chegado à região das Minas, vindo de Portugal. Também comparamos o estudo de caso à historiografia que aborda a prática dos casamentos exogâmicos nas diferentes regiões da colônia e do Império brasileiro, buscando compreender o que buscavam estas famílias ao realizarem uniões exogâmicas à parentela. PALAVRAS-CHAVE: Exogamia, Estratégias Matrimoniais, História da Família. ABSTRACT: The article aims to present and analyze the practice of family exogamy while matrimonial strategy in the period between the eighteenth and nineteenth centuries, in the mining region of the Comarca do Rio das Mortes. Therefore, we use a case study in which we seek to observe variations in patterns of exogamous unions carried out by the first generation of a newcomer family group to the region of Minas, coming from Portugal. We also compared the case study to historiography that addresses the practice of exogamous marriages in the different regions of the colony and the Brazilian Empire, trying to understand what these families sought to carry exogamous marriages to relatives. KEYWORDS: Outbreeding, Strategies Matrimonial, Family History.

No Brasil o casamento, durante o período colonial e grande parte do Império, foi considerado como “negócio”, inclusive no sentido mercantil do termo. Porém, não devemos nos

1Este

artigo é uma adaptação de parte do primeiro capítulo da dissertação de mestrado do autor, para maiores detalhes ver: RIBEIRO, Isaac Cassemiro. Família e Povoamento na Comarca do Rio das Mortes: Os “Ribeiro da Silva”, Fronteira, Fortunas e Fazendas (Minas Gerais, séculos XVIII e XIX). São João del-Rei: UFSJ, 2014. (Dissertação de Mestrado). Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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esquecer do conselho de André Burguière ao tratar das famílias “alargadas e complexas” do leste europeu: “é pouco freqüente que as estratégias familiares obedeçam a uma racionalidade puramente econômica”.2 No caso dos camponeses aos quais o autor se refere, integrados em uma economia dominial, não se pode negligenciar “o sentimento de segurança e de inserção no grupo, que um indivíduo podia extrair por pertencer a uma grande família”, sentido que pode ser estendidos também às estratégias empregadas pelas famílias que abordamos neste artigo.3 No Brasil colonial, e em grande parte do período imperial, por meio do dote, mulheres serviam de importante instrumento para montagem de novas unidades produtivas e na dinâmica de reprodução social de grupos familiares. Muriel Nazzari, ao estudar o papel do dote na sociedade paulista entre os séculos XVII e XIX, afirma que a família no Brasil só deixou de estar ligada à atividade produtiva no século XIX, quando, devido ao “aumento do Estado” e o surgimento da classe média, principalmente ligada a profissões liberais, as unidades familiares deixaram de ser unidades de produção para se tornarem unidades de consumo.4 Nos termos da autora: A característica importante [destas famílias] é que constituíam unidades de consumo e não de produção. O marido produzia, uma vez que prestava serviços, mas produzia como indivíduo; a família, como unidade, somente consumia. E o status e o nível de consumo não se baseavam na propriedade dos meios de produção ou capital, mas no exercício de uma profissão, capital humano. Quanto a essa característica, essas famílias eram verdadeiramente “modernas”. Diferiam nitidamente das famílias do século XVII e XVIII, bem como daquela dos pequenos proprietários da zona rural de São Paulo de meados do século XIX, que eram primordialmente unidades de produção.5

Assim, na maior parte do recorte cronológico circunscrito neste artigo, ao escolher com quem sua filha casar-se-ia, tendo o dote como atrativo, os pais traçavam estratégias específicas, de cunho patriarcal6, formando alianças com outras famílias, ou reiterando alianças de parentesco consanguíneo, constituindo novas unidades produtivas. Por meio desta prática as famílias buscavam, dentre outros benefícios, a manutenção de fortunas e o fortalecimento da parentela em uma determinada região.

BURGUIÈRE, André & LEBRUN, François. As mil e uma famílias da Europa, in. BURGUIÈRE, André et all. História da Família, vol. 3. Lisboa: Terramar, 1987, p. 26. 3 BURGUIÈRE, André & LEBRUN, François. As mil e uma famílias da Europa, p. 26. 4 NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote: Mulheres, Famílias e Mudança Social em São Paulo, 1600-1900. São Paulo: Cia. Das Letras, 2001.p.164. 5 NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote, p.164. 6 Para uma abordagem sobre a presença do família patriarcal em Minas Gerais durante o século XVIII e XIX, bem como o universo de valores patriarcais que permeavam essa sociedade ver: BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: Família e Sociedade (São João del-Rei – Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007. 2

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Silvia Brügger atenta para que, independente das estratégias matrimoniais específicas, o “casamento entre iguais” era um valor que permeava a sociedade brasileira, sendo, sobretudo, um princípio moral. 7 A autora apresenta três tipos de igualdades almejadas no casamento: igualdade de sangue, idade e fazenda8. A igualdade etária seria a menos observada no período colonial, tendo em vista se tratar de “gosto dos casados”. Sendo o casamento uma questão mais de interesses familiares que de interesse dos nubentes, essa igualdade não seria tão visada. As igualdades de sangue e fazenda sobrepunham-se à igualdade etária. A igualdade de sangue seria entendida como prioridade no casamento entre pessoas de mesma classe social e jurídica, assim as famílias de elite preferiam casar suas filhas com homens de “sangue puro” (elemento branco, europeu, cristão velho, não judeu, não mouro). Por sua vez, a igualdade de fazenda referia-se essencialmente à capacidade econômica de ambos os grupos envolvidos nas alianças matrimoniais. Cabe ressaltar que abordagens comumente aceitas pela historiografia como a igualdade buscada no casamento, são modelos que ajudam a dar contorno e inteligibilidade a uma prática comportamental, mas são inevitavelmente reducionistas, não dão conta da realidade por completo tendo em vista que existem casos que invariavelmente fogem desses modelos. As famílias dos contraentes eram estrategicamente orientadas pelo princípio que Silvia Brügger designou como “ter o que trocar”. Nesse sentido, segunda a autora: Ser igual significava, dentro da lógica patriarcal da sociedade, ter o que trocar. Assim, as uniões matrimoniais selavam alianças entre grupos familiares que tinham algo a se oferecer, reciprocamente, fosse prestígio social, riqueza, acesso a redes de poder, entre tantas outras possibilidades. 9

Estudos diversos vêm demonstrando que estratégias matrimoniais como a endogamia e a exogamia, unidas à necessidade de migrar, estão estritamente vinculadas à reprodução social dos grupos familiares no século XVIII e XIX, em sua dinâmica de territorialização.10 Endogamia aqui é entendida como casamento entre dois membros de um mesmo grupo familiar, esse, por sua vez, trata-se do conjunto de indivíduos que, ao se reconhecerem como membros de uma mesma “família”, colocaram em prática, nas relações sociais que estabelecem uns com os outros, as características mais gerais da organização brasileira de parentesco tais como as definidas por Linda Lewin, ou seja: a descendência ambilinear e superficial, a organização segmentar, as BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Fazenda aqui é entendida como propriedades, pecúlio, posse de bens. 9 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. p.226. 10 Ver: NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. LEWIN. Linda. Política e parentela na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Rio de Janeiro: Record, 1993. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. BRÜGGER, Silvia M. Jardim. Minas Patriarcal. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro. OLIVEIRA, Monica Ribeiro de Oliveira. Negócios de Família: Mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira – 1780-1870. Bauru, São Paulo: EDUSC; Juiz de Fora, Minas Gerais: FUNALFA, 2005. 7 8

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preferências matrimoniais endogâmicas, e o caráter quase coorporativo da parentela.11 Entendamse como membros da parentela, pessoas que possuíam algum vínculo com a família, que não necessariamente passasse pela consanguinidade, como, por exemplo, irmãs de esposas falecidas ou parentes consanguíneos de cônjuges de algum membro do grupo familiar.12 Por extensão, exogâmicas são todas aquelas uniões matrimoniais realizadas por membros que não pertencem ao mesmo grupo familiar, família ou parentela, no momento mesmo do casamento, ou na conjuntura em que se realizou a união. Tendo em vista que posteriormente as “famílias” dos conjugues possam ter formado uma única parentela, ou uma aliança de famílias através de sucessivos casamentos, naquele momento, em que não o fizeram ainda, estão a realizar uniões exogâmicas, que “possivelmente”, com o passar do tempo, confirmada a sucessão de casamentos e/ou alianças, se tornarão uniões endogâmicas.13 Estas uniões matrimoniais exogâmicas, que podem dar origem a futuras alianças endogâmicas, figuram como objeto de análise no presente artigo. Em comum, os estudos sobre estratégias familiares vêm observando que, em se tratando de migrantes em áreas de expansão de fronteiras e povoamento recente, a segunda geração, filha do casal fundador, tendia a efetuar casamentos exogâmicos, pela impossibilidade mesma de se casarem dentro do mesmo grupo, família ou parentela, haja vista que o número de “parentes” para tanto seria restrito. Porém, esta tendência exogâmica da segunda geração é mais bem explicada pela necessidade imediata destes grupos em formar alianças com outros grupos estabelecidos há mais tempo na região de destino. Ao forjarem alianças com as redes de poder local, os recém-chegados agregavam ao grupo familiar o conhecimento do modus operandis que prevalecia naquela região (como o conhecimento dos arranjos políticos, o modo de minerar, a agricultura adaptada ao meio físico do lugar, as técnicas locais da construção civil, o comércio de fronteira etc.). Outras famílias poderiam escolher os genros imigrantes por suas aptidões profissionais. Muriel Nazzari encontrou em São Paulo do século XVII um exemplo no qual certa família ligada à metalurgia casou uma de suas filhas com um português recém-chegado que trazia do reino experiência neste ramo de produção. 14

LEWIN. Linda. Política e parentela na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 114. 12 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. p.273. 13 Tratamos especificamente sobre estas uniões endogâmicas, em uma perspectiva de análise de longa duração, no tópico sobre endogamia no primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado, ver: RIBEIRO, Isaac Cassemiro. Família e Povoamento na Comarca do Rio das Mortes. 14 NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. p.75. 11

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Uma prática matrimonial também bastante comum, descrita por João Fragoso e Manolo Florentino, para a região do Rio de Janeiro, no século XVIII e XIX, constituía-se no casamento estratégico de filhas da elite rural com comerciantes portugueses. Estas uniões garantiam fonte de crédito e poder econômico às famílias dos proprietários rurais, ao mesmo tempo em que reservava aos comerciantes acesso ao status social elevado que estas famílias possuíam. Muitos comerciantes (portadores do “defeito mecânico” – herança do Antigo Regime), homens que fizeram fortuna e como uma estratégia de inserção naquela sociedade, onde a nobilitação era dada pela propriedade da terra e de escravos, se inseriam nas famílias proprietárias através do casamento e se tornavam proprietários de terra, sem, necessariamente abandonar a atividade mercantil, em alguns casos. 15 Em nosso estudo de caso, no qual figura o grupo familiar “Ribeiro da Silva”, não foi diferente. Tendo chegado o casal fundador do grupo às Minas aproximadamente em 1730, a família casou seus filhos com diversos membros de famílias já estabelecidas na região desde seu recente povoamento. Ao invés de casar os filhos com filhos de outros casais da parentela que emigrou de Portugal para Minas junto com eles, o casal fundador preferiu traçar alianças matrimoniais exogâmicas com a elite local. Empregamos aqui o conceito de “elites” com a mesma concepção dada ao conceito de “elites coloniais” por Maria Fernanda Baptista Bicalho. Tal conceituação embasa-se na ideia de que as relações econômicas estabelecidas entre a Colônia e a sede do reino não podem ser desvinculadas do ideário político e das noções de pertencimento destes agentes que se entendiam como vassalos de um único Rei e pertencendo a um único Império. A elite colonial não se resumia à elite econômica da Colônia. Tal contradição fica evidente quando contrapomos a autointitulada “nobreza da terra” aos comerciantes e negociantes, notoriamente a elite econômica, e as disputas e alianças que envolveram estes dois seguimentos da elite colonial. Credenciamos ao conceito de “elites coloniais” maior alcance analítico que os conceitos de “colonizadores e colonos”. O primeiro possibilita ampliar a compreensão sobre as relações sociais que envolviam as formas de acumulação de riqueza na Colônia analisando estes agentes deslocando do eixo de interpretação que prima pelo econômico para um viés voltado ao social mais amplo.16

Para melhor descrição desta prática ver: FRAGOSO, João Luís Ribeiro e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto: Mercado Atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790 – c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Sheila Faria encontra para Campos dos Goitacases as mesmas estratégias localizadas por João Fragoso e Manolo Florentino para o Rio de Janeiro, ver: FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. 16 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História e Historiografia.” In: MONTEIRO, Nuno G. F.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares (orgs.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICM, 2005, p. 73-98. 15

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No que se refere às elites brasileiras no período imperial, apesar dos ideais de meritocracia que o constitucionalismo Brasileiro trouxe, a clivagem social nobre/plebeu persistiu. Prova maior disto é que Dom Pedro I manteve os títulos nobiliárquicos. Porém, os privilégios daqueles considerados nobres passaram a ser menos ostensivos quando comparados aos do período colonial. Nos períodos colonial e imperial a máquina de retribuição de serviços produziu prestígio, não necessariamente riquezas. A riqueza, claro, facilitava o enobrecimento. Mas havia indivíduos nobres cujos bens eram insignificantes. É relevante também o fato da atividade mecânica, a princípio, dificultar a aquisição de nobreza. Apesar das diferentes formas de se burlar este quesito o ideário do defeito mecânico, a debilidade do trabalho manual, esteve presente durante todo o nosso período colonial e durante boa parte do Império. 17 Voltando as práticas matrimoniais do grupo familiar Ribeiro da Silva, a maioria das famílias com as quais o alferes Antônio Ribeiro, fundador da família, firmou alianças, como apresentaremos adiante, tinham em sua origem sertanistas paulistas e bandeirantes que desbravaram, ainda no século XVII, o território que viria a se tornar a capitania de Minas Gerais. Tais grupos, com privilégios assegurados no acesso a cargos em instituições políticas locais, como o senado das câmaras e a companhia de ordenanças, utilizavam-se de sua classificação enquanto “homens bons” e “primeiros da terra” para diferenciarem-se do restante da população. As patentes militares da companhia de ordenanças, cargos de vereanças na vila etc., serviam às famílias da elite como espécies de “títulos” nobiliárquicos na sociedade colonial portuguesa em clara referência a uma lógica de funcionamento de sociedades de antigo regime18. Assim, os grupos aos quais a segunda geração da família Ribeiro da Silva se uniu, sendo descendentes dos primeiros povoadores de diversas regiões da comarca do Rio das Mortes, com patentes da companhia de ordenanças, descendentes ou ligados a descendência de bandeirantes e sertanistas tais como Lourenço Castanho Taques e Mateus Leme Barbosa, podem ser considerados a “elite colonial” dos arredores da vila de São João del-Rei. No que diz respeito às estratégias matrimoniais desta geração, eles seguiriam a tendência que Sheila Faria, Silvia Brügger e Marcos Andrade já haviam observado para primeiras gerações de um casal de imigrantes, a união exogâmica com as elites locais.19

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Unesp, 2005. p. 317. FRAGOSO, João Luiz Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. p.150. 19 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento; BRUGFER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro. 17 18

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O alferes Antônio Ribeiro, ao traçar estratégias matrimoniais para seus filhos homens, buscou sempre unir-se a famílias da região com perfil específico de elite política ou elite econômica (grandes proprietários rurais e comerciantes). Famílias que possuíam algum status social elevado, tendo em comum todas elas o fato de estarem a muito tempo na região e possuírem, próxima ou remotamente, antecedentes paulistas, primeiros povoadores do lugar (67% dos casamentos, ver Tabela 1). Em segundo plano, podemos observar que o alferes também traçou alianças matrimoniais casando suas filhas com portugueses, a maior parte deles ligados ao comércio (conforme o costume descrito por Sheila Faria e Silva Brügger)20, totalizando 33% dos casamentos (Tabela 1). As uniões matrimoniais com membros da elite local se estenderam a dois terços dos casamentos levados a cabo pela segunda geração do grupo. Considerando que três membros desta geração tornaram-se sacerdotes, do total de nove casamentos realizados, seis deles, ou 67%, efetivaram-se com membros da elite local. Os três casamentos que restaram do total de nove, se deram com elementos portugueses, correspondendo a 1/3 dos casamentos, ou 33% (ver Tabela 1). Destes elementos, ao menos um certamente estava ligado ao ramo do comércio quando se casou na família Ribeiro da Silva, como veremos adiante. Tabela 1 – Alianças Matrimoniais - 2ª Geração Ribeiro da Silva Elite Local

Conjugues

Portugueses

Subgrupos

Família Góes e Lara

Outras

Comerciante

Outros

Nº de Uniões (% parcial)

4 (67%)

2 (33%)

1 (33%)

2 (67%)

Total Parcial (% total)

6 (67%)

Total de Casamentos

9 (100%)

3 (33%)

FONTE: AHET II, IPHAN/SJDR - Testamentos e Inventários post-mortem.

O mais velho dos filhos do casal fundador, homônimo do pai, Antônio Ribeiro da Silva, casou-se com Genoveva da Trindade Barbosa na década de 1760. Não nos foi possível encontrar seu registro de casamento, porém, em testamento redigido em 1808, Antônio afirmou ser “casado a quarenta e tantos anos”, o que nos permite inferir que ele se casou na década de 1760. 21

Genoveva, batizada em 1739 no arraial de Carrancas, era filha de Francisco de Ávila Fagundes

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento; BRUGFER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, São João del-Rei, 13ª SR, de agora em diante :AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Antônio Ribeiro da Silva (1808). No auto de contas do tutor dos órfãos que se encontra no testamento de Francisco 20 21

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e Maria Alves da Porciúncula, ambos antigos moradores da região. Francisco, natural da ilha terceira da cidade de Angra22, emigrou para a colônia durante a primeira metade do século XVIII, no período da “corrida do ouro”. Quando ele faleceu, em 175923, sua filha Genoveva ainda era solteira. A esposa de Francisco Fagundes, Maria Alves Barbosa da Porciúncula24, natural de Carrancas, era filha de paulistas taubateanos, desbravadores da região. Segundo a genealogia da família, uma de suas irmãs teria se casado com o sertanista Mateus Leme Barbosa que requereu sesmaria na região de Carrancas em 1738, figurando entre um dos primeiros sesmeiros do lugar. 25 Maria Porciúncula casou-se duas vezes, unindo-se em segundas núpcias ao pai de Genoveva. A “Fazenda das Carrancas”, onde ela residiu, foi fundada por seu primeiro marido, com ele Maria teve apenas um filho, o padre Inácio Francisco (ou Franco) Torres.26 O alferes Antônio Ribeiro, ao casar seu homônimo filho com Genoveva, estabeleceu uma estratégica união para sua parentela. A família de dona Genoveva Barbosa, como vimos, descendia de paulistas que estavam entre os primeiros povoadores da região de Carrancas, dentre eles, seu tio, Mateus Leme Barbosa. O irmão mais velho de Genoveva ordenou-se padre, e parece ter estudado na Universidade de Coimbra, conforme auto de contas presente no testamento de seu pai, mais um atrativo às alianças estabelecidas com este grupo.27 Certamente a família de Maria Porciúncula pertenceu à elite local de Carrancas, enquadrando-se no grupo dos primeiros povoadores do lugar. Outro filho do casal fundador que se casou em uma família “antiga” da região, e com origens paulistas, foi Manoel Ribeiro da Silva. Batizado em 1740 na capela de São Gonçalo do Brumado, foi o quarto filho do casal fundador da família.28 Manoel casou-se com Maria Sabina Torres em 1765. Ela era filha de Isabel Paes Godoy dos Passos e Francisco Nunes da Costa. Descendia pelo lado materno de uma família paulista, seu pai era português. A família de Maria Sabina não parece ter possuído grandes posses, porém

Fagundes, com data de 23 de Janeiro de 1769, encontra-se a informação de que após a morte do mesmo, Genoveva, sua filha, havia se casado com Antônio Ribeiro. AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Francisco de Ávila Fagundes (1759), caixa 363. fl.110. 22 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Francisco de Ávila Fagundes (1759), caixa 363. fl.7. 23 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Francisco de Ávila Fagundes (1759), caixa 363. 24 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Maria Alves da Porciúncula (1798). Caixa 354. 25 AMATO, Marta. A Freguesia de Nossa Senhora das Carrancas e sua História. São Paulo: E. Loyola, 1996.p.26. 26 Segundo extrato do documento publicado no site do Projeto Compartilhar, o Inventário perfaz 1500 páginas, algumas não numeradas. AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Inácio Francisco Torres (1737). Caixa 637. 27 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Inácio Francisco Torres (1737). fl.256. 28 Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei, de agora em diante, AEDSJDR - Livros de Registros de Batismos, Livro 2. Fl.116.02 - 1740 Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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possuía “status” social elevado. Um dos tios paternos de Maria Sabina parece ter sido importante negociante no bispado de Coimbra. Conforme o processo de seu irmão, Salvador Godoy, para se habilitar ao sacerdócio, o De Genere et Moribus, Manoel Nunes da Costa, tia de ambos, era familiar do Santo Ofício e negociante naquele bispado. Provavelmente foi com ajuda do tio que o padre Salvador Paes Godoy dos Passos se doutorou em cânones pela Universidade de Coimbra.29 Manoel Ribeiro provavelmente não levou grande dote ao se casar com Maria Sabina Torres, porém, na lógica matrimonial do “ter o que trocar”, uniu-se a uma família com “status” social elevado, que lhe abriu caminho a uma rede familiar com ramificações que se estendiam ao comércio em Coimbra, através do tio de sua esposa. João Fragoso, ao estudar a formação da elite econômica na praça mercantil carioca, encontrou prática semelhante. O autor constatou “a presença de alianças, até mesmo parentais, entre pessoas de diferentes qualidades – comerciantes, nobres da terra e autoridades metropolitanas. Estas redes eram extensas, pois atravessavam o Atlântico, unindo diversas partes do Império Luso”.

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Tendo em vista que práticas de

acumulação de riqueza derivavam da interferência política na economia, as redes inter-capitanias “que chegavam a atravessar o Atlântico”, formadas por “parentelas fidalgas da terra”, tinha por finalidade “facilitar aos negociantes e ministros reinóis a circulação de mercadorias em rotas de longa distância, porém, o inverso também era verdadeiro”. 31 Estas redes, dominadas na América por “nobres tupiniquins”, eram formadas por “circuitos clientelares espalhados pelas freguesias, composta por diferentes segmentos da população”. 32 É nesse quadro que a aliança realizada por Manuel Ribeiro ao se unir a um membro da parentela dos Godoy dos Passos – com ramificações supracapitania e interatlântica – figura-se como estratégica ao grupo dos Ribeiro da Silva, abrindo-lhes as portas a “negócios” promissores. Indício de que Manoel não teria recebido grande dote da família de sua esposa, encontrava-se no fato dele ter recebido adiantamento de herança, o que posteriormente viria a ser recompensado através da sociedade que estabeleceu com o cunhado, padre Salvador Godoy dos Passos, ao migrar para o recém-fundado arraial da Formiga, na fronteira do extremo oeste da

Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana - AEDM - De Genere Salvador Paes Godoy dos Passos – 1762. Referência: 1757 / A:10 / P:1757. Transcrito por Izabella Fátima Oliveira de Sales a pedido do Projeto Compartilhar, de agora em diante, PROJC. 30 FRAGOSO, João. “Elites Econômicas” em fins do século XVIII: mercado e política no centro-sul da América Lusa. Notas de uma pesquisa. In JANCSÓ, Isntán (Org.) Independência: história e historiografia. São Paulo: Fapesp; Hucitec, 2005.p. 854. 31 FRAGOSO, João. “Elites Econômicas” em fins do século XVIII, p.861. 32 FRAGOSO, João. “Elites Econômicas” em fins do século XVIII, p.859. 29

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comarca. O adiantamento da herança que Manoel recebeu ao casar-se seria restituído pelo prestígio social da família de sua esposa, na lógica do “ter o que trocar”. 33 Manoel Ribeiro aliou-se ao cunhado, padre Salvador Paes Godoy dos Passos, conhecido como o “Padre Doutor”, migrando das proximidades da vila de São João para uma povoação que surgia na fronteira da comarca do Rio das Mortes: a paragem da Formiga, no extremo oeste da comarca. Ambos tornaram-se um dos primeiros povoadores da região. Como já havíamos mencionado, seis dos doze filhos do casal fundador casaram-se em famílias “antigas” da região da vila de São João. Famílias com antecedentes de origem paulista. Os mais velhos desses, Antônio Ribeiro (filho), e Manoel Ribeiro, casaram-se em famílias com “status” social elevado, tendo em vista que entre tais famílias estavam os primeiros povoadores da região de Carrancas, no primeiro caso. No segundo caso, tratar-se de uma família com ao menos um dos membros com titulação de doutor, possuindo o grupo uma rede de influência que se estendia do comércio à Coimbra. Apesar de tais famílias pertencerem certamente à elite local, elas não se constituíam enquanto elite econômica stricto sensu (ou seja, tinha prestígio social, porém, os inventários destas famílias não apresentavam fortunas de grande monte)34. Isso nos permite levantar a seguinte hipótese: nas alianças matrimoniais seladas pelos filhos mais velhos do casal fundador, a união com membros da elite econômica local não era ainda uma opção viável, pelo menos naquele momento. O que pode fundamentar-se, por sua vez, na recente criação da unidade produtiva do alferes Antônio Ribeiro, ainda pouco atrativa à elite econômica local. Há pouco mais de trinta anos instalado às margens do Rio das Mortes, quando do casamento de seus dois primeiros filhos homens (década de 1760), o alferes Antônio Ribeiro, mesmo possivelmente já tendo adquirido certa fortuna, ainda não havia se ligado a famílias com grandes fortunas que pertenciam à elite econômica local. O que restringiu as estratégias de alianças matrimoniais ao rol de famílias locais com “status” social elevado, pertencentes à elite local, porém com fortunas limitadas. Esse quadro viria a mudar a partir do casamento do nono filho do casal fundador, ele e os demais quatro irmãos mais novos, casaram-se dentro de um grupo familiar que certamente pertencia à elite econômica da região, os “Góes e Lara”, como passaremos a denominá-los, pela constante grafia de seus sobrenomes.

Como apresentamos no Capítulo II de nossa dissertação, ver: RIBEIRO, Isaac Cassemiro. Família e Povoamento na Comarca do Rio das Mortes. 34 Sobre as fortunas destes grupos familiares ver o capítulo III de nossa dissertação: RIBEIRO, Isaac Cassemiro. Família e Povoamento na Comarca do Rio das Mortes. 33

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O primeiro dos filhos do casal fundador a casar-se dentro da família dos Góes e Lara foi Luiz Ribeiro da Silva. Nono filho, Luiz foi batizado em 1752, no arraial de São Gonçalo do Brumado, vindo a falecer em 1817, em sua “Fazenda do Mato Dentro”, com aproximadamente de 60 anos de idade. Luiz Ribeiro ostentou a patente de alferes, pela qual passaremos a designálo. 35 A esposa do alferes Luiz Ribeiro, Maria Joaquina Góes e Lara, era a filha mais velha do capitão Francisco Pinto Rodrigues e de dona Ana Maria Bernardes de Góes e Lara, um dos casais da parentela dos Góes e Lara. Em 1786, quando se procedeu ao inventário dos bens pelo falecimento de dona Ana Bernardes, sua filha, dona Maria Joaquina, já se encontrava casada com o alferes Luiz Ribeiro da Silva. 36 Dona Ana Maria Bernardes era filha do capitão de ordenanças da Vila de São João del-Rei, Pedro Bernardes Caminha, um português, sua mãe, Ângela de Góes e Lara, descendia de importante linhagem paulista, figurando em sua ascendência materna o tataravô bandeirante, Lourenço Castanho Taques, o Velho. O segundo filho na descendência do capitão Francisco e Ana Maria Bernardes, também se casou na família Ribeiro da Silva. Trata-se do capitão Joaquim Pinto de Góes e Lara, casado com dona Ana de Almeida e Silva. Ela, décima primeira filha do casal fundador da família Ribeiro da Silva, nasceu aproximadamente no ano 1757, na Fazenda do Rio Acima, que fora de seu pai. Segundo informações do inventário do alferes Antônio Ribeiro, quando seu pai faleceu em 1776, Ana estaria com aproximadamente 20 anos de idade, ainda solteira, vivia em sua companhia. 37 Não encontramos o registro do casamento de dona Ana de Almeida, porém, por volta de 1783, pouco depois do falecimento do alferes Antônio Ribeiro, nasceu o filho primogênito de seu casamento com o capitão Joaquim Pinto. Neste momento, dona Ana de Almeida estaria com 26 anos, tendo se casado, provavelmente, pouco tempo antes. De certo, a herança deixada pelo pai foi um atrativo para seu casamento, ela não passaria despercebida como “um bom partido” aos olhos da elite local, interessada em casar seus filhos em uma “família de iguais” da região. O casamento entre dona Ana de Almeida e Silva e o capitão Joaquim Pinto de Góes e Lara certamente tratou-se de uma importante união para a família Ribeiro da Silva, pois reiterava a aliança firmada pelas duas famílias anteriormente, quando do casamento de Luiz Ribeiro da Silva, irmão de dona Ana, com Maria Joaquina, irmã do capitão Joaquim Pinto.

AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Maria Joaquina de Góes e Lara (1824), caixa 134. AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Ana Maria Bernardes (1786), caixa 33. 37 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Antônio Ribeiro da Silva (1777), caixa 04-02. 35 36

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Tendo o pai falecido, é de se pensar que o casamento de dona Ana tenha sido orientado por seu irmão, o alferes Luiz Ribeiro, já casado nesta família. Ele teria dado prosseguimento aos preceitos do pai, reafirmando uma prática fundada nos valores patriarcais da união entre iguais e a exogamia interna às elites da região. Dois outros irmãos do alferes Luiz Ribeiro e de dona Ana também se casaram na parentela dos Góes e Lara. Um deles foi o capitão José Ribeiro de Oliveira e Silva, sexto filho do alferes Antônio Ribeiro, batizado em São Gonçalo do Brumado em 1744, e falecido em 1801, com aproximadamente 57 anos de idade. Capitão José Ribeiro casou-se quatro vezes. No segundo matrimônio uniu-se a Jesuína Custódia de Proença e Góes que pertencia à parentela dos Góes e Lara. Por fim, o quarto irmão a se casar na parentela dos Góes e Lara, foi o décimo filho do alferes Antônio Ribeiro, Inácio Ribeiro da Silva. Ele nascera aproximadamente em 1755, no arraial de São Gonçalo do Brumado, vindo a falecer em 1815, em sua “Fazenda do Bom Retiro do Jacaré”, no arraial de Oliveira, com aproximadamente 60 anos de idade.38 Inácio Ribeiro foi casado com Francisca Felisberta de Góes e Lara (ou Proença), batizada no arraial da Lage em 1754. Ela era filha de Manoel de Araújo Sampaio e Joana de Almeida e Góes, “irmã inteira” de Ângela de Góes e Lara, sogra dos irmãos de Inácio: Luiz Ribeiro e Ana de Almeida e Silva. Quatro dos seis filhos do casal fundador que efetivaram uniões exogâmicas estratégicas com membros da elite local de origem paulista o fizeram dentro do grupo familiar, ou parentela, dos Góes e Lara (ver Tabela 1.1). Mesmo que devido ao primeiro matrimônio entre as duas famílias, legalmente, segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, um laço parental e consanguíneo teria se constituído entre eles, consideramos, dentro de tal conjuntura, (e a título metodológico) que estes casamentos se configurariam em uniões exogâmicas à parentela, e não endogâmicas (ainda, o que viria a mudar nas próximas gerações), tendo em vista que foi exatamente neste momento que as alianças entre as duas famílias “efetivamente” se afirmaram, não somente através de um casamento, mas sim por meio da reiteração desta aliança nos sucessivos matrimônios. Para uma análise de longa duração abordando as uniões de várias gerações dos referidos grupos familiares consideramos estas primeiras uniões entre os membros desses grupos como uniões endogâmicas39, porém, ao diminuirmos a escala de análise, tal como o fazemos no presente artigo, para entender mesmo como a gênese destas alianças se deu, é Quando da feitura do inventário de seu pai em 1777 ela estava com 22 anos. AHET II, IPHAN/SJDR Inventário post-mortem e Testamento, Antônio Ribeiro da Silva (1777), caixa 04-02. 39 Ver o tópico sobre endogamia no primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado: RIBEIRO, Isaac Cassemiro. Família e Povoamento na Comarca do Rio das Mortes. 38

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necessário, nesse primeiro momento, distingui-las como uniões exogâmicas, completamente distintas, por exemplo, de alguma possível união entre filhos do casal fundador e membros de sua parentela que migrara junto com eles de Portugal para Minas, grupo distinto da elite local com quem eles queriam se unir no intuito de otimizar sua estratégia de territorialização na colônia. Como demonstraram vários estudos sobre famílias de elite no Brasil, a preferência por casamentos entre parentelas de mesmo estrato social eram sempre buscadas nas estratégias de uniões matrimoniais. No Sul da comarca do Rio das Mortes, Marcos Andrade encontrou, para a família Junqueira, certo leque de opções matrimoniais, demonstrando que determinadas famílias da elite local eram alvos constante das estratégias matrimonias deste grupo, Mônica Oliveira ao estudar a formação da cafeicultura na Zona da Mata Mineira, leste da comarca do Rio das Mortes, também observou a mesma prática, assim como o fizera diversos autores para distintas regiões da Colônia e do Império brasileiro40: casamentos constantes entre os mesmos grupos específicos da elite local, o que configura uniões endogâmicas à elite, porém que tiveram um início, certamente, em uniões exogâmicas à parentela, como buscamos demonstrar no presente artigo. Podemos levantar algumas hipóteses que justificariam tal preferência no caso dos Ribeiro da Silva. A primeira delas, já percebida nas alianças matrimoniais dos dois filhos mais velho do casal fundador, Antônio Ribeiro (filho) e Manoel Ribeiro, trata-se da busca por uniões com famílias ligadas aos primeiros povoadores da região, com origens que remontavam a sertanistas e bandeirantes paulistas. No que se refere à parentela dos Góes e Lara, estes possuíam em sua ascendência o bandeirante Lourenço Castanho Taques (o Velho). Mas esta não é a característica distintiva da família Góes e Lara em relação à outras que se uniram aos Ribeiro da Silva, visto que as famílias das esposas dos filhos mais velhos do casal fundador também possuíam o perfil de primeiros povoadores, com origem paulista. Foi justamente os filhos mais novos do alferes Antônio Ribeiro da Silva, que se casaram dentro da parentela dos Góes e Lara. O que se fundamentaria no fato de ser, neste exato momento de vida da unidade produtiva do alferes (último quartel do século XVIII), que o grupo amealhou fortuna e prestígio suficiente para tornar-se atrativo à elite econômica local, como o era a parentela dos Góes e Lara. É justamente o poder econômico dos Góes e Lara que os distingue das demais famílias que se uniram aos Ribeiro da Silva, é este poder econômico que justificaria a preferência por tais uniões a ponto de quatro dos seis filhos que se casaram com membros da elite local o terem feito dentro da Sheila Faria, para a região de Campo dos Goitacases, Linda Lewin para a Paraíba, e Silvia Brügger para a região de São João del-Rei, e Marcos Andrade para o Sul de Minas, e Mônica Oliveira para o Leste da comarca do Rio das Mortes. LEWIN. Linda. Política e parentela na Paraíba. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. BRÜGGER, Silvia M. Jardim. Minas Patriarcal. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro. OLIVEIRA, Monica Ribeiro de. Negócios de Família. 40

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parentela dos Góes e Lara (Tabela 1). O que consolidava o poder político e econômico das duas parentelas, unidas sucessivamente via casamento, prática comum as elites regionais, conforme demonstram diversos trabalhos que se debruçaram sobre o tema. 41 Como demonstramos em outro trabalho42, os Góes e Lara possuíam fazendas de produção agrícola que se estendiam de lugares próximos à vila de São João, como o arraial de Santa Rita e o arraial da Lage, a paragens remotas na vertente de expansão Oeste da comarca do Rio das Mortes , como o arraial de “Nossa Senhora da Oliveira” do século XVIII. A posse de grande extensão de terras, bem como o conhecimento prévio do modus operandis que envolviam a fundação e a manutenção de fazendas de produção agrícola, com certeza foi atrativo forte para a família Ribeiro da Silva ao unir-se com a parentela dos Góes e Lara. Com as mudanças econômicas fundadas na diminuição da extração aurífera, sentidas principalmente ao fim do século XVIII, é provável que as escolhas do alferes Antônio Ribeiro ao orientar o casamento de seus filhos, que ao mesmo tempo era a fundação de novas unidades produtivas, se guiaram no sentido da busca por unir-se a famílias da elite rural com base na posse de terras e na produção agrícola, um ramo atrativo que vinha crescendo no novo mercado que surgia: o abastecimento interprovincial. Outra estratégia que podemos observar nas uniões exogâmicas realizadas pela segunda geração da família Ribeiro da Silva, foi a preferência do casal fundador em casar suas filhas com imigrantes portugueses. Das quatro filhas do casal fundador, apenas uma não se casou com um português. Foram três uniões matrimoniais correspondendo a 1/3 dos casamentos da segunda geração (Tabela 1). Destes portugueses, ao menos um foi comerciante. Sheila de Castro Faria, ao relatar a preferência dos proprietários de terras em casar suas filhas com portugueses na região de Campo dos Goitacases no sec. XVIII, afirmou que: Ser português, principalmente na segunda metade do século XVIII, possibilitava o acesso ao matrimônio nas melhores famílias da região, mas eram necessárias outras condições para transformar-se em rico e prestigiado senhor de terras e escravos.43 A autora prossegue: “por outro lado, o interesse dos comerciantes em se ligarem a famílias

já estabelecidas era, ao que tudo indica, ditado pelo prestígio social que lhes traria, além do acesso No caso específico da comarca do Rio das Mortes, para trabalhos que demonstraram a utilização de uniões exogâmicas como estratégia de consolidação do poder de parentelas ver: Sílvia Brügger para a região da sede da Comarca, a vila de São João del-Rei; Marcos Andrade, para o Sul da comarca; e Mônica Oliveira, para o Leste da comarca. BRÜGGER, Silvia M. Jardim. Minas Patriarcal. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro. OLIVEIRA, Monica Ribeiro de. Negócios de Família. 42 Ver o tópico sobre migração no primeiro capítulo de nossa dissertação. : RIBEIRO, Isaac Cassemiro. Família e Povoamento na Comarca do Rio das Mortes. 43 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento, p.200. 41

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a terras já trabalhadas, escravos especializados e conhecimentos na fabricação do açúcar” 44. Desse modo, era interessante a um proprietário de terras, casar suas filhas com comerciantes portugueses, pois esses lhe possibilitavam o acesso à circulação de mercadorias e o financiamento de sua produção, dentre outras oportunidades econômicas45. De outra forma, era interessante ao comerciante português casar-se com uma filha de proprietários, porque a família de sua mulher lhe possibilitava o acesso à terra, ao prestígio que a posse dessa trazia, bem como o conhecimento do modus operandis da produção local, no caso específico da Comarca do Rio das Mortes na segunda metade do século XVIII, a produção de alimentos para o abastecimento interno. 46 A primeira filha do casal fundador a casar-se com um português foi Mariana de Almeida e Silva. Segunda filha do casal fundador, ela se casou com o tenente coronel Marcos de Souza Magalhães, natural da freguesia de São Pedro, termo de Arcos, Valença, arcebispado de Braga. O tenente coronel faleceu em 1773. No testamento e inventário do tenente não se encontra nenhuma informação que possa ligá-lo a alguma atividade comercial no momento de sua morte. Em 1773, quando foi realizado o inventário de seus bens, o tenente era proprietário da “Fazenda da Cachoeira” no arraial de Santa Rita do Rio Abaixo, a fazenda era vizinha à Fazenda do Rio Acima, de seu sogro.47 Na Fazenda da Cachoeira podemos encontrar indicações explícitas de que sua propriedade estava ligada à produção de gêneros alimentícios. Segundo o auto de contas do tutor dos órfãos do tenente Marcos, em 1777, um de seus filhos se ocupava do “serviço de roças”.48 Na fazenda também existia extração aurífera, tendo em vista que no mesmo auto se encontra a informação de que outro dos filhos do tenente se ocupava da mineração.49 Portanto, não nos é possível afirmar que o tenente coronel Marcos de Souza Magalhães tenha se envolvido com o comércio. Mas, como apenas possuímos informações sobre o tenente em certo momento de sua vida, quando ele veio a falecer, a hipótese de que ele tenha praticado primeiramente

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento, p.212. Na comarca do Rio das Mortes trabalhos como o de Sílvia Brügger, Marcos Andrade, e Mônica Ribeiro demonstram também a existência desta mesma prática social nas escolhas matrimoniais. Ver: BRÜGGER, Silvia M. Jardim. Minas Patriarcal. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro. OLIVEIRA, Monica Ribeiro de. Negócios de Família. 46 Para maiores detalhes sobre a produção de alimentos para o abastecimento interno na comarca do Rio das Mortes ver: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas: São João delRei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.; CARRARA, Angelo Alves. Minas e Currais: Produção Rural e Mercado Interno de Minas Gerais – 1674 – 1807. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e Pobres em Minas Gerais: Produção e Hierarquização social no Mundo Colonial, 1750 – 1822. Belo Horizonte: Argumentum, 2010. 47 Muriel Nazzari foi quem primeiro atentou para o fato dos genros tenderem a se fixar em propriedades vizinhas às de seus sogros. Ver: NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. 48 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Marcos de Souza Magalhães (1773), caixa 147. 49 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Marcos de Souza Magalhães (1773), caixa 147. 44 45

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atividades comerciais para depois transmutar-se em fazendeiro antes de tornar-se um oficial de primeira linha, não pode ser totalmente descartada, por ser esta uma prática comum, já constatada por diversos autores, para casos no mesmo período.50 A segunda filha do casal fundador a casar-se com um português foi a quinta filha na descendência do casal fundador. Batizada em 1742 na capela de São Gonçalo do Brumado, Genoveva de Almeida e Silva se casou com o português Manoel Coelho dos Santos, natural da freguesia de São Tiago do Marco, patriarcado de Lisboa. O casamento foi celebrado na capela de Santa Rita do Rio Abaixo em Novembro de 1759, quando Genoveva estaria com 17 anos de idade. O irmão da noiva, padre Damaso Ribeiro da Silva, foi quem ministrou a cerimônia. Genoveva e Manoel Coelho dos Santos foram proprietário da “Fazenda Santa Rita”, no arraial de mesmo nome. Sílvia Brügger dedicou um tópico de sua tese sobre patriarcalismo em Minas à unidade familiar com origem no casamento de Genoveva e Manoel Coelho dos Santos. No capítulo em que analisa trajetórias familiares reconstituindo estratégias e alianças matrimoniais, dentre as cinco famílias que a historiadora aborda, figura-se o grupo ao qual denomina “Família Santos”. No tópico, “Família Santos: atividade agrária e atuação política”, a autora refaz as estratégias matrimoniais de alguns descendentes do casal. Como Brügger observou, Manuel Coelho dos Santos utilizou-se de uma estratégia muito comum há seu tempo. No momento de testar, pouco antes de falecer em 1785, vendeu a maior parte de seus bens ao genro, Tomás Mendes, evitando o fracionamento de sua herança. Tomás Mendes deveria pagar à sogra os bens comprados ao casal em parcelas dividias por 30 anos. Coube à viúva, dona Genoveva, um sítio e alguns escravos para seu sustento. 51 Manuel Coelho dos Santos parece ter praticado atividades mercantis, como era comum aos portugueses que se dirigiram à Colônia no séc. XVIII e XIX. Indício disto é o fato de ter nomeado testadores no Rio de Janeiro, demonstrando que ele estaria em contato direto com esta praça mercantil, transportando mercadorias. O fato de nomear testadores no Rio de Janeiro sugere que Manoel Coelho dos Santos estava sempre em trânsito entre São João del-Rei e esta cidade. Notoriamente, praticava atividades mercantis. O genro de Manoel, “comprador” de seus bens, Tomás Mendes, também exercia a mercancia. Indicativo disto é a prestação de contas do tutor dos órfãos que ficaram por seu falecimento. No auto o tutor declarara que o órfão João vivia em casa de Tomás Mendes, seu

FRAGOSO, João Luís Ribeiro e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. 51 BRÜGGER, Sílvia M. Jardim. Minas Patriarcal, p.258 50

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cunhado, aprendendo a “caixeria”. Ele, assim como o sogro, exerceria ocupações mercantis. O fato mesmo de Manoel Coelho dos Santos vender seus bens – grande parte deles compostos por “créditos, execuções e dívidas” – ao genro Tomás Mendes, denota que ambos estariam inseridos em redes mercantis que ligavam a região da comarca do Rio das Mortes ao Rio de Janeiro.52 Uma explicação ao fato de dona Genoveva, esposa de Manoel, não receber a herança por completo de seu marido, e vê-la vendida ao genro, estaria na própria impossibilidade desta em cobrar tais “créditos, execuções e dívidas”, tanto em sua região, quanto mais difícil o seria na distante cidade do Rio de Janeiro. Por fim, foi Antônia Maria de Almeida e Silva, a última filha do casal fundador a casar-se com um português. Décima segunda filha do alferes Antônio Ribeiro da Silva e última em sua descendência. Com vinte anos, “pouco mais ou menos”, quando da realização do inventário de seu pai, em 1777, Antônia se casou dois anos depois, em 1779, quando estaria com aproximadamente 22 anos. Seu marido, o sargento-mor Antônio José Ferreira, era português, natural da região de Braga. O casal foi morador no arraial do Rio do Peixe, freguesia de Congonhas do Campo, em sua “Fazenda do Ribeirão do Bom Sucesso”. Antônia faleceu pouco tempo depois, em 1800, quando estaria com cerca de trinta e três anos, sem filhos, deixou legados às sobrinhas, filhas de seus irmãos.53 Podemos observar nos dados sobre casamentos realizados pelos filhos do casal fundador da família Ribeiro da Silva (2ª Geração), a existência de duas estratégias. Na primeira delas, predominante, ficou evidente que eles buscaram aliar-se a famílias da elite local, com propriedades já consolidadas, figurando entre os antepassados de seus membros, paulistas desbravadores da região. Numericamente, estes casamentos corresponderam a 2/3 dos casamentos da segunda geração. A segunda estratégia, diz respeito às alianças matrimonias estabelecidas com imigrantes portugueses (1/3 das uniões) (ver Tabela 1). Tais alianças visavam, dentre outros objetivos, o acesso a redes mercantis de escoamento da produção local. Os dados permitem inferir que a predominância de casamentos da segunda geração em famílias da elite local, estáveis, demonstra que o grupo familiar dos Ribeiro da Silva buscou garantir à sua descendência, através de estratégias matrimoniais, sobretudo o acesso a terra, bem como a inserção na elite local. Por outro lado, concluímos que, na segunda geração da família Ribeiro da Silva, a predominância de uniões exogâmicas com a elite local, não excluiu estratégias como aquelas

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BRÜGGER, Sílvia M. Jardim. Minas Patriarcal, p. 258 AHET II, IPHAN/SJDR - Inventário post-mortem e Testamento, Antônia Maria de Almeida (1800), caixa 03 – 04. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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observadas por Sheila de Castro Faria em Campos dos Goitacases, onde os proprietários de terras viam vantagem em casar suas filhas com portugueses imigrantes, em sua maioria ligados ao comércio, pelo fato deles trazerem às famílias de seus sogros acesso as redes mercantis e ao crédito que financiava as lavouras em suas terras. Ao mesmo tempo, os comerciantes ao se casarem com filhas de proprietários rurais, passavam a ter acesso a terras e poderiam transmutarse, futuramente, em proprietários rurais54. Este foi o caso de ao menos um dos três imigrantes portugueses que se casou com uma das filhas do alferes Antônio Ribeiro: Manoel Coelho dos Santos era caixeiro, e tornou-se fazendeiro. É provável que os outros genros portugueses do casal fundador praticassem algum tipo de atividade mercantil quando chegaram à América, como era comum, transmutando-se posteriormente em fazendeiros, porém, neste caso, as fontes não nos permitem afirmar categoricamente tal fato, sucessivamente constatado pela historiografia.55

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FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. p.212. FRAGOSO, João Luís Ribeiro; FLORENTINO, Manolo: O Arcaísmo como Projeto. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Abram as cortinas: a mulher representada no teatro da Fortaleza da virada do século XIX para o XX

Artigos

Open the curtains: the woman depicted in the Fortaleza of the turn of the nineteenth to the twentieth century theater

Recebido: 01/11/2014 Aprovado: 14/01/2015

Camila Imaculada Silveira Lima Mestre em História Cultural Universidade Estadual do Ceará camilasilveira1914@gmail.com

RESUMO: O presente artigo tem o intuito de refletir acerca do papel social da mulher a partir do teatro na Fortaleza da virada do século XIX para o XX. Nesse período, o teatro estava conhecendo o seu esplendor na capital cearense com a construção do teatro oficial, o desenvolvimento da produção dramatúrgica, a criação das companhias dramáticas cearenses e com o aumento da presença das casas de espetáculos particulares, dos circos e das encenações das companhias dramáticas renomadas na capital federal, o Rio de Janeiro. Era nesse panorama que as comédias de costumes foram ganhando o gosto do público, pois representavam cenas do cotidiano com humor. Destarte, destacamos duas peças que foram encenadas nos palcos fortalezenses no período em tela: O Dote de Arthur Azevedo e As doutoras de França Junior. Ambas trazem a temática do casamento e o papel social da mulher com seu discurso dominante e defensor da moral cristã. PALAVRAS-CHAVE: Mulher, Teatro, Moral. ABSTRACT: This article aims to reflect on the social role of women in theater from the Fortress of turn of the nineteenth to the twentieth. During this period, the theater was meeting its splendor in Fortaleza with the construction of the official development of dramaturgical theater production and the creation of Ceará dramatic companies, and the increased presence of private homes shows, circuses and performances of dramatic renowned companies in the federal capital, Rio de Janeiro. It was in this scenario that sitcoms public taste were winning, it depicted scenes of everyday life with humor. Thus, we highlight two pieces that were staged in theaters fortalezenses period under consideration: The Endowment Arthur Azevedo and The Junior doctors from France. Both bring the theme of marriage and the social role of women with their dominant discourse and defender of Christian morality. KEY-WORDS: Women, Theater, Moral. Introdução A cidade de Fortaleza estava passando por mudanças na virada do século XIX para o XX. O crescimento de atividades econômicas como comércio, agricultura e pecuária possibilitou investimentos no meio urbano, como, por exemplo, instalação do serviço telefônico, caixas postais e iluminação pública, construção de edifícios (Mercado e o Teatro oficial) e praças Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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(Passeio Público), bondes, entre outros. Existia também uma efervescência cultural com as fundações de agremiações literárias, científicas e artísticas e mesmo com o aparecimento de instituições de ensino (Liceu do Ceará, Escola Normal, Faculdade de Direito, entre outros). Nesse cenário, o teatro encontrou seu esplendor com a construção do Theatro José de Alencar1, o desenvolvimento da produção dramatúrgica e da criação das companhias dramáticas cearenses, e com o aumento da presença das casas de espetáculos particulares, dos circos e das encenações das companhias dramáticas renomadas na capital federal, o Rio de Janeiro. Foi nesse cenário, que as comédias de costumes foram ganhando os palcos dos teatros fortalezenses. Ao trazer as cenas do cotidiano, as comédias de costumes representavam as ideias e os hábitos da sociedade. As cenas do cotidiano eram levadas aos palcos com doses de humor. Cenário que agradava ao público, como relata os jornais da virada do século XIX para o XX. Nessas comédias de costumes, está nítida a dicotomia entre o certo e o errado, o virtuoso e o vício, a moral e o imoral, cada qual definido conforme os interesses dos produtores e receptores do teatro2. Aqui, o comportamento popular3 encontrava-se em oposição ao civilizado4, o antigo em relação ao novo, que se remetia à diferenciação entre a cidade e o campo, assim como o conflito entre o papel social da mulher e o do homem. Nesta perspectiva, procuramos analisar o papel social da mulher a partir das peças O Dote de Arthur de Azevedo e As doutoras de O Theatro José de Alencar (TJA) foi idealizado como o teatro oficial do Ceará. Sua construção foi entre os anos de 1908 e 1910 durante a gestão de Nogueira Accioly, que ficou conhecida como a oligarquia acciolina. A arquitetura segue o estilo do período com seu ecletismo (clássico e Art Nouveau) e sua estrutura de ferro. A inauguração oficial do TJA foi em 17 de junho de 1910, sob a música da Banda Sinfônica do Batalhão de Segurança e com o discurso inaugural de Júlio César da Fonseca Filho. Atualmente, o TJA oferece uma programação cultural e artística diversificada. Além disso, o TJA é um bem tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 2 Sandra Jatahy Pesavento argumenta que existe uma cidade desejada e imaginada e outra que se tem. De um lado, está a meca da cultura, civilização, (...) progresso; e, do outro, está o centro da perdição, império do crime e da barbárie, insegurança, medo. Essas duas cidades nos remetem ao que Carl. E. Schorske define como a cidade do vício e a cidade da virtude. A primeira é a degradação e a segunda é a civilização. Como dito, o teatro é conflito, portanto, representa duas vertentes, por exemplo, a cidade do vício e a da virtude. Então, a partir do texto dramático é possível conhecer o que é imoral, vicioso para alguns setores da sociedade ou apenas práticas do cotidiano para outros, como também o que é moral e virtuoso ou diferenciação social. 3 Abrimos um espaço para destacar a cultura popular, que se fez presente no teatro da virada do século XIX para o XX na capital cearense. Nessa perspectiva, citamos Roger Chartier: “A cultura popular é uma categoria erudita. (...) Ela pretende somente relembrar que os debates em torno da própria definição de cultura popular foram (e são) travados a propósito de um conceito que quer delimitar, caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo à ‘cultura popular’. Produzido como uma categoria erudita destinada a circunscrever e descrever produções e condutas situadas fora da cultura erudita, o conceito de cultura popular tem trazido, nas suas múltiplas e contraditórias acepções, as relações mantidas pelos intelectuais ocidentais (...) como uma alteridade cultural ainda mais difícil de ser pensada que a dos mundos ‘exóticos’”. É nesse sentido que observamos a cultura popular na cidade alencarina. Ela é tudo aquilo que não pertence à elite, que varia de comportamentos aos espaços físicos. In. CHARTIER, Roger. “Cultura popular”: revisando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192. 4 “Civilização possuía um sentido mais amplo do que civil. Significava, por um lado, o ponto final de uma situação histórica, seu acabamento ou perfeição e, por outro lado, um estágio ou uma etapa de desenvolvimento históricosocial, pressupondo, assim, a noção de progresso”. Logo, o sentido de civilizado estava relacionado com o progresso e acrescentam-se as ideias oriundas da Europa, que estavam desembarcando nas cidades brasileiras. In. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Editora brasiliense, 1996, p. 12. 1

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França Junior, encenadas no palco do Theatro José de Alencar em 1910 pela companhia dramática Lucília Peres.

1º ato: o papel da mulher na sociedade fortalezense da virada do século XIX para o XX. Um dos conceitos fundamentais da sociologia é o do papel social. Este é definido conforme os padrões comportamentais, que são destinados aos indivíduos de determinada posição na estrutura social. Em muitos casos, os padrões ou normas comportamentais emanam dos pares, por exemplo, o homem e a mulher. O primeiro representa um papel social e a mulher outro, que estão relacionados. Entretanto, grupos distintos podem ter perspectivas conflitantes sobre os sujeitos que exercem certo papel na sociedade. Isto acontece quando a mulher e o homem querem desempenhar o mesmo papel social ou fogem dos padrões comportamentais que lhe são destinados. Aqui, temos um conflito ou atrito de papéis. Algo que identificamos nas comédias de costumes encenadas na Fortaleza da virada do século XIX para o XX. A crise no casamento, o desejo de casar, a forma como acontece o matrimônio, o comportamento feminino eram temas frequentes nas comédias de costumes. Ao gerar o conflito, os dramaturgos representam os valores e os costumes presentes na sociedade. Havia uma contraposição, por exemplo, a mulher submissa versus a mulher independente. O que isso quer dizer? A personagem encontra-se em conflito. O que é certo: a mulher independente ou a mulher submissa? Ela faz a sua escolha, que está influenciada pelos valores do dramaturgo, atores, investidores, público, ou seja, pela sociedade. Lembremos que os textos dramáticos são apropriados em distintas sociedades e épocas. Portanto, o que se quis dizer pode ser mudado. A temática centrada no casamento estava relacionada com o papel da mulher na sociedade. Tomemos como exemplo o Dote de Arthur de Azevedo e As Doutoras de França Junior. As duas peças foram encenadas pela Companhia dramática Lucilia Perez na estreia do palco do TJA. As apresentações seguiram o texto dramático produzido pelos dramaturgos. Ambas foram exaltadas nos jornais fortalezenses por defenderam a moralidade e os bons costumes, ou melhor, definiram o papel social da mulher conforme o discurso dominante e conservador. Vejamos, por exemplo, a peça O Dote. Este mesmo possui um papel importante na ação dramática. O marido Ângelo o coloca como causador da crise no casamento: Ato I Cena IV Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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ÂNGELO — Henriqueta é filha única. Foi educada como filha de milionários. Viu desde pequenina satisfeitos os seus caprichos ainda os mais extravagantes, e habituou-se a isso. Trouxe de dote cinquenta contos que, reunidos ao que me restava da herança de minha mãe, e às minhas economias, perfizeram mais de duzentos contos. Quase metade desse capital foi todo absorvido pela compra desta casa, mobília, alfaias, objetos de arte, etc., tudo exigências dela. Da outra metade, já pouco, muito pouco me resta. Um verão em Petrópolis, uma assinatura no Lírico, um cupê3 , uma caleça4, duas parelhas de cavalos, muitas jóias, alguns jantares, bailes, toaletes , etc... Parece que não é nada... tem sido um sorvedouro de dinheiro. RODRIGO — O diabo foi ela trazer-te os tais cinquenta contos. ÀNGELO — Foi o diabo, foi! Todas as vezes que tento reagir contra os seus desperdícios, ela atira-me à cara o seu dote! Ora, o seu dote! Onde vai seu dote! E não é só ela: é também o pai! É o dote de Henriqueta pra cá, o dote de Henriqueta pra lá! De modo, meu amigo, que estou completamente atado pelo diabo desse dote! — Minha mulher não sai à rua que não gaste muito dinheiro! Compra jóias... jóias inúteis... Olha... ainda hoje... (Mostrando-lhe a conta que ficou sobre a secretária.) Um anel de três contos de réis!... E talvez não fique nisto! ...(Entra Pai João, trazendo uma caixa de chapéu e uma conta).5

Ele estava apaixonado pela mulher Henriqueta. Mas ela não parava com os gastos excessivos e os justificava através do dote. Daí surge à ação dramática. Ela e seus desejos de consumo são os causadores da crise no casamento, já o marido é representado como o mocinho apaixonado. Enquanto Henriqueta se preocupa com o próximo gasto, o marido tenta manter a harmonia do casamento. Segundo a história bíblica, cristã e católica, quem levou o homem ao pecado foi a mulher. Não era diferente com a peça em questão. Apesar do Rodrigo, amigo do marido, insistir na sua solteirice, Ângelo acreditou no seu casamento até a situação com Henriqueta ficar insustentável. Ela o provocou e o fez abdicar do seu matrimônio. Pecado? Para a Igreja Católica sim, já que o matrimônio é um de seus sacramentos. A moral cristã estava presente no pensamento conservador. Era uma defesa do catolicismo. A mulher separada era alvo de críticas e chacotas desses conservadores. Eles estavam inquietados com as transformações que vinham ocorrendo nos últimos anos do século XIX. Outro aspecto que observamos nessa cena é a questão do consumo. O cenário dessa peça é a cidade do Rio de Janeiro. A oferta de produtos estava cada vez maior. Henriqueta exige casa, mobília, alfaias, objetos de arte, um verão em Petrópolis, uma assinatura no Lírico, um cupê 6, uma caleça7, duas parelhas de cavalos, muitas joias, alguns jantares, bailes, toaletes, etc. Era da moradia ao lazer. A esposa foi criada no luxo carioca e ansiava por consumir, não estava satisfeita. E como poderia estar, já que surgiam novas joias e roupas para comprar, bailes e Peça O Dote de Arthur de Azevedo. In. AZEVEDO, Arthur. O Dote. Belém: Universidade da Amazônia, NEAD – Núcleo de Educação à distância. Disponível em: HTTP://www.nead.unama.br. Acesso em: 13 de janeiro de 2010. 6 Tipo de carruagem fechada para duas pessoas. 7 Carruagem de passeio. 5

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jantares para ir, objetos de artes para decorar a casa, ou seja, sempre aparecia algo para o seu consumo. Henriqueta levou o seu marido a gastos insustentáveis. As mudanças na cidade proporcionavam novos desejos e comportamentos. Henriqueta simbolizava o consumo ou a cobiça. Valores que traziam a desordem e contrários à moral cristã ou conservadorismo. Os indivíduos perdiam o controle das suas fortunas com a ânsia de usufruírem o que a cidade oferecia. Era uma sociedade de consumo conspícuo.8 Logo, Ângelo e Henriqueta representavam valores em contradição. O primeiro era a defesa do casamento e a segunda era a sua corrupção. Havia um embate, no qual o vitorioso foi o matrimônio, ou seja, a moral cristã. A peça encerra com um happy end9. Ângelo e Henriqueta reatam o casamento e a última muda o seu comportamento. A mulher histérica e desequilibrada tornava-se esposa e mãe. Este era o papel social da mulher, que estava sendo questionado pela mesma: “Nós queremos a liberdade [...] ou pelo menos a sua igualdade com os homens, o nosso déspota, o nosso tirano.” “Sejamos mulheres”, proclamava de Minas Gerais uma colaboradora da Revista Feminina, em 1920. Reivindicando igualdade de formação para os ambos sexos, chamava a atenção das leitoras para as mulheres “vítimas do preconceito”, que viviam fechadas no lar, arrastando “uma existência monótona, insípida, despidas de ideais”, monetariamente algemadas aos maridos.10

A mulher exercer o mesmo papel social do homem? Já em 1887, França Junior mostrava que não era possível em As doutoras. Se em O dote, a mulher era condenada por seu comportamento consumista, histérico e desequilibrado, em As Doutoras foi por querer se igualar aos homens nas atividades profissionais: Ato Segundo Cena XI Dr. PEREIRA – Perdi o meu nome como um galé. Deixei de ser doutor Pereira para ser o marido da Doutora Luisa Praxedes. LUÍSA – Logo que nos casamos, passei a assinar-me Doutora Luísa Pereira. Tomei, por deferência, o seu nome de família do qual aliás, seja dito de passagem , não precisava. Com o seu nome tenho-me anunciado, com este tenho receitado. Se o público continua a conhecer-me pelo apelido antigo, é porque ainda estão bem vivos na memória os sucessos que alcancei na Academia e vai acompanhando pari-passu a marcha

“(...) é apenas uma estratégia para um grupo social mostrar-se superior a outro. Essa forma específica de comportamento, entretanto, representa muito mais que tal estratégia. Um dos perigos da teorização é o reducionismo, ou seja, a tendência de ver o mundo como nada mais que exemplos para a teoria. Nesse caso, o pressuposto de que os consumidores desejam simplesmente exibir sua riqueza e status foi contestado por um sociólogo britânico, Colin Campbell. De acordo com a sugestão de Campbell (1987-1990), o verdadeiro motivo para as pessoas comprarem objetos de luxo é o desejo de manter a imagem que fazem de si mesmas” In. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002, p. 100. 9 As comédias de costumes terminavam com finais felizes. 10 MALUF, Mariana e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In. SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. República: Belle époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 370-371. 8

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progressiva da minha carreira científica! Tenho eu porventura culpa disso? Dr. PEREIRA – Os sucessos da Academia!... A marcha progressiva da sua carreira científica! A sua pomada é que a senhora devo dizer!11

Crescia o número de universidades e faculdades em todo o Brasil. O Ceará ganhava a sua Faculdade de Direito12. Os bancos acadêmicos estavam sendo preenchidos pelos homens. O ensino era uma forma de distinguir o papel social do homem e da mulher. Ao primeiro lhe era destinado os estudos da jurisprudência, ciência, medicina. Contudo, as letras também pertenciam às mulheres. A estas lhe eram destinadas às escolas normais13. Elas eram preparadas para lecionar nas diversas escolas primárias14, que acendiam por todo o Ceará. E aprendiam os serviços domésticos (cozinhar, costurar, etc.) para o seu papel social de mãe, esposa e “guardiã do lar”. A maioria da população era analfabeta. O ensino secundário e superior era restrito a poucos. Se o indivíduo não fazia parte das camadas abastadas, ele era patrocinado por elas para a conclusão dos seus estudos. Logo, nem todas as mulheres possuíam condições financeiras para estudar nas escolas normais ou escolas particulares de nível secundário, como por exemplo, o Colégio da Imaculada Conceição e o Colégio de Meninas Prospectos na cidade de Fortaleza: Colégio de Meninas (...) Prospecto. Ensinam-se neste estabelecimento as seguintes matérias: - Ler, escrever e contar; Grammatica, Geographia, História; música e piano; costura, chã e meia; bordar de branco; matiz a sedas, froco e lãs; estofo ou relevo a sedas, froco e lãs; crochet, a sedas e lãs; malha a sedas e lãs; tapeçaria de muitas e variadas qualidades trabalhadas a sedas, lãs e aljôfares; cestas e tapetes de papel de cores; flores de cera, de lã e canutilho. PREÇOS E ESTATUTOS DO COLLEGIO Pensionistas....................6$000 Prendas pagas em separado. Meias-ditas.....................8$000 Música........................................4$000 Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. As Doutoras. In. JÚNIOR, França. Teatro de França Júnior II. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, Fundação Arte, 1980, p. 251. 12 Fundada em 1903 pelo Antônio Pinto Nogueira Accioly. Apud. CARDOSO, Gleudson Passos. Literatura, imprensa e política (1873-1904). In. SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro. Intelectuais. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002, p. 55. 13 As Escolas Normais serviam para definir os padrões de comportamentos femininos: “A interferência nos espaços domésticos foi também mediada pela construção de um perfil de atuação feminina dentro e fora da instituição familiar, determinando funções e deveres, especialmente no que diz respeito aos cuidados infantis”, p. 210. Apud. VIVIANI, Luciana Maria. Formação de professoras e Escolas Normais paulistas: um estudo da disciplina de Biologia Educacional. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 31, nº02, p. 201-213, maio-agosto, 2005. 14 “A primeira iniciativa de se estabelecer o ensino público no Ceará remonta aos idos de 1823, com a Constituinte, ‘que, objetivando retirar os obstáculos para a criação de escolas, estabeleceu, por decreto de 20 de outubro, a abertura de escolas primárias, independentemente de exame dos seus mestres e de qualquer autorização.’ Em âmbito nacional, esse empreendimento foi posto em 1827, quando se decretou a Lei, de 15 de outubro, pela Assembléia Geral Legislativa, e assinada pelo imperador D. Pedro I, que visava à instalação de escolas primárias em todas as cidades, vilas e lugares populosos”. Apud. LIMA, Camila I. S., MONTEIRO, Renata F. e FILHO, Sérgio Willian de Castro Oliveira. Documentação da Instrução Pública do Ceará (1834-1889): organização, catalogação e normalização arquivística. In. Documentos. Revista do Arquivo público do Estado do Ceará, Fortaleza, n. 5, SECULT/APEC, 2008. 11

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Externas..........................6$000 Ler, escrever e contar.....5$000

Dança (3 lições por semana)......2$000 Francez (5 lições por semana)...3$00015

As jovens mulheres aprendiam o básico (ler, escrever e contar) com acréscimo das disciplinas como História, Geografia e Gramática. A estas eram incorporadas as diferentes formas de costuras, o piano, a dança e o francês. Essas disciplinas refletiam a influência francesa e definiam padrões comportamentais. Qualidades foram designando a mulher educada: o tocar piano, o falar francês e o cuidar da casa. Práticas que eram destinadas às “boas moças”, ou seja, as mulheres pertencentes às camadas mais abastadas da sociedade, nas quais faziam parte as protagonistas Henriqueta e Dra. Luísa Praxedes. Elas não estavam representando essas “boas moças”, mas as mulheres estavam querendo ampliar suas áreas de atuação: Ato Primeiro Cena VI CARLOTA – A minha situação é que se vai tornando um amálgama acéfalo, incongruente e esfacelado de lutas de direito, com pequenos interesses masculinos. LUÍSA – Como assim? CARLOTA – Ainda não recebi a investidura do meu grau, ainda não tive a posse do tibi quoque e já o magnânimo Instituto dos Advogados levanta a questão de nós mulheres podermos exercer a advocacia e os demais cargos inerentes ao bacharelado em Direito.16

Nesta cena, a personagem Carlota fala sobre as suas dificuldades de bacharel em Direito. Ela estava entrando no mundo essencialmente masculino. Carlota representava a mulher “deserta do lar”. As cidades mudavam a sua aparência paroquial para um ambiente cosmopolita e metropolitano, em ritmos diferentes. Mas, que traziam inovações na rotina feminina, quebra de costumes e alterações nas relações entre homem e mulher. As frivolidades mundanas, passeios, chás, tangos, visitas e a emancipação financeira afastavam as mulheres do seu papel social sustentado pelo tripé mãe - esposa - dona de casa. Isto ocasionava uma intranquilidade nos setores mais conservadores da sociedade. O bordão era “a mulher (...) é, em tudo, o contrário do homem”. Era necessário “uma construção e difusão das representações do comportamento feminino ideal”17. O teatro foi utilizado na defesa desse comportamento feminino ideal. Em As doutoras, França Junior fala das mulheres dividindo os bancos acadêmicos com os homens. Isto não implica dizer que ele era a favor. Ao contrário, ele procurava representar os motivos pelos quais Panfleto da propaganda do Colégio de Meninas Prospecto sob a direção de Anna Rita Clara da Fonseca Ribeiro (1855-1857). Documento encontrado na seção Aula Particular do acervo da Instrução Pública no Ceará (1883-1889). Apud. LIMA, Camila I. S., MONTEIRO, Renata F. e FILHO, Sérgio W. de Castro Oliveira. Revista do Arquivo público do Estado do Ceará, p. 23. 16 Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 237. 17 MALUF, Mariana e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino, p. 371-373. 15

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as mulheres não deveriam seguir carreira acadêmica, ou seja, ser independente do homem. Logo, existe uma exaltação da mulher submissa, mãe, esposa e guardiã do lar. No caso da peça citada, as disputas profissionais geravam os conflitos entre o casal protagonista: Dra. Luísa Praxedes e Dr. Pereira. Primeiramente, este se sentia humilhado perante a sociedade. Já que estava subjugado pelo reconhecimento profissional da esposa. Ele era reconhecido como marido da Dra. Luísa Praxedes. Era uma inversão de papéis. O costume era a mulher receber o nome do conjugue e ser distinguida como a esposa de fulano. Ao casar, Dra. Luísa ganhou o nome do marido, ou seja, virou Luísa Pereira. Ela assinava este nome e se apresentava como tal, apesar de considerar desnecessário. A protagonista conquistou seu espaço para o exercício da medicina independentemente do marido. Tornou-se autônoma financeiramente e intelectualmente do marido. Dra. Luísa Praxedes representava a mulher independente do marido. As peças O dote e As doutoras caracterizam mulheres diferentes. A primeira, Henriqueta, gostava do luxo, mas não trabalhava. A segunda, Dra. Luísa, tinha uma profissão, que a evitava dos gastos excessivos. O seu tempo era destinado aos pacientes. Contudo, ambas possuíam algo em comum. Elas não eram mães, esposas e guardiãs do lar. Fato que ocasionou a crise no casamento. Logo, se a mulher não exercia seu papel social que lhe era destinado, havia uma quebra na ordem social e nos costumes. A mulher deveria ser “(...) servilisada ao capricho do homem, recebendo uma educação em que a vaidade, a ostentação espetaculosa e a obediência, eram a única preocupação”18. Em o Dote, Henriqueta estava preocupada com a “ostentação espetaculosa”, mas não era obediente ao marido. Apesar das novas práticas, as mulheres deveriam seguir submissa ao homem para a manutenção da ordem social e dos costumes: Se as novas maneiras de se comportar tinham se tornado corriqueiras em menos de duas décadas, a ousadia, no entanto, cobrava seu preço: que a senhora soubesse conservar um “ar modesto e uma atitude série, que a todos impunham o devido respeito.” E mais: que a mulher sensata, principalmente se fosse casada, evitasse “sair à rua com um homem que não seja o seu pai, o seu irmão ou o seu marido.” Caso contrário, iria expor-se à maledicência, comprometendo não só sua honra como a do marido.19

Na virada do século XIX para o XX, havia uma preocupação com a honra. O discurso, que se propunha hegemônico, era a mulher submissa ao homem. Se ela tivesse um

OLIVEIRA, Cláudia Freitas. As ideias científicas do século XIX no discurso do club literário. In. SOUZA, Simone. NEVES, Frederico de Castro. Intelectuais. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002, p. 77. 19 MALUF, Mariana e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino, p. 368-369. 18

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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comportamento independente era alvo de comentários maldosos da sociedade. O que seria esse comportamento independente? Andar pelas ruas sem a companhia dos pais, irmãos e maridos era um exemplo. Todavia, Dra. Luísa Praxedes foi mais longe. Não tinha apenas a autonomia financeira como também intelectual. Dra. Luísa Praxedes era vaidosa. Ela se equiparava nas discussões científicas e nas disputas de clientes com seu marido Dr. Pereira. Não estava abaixo, mas ao mesmo nível do marido. Era uma desonra para este. Não havia como manter o casamento harmonioso se o marido e a mulher estavam disputando o mesmo espaço. Isto era representado na peça. Quanto maior eram os embates entre a Dra. Luísa Praxedes e Dr. Pereira pelos seus espaços profissionais, mais o casamento entrava em crise. O discurso dominante procurava justificar a superioridade do homem em relação à mulher. Deste modo, as atividades mais complexas eram destinadas ao homem. A mulher cabia os afazeres simples ou secundários: Mesmo porque até muito recentemente os cursos de especialização profissional, técnicos e universitários, estavam praticamente fechados às mulheres, destinadas às carreiras de professoras primárias, enfermeiras, no caso das que tinham algum acesso a instrução, e domésticas, operárias, costureiras, datilógrafas, telefonistas, nas camadas mais baixas. Em qualquer caso, o campo de atuação da mulher fora do lar circunscreveu-se ao de ajudante, assistente, ou seja, a uma função de subordinação a um chefe masculino em atividades que a colocaram deste sempre à margem de qualquer processo decisório.20

Independentemente das camadas sociais, as mulheres exerciam uma atividade inferior ao homem. Colocava-se na prática o que era dito na teoria. O homem e a mulher dedicavam-se às mais diversas atividades (públicas, artísticas, científicas), entretanto, as que exigiam uma maior elaboração de pensamento ou as que eram cargo de chefia estavam destinadas ao homem. Isto o fazia se desenvolver intelectualmente, diferentemente da mulher. Abel Garcia, em um artigo intitulado A mulher cearense na revista A quinzena, afirmava que a mulher se acomodava intelectualmente por ter quase tudo na mão. Ela deixava de utilizar suas funções cerebrais. Isto a atrofiava intelectualmente. A mulher tornava-se submissa ao homem. Abel Garcia pondera que a inferioridade intelectual da mulher era mais acentuada nas sociedades modernas que nas “primitivas”. Logo, essa inferioridade feminina seria um traço das sociedades mais civilizadas, como por exemplo, a parisiense. O que não era o caso do Ceará. A mulher cearense estava numa condição mais privilegiada que as parisienses, mesmo sendo inferior

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RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1985, p. 65. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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ao homem. Já que o meio adverso fez com que ela usasse mais suas capacidades cerebrais, assim desenvolvendo o seu intelecto21. O que observamos? A mulher cearense não era civilizada. Então, virou alvo de críticas nos jornais e no teatro por aqueles que ansiavam pela civilização. Às mulheres eram destinados padrões comportamentais, que as identificavam no seu papel social. Na virada do século XIX para o XX, o conceito de civilização colocava a mulher inferior ao homem e domesticada. Algo que fazia seu intelecto atrofiar. Essa teoria levantada por Abel Garcia evidencia as discussões acerca da civilização na cidade de Fortaleza. Ela era almejada, mas não era alcançada. Teorias científicas legitimavam os discursos dos dramaturgos, dos literários e dos jornalistas. A craniometria era um exemplo disso. A Antropologia, Criminologia, Psicologia, Medicina foram algumas das áreas do conhecimento que se interessou por este estudo de medição de crânios. A craniometria procurava legitimar o discurso já existente. O objetivo era compreender porque alguns indivíduos ou grupos sociais eram avaliados mais “intelectualizados” que outros. Um dos principais responsáveis pela propagação das teorias da craniometria foi Paul Broca, professor de clínica cirúrgica da Faculdade de Medicina em Paris e fundador da Sociedade Antropológica de Paris em 1859. Ele defendia a noção de inferioridade do negro em relação ao branco, do pobre em ralação ao rico e da mulher em relação ao homem22. Gustave Le Bonn foi outro nome que se baseou na craniometria para estabelecer suas teorias acerca dos níveis intelectuais da mulher. Ele foi um dos fundadores da Psicologia Social. Para ele, as mulheres, nas sociedades primitivas, eram um pouco mais desenvolvidas que nas sociedades atuais, pois as primeiras realizavam atividades que exercitavam mais as suas funções cerebrais. E com as vantagens trazidas pelo progresso material, as mulheres foram se acomodando e acabaram restringindo às atividades do lar. Isso a fazia não se desenvolver intelectualmente e ficar submissa ao homem. Essas ideias e valores chegavam ao Brasil. Foram colocadas no teatro. E chegaram ao Estado do Ceará. Apesar dos intelectuais cearenses serem compostos literários, as ideias com viés cientifico eram divulgadas e discutidas. O teatro estava legitimando uma ideia ou um valor: a mulher era inferior ao homem e deveria continuar assim. Pois, além de não ter capacidade, a mulher ao se meter em atividades consideradas masculinas prejudicaria a harmonia da família ou mesmo da sociedade. Havia o seu

O artigo escrito por Abel Garcia, A mulher cearense, foi dividido em três partes na revista A quinzena nos meses de janeiro e fevereiro em 1887. OLIVEIRA, Cláudia Freitas. As ideias científicas do século XIX no discurso do club literário, p. 78. 22 OLIVEIRA, Cláudia Freitas. As ideias científicas do século XIX no discurso do club literário, p. 80. 21

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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contrapondo. As Doutoras Luísa e Carlota o representavam em certo momento do texto dramático: Ato segundo Cena XVI CARLOTA – Até bombeiras. Amanhã sairá em todas as folhas a minha circular. Nesta peça estereótipo o programa das reformas sociológicas femininas de que pretendo dotar o meu país. Vai ver, fica a mulher equiparada ao homem em tudo por tudo. É uma revolução. (...) CARLOTA – Do nosso progresso material. O telefone invade tudo, o telefone leva o pensamento às mais longínquas distâncias e entretanto ainda não temos o Direito Telegramático, a Jurisprudência Telefonética.23

Carlota divulgava a “revolução” da condição feminina na sociedade. As inovações tecnológicas também traziam as novas ideias. Aqui, o progresso material deveria elevar a mulher da sua condição de inferior ao homem para a igualdade. Carlota partia em defesa de outro tipo de mulher. A que exercia uma profissão, praticava atividades intelectuais e colocava proventos no lar. Foi esse tipo de mulher independente que a protagonista Dra. Luísa Praxedes optou por ser e foi exaltada por Carlota: Ato primeiro Cena XII CARLOTA – Minhas senhoras! (conserta a garganta) Flutua-me no cérebro um ponto de interrogação: estará a mulher destinada nos últimos estertores do século que finda a devassar os arcanos de todas as atividades que lhe têm sido roubadas pelo monopólio sacrílego das aspirações e vaidades masculinas? Aquela que neste momento tão indignamente represento... TODOS – Não apoiado. CARLOTA – Vós, as congregadas da harmonia, e eu, a mais humilde paladina desta conquista santa de direitos, poderemos responder à fatídica interrogação? Sim! A mulher caminha, a mulher conquista, a mulher vencerá. Um viva pois, à Doutora Luísa Praxedes que simboliza a consubstanciação da vitória brilhante do... TODOS (Menos Luísa e Maria) - Viva. (Música)24

No dia da formatura da Dra. Luísa, Carlota enaltece a conquista da sua colega. Ora, ela entrou no espaço que estava destinado às aspirações e as vaidades masculinas. O homem exercia o monopólio acerca das atividades acadêmicas, que já eram exclusividade de poucos. Mas não era apenas na academia que a mulher poderia ou queria se igualar ao homem. Havia outras atividades que até pouco tempo era realizada exclusivamente por homens. Cita-se como exemplo o próprio teatro. 23 24

Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 255. Peça As Doutoras de França Junior. In. _____________. Teatro de França Júnior II, p. 240. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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No início do século XX ainda havia companhias dramáticas cearenses compostas apenas por homens. Aos poucos, as mulheres foram conquistando espaço no cenário teatral e passaram a ser as estrelas das companhias, como por exemplo, Lucilia Peres e Dolores Rentini. Ambas foram bastante elogiadas pelos jornais fortalezenses: Lucilia Peres mostrou-se grande artista assim no papel de doutora a receitar seus doentes, como no de mãe a equilibrar o filho, nutrindo-o com o seu próprio leite, no que vae ainda um combate ás amas. Não houve um gesto seu que pecasse pela falta de naturalidade. O desempenho foi cabal de princípio ao fim.25

O jornal não poupa elogios a Lucilia Peres, artista que passou meses na cidade de Fortaleza durante o ano de 1910 e encenou um variado repertório de peças, boa parte delas eram comédias de costumes, no palco do TJA. Dentre essas peças estavam O dote e As doutoras. Lucilia Peres deu vida a Henriqueta e Dra. Luísa Praxedes, respectivamente. Essa crítica teatral não se refere apenas à atuação da artista Lucilia Peres, mas, também aos costumes da sociedade. As amas-de-leite não eram incomuns. Elas eram remanescentes do período escravocrata. Muitas escravas eram utilizadas para amamentar os filhos dos seus donos e esse costume perdurou. Ser ama-de-leite tornou-se uma fonte de renda para as ex-escravas. O jornal expressava opinião contrária à amamentação mercenária. Havia uma preocupação médicosanitarista: O aleitamento mercenário entre nós é um cancro roedor da nossa fortuna em virtude do alto preço por que é hoje exercido do nosso sossego no íntimo da família em razão da qualidade das pessoas que nele se empregam, e das inúmeras moléstias que afligem nossos filhos (...).26

A prática da amamentação mercenária era condenada. Afastava a mulher do seu papel social de mãe e trazia malefícios para o seio da família. Segundo o discurso médico-sanitarista, que circulava por todo o Brasil, a ama de leite traria moléstias e vícios tanto físicos como morais, pois seus hábitos eram duvidosos. Era um elemento pernicioso na intimidade da família. Logo, o discurso médico-sanitarista possuía um cunho moral, que muitas vezes era superior ao aspecto científico. A ama-de-leite pertencia às camadas baixas da população. Havia uma distinção social entre a mãe e a ama-de-leite. Todavia, as críticas não recaíam apenas nesta última. Esse discurso médico-sanitarista e de cunho moral também era dirigido à mãe das diferentes camadas sociais. A mulher era condenada ao recusar a prática da amamentação. Um dos motivos estava relacionado com a vaidade feminina ou mesmo uma resistência ao seu papel social de mãe como “guardiã

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O Unitário, Fortaleza, Theatro, 27/09/1910, n.1026. RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar, p. 78. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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vigilante do lar”. A esta atitude da mulher, o discurso médico-sanitarista argumentava que a amamentação fazia parte do seu instinto natural: A mulher que contrai casamento deve ser convencida das leis naturais e morais que obrigam-na a exercer o círculo completo das funções de mãe. Se a isto recusar é que há uma falsificação dos sentimentos contrariando as manifestações naturais e sacrificando o dever que é sacrificar a si, a prole e a humanidade.27

Em todos os aspectos os discursos médicos-sanitaristas, masculino e moralizador procuravam legitimar a mulher em seu papel social de mãe, esposa e dona-de-casa. Era a defesa da mulher submissa ou domesticada. As atrizes destacavam-se nas consideradas grandes companhias dramáticas, como por exemplo, a Companhia Rentini ou Dolores Rentini. Entretanto, a organização do espetáculo e a administração da companhia ficavam a cargo do homem. Em alguns casos, a atriz principal da companhia dramática era casada com o dono. A mulher ampliava seus espaços de atuação nas diferentes camadas sociais, mas ela não poderia igualar ao homem. Não seria capaz de tal fato. Este discurso pretendia chegar a todas as camadas sociais. Havia uma distinção social entre a mulher rica e a pobre. O que não mudava era o mesmo papel social de mãe, esposa e dona-de-casa. Era o discurso masculino vigente e dominante. Em momentos da peça, a protagonista Dra. Luísa Praxedes o questionava: Ato segundo Cena XII LUÍSA – No dia em que as mulheres formarem-se aos centos, a medicina terá tocado o zênite da sua glória; porque só assim encontrarão nela as aptidões científicas que até aqui os senhores, egoisticamente, nos têm negado, e os sentimentos de caridade que são o mais belo apanágio do nosso sexo. (...) Dr. PEREIRA – Pois bem, Senhora Doutora ou Doutor Luísa Praxedes, como queira, eu não estou disposto a representar por mais tempo o papel ridículo de marido de parteira, de professora pública ou de cantora lírica. Sou cabeça do casal. Tenho a minha posição definida em Direito perante a família e perante a sociedade. Ou a senhora muda o rumo ou...28

Nesta cena, Dra. Luísa Praxedes reafirma o discurso da sua colega Carlota. Ela insiste na sua carreira científica. Em contrapartida, Dr. Pereira não suporta mais as disputas profissionais com sua esposa e ironiza a mulher como parteira, professora pública ou mesmo cantora lírica, ou seja, que exercia outra função além de esposa e mãe. Pois, ameaçava a condição do homem como cabeça do casal. A sociedade via o homem como tal. Ele deveria exercer essa função, se não era ridicularizado, como o próprio personagem sugere. Era uma vergonha o homem não sustentar a

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RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar, p. 79. Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 252. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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mulher. Ângelo fazia de tudo para sustentar os gastos exagerados da sua esposa Henriqueta em O dote e Dr. Pereira queria sentir o mesmo com relação a Dra. Luísa Praxedes. Ele queria sustentar a sua esposa, ou melhor, exercer o seu papel social de chefe da família. Duas peças, dois casais e dois conflitos diferentes, mas que nos remete ao mesmo fato: a importância do casamento na sociedade brasileira. Algo que não era muito diferente na sociedade fortalezense da virada do século XIX para o XX. Carlos Câmara em Zé Fidelis mostra o desejo de casar do personagem título com uma jovem, pois não queria morrer sozinho e estava com condições financeiras para sustentá-la. E em O casamento de Peraldiana, o compadre Puxavante pede a personagem título em casamento. Ora, ambos eram viúvos e se conheciam há tempos, então, por que não casar? E casaram. Havia na sociedade um discurso de exaltação do casamento. Valorizava-se a família nuclear e cristã, na qual o homem exerceria seu papel social de provedor da casa e a mulher seria submissa ou domesticada. Não era apenas um casamento romântico, ou seja, baseado nos laços do amor: Ato primeiro Cena II MANUEL – O casamento de conveniência, sob o ponto de vista da evolução atual, não é o casamento de dinheiro. O homem sem oficio nem benefício que se liga a uma mulher de fortuna para viver à custa do que ela tem, deveria ser expulso da comunhão civilizada. O verdadeiro casamento de conveniência que é a aspiração da Idéia Nova e de que minha filha vai ser o exemplo edificante, consiste na união de dois seres, tendo cada um o mesmo modo de vida, a mesma profissão. O marido trabalha, a mulher trabalha. MARIA – É uma sociedade comercial. MANUEL – Sim, mas vê o alcance enorme desta sociedade. Não é só a formação do pecúlio do casal, mas muito principalmente o desenvolvimento das classes, a seleção delas. O marido médico, a mulher médica... todos os filhos médicos... O marido advogado, a mulher advogada... MARIA – Toda prole bacharela em direito...29

Havia o casamento de conveniência. Era a busca de ascensão social e de fortuna, ou seja, o casamento por dinheiro. Manuel Praxedes, o pai da Dra. Luísa, rejeita esse tipo de casamento. Ele condena o homem, que se casa por dinheiro, sem profissão e sustentado pela esposa. E a consequência era a expulsão da comunhão da civilização. Ora, como ser social, o homem está sujeito a exclusão se não seguir os padrões comportamentais aceitos pela sociedade. No caso não apenas os que eram definidos pelas camadas dominantes, mas pelas diferentes camadas sociais. Se a mulher possuía seu papel social, o mesmo acontecia com o homem. A sociedade possui suas formas de comportamento. Algumas se referem à distinção social. Entretanto, quando se tratava

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Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 231. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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do casamento e os papéis sociais, as diferentes camadas sociais da cidade de Fortaleza acabavam convergindo nos discursos. Manuel Praxedes levanta outro tipo de casamento: marido e esposa trabalham. Era a verdadeira conveniência. Ambos exerceriam a mesma profissão, por exemplo, marido médico, esposa médica e consequentemente filhos médicos. Para ele, tal casamento era o desenvolvimento da classe, pois, seria selecionada. Nem todos poderiam ser médicos, senão os filhos de médicos. Isso segue para todas as profissões. O pai da Dra. Luísa Praxedes também argumenta sobre o papel social da mulher: Ato primeiro Cena II MANUEL – Não é a ordem ainda, mas é a evolução da qual muito naturalmente ela há de surgir. O papel da mulher de hoje não é o da de ontem. Aquelas criaturas que vivem em casa trancadas a sete chaves, pálidas, anêmicas, de perna inchada, feitorando as costuras das negrinhas, começam por honra nossa, a ser substituídas pela verdadeira companheira do homem, colaborando com ele no progresso da grande civilização moderna. Nós, os homens, temos a política, a espada, as letras, as artes, as ciências, a indústria... Por que razão seres organizados como nós, mais inteligentes até do que nós, haviam de se mover eternamente no acanhado círculo de ferro do dedal e da agulha?30

Apesar de ser homem, Manuel propõe outro papel social para essa mulher moderna. Ela não estaria presa as agulhas e sim estaria ao lado do homem. Seria uma verdadeira companheira. Não seria nem menos e nem mais. O que chama a atenção nesse discurso é o fato de sido feito pelo pai da protagonista. Ora, era o homem quem falava na civilização, sociedade moderna. O que a mulher saberia disso? Até então tão restrita aos afazeres domésticos. Era um pai orgulhoso que justificava a escolha da filha pela ciência médica. Ele detinha o conhecimento e o transmitia para sua esposa Maria Praxedes, que não estava de acordo com a escolha da filha. Para ela, era apenas um capricho da filha e temia pelo seu casamento. Já que Maria não via o casamento como uma sociedade comercial e sim como laços de amor entre o homem e a mulher: Ato quarto Cena IV DR. PEREIRA – Enfim o meu programa é fazer deste rapaz um verdadeiro homem. PRAXEDES – Foi o que eu fiz com a Luísa. MARIA – Lá isso é verdade. Felizmente porém, a Divina Providência meteu-se no meio e ela hoje é uma mulher...31

Essa cena mostra bem a intenção do dramaturgo em colocar o pai favorável a filha e a mãe contra. Ora, a mulher não deveria se comportar como um homem. Praxedes reconheceu isso 30 31

Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 229. Peça As doutoras. In. __________. Teatro de França Júnior II, p. 280. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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ao afirmar que fez da filha um “verdadeiro homem”. Ele era pai e como tal sonhava com o filho homem. Já Maria era mulher e sabia qual era o seu papel social. Ainda estava ligada aos valores religiosos. Ela era submissa ao marido e vivia voltada para o labor do lar, sob o signo da mãe e da boa esposa. E foi esse papel social da mulher que sobressaiu na peça. Dra. Luísa Praxedes passou por obstáculos até conseguir manter o seu casamento. Um deles foi a separação: Ato terceiro Cena II MARTINS – As causas do divórcio pelo nosso Direito, minha senhora, resumem-se em duas: adultério e sevícias. LUÍSA – Então fora deste antediluviano adultério e destas sevícias que deveriam antes fazer parte do Código Criminal, não existe para mulher nas minhas condições outro recurso de desagravo de direitos? MARTINS – O legislador não conhecia Doutoras, minha senhora. Imaginava que as mulheres fossem sempre as mesmas em todos os tempos e lugares. LUÍSA – Sou casada com um homem que exerce profissão igual à minha. Ele aufere os lucros do meu trabalho, alegando como Leão da fábula, a posição de chefe. Não satisfeito com isto, procura por meio de subterfúgios e tricas ignóbeis afastar-me do plano em que me coloquei pela capacidade profissional. Pois bem: hei de cruzar os braços, sofrer resignada todas as humilhações, só porque não posso alegar contra este homem procedimentos brutais para com minha pessoa e ele não pode lançar-me em rosto a infâmia de haver manchado o leito conjugal? Que lei é esta, Doutor? A que vêm este adultério e estas sevícias para o caso em que eu me acho? MARTINS – O caso em que Vossa Excelência se acha, minha senhora, é todo excepcional. O Direito não podia prever estas lutas de interesses e autonomias científicas nas sociedades conjugais. O amor foi sempre a base da família. LUÍSA – O amor, sempre esse eterno amor a humilhar a mulher, a transformá-la em máquina de procriação. 32

Essa cena mostra que o casamento não era apenas o religioso. Havia o civil. Apesar do reconhecimento do casamento civil, o religioso ainda era considerado muito importante e desconsideravam o primeiro. O que representava a influência da Igreja Católica com sua moral cristã na sociedade. O casamento civil ocasionava problemas como o representado na peça O casamento de Peraldiana de Carlos Câmara: Terceiro Ato 2º Quadro (Casa pobre) Cena IV CANDOCA – E a senhora é casada do civil e no religioso? FLOR – No civil e no religioso. Mas por que me faz esta pergunta? CANDOCA – É porque, sim, podia ser que seu marido, sendo casado com a senhora só no religioso, tivesse resolvido casar com outra no civil. Vê-se tanto disso. 33

32 33

Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 265-266. Peça O casamento de Peraldiana. In CÂMARA, Carlos. s/t, p. 150. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Essa cena enfatiza o casamento religioso e civil. Representa como os indivíduos poderiam formar duas famílias. Ora, casado no religioso não era o mesmo que no civil. Após a proclamação da República, o país tornou-se laico. Havia uma separação do civil e do religioso. Mas, não retirava o adultério. Apesar do afastamento da Igreja Católica e do Estado, a primeira ainda continuava exercendo influência na definição de padrões comportamentais na sociedade fortalezense. Essa atitude era condenada, porém, não deixava de ser praticada. Isso não foi o caso da Dra. Luísa Praxedes e o Dr. Pereira. Quando este último decidiu pela separação, ele procurou a Dra. Carlota para ser sua advogada. Já a Dra. Luísa foi atrás de Martins, que matinha um relacionamento com a Dra. Carlota. Ambos queriam consolidar o divórcio. Segundo a lei, os motivos que ocasionavam o divórcio eram o adultério e a sevícias. Não houve adultério e nem sevícias para concretizar o divórcio. O que houve foi um conflito profissional entre os conjugues. Quem tinha razão? A lei não poderia dizer. Era um caso excepcional. Um homem querendo exercer o papel de chefe de família, o que estava errado nisso? Nada, pois era a função do homem na sociedade. E a mulher buscando sua autonomia profissional? A lei não dava assistência. “O amor foi sempre a base da família”. As disputas profissionais acabavam com esse amor, que subjugava a mulher ao homem, ao lar. Então, o erro estava na autonomia profissional da mulher. A vítima era o homem dos caprichos da mulher. Essa situação muda: Ato quarto Cena VI PRAXEDES – Não largas esse menino? LUÍSA – Estou muito aflita, papai. Coitadinho! Esteve lá dentro a chorar, tão inquieto. Veja se ele tem febre! PRAXEDES – A mim é que tu o perguntas? LUÍSA – Veja, mamãe: a Eulália disse-me que o pulso estava regular. PRAXEDES – Pois também foste consultar a Eulália! Ora, louvado seja Deus!!!34

Dra. Luísa Praxedes engravida. O mesmo acontece com Henriqueta em O Dote. As protagonistas aceitaram o seu papel social de mãe, esposa e dona-de-casa. A procriação é algo divino. Foi a “Providência Divina” destacada pela mãe da Dra. Luísa Praxedes. O filho fez os conjugues repensarem as crises nos casamentos. E as esposas assumiram seus “erros”. Nessa cena a protagonista de As doutoras deixa de ser a Dra. Luísa Praxedes e torna-se simplesmente Luísa Pereira. Antes médica, agora dar ouvidos aos conhecimentos do cotidiano da criada Eulália.

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Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 283. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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A criada Eulália faz referência às mulheres das camadas mais pobres da sociedade. Elas precisavam trabalhar, mas não podiam deixar de educar os filhos, cuidar da casa e submeter-se ao marido. Se não eram recriminadas pelo discurso dominante e masculino da época. Essas mulheres exerciam funções de domésticas, (engomadeiras, lavadeiras, etc.), de amas-de-leite, de operárias, etc. Havia também as meretrizes e as artistas. As prostitutas representavam o oposto da mãe, esposa e dona-de-casa. Eram “mulheres de má vida, meretrizes insubmissas, impuras, insignificantes”. Elas eram sinônimo de sexualidade. A prostituição era um vício, que corrompia a sociedade, ou uma ofensa a moral e aos bons costumes. Já a mãe, esposa e dona-de-casa era a virtude, a honesta, a laboriosa, a assexuada ou castidade35. Mas, os homens procuravam as “mulheres da vida” e outros vícios: Os “rapazes honestos”, (...), os chamados “filhos de família”, escreveu a articulista, tomam por elegantes e bom tom passar suas noites “nas casas de divertimento livres, ao jogo ou nos cafés, embrutecendo o espírito, aviltando a alma e arruinando o corpo pelas bebidas, cocaína, morfina ou cartas de pôquer.” É esses homens pouco educados que as esposas se entregam.36

As mulheres, com seus novos costumes, eram acusadas pelos términos de casamento. Entretanto, havia a prostituição, os jogos, as bebidas, as drogas, que tiravam o homem do seu papel social de chefe de família. “Caso ou não caso?” com um homem que procurava o prazer com as meretrizes, bebiam, jogavam, etc.37. As mulheres estavam questionando o comportamento mundano dos homens. Apesar das suas vozes serem abafadas pelo discurso masculino e dominante da época. Já as artistas costumavam acompanhar seus maridos em turnê por todo o Brasil. A cidade de Fortaleza na virada do século XIX para o XX recebeu casais de artistas. Pelas condições adversas, seus espetáculos nem sempre saíam como o previsto: Um dia, em 1918, mais ou menos, em Fortaleza, apareceu um oficial português, exilado por motivos políticos. Acompanhava-o uma mulher, também portuguesa, dizendo-se ser sua esposa. Chegou o casal à maior penúria e se hospedou na Pensão Bitu, sem um vintém no bolso. Certo dia o casal nos procurou pedindo nosso auxílio para um espetáculo, em seu benefício. (...) Como o homem estava sem dinheiro e a função era urgente, mandamos imprimir ingressos para o espetáculo no Majestic e caímos na praça a passar os ingressos em benefícios dos artistas portugueses. Ensaiávamos uns quadros improvisados (...). Chega a noite do espetáculo. Nós nos preocupávamos com a passagem dos ingressos para cobrir as despesas do teatro e sobrar bastante dinheiro para o casal ir-se embora da cidade, sem vexames. (...) Já o público impaciente, quando se abre o pano da boca, para o início da tragédia. Entra em cena o RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar, p. 85-90. MALUF, Mariana; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino, p. 373. 37 ______________; _________________. Recônditos do mundo feminino, p. 373. 35 36

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Romano para fazer a apresentação da artista, que começaria cantando a “Baratinha”, que era o canto mais popular na cidade. A platéia não gostou do Romano e o vaiou, reclamando o início do espetáculo, que ninguém sabia o que seria. (...) O pano de boca abre-se e surge a artista, horrivelmente vestida e ao entrar, aperreada, rasga o vestido num ligar impróprio. A platéia gargalha, a moça se perturba. (...) A artista termina o número e sai de cena sem saber o que faça, aos riscos da platéia, e vai mudar a toilete para o número. Nervosa, demora demais. O público estava por conta e a coitada da mulher aperreadíssima. Quando ela entra novamente, com um vestido de gase vaporoso, dançando muito mal, ao compasso de uma música ainda pior, a platéia desesperou. Num corropio, levanta os braços muito brancos e muito magros: Um sujeito maldosamente espirra muito alto. A pobre mulher não suporta a ridicularia e cai pesadamente no palco, desmaiada. (...) A platéia apupa mais, mas se divide em dois grupos. O choque é tremendo! Um grupo quer invadir o palco (...) A platéia se divide e haja pau. (...) No dia seguinte, muito cedo, levamos ao casal o saldo do espetáculo, acrescido de importância arrecadada entre amigos e admiradores do desassombrado varão português, que ainda teve a coragem, ou o desespero, de passar com a mulher na Praça do Ferreira, enfrentando quem ousasse desacatá-lo.38

Esse episódio mostra o amadorismo do teatro em Fortaleza. Um casal português resolveu pedir auxílio aos artistas fortalezenses para produzir um espetáculo em seu benefício. O casal estava exilado e sem dinheiro. O problema foi quando o espetáculo foi levado ao palco. A artista não correspondeu à exigência do público. Sua dança não agradava e ela ficou nervosa a ponto de desmaiar. O público dividiu-se e a confusão estava armada. Fato que não era tão incomum nas casas de espetáculos da cidade de Fortaleza. Agitações, burburinhos, desordem faziam parte do comportamento do público que frequentavam aos teatros. Era só acontecer algo de diferente no espetáculo: atraso dos artistas para entrar em cena, figurinos rasgados, improvisação dos artistas, etc. Essas situações, muitas vezes, eram hilariantes. Por isso, exigia-se a presença da polícia nos espetáculos. Eles devem ser comunicados ao chefe de polícia da cidade de Fortaleza para manutenção da ordem. Então, com a má atuação da artista portuguesa não seria diferente. A confusão foi feita. Muitas dessas artistas amadoras não possuíam o reconhecimento no cenário teatral de Fortaleza. Não o mesmo daquelas que figuravam das companhias dramáticas de maior porte (número de componentes superior a dois) ou de maior influência na sociedade, como por exemplo, o Grêmio Dramático Familiar. Algumas companhias se iniciaram com apenas dois componentes, a esposa e o marido. Aqui, não havia disputa profissional. Ambos estavam lutando pelo espaço no cenário teatral e mesmo pelo “ganha pão” do dia-a-dia. Além do mais, a mulher permanecia submissa ao homem. Ela era artista e estrela, mas o homem comandava o espetáculo. As mulheres não estavam apenas nos palcos. Elas se encontravam na plateia do teatro: 38

DOMINGOS, José. Fortaleza no Início do Século, p. 105-106. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Por caminhos sofisticados e sinuosos se forja uma representação simbólica da mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa (...) as novas exigências da crescente urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial que ocorrem nos principais centros do país solicitam sua presença no espaço público das ruas, das praças, dos acontecimentos da vida social, nos teatros, cafés (...).39

Entre as funções sociais destinadas ao teatro estava a moralização da sociedade. Ora, as peças As Doutoras e O dote estavam mostrando o tipo ideal do comportamento feminino, ou seja, o papel social da mulher. Então, quem melhor para assistir essas peças senão as mulheres? Aqui, elas eram bem aceitas. Já que havia uma representação da moral e dos bons costumes. Algo que não estava presente em todos os espaços de sociabilidades, onde a presença do tipo feminino ideal era restrita ou nula, como por exemplo, nas casas de divertimentos livres. Em O Dote, ao engravidar, Henriqueta reconheceu sua imprudência ao gastar mais do que se tinha. Pediu perdão ao marido e as pazes foram seladas entre os conjugues. Arthur de Azevedo representa certos tipos sociais: a mulher desequilibrada, o homem atendia os desejos da mulher, o jovem advogado, a sogra e o sogro, etc. Tais tipos sociais estavam presentes na sociedade fortalezense. O que fazia o público se identificar com essa comédia de costumes e acabava agradando. O dramaturgo seguia o discurso masculino em vigência. No final do texto dramático, Arthur de Azevedo exalta a figura da mãe, esposa e dona-de-casa. Em As doutoras, não foi apenas a protagonista Dra. Luísa Praxedes, que cedeu ao papel social da mulher submissa ou domesticada. Ato quarto Cena VIII Dr. PEREIRA – Acabo de estar neste instante com o Doutor Martins. PRAXEDES – Ia com a senhora, a Carlota de Aguiar? Dr. PEREIRA – Com a senhora e uma ama toda cheia de fitas e carregando o primeiro bebê. LUÍSA – Já tem um filho a Carlota? Dr. PEREIRA – Ora que admiração! Estão casados há um ano e tanto. (...) PRAXEDES – E creio que abandonou o foro, porque há muito tempo não lhe tenho visto o nome nos jornais. 40

A Dra. Carlota abandonou o foro para dedicar ao filho e ao marido. Agora, era apenas Carlota. Ela possuía um discurso mais veemente da mulher como advogada, médica, ou seja, da mulher independente. O que isso significa? Entre a mulher independente e a mulher submissa, segundo o discurso vigente, a escolha certa era a segunda. Bastante visível com a fala de resignação da protagonista:

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RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar, p. 62. Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 284. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Ato quarto Cena XI LUÍSA – Meu pai: dizem que o cérebro da mulher é fraco. Pois bem, por um sentimento de vaidade, que dizem também ser inato em nosso sexo, eu enchi esse cérebro de tudo quanto a ciência pode ter de mais grandioso e mais útil. Percorri com a coragem inaudita toda a escala do saber humano na minha especialidade. Calquei ódios e vaidades dos colegas, ergui a cabeça, sem corar, acima desses preconceitos sociais de que falou há pouco e que eu também considerava estúpidos! Venci. Entrei na sociedade triunfante com meu título. O prestígio que se formou em torno do meu nome fez-me esquecer de que era uma mulher... A glória atordoava-me... Dentro de mim sentia, porém, qualquer coisa de vago, de estranho, que não sabia explicar! Eu que muitas vezes no anfiteatro havia apalpado o coração humano, que o tinha dissecado fibra por fibra, que pretendia conhecer-lhe a fundo a fisiologia! Desconhecia entretanto, o sentimento mais sublime que enche todo esse órgão. Tudo quando aprendi nos livros, tudo quanto a ciência podia dar-me de conforto, não vale o poema sublime do amor que se encerra neste pequeno berço!41

A peça As Doutoras circulava por todo o Brasil, incluindo a cidade de Fortaleza, onde ganhou destaque nas páginas dos seus jornais fortalezenses por defender a mulher submissa: As Doutoras. O grande industrial. Foram estas as peças das duas últimas noites de espetáculos. <<As Doutoras>> é da penna de França Junior e constitue um caso interessante de psychologia da doutrina feminista. A emancipação da mulher é um sonho que muitos espíritos novos acalentam numa doce illusão de que possa Ella em dia substituir o homem em todas as cousas do viver humano. Esquecem, porem, que a sua condição biológica, moral e social, é a de eterna prisão nos laços do amor. A licção de Schopenhauer ensina que a mulher é sempre um ser intermediário entre o homem e a creança, facto que se constata pela força muscular, pela estatura e pela voz. Os padres da Igreja até lhe negavam alma e já ella obteve desde o concílio de Nicéia. Pretende agora conquistar as calças masculinas, acompanhado o homem (...) na evolução social. Deveria contentar-se com a sua victoria no campo religioso e moral, abominar os padres, que queriam todas as mulheres sem alma, e deixar o prato da política, da jurisprudência e da medicina para a mesa dos homens. A peça de França Junior é um combate ao feminismo. A doutora Luísa Praxedes, cujo papel Lucilia Perez fez com um talento admirável, era jovem médica que desposara a um seu colega, sahido com ella no mesmo dia dos bancos acadêmicos. (...) namorados tinham unicamente a expressão fria da sciencia de ambos, acostumados ao estudo physiologico do órgão do amor, não o conheciam nas suas manifestações psysicas. Não achavam nos lábios uma phrase de ternura, mas apenas a technologia da sciencia medica com que azedavam as suas discussões, mesmo junto ao leito dos doentes. 42

A opinião do jornal sobre o papel social da mulher converge com a peça As doutoras. Foi definida como combate ao feminismo. Era uma crítica aquelas mulheres que estavam agindo de 41 42

Peça As Doutoras de França Junior. In. JUNIOR, França. Teatro de França Júnior II, p. 288. Unitário, Fortaleza, Theatro, 27/09/1910, n. 1026. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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desacordo com a regra, ou seja, “vestindo as calças pertencentes ao homem”. Não raro havia mulheres presas por desacato, brigas, facadas e mesmo expondo a sua figura, um atentado ao pudor. Esses comportamentos eram condenados até mesmo para o homem, imagine para a mulher, onde a sociedade a reprime diariamente com seus discursos. O jornal estava reafirmando o discurso passado pelo dramaturgo. A mulher, segundo o jornal, era um ser intermediário entre o homem e a crianças. Ao primeiro era submissa ou inferior. Quando ao segundo, exercia o seu domínio. Ela já havia conquistado muito, como por exemplo, a alma antes lhe negada. Mais do que isso prejudicaria a harmonia da sociedade. França Junior mostrou em As Doutoras como esse “feminismo”, a mulher exercendo o papel do homem, era uma ameaça à ordem vigente. O que foi endossado pelos críticos teatrais fortalezenses. Logo, o teatro estava sendo utilizado para legitimar um discurso masculino e dominante, que estava atingindo as diferentes camadas sociais. Considerações finais O teatro de Fortaleza representa a hierarquização social presente nas próprias ruas e espaços da cidade. Lugares onde apareciam novos costumes, que nem sempre eram compreendidos pela população local. A maioria desta era oriunda do interior do Ceará. Pois, esses novos hábitos eram uma afronta a moral, ou melhor, os vícios da cidade. Estes se faziam perder os bons costumes e os valores morais ainda presentes no sertão. Os dramaturgos defendiam as ideias morais vigentes na sociedade, que nem sempre eram empregadas nos costumes. Essas ideias morais estavam influenciadas pelo conservadorismo religioso, ou melhor, pelo catolicismo. Era uma moral cristã que se tornava contra a emancipação da mulher, participava da educação, definia votos, portanto, estava presente em vários setores da sociedade. Uma das formas de divulgação dessa moral cristã foi o teatro. Nas suas peças, os dramaturgos representavam como as práticas dos vícios provocavam a desordem, desse modo, eles defendiam que o certo era seguir as ideais morais cristãs. Logo, o texto dramático passa uma mensagem, que é moral, social, política, religiosa, etc. Assim sendo, a mulher estava designada ao papel social de mãe, dona de casa e esposa, porém havia uma resistência da mesma para essa condição.

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Artigos

A patrimonialização da produção de louças e porcelanas em Pedreira, São Paulo: um estudo de caso The patrimonialization of the making process of china and porcelain in Pedreira, Sao Paulo: a case study André de Sousa Miranda Mestre em Análise Crítica e Histórica da Arquitetura e Urbanismo – UFMG Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais asm1178@gmail.com Mariana Gonçalves Moreira Mestranda em Antropologia – UFMG mgoncalvesmoreira@gmail.com Raul Amaro de Oliveira Lanari Doutorando em História – UFMG Professor do Depto. de História do Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH ralanari@gmail.com Rodrigo Augusto Silva Freitas Especialista em Geoprocessamento – UFMG rodrigoasfreitas@yahoo.com.br

Recebido: 11/10/2014 Aprovado: 19/11/2014 RESUMO: Este artigo pretende discutir o processo de construção e consolidação da prática de fabricação de louças e porcelanas no município paulista de Pedreira, que remonta ao princípio do século XX. Analisaremos as mudanças observadas na prática cultural ao longo das últimas décadas, com o abandono de alguns aspectos tradicionais e a adoção de métodos industriais, tendo por objetivo atingir novos públicos. Frente a este processo histórico-social ligado ao estabelecimento das relações capitalistas de cunho industrial, observa-se, por sua vez, a manutenção de antigas práticas e relações de trabalho, que passam a adquirir novos significados para aqueles que os praticam. Procuraremos mostrar como a produção da porcelana, seja ela em escala industrial ou artesanal, contribuiu para a formação de um universo simbólico para a população de Pedreira; ao mesmo tempo que consolidou-se como um importante setor da economia e do mercado turístico local. PALAVRAS-CHAVE: Porcelana, Patrimônio cultural, Pedreira/SP. ABSTRACT: This paper intends to discuss the building and consolidation process of the china and porcelain industry in Pedreira, SP – Brazil, in the beginning of the 20th century. In the last few Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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decades, the practice suffered changes, due to the substitution of traditional aspects for modern methods and aiming new market segmentation, which will be analysed. Regardless this industrial and capitalist historical-social process, some traditional aspects such as employment relationship and connections were preserved and gained different meanings for those who were involved with it. The idea is to show how porcelain and china manufacturing – handmade or mass production scale - has influenced Pedreira's population symbolic repertoire, also its key role in the touristic and economic development for the city. KEY-WORDS: Porcelain, Cultural heritage, Pedreira/SP.

Introdução Pretendemos apresentar aqui os resultados de pesquisa realizada no município de Pedreira, estado de São Paulo, que teve o objetivo de identificar práticas culturais integrantes do cotidiano local. A pesquisa integra o Programa de Identificação e Mapeamento do Patrimônio Cultural existente no trecho onde será instalada a Linha de Transmissão Araraquara-Taubaté, a ser construída pela Companhia Paranaense de Energia Elétrica/COPEL. O trabalho visa fornecer informações acerca da viabilidade do traçado proposto para o empreendimento, levando-se em consideração o patrimônio cultural situado no entorno da linha de transmissão passível de ser impactado. Este artigo analisará as informações coletadas nos levantamentos de campo, tendo como objeto de estudo uma das manifestações culturais de relevância identificada pela equipe: o modo de fazer louças e porcelanas em Pedreira/SP. Organizamos nossa explanação da seguinte maneira: primeiramente traçamos o estado da arte da produção de cerâmicas, louças e porcelanas. Em seguida, apresentamos informações históricas sobre sua produção e disseminação no Brasil e em Pedreira. Dando prosseguimento ao estudo, analisamos o modo de fazer louças e porcelanas em Pedreira; o universo das relações de trabalho e a construção dos referenciais simbólicos e identitários ligados à porcelana. Por fim, argumentamos sobre as transformações que essa manifestação cultural apresentou durante os mais de cem anos de existência.

Antecedentes históricos da produção da porcelana A porcelana é uma variação do grupo das cerâmicas que, segundo Pileggi, é uma denominação genérica que abrange todos os produtos derivados da fusão e cozimento em altas

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temperaturas entre argila e minerais como quartzo, bauxita, mulita, apatita, zircônia, entre outros.1 Existem diferentes categorias de cerâmica, em função das características de sua massa e do tratamento de superfície que lhe é conferido: além da porcelana, se destacam os grupos das faianças, louças e azulejos. A porcelana pode ser caracterizada como um tipo de cerâmica vitrificada elaborada a partir de uma massa composta por caulim, feldspato e quartzo, com características especiais referentes à resistência, transparência e porosidade. Desde sua descoberta, atribuída aos chineses durante a Dinastia Tang (618-970), a porcelana goza de excepcional prestígio tanto no Extremo Oriente como no mundo ocidental. A produção de porcelana se restringiu à China, Coreia e Japão até o século XVIII, tendo sido levada à Europa no século XVI pela Companhia das Índias e as grandes navegações.2 O primeiro reino europeu a ter contato com a porcelana foi Portugal, tendo desenvolvido a prática durante os séculos seguintes com o surgimento de oleiros que se destacavam pelo esmero e pela criatividade nos motivos decorativos e primor no acabamento. De suma importância para o destaque português foi a influência mourisca decorrente da presença árabe na Península Ibérica.3 Portugal se destacou pela produção de azulejos, em grande medida exportados para o Brasil nos séculos XVIII e XIX. No século XVII desenvolveu-se a produção de porcelana em Florença e, mais no final do século, na França. Ao longo do século XVIII, mais de 60 milhões de objetos de porcelana chinesa foram exportados para a Europa.4 No século XVIII a produção de louças e porcelanas inglesas e portuguesas se destacou em função dos esforços de oleiros em desenvolver a técnica, com o intuito de alcançar os padrões orientais. A faiança portuguesa, por exemplo, ao aproximar-se da qualidade da porcelana chinesa, contribuiu para sua difusão no ocidente e para além-mar. O acréscimo de elementos como sílex calcinado, caulim, argila, cal, feldspato e giz nas manufaturas inglesas naquele

PILEGGI, Aristides. Cerâmica no Brasil e no mundo. São Paulo: Martins Editores, 1958, p.193. MOUTINHO, Stella, PRADO, Rúbia Bueno do, LONDRES, Ruth. Dicionário de artes decorativas & decoração de interiores. 2ed. ver. atual. - Rio de Janeiro, Lexikon, 2011, p. 23-38. 3QUEIRÓS, José. Cerâmica Portuguesa. Aveiro: Livraria Estante Editora, 1987, p.98 e ss. 4Rádio Internacional da China (emissora estatal). Disponível em: http://portuguese.cri.cn/chinaabc/chapter2 0/chapter200313.htm. Acesso em: 27 de mai. 2014. 1 2

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momento consistiu em grande novidade. A temperatura de queima oscilava entre 600 e 1150 graus. O sal marinho aplicado às peças foi substituído pelo óxido de chumbo e óxidos metálicos.5 A influência da chegada da porcelana chinesa na produção europeia pode ser percebida facilmente no estilo chinoiserie, baseado em interpretações europeias de padrões chineses, comum principalmente na primeira metade do século XIX e geralmente caracterizada pelo tom azul de seus elementos decorativos (período de produção de 1738 a 1873). A partir do século XIX observou-se a profusão dos motivos decorativos chineses e a difusão da fabricação da porcelana para outros locais da Europa, como a Espanha e, principalmente, a Alemanha. Contribuiu para o destaque da porcelana alemã a descoberta de jazidas minerais que forneciam matéria-prima semelhante à da porcelana chinesa. Na Inglaterra, por sua vez, desenvolveu-se a indústria de louças baratas, cuja alta produtividade para os padrões então vigentes se devia a adaptações nos métodos de fabricação. A louça inglesa se popularizou no século XIX com a ampliação da rede de trocas comerciais estabelecidas ao redor do mundo e os produtos ingleses chegaram aos mais diversos cantos do mundo. No Brasil, a porcelana e as louças de origem inglesa se somaram às cerâmicas indígenas e à louça e faiança portuguesas, como veremos a seguir.

Antecedentes históricos da produção e disseminação da porcelana no Brasil No Brasil, a cerâmica teve seu início com a produção indígena pré-histórica. Estudos arqueológicos indicam sua existência na região amazônica há cerca de 5.000 anos. A cerâmica préhistórica apresentava variedade de funções e estilos decorativos, sendo produzidos vasilhames, bancos, estatuetas, urnas funerárias, rodelas-de-fuso6, tangas, colheres, adornos auriculares e labiais e apitos. A tradição ceramista no Brasil é, portanto, muito anterior ao início da colonização portuguesa. É possível destacar, nesse sentido, os exemplos dos povos Marajós, Karajás, Kaxinauás, TupiGuaranis, Tukanos, Waurá e Kadiuéu.7

5TOCCHETTO,

Fernanda Bordin et al. A Faiança Fina em Porto Alegre: vestígios arqueológicos de uma cidade. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 2001, p.28. 6Instrumento utilizado para fiar. 7Dentre os diversos autores que se dedicam ao estudo da cultura material indígena é possível destacar: FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura Tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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A origem da fabricação de cerâmicas entre os povos indígenas brasileiros, especialmente aqueles existentes em períodos mais remotos, ainda é motivo de discussões entre os arqueólogos. A principal controvérsia refere-se à ligação entre a existência de objetos cerâmicos e o desenvolvimento das práticas de agricultura entre os indígenas em território americano. Segundo Suely Luna, cerâmica e agricultura, ainda que possuam vínculos entre si, não devem ser diretamente associadas: A presença da cerâmica entre as populações pré-históricas vem geralmente associada ao conhecimento da agricultura, embora essa relação nem sempre obedeça à realidade. Tem-se observado, através da etnografia, que grupos em estágio agrícola usaram outros tipos de recipiente para transportar, armazenar e mesmo cozinhar alimentos. Por sua vez, já foram também detectados grupos humanos ceramistas que não praticavam atividades agrícolas ou as praticavam sumariamente em períodos sazonais, baseando sua alimentação na caça e, principalmente, na coleta. A utilização da cerâmica não fica restrita, porém, a finalidades de preparação e armazenamento de alimentos, sendo usada também como objeto cerimonial, funerário, lúdico e de adorno.8

Quando os portugueses chegaram à costa americana, portanto, encontraram um complexo de povos indígenas que já dominavam técnicas de produção de cerâmica e as utilizavam para a confecção de diversos utensílios. O processo de colonização, por sua vez, foi caracterizado pela incorporação de técnicas e saberes locais, estabelecendo contato entre as culturas indígenas e europeia. O cotidiano do início do povoamento da América Portuguesa foi marcado pela vida rústica, pela precariedade dos recursos e pela necessidade de estabelecer contato com o “gentio”. Este cenário levou a diversas transformações nos modos de viver trazidos da Europa, com incorporações e adaptações de práticas locais, mais adequadas ao ambiente americano. Os diversos casamentos entre europeus e índias aprofundou o contato entre culturas. Segundo Leila Mezan Algranti, “[...] nos primeiros tempos da colonização, em virtude da falta de mulheres brancas, as índias assumiram seu lugar, ensinando a socar o milho, a preparar a mandioca, a traçar as fibras, a fazer redes e a moldar o barro”.9 O cotidiano material dos habitantes da colônia nos primeiros anos da ocupação do território americano caracterizava-se pela ausência de conforto e pela pouca quantidade de posses. Tratava-se, muitas vezes, de uma vida transitória, vivida nos caminhos abertos entre as matas, dependente de roças temporárias e pousos pouco equipados. Segundo Laura de Melo e Souza, “foi nos espaços Carneiro da (ed.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992; e PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1992. 8LUNA, Suely. Sobre as origens da agricultura e da cerâmica pré-histórica no Brasil. Revista Clio Arqueológica, nº 16, v. 01 UFPE, Recife. 2003, p.69. 9 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Melo e (org.). História da Vida Privada no Brasil – Vol I: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 122. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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abertos e nas zonas distantes que se passou boa parte da história da colonização lusitana na América […].10 Esta vida instável e itinerante não deixava espaço para a manutenção de hábitos refinados, bem como para a utilização de utensílios refinados. Já nos engenhos, grandes unidades produtivas habitadas por uma população maior de brancos, índios e negros escravos, o contato com os indígenas e a incorporação da prática de produção de cerâmicas forneceu um bom substituto para as louças importadas: O mais comum, porém, eram as louças feitas de barro, que desde o início da colonização fabricavam-se em casa, pois na Bahia, segundo Gabriel Soares de Sousa, 'cada engenho tem um forno de tijolo, nos quais se coze muita boa louça”. Porcelanas das Índias, contudo, chegavam com certa frequência desde o início da colonização na bagagem dos mais providos, sendo completadas em épocas posteriores com baixelas inglesas de louça e prata”.11

Os colonizadores portugueses instalaram as primeiras olarias do período histórico em colégios, engenhos e fazendas jesuíticas onde se produzia, além de tijolos e telhas, vasilhames de barro para uso doméstico cotidiano. A introdução do uso do torno e das “rodadeiras” parece ser a mais importante influência europeia, verificada principalmente na faixa litorânea, onde primeiro se fixaram os colonizadores. Durante todo o período colonial a produção de “louças de barro” se consolidou na América Portuguesa, tendo como principais núcleos as fazendas e oficinas localizadas nas zonas rurais. As cidades, por sua vez, dependiam do fornecimento de produtos confeccionados nas fazendas ou do abastecimento de produtos importados, destinados aos consumidores mais abastados. A inexistência, na colônia, de iniciativas de produção de louças mais finas, como as importadas pela Companhia das Índias, não pode ser atribuída à precariedade das técnicas. A cerâmica se mostrou, desde cedo, um recurso muito adequado à vida desenvolvida pelos primeiros colonizadores. Das moringas que mantinham a água fresca à arte de moquear a carne, muitas foram as soluções oferecidas pelas cerâmicas à vida cotidiana colonial.12 Pileggi ressalta que no Brasil, até o final do século XIX, a produção de cerâmica se restringiu a “alguns utensílios de uso doméstico, entre os quais se incluíam panelas, potes e vasos de barro”. 13 Já a produção de azulejos, louças e faianças ficava restrita a Portugal. A utilização de cerâmicas e

SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: ________. (org.). História da Vida Privada no Brasil – Vol I: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.42. 11ALGRANTI, Leila Mezan . Famílias e vida doméstica..., p.123. 12ETCHEVARNE, Carlos. Aspectos da cerâmica colonial do século XVII em Salvador, Bahia. Disponível em: http://www.ufpe.br/clioarq/images/documentos/2006-V1N20/2006v1n20a3.pdf. Acesso em: 20 de mai. 2014. 13 PILEGGI, Aristides. Cerâmica no Brasil e no mundo..., p.43. 10

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azulejarias nas composições arquitetônicas do período barroco devia-se à importação diretamente de Portugal, onde oleiros se destacavam pelo apuro estilístico. Importavam-se também louças decorativas e domésticas da Europa, que eram utilizadas pelas famílias mais abastadas do país. A campanha napoleônica na Europa, com a invasão de Portugal em 1809, deteve o ritmo de expansão da produção de louças lusitana. Com isso, no Brasil oitocentista a importação de louças foi proveniente notadamente da Inglaterra, principalmente após a Abertura dos Portos em 1808. Essa louça possuía qualidade superior, variedade de padrões decorativos e preço mais acessível, de forma que rapidamente dominou o mercado brasileiro.14 Tais vantagens competitivas se deviam à substituição da confecção em torno pelo uso de moldes desde 1750 e ao emprego da técnica de impressão por transferência, conhecida por transfer printing, criada em 1770. Essas evoluções técnicas possibilitaram a produção em larga escala da porcelana inglesa e sua comercialização em nível mundial. Nas últimas décadas do século XIX, quando comunidades rurais e setores mais pobres da população passaram a ter acesso, ainda que relativo, a bens industrializados, o consumo de peças de louça se tornou amplamente difundido pelo território brasileiro. A ampliação da demanda por produtos que antes eram restritos às classes mais abastadas da sociedade se insere no contexto do processo de industrialização na Europa e na participação brasileira no nascente capitalismo industrial, na posição de produtor de matérias primas e importador de produtos industrializados.15 O escoamento da produção fabril europeia (principalmente a de origem inglesa) tornou mais acessível os artigos domésticos, que chegaram a ser oferecidos em mercados locais do interior paulista. Um fator que contribuiu para a mudança nos padrões de consumo da porcelana foi a implantação do transporte ferroviário no Brasil. As ferrovias facilitaram a conexão entre o litoral e a região interiorana do país, vindo a contribuir significativamente para a disseminação do consumo de bens industrializados em regiões até então isoladas dos principais centros comerciais. As mercadorias levadas até as estações de trem eram muitas vezes transportadas pelas tropas até os centros consumidores.

TOCCHETTO et al. A Faiança Fina em Porto Alegre..., p.35. Tânia Andrade et al. A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo. São Paulo, pub. Avulsa, I: 205: 230, 1989. 14

15LIMA,

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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A transformação nos padrões de consumo foi incrementada ainda pelo desenvolvimento da produção nacional no início do século XX, que contribuiu para a ampliação do acesso a bens industrializados, antes restritos às camadas mais abastadas da sociedade. Com o tempo, as peças de porcelanas foram incorporadas à vida cotidiana, sendo encontradas em grandes quantidades e geralmente associadas ao uso doméstico. Sua inserção no contexto doméstico se deu, em parte, em substituição a peças produzidas em outros materiais, como o metal e a madeira.

Contextualização histórica da cidade de Pedreira Localizada na região metropolitana de Campinas, entre as cidades de Jaguariúna e Amparo, Pedreira pertenceu a este último município durante grande parte do século XIX. As terras onde atualmente se localiza Pedreira foram de propriedade da família Godoy Moreira, que teve grande poder político na região desde o século XVII. O primeiro proprietário das terras foi João Pedro de Godoy Moreira, que construiu, em 1834, uma casa de residência onde passou a viver com sua família. Esta edificação se tornou sede da “Fazenda Grande”, formada por um conjunto de propriedades anexadas ao núcleo original ao longo do século XIX. Em 1864 a Fazenda Grande foi desmembrada no processo de partilha dos bens de João Pedro Godoy Moreira, iniciado antes de sua morte. Um de seus filhos, João Batista de Godoy Moreira, foi contemplado com terras em uma região conhecida como Fazenda Triunfo. João Batista adquiriu posteriormente grande parte das terras de seus irmãos, tendo herdado o restante da Fazenda Grande no final da década de 1880 com a conclusão do processo de partilha. A posse da maioria das terras da família fez de João Batista o sucessor de João Pedro de Godoy Moreira, tendo ele adotado o nome do pai a partir de sua morte. A região também se beneficiou com a instalação dos trilhos da Companhia Mogiana e a construção da Estação de Pedreira em 1875.16 O surgimento do arraial que originou a cidade foi fruto da ação pessoal de João Batista de Godoy Moreira, que criou em 1887 um loteamento em parte 16Pedreira

era atendida por um dos primeiros ramais da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro (1875-1967). O Ramal de Amparo foi implantado em 1875, ligando Jaguary (Jaguariúna) a Amparo. Em 1890, o ramal foi prolongado pela Companhia até Monte Alegre. Os trens de mercadorias e passageiros circularam neste ramal entre os anos de 1875 e 1967 e a estação de Pedreira era parada obrigatória. Na década de 1960 o tráfego de trens no ramal foi suspenso e as estações desativadas. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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de suas terras com o objetivo de formar uma cidade. Em 1889 a pequena vila já contava com 70 habitações, a Capela de Santana e possuía estabelecimentos comerciais como padarias, açougues, ferrarias, casas comerciais que vendiam tecidos, utensílios domésticos nacionais e estrangeiros, ferragens, calçados e aviamentos. O nome da vila surgiu em decorrência de uma peculiaridade do proprietário das terras loteadas, que nomeou seus quatro filhos com o mesmo nome: Pedro. O lugarejo ficou conhecido então como “Bairro dos Pedros”, Santana de Pedreira e, posteriormente, Pedreira. Por intermédio de contatos realizados por João Pedro de Godoy Moreira com a elite paulista do início da República, Pedreira foi elevada a Distrito Policial em 1890 e a Distrito de Paz e Freguesia em 22 de dezembro do mesmo ano. Em junho de 1892 a Capela de Santana foi elevada a Capela Curada. Em 31 de outubro de 1896 foi efetivada a emancipação de Pedreira.17 O desenvolvimento da nova cidade foi impulsionado pelo sucesso da lavoura cafeicultora na região, caracterizada pela presença de morros e terrenos de altitude mais elevada, propícios ao cultivo do café. Junto com a lavoura cafeicultora chegaram centenas de famílias provenientes da Itália, que se empregaram nas plantações e passaram a residir na área urbana. Muitos desses imigrantes passaram a trabalhar em comércios, chegando com o tempo a constituírem negócios próprios. Outros se especializaram na produção de porcelana, inaugurando uma prática que se ligaria, nas décadas seguintes, à identidade de Pedreira.

Antecedentes históricos da produção da porcelana em Pedreira A produção de louças e porcelanas teve início nas propriedades da família Rizzi, que adquiriu os equipamentos da família Bonadio, ambas italianas. Os Bonadio fabricavam peças como vasos, jarras e travessas em cerâmica vermelha. Em 1914, os Rizzi fundaram a Cerâmica Santa Rita, uma das primeiras da América Latina. A implantação da Cerâmica contou com a contribuição dos técnicos italianos José Zappi e Mário Zappi, que promoveram o aumento do tamanho das chaminés dos fornos, o que possibilitou o aprimoramento da produção. Simone Faria de Souza ressalta que a urbanização de Pedreira está diretamente relacionada ao processo histórico da crise cafeeira. Os habitantes de Pedreira viviam, quase que exclusivamente, da 17PREFEITURA

MUNICIPAL DE PEDREIRA. Portal oficial: http://www.pedreira.sp.gov.br/. Acesso em: 05 de mai.

2014. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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agricultura e do comércio do café, em sua maioria em propriedades rurais. Em 1914 surgiu a primeira indústria de cerâmica da cidade, a “Cerâmica Santa Rita”, trazendo consigo uma nova alternativa econômica. Com a crise do café, a população rural engajou-se nas pequenas fábricas locais, seduzidas que estavam pelo aparente desenvolvimento econômico. O setor ceramista se expandiu e levou ao crescimento socioeconômico da cidade, que passou a ser conhecida como a “Flor da Porcelana”.18 Posteriormente, outras indústrias surgiram no município, a partir, principalmente, da iniciativa de funcionários que aprendiam as técnicas de produção da porcelana e montavam suas próprias fábricas. Dentre os novos empreendimentos destacaram-se: a Cerâmica Santana, Nadir Figueiredo, Santa Cecília, a Cerâmica São Sebastião, Porcelana São Jorge, Cerâmica São José, Cerâmica Santa Terezinha, Cerâmica São Joaquim, Porcelana São Paulo, Porcelana Santa Isabel, Cerâmica São Gabriel, Porcelana São João, Bela Vista, Santa Inês, Nossa Senhora de Fátima, Santa Clara, Joana d’Arc, Corcovado, Santa Rosa, Louças Ganzarolli, dentre outras dezenas de pequenas fábricas. Cerâmica Santana

Cerâmica Nadir Figueiredo

Cerâmica Santa Terezinha

18SOUZA,

Simone Faria de. A indústria de cerâmica de Pedreira e seus impactos ambientais: subsídios para uma gestão ambiental pública. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, p.19. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Cerâmica Santa Rita

Quadro 01: Evolução das logomarcas dos principais fabricantes de cerâmica em Pedreira/SP. A maioria das fábricas se especializou na produção de peças de pequeno porte, como vasos, conjuntos de louças e bibelôs. O grau de diversificação da produção e a especialização em determinados conjuntos de peças garantiu a notoriedade de algumas das fábricas existentes em Pedreira, como a Cerâmica Santana, a Nadir Figueiredo e a Cerâmica Santa Terezinha. As três fábricas prosperaram a partir da ampla aceitação de suas peças, atingindo projeção nacional. A Cerâmica Santana, fundada em 1941 com o nome de Flamínio Maurício e Cia., consolidou-se como fabricante de enfeites e peças de uso doméstico, como compoteiras, vasos e jarros. A partir do final da década de 1940, já com o nome de Cerâmica Santana, investiu no início da produção de isolantes para linhas de transmissão, atingindo grande êxito. Ao longo do século XX sua produção foi orientada cada vez mais para esta última demanda, que apresentou enorme crescimento com a interiorização do desenvolvimento econômico no estado de São Paulo.

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Imagem 01: Dama e Cavalheiro. Cerâmica Santana, 1940. Acervo Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP.

Imagem 02: Senhorita em Trajes de Banho. Cerâmica Santana, 1940. Acervo Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP.

Imagem 03: Figura Feminina. Cerâmica Imagem 04: Bobina de cerâmica para linhas de Santana, 1940. Acervo Museu Histórico e da transmissão de energia elétrica. Acervo Museu Porcelana de Pedreira/SP. Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP. Foto: Raul Lanari, 23/06/2014

A Cerâmica Nadir Figueiredo, fundada em 1943, integrou o grupo empresarial fundado em 1912 e que se destacou pela produção de vidros ao longo de todo o século XX. A fábrica da Cerâmica Nadir Figueiredo, instalada na entrada da área urbana de Pedreira, congregou um grande Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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número de funcionários, que residiam em uma vila operária anexa às dependências da linha de produção. A Cerâmica Nadir Figueiredo se destacou na produção de baixelas, conjuntos de jantar e vasos, adquirindo reconhecimento internacional.

Imagem 05: Bule. Cerâmica Nadir Figueiredo, Imagem 06: Conjunto de sobremesa. Cerâmica 1951. Acervo Museu Histórico e da Porcelana Nadir Figueiredo, 1949. Acervo Museu de Pedreira/SP. Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP.

O modo de fazer Porcelana em Pedreira: Em Pedreira, o modo tradicional de fazer a porcelana tem sido mantido ao longo do tempo em parte das fábricas instaladas no município. O processo consiste em oito etapas, a saber: criação da matriz; estampagem; desenforme; acabamento; pintura à mão; esmaltação; empilhamento para o forno e fornada. Inicialmente é feito o preparo da massa com a mistura de, feldspato, quartzo, caulim e argila, obtidos normalmente de fornecedores de Pinhalzinho/SP, Campo Largo/PR, Equador/RN e São Simão/SP. Em alguns casos observa-se a utilização das “fritas”, materiais de natureza vítrea obtidos a partir de processamento, em temperaturas por volta de 1500o C, dos minerais listados acima e de componentes químicos como boratos e carbonatos. Os ingredientes são triturados e misturados no “tamborão”, equipamento formado por um cilindro metálico revestido com paralelepípedos e grandes pedregulhos em sua parte interna. Após trinta e seis horas de moagem é obtida a “borbotina”, como é conhecida a massa líquida da porcelana. Após o beneficiamento, a massa passa por filtroprensas, 19 onde perde aproximadamente 19

Equipamento de filtragem de água sob pressão.

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25% de sua umidade, e é compactada através do processo de extrusão com a utilização da “maromba”, de onde sai cilíndrica e com consistência dura.

Imagem 07: Ingredientes utilizados para a obtenção da massa da porcelana expostos no Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP. Foto: [suprimido], 22/01/2014.

Imagem 08: “Tamborão” utilizado pela Cerâmicas Santana para a mistura da massa da porcelana. Década de 1980. Acervo Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira.

Imagem 09: Filtroprensa durante o processo de Imagem 10: Processo de extrusão da borbotina beneficiamento da borbotina, massa utilizada com a utilização do equipamento conhecido para a fabricação da porcelana. Cerâmicas como “Maromba”. Cerâmicas Santana, década Santana, década de 1980. Acervo Museu de 1980. Acervo Museu Histórico e da Histórico e da Porcelana de Pedreira. Porcelana de Pedreira.

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Após a extrusão, a massa é colocada em formas de gesso, conhecidas por “estampo”. Após a secagem, cuja duração varia entre uma e duas horas, a peça é destacada do molde e entregue à seção de a acabamento. Espera-se aproximadamente um dia até a secagem completa das pelas e então são retiradas as “rebarbas”, isto é, o excesso de massa que se acumula na junção das partes do molde. A realização dos acabamentos conta com a utilização de equipamentos como tornos e lâminas. Os detalhes mais finos são obtidos com o uso de buchas umedecidas em água, cuja função é o alisamento da superfície.

Imagem 11: Molde utilizado para a fabricação de canecas de porcelana. Acervo Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP.

Imagem 12: Molde utilizado para a fabricação de vasos de porcelana. Acervo Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira/SP.

Para evitar que a peça fique porosa, após a queima é feita a esmaltação, processo responsável por dar brilho e coloração à superfície das peças. O esmalte da cerâmica é um dos elementos que mais afeta os aspectos funcionais da peça, pois seu uso está diretamente relacionado a características como a estanqueidade.20

20Ausência

de porosidades, trincas e furos que possam deixar escapar parte do conteúdo armazenado nas peças.

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O esmalte branco usado na produção da porcelana também serve de base para a formação de cores específicas, cores essas criadas mediante a adição de corantes. O esmalte é colocado em um grande recipiente e as peças são banhadas, absorvendo imediatamente o verniz. Em seguida, é retirado o esmalte da base da peça, em alguns casos com o uso de um equipamento específico, desenvolvido na própria fábrica, composto por uma esteira revestida por uma esponja. A retirada do esmalte da base é necessária para que a peça não fique aderida ao forno na etapa de queima. As peças de porcelana são organizadas em armários abertos respeitando-se a fase de produção. Os armários são geralmente formados por uma estrutura metálica fixa sobre a qual são colocadas prateleiras de madeira. As prateleiras destacam-se da estrutura do armário de modo a servirem de suporte para o transporte dos produtos. Esse transporte é realizado com o funcionário utilizando apenas o apoio do ombro e uma das mãos – tarefa que exige equilíbrio e muito domínio espacial do local de trabalho. Em alguns casos observa-se a existência de estantes projetadas especialmente para o processo de transporte e armazenamento, com rodas que permitem fácil locomoção nas dependências da oficina.

Imagem 13: Detalhe do trabalho das Imagem 14: Armazenamento de peças da funcionárias da empresa Cerâmicas São Joaquim empresa Cerâmicas São Joaquim. Observa, no durante o processo de acabamento das peças canto inferior esquerdo, a utilização de estantes produzidas. Foto: Raul Lanari, 24/01/2014. com rodas para facilitar o transporte das peças. Foto: Raul Lanari, 24/01/2014

A etapa seguinte do processo é a queima das peças. Nesse ponto distinguem-se dois tipos de produtos finais: aquele que será comercializado sem nenhum tratamento artístico sobre o suporte e aquele que receberá decoração superficial. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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O tratamento artístico consiste na pintura realizada à mão ou no uso de decalque, isto é, uma película que contém a decoração. A pintura de frisos e linhas é feita com o uso do torno e as decorações figurativas, por serem geralmente mais elaboradas, são feitas à mão livre. Os produtos que receberam tratamento artístico passam por uma nova etapa de queima. Cuidados especiais são necessários durante essa etapa da produção. As peças são organizadas em um suporte adequado para serem levadas ao forno. Uma vez que o esmalte entra em fusão com a cozedura, é necessário separá-las durante a queima para evitar que elas se grudem. A queima é feita em fornos elétricos a 1290 ºC, temperatura necessária para a obtenção de brilho vitrificado. Após o resfriamento, o produto está pronto para ser comercializado.

Imagem 15: Forno elétrico para a queima das peças na Cerâmicas São Joaquim. Foto: [suprimido], 24/01/2014

A produção de porcelana em Pedreira se caracteriza pela diversidade. São muitos os modelos utilizados em suas peças, os padrões decorativos, as formas e funções do produto, os símbolos de identificação dos produtores e a gama de cores empregadas no suporte. A maior parte da produção está voltada ao serviço doméstico, ao consumo, estocagem e armazenamento de alimentos. Esse Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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universo de utensílios é materializado em serviços de jantar, de chá, de café, em canecas, xícaras, pratos, bibelôs, bules, malgas, tigelas, entre outras peças de grande beleza e requinte. O universo das relações de trabalho na cadeia produtiva da porcelana em Pedreira – permanências e mudanças Ao longo do tempo, poucas transformações foram verificadas nas fábricas. A cadeia produtiva tradicional de fabricação da porcelana manteve grau considerável de integridade, com a permanência de muitas das características do espaço de trabalho e da atividade laboral. Uma mudança verificada no contexto fabril está ligada à discriminação de funções por gênero. Inicialmente, havia uma forte divisão sexual das tarefas. As atividades que exigiam um maior esforço físico, assim como cargos administrativos de gerência e chefia, eram preferencialmente delegados a indivíduos do sexo masculino. Por outro lado, atividades que exigiam maior habilidade manual e acuidade, como no caso da pintura decorativa, eram preferencialmente destinadas ao sexo feminino. Atualmente, nota-se que o enquadramento funcional por gênero está relegado ao passado. A associação do universo feminino à produção ceramista tem origem histórica. Fontes bibliográficas indicam o predomínio de mulheres no processo de confecção de vasilhames e outros utensílios nas culturas indígenas, como observado no início do capítulo. A prática, contudo, também foi difundida entre escravos e quilombolas. Essas populações utilizaram seus referenciais culturais e étnicos na definição da morfologia e decoração das vasilhas utilizadas para preparo, consumo, serviço e armazenamento de alimentos. Sobre essa questão, Symamski indica a relação da produção afrobrasileira com a África:

[...] a atribuição da produção ceramista ao gênero feminino na grande maioria dessas sociedades, dado o papel fundamental da mulher na reprodução biológica da sociedade, através do parto e da criação dos filhos. A associação da cerâmica com as mulheres, e consequentemente com a fertilidade, está também relacionada com o fato de elas serem as principais responsáveis pelo cultivo da terra e preparação dos alimentos. Esta associação é particularmente forte entre os grupos banto da África Central.21

21SYMANSKI,

Luís Cláudio P. Cerâmicas, identidades escravas e crioulização nos engenhos de Chapada dos Guimarães (MT). História Unisinos. Vol. 14 Nº 3 – set./dez. De 2010, p.307. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Em relação ao processo de ensino-aprendizagem empregado nas fábricas de porcelana, notase que os funcionários mais antigos da fábrica tendem a repassar as técnicas artesanais da porcelana para os aprendizes. Esses últimos têm a oportunidade de inserirem-se na cadeia produtiva mediante o ensino prático de suas atividades. No caso específico da pintura manual dos objetos, a determinação e o esforço a médio e longo prazos fornecem o domínio técnico necessário para se trabalhar com a porcelana. Consequentemente, o formato da decoração, a quantidade de tinta aplicada e a distribuição da decoração nos vasilhames vão sendo aprimorados com o ganho de experiência. As relações vinculadas ao processo de ensino-aprendizagem se inserem em um contexto de relações muito particulares que caracterizam o trabalho fabril. A relação social entre os funcionários é de muita proximidade, relação essa marcada por vínculos familiares e de estreita amizade. É comum que funcionários indiquem parentes e amigos para trabalharem na fábrica, o que favorece a criação de um ambiente laboral singular, cujas relações interpessoais ultrapassam as fronteiras da profissão e os limites da fábrica. De forma geral, cada funcionário possui tarefas e atividades bem definidas. A organização do trabalho é caracterizada por uma forte disciplina, com horários de trabalho e não-trabalho definidos pelo som da sirene, que pode ser ouvida em toda a área urbana do município. Justamente por seu alcance sonoro, a sirene não só determina os horários de trabalho, como também é utilizada como referência temporal pelos moradores de Pedreira. Outra função atribuída à sirene é anunciar o falecimento de moradores no município. Para tanto, quando os encarregados da fábrica são notificados do falecimento, a sirene é tocada em tom baixo, anunciando para a população o ocorrido.

A porcelana enquanto referencial simbólico e identitário: o caso das “caqueiras”

É interessante observar que o modo de fazer louças e porcelanas desperta ressignificações diversas, que por vezes ultrapassam o universo mercantil e adentram o rol das experiências simbólicas. Um bom exemplo é a apropriação das chamadas “caqueiras” pelas crianças. As “caqueiras” são montículos formados a partir do descarte de peças que, em função de defeitos apresentados, tiveram sua comercialização inviabilizada. Geralmente localizadas na parte posterior das fábricas, estes montes formados ao longo de décadas de descarte constituem fonte Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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riquíssima de pesquisa, uma vez que o estudo pode revelar importantes informações sobre a porcelana, principalmente considerando-se a abordagem arqueológica. Dados como cronologia das peças, forma e padrões decorativos são alguns dos elementos que poderiam ser mais bem compreendidos por meio da pesquisa das “caqueiras”. O estudo desse potencial manancial de informações formado pelas “caqueiras” poderia subsidiar o registro arqueológico da porcelana encontrada no Brasil, elucidando técnicas, hábitos e comportamentos dos diversos grupos sociais que compõem a sociedade brasileira. Entretanto, o que salta aos olhos, dentro dos objetivos deste artigo, é a profusão de memórias existentes, entre os moradores adultos de Pedreira, a respeito das brincadeiras nas “caqueiras”. O depoimento de Adilson Spagiari, atual diretor do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira, é ilustrativo nesse sentido: As caqueiras eram a alegria da gente quando éramos crianças. Muitas das fábricas se especializaram, nos primeiros tempos, na fabricação de bonecos e bibelôs. As peças com defeito iam todas para as caqueiras, e aí você imagina a alegria que não sentíamos quando achávamos algum boneco mais ou menos intacto, com o qual poderíamos fazer brincadeiras. Se você perguntar pra todo mundo da minha idade, e pros mais velhos também, sobre as caqueiras, você vai ter que ficar uma semana aqui em Pedreira de tanta história que tem. 22

O modo de fazer louças e porcelanas em Pedreira está associado a múltiplas experiências de vida que evidenciam o caráter identitário que a prática carrega entre os moradores locais. No caso acima é possível perceber que as memórias inserem os moradores em um campo de experiência comum, que os coloca em contato com as gerações mais antigas por intermédio das práticas advindas da produção de louças e porcelanas. A título de conclusão desta seção, interessa observar a forma como os moradores se referem aos produtos criados em Pedreira. Nem todas as fábricas de louças existentes na cidade produzem porcelana. Somente um número diminuto delas trabalha com esse material, tendo a maioria se especializado na produção de louças de outras composições e densidades. Não obstante, os moradores se referem às peças, sejam elas em louça ou porcelana, sem qualquer distinção, apenas como “porcelanas”, o que remete à carga simbólica imputada à posse – e, por extensão, à produção – de peças deste gênero. Depoimento de Adilson Spagiari, Diretor do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira, registrado em 27 de janeiro de 2014. 22

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Transformações sociais nos universos da produção e do consumo Em Pedreira, a instalação das fábricas de porcelana aqueceu a economia e motivou o surgimento de atividades que dão suporte ao setor, tais como as indústrias de máquinas e equipamentos, estabelecimentos especializados em decalques, pintura e impressão, além da indústria de embalagens. A boa acolhida dos produtos fabricados em Pedreira levou à fundação de inúmeras fábricas na cidade entre as décadas de 1920 e 1960. O tamanho dessas fábricas variava, com pequenas empresas familiares convivendo com fábricas equipadas com maquinário importado e métodos atualizados de produção das peças. Segundo depoimentos de alguns dos proprietários consultados nas visitas a campo, é possível perceber que a especialização nos métodos de produção e o acirramento da competição levou à aquisição de algumas das pequenas oficinas por empresas de maior porte. Esse processo levou à diminuição dos fabricantes tradicionais, que tiveram de se especializar em gêneros específicos de louças e cerâmicas, como por exemplo, as canecas promocionais e garrafas de bebidas alcoólicas. Observou-se também o crescimento da produção mecanizada, com a montagem de linhas de produção, como observado nas dependências da Cerâmica São Joaquim.

Imagem 16: Galpão sede da empresa Cerâmicas São Joaquim, existente desde 1956 na cidade de Pedreira/SP. Foto: Raul Lanari, 24/01/2014.

Imagem 17: Linha de produção da empresa Cerâmicas São Joaquim, no município de Pedreira/SP. Foto: Raul Lanari, 24/01/2014.

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Outro setor beneficiado com a implantação das fábricas de porcelana foi o comércio. Na década de 1980 foram criados os primeiros estabelecimentos comerciais na Praça Cel. João Pedro para comercializarem seus produtos direto das fábricas. Essa forma de comércio prosperou e culminou por se estender ao longo da Via Marginal da cidade, onde atualmente a porcelana destacase ao lado de outros gêneros artesanais do município. O município de Pedreira é atualmente um centro de produção e comercialização de peças de cerâmica e porcelana. A avenida principal, construída onde anteriormente passavam os trilhos da ferrovia, corresponde a um trecho da rodovia Jaguariúna-Amparo. A diversificação das atividades comerciais e a concorrência entre fabricantes e lojistas fez com que alguns dos produtores abandonassem a fabricação de peças como pratos e conjuntos de chá. No caso específico desses utensílios, tornou-se mais rentável importar as peças brutas da China para customização23 nas dependências das fábricas locais. Ainda hoje a produção cerâmica é fortemente marcada pela mão de obra intensiva. Essa característica torna a competição com o mercado asiático extremamente difícil, dado o baixo custo da mão de obra nesse mercado. Isso explica porque 80% da produção de cerâmicas de uso doméstico e afins concentram-se na Ásia.24 A fabricação de louças em Pedreira foi alvo de políticas públicas visando a expansão do mercado turístico no município. Observou-se então um processo de dupla dimensão: a expansão das fábricas, a modificação dos métodos de produção e o consequente aumento do mercado consumidor foram acompanhados pela “patrimonialização” da prática e sua valorização como parte da identidade cultural local. A despeito das mudanças nas práticas de fabricação, a população de Pedreira tem na porcelana um dos elementos constituintes de sua identidade, isto é, a manifestação cultural local que diferencia esse grupo social de outras coletividades e que lhe serve de identidade em um mundo cada vez mais globalizado. É esse um dos traços culturais que auxilia a contar a história do município e demonstrar seu protagonismo nesse campo do conhecimento. São esses valores que qualificam a 23Processo

artístico de pintura que resulta na personalização de peças avulsas ou conjuntos para atender às demandas do mercado consumidor. TEIXEIRA, Tiago Roberto Alves. Competitividade e território: uma análise do arranjo produtivo local potencial de cerâmica artística do município de Porto Ferreira – SP. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2013. 24

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porcelana de Pedreira como um elemento do Patrimônio Cultural do município e, como tal, merece ser registrado, preservado, valorizado e divulgado. Este processo de valorização cultural da prática de fabricação de louças e porcelanas fez parte de um esforço para a criação de um roteiro turístico que pudesse ser associado às rotas existentes na região de Jaguariúna e Amparo. Jaguariúna se notabilizou pela realização de um dos principais rodeios brasileiros, enquanto Amparo é uma das cidades históricas mais procuradas pelos paulistas nos meses de julho e janeiro por abrigar uma estância hidromineral e diversas opções de turismo histórico.25 Pedreira procurou se beneficiar do fato de estar localizada entre as duas cidades para atrair o turismo. Atualmente, existem mais de 150 lojas que comercializam uma grande variedade de produtos cerâmicos em Pedreira, as quais estão localizadas, em sua maioria, nas proximidades da rota do Circuito Paulista das Águas, ou seja, em pontos estratégicos para atrair os turistas às compras.26 Para isso a Prefeitura Municipal investiu no processo de “patrimonialização” da prática. Este processo, segundo Françoise Choay, apresenta-se na forma da criação de instituições e políticas culturais de reconhecimento e valorização das práticas sociais que, por sua vez, direcionam as práticas de preservação ao vinculá-las ao poder público e a mecanismos de financiamento e divulgação na imprensa e na mídia.27 No caso de Pedreira, o que se observou primeiramente foi a preocupação em identificar e classificar as diversas fábricas de cerâmicas e porcelanas no município. As informações obtidas privilegiavam apenas os tipos de cerâmicas produzidas, sem especificação das peculiaridades de cada produtor. Tratava-se, enfim, de uma listagem voltada para os lojistas que visitavam Pedreira para a aquisição de estoques. As ações de valorização da história da produção de louças e porcelanas em Pedreira ganharam maior ímpeto a partir da reestruturação do Museu Histórico “Beato José de Anchieta”, fundado em 1980, e sua transformação no Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira em 1995. A partir de então, a instituição passou a funcionar na edificação conhecida como “Sobrado do Dr. Silva Pinto”, localizada na Praça Coronel João Pedro, n.102. A construção, inaugurada na segunda metade do século XIX, abrigou a família Silva Pinto durante aproximadamente sessenta anos. O sobrado foi utilizado para diversas outras finalidades na segunda metade do século XX, abrigando instituições bancárias, fórum temporário, sede de uma rádio e da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais 25ALLIS,

Thiago. Turismo, patrimônio cultural e transporte ferroviário: um estudo sobre ferrovias turísticas no Brasil e na Argentina. Dissertação (Mestrado em Integração da América Latina) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p.139. 26SOUZA, Simone Faria de. A indústria de cerâmica de Pedreira..., p.128-133. 27CHOAY, Françoise. O Patrimônio em Questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2011, p.31-37. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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do município. Entre 1995 e 1998 o Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira esteve instalado na edificação, tendo iniciado o processo de composição de seu acervo a partir de campanha de mobilização das famílias locais. Entre 1998 e 2006 o museu funcionou na antiga Estação Ferroviária de Pedreira, tendo voltado ao “Sobrado do Dr. Pinto” em 2006, por determinação da Lei Municipal n.º 2.633/2006. A edificação passou por intervenções de restauro nos anos de 2009, com sua descupinização total, e em 2010, com a substituição completa de sua cobertura.28 O retorno do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira ao antigo edifício levou à organização de suas dependências em torno de dois eixos: a história do município, no primeiro andar, e, no segundo, a história da fabricação de louças e porcelanas. Foram organizadas no primeiro piso exposições de peças e fotografias referentes aos imigrantes italianos, à estrada de ferro, aos ofícios tradicionais, como o boticário, o dentista e o comerciante. Uma parte do salão principal foi destinada à exposição de grandes projetores de películas cinematográficas, procurando mostrar o crescimento urbano da cidade e a criação dos primeiros estabelecimentos culturais. A instituição dedica as salas do segundo andar à exposição de peças de porcelana produzidas pelas fábricas do município, contextualizando e apresentando a evolução histórica da prática no município de Pedreira. Grandes painéis contam a história dos principais fabricantes, como a Cerâmica Santa Rita, a Cerâmica Santa Terezinha, Cerâmica Nadir Figueiredo e a Cerâmica Santana. A narrativa museológica da instituição mistura a memória do município à memória da produção de louças e porcelanas, mas apaga as distinções entre as duas categorias de cerâmica com a institucionalização da segunda que, como já observamos, é dotada de carga simbólica ligada ao valor econômico. Em função da recente comemoração do centenário da Porcelana em Pedreira, a Prefeitura Municipal, por meio da atuação da Secretaria Municipal de Turismo, de Cultura e Educação, organizou visitas guiadas às fábricas locais para apresentar o processo produtivo da porcelana à população interessada. Também foram ministradas palestras em escolas, concurso fotográfico e exposição no Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira. Tais atividades contribuíram para estimular a difusão das memórias ligadas à produção de louças e porcelanas entre as gerações mais novas de Pedreira.

Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira. Disponível em: http://museupedreira.blogspot.com.br/2013/07/ 100anos-da-porcelana-em-pedreira-1913.html. Acesso em: 29 de abr. 2014. 28

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Para Choay e outros especialistas na área do patrimônio cultural, como Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes, este processo traz consigo o perigo de “inflação do mercado de bens simbólicos” e de sua vinculação excessiva com a espetacularização da cultura e as estratégias de marketing cultural que submetem a valoração dos bens culturais às normas não escritas das trocas econômicas.29 Schneider, acompanhando a linha de raciocínio descrita acima, identifica na dimensão não-oficial do patrimônio processos de construção de significados ligados aos sentimentos e afetos. Para a autora, esta dimensão estaria diretamente ligada ao sentimento de pertencimento que define as identidades e que unifica os grupos sociais. Para estes autores, somente a existência desta dimensão não oficial de reconhecimento das manifestações culturais permite a difusão e a incorporação delas às identidades locais.30 A despeito dessas vicissitudes, percebe-se que as atividades também possuem o objetivo de formar agentes culturais que possam trabalhar nos roteiros turísticos procurados pelos visitantes. Percebe-se, nesse caso, uma forma de direcionamento da manifestação cultural a partir de demandas não propriamente ligadas à prática, mas sim aos objetivos estratégicos da administração municipal referentes ao desenvolvimento econômico local. Esta estratégia apresenta o benefício de inserir jovens no mercado de trabalho, movimentando recursos no município. Por outro lado, esta inserção no mercado está apenas parcialmente ligada à prática, uma vez que aqueles que desenvolvem as atividades turísticas não se engajam na produção de louças e porcelanas. Com isso fica prejudicado um dos principais objetivos das práticas patrimoniais, segundo o Decreto 3551/2000: a garantia de continuidade e livre apropriação das manifestações culturais imateriais.

MENEZES, Ulpiano T.B. Cultura política e lugares da memória. In: AZEVEDO, Cecília et.al. (org). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2009, p.445-464. 30SCHNEIDER, Tereza. Imagens do não-lugar: comunicação e os “novos patrimônios”. Tese(doutorado) – Programa de PósGraduação em Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. 29

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Os trabalhadores em tempos de coronéis: política e

cultura associativa operária no sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna) na década de 1920 The workers in Coronel’s times: politic and working associative

Artigos

culture (Ilhéus e Itabuna) in the 1920´s

Philipe Murillo Santana de Carvalho Doutorando em história social - UFBA Professor do Instituto Federal da Bahia – Campus Ilhéus philipesantana@yahoo.com.br Recebido : 27/10/2014 Aprovado: 22/12/2014 RESUMO: A década de 1920 foi um período fértil para o associativismo no sul da Bahia,

especialmente nas suas duas maiores cidades – Ilhéus e Itabuna. Entre os trabalhadores, várias foram as categorias que inauguraram suas sociedades: estivadores, caixeiros, artistas e operários, apenas para citar os que tiveram maior projeção social neste contexto. Os grêmios possuíam características mutualistas, em que sócios pagavam a joia e as mensalidades para terem direitos como auxílio médico, assistência jurídica e pensões. No entanto, as associações mutualistas operárias extrapolaram os limites da beneficência e também assumiram posições frente à produção de leis sociais para os trabalhadores (jornada de 8 horas, férias, acidentes no trabalho, previdência, etc.) e buscaram brechas para participarem direta e indiretamente da excludente e oligárquica I República. O objetivo deste trabalho é estudar a formação da cultura associativa operária e sua relação com autoridades/intelectuais políticos ao final da Primeira República (década de 1920) no sul da Bahia. PALAVRAS-CHAVE: Trabalhadores, Política, Cultura associativa. ABSTRACT: The 1920s was favorable for the formation of associations in southern Bahia, especially in Ilhéus and Itabuna. Among workers, there were several categories that opened their societies: stevedores, clerks, artists and workers, just to name those who had higher social projection in this context. The unions had mutual characteristics, in which members pay the tuition and the jewel to have rights like medical, legal aid and pension. However, the workers' mutual associations surpass the limits of beneficence and also took up positions opposite the production of social laws for workers (8-hour workday, holiday, accidents at work, social security, etc.) and sought loopholes to participate directly and indirectly the exclusionary and oligarchic I republic. The objective of this work is to study the formation of associative working culture and its relationship with authorities and intellectuals at the end of the I Republic (1920) in southern Bahia. KEYWORDS: Workers, Politic, Associative culture Itabuna não era mais a antiga Taboca, mas sim uma cidade que pelo seu desenvolvimento comercial, agrícola e industrial caminha na vanguarda do

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progresso, e nós, os operários, não podíamos ficar sem acompanhar essa evolução [...] por isso, formamos esta sociedade.1

Foi com estas palavras que Flaviano Domingues Moreira saudou a posse da primeira diretoria da Sociedade Monte Pio dos Artistas de Itabuna (SMPAI) em 8 de fevereiro de 1920. A agremiação havia sido fundada em 1º de novembro de 1919 por 19 artistas da cidade, dentre os quais 7 pedreiros, 5 carpinas, 2 marceneiros, 2 ourives, 1 alfaiate, 1 funileiro e 1 tanoeiro. De acordo com os estatutos aprovados, os objetivos da entidade eram “o benefício, o socorro, a instrução moral e cívica, e o auxílio direto e indireto aos seus associados”. 2 Apesar do pouco tempo de fundada, é possível notar que o clima de festividade era embalado pela satisfação em colocar o operariado local no caminho da “vanguarda do progresso”. Noutra passagem deste documento, Moreira relatou que desde 1917 havia esforços para a criação de uma sociedade para os trabalhadores, cujo propósito indicasse o empenho do engrandecimento da classe. Não por acaso, a justificativa contida no regimento social também se reportava à importância de seus sócios acompanhar “a evolução social e ao grau elevado de aperfeiçoamento de todas as classes no presente século”.3 A posse da diretoria da SMPAI sinaliza mais do que o clima de festividade pelos avanços obtidos com a criação da agremiação. Ela é um indicativo do modo pelo qual a experiência do associativismo operário se processou no sul da Bahia. De acordo com Cláudio Batalha, “a organização de trabalhadores, fossem eles qualificados ou não, é um traço marcante do Brasil da Primeira República”.4 Na Bahia, a tradição associativa entre os de baixo advinha desde o século XIX, com a formação de sociedades protetoras que abrigavam pessoas de cor, livres e libertos, por meio do qual podiam contar com amparo social, oportunidade de estudos e refúgio contra a marginalização política. O historiador Aldrin Castellucci aponta que existia 165 associações de auxílio-mútuo espalhadas pelo estado, majoritariamente composta por artistas, conforme se verifica com a fundação da Sociedade Protetora dos Desvalidos em Salvador no ano de 1832. 5 Segundo Lysie Reis, foi pela via das agremiações mutualistas que muitos negros transitaram do trabalho cativo para o livre, o que indica que mesmo antes do fim da escravidão, os de baixo traçavam estratégias de sobrevivência diante da insegurança estrutural do universo capitalista. 6

1ASMPAI.

Livro de atas da assembleia geral da SMPAI, 8/2/1920, f. 3. Estatutos da SMPAI, 1920, p.1. 3________. Estatutos da SMPAI, 1920, p.1. 4 BATALHA, Cláudio H. M. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva. In. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.173. 5 CASTELLUCCI, Aldrin A. S. A luta contra a adversidade. Revista Mundos do Trabalho, vol. 2, n. 4, agosto-dezembro de 2010, p.40-44. 6 REIS, Lysie. A liberdade que vem do ofício: práticas sociais e culturas dos artífices da Bahia do século XIX. Salvador: EDUFBa, 2013, p.134. 2________.

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Embora a presente pesquisa não tenha identificado laços diretos entre as agremiações soteropolitanas e a Sociedade Monte Pio de Itabuna, não é exagero pensar que a iniciativa dos artistas do sul da Bahia seja tributária de experiências de outras regiões e sujeitos do estado e do país. É oportuno pensar que foi talvez em referência às práticas associativas acumuladas até a Primeira República que Moreira tenha aludido quando falou sobre acompanhar a “evolução” ou a “vanguarda do progresso”. Utilizando um vocabulário típico de sua época, ele justificou a criação de uma sociedade que representasse os interesses de seus membros e, ao mesmo tempo, indicasse a capacidade de organização do operariado local, notadamente àquela parcela que se orgulhava de seu ofício e de sua dedicação laboriosa. Abrigados sob sua cultura associativa, artistas de ofício qualificado se opunham ao restante da população empobrecida e miserável – vulgarmente vista pelas autoridades como “classes perigosas” – ao passo em que erguiam uma rede de sociabilidade capaz de lhes oferecer amparo social, bem como oportunidade de estudos para si e seus filhos em escolas noturnas; e práticas de lazer nas filarmônicas e nos passeios de recreação.7 No caso da Sociedade Monte Pio de Itabuna, seus diretores fundaram a Escola Manoel Vitorino em 1921 e a Filarmônica Euterpe Itabunense em 1925, dois serviços de forte atração social. Todavia, em paralelo às práticas mutualistas, recreativas e filantrópicas da SMPAI, é apropriado dizer também que a cultura associativa operária se tornava uma força política emergente no cenário da I República. Agremiados em círculos de respeito, os consócios estiveram atentos às autoridades e aos partidos políticos das oligarquias baianas. Por isso é preciso entender melhor como estes sujeitos coletivos lidaram com as disputas oligárquicas na arena política republicana. Para Aldrin Castellucci, há necessidade de pesquisas que explorem as dimensões do comportamento operário em face das movimentações da I República, sobretudo por conta do envolvimento de sociedades proletárias com líderes e chefes das oligarquias estaduais e regionais.8 No mesmo sentido, tanto Luciano Guimarães como Robério Souza ao estudar associações operárias e as lutas sociais encampadas entre 1909 e 1921, destacaram a relação de políticos com trabalhadores e suas organizações, em que aproveitam as brechas das

7BATALHA,

Cláudio H. M. Identidade da classe operária no Brasil (1880-1920): atipicidade ou legitimidade? Revista Brasileira de História, vol. 12, n. 23/24, set. 1991/ago., 1992. 8 Cf. CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Industriais e operários baianos numa conjuntura de crise (1914-1921). Salvador: FIEB, 2004. Em sua dissertação, o historiador já destaca as “relações entre a classe operária e as elites políticas na Bahia” como um tema proeminente de investigação. CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Trabalhadores, máquina política e eleições na Primeira República. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História, Salvador, 2008, p.265-266. Já no seu trabalho de Doutorado, o mesmo pesquisador analisou a formação e a atuação do Centro Operário da Bahia na I República, destacando a ligação de lideranças operárias com governadores da Bahia no início do século XX. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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polarizações das classes dominantes para extrair vantagens.9 Estes estudos alertam para a importância de analisar de modo detalhado a experiência da Primeira República a partir da movimentação de atores individuais e coletivos na dinâmica de idas e vindas da política baiana, em que longe de ser uma massa cooptada, a classe trabalhadora desempenha um papel nas alianças com grupos que disputavam a hegemonia eleitoral. No caso específico de Ilhéus e de Itabuna, o desenvolvimento do associativismo operário ocorria em paralelo às pretensões hegemônicas eleitorais de coronéis e chefes partidários em meio às movimentações políticas da Bahia no final da I República. Parte considerável da historiografia brasileira desconsiderou o potencial de participação direta e indireta de trabalhadores no sistema político oligárquico vigente especialmente entre 1889-1930, afirmando que o analfabetismo, o universo rural e o mando dos coronéis eram sintomas da fragilidade que impediam a atuação política e eleitoral dos de baixo. Assim, Victor Nunes Leal afirmou que “a pobreza do povo, especialmente a população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituíram sério obstáculo às intenções nobres”.10 Na Bahia, Wilson Lins salientou que os coronéis “brotados da burguesia comercial, tanto quanto os antigos senhores das sesmarias, exerciam um poder absoluto sobre suas comunidades”11 e Gustavo Falcon narrava que o coronelismo era um “jogo efetivamente simples mesmo” em que de “1900 para cá, mandava na cidade [Ilhéus], o poderoso local, o coronelzão local”.12 Para estes autores, não havia margem de atuação para os trabalhadores, especialmente aqueles que viviam nas pequenas cidades do interior, restando apenas a dependência e a submissão às autoridades políticas. Neste artigo, pretende-se analisar o teor das relações de trabalhadores e suas agremiações nos limites da política oligárquica da década de 1920 em Ilhéus e Itabuna. O interesse é sondar em que medida operariado e lideranças partidárias estabeleciam alianças e acordos, de modo a verificar se a prática dos coronéis estava fechada para qualquer interesse e participação dos de baixo no mundo da política da I República. Aliás, nesta perspectiva, Maria Isaura de Queirós (contemporânea acadêmica de Leal e de Lins) nos dá pistas sobre as barganhas e redes de favores estabelecidas na política de reciprocidades entre chefes e trabalhadores, em que mesmo o voto (sendo apenas uma das formas de participação política) não era “inconsciente, muito pelo Cf. GUIMARÃES, Luciano de M. Ideias perniciosas do anarquismo na Bahia. Lutas e organizações dos trabalhadores da construção civil (Salvador, 1919-1922). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História, Salvador, 2012, p.42-43; e SOUZA, Robério S. Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflito no pós-abolição. Salvador: EDUFBa, 2011, p.145-147. 10 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfaômega, 1975, p.258. 11 LINS, Wilson. Mandonismo e obediência. In: LINS, Wilson (org.). Coronéis & Oligarquias. Salvador: Universidade federal da Bahia/Ianamá, 1988, p.12. 12 FALCON, Gustavo. Coronelismo de fronteira. In: LINS, Wilson (org.). Coronéis & Oligarquias..., p.65. 9

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contrário, resulta do raciocínio do eleitor e de uma lógica inerente à sociedade à qual pertence [...] não se trata de uma imposição pura e simples do coronel, trata-se de uma determinação do eleitor de utilizar seu voto de maneira que redunde para ele em maior benefício”.13 Além do voto, cabe averiguar como outras ações promovidas por trabalhadores e agremiações se encaixavam nesta política excludente, mas provavelmente nem tão intransponível como foi desenhada por parte da historiografia. Os trabalhadores e o direito à organização: a criação do sindicato dos estivadores em Ilhéus Durante os anos 1920, o sul da Bahia presenciou um desenvolvimento significativo do associativismo em paralelo à consolidação da economia cacaueira e da florescência do mundo urbano em Ilhéus e Itabuna. As classes dominantes estavam representadas em sociedades patronais, tais como as associações comerciais e sociedades de agricultores, que pautavam os interesses econômicos junto ao Estado; e os tradicionais partidos políticos das oligarquias, por onde legitimavam a hegemonia política. Entre os operários, algumas tentativas mais tímidas aconteceram ainda na década de 1910, com a Sociedade União das Classes e a Sociedade Beneficente Centro Operário, ambas situadas em Ilhéus e Itabuna. Mas foi na década de 1920 que os grêmios proletários tiveram mais consistência, aglutinando categorias importantes como estivadores, caixeiros, operários e artistas (nestes dois últimos encaixamos profissionais de ofícios variados, a exemplo de ferroviários, pedreiros, alfaiates, marceneiros, etc.). Merecem destaques a fundação da Sociedade União dos Estivadores de Ilhéus (SUOEI) em 1919; da Associação dos Empregados no Comércio de Ilhéus (AECI) em 1920; e da Sociedade União Protetora dos Artistas e Operários em Ilhéus (SUPAOI) em 1922, sobretudo por terem ganhado expressão ao longo da década de 1920. De acordo com o historiador Antonio Guerreiro de Freitas, “quase todos estavam preocupados em atingir um nível de organização – associações, grêmios, sindicatos, etc. – que mostrasse a representatividade e a força de casa grupo” no sul da Bahia.14 No caso especial dos trabalhadores, as razões para ascensão de uma cultura associativa se explicavam também como uma forma de sobrevivência e de buscar garantias que protegessem o operariado da insegurança

13QUEIRÓZ,

Maria Isaura de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-ômega, 1976, p.168. 14FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro. Caminhos ao encontro do mundo: a capitania, os frutos de ouro e a Princesa do Sul, 1534-1940. Ilhéus: Editus, 2001, p.129. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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estrutural do capitalismo.15 Por isso, boa parte das entidades assumia a feição mutualista, cujo principal objetivo era o auxílio mútuo entre associados visando o pagamento de pensões e aposentadorias em caso de invalidez e morte, assistência médica e farmacêutica, proteção jurídica em caso de perseguição. A sociedade dos estivadores, por exemplo, previa que os sócios em dia com os compromissos da entidade poderia receber auxílio financeiro para tratar de doença com custos médicos e farmacêuticos.16 No entanto, a estrutura mutualista das sociedades operárias não se fechava apenas na beneficência para seus associados. Em muitos casos, elas também incorporavam funções recreativas ao criar bandas musicais e promover atividades lúdicas, bem como características reivindicativas no que tange aos direitos dos trabalhadores. Nesse sentido, Alexandre Fortes chama atenção para o fato de beneficência, solidariedade e conflito moral serem elementos que se combinavam na maior parte das agremiações.17 Em Ilhéus, várias campanhas por leis sociais foram promovidas, chamando atenção para a jornada de trabalho de 8 horas, a lei de férias e a lei de Caixas de Aposentadorias e Pensões. Outro ponto muito importante é que as agremiações se tornavam também espaço de negociação entre capital e trabalho, atuando como mediador das negociações e reivindicações em períodos de acirramento das lutas de classe.18 Não era apenas das questões econômicas e sociais que tratavam as agremiações proletárias de Ilhéus. Gradualmente, elas também passaram a ser espaços importantes de atuação política para lideranças das oligarquias. Os estivadores, por exemplo, após terem criado a sucursal do seu sindicato em Ilhéus tiveram embates com as companhias de navegação. Em 1919, A Lloyd Brasileiro e a Bahiana resolveram boicotar os estivadores que se filiassem à SUOEI, dando trabalho apenas para aqueles que estavam avulsos. As querelas entre os trabalhadores e os patrões das empresas de navegação provocaram até a suspeita de que entre a categoria houvesse militantes comunistas em função das paralisações ocorridas.19 Mas tudo indica que a presença comunista fosse mais imaginação ou uma forma de depreciação e denúncia da entidade do que realidade, pois o próprio Manoel Paixão desmentiu a “calúnia estampada nas colunas de um intrigante vespertino”.20

15SAVAGE,

Mike. Classe e história do trabalho. In. BATALHA, Cláudio H. M.; SILVA, Fernando T. da; FORTES, Alexandre (orgs.). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p.33. 16 CEDOC/UESC. Jornal de Ilhéus, ?/9/1919, p.1. Obs. Documento danificado na datação. 17 FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: Educs; Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p.264-265. 18LUCA, Tania Regina de. O Sonho do Futuro Assegurado. São Paulo: Contexto, 1990, p.91-92. 19CAMPOS, João da Silva. Crônicas da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Ilhéus: Editus, 2006, p.566. 20CEDOC/UESC. Jornal de Ilhéus, 27/11/1919, p.2. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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O surgimento da sociedade dos estivadores foi marcada por tensões entre os associados e as autoridades das companhias, ficando inclusive registrado na memória dos moradores mais antigos, como Sá Barreto. Em entrevista, ele se recordou de que na “fundação do sindicato dos estivadores diziam os antigos que houve uma reação de certos armadores da Lloyd Brasileiro, da Costeira” para impedir a iniciativa, e que até “a polícia queria proibir a reunião deles”.21 O provável é que para garantir a fundação de sua entidade, os estivadores paralisaram as atividades para chamar atenção das autoridades. Em função disso, houve agitação entre os estivadores. Para buscar a solução, foi realizado um banquete com a presença de várias autoridades políticas, as quais se propunham a intermediar o diálogo entre as companhias de navegação e os trabalhadores. Neste encontro, estavam presentes Lauro Villas-Boas, deputado federal que possuía ligação com os estivadores do Rio e de Salvador em 1920; o coronel Antônio Pessoa, chefe do PRD de Ilhéus, Abdias de Menezes Santos, delegado da União dos estivadores carioca, Bernadino Procópio da Silva e Abelardo Costa Pereira, respectivamente 1º fiscal e representante do secretário da sucursal local. Pelos estivadores, falou o advogado Oscar de Andrade para demonstrar a gratidão da categoria por conta do intermédio nas questões de litígio com as Companhias de Navegação. Oscar de Andrade enfatizou o procedimento cordial dos estivadores e propôs uma negociação para defender as ideias e os interesses da categoria. Em seu discurso, disse que: os estivadores a s. ex. garantiam continuar a proceder, como sempre procederam, defendendo os seus ideais, dentro da lei e dos princípios, sem ódios e prevenções, apoiando as individualidades dignas e prestigiando, em toda a linha, as autoridades constituídas da República. Os estivadores estavam certos de poderem, neste propósito, defender suas ideias e interesses, porque, afinal, a consciência pública, posta ao seu lado, envolveria, num abraço de luz e justiça as que, sem razão, os tomavam por anarquistas e rebeldes.22

A finalidade do discurso do advogado dos estivadores de Ilhéus era descolar as ações de enfrentamento da Sociedade da imagem de “anarquistas” e “rebeldes”. Em sua fala, reforçou uma identidade de trabalhadores que lutavam por seus direitos dentro dos limites da ordem e respeitando as autoridades constituídas. Embora não esteja expresso, é bem provável que tenha sido destacada a postura pacífica e conciliatória da categoria, buscando sempre o apoio da população em geral para reivindicar seus pleitos. Se rechaçaram o envolvimento com doutrinas subversivas, a categoria se demonstrava disposta a lutar pela manutenção de sua agremiação e a defender sua causa, contando, se possível, com o apoio das autoridades. Convém lembrar que o ano de 1919 foi marcado por várias mobilizações operárias e greves na Bahia, o que pode ter 21

FREITAS, Antônio F. Guerreiro de. Sá Barreto: testemunhos para a história. Ilhéus: Editus, 2001, p.113-114. Jornal de Ilhéus, 19/8/1919, p.2.

22CEDOC/UESC.

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provocado as denúncias sobre a atuação de militantes anarquistas na estiva ilheense. Em paralelo, talvez os patrões das empresas de navegação estranhassem ver que estivadores tivessem a iniciativa de criar uma sociedade em Ilhéus, especialmente por se tratar de um contingente majoritariamente de cor, composto quiçá por ex-escravos ou seus descendentes, como aventa Ronaldo Cruz.23 De todo modo, embora o trecho acima tenha sido produzido pelo defensor da Sociedade União dos Estivadores, os mesmos argumentos estavam presentes na nota que o diretor Manoel da Paixão publicou dias antes na imprensa. Ambos fortalecem a ideia de isenção da categoria com ideologias de esquerda, o que oferecia legitimidade para procurarem as autoridades no sentido de intervirem na defesa das ideias e dos interesses dos trabalhadores. No entanto, isso não tira o caráter de reivindicação e de confronto dos estivadores, nem muito menos nega que os estivadores tenham entrado em greve para garantir a fundação da SUOEI. De todo modo, os embates com as companhias de navegação mereceram a atenção e a intervenção das principais lideranças políticas da cidade e do universo da estiva. Foi nesse sentido que Lauro Vilas-Boas também tomou a palavra para tratar do caráter relevante das reivindicações e da postura dos estivadores. Em seu discurso, destacou que eles Não queriam mais do que o reconhecimento dos seus direitos, impondo-se ao mundo, não como uma massa anarquista e dissolvente, mas como uma força construtiva e regeneradora; disse que os seus constituintes, longe de serem elementos de desordem, cooperavam com o governo da República, para que as ideias subversivas não encontrassem entre nós, no Brasil grandioso, aquela repercussão que se fez em outros países, tomados de terror e completamente anarquizados.24

A fala de Villas-Boas reitera o comprometimento dos estivadores de lutarem pelos seus direitos. Talvez o deputado federal tivesse experiência para abordar a trajetória de enfrentamentos travados pelos estivadores para obter vantagens e benefícios, haja vista que ele era também advogado da União dos Estivadores do Rio de Janeiro em 1919 e, provavelmente, tenha participado das greves que agitaram a capital federal entre 1917 e 1920 às quais se refere Ângela de Castro Gomes.25 E, pelo visto, o caso dos estivadores ilheenses estava em condição semelhante, já que as principais reivindicações eram de que as companhias empregassem os sócios da União Operária dos Estivadores de Ilhéus e parassem a perseguição contra suas lideranças.

Cf. CRUZ, Ronaldo Lima. Conflitos e tensões: conquistas de escravizados e libertos no sul da Bahia, 1880-1990. 120f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquisa Filho”, Programa de PósGraduação em História, 2012, 107p. 24 CEDOC/UESC. Jornal de Ilhéus, 19/8/1919. p. 2. 25GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005, p.113. 23

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Outra questão importante é a presença de autoridades políticas no mundo do trabalho. Esse fato sugere que para além de uma “questão de polícia”, as relações de trabalho também foram uma “questão de política” paternalista já na Primeira República, durante a qual lideranças parlamentares e intendentes buscavam se aproximar da classe trabalhadora organizada para angariar apoios eleitorais e fiscalizar o trânsito de ideologias de esquerda.26 Infelizmente, conseguimos poucas informações sobre o deputado Lauro Villas-Boas, e mesmo sua presença entre os estivadores de Ilhéus não parece ter se repetido nos anos 1920 e 1930. Contudo, era um indício de que se aproximar do proletariado era uma tarefa a ser cumprida pelos agentes políticos. Tanto é assim que o próprio Villas-Boas, além de agradecer as homenagens recebidas, sugeriu que os estivadores se aproximassem do Cel. Antônio Pessoa, […] colocando-se à sua sombra de homem útil e dos mais prestigiosos do estado, político cujo ideal se consubstanciava no programa de ordem e de progresso, de confraternização e de amor, que era a bandeira incorruptível do grande estadista, dr. J. J. Seabra.27

Aproveitando a oportunidade, o cel. Pessoa discursou para os operários da estiva e disse: […] que toda a sua vida era um atestado do seu amor pelos humildes. Fora abolicionista convencido e não se humilhava, quando tinha entre as suas as mãos de um escravo. Como seria possível que agora, quando de amor mais experiência lhe trouxeram, conhecendo os homens e as coisas, haveria de recusar a homens livres e honrados, como os estivadores, o seu humilde, mas sincero concurso? Com a lei e com a justiça estaria ao lado do desprotegido da sorte, que eram, não somente os estivadores de Ilhéus, mas os operários em geral.28

As palavras buscavam cativar a simpatia dos estivadores que haviam criado sua associação há pouco tempo, sobretudo recuperando a suposta tradição paternalista do Cel. Pessoa desde as campanhas abolicionistas. Sabe-se que apesar disso, Pessoa possuía escravos e teve atuação tímida no fim do cativeiro em Ilhéus.29 Contudo, interessava bastante se aproximar das agremiações de trabalhadores livres para estabelecer elos de deferência e de reciprocidade com as

Sobre o debate acerca do aforisma “a questão social ser um caso de polícia” na Primeira República, conferir: FRENCH, John D.. Proclamando leis, metendo o pau e lutando por direitos. In: LARA, Sílvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Direitos e Justiças no Brasil: ensaios de história social. São Paulo: Editora UNICAMP, 2006. French discute sobre a origem do referido aforisma no contexto da implementação do ministério do trabalho e da legislação social no primeiro governo Vargas. De acordo com ele, os getulistas utilizaram indiscriminadamente este slogan para depreciar o modo pelo qual os governantes da Primeira República lidavam com as questões trabalhistas, especialmente em relação a Washington Luís. Em paralelo, legitimavam as ações políticas do governo provisório pós-1930 e afirmavam o suposto compromisso e a pretensa colaboração de Vargas com os benefícios aos trabalhadores. O vigor da cultura política do trabalhismo foi tão eficaz que mesmo os historiadores e os sociólogos consumiram o slogan de que na Primeira República “a questão social era um caso de polícia”. Hoje, porém, sabe-se que nem só de repressão aos trabalhadores se fazia a política da República Pré-1930 e nem Vargas e seus agentes abriam mão da força coercitiva para perseguir e punir parte do operariado que não se enquadravam nos limites da ordem estabelecida pela “legislação trabalhista mais avançada do mundo”, p.379-409. 27 CEDOC/UESC. Jornal de Ilhéus, 19/8/1919, p.2. 28________. Jornal de Ilhéus, 19/8/1919, p.2. 29CRUZ, Ronaldo L. Conflitos e tensões... 26

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classes trabalhadoras, não apenas pela necessidade de submeter subalternos à dinâmica do trabalho, mas também por contar com uma base de apoio popular dentro de uma sociedade que aglutinava uma categoria proeminente entre proletariado urbano. Marcelo Mac Cord assinala que era interessante para os governantes incensar as organizações proletárias desde metade do século XIX, aproximando-se delas e tornando-as exemplos de disciplina, de ordem, e de morigeração para uma crescente mão de obra livre e pobre que se amontoava por cortiços e ruas das cidades.30 Certamente, esta também era uma das preocupações das lideranças políticas do sul da Bahia. Mas, além da questão de como as autoridades lidavam com os trabalhadores no mundo do pós-abolição, sublinhamos também a notoriedade que a Sociedade União Operária dos Estivadores de Ilhéus ganhou das lideranças políticas já no seu primeiro ano de fundação. Três décadas após a abolição, as primeiras organizações operárias mais sólidas do sul da Bahia começaram a aparecer. Como assinala Leonardo Pereira e Maria Cecília Velasco e Cruz, os estivadores talvez tenham optado por formas costumeiras de enfrentar os conflitos e os desacordos com os patrões, buscando o intermédio de autoridades que advogassem a justiça de suas reivindicações.31 Esta é uma prática que, aliás, pode estar ligada aos modos com que negros escravizados lutaram contra sua dominação, quando procuravam alternativas de conquistar a liberdade por meio do diálogo e da negociação com seus senhores, prática que se mostrara repleta de êxito em alguns casos. Da parte dos trabalhadores do porto de Ilhéus, procuravam desemaranhar cuidadosamente os fios da dominação, calcular de que modo podiam contar com o apoio de membro das classes dominantes e lutar pelo direito à associação. Por sinal, o grêmio dos estivadores deu uma demonstração do que podia fazer em seu primeiro ano de existência, pois ao enfrentar a resistência das companhias de navegação, os trabalhadores saíram-se vitoriosos, afinal, seu sindicato não só foi mantido, como se tornou uma das principais referências agremiativas do sul da Bahia. Na arena das oligarquias: trabalhadores e política na década de 1920 As agremiações proletárias do sul da Bahia não chegaram a formar partidos políticos, tal como aconteceu em Salvador, salvo exceção do efêmero Partido Operário da Bahia no final do

30MACCORD,

Marcelo. Artífices da Cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas: Editora da UNICAMP, 2012, p.37. 31Cf. PEREIRA, Leonardo Affonso M. As barricadas da Saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2002, p.88; CRUZ, Maria Cecília V. Tradições negras na formação de um sindicato: Sociedade de Resistência dos trabalhadores em Trapiche e Café, Rio de Janeiro, 1905-1930. Afro-Ásia, n.24, 2000, p.243-290. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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século XIX.32 Mesmo assim, algumas delas permitiam o envolvimento com a política. Este era o caso da União Protetora dos Artistas e Operários em Ilhéus. Seus estatutos aventavam a possibilidade de participar das eleições, “seja por intermédio de seus membros, concorrer ao pleito, ou apresentando algum candidato, artista ou operários, com a necessária habilitação para representá-la, no Município, no Congresso do Estado, ou da União”. Outra possibilidade era “patrocinar politicamente a causa de qualquer outro candidato, que haja prestado serviços à sociedade”.33 Esse ponto interessava bastante os diversos parlamentares e líderes partidários do sul da Bahia e motivava seu trânsito no associativismo laboral. Em Ilhéus, dois parlamentares se destacaram por sua influência nos círculos operários: João Mangabeira e Ramiro Berbert de Castro. Mangabeira se tornou um político influente a partir de 1905, quando passou a integrar o partido da facção liderada por Domingos Adami de Sá e se tornou prefeito de Ilhéus em 1908. Em paralelo, também se tornou deputado federal, estreitando laços com lideranças do porte de Rui Barbosa durante a campanha civilista e opondo-se a hegemonia seabrista entre 1912 e 1924. As ascensões de Arthur Bernardes à presidência da República e de Góes Calmon lhe projetaram ao posto de líder da bancada baiana no Congresso Nacional e, no plano regional, lhe garantiu uma aliança surpreendente com o cel. Antônio Pessoa em 1924, sob os auspícios da Concentração Republicana da Bahia.34 Entre as classes trabalhadoras, sua expressão estava mais consolidada entre os empregados no comércio. Nas frequentes visitas que fazia a Ilhéus, João Mangabeira costumava ser convidado por entidades para receber homenagens. Em 1º de abril de 1925, a Associação dos Empregados no Comércio de Ilhéus promoveu uma sessão solene em homenagem ao “benemérito” e “operoso representante” da região na câmara federal. Na oportunidade, o parlamentar elogiou o desenvolvimento da agremiação após percorrer as dependências da sede social e agradeceu os elogios recebidos dos “moços do comércio”, numa referência ao tom paternalista e cordial que buscava manter com os caixeiros.35 O prestígio de João Mangabeira junto aos empregados no comércio era tão significativo que em alguns momentos ele foi chamado para mediar os conflitos internos que ocorreram na associação durante as eleições para a diretoria em 1926. Foram dirigidas críticas ao grupo liderado Cf. CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Trabalhadores e máquina política nas eleições da Primeira República... CASTRO, Ramiro Berbert de. Conferências. [sl] [se], 1930, p.48. 34 PANG, Eul Soo. Coronelismo e oligarquia, 1889-1934: a Bahia na Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p.181. Para outras informações sobre a história política da Bahia neste período, recorrer a SAMPAIO, Consuelo N. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: Edufba, 1999; SARMENTO, Sílvia N. A Raposa e a Águia: J.J. Seabra e Ruy Barbosa na política baiana da Primeira República. 143f. Dissertação (Departamento de Historia) - Universidade Federal da Bahia, Programa de PósGraduação em História, Salvador, 2009, 135p. 35 APMIJM. Correio de Ilhéus, 2/4/1925, p.1. 32 33

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por Abílio Guedes do Rosário e por Dario Passos, acusados de representar os patrões dentro da sociedade e de terem burlado o pleito eleitoral para o biênio 1926-1927. As disputas intestinas pela direção da AECI colocou em xeque sua existência, pois se a cizânia permanecesse, o frágil associativismo poderia não resistir. Diante da cisão, uma das alternativas encontradas foi procurar o parlamentar numa de suas visitas à Ilhéus e propor-lhe que intercedesse nas discórdias. Mangabeira então realizou uma reunião, propondo que a última eleição fosse anulada e um novo pleito fosse realizado. Para evitar novos problemas, o deputado ameaçou se retirar do caso se os caixeiros não aceitassem a sugestão de conciliação.36 As trocas de simpatias entre João Mangabeira e a AECI não eram simples relações de cordialidade gratuita. Por meio dessa relação, procedia-se uma relação de reciprocidade entre ambas as partes, que reforçava os laços de clientelismo e paternalismo típicos da I República. O sinal mais evidente era a concessão de subvenções federais para as agremiações. Em 1925, por exemplo, os empregados no comércio garantiram um recurso orçamentário proveniente da União no valor de cinco contos de réis. Com este recurso, a associação poderia manter o funcionamento de sua sede social e de escola profissional, frequentadas por consócios e seus filhos. 37 Como demonstração de gratidão, os diretores promoveram a colocação do retrato do parlamentar durante as comemorações de seu quinto aniversário de existência.38 Todavia, a maior demonstração de gratidão era esperada durante as eleições federais. Em todos os períodos eleitorais, os principais candidatos do Partido Republicano da Bahia retornavam aos seus redutos para assegurar os votos e acompanhar o desenrolar das urnas. Em 1927, mesmo tendo sido candidato único ao parlamento pelo sul da Bahia, Mangabeira não abriu mão de comparecer ao seu principal círculo de atuação entre os trabalhadores. Recebido no cais do porto em 11 de fevereiro de 1927 pelos diretores da Associação dos empregados no comércio, o candidato à reeleição parlamentar pelo PRB foi convidado para mais uma sessão solene na sede da entidade. Durante a reunião, os oradores destacaram as características de “tribuno das causas operárias” e atuação na defesa dos “mais humildes e das classes laboriosas”. Certamente, aquele foi um palanque notório para as promessas de João Mangabeira que, ao final, ressaltou no seu discurso o empenho de trabalhar em favor do “progresso daquela útil associação”.39 De prática muito parecida se utilizou também o deputado Ramiro Berbert de Castro. Formado em medicina em Belo Horizonte em 1919, ele exerceu muito pouco a profissão no interior de Minas Gerais. Aproximou-se da política durante as eleições presidenciais de 1919, IGHB. Pequeno Jornal, 13/3/1926, p.2. APMIJM. Correio de Ilhéus, 28/7/1925, p.1. 38 ________. Correio de Ilhéus, 1º/8/1925, p.2. 39 IGHB. Pequeno Jornal, 11/2/1927, p.1; 18/2/1927, p.1. 36 37

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quando deu demonstrações de apoio a Rui Barbosa por meio de telegrama. 40 Em Ilhéus, sua família pertencia ao grupo dos “novos-ricos”, filho do famoso coronel Ramiro Idelfonso de Araújo Castro.41 Lançou-se candidato à Assembleia Legislativa baiana em 1920, onde teve atuação discreta até mesmo sob a ótica dos jornais do partido de situação. Em março de 1924, candidatou-se a deputado federal pela Concentração Republicana e no mês seguinte, tomou posse no congresso nacional. Portanto, dentre os nomes políticos que atuavam no sul da Bahia, Ramiro Berbert de Castro talvez fosse o de menor experiência e o que tivesse menos expressão com as sociedades de Ilhéus.42 Por isso, adotar as causas da principal agremiação proletária da cidade representava uma ação significativa na sua escalada política e seu espaço de influência foi a União Protetora dos Artistas e Operários em Ilhéus. Em 1925, Ramiro Berbert de Castro apresentou projeto no Congresso Nacional para tornar a União Protetora uma sociedade de utilidade pública. Havia três anos que os artistas e operários lutavam para construir sua sede social, buscando apoio junto ao Conselho Municipal de Ilhéus e doações de particulares. Por isso, a iniciativa do parlamentar foi comemorada por Antônio Soares da Cunha Júnior, pois a declaração de utilidade pública poderia garantir a remessa de recursos financeiros no orçamento da união.43 As expectativas foram consumadas quando a notícia de que o valor de dez contos de reis havia sido destinado para a agremiação.44 Depois de obtida a subvenção para a União Protetora, o primeiro encontro do operariado com Ramiro Berbert de Castro aconteceu apenas no ano seguinte, em março de 1926, quando o parlamentar visitou Ilhéus. Desde sua chegada, diversas solenidades de homenagem ao líder político foram realizadas, as quais contaram com as presenças de outros chefes locais e representantes de entidades, tais como o cel. Antônio Pessoa e o deputado estadual Epaminondas Berbert de Castro, diretores da Associação Comercial e da Associação dos Empregados no Comércio de Ilhéus. No entanto, o destaque da imprensa foi para a “Sociedade União Protetora dos Artistas e Operários de Ilhéus, de cujas aspirações o deputado Berbert se constitui dedicado patrono no Parlamento da República”, cuja nota informou ter comparecido “encorpada, com o respectivo estandarte a frente”.45

FCRB. Telegrama para Rui Barbosa, 10/4/1919; 13/4/1919. Cf. MAHONY, Mary Ann. Um passado para justificar o presente: memória coletiva, representação histórica e dominação política na região cacaueira da Bahia. Cadernos de Ciências Humanas – Especiarias. Ilhéus: Editus, 2007. 42 BRITO, Raymundo de Souza. O livro de Ilhéus: colaboração do Município para o progresso geral do Estado da Bahia. Rio de Janeiro: Tipografia Licoln, 1923, p.65; CPDOC/FGV. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, 2012, disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar. Aspx. Acessado em 14/4/2014. 43 IGHB. Diário do Povo, 17/6/1925, p.1-2. 44 ______. Diário do Povo, 16/7/1925, p.1. 45 APMIJM. Correio de Ilhéus, 2/3/1926, p.1. 40 41

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A recepção no porto de Ilhéus foi apenas uma parte do que estava previsto pelos operários, pois a principal atividade na agenda de Ramiro Berbert de Castro com a União Protetora foi uma sessão solene organizada pelos seus diretores, momento em que os consócios agradeceriam pela atuação do parlamentar em prol de sua sociedade. O Correio de Ilhéus, periódico da situação, dizia que “S. Exa., defensor impretérito e decidido das classes humildes e trabalhadoras” não poderia “deixar de ir sentir de perto as palpitações esplêndidas dos nobres sentimentos dos operários de Ilhéus, por cuja causa tem se batido, com acendrado amor e grande galhardia, naquela casa do Congresso Nacional”. Ainda de acordo o jornal, aproveitando a presença de mais de 500 pessoas, “na maioria sócios daquela corporação”.46 Ramiro Berbert de Castro e União Protetora se encontraram novamente em março de 1929, quando o parlamentar fez nova visita à Ilhéus. Meses antes, ainda em 1928, o deputado havia sido homenageado com o título de sócio benemérito pelos artistas e operários, pelo qual se demonstrou muito grato através de telegrama.47 No entanto, foi somente no ano seguinte que compareceu a sede social e pode receber as homenagens dos diretores da sociedade. Na solenidade, o médico e orador oficial J. Baptista Soares Lopes frisou “os serviços prestados àquela sociedade pelo recepcionado, que é um dos seus maiores beneméritos”. Em resposta, o deputado falou de sua emoção em face da “demonstração de estima, que ele sabia que era sincera” e, em seguida, falou da importância de se criar uma caixa escolar para manutenção das aulas ofertadas pela instituição, colocando-se a disposição para intermediar juntos aos poderes competentes auxílios destinados àquele fim.48 Uma análise aligeirada sobre as relações de trocas de deferência entre trabalhadores e lideranças política poderia confirmar as teses do enfraquecimento ou da dependência que a classe trabalhadora possuía em relação aos chefes e governantes, e aceitar de forma prematura a incapacidade e a subserviência dos de baixo diante dos coronéis, tal como narra Victor Nunes Leal e Raimundo Faoro, por exemplos.49 No entanto, as relações de troca de simpatias de ambos os lados indicam a capacidade do operariado em consumir o clientelismo como parte de uma economia de favores pautada numa reciprocidade mútua com as classes dominantes. Ao homenagear as autoridades, tal como no paternalismo problematizado por Thompson, 50 os trabalhadores atavam as classes dominantes com compromissos com grêmios, escolas, ________. Correio de Ilhéus, 6/3/1926, p.1. ________. Correio de Ilhéus, 19/5/1928, p.2. 48 BPEB. Diário da Tarde, 7/3/1929, p.1. 49Cf. LEAL, Victor N. Coronelismo, enxada e voto...; e FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1978. 50THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.78. 46 47

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filarmônicas e outras formas de associativismo. O consumo das práticas políticas das oligarquias (clientelismo e personalismo) não implicava em grandes alterações sociais e muito menos em ato de rebeldia, mas possibilitava que os “fracos”51 atuassem dentro do que era possível na I República para alcançar certas pautas sociais: manutenção e ampliação de seus círculos institucionais no sul da Bahia. Importa dizer que o coronelismo continuava sendo uma prática política marcada pelo mandonismo, pelo uso da violência e pelas fraudes, conforme é possível verificar em história de diversas partes do país. Contudo, o que pretendemos é mostrar que não devemos levar ao limite a ideia de poder absoluto dos coronéis e das oligarquias, de modo a pensar que não havia margem de atuação para as bases da pirâmide social. Nesse sentido, podemos notar que a questão social na Primeira República pode ser vista pelas diversas formas de atuação e de apropriação do jogo político pelos de baixo, especialmente às categorias operárias que se organizavam em associações. Tal como coronéis, parlamentares e chefes souberam utilizar os mecanismos de dominação para manutenção da hegemonia política de seus partidos, os trabalhadores também não estavam alheios e desprovidos de se apropriar de instrumentos em proveito de seus interesses. Cabe ressaltar que esta atuação do associativismo operário no plano político oligárquico se dava em condições de desigualdade em relação ao poder que as classes dominantes detinham, capaz de mantê-los em seus cargos e benefícios na República brasileira. No entanto, importa reconhecer a forma pela qual os trabalhadores aproveitavam as brechas do sistema político e das divergências entre as facções oligárquicas para encaminhar suas demandas mais imediatas, as quais, aliás, eram fundamentais para a própria sobrevivência de suas estruturas organizacionais. Seria ingenuidade pensar que a cultura associativa dos operários estivesse à parte das práticas costumeiras da República brasileira. Lutas contra a exploração Não era apenas no campo da política institucional que a cultura associativa operária se relacionava com as lideranças oligárquicas de Ilhéus. A partir de 1925, campanhas e paralisações foram realizadas com o objetivo de lutar contra a exploração e pela aplicação das leis sociais que foram implantadas ao final da I República. Uma das pautas mais discutidas era a questão da jornada de trabalho de 8 horas entre os artistas e operários, além da regulamentação do horário de funcionamento do comércio entre 1927 e 1928. Mas foi também nesse período que a maior CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p.94. Aqui sou influenciado pelas considerações de Certeau sobre a capacidade dos “fracos” em subverter a partir de dentro e usar as práticas e as leis que lhes eram impostas em benefício próprio. Nesse sentido, entender que os trabalhadores de Ilhéus utilizaram do jogo político oligárquico e empregaram em sua cultura associativa as vantagens que poderiam ser auferidas, apesar da desigualdade de forças em relação aos adversários. 51

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greve de ferroviários da Bahia também teve forte repercussão no sul da Bahia, o que mobilizou diversos setores da sociedade em defesa dos interesses dos trabalhadores da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista em maio de 1927. Outra demanda igualmente abordada foi a campanha contra a demissão arbitrária de empregados de estabelecimentos comerciais em 1929. Em todas estas mobilizações, os operários buscaram apoio entre personagens políticos para respaldar e intermediar seus interesses. Um bom exemplo disso foi a aplicação da Lei Eloy Chaves, que regulamentava o funcionamento das Caixas de Pensões e Aposentadorias entre ferroviários. Apesar do governo publicar as normativas sobre a referida lei em 1923, pairava muitas dúvidas sobre como os empregados da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista seria enquadrados pela nova legislação, especialmente aqueles que possuíam tempo de serviço de longas datas. De acordo com José Correia Queirós, havia informações de consultores jurídicos da empresa que afirmavam que só poderiam gozar das vantagens, era necessário que tivesse “mais de 10 anos na mesma estrada”. Por isso, ele resolveu escrever para o deputado Wanderley Pinho para que este solicitasse junto ao Conselho Nacional do Trabalho, uma resposta sobre tal questão. Intermediado pelo parlamentar, o CNT enviou resposta dizendo que a lei se aplicava a qualquer trabalhador das ferrovias, o que “causou grande contentamento aos empregados desta Estrada, visto que os funcionários aqui têm serviços prestados em outras estradas e viviam descontentes com a ideia de não gozarem de todos os direitos da lei 4.862”.52 Não era incomum que os trabalhadores buscassem as autoridades para intermediar suas relações de conflito com o capital. Em primeiro lugar, isso demonstra conhecimento por parte do operariado da criação de leis sociais que lhes garantiam direitos e que lhes dava a opção de argumentar em favor de melhores condições de vida. Finalmente, a política institucional se tornava um campo de pressão para a aplicabilidade da legislação sobre o trabalho. É claro que autoridades políticas tiravam vantagem com esta situação, garantindo aproximação com as classes laboriosas, mas isso não quer dizer submissão e passividade, e sim, capacidade de influenciar lideranças partidárias para as causas dos de baixo. Situação parecida com esta ocorreu na greve dos ferroviários de 1927. A paralisação da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista aconteceu na manhã de 23 de maio de 1927, com a chegada de grevistas de outras estradas da Bahia. A Este Brasileiro, por exemplo, já estava em parede desde o início do mês. A pauta da categoria pedia um aumento de 30% nos ordenados à superintendência da empresa, a incorporação das gratificações e a garantia de que 52

IHGB. Carta de José Correia Queirós ao deputado Wanderley Pinho, 14/7/1925, p.1. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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todos os empregos seriam preservados após a greve. Uma das medidas tomadas foi o envio de telegramas para os deputados João Mangabeira, Ramiro Berbert de Castro, José Wanderley Pinho, Vital Soares e Salomão Dantas, em que diziam que “após reiterados pedidos de aumento de salários junto a Companhia sem resultado, declararam-se desde o dia 23 andante em greve pacífica abandonando o serviço”. Complementaram afirmando que “grevistas aguardam confiantes providências da bancada baiana em seu benefício”. Outro telegrama de teor semelhante foi encaminhado ao Conselho Nacional do Trabalho, em que apelavam “aos poderes constituídos” para solução dos conflitos.53 A greve dos ferroviários contou com a simpatia da imprensa, inclusive do partido do governo liderado por cel. Antônio Pessoa. O Correio de Ilhéus citou a larga propaganda da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista sobre sua arrecadação nos anos anteriores em contraposição aos salários reduzidos da categoria. Em sua edição de 26 de maio de 1927, dizia que “Temos apreciado com a maior serenidade de ânimo, o movimento paredista dos ferroviários que, pedindo o apoio do povo, prometem ‘não capitularão’, coesos como se acham na defesa dos seus sagrados interesses”. Outras notícias tiveram também um tom patriótico, procurando justificar as reivindicações do trabalhador brasileiro perante “uma empresa que era inglesa e gerenciada por ingleses”. Dizia que […] não deve causar estranheza, portanto, aos ingleses [...] a atitude dos nossos patrícios, defendendo uma causa justa e nobre, advogando os interesses da família, contra a ganância de seus patrões, que precisa atender o quanto antes, aos reclames razoáveis dos empregados.54

O desfecho da parede dos ferroviários aconteceu na tarde de 28 de maio de 1927 durante assembleia realizada na Sociedade Monte Pio dos Artistas de Itabuna. No meio da sessão, um telegrama foi enviado de Ilhéus pelo prefeito Mário Pessoa comunicando que a Estrada de Ferro havia se comprometido a aceitar a pauta dos trabalhadores. Vários oradores falaram, mas uma das falas que mereceram registro em ata foi a de Eustáquio Bispo dizendo que “num atrito entre brasileiros e ingleses, venceu, felizmente, o pavilhão auri-verde, venceram os brasileiros”, erguendo “vivas aos ferroviários em nome dos tipógrafos”.55 O sentimento patriótico que embalou o apoio de alguns setores das classes dominantes pode ser explicado pela insatisfação com o capital estrangeiro na região e pelas queixas frequentes contra os serviços da estrada de ferro controlada por ingleses. Independente disso, contando com o apoio atípico das classes conservadoras, os ferroviários conseguiram conquistar a vitória naquela greve, o que demonstra a agência dos de baixo em atuar nas brechas das diferenças entre as classes dominantes. IGHB. Pequeno Jornal, 23/5/1927: 1-2; 25/5/1927, p.1-2. Correio de Ilhéus, 23/5/1927, p.1; 26/5/1927, p.1. 55ASMPAI. Livro de Álbum Social da Sociedade Monte Pio dos Artistas de Itabuna, 28/5/1927, f.59. 53

54APMIJM.

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Situação semelhante ocorreu também com os caixeiros de Ilhéus. Em 1928, a Associação dos Empregados no Comércio fez uma campanha para a implantação da Semana Inglesa em Ilhéus. Os caixeiros defendiam que as lojas e os bancos fechassem suas portas até às 18 horas de segunda a sexta, e aos sábados, ao meio-dia. A primeira experiência com este horário de funcionamento do comércio ocorreu no carnaval, quando em acordo com as casas de exportação de cacau, o diretor Nelson Schaun informou que o expediente só funcionaria até às 12 horas de sábado, só reabrindo as portas na quarta-feira de cinzas. Em nota publicada pela imprensa, Schaun ainda apelou para “os nobres e elevados sentimentos dos distintos comerciantes da praça”, que deveriam imitar “os povos civilizados, notadamente os povos da velha Europa, [que] têm reconhecido os direitos democráticos das classes trabalhistas, instituindo a chamada Semana Inglesa”.56 Durante o carnaval, os estabelecimentos comerciais parecem ter cumprido o acordo de obedecer a Semana Inglesa. No entanto, com o desenrolar dos meses, várias foram as queixas de patrões que não obedeceram o novo horário regular de trabalho. Pela imprensa, queixas eram publicadas contra os negociantes. Em março de 1928, os comerciantes Lotfalh Diab e Emílio Chauí foram denunciados de maltratar seus empregados e imporem jornadas de serviço para além do tempo regulamentar. Havia informações que a Associação dos Empregados possuía declarações sobre a exploração de seus funcionários para que, no momento oportuno, “ser movida uma ação judiciária”.57 No mês de junho, novas reclamações foram registradas contra proprietários de casas comerciais, registrando a abertura aos sábados para além do meio dia. Falava-se também da falta de regulamento oficial para o horário do comércio, pois o Código de Posturas não se posicionava quanto ao ponto. É provável que a partir daí, a AECI a partir da atuação de Nelson Schaun tenham tomado a iniciativa de buscar os poderes constituídos para criar uma legislação específica.58 O ápice da luta pela implantação da Semana Inglesa comandada pela agremiação dos caixeiros ocorreu em outubro, mês em que também se comemora o dia da categoria. Em sessão realizada em 9 de outubro, a diretoria foi renovada e um dos pontos discutidos foi o envio de um ofício para o Conselho Municipal solicitando a implantação da Semana Inglesa no comércio ilheense. A comissão responsável por representar a associação foi composta pelos diretores Abílio Guedes do Rosário, João Pires de Carvalho e Nelson Schaun.59 Deve-se chamar à atenção para este último, que além de presidente da AECI, também ocupava o posto de oficial contínuo APMIJM. Correio de Ilhéus, 18/2/1928, p.2. IGHB. Pequeno Jornal, 30/3/1928, p.2. 58 APMIJM. Correio de Ilhéus, 3/6/1928, p.1. 59________. Correio de Ilhéus, 11/10/1928, p.1. 56 57

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do poder legislativo municipal. Outro ponto importante era sua vinculação com o Partido Republicano da Bahia e o cel. Antonio Pessoa, que, por sinal, era o presidente do Conselho. Este era o caso em que a liderança caixeiral estava ligada umbilicalmente aos partidos oligárquicos da cidade. Em 10 de outubro, o Conselho Municipal de Ilhéus recebeu a solicitação da Associação dos Empregados no Comércio e teceu considerações sobre a justiça do pleito. As informações do Correio de Ilhéus, periódico pertencente ao partido da situação, dão conta de que o cel. Antônio Pessoa teria defendido a causa dos caixeiros. Em suas palavras, destacavam “o nome do senador Antônio Pessoa, presidente do Conselho, que assumiu digna e louvável atitude em favor da sorte dos empregados, patrocinando, eficazmente a lei em questão”. O jornal ainda frisou que a medida possuía um “grande alcance de utilidade para os laboriosos empregados, que sofrem o horror de quase quinze horas de trabalho, por dia, enquanto todas as classes trabalham oito e dez horas, apenas, diariamente”.60 Infelizmente, não temos a ata do Conselho Municipal para sondar a discussão da lei e a postura do cel. Pessoa. No entanto, o ato de extrair alguma vantagem como patrono da causa dos caixeiros indica o esforço de autoridade em se apropriar politicamente das demandas populares. Outro elemento é a verificação de que mais uma vez os trabalhadores buscaram os poderes constituídos para pressionar a sociedade política em função de seus interesses. Convém dizer também que a relação entre o coronel Antônio Pessoa e Nelson Schaun contribuiu sintomaticamente para o proveito político da autoridade. Não por acaso, durante as solenidades em referência ao dia do caixeiro, o nome do velho senador e presidente do Conselho Municipal foi citado como patrono das causas dos caixeiros. Em declaração de agradecimento, a AECI rendeu homenagens aos edis municipais, destacando “com justiça, o nome do Exmo. Sr. Senador Antônio Pessoa [...] porque foi S. Exa. o elemento imediato dessa obra inestimável”.61 Analisar de que forma as lutas contra a exploração e por direitos enveredaram também por negociações com autoridades é fundamental para se entender a complexidade das relações entre política e cidadania da I República Brasileira. Os trabalhadores em tempos de coronelismo Neste artigo apresentamos o desenvolvimento da cultura associativa operária no sul da Bahia na década de 1920. Nesse contexto, artistas, operários, estivadores, caixeiros, dentre outras categorias não abordadas aqui, concentraram esforços no sentido de fundarem seus grêmios com 60 61

APMIJM. Correio de Ilhéus, 11/10/1928, p.1. ________. Correio de Ilhéus, 16/10/1928, p.2. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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o objetivo geral de lhes garantir amparo e solidariedade entre seus sócios. Tratava-se de uma parcela dos trabalhadores que detinham condições sociais e econômicas melhores do que o universo de pobres e de miseráveis que frequentavam as ruas da cidade e eram reprimidos pela polícia e pela fiscalização pública. No entanto, a consolidação do associativismo não deixou de ser uma tarefa complexa e cheia de obstáculos para estas categorias. Os primeiros anos após a fundação eram sempre muito frágeis, pois sempre havia o perigo de desaparecer por falta de engajamento e de auxílio financeiro de seus sócios. Portanto a persistência por si só era um fator de conquista para os sócios das sociedades operárias. Na medida em que conseguiram se estabilizar administrativamente e passaram a mobilizar contingentes importantes de operários, estas agremiações emergiam como espaços relevantes para a política e a sociedade de Ilhéus. Abrigados nestas agremiações, os trabalhadores adquiriam notabilidade e respeito das autoridades, especialmente por arregimentar indivíduos das camadas populares. Para lideranças partidárias, era o lugar em que se podiam tecer laços de cordialidade e política de reciprocidade. Estas movimentações se tornam essenciais para compreender as práticas políticas hegemônicas das oligarquias baianas em tempos de coronelismo. Raymond Williams explica que a hegemonia é exercida sempre em oposição a pressões de forças emergentes e residuais não incorporados pelo exercício da dominação.62 Nesse sentido, as classes dominantes buscam de algum modo constituir aproximações e estabelecer negociações para atrair forças antagônicas. Mas isso não se faz sem tensão e sem conflito, nem tampouco, sem levar em consideração as formas de representação elaboradas pelos de baixo para interpor seus interesses. Da parte dos coronéis, deputados e patrões, era preciso tolerar e manter relações de reciprocidade com associações que aglutinavam um ator coletivo em emergência – o operariado – e que se identificavam com valores muitas vezes combinados com a cultura hegemônica. Não por acaso, algumas destas agremiações ostentavam em seus emblemas os valores de “Deus”, “Pátria”, “Trabalho”, “Ordem”. Empenhando tais princípios dentro dos padrões de progresso e de civismo, artistas, caixeiros e estivadores criavam barreiras para que a política de repressão policial que servia aos outros subalternos – às classes perigosas e miseráveis, na cabeça das classes dominantes. Além da tolerância dos poderosos, gradualmente a cultura associativa operária se tornava uma força de pressão da qual os membros da oligarquia não prescindiam do apoio, ainda que muitas vezes simbólico. Nesse sentido, apropriando-se da interpretação de Nobert Elias para a sociedade de corte da nobreza europeia, podemos pensar o sistema coronelista não apenas do ponto de vista da onipotência e do absolutismo de coronéis, de intendentes e lideranças

62WILLIAMS,

Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p.111-113.

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partidárias.63 Antes de estudar o “chefão poderoso”, como fizeram vários historiadores, importa assinalar como os de cima estavam inscritos numa rede de pressão social que tinha por protagonistas o conjunto de operários. Sem romper com os laços de dominação, os trabalhadores conseguiram fazer do associativismo um instrumento de defesa dos interesses de suas diversas categorias. Por dentro da vontade senhorial, barganhavam o suficiente para preservarem suas associações, abrirem escolas, fundarem filarmônicas e, de algum modo, participarem da política oligárquica. Infelizmente, até a década de 1930, não alcançaram autonomia política para enfrentar seus algozes em igualdade de condição, mas foram capazes de encetar diálogos e comprometer os chefes políticos com demandas populares, noutras palavras, ao menos perseguiram seus objetivos dentro do que era possível.64 Em paralelo, devemos salientar que o coronelismo ainda funcionava com demonstrações de autoritarismo e de violência, especialmente sobre os mais miseráveis. Há vários casos estudados nesse sentido. Todavia, é pertinente dizer que foi também uma prática de poder exercida por uma atitude mais diplomática e permissiva no que concerne às liberdades e aos direitos de setores organizados da classe trabalhadora que demonstravam crescente perspicácia e astúcia para escolher quem apoiar e quem votar nos jogos de dominação do final da I República. Em termos de hipóteses, sugerimos que esta tradição associativa foi uma experiência acumulada para que nas décadas vindouras os trabalhadores associados soubessem tirar proveitos próprios, apesar das adversidades políticas e sociais noutras fases republicanas do Brasil.

63Cf.

ELIAS, Nobert. A sociedade de cortes: investigação sobre a sociedade da realeza e da aristocracia da corte. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2001. 64CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das letras, 2003, p.82-83. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Do Carnaval ao social: a caricatura de Andrelino Cotta – 1919-1928 Carnival of the social: a caricature of Andrelino Cotta - 1919-1928

Artigos

Raimundo Nonato de Castro Doutorando em História Social da Amazônia - UFPA Professor do Instituto Federal de Educação do Pará raimundo.castro@ifpa.edu.br Recebido: 23/07/2014 Aprovado: 13/10/2014 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo destacar a importância do pintor Andrelino Cotta para a história da caricatura na Amazônia, tendo como fonte principal a Revista A semana, a qual foi um dos principais periódicos no qual o pintor concentrou boa parte do seu trabalho inicial. Neste artigo utilizaremos como recursos metodológicos a análise do material produzido por Cotta e a forma como este chegou ao mercado editorial da cidade de Belém, no início do século XX. Importa destacar que o trabalho produzido por estes pintores/caricaturistas, no período observado, em muitos momentos contrapunha-se aos valores defendidos por uma elite política, que considerava a cidade de Belém moderna. PALAVRAS-CHAVE: Andrelino Cotta, Caricatura, Belém. ABSTRACT: This paper aims to highlight the importance of the painter Andrelino Cotta for the history of the caricature in the Amazon, with the primary source Week Magazine, which was one of the leading journals in which the painter has focused much of his early work. In this article, we will use as methodological tools to analyze the material produced by Cotta and how it came to publishing the city of Belém, in the early twentieth century. It is important to emphasize that the work produced by these artists/cartoonists in the observed period, many times went against the values defended by a political elite who considered the modern town of Belém. KEYWORDS: Andrelino Cotta, Caricature, Belém. Introdução

O pintor cametaense1, Andrelino Cotta, procurou, a partir do seu “lápis endiabrado”, colocar nas páginas da revista A Semana2 “suas interessantes producções que estampamos sempre

Cametá, cidade paraense fundada em 1635 e está localizada as margens do rio Tocantins. Distante 150 km da capital Belém. 2 Revista de propriedade de Manuel Lobato e Alcides Santos e que circulou na cidade de Belém entre os anos de 1919 e 1943. 1

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com agrado”3. Com essa frase, os proprietários da Semana destacavam a importância que as produções do autor passaram a ter para aquele importante veículo de comunicação.

Heman Lima destaca que “a arma do caricaturista dos tempos modernos é tão poderosa” que os excessos da deformação tornam-se dispensáveis, na medida em que pode muito mais que o pintor, na medida em que “exprimi seu pensamento, caracterizando a verdade”4. Neste sentido, a caricatura não é somente um modo de deformar o homem, mas caracterizador, capaz de sublinhar algum gesto, que gera um aspecto inesperado. O momento histórico marcava o novo sentido de modernidade trazido pelos republicanos que desde a implantação da República procuravam demonstrar a situação de avanço tecnológico e social vivenciada, em especial, na cidade de Belém. O século XX trouxe novos elementos modernizadores e, no caso específico, esse imaginário intensificou-se com a figura do intendente municipal Antônio Lemos5. Portanto, os novos aspectos presentes na capital do Pará se deviam aos recursos advindos da economia da borracha. Contudo, esse apogeu foi interrompido, haja vista que, a partir de 1912, a “Belém moderna”6 entrou numa profunda crise econômica.

Caras e Caretas. Revista A Semana. Belém, 02/07/1921. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. 4 volumes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. P. 15. 5 Foi intendente municipal no período de 1898 a 1910. O seu governo é caracterizado pelo desenvolvimento urbano da cidade de Belém. Para saber mais ver: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (18701912. Belém: Paka-Tatu, 2010. 6 A utilização desta expressão foi retirada das páginas da revista A Semana, por representar os aspectos das principais ruas da cidade, ou mesmo de prédios considerados pelos fotógrafos e editores da revista como elementos singular e que representaria os elementos da modernidade belenense. 3 4

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Imagem 1: Revista A Semana. Belém, 26/01/1934.

Essa cidade moderna, representada pela Guarda Civil, que na opinião do texto é “cheia de garbo, de elegância e asseio”, na época vivenciava, ainda, elementos considerados rurais, vistos nas ruas da cidade. Neste caso, os vendedores de leite, que iam de porta em porta, davam uma clara dimensão das relações sociais presentes nas cidades amazônicas. Além disso, a presença constante de carroceiros exercia uma influência na forma como os transportes eram realizados na urbe. Essa mesma guarda nas palavras do caricaturista “Debutou pondo medo logo a gente, pois passou a realizar “estrupícios à vontade com os jécas que andam no passeio”.

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Imagem 2: Revista A Semana. Belém, 26/01/1934.

Os tipos comuns estão representados nesta imagem, os vendedores de manga, descalços devem ter cuidado com a “nobre instituição”, a expressão utilizada com sarcasmo, pois o texto, juntamente com a imagem nos possibilitam entender essa modernidade presente na cena. Reparem a pose do Guarda, na mão direita carrega com o cassetete, e na outra demonstra o caminho que os vendedores devem seguir. Não esqueçamos que ao lado deles estão as lavadeiras que exerciam uma atividade social importante para boa parte da população que necessitava dos seus serviços. Vale lembrar que Raymond Williams avalia que os elementos, que caracterizam o contraste entre campo e cidade, são responsáveis por mostrar que “uma das principais maneiras de adquirirmos consciência de uma parte central de nossa experiência e das crises de nossa Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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sociedade”. Neste sentido, as percepções dependem “das formas, imagens e ideias em mudança”7. Portanto, essa modernidade foi refletida nas diferentes interpretações que surgiram no início do século XX na cidade de Belém. Para José Augusto Paduá a modernidade urbano-industrial, iniciada na Europa no final do século XVIII, estaria associada a diversos outros processos macro históricos, de modo que, o processo de urbanização vivido nas cidades americanas, e em especial, em Belém, demonstravam a forte influência que recebeu dos países europeus8. Tanto, que a economia da borracha foi responsável pela inserção da Amazônia no contexto internacional das relações de comércio. Isso gerou, do ponto de vista de Alfred Crosby, uma transformação nas estruturas das paisagens; uma vez que ocasionou a implantação de esquemas capazes de acelerar e intensificar os processos de exploração do mundo natural9. É justamente neste ponto que a ideia de Williams ganha força, pois asseverou que estes processos levaram a interpretações que ocasionaram certo desenvolvimento histórico específico, capaz de representar “formas de isolamento e identificação de processos mais gerais”. Isto quer dizer que a referência à cidade tornou-se algo muito comum “para se referir ao capitalismo, a burocracia ou ao poder centralizado”10. Neste sentido, a cidade passou a conviver com outros sujeitos culturais que impuseram a forma como os seus habitantes deveriam se comportar11. É neste cenário que a figura de Andrelino Cotta vai se destacar. Ou seja, num momento em que a região era favorecida pelos recursos advindos do capital internacional, as críticas ao governo eram, de certo modo, controladas, na medida em que a maior parte dos periódicos12 regionais estava nas mãos da elite intelectual e política que dominavam o cenário amazônico. WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 471. PADUA, José Augusto. Pensamento ilustrado e crítica da destruição florestal no Brasil Colonial. Nomadas (COL.) num, 22, abril, 2005, pp.152-163, Universidad Central Colombia, p. 154. 9 CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900 – 1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 10 ______. O campo e a cidade, p. 474. 11 Esse campo de disputa que a cidade se tornou ganhou destaque maior na produção de Raymond Williams, que destaca que os processos de representação presentes nas cidades a partir do modo de produção capitalista continuam a ser “em termos de história do mundo”, um dos agentes responsáveis por “esses tipos de transformação física e social” (2011, p. 478). Portanto, passou-se a construir imagens da cidade que estavam associadas as ideias de futuro, isto quer dizer que as demais, que tinham como referência o campo passou a ser vista como sinônimo de passado. Neste sentido, a caricatura de Andrelino Cotta não se ateve ao campo, de onde procedia, mas focou-se no debate urbano, da ideia de uma cidade moderna. Contudo, as imagens destacam-se por diversas críticas a esse modelo de cidade urbanizada pelas forças do capitalismo. Sobre representação Ver: GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Em especial o capítulo três intitulado “Representação: a palavra, a ideia, a coisa”, no qual discute o conceito e forma como a expressão passou a ser utilizada pelas ciências humanas. 12 Dentre os principais jornais de circulação diária de Belém, estão a Província do Pará e que estava nas mãos dos grupos políticos da situação. Do outro lado, via-se a Folha do Norte exercendo uma oposição controlada, isto é, seus 7 8

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Andrelino Cotta: mais um vulto “notável” da história do Pará?

Nascido em Cametá – PA, no ano de 1896, Andrelino Cotta destacou-se pela produção artística realizada após a sua vinda para a cidade de Belém, onde passou a trabalhar na revista A Semana, como caricaturista e, depois dos anos 30 do século XX ganhou espaço pelas exposições dos seus quadros nos salões de arte que ocorriam na capital do Pará. Na condição de caricaturista, foi responsável pela ilustração das páginas de vários órgãos da imprensa do Estado do Pará, principalmente quando ilustrava os tipos carnavalescos, mas também com situações alusivas aos políticos da época. Foi professor de desenho da Escola Normal do Pará. Faleceu em 1972.

Imagem 3: Revista A Semana. Belém, 02/07/1921.

Entende-se que a chegada de Andrelino Cotta na Revista A Semana, se deu pela apresentação à redação, pelo Pedro Bittencourt que “anunciava-nos a visita de um novo caricaturista, que se dispunha a emprestar seu lápis às páginas desta revista”. Portanto, fica evidente que a chegada do cametaense, ocorreu pelas relações de amizade entre os sujeitos que coordenavam aquela, tanto que “um dia, há mezes atrás, quando entravamos na redação, Pedro Bittencourt, sorridente, e demonstrando a sua amizade pela A SEMANA”13, apresentou aos

empregados costumavam sofrer ameaças pelos grupos detentores do poder. Para mais Ver: CAMPOS, Humberto de. Contrastes (crônicas). Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1945, p. 109-110. 13 MOREIRA, Rocha. Caras e Caretas. Revista A Semana, Belém, 02/07/1921. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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diretores o Cotta. O texto de apresentação à sociedade coube ao redator chefe da revista Rocha Moreira. Até o momento, não encontrei elementos que dessem conta da influência sofrida pelo pintor para enveredar no caminho da caricatura. Contudo, importa lembrar que, durante os séculos XVII e XVIII muitos discursos foram difundidos e colocados em debate por parte dos europeus, com o objetivo de justificar a condição de ser inferior, tanto de negros africanos quanto de índios americanos, o que permitiria seu domínio e sua condição de escravo14. Por outro lado, a agricultura indígena foi vista pelos europeus como uma alternativa a forma de implantação de povoados coloniais, pois: (...) cultivavam pouca mandioca e muito milho, do qual pagavam dissimo das sementeiras, que sam de grandes milharadas, e he o seu sustento, que nan usam tanto de mandioca para farinha como as mais nações. (...)15(Sic).

Partindo deste ponto, podemos observar que as produções científicas, artísticas e culturais dos séculos XIX e XX tiveram seus alicerces nas produções dos séculos anteriores. E como a cidade de Cametá exercia uma forte influência sobre a capital, boa parte dos “notáveis” daquela cidade, assumiram postos importantes, pois estavam presentes na política, na religião, de modo, que exerceram tarefas relevantes na formação de diálogos e no combate aos conflitos ocorridos na região16. Fato que os sujeitos apresentados em forma de discurso durante o período colonial e imperial, ganharam novos elementos a partir das caricaturas produzidas nos séculos XIX e XX. Tanto que os debates sobre as florestas adquiriram novos aspectos. Já que a condição de civilizado relacionava-se com a forma como as árvores passaram a ser vista pela sociedade. De lugar escuro que representa a ignorância, adquiriram feições novas, dentre as quais, a econômica, garantindo um aumento nas rendas públicas, pois a madeira deveria ser utilizada em construção de casas e navios. Thomas explica que “desde o século XIII, havia um comércio estabelecido de madeira para a construção e lenha”17, sendo que a prática de derrubada de árvores foi considerada crime.18 Esse aspecto é importante por demonstrar o quanto o homem passou a se apoiar no extrativismo natural, buscando novas riquezas nas florestas. Neste caso, a economia da borracha THOMAS, Keith. O homem e o Mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 15 UGARTE, Auxiliomar. Sertões de Bárbaros: o mundo natural e as sociedades indígenas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos (séculos XVI-XVII). Manaus: Editora Valer, 2009, p. 523. 16 Dentre os cametaenses destacam-se os bispos Dom Romualdo de Seixas e Dom Romualdo de Sousa Coelho, para mais informações ver: MOCBEL, Alberto Móia. Lembranças e esperanças. Belém: Grão-Pará, 1996. 17 ________. O homem e o Mundo natural, p. 281. 18 A Lei Florestal proibia a invasão, o desperdício e a erradicação. Um proprietário que vivesse sob sua jurisdição não podia cortar suas próprias árvores sem permissão de quem de direito. ________. O homem e o Mundo natural, p. 285. 14

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demonstrou o quanto era importante na condução do desenvolvimento do estado. Por isso, o período da Bellé Époque19 caracterizava-se como de grandes transformações, cujo imaginário persiste até os dias atuais. Neste cenário de heranças, o pintor passou a colocar na ordem do dia imagens representativas da cidade de Belém e de seus habitantes. Ou seja, passou a confrontar os elementos característicos da natureza amazônica, no cotidiano da cidade. Por esta razão, Cotta passou a conceituar o tema da arte, explicando a questão do ensino público na construção de valores, que conduziriam o povo em direção aos valores intelectuais e moral, os quais conduziriam o homem à formação de uma fortuna material. O ensinamento público é evidentemente o grande dever de um governo, conduz este, ao fim de todos os interesses de um povo; dá valor à revelação intelectual e moral assim como a fortuna material. O esplendor das artes não somente indica o mais alto grau de civilização de uma sociedade, como é o sinal mais claro de prosperidade que indica a preponderância de seu comércio e de suas indústrias. Iguala os menores países às maiores nações20.

Por conseguinte, o pintor e caricaturista Cotta demonstrava uma preocupação com o ensino público de valorização das artes. Para ele o ensino deveria dar conta de assegurar um “alto grau de civilização” da sociedade, o que levaria a certa igualdade entre as nações. As ideias de Cotta estavam, portanto, de acordo com os valores que haviam sido defendidos por outros intelectuais da época. Evidencia-se que a contribuição dos comerciantes e negociantes europeus foi importante na formação de um imaginário de civilidade e na construção da identidade amazônica. Duque-Estrada ao fazer referência aos “estadistas”, destacava que “nos nossos dias, viram nas belas artes o meio prático de elevar o nível moral geral”21. Ao lado destes conceitos, a história da pátria deveria estar presente na vida dos estudantes brasileiros, por esta razão diversos trabalhos foram editados, cuja finalidade residia na apresentação dos heróis nacionais, ao mesmo tempo em que construiriam uma história da nação. Analisando o contexto, Cotta, nascido no final século XIX, provavelmente teve contato com a produção pictórica e escrita do paraense Theodoro Braga, que publicou, em 1898, “Pontos de

Sobre a Belle Époque na Amazônia Ver: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a belle-époque, 18701912. 3ª ed. Belém: Paka-Tatu, 2010. DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 20 COTTA, Andrelino. Considerações sobre artes decorativas: A aplicação da nossa flora e fauna nos produtos industriais. Revista A Semana, Belém, Belém, 18/05/1935. Ano 17, nº 847. Não paginado. 21 DUQUE ESTRADA, Osorio. O norte Impressões de viagem. Porto. Livraria Chardron, 1909, p. 43. 19

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História do Pará”, essa obra foi considerada importantíssima na construção de uma identidade nacional daquele contexto22. Quando o pintor Cotta atuava na revista A Semana, outro trabalho de Raymundo Proença e Silvio Nascimento intitulado “Noções de história da pátria” foi publicado em 1926 e, destinava-se aos alunos que cursavam o 3º ano do curso elementar. Este pequeno livro era uma espécie de manual, que se destacaria como as “primeiras e as mais remotas balizas que norteariam a vida do futuro cidadão”23. Portanto, os jornalistas e o pintor estavam inseridos neste grupo, transformaram-se em sujeitos que foram capazes de disseminar a cultura, de modo a intensificar o processo de construção e formação da opinião pública. No caso específico, as caricaturas vinham acompanhadas de narrativas curtas, sintéticas, tensas, enxutas, contos-casos, ou seja, textos relâmpagos. Allan Poe afirmou que: O Progresso realizado em alguns anos pelas revistas e magazines não deve ser interpretado como quereriam certos críticos. Não é uma decadência do gosto... É, antes, um sinal dos tempos; é o primeiro indício de uma era em que se irá caminhar para o que é breve, condensado, bem digerido, e se irá abandonar a bagagem volumosa; é o advento do jornalismo e a decadência da dissertação. Começa-se a preferir a artilharia ligeira às grandes peças. Não afirmarei que os homens de hoje tenham o pensamento mais profundo do que há um século, mas, indubitavelmente, eles o têm mais ágil, mais rápido, mais reto... 24.

O pensamento acerca da imprensa e da sua evolução literária, demonstrava claramente a forma como as informações passaram a chegar ao público letrado. Contudo, a partir da introdução dessas imagens, divertidas, o não letrado poderia ver os caricatos sociais expressos nas páginas das revistas e dos jornais.

A Caricatura da Semana: os tipos carnavalescos A palavra caricatura vem do italiano caricare, que significa carregar ou sobrecarregar, a partir dos traços distintivos. Esse estilo aparece tardiamente na arte ocidental, por isso o termo e sua pratica iniciam em fins do século XVI, tendo como inventores os irmãos Carraci, considerados artistas de renome da Academia de Bolonha. Neste caso, a caricatura trabalha com

CASTRO, Raimundo Nonato de. Sobre o brilhante efeito: história e narrativa visual na Amazônia em Antônio Parreiras (1905-1908). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2012, p. 71. 23FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos modernos: uma história social da arte e da literatura na Amazônia, 1908-1929. (Tese de Doutorado), São Paulo: Unicamp, 2001, p. 116. 24 POE, E. A. Excertos da marginália. In: Ficção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 986. 22

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relação entre semelhança e equivalência, procurando construir um conjunto, que aborda brincadeira ou zombaria,

Os defeitos dos traços copiados são exagerados e acentuados desproporcionalmente, de modo que, no todo, o retrato é o do modelo, enquanto que seus componentes são mudados25.

É possível afirmar que nem sempre as semelhanças entre o caricaturado e seus traços caricaturantes residem na equivalência, pois a identidade pode evidenciar elementos capazes de representar o que está sendo apresentado. Na grande quantidade de trabalho apresentado ao longo da vida, Cotta demonstrou em poucas linhas uma deliberação com propósitos jocosos, ou seja, existe uma característica cômica pela potencialidade de descontruir objetos, ao mesmo tempo em que constrói elementos novos.

25

GOMBRICH, E. H. O experimento da caricatura. In: Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p.289. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Imagem 4: Revista A Semana. Belém, 27/10/1934.

Nesta imagem observa-se a forma como o carnaval foi apresentado, nota-se o galanteador, tanto que o título “Galanteria de baile”, dá ideia do que está acontecendo no momento da dança. É possível ver a utilização de uma passagem do Novo Testamento, em que a dança e a sensualidade foram usados com o propósito de conquista, adentrando à escrita do texto, estabelecendo uma interessante metáfora. No entanto, essa é uma das últimas caricaturas de autoria do pintor Cotta e que vão estar presentes nas páginas da A Semana. Portanto, uma imagem que destaca um dos caracteres. O típico conquistador.

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Imagem 5: Revista A Semana. Belém, 01/03/1924.

A capa da revista demonstra de maneira clara a forma como o carnaval era visto, ou seja, percebe-se inicialmente, certa inocência, pois a dama não está com o seu Pierrot, mas cercada de crianças. Observa-se uma espécie de iniciação ao carnaval pelas crianças. A colombina impõe-se, encarando o leitor demonstrando sua grandeza para o carnaval. As crianças de mãos dadas fazem um círculo rodeando a dona da cena. A imagem é carregada de cores, ou seja, visualizamos uma cena de alegria, impregnada de valores conservadores. Dito isso, recorremos aos textos que seguem a revista de 01 de março de 1924. Intitulado “Entre os “pierrots e as pierrettes”, fica evidente a relação com a figura 4, ou seja, o local de realização do evento era o elegante “vestíbulo do Palace”, tratava-se do baile realizado no “sabbado último”, aquele evento enchera de orgulho a todos “pela fidalga e radiosa linha com

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que nosso mundanismo se apresentou naquele centro de irradiação elegante”26. Os eventos realizados naquele local eram considerados um dos mais animados da cidade, pois Os bailes do Palace dominaram o Carnaval. São a expressão mais palpita do Prazer nessa época bulhenta, em que os maridos perdem a cabeça, as esposas perdem... os maridos, as deliciosas “girls” e os “cobrinhas” mail-os “gaviões” encontram larga justificação á loucura dos seus trajos e dos seus propósitos...27

Depreende-se a forma como os homens se relacionavam neste período. Havia um clima propicio às conquistas, conforme expressa na figura 3, ao mesmo tempo em que a participação dos casais reforçava receio, na medida em que os “gaviões” estavam presentes e de olho, seja nas “girls” ou nas mulheres casadas que “perdem...”. Por outro lado, os homens casados também estão ai sujeitos as “deliciosas ‘girls’”, portanto, aquela inocência presente na capa da revista deveria ser buscada, embora o texto demonstre outra preocupação. A imagem da inocência contraria o editorial. O carnaval destacava-se como o momento das conquistas. Dager autor do texto, elencava os “flirts” onde os enfeitados procuravam as suas “pierrettes”, alguns como “o respeitável sr. Alberto Salles” que “abarracou junto a lindo typo esbelteza e graciosidade”, de modo respeitoso a chamou de “flor esculptural”. Desta forma, o momento poderia ser adequado para que o sujeito realizasse uma promessa de casamento, como o fez Maranhão da Costa que, Estava tomado de comunicativo enthusiasmo, e assim cantava lyricamente as vésperas de uma santa alegria, afirmando-nos que desta vez casaria, trocando essa vida agitada da “urbs” pela beleza fecunda dos campos de Marajó28.

Embora esse fosse o posicionamento que muitos buscavam, no caso específico dos galanteadores, a pergunta que o autor fazia aos demais era “É que ele pretende ser fazendeiro...”29. Portanto, o autor concluía sua observação com sarcasmo em relação ao Maranhão da Costa. As fantasias dos carnavalescos também geravam curiosidade, na medida em que as mesmas deveriam ser originais, no entanto, era possível reconhecer o fantasiado mesmo no caso de não pronunciar palavra alguma, como foi o caso do baile realizado no Palace-Theatre, onde o coronel Carlos Rego, Esse bravo militar que fala mais do que a preta do leite. Convem frizar que a preta a quem me refiro não pertence aos cincumspectos cavalheiros Henrique, Angelo, Bruno ou Jayme Leite ou a outros que taes. O leite da preta é leite mesmo. DANGER. Entre os “pierrots” e as pierrettes. Revista A Semana, Belém, 01/03/1924 ________. Entre os “pierrots” e as pierrettes. 28 ________. Entre os “pierrots” e as pierrettes. 29 ________. Entre os “pierrots” e as pierrettes. 26 27

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Pois, bem; o cornonel Carlos Rego, que na época carnavalesca tem sempre fantasias originaes, mal entrou no Palace foi logo conhecido. É verdade que ele não falou, não pronunciou uma palavra... Mas, Santo Deus! Aquelle andar marcial do belicoso militar é tudo30.

Como a revista publicava também as fotografias dos carnavais, convém destacar que Cotta realizava uma espécie de contra ponto entre o que estava na fotografia e a caricatura. Na edição de 28 de março de 1925, a “Reminiscência do último carnaval” deixou evidente nas representações fotográficas, esse posicionamento. No caso, o grupo de “girls” pousou para aquele instantâneo, em pose, sobre a bandeira do Grêmio lusitano.

Imagem 6: Revista A Semana. Belém, 28/03/1925.

O grupo fotografado chama atenção pelo grande número de moças que compõe a cena. O evento ocorreu num dos clubes sociais mais tradicionais da cidade. Portanto, tratava-se de um modo a ser celebrado, dando um aspecto da modernidade belenense. Nesta imagem, fica evidente o comportamento pré-carnaval, pois durante os festejos “As colombinas a um canto, sangram um beijo de ‘rouge’ no rosto enfarinhado dos seus pierrots...”. Nos bailes os casais “rodopiavam frenéticos, embalados sensualmente pela música desenfreada, epiléptica de uma ‘jazz-band’”. Nos cantos dos salões viam-se os grupos, “agarradinhos, três, quatro, oito, dez pares segredam cavatinas de amor, juras de fidelidade”. 30

SIMAS, Caio. Gatafunhos. Revista A Semana, Belém, 01/03/1924. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Somavam-se ainda outros elementos que eram utilizados pelos homens e mulheres que, de certo modo, justificavam esse estado de “irresponsabilidade” durante os bailes de carnaval, pois o “ether embriaga, esguichado pelos lança-perfumes metálicos, estylo canhão 420”.

Imagem 7: Revista A Semana. Belém, 09/02/1929.

O texto intitulado “No baile de máscaras” veio acompanhado por essa caricatura de Cotta. A imagem, embora pequena, ocupa o centro da página, de modo que o olhar do leitor era conduzido à mesma. Após a primeira impressão iniciaria a leitura, que por só dá uma dimensão Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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das imagens na composição do texto, formando uma representação da “pierrette” que tem um olhar perdido. Embora o historiador ao utilizar as imagens, como recurso e fonte, não pode e nem deve ser limitado a “evidencia” no sentido estrito do termo, pois as mesmas, segundo Peter Burke constituem evidencias históricas31, no caso em análise, as caricaturas de Andrelino Cotta demonstram um contexto e a forma como aquela sociedade relacionava-se com o carnaval. Nem só carnaval: a caricatura de Cotta e a representação dos problemas sociais As primeiras produções de Andrelino Cotta para A Semana dão conta de uma realidade urbana, que de um lado destacava uma Belém moderna, em muitos momentos da revista, com exibição de fotografias de pontos centrais da cidade, com aspecto moderno e civilizado e, por outro exibia as caricaturas que contrariavam esse aspecto, pois mostrava uma cidade sem estrutura e com a presença de animais, como o caso do jacaré, que amedrontou os trabalhadores da limpeza pública.

Imagem 8: Revista A Semana, Belém, 16/04/1921.

Nesta imagem, a situação de contraste entre uma cidade moderna e, ainda carregada de elementos rurais se faz presente na abordagem do caricaturista, claro que o texto contribui para 31

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: Edusc, 2004. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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reforçar esse imaginário. Ainda no mesmo número da revista publicada em março de 1921, outra imagem destaca uma situação capaz de contrariar as próprias representações da cidade europeizada e que, em 1921, deixava evidente que precisava ampliar a sua área de limpeza e embelezamento.

Imagem 9: Revista A Semana, Belém, 16/04/1921.

O texto desta imagem é bastante revelador ao destacar que apesar dos animais circularem pelas avenidas da cidade “são mortos sempre a pauladas, nas colunas dos jornais”. Observe a forma como o trabalhador se posiciona, mesmo com uma onça a observá-lo continua a trabalhar na capinação de uma grama crescida, diferente da imagem anterior, na qual o trabalhador assustase com a presença do jacaré. Um detalhe interessante na produção de Andrelino Cotta reside no retorno do personagem que deu muito trabalho aos políticos cariocas, especialmente, durante a Revolta da Vacina, em 1904: O Zé Povo.

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Imagem 10: Revista A Semana, Belém, 11/06/1921.

O Zé Povo, de Andrelino Cotta, é um sujeito que apesar de bem vestido, aparenta ser uma figura “abestalhada”, trêmulo, sorridente e, que aproveita para cobrar uma atitude da banda, haja vista que poderia tocar qualquer coisa, “toca ahi qualquer cousa, pois para isto foi a banda gentilmente cedida”, neste caso não há uma organização. A imagem, portanto, é uma crítica a “Guarda civil” (figuras 1 e 2). Fica evidente certa desorganização do grupo, porém o que interessa é a forma como o personagem criado por Cotta é representado. Leonardo Pereira analisou a participação ativa deste personagem naquele evento e a forma como foi representado nas charges de Leonidas nas páginas do Correio da Manhã (Rio de Janeiro, 11/10/1904), ou mesmo nas páginas do Malho (Rio de Janeiro, 12/04/1904). Em ambos, as imagens do personagem é uma figura grotesca, sem educação e mal vestido32.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. 32

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Imagem 11: O Malho, Rio de Janeiro, 12/11/19041.

Os traços são bastantes diferentes, ao compararmos o personagem. No entanto, reaparece nas páginas da A Semana, demonstrando certa influência, que o pintor cametaense recebeu dos chargistas cariocas, dentre os quais do chargista Leônidas. O contexto é outro, contudo, as ideias de modernidade contrariavam a forma como as autoridades passaram a impor sua vontade sobre a população. Considerações finais As imagens, produzidas neste contexto, reforçaram as discussões vivenciadas no Brasil do início do século XX ao demonstrar uma sociedade em ebulição, com a necessidade de criar novos mecanismos de divulgação das suas ideias. A competência para tanto caberia aos dirigentes políticos, que procuravam representar estes avanços, nesta “nova” sociedade, a partir dos preceitos caracterizadores da modernidade, pela forma de organização político-social. Contudo, havia nas cidades elementos que eram caracterizados pela marginalização, de modo que não eram representados nas novas simbologias e, quando o eram, estavam colocados na condição de inferiores, ou seja, estavam em locais distante do centro civilizado, como na própria representação caricata dos trabalhadores da limpeza. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Ao observarmos os trabalhos de Cotta nos deparamos com cenas do cotidiano urbano e, que estavam carregadas de crítica social à forma como a cidade era governada. Pois, mesmo na revista A Semana a qual estava ligada aos grupos políticos do período, não deixa de representar os aspectos de abandono pela qual a cidade passava em especial nas áreas periféricas. Andrelino Cotta foi uma das referências nesse tipo de arte, seja pela grande quantidade de elementos construídos para a história da arte no Pará, ou por sua participação na revista. Demonstrava competência para produzir caricaturas, que davam visualidade à cidade de Belém e aos seus habitantes. A revista era considerada de grande importância para a sociedade paraense, haja vista que circulou entre a intelectualidade local. Por esta razão deveria contar com a presença de sujeitos capazes de conceituar e apresentar os principais elementos que compunham a sociedade.

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Crises, polarizações e lutas: notas sobre o processo político que derrubou o governo João Goulart (19611964)

Artigos

Crises, struggles and polarizations: notes on the political process that overthrew the government of João Goulart (1961-1964) Natália Cristina Granato Mestranda em Sociologia Universidade Federal do Paraná nataliagranato@hotmail.com Recebido: 27/10/2014 Aprovado: 27/11/2014 RESUMO: O presente artigo pretende expor, de maneira sintética, o processo político que culminou na derrubada do presidente João Goulart por forças golpistas civis e militares contrárias ao seu governo. Entendemos que tais oposições se acirraram a partir do segundo governo de Getúlio Vargas e se aprofundaram entre o momento da posse de Goulart e o golpe de 1º de abril de 1964. Destacaremos quais eram os projetos políticos dos partidos, Forças Armadas e sindicatos nessa conjuntura, bem como suas divisões e antagonismos. Nesse sentido, defendemos que tais grupos se polarizavam principalmente frente às questões das reformas sociais e à ascensão dos movimentos reivindicatórios. PALAVRAS-CHAVE: Golpe de 1964, Governo João Goulart, Divisão política. ABSTRACT: This article seeks to explain, succinctly, the political process that culminated in the overthrow of President Joao Goulart by military coup forces and civilians contrary to their government . We believe that such opposition were incited from second government of Getúlio Vargas and deepened between the time of Goulart’s possession and the coup of April 1, 1964. We will highlight the designs which were political parties, military and trade unions at this juncture and its divisions and antagonisms. Accordingly, we hold that such groups are polarized mainly facing the issues of social reforms and the rise of movements vindicated. KEYWORDS: 1964 Coup, João Goulart government, Political division. No início dos anos 1960, o Brasil vivia um momento de efervescência política. Os movimentos reivindicatórios das cidades e do campo encontravam-se em franca ascensão desde a década de 1940, o que era uma novidade histórica para a sociedade brasileira1. A organização

Lutas camponesas sempre estiveram presentes na sociedade brasileira, como observado nas Guerras de Canudos, Contestado ou no movimento cangaceiro. Porém apenas a partir das décadas de 1940 e 1950 o movimento camponês começou a se organizar em Ligas camponesas e sindicatos rurais, intensificando-se nos anos 1960, com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, a fundação da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), reconhecimento, pelo Ministério do Trabalho, de vários sindicatos rurais a partir do governo Goulart. Nesse período, tanto o campo quanto a cidade estavam em evidência política no que se refere às 1

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sindical urbana é uma realidade desde o início do século XX, sendo estruturada a partir da Revolução de 1930, momento de mudança na relação entre o Estado e o movimento sindical urbano. Se, durante a República Velha (1889-1930), a questão social era considerada um “assunto de polícia” nas palavras do ex-presidente Washington Luís (1926-1930), a partir de 1930 a questão social foi efetivamente levada à sério como uma política de estado, com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio2. Getúlio Vargas promulgou uma legislação trabalhista que reconhecia a legalidade desses atores sociais na arena de lutas sociais e políticas. Porém, esse aparato legal só previa direitos aos trabalhadores urbanos, excluindo-se, portanto, a maioria da população brasileira que se encontrava no campo. Foi somente no governo do principal herdeiro político de Vargas que as lutas reivindicatórias rurais combinadas com as urbanas passaram a ter um espaço de mobilização política. Com o governo Goulart, a sindicalização rural e a extensão dos direitos trabalhistas para os trabalhadores do campo foram colocadas efetivamente como parte das consequências das lutas camponesas que emergiram no decorrer da década de 1950 (principalmente com a atuação das Ligas Camponesas). O governo Goulart foi caracterizado, em linhas gerais, por essa ascensão social e política dos movimentos populares, que eram a principal base de apoio político ao presidente, e também pela promoção e defesa das reformas de base, como resposta à crise econômica que abalava o país. Por outro lado, houve paralelamente a “organização e ofensiva política dos setores militares e empresariais” e um inédito “acirramento da luta ideológica de classes”, além da “crise do sistema partidário”.3 Essa conjuntura desencadeou um golpe militar no dia 1° de abril de 1964, que, segundo Caio Navarro Toledo, tratou-se de: um golpe contra a incipiente democracia política brasileira, um movimento contra as reformas sociais e políticas, uma ação repressiva contra a politização das organizações dos trabalhadores (no campo e nas cidades); um estancamento do amplo e rico debate ideológico e cultural que estava em curso no país4.

Para entendermos esse contexto que ocasionou o golpe de 1964, devemos retomar alguns pontos da história política nacional. Dessa maneira, destacaremos alguns dos pontos pertinentes suas lutas e reivindicações sindicais. Ver MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes, 1986. 2 A criação do Ministério do Trabalho trouxe consigo um processo de sindicalização que proibia as chamadas “ideologias sectárias” (um claro combate às organizações anarquistas e comunistas, hegemônicas no movimento sindical até então) e criava os pelegos, impondo delegados nos sindicatos que, por sua vez, eram órgãos auxiliares do Estado. Ou seja, reconhecia-se a questão social, mas ao mesmo tempo delegava-se ao Estado a função de controlar e tutelar as organizações sindicais. Ver RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1985. 3 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, n°47, p.13-28, 2004. 4 ______. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia, p.15. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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levantados pelo autor acima que explicam em grande parcela tal ato político. Problematizaremos o processo de ascensão dos movimentos sociais urbanos e rurais, o acirramento da luta ideológica da sociedade brasileira verificados nos principais partidos políticos surgidos no período pós-1945 (ou seja, PSD, PTB, UDN, PDC). Destacaremos principalmente os diferentes projetos que esses partidos políticos tinham, que ilustram a divisão na sociedade brasileira na conjuntura do período pré-golpe. No conjunto dessas reflexões será destacado em linhas gerais o processo político que derrubou o governo Goulart e instalou a ditadura militar a partir de 1964. O quadro político-partidário do período pós-1945 O processo de ascensão das lutas populares diretamente relacionado às políticas do Estado brasileiro se desenrolou, em grande parte, devido à linha política adotada por Getúlio Vargas a partir de 19305 e continuada por seus seguidores, destacando-se João Goulart. Getulistas se organizaram em partidos políticos a partir de 1945, dividindo-se entre PSD (Partido Social Democrático) e o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), o primeiro ligado à Vargas a partir da máquina das interventorias nos estados criados durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945); e o segundo ligado à burocracia sindical do Ministério do Trabalho, ideologicamente identificados com o legado trabalhista de Getúlio Vargas. Esses dois partidos mantiveram alianças nacionais durante as eleições e mandatos dos presidentes Eurico Gaspar Dutra (1945-1950)6, Getúlio Vargas (1951-1954) e Juscelino Kubitschek (1956-1960). Em todas essas eleições, PSD e PTB venceram a principal força oposicionista anti-varguista, a UDN (União Democrática Nacional). A aliança PSD-PTB perdeu apenas nas eleições de 19607, na qual o candidato Jânio Quadros, do PTN (Partido Trabalhista Nacional), apoiado pela UDN e pelo PDC (Partido Democrata Cristão) venceu o pleito contra o general Teixeira Lott (do PSD, apoiado pelo PTB). Levando-se em consideração essas vitórias eleitorais de candidatos à presidência que se beneficiavam da associação de seus nomes com a herança política de Vargas, percebe-se a grande Reconhecemos estudos de expoentes historiadores do sindicalismo brasileiro, como Edgard Carone, que a emergência do movimento sindical urbano tem início com a instauração da república, dá sinais de amadurecimento com as greves da década de 1910 e passa a se organizar mais efetivamente na década de 1920. Ver CARONE, Edgard. Revoluções no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Buriti, 1965. No entanto, entendemos que 1930 foi “o marco divisor da história do sindicalismo brasileiro”, pois o Estado “passou a ser o principal interlocutor das classes assalariadas” no processo de “oficialização” do sindicalismo brasileiro, que rompeu profundamente com o passado, conforme destaca Leôncio Martins Rodrigues (2007). A esse respeito, ver RODRIGUES, Leôncio Martins. “Sindicalismo e classe operária (1930-1964)”. In FAUSTO, Boris; GOMES, Ângela Maria (direção). História Geral da Civilização brasileira. Tomo 3: O Brasil republicano. Volume 10: Sociedade e Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 6 O general Eurico Gaspar Dutra foi eleito com apoio do seu partido, o PSD, e também do PTB. No decorrer de seu mandato, o apoio do PTB ao seu governo foi retirado principalmente devido à política sindical repressiva e autoritária característica do período que governou. 7 Como as eleições para vice-presidente da república eram separadas das de presidente, o candidato João Goulart, da chapa PSD-PTB, conseguiu a vitória sobre o candidato a vice-presidência da chapa de Jânio Quadros, o udenista Milton Campos. 5

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pertinência do legado social, político e ideológico que esse político marcou na conjuntura analisada. Juntamente com isso, no entanto, desenvolveu-se uma grande oposição que se estendeu no governo Goulart organizada principalmente no interior da UDN. A UDN, assim como o PSD e o PTB, se consolidou como partido político em 1945. Fruto de um movimento de oposição à ditadura de Vargas, o partido possuía uma forte proximidade com os “círculos oligárquicos” característicos da República Velha8. Ou seja, grande parte de suas insatisfações políticas contra Vargas provinha do fato de que este, com a Revolução de 1930, passou a incorporar anseios sociais de diferentes camadas da população (como parte da então incipiente burguesia industrial, classes médias e classes trabalhadoras urbanas)9 que anteriormente eram excluídas do processo político. A UDN expressava na sua política certa “nostalgia” com relação às práticas da República Velha, principalmente na exclusão de setores populares nas lutas políticas. Segundo Maria Victória Benevides10, a UDN era contra o voto dos analfabetos, as reinvindicações grevistas em prol do aumento salarial, a extensão da legislação trabalhista aos trabalhadores rurais, entre outras demandas. Seu projeto político era, portanto, oposto à política trabalhista e se concretizava em ações contra os governos apoiados por Vargas e seus partidários. O maior exemplo dessa descompatibilização se verifica na crise que culminou no suicídio de Getúlio Vargas enquanto este era presidente. Promovendo um governo em defesa do nacionalismo econômico11 e com maior proximidade com a principal base política do PTB (os trabalhadores urbanos), tais ações desagradavam a oposição, que o atacava diariamente nas tribunas políticas e nos grandes jornais12. João Goulart, ministro do Trabalho desde junho de 1953, intermediava a relação entre o governo e os sindicatos com base no diálogo com as diversas correntes do sindicalismo, incluindo os comunistas, nas negociações em greves e na defesa da valorização do salário-mínimo13 para evitar a deflagração de novas greves. Tais políticas eram

MICELI, Sérgio. Carne e osso da elite política brasileira pós-1930. In: FAUSTO, Boris; GOMES, Ângela Maria (direção). História Geral da Civilização brasileira. Tomo 3: O Brasil republicano. Volume 10: Sociedade e Política, (capítulo 11). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.668. 9 Somando-se a isso, Vargas, ao mesmo tempo atendia os interesses das classes que detinham o poder no período pré-1930. O processo inaugurado com a Revolução de 1930 não deixou de promover, por exemplo, os interesses das classes dominantes cafeeiras e das antigas oligarquias agrárias. 10 BENEVIDES, Maria Victoria. A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p.278. 11 O nacionalismo econômico era expressado pela defesa da PETROBRAS e do monopólio estatal do petróleo, das grandes empresas estatais (Cia. Vale do Rio Doce, CSN, etc), do projeto de criação da ELETROBRAS, dentre outras ações. 12 Especialmente a Tribuna da Imprensa, de propriedade do udenista Carlos Lacerda. O único jornal que não fazia oposição a Getúlio Vargas era o Última Hora, de Samuel Wainer. A respeito desse apoio, ver MARTINS, Luis Carlos dos Passos. Os caminhos do Profeta: a autobiografia de Samuel Wainer em Minha razão de viver. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, p.111-126, dez. 2007. 13 Nessa conjuntura, o custo de vida e a crise econômica aumentavam, juntamente com o movimento reivindicatório em prol de maiores salários e pelo direito de greve. Ver DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989. 8

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criticadas pela UDN, que via no movimento operário o “caos” e a “desordem”. João Goulart era visto como insuflador e provocador da luta de classes pelos udenistas, que o acusava ainda de ser o promotor de uma suposta “República Sindicalista” no Brasil. Somada a essas críticas, Vargas enfrentou acusações de corrupção no seu governo, afundando ainda mais numa forte crise política que faz com que ele se suicide, deixando a presidência para o seu vice, Café Filho. A oposição da UDN desembocou em algumas crises políticas dessa conjuntura. Nas eleições presidenciais de 1955 se recusou a reconhecer a validade dos resultados das eleições, abrindo uma crise que amaçava a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart. A ação do Exército liderada pelo general legalista Teixeira Lott foi o fator decisivo para a posse de ambos os políticos14. A posse de Jânio Quadros não foi combatida pela UDN, visto que este era o candidato que ela apoiava. Durante o mandato de Jânio Quadros, a UDN ocupou a maioria dos cargos e ministérios do seu governo. Se nas eleições anteriores não conseguiu vencer a aliança PSD-PTB por falta de apelo popular, isso foi superado graças a Jânio Quadros, um político que se declarava apartidário e acima dos partidos políticos. Quadros se destinava ao eleitor de todas as classes com discurso moralizador ao estilo da UDN, ao mesmo tempo em que defendia o combate à inflação e à injustiça social15. Seu ideário político era vago e impreciso, ao passo que a UDN era partidária de um estilo político em clara oposição ao getulismo, especialmente no que diz respeito à política social, além de outras questões, como por exemplo, a posição sobre o capital estrangeiro e a intervenção do Estado na economia. Em síntese, visualizamos a polarização política que se dividia entre herdeiros do legado político de Vargas, representados pelo PSD e em maior grau (no que se refere ao plano ideológico) pelo PTB, e também pelo anti-getulismo característico da UDN. É importante ressaltar que todos os partidos políticos citados (PTB, PSD, UDN, PDC) faziam referências à necessidade de realização de reformas como resposta ao declínio econômico. Paralelamente à essa crise, as reivindicações sociais no campo e nas cidades vinham crescendo, a urbanização e a industrialização estavam em marcha. Os representantes políticos, nas esferas regionais e nacional teriam de adotar e defender um modelo que respondesse de maneira satisfatória as demandas que o processo de modernização criava. Os projetos de “reformas” defendidas pelos atores políticos se diferenciavam dependendo dos grupos políticos dos quais cada um deles pertenciam. Os partidos que mais enfaticamente se definiam como reformistas, como o PTB e o PDC, ganhavam cada vez mais apoio popular e eleitoral. Esse argumento é defendido por Gláucio Ary Dillon 14 15

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.191. ______. Brasil. de Getúlio a Castello (1930-64). Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Soares16, que ainda salienta o declínio eleitoral dos partidos com orientação conservadora (como o PSD, a UDN e o Partido Republicano, PR). Polarização política e ideológica, defesa da necessidade de reformas sociais, crises políticas e econômicas, ascensão dos movimentos sociais, foram em suma, o que caracterizou o processo político brasileiro no período pré-golpe de 1964. Passaremos, nesse momento, a contextualizar historicamente o processo que desembocou no golpe de 1964. A renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart: da crise da legalidade ao fim da “solução parlamentarista” Os primeiros meses do governo Jânio Quadros foram caracterizados, segundo Skidmore17, por políticas de combate à inflação e congelamento de salários que causaram insatisfações populares. Tais medidas, no entanto, não melhoraram a situação econômica do país (que se encontrava em declínio). Seu governo também foi caracterizado por medidas polêmicas de cunho moralista e pela defesa de uma política externa independente18. A ambiguidade característica de seu governo causou seu isolamento por grande parte dos políticos que o apoiavam e críticas de amplos setores ao seu governo. Jânio Quadros renunciou à presidência da república. Sua renúncia não repercutiu manifestações de apoio popular para que não renunciasse ou retornasse à presidência19 e instalou uma grave crise política no país. Os ministros militares de Jânio Quadros não aceitaram a posse de João Goulart, que se encontrava na China, em viagem oficial. De acordo com Caio Navarro de Toledo20, os ministros militares desaconselharam o retorno de Goulart e estavam decididos a detê-lo no momento em que pisasse em território nacional, ao mesmo tempo em que a imprensa conclamava os militares à tarefa de assumir o poder. Para os militares e os setores civis/políticos golpistas, João Goulart na presidência levaria o país ao caos, anarquia e luta civil21. Acusavam João Goulart de ser agitador sindical, de dar cargos aos comunistas e elogiar a China, podendo até infiltrar comunistas nas Forças Armadas22. Por outro lado, havia os que defendiam a posse de Jango. Nas Forças Armadas, o maior exemplo de defensor da legalidade foi o Marechal Lott, o que provocou a sua prisão pelo

SOARES, Gláucio Ary Dillon. A democracia interrompida. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2001. SKIDMORE. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64). 18 Jânio Quadros condecorou o então Ministro da Economia de Cuba, Ernesto Guevara, o que lhe custou insultos vindos da imprensa, principalmente de Carlos Lacerda e sua Tribuna da Imprensa. Ver BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República. Volume 4: de 1961 a 1967. São Paulo, Alfa-Ômega, 1976, p.14. 19 SKIDMORE. Brasil de Getúlio a Castello (1930-64)., p.250. 20 TOLEDO. O Governo Goulart e o Golpe de 64, p.11 21 ______. O Governo Goulart e o Golpe de 64, p.12. 22 SKIDMORE. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), p.252. 16 17

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ministro da Guerra23. Isso desencadeou uma cisão no Exército entre golpistas e legalistas. O movimento em prol da Legalidade ganhou Consistência com a atuação do então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, petebista e cunhado de João Goulart, que determinou a instalação de uma rede de emissoras de rádio em prol da posse de Jango conhecida como “Cadeia da Legalidade”. Segundo Toledo24, apesar da repressão, várias manifestações populares lideradas pelos sindicatos ocorreram nesses dias, bem como greves políticas de setores dos transportes, bancários, metalúrgicos, portuários unidos em uma greve nacional liderada pela CGG (Comando Geral da Greve, futuro CGT) em prol da legalidade agitaram o país. Como bem coloca Skidmore25, a contestação a posse de Jango era tida como um desmerecimento do voto de milhões de brasileiros depositados em João Goulart para a vice-presidência da república. No centro dos debates estavam os governadores, líderes da Igreja e boa parte da classe média, que apoiavam Goulart “sob observação”, pois este era tido como “suspeito”, e poderia instalar uma “República Sindicalista Peronista” no Brasil. Sua permanência na presidência dependeria da sua capacidade em manter o equilíbrio político26. Diante da divisão do Exército e das manifestações públicas a favor da posse de Jango, o Congresso Nacional, sob liderança dos dois grandes partidos conservadores (PSD e UDN), articularam a “Solução de Compromisso” com a aprovação da emenda que instituiria o sistema parlamentarista no país, com 236 votos a favor e 55 contra27. João Goulart aceitou a “solução” que restringia os seus poderes e transformaria seus ministros eleitos pelo Congresso Nacional em detentores de boa parcela de poder. A tese de que a crise que culminou na deposição do presidente João Goulart em abril de 1964 tem origem na crise de 1961 de aceitação de sua posse é compartilhada por parcela significativa e de quem analisou o período (dentre os próprios atores políticos da conjuntura que escreveram ou relataram suas memórias, jornalistas, historiadores e cientistas sociais). Nessa crise está presente a influência da Forças Armadas na política brasileira28, a polarização políticoideológica que dividia o país na aceitação da posse do vice-presidente, a facilidade de se modificar a Constituição de 1946 no que diz respeito ao regime político (parlamentarismo e

SKIDMORE. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), p.252. TOLEDO. O Governo Goulart e o Golpe de 64, p.18. 25 SKIDMORE. Brasil de Getúlio a Castello (1930-64), p.254. 26 ______. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), p.254. 27 TOLEDO. O Governo Goulart e o Golpe de 64, p.19. 28 Maria do Carmo Campello de Souza assinala que as Forças Armadas se expandiram qualitativamente e quantitativamente a partir da Revolução de 1930, mantendo independência em relação às políticas de Getúlio Vargas. Nesse sentido, o Exército surgiu como árbitro político do regime nos anos posteriores. Ver SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Alfa-Ômega, 1983, p.101. 23 24

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presidencialismo), e a organização das esquerdas sindicais em prol da sustentação popular de apoio ao presidente Goulart. O nascente sistema parlamentarista estava fadado ao fracasso, pois ele não reuniria forças para encarar a crise econômica herdada dos anos JK, caracterizada pelo endividamento externo e pelo crescimento da inflação. Esta tendia a se aprofundar. De acordo com Caio Navarro de Toledo (1983), o governo JK iniciou o descompasso entre o crescimento do setor industrial e o da agricultura, essa última cresceu 4,3%, taxa inferior a outros períodos. O crescimento industrial gerou aumento da população urbana e do poder de compra dos assalariados. Isso acentuou a demanda por alimentos. A produção agrícola para o mercado interno era insuficiente para atender essa demanda, que levou a “crises de abastecimento, gerando inquietações sociais e movimentos reivindicatórios de grande extensão nos campos e nas cidades”29. A solução para este problema, na visão dos trabalhistas, residia na estabilização econômica (crescimento e contenção da inflação) aliada a reformas estruturais no Brasil, que resolveriam as contradições do desenvolvimento industrial que vinha sendo colocado em prática até então. Goulart aceitou a “solução” parlamentarista e tomou posse no dia 7 se setembro de 1961, com um discurso de respeito à ordem constitucional, com ênfase na “harmonia e na união” pela luta em prol da emancipação econômica contra o subdesenvolvimento. O primeiro ministério parlamentarista foi o gabinete do primeiro-ministro Tancredo Neves, com duração de nove meses. O gabinete Tancredo Neves não conseguiu conter a inflação e os conflitos sociais que se exacerbaram com esse processo30. O novo gabinete foi presidido por Brochado da Rocha (PSD), com orientação reformista e de centro, e durou apenas dois meses. Sua principal medida consistiu em enviar ao congresso a antecipação do Plebiscito para o dia 07 de outubro de 1962, dia das eleições de renovação do legislativo e alguns governadores de estados. O congresso não aprovou essa iniciativa e uma nova greve geral foi decretada pelos sindicatos em prol da realização do plebiscito. Segundo Delgado31, as principais categorias envolvidas eram a dos operários navais, aeroviários, ferroviários, portuários, gráficos, petroleiros e têxteis. A greve foi exitosa, e o plebiscito ficou marcado para o dia 06 de janeiro de 1963, além das conquistas de revisão dos salários mínimos. Amplos setores da sociedade brasileira disseram não ao parlamentarismo no plebiscito de 06 de janeiro de 1963, numa proporção de 5 votos a 132. Tal proporção é motivada pelas crenças de que o regime parlamentarista era ineficiente do ponto de vista administrativo, TOLEDO. O Governo Goulart e o Golpe de 64, p.24. Ver BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart: As lutas sociais no Brasil (1961-1964). São Paulo: Editora da UNESP, 2010, p.149. 31 DELGADO, Lucília da Almeida Neves. O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964). Petrópolis: Vozes, 1986, p.58. 32 TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o Golpe de 64, p.39. 29 30

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pois a Constituição de 1946 era feita para um regime presidencialista, e a de que o Brasil precisava de um governo forte para responder à crise econômica e política. O governo presidencialista de João Goulart: divisões políticas e ideológicas A partir do presidencialismo, podemos analisar o governo Goulart de fato, pois apenas com esse regime havia a possibilidade de ação política e decisória por parte de Goulart que, como o visto anteriormente, estava impossibilitado de colocar em prática as reformas sociais e controlar a crise econômica sob o regime parlamentarista. Uma das primeiras medidas de seu governo foi a implementação do Plano Trienal. O Plano Trienal visava à profunda mudança estrutural na economia, pois os seus autores defendiam que problemas como a inflação tinham raízes estruturais, bem como o crescimento na economia só poderia ser retomado com a realização de tais reformas. Segundo Rafael Moraes33, Celso Furtado acreditava que a crise só seria solucionada com o aprofundamento da industrialização do país, que só ocorreria com reformas estruturais, especialmente a agrária34. O êxito do Plano Trienal dependia da aprovação, pelo Congresso, das reformas administrativa, tributária, bancária e, sobretudo, agrária. Essa última dependia de uma mudança na Constituição de 1946. João Goulart encontra sérias dificuldades quanto a isso, bem como tinha dificuldades em fazer com que os trabalhadores e os industriais aderissem ao Plano Trienal. O Congresso não aprovou as reformas com a rapidez que o Plano necessitava, e tanto os industriais quanto trabalhadores não aderiram ao Plano. A crise econômica e a inflação não cessaram35, o que fez com que a ação política de Goulart se voltasse para o outro pilar de seu governo: a promoção das reformas de base, em um momento em que suas principais bases de apoio político exigiam tais reformas e estavam em plena efervescência política. O governo Goulart conviveu com a ocorrência de greves operárias em prol de maiores salários (os salários se deterioravam com a inflação) e pela realização de reformas de base. O governo, ao mesmo tempo em que tinha como base o movimento sindical urbano e rural, era

MORAES, Rafael. O governo João Goulart e o empresariado industrial: uma abordagem alternativa da história econômica do período de 1961 a 1964. Artigo Apresentado no 40° Encontro Nacional de Economia (ANPEC). Porto de Galinhas (PE), 2012. Captado em: http://www.anpec.org.br/encontro/2012/inscricao/files_I/i22c5973b65db6447cd8a41acc012cb19e.pdf . Acesso em: 13/08/14, 34 A manutenção do latifúndio não expandiria o mercado interno e manteria os baixos níveis de produtividade de alimentos, não suficientes para o consumo interno, o que gerava aumento de preços. Para conter esse processo, reformas eram essenciais. 35 Para concluirmos isso, basta nos atentarmos aos dados econômicos do período do governo João Goulart, do parlamentarismo ao presidencialismo, mesmo com a tentativa de estabilização econômica pelo Plano Trienal. Em 1961, a taxa de inflação foi de 47,8%, em 1962, 51,7%, em 1963, 79,9% e em 1964, 92,1%. Enquanto a inflação subia, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto vinha caindo. Se, em 1961,o Brasil registrava crescimento de 8,6%, em 1963, essa taxa foi de apenas 0,6%. Tais dados foram retirados de FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Legitimidade e Credibilidade: Impasses da Política Econômica do Governo João Goulart. São Paulo: Revista Estudos Econômicos, volume 34, n°3, julho-setembro 2004, pp.587-622. 33

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também pressionado por esses mesmos atores, juntamente com a ala mais “radical” do PTB36 (o partido do presidente Goulart), bem como comunistas, estudantes e outras organizações populares. Como bem salienta Delgado, Goulart oscilou entre posições de apoio explícito às reivindicações reformistas dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que tentava controlar essas mesmas reivindicações: Pressionado pelos setores conservadores, que sempre lhe dedicaram não mais do que um incipiente aceno de apoio, procurou, sem êxito, aproximar-se desses segmentos. Propostas como a do Plano Trienal tinha, como um de seus principais objetivos, demonstrar aos investidores, empresários, proprietários rurais e setores expressivos das Forças Armadas que sua rela intenção não era a de abraçar a causa das reformas, a um nível que pudesse ameaçar a estrutura social e econômica do país [...] [No entanto, a] polarização dos contrários não funcionou [...] No final de 1963, após várias reformas ministeriais, ficaria claro que Jango não poderia, definitivamente, contar com o apoio dos proprietários rurais, assolados pelo fantasma da reforma agrária, dos empresários, que se indignaram com a crescente mobilização e reivindicações dos trabalhadores urbanos e, finalmente, dos militares conservadores. As Forças Armadas viam, na expansão comunista, uma série ameaça à hierarquia militar, uma vez que sargentos e marinheiros também participavam de inúmeras manifestações reivindicativas37.

Nesse contexto de polarizações, o movimento sindical agrário prosseguia em franca expansão, com o incentivo do Ministério do Trabalho. Sindicatos dirigidos por comunistas, católicos e trabalhistas aliavam suas organizações e reivindicações com a luta pela reforma agrária, uma das reformas de base centrais para o governo Goulart38, pois esta reforma, segundo acreditavam os trabalhistas, promoveria a diminuição da inflação devido ao maior abastecimento do mercado interno causado pela melhor distribuição de terras39. Tal projeto de reforma agrária desagradava o PSD, aliado histórico do PTB. O PSD, diferentemente do PTB, não compartilhava as bases de apoio sindical e não compartilhava de suas bandeiras, tinha como principal base política as classes latifundiárias e agrárias. Era um partido de centro que se originou das forças Lucília Delgado define tal ala como “reformista radical”. DELGADO. PTB: do getulismo ao reformismo (19451964). 37 ______. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964), p.27-280. 38 Para grande parte da esquerda nacionalista, o atraso do capitalismo no Brasil era resultado de uma estrutura de propriedade rural arcaica, baseada no latifúndio, que impedia a expansão do mercado interno e o desenvolvimento da industrialização, e ainda provocava a inflação, pela insuficiente oferta de alimentos para o Brasil. Os trabalhistas defendiam o lema “Terra para quem trabalha”, para quem vive do próprio trabalho e produz alimentos para o Brasil, opostos aos latifundiários improdutivos que seriam as causas do atraso brasileiro, na visão dos trabalhistas. O projeto de reforma agrária dos trabalhistas tinha a intenção de responder os problemas que se colocavam, não era revolucionário, mas capitalista, no sentido de “criar proprietários e propriedades”, conforme aponta o ex-ministro do Trabalho e ex-presidente da SUPRA, João Pinheiro Neto. Ver PINHEIRO NETO, João. Depoimento ao CPDOC. CPDOC, Fundação Getúlio Vargas, 1977, p.91. 39 A reforma agrária foi um tema central no governo João Goulart, do início ao seu fim, com a assinatura do decreto n° 53.700, de 13 de março de 1964, feito pela SUPRA, que desapropriava terras em torno das rodovias e ferrovias federais por interesse social, o primeiro passo para a realização de uma reforma agrária efetiva. A reforma agrária pregada por João Goulart foi um dos principais motivos para a sua derrubada por forças contrárias às reformas em 1° de abril de 1964. 36

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getulistas que, ao contrário do PTB, não se encaminhava para um movimento cada vez mais enfático em defesa das reformas. Durante o governo Goulart teve grande parte de seus quadros se afastando do apoio às propostas de Goulart (excetuando-se a ala nacionalista do PSD). Em resumo, a promoção da reforma agrária era incompatível com as bases mais importantes de apoio ao PSD, a dos grandes proprietários rurais. Somando-se à reforma agrária, Goulart defendia a necessidade da realização das reformas urbana, bancária, universitária, fiscal, uma maior regulamentação estatal sobre o capital estrangeiro, entre outras medidas. Paralelamente ao desenvolvimento dos movimentos populares e às reivindicações de reformas de base ao estilo que João Goulart propagava, bem como reivindicações das esquerdas, havia os opositores aos mesmos. O IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) se organizavam a partir de 1961 para combater as reformas de base e o governo Goulart40. Governadores dos principais estados do país, São Paulo e Guanabara, com Adhemar de Barros e Carlos Lacerda, respectivamente, combatiam incessantemente as políticas de Goulart, reprimiam as greves em seus estados, muitas vezes utilizando a violência policial e propagavam que João Goulart estava planejando um golpe que levaria o Brasil ao comunismo41. As Forças Armadas, que tinham setores nacionalistas e legalistas de longa tradição, assistia ao fortalecimento de setores que formularam a teoria da Segurança Nacional, especialmente com a Escola Superior de Guerra (ESG). Segundo Thomas Skidmore 42, os militares dessa vertente acreditavam que o governo Goulart estava a caminho da instalação do comunismo no país que “extinguiria os valores e as instituições tradicionais do país”. Leôncio Basbaum43 assinala que se antes havia a estratégia defensiva do Exército contra as ameaças externas, com a ESG e a influência norte-americana, o conceito de “segurança nacional” passou a se referir às ameaças dos inimigos internos, que seriam basicamente as organizações camponesas e os sindicatos. Como reação a esses inimigos internos, a ESG, segundo Basbaum, pregava o “fortalecimento do poder central” e a “militarização de todo o país”. Segundo Moniz Bandeira44: A hostilidade contra o movimento sindical, sobretudo contra a participação na política, aumentava nas Forças Armadas. Eram os preconceitos fechados de classe que se desnudavam. As associações rurais e comerciais, as confederações das indústrias, enfim, todas as atividades patronais podiam expressar-se Para maiores informações a respeito da ação desses institutos nessa conjuntura, ver a obra do cientista político uruguaio DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. 41 Sobre o anticomunismo, ver o artigo de MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “A ‘indústria’ do anticomunismo”. In Anos 90, Porto Alegre, v. 9, n.15, pp.71-91, 2001. 42 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.22. 43 BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República. Volume 4: de 1961 a 1967. São Paulo, Alfa-Ômega, 1976, p.121. 44 BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 40

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livremente, inclusive insuflar a guerra civil e a deposição no governo, sem nenhum constrangimento. Os sindicatos dos trabalhadores, não. Os trabalhadores não tinham o direito de participar da política, pois as classes dirigentes julgavam que somente elas deviam influir nas decisões do seu estado. A democracia não podia ser tão democrática assim. Seria comunismo. A legalidade, subversão. Na verdade, todos os esforços de organização e mobilização da vontade popular assombravam os empresários e os fazendeiros.

Nesse sentido, reiteramos que havia uma ascensão dos movimentos sociais e da esquerda reformista no país, como havia também influentes parcelas das Forças Armadas que formulavam projetos políticos e ideológicos que hostilizavam a maneira como os trabalhistas no poder promoviam as reformas sociais, a democracia e a ascensão dos movimentos sociais. Nesse contexto, observamos uma divisão política e ideológica que via de diferentes maneiras a democracia, as reformas sociais e a ascensão dos movimentos populares. Tal divisão pode ser encontrada em ações e pensamentos dos agentes e partidos políticos inseridos nessa conjuntura45. O momento crucial do governo João Goulart antes de sua derrubada foi o comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil. Esse momento foi representativo da união das esquerdas em defesa do governo Goulart e das reformas de base, sobretudo a agrária. João Goulart, no Comício, fez um discurso histórico46, que desagradou seus opositores políticos. Tal conjuntura desencadeou uma conspiração que derrubou o governo e baixou decretos e atos arbitrários que afastaram membros ligados ao governo anterior e imobilizou a ascensão das esquerdas e dos movimentos sociais. Goulart buscava ampliar a democracia para os mais amplos setores da sociedade, realizando reformas estruturais que desenvolveriam o capitalismo no Brasil. No entanto, existem interpretações historiográficas que apontam o caráter antidemocrático da direita e também da esquerda, responsabilizando ambos os setores de igual maneira pela deflagração do golpe de 1964. A esse respeito, ver FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 e FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia e reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993. 46 Selecionamos o seguinte trecho de seu discurso: “Chegou-se a proclamar, trabalhadores brasileiros, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático como se no Brasil a reação ainda fosse dona da democracia, ou proprietária das praças e ruas. Desgraçada democracia a que tiver de ser defendida por esses democratas. Democracia para eles não é o regime da liberdade de reunião para o povo. O que eles querem é uma democracia de um povo emudecido, de um povo abafado nos seus anseios, de um povo abafado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia do antissindicato, ou seja, aquela que melhor atenda aos seus interesses ou aos dos grupos que eles representam. A democracia que eles pretendem é a democracia dos privilégios, a democracia da intolerância e do ódio. A democracia que eles querem, trabalhadores, é para liquidar com a Petrobrás, é a democracia dos monopólios, nacionais e internacionais, a democracia que pudesse lutar contra o povo, a democracia que levou o grande Presidente Vargas ao extremo sacrifício [...]. Não há ameaça mais séria para a democracia do que tentar estrangular a voz do povo, dos seus legítimos líderes populares, fazendo calar as suas reivindicações[...] A Constituição atual, trabalhadores, é uma Constituição antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, uma estrutura injusta e desumana. O povo quer que se amplie a democracia, quer que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; quer que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facilitado participar da vida política do país, através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e que seja assegurada à representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações, ideológicas ou religiosas. Ver GOULART, João. Discursos Selecionados do Presidente João Goulart. (Organização Wanielle Brito Marcelino). Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2010, p.80-82. 45

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Democracia, nesse sentido, incluía a participação de comunistas e do movimento sindical no processo decisório. Contra essa democracia, setores empresariais, latifundiários, classe média, políticos golpistas, setores estrangeiros e das Forças Armadas desencadearam o golpe que depôs João Goulart. O golpe militar, do ponto de vista de seus vencedores, restaurava a “pureza democrática” (já que a democracia estava sendo “ameaçada” pelo “comunismo” verificável nos movimentos populares) e restabeleceria a “ordem” necessária para executar as “reformas” na condição da “legalidade” Esses pontos foram enfatizados por Castelo Branco nos seus discursos antes mesmo da deflagração do golpe. Conclusão O governo João Goulart foi marcado pela crise do seu início ao seu fim. Opositores de longa data ao varguismo e ao trabalhismo estiveram presentes em vários momentos da trajetória de João Goulart, desde o período em que este ocupou o Ministério do Trabalho, no segundo governo Vargas. No início dos anos 1960, o país demandava e ansiava reformas sociais. Isso se reflete no crescimento do desempenho eleitoral dos partidos reformistas. Goulart propunha um pacote de reformas que incluíam a agrária, a urbana, a universitária, entre outras. Tais propostas faziam parte do projeto de superação da crise econômica que se aprofundava, de 1961 a 1964. Nesses anos, a inflação aumentava e a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto declinava. Somado à crise econômica, a crise no sistema partidário se verificava. O PSD se afastava cada vez mais do governo, especialmente devido à proposta de reforma agrária defendida pelas esquerdas e boa parte do PTB. A UDN, oposicionistas histórica do trabalhismo, aprofundava a sua oposição. Os principais partidos políticos se organizavam em diferentes alas e grupos, organizações extrapartidárias ganhavam força no período. As esquerdas se organizavam em diversas agremiações, além dos sindicatos urbanos e rurais, pressionando o governo. Goulart, portanto, ao mesmo tempo em que tinha tais movimentos como base de sustentação, via-se pressionado por eles. Enquanto isso, grupos de direita também se organizaram em organizações extrapartidárias, com grande carga ideológica contra o governo e forças populares. Em linhas gerais, o governo João Goulart foi caracterizado por uma contestação permanente de seu poder por forças opositoras desde o seu primeiro momento. Democracia com participação popular não fazia parte do projeto político de grupos conservadores civis e militares que se viam ameaçados diante da ascensão popular e de movimentos reivindicatórios. Esse processo concretizou o golpe militar de 1964 e o início de uma ditadura militar que afetou o Brasil durante décadas.

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A rua vai ao ateliê e vice-versa: arte como resistência em Claudio Tozzi The street goes to studio and vice versa: art as resistance in Claudio Tozzi

Artigos

Alexandre Pedro de Medeiros Mestrando em História da Arte Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas royquaker@live.fr

Recebido: 01/11/2014 Aprovado: 09/12/2014 RESUMO: O artista visual paulistano Claudio Tozzi desenvolveu no período 1964-1968 uma poética engajada, segundo a qual fabricou trabalhos comprometidos em problematizar a realidade política e social do Brasil. Deste modo, este artigo tem como principal objetivo analisar como esta tomada de posição de resistência por Tozzi frente aos problemas políticos, sociais e estéticos significava nas obras. Neste período, o artista inspirado em Marcel Duchamp e na Arte Pop desenvolveu uma operação de apropriação racional ou intencional de imagens e objetos, a qual descontextualizava os elementos apropriados a fim de subverter sua significação original, porém, guardando o vestígio da referência, em prol de um discurso formado pela relação desses itens no trabalho construído. Assim, a partir de uma análise dos trabalhos USA e abUSA (1966) e Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional (1967), apresenta-se uma interpretação histórica do diálogo entre fenômenos artísticos e fenômenos políticos e sociais compreendido nestas obras. PALAVRAS-CHAVE: Arte e autoritarismo, Apropriação, Claudio Tozzi. ABSTRACT: The visual artist from Sao Paulo Claudio Tozzi developed between 1964 to 1968 a engaged poetics, through which made works engaged in problematizing the politic and social realities in Brazil. In this way, this article has as its main objective to analyze how this position of resistance assumed by Tozzi against the political, social and aesthetic problems meant in his artworks. In this period, the artist inspired in Marcel Duchamp and in Pop Art developed an operation of rational or intentional appropriation of images and objects, which dislocated the appropriate elements to subvert its original meaning, yet, keeping the reference trace, towards a reasoning constructed by the relation of these items in the built work. Thus, through an analysis of the artworks USA e abUSA (1966) and Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional (1967), it presents a historical interpretation of the dialogue between artistic phenomena and political and social phenomena comprised in this works. KEYWORDS: Art and authoritarianism, Appropriation, Claudio Tozzi. Em dezembro de 1977, por ocasião da mostra Objeto na arte: Brasil anos ‘60, a qual foi coordenada e supervisionada por Daisy Peccinini de Alvarado e realizada em 1978 no Museu de Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), Claudio Tozzi falou o seguinte em depoimento ao Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira da FAAP: Uma das características da arte brasileira de vanguarda dos anos ‘60, é a preocupação com o coletivo. Na pintura refletia-se principalmente, a temática social. Os fatos políticos eram narrados pela figura; a obra exigia do espectador, não apenas uma atitude de contemplação, mas tinha o intuito de incitar seu pensamento, levá-lo à reflexão e ao debate.1

Isto é, Tozzi, 10 anos depois, analisava a situação da vanguarda a fim de se inserir neste contexto e nesta proposição. A relação do artista com uma arte engajada teve início em 1964 com sua entrada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde frequentou aulas ministradas por Sérgio Ferro no curso de História da Arte, o qual também orientou Claudio em relação à atuação política2, o que desembocaria na participação de ambos na Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira (conhecido na entidade clandestina como Toledo). Assim, estabelecia-se uma rede de frequentações que incluíam desde o ateliê de Sérgio e Flávio Império até o Curso de Formação de Professores de Desenho do Museu de Arte de São Paulo (MASP), no qual Flávio Motta promovia a integração do grupo de artistas da FAU com os outros que vinham utilizando elementos da Arte Pop em seus trabalhos. 3 Tais relações com professores, teóricos e críticos marcaram profundamente a produção de Tozzi nos anos 1960, principalmente a concepção de Mário Schenberg de “Novo Realismo”, que via surgir no Brasil em 1965 uma arte participante4, que fora compreendida por Tozzi, em depoimento ao Jornal do Brasil, como “instrumento para despertar no povo uma conscientização crítica”.5 Vários foram os artistas que estiveram empenhados na revolução na arte, a qual previa o engajamento do artista com a transformação social. Esta questão aparecia atrelada ao ideário da vanguarda deste período. Um exemplo: o Esquema geral da Nova Objetividade de Hélio Oiticica, no qual se ressaltava a vontade de participação do artista na sociedade, assim como seu

TOZZI, Claudio. Depoimento do artista para o Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira da FAAP. In: ALVARADO, Daisy Valle Machado Peccinini de. Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado, 1978, p. 221. 2 MAGALHÃES, Fábio. Claudio Tozzi. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2007. (Coleção arte de bolso), p. 25. 3 OLIVEIRA, Liliana Helita Torres Mendes de. o nalisa a a s as s n a o s os s a os ni os o asil na i nal n na ional ao Paulo, em 1967. 1993. 320 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993, p. 57. 4 SCHENBERG, Mário. Um novo realismo. In: ALVARADO, Daisy Valle Machado Peccinini de. Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado, 1978, p. 62. 5 GUEVARA, 1967 apud KIYOMURA, Leila; GIOVANNETTI, Bruno (Org.). Claudio Tozzi. São Paulo: Edusp, 2005, p. 24. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 1

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posicionamento frente aos problemas sociais, políticos e éticos da realidade brasileira. 6 Nesta via, Claudio Tozzi se apropriou de maneira singular das análises que circulavam no meio artístico e intelectual do período 1964-1967, as quais ressoaram na formulação de sua poética engajada. Por isso, trago para a discussão dois trabalhos do artista produzidos sob este calor comunicativo e de resistência cultural à ditadura militar: USA e abUSA (1966) e Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional (1967), os quais foram fabricados, segundo Leila Kiyomura e Bruno Giovannetti, “no clima da geração da briga, [quando] Tozzi deixou-se envolver, cada vez mais, pelos movimentos de massa”.7 Em clima de tensão provocado pela existência de um governo autoritário, as obras operaram como críticas aos acontecimentos recentes no Brasil em 1966 e 1967. Inicialmente, vale destacar que, notadamente Tozzi, ao incorporar elementos figurativos em seus trabalhos, não abriu mão do legado construtivista advindo do movimento concreto e da ruptura neoconcreta – algo comum entre os artistas englobados na arte de vanguarda daquele momento –, bem como de sua formação em arquitetura.8 Em entrevista, o artista afirma esta característica em seus primeiros trabalhos: “[…] eles têm uma estrutura construtiva. Então, cada imagem que eu colocava era dentro de um campo já estruturado, já trabalhado”.9 Assim, unia-se ao desejo de revolucionar a linguagem da arte a resistência a todo tipo de autoritarismo na arte e na vida política e social, como disse Tozzi em depoimento a Fábio Magalhães, A década de 1960 é caracterizada por uma grande necessidade de mudanças e rupturas. As artes plásticas se apropriaram de novos conceitos e transformaram sua linguagem. A pop-art, realizada principalmente nos Estados Unidos, preocupava-se mais com a glamourização de imagens de consumo pré-existentes, algo mais próximo à repetição de imagens das prateleiras de um supermercado, à redundância de imagens e ícones imediatamente reconhecíveis. No Brasil, prefiro usar a palavra nova figuração, pois tem uma conotação específica, com um conteúdo referido ao que ocorria no País, ligado à conjuntura da época. Vivíamos uma situação de opressão e repressão sob o regime militar. A pintura era parte da nossa resistência. Como você falou, nossa arte continha um engajamento ideológico e de luta. Meu trabalho tinha uma preocupação de se aproximar da linguagem dos meios de comunicação de massa e se apropriava de imagens do mundo urbano – sinais de trânsito, histórias em quadrinhos –, mas sempre com a intenção de modificar seu significado, de subverter, de propor uma sintaxe diferente do texto para criar uma nova mensagem. Criar novos objetos.10 OITICICA, Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade. In: FERREIRA, Glória & COTRIM, Cecilia. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 154. 7 KIYOMURA; GIOVANNETTI (Org.). Claudio Tozzi, p. 23. 8 SOARES, Paulo Marcondes Ferreira. Arte, política e juventude no Brasil: questões de arte e participação social. In: GROPPO, Luís Antonio; ZAIDAN FILHO, Michel; MACHADO, Otávio Luiz. Juventude e movimento estudantil: ontem e hoje. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008, p. 127. 9 TOZZI, Claudio. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros. São Paulo, 6 dez. 2012. Entrevista, p. 9. 10 MAGALHÃES. Claudio Tozzi, p. 20-21, grifos do autor. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 6

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Nesta via, ressalto aqui a apropriação que o artista fez de Oiticica, que em texto apresentado à exposição Propostas 66 – considerado o esboço do que viria a ser o Esquema geral da Nova Objetividade –, referia-se ao pioneirismo da vanguarda brasileira em uma nova fundação do objeto11 como produto da superação do quadro de cavalete. Para Oiticica, tal fato desembocaria na fabricação de objetivos perceptivos que propunham críticas sociais. Já a crítica remetida à Arte Pop sugere os próprios deslocamentos efetuados pelos artistas brasileiros de vanguarda nos anos 1960, que ao se apropriarem dela, contrapunham um caráter hot ao estilo cool da pop estadunidense.12 De menor ou maior alcance, é incontestável a influência que a Arte Pop teve sobre os artistas visuais brasileiros a partir de 1963. Contudo, as novidades formais e semânticas conquistadas foram adaptadas às necessidades deles, assim, ampliando-se sua potencialidade crítica.13 Sobre a influência da pop no trabalho de Tozzi, aprofundarei mais à frente neste artigo.

USA e abUSA Deste modo, proponho, inicialmente, debruçarmo-nos sobre uma leitura de como a obra USA e abUSA (ver Figura 1) se apresenta enquanto tal. Por isso, sugiro dividirmos o campo estruturado da obra em três partes. Há uma primeira porção do trabalho de Tozzi, a qual está situada (politicamente) à esquerda, que é uma grande seta vermelha posicionada na direção vertical e no sentido de cima para baixo finalizando em um fragmento de manchete de jornal; ao centro vemos uma imagem em alto contraste de duas figuras militares a postos com suas armas; e à direita lemos “U$A” em tamanho grande e a expressão “e ab USA…” menor divididas por uma bandeira estadunidense que foi colada diagonalmente. Neste momento nos perguntamos: como foi possível a elaboração dessa composição pelo artista? O que significou esse trabalho em 1966? O que ele nos diz? Sendo assim, faz-se mister termos em mente que, de acordo com Leila Kiyomura e Bruno Giovannetti 14 , o artista paulistano recriou e procurou novos conceitos dentro do ambiente político e social brasileiro daquele presente e, nesse sentido, seus trabalhos serviam como manifesto contra a censura, a ditadura e a violência.

OITICICA, Hélio. Situação da vanguarda no Brasil. In: ALVARADO, Daisy Valle Machado Peccinini de. Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado, 1978, p. 70. 12 MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 97. 13 FERRO, 1967, p. 17 apud OLIVEIRA. o nalisa a a s as s n a o s os s a os ni os o asil na i nal n na ional ao Paulo, em 1967, p. 6. 14 KIYOMURA; GIOVANNETTI (Org.). Claudio Tozzi, p. 24. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 11

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Além disso, com seu “quase […] espírito jornalístico” 15 , Tozzi conferiu destaque a eventos e personagens do cotidiano urbano brasileiro. Assim, “ele descobriu nas notícias de jornais uma via para repercutir o seu trabalho na massa e essa comunicação tinha um impacto, que devolvia este trabalho como uma notícia nos jornais”16, isto é, um movimento que evidencia a proposta do artista de colocar a realidade social em seus vários aspectos como problema das artes visuais, nas quais captava as vozes e os ruídos do mundo. Logo, parece que temos algumas pistas a fim de desvelarmos a utilização de diversos elementos, os quais foram retirados de diferentes lugares e apropriados na obra: fragmento de jornal, imagem de militares trajando o que lembra ser um uniforme fascista, bandeira dos EUA, além da seta e das palavras impressas.

Imagem 1: Claudio Tozzi, USA e abUSA, 1966. Tinta em massa e acrílico sobre madeira, 33 × 52 cm. Fonte: KLINTOWITZ, Jacob. Livro ilustrado de arte: Claudio Tozzi: Estruturas do Real. São Paulo: Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural, 2012. (Resgatando Cultura, 7), p. 148.

Deste modo, no livro em que propõe leituras de obras de Pablo Picasso, a crítica de arte Rosalind Krauss inicia seu percurso analisando alguns trabalhos deste artista produzidos a partir de 1912, quando começa a fazer uso da incorporação de objetos ditos extra-artísticos nas obras, procedimento típico da colagem. O que chama a atenção de Rosalind é a utilização por Picasso 15 16

MAGALHÃES, Fábio. Obra em construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi. Rio de Janeiro: Revan, 1989. p. 24. KIYOMURA; GIOVANNETTI (Org.). Claudio Tozzi, p. 24. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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de fragmentos de jornais franceses, principalmente, do “Le Journal”, para fabricar suas colagens. Ainda no prefácio do livro assinado por Lisette Lagnado, lemos que “o jornal, material perecível que dura um dia na vida de um cidadão, é confrontado à temporalidade de um outro sistema, os valores da arte (verdadeiros ou falsos). Dispositivo que transformou a magia da verdade da fonte em mito”.17 Neste sentido, Krauss em uma faceta de historiadora das ideias se interroga, interroga outros intelectuais que analisaram obras de Picasso e nos interroga sobre essas vozes que vêm dos fragmentos e sobre a fala do artista. Para Patricia Leighten, autora cuja teoria foi problematizada pela crítica, a escolha e inserção dos recortes de jornal por Picasso em seus trabalhos não era meramente casual, havia uma opção 18 , que Krauss desenvolve em seguida dizendo (e ainda questionando) que/se o artista fala através de suas colagens.19 Portanto, apropriando-me das discussões efetuadas por Rosalind Krauss referentes à circulação do signo nas obras de Picasso, pensando que os recortes atuam tanto no plano visual, assumindo formas físicas na composição da obra, quanto intencionalmente dobrados, girados e inseridos por seu conteúdo escrito, creio que é possível utilizarmos esse referencial para analisar a primeira porção do trabalho de Claudio Tozzi em relação ao todo visual da obra em questão. Acredito que a inserção de um recorte de Battaglie Sindacali (Batalhas sindicais) não foi por acaso. Pois este jornal era editado pela Confederazione Generale del Lavoro (Confederação Geral do Trabalho – CGL) 20 , a qual nascida em 1906 e agregando cerca de 700 sindicatos e 250.000 trabalhadores teve seu membros perseguidos pelo fascismo, principalmente, a partir de 1922 com a tomada do poder por Mussolini, assim, sendo logo dissolvida.21 Então, o jornal se opunha à violência fascista que atacava o movimento operário a partir da manchete que anunciava: Manifestate in ogni modo e sotto qualsiasi forma contro il fascismo che porta alla catastrofe e alla guerra! (Manifesta-te em todos os sentidos e sob qualquer forma contra o fascismo que leva ao desastre e à guerra!, tradução minha). Deste modo, a utilização do recorte seria uma associação da ditadura brasileira com o fascismo. A seta que aponta e conduz nosso olhar para o fragmento do jornal atua como um vestígio visual de que aquele que vê a obra deve estar atento ao recorte. Logo, percebo que ao compreender USA e abUSA como obra de arte construída a partir de uma poética comprometida politicamente com seu espaço e tempo, confirmo que “os valores KRAUSS, Rosalind. Os papéis de Picasso. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 14. _______. Os papéis de Picasso, p. 52, nota 8. 19 _______. Os papéis de Picasso, p. 57. 20 LYTTELTON, Adrian. The Seizure of Power: fascism in Italy, 1919-1929. 3th ed. Abingdon: Routledge, 2004, p. 85. 21 CONFEDERAZIONE Generale Italiana del Lavoro. Roma: CGIL Nazionale, 2009. La storia. Disponível em: <http://www.cgil.it/chisiamo/Storia.aspx>. Acesso em: 8 set. 2014. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 17 18

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estéticos são categorias históricas e não abstrações atemporais”22, os quais são definidos também na relação da obra com seu público. Por isso que, quando Hans-Georg Gadamer retoma a arte em seu sentido antropológico como jogo, símbolo e festa; e tratando sobre o primeiro afirma que o “movimento do jogo significa ao mesmo tempo que o jogar exige sempre aquele que vai jogar junto”23, isto é, que é preciso também atentar para a comunicabilidade da obra. Ler o trabalho de Claudio Tozzi como operação visual de crítica à ditadura militar só é possível se pensarmos que aquele que joga junto é alguém sensível à realidade brasileira naquele momento em 1966. USA e abUSA destina-se àqueles que vivenciam a mesma experiência de autoritarismo, ou seja, como diria Mikel Dufrenne, “àqueles que consentem porque co-sentem”.24 Também por isso a operação da obra não é meramente representativa, não é uma fala que é dita pela obra, pois a própria obra é essa fala, a qual não se impõe ao público, mas sim é a própria palavra deste. Esta seria, a partir da leitura de Gadamer, a identidade hermenêutica da obra que “consiste justamente em que algo deve ‘ser compreendido’, que a obra quer ser entendida como algo que ela ‘quer dizer’ ou ‘diz’”25, que será recuperado na participação do público. Além disso, a imagem ao centro atua como signo que atua como representação do caractere militar, não como correlato daqueles militares brasileiros responsáveis pelo golpe e atuantes no cenário político em 1966, mas sim como representante do militar mesmo no jogo da composição no interior da obra, porque “não apenas remete para a significação, mas torna-a presente: ele representa significação”.26 Neste sentido conferido por mim, esta aparição só faz sentido desta forma, isto é, só transmite a crítica à ditadura, pois estão articulada a outros elementos na formatividade da obra. Deste modo, há um primeiro movimento de leitura da obra que nos conduz à seguinte interpretação: o recorte de jornal e o signo militar se contrapõem. Os militares representados ali têm a parte frontal de seus corpos virada em sentido oposto à manchete do jornal e, assim, eles miram a bandeira dos EUA. Em pleno momento de Guerra Fria, a esquerda golpeada especulava sobre a participação estadunidense no golpe civil-militar. A série de 2011 com três episódios da TV Brasil intitulada O

CIPINIUK, Alberto. Para lá do aparente – uma pequena reflexão sobre a história social da arte. Concinnitas, Rio de Janeiro, n. 5, dez. 2003. Disponível em:<http://www.icons4u.com.br/concinnitas/index.cfm?edicao=5>. Acesso em: 18 set. 2014, p. 31. 23 GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. (Coleção Diagrama, 14), p. 39. 24 DUFRENNE, 1974, p. 199 apud FIGURELLI, Roberto Caparelli. Arte e política. In: _______. Estética e crítica. Curitiba: Ed. UFPR, 2007. (Pesquisa, 116). p. 143-163, p. 153, grifo do autor. 25 GADAMER. A atualidade do belo, p. 42. 26 _______. A atualidade do belo, p. 54. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 22

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dia que durou 21 anos, que foi lançada como longa-metragem em 2013, elabora uma interpretação sobre tal participação a partir de evidências como cartas, telefonemas e documentos de Estado. A trama do documentário nos leva a crer que os EUA não só deram apoio logístico e militar à retirada de João Goulart da presidência, isto é, com a intervenção das Forças Armadas estadunidenses caso o golpe sofresse resistência – conhecido como Operação Brother Sam –, como também, a partir da interferência do embaixador estadunidense Lincoln Gordon, o qual mediava a “conspiração anticomunista”, financiou o terrorismo psicológico e, a partir do programa Aliança para o Progresso, destinou grandes quantias de dinheiro para os opositores do governo de Jango.27 Organizações empresariais, frequentadas por civis e militares, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), travaram, a partir de campanha ideológica em diversas frentes de atuação, “uma ampla campanha de desestabilização”28 do governo Goulart. Aliás, há um trabalho de Marcello Nitsche, amigo de Claudio Tozzi, o qual foi estudante de desenho da FAAP e artista muito influenciado também pela linguagem crítica da Arte Pop29, chamado Aliança para o progresso (1965), no qual ironiza a “solidariedade” estadunidense com os países que participavam do programa de cooperação, como era o caso do Brasil. Para isto, incorpora elementos da bandeira dos EUA (estrelas brancas em fundo azul e listras vermelhas) e se apropria de uma algema que é apresentada prendendo duas mãos que se apertam. Assim, critica a “Aliança” estadunidense (apertar de mãos) como um programa que aprisiona a contraparte tornando-a dependente da vontade imperialista dos EUA. Deste modo, é possível lançarmos a seguinte interpretação: a obra opera em um eixo estruturado em três porções. À direta observamos a entrada em diagonal da bandeira dos EUA com os dizeres U$A e ab USA…, a qual encontra os militares que estão posicionados ao centro formando uma região que se contrapõe à faixa esquerda, onde a seta vermelha aponta a manchete do jornal Battaglie Sindacali. Com toda a articulação proposta anteriormente, creio que USA e abUSA pode ser lida enquanto um manifesto contra a ditadura militar instalada com apoio dos EUA. Assim, o artista aponta (e por isso não é à toa o uso da seta) a resistência – Manifestate in O DIA que durou 21 anos. Direção: Camilo Tavares. Produção: Flávio Tavares, Camilo Tavares e Karla Ladeia. Intérpretes: Flávio Tavares; Carlos Fico; Peter Kornbluh; Plínio de Arruda Sampaio; Robert Bentley e outros. Roteiro: Flávio Tavares. Rio de Janeiro; São Paulo: TV Brasil; Pequi Filmes, 2011. 1 DVD (3 episódios de 26 min cada), son., color. e P&B, digital. 28 FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 29-60, jul. 2004. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n47/a03v2447.pdf>. Acesso em: 12 set. 2014, p. 51. 29 OLIVEIRA. o nalisa a a s as s n a o s os s a os ni os o asil na i nal n na ional ao Paulo, em 1967, p. 223. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 27

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ogni modo e sotto qualsiasi forma contro il fascismo che porta alla catastrofe e alla guerra! –, como solução, como luta contra o governo autoritário brasileiro. Não por acaso, na obra de Tozzi o cifrão de U$A indica os EUA como potência econômica, liderança do mundo capitalista que se autoproclama Primeiro Mundo, bem como, a exploração econômica dos países periféricos do capitalismo, o Terceiro Mundo, como o Brasil. Esta leitura é ainda mais verossímil se atentarmos à da sentença que a completa e ab USA…, pois em latim a preposição “ab” pertence à mesma classe gramatical no português brasileiro da palavra referente à proveniência “de”, como algo que vem “de”. Isto é, uma expressão que volta a si mesma: um abuso que vem dos EUA. Perguntado sobre esta possível relação, Claudio Tozzi falou que sua crítica ao uso e abuso dos EUA sobre o Brasil tinha maior relação com o apoio estadunidense à repressão ao movimento estudantil – com o qual ele manteve relação no período em que estudou na FAU–, a partir da atuação da Ponto Quatro30, que era uma escola da polícia estadunidense que ensinou aos policiais brasileiros “táticas de enfrentamento e dispersão de manifestações” 31 , assim como fornecia equipamento para repressão, como porretes. Possivelmente, localiza-se aí a experiência, entre outras, que fez Tozzi associar fascismo e ditadura militar brasileira a partir de uma ótica do autoritarismo. Segundo Alberto De Bernardi, é próprio do Estado autoritário, especificamente referindo-se ao fascismo italiano, a organização de ações armadas que visavam a destruição do “inimigo interno”, bem como do uso de crescente violência em um ímpeto de destruir física e ideologicamente o espaço público de atuação política, como as universidades, os sindicatos, os partidos e as redações de jornais opositores ao regime.32 Sendo assim, abre-se uma possibilidade de leitura de USA e abUSA como polifonia, aquilo que Rosalind Krauss33 vê acontecer no que ela caracteriza como circulação do signo em Picasso, ou seja, a disposição de materiais os mais diferentes e contraditórios possíveis vindos de diversos lugares. A polifonia, neste caso, evidencia as vozes heterogêneas e sua combinação na obra, que acirra a contaminação entre pessoa e meios de comunicação gerando a ambivalência: Tozzi fala através do jornal e este, por sua vez, fala através do artista. O fato de deslocar os TOZZI. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros, p. 10. RESISTENCIABR. São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ: Movimento Resistência Brasileira, 2001. Manuais da CIA em BH. Disponível em:<http://www.resistenciabr.org/Manuais%20Cia%20em%20BH.htm>. Acesso em: 9 set. 2014. 32 DE BERNARDI, Alberto. Intolerância, repressão e controle social no Estado totalitário. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; CROCI, Federico (Org.). Tempos de fascismos: ideologia, intolerância, imaginário. São Paulo: EDUSP, 2010. p. 73-85, p. 75. 33 KRAUSS. Os papéis de Picasso, p. 62. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 30 31

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signos de seus lugares até a obra causa o deslocamento do significado do signo. No caso brasileiro, esta operação tem caráter de resistência, pois aquilo que é a realidade não é o que se quer e, assim, funda-se o espaço do pensamento utópico, da apresentação da crítica, do fazer ver o invisível a partir de uma nova perceptividade revolucionária pautada em uma nova objetividade. A esta altura, vale retomarmos a questão das colagens realizadas por Pablo Picasso. Como ressaltado, este procedimento não é neutro, pois através dele o artista toma uma posição perante o mundo introduzindo na obra elementos que não pertencem ao meio artístico, mas sim aos meios de comunicação de massa, como o jornal. Próximo a isto havia Marcel Duchamp e seus ready-mades, a partir dos quais objetos da vida cotidiana eram deslocados ao patamar de obra de arte estabelecendo uma crítica ao sistema de arte elitista.34 Contudo, apesar das semelhanças, toda esta operação de apropriações de objetos mundanos cara aos cubistas e dadaístas nas duas primeiras décadas do século XX, seria atualizada por Claudio Tozzi em um caráter de apropriação mais racionalizada, pois Para Claudio Tozzi, a apropriação é produto de uma pesquisa sobre um universo de imagens já produzidas e, muitas vezes, já trabalhadas por outros meios de comunicação de massa, como jornais, “outdoor”, sinais urbanos, histórias em quadrinhos, etc. Desta forma, a imagem, uma vez apropriada, passa a conter significados diferentes daqueles que lhe deram origem, sobretudo pelo novo tratamento dado pelo artista. Entretanto, mesmo depois da apropriação e da sua inserção no contexto da obra-de-arte, a imagem mantém ainda seu referencial significativo, ou seja, do seu contexto de origem, revelando, e inclusive acentuando, o caráter de apropriação.35

Sendo assim, Tozzi reinventa o próprio sentido da ação integradora de componentes objetivos à obra de arte, que tem sua procedência na já mencionada colagem cubista e na prática dadaísta, isto é, tanto nos ready-mades como no objet trouvé de Kurt Schwitters, os quais tendiam a formas aleatórias de apropriação, sem necessariamente uma preocupação específica com o objetos produzidos pela indústria cultural de massa36. Aliás, esta foi a problemática central dos artistas pop ingleses na tarefa de apresentar, a partir de meados dos anos 1950, a natureza da sociedade de consumo.

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Apesar do

distanciamento conceitual do objet trouvé, os trabalhos de Arte Pop de Richard Hamilton, Robert Rauschenberg e Jasper Johns continham apropriações do que era considerado o “lixo cultural” de uma sociedade de massa – os pôsteres publicitários, as revistas, entre outros –, evidenciando uma

ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Artes Visuais. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. Apropriação. Disponível em:<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbet e=3182>. Acesso em: 9 set. 2014. 35 MAGALHÃES. Obra em construção, p. 24. 36 ARGAN, Giulio Carlo. Arte e Crítica de Arte. 2. ed. Lisboa, Editorial Estampa, 1995, p. 76. 37 MCCARTHY, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 6. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 34

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aproximação com a ideia de Schwitters de incorporação de materiais degradados em suas obras. Como exemplo, pode-se citar um dos primeiros trabalhos associados ao movimento da Arte Pop, que aliás foi realizado como um pôster e ilustração do catálogo da exposição This is Tomorrow (Este é o Amanhã), do Independent Group (um dos precursores do pop nas artes visuais), em 1956, na Whitechapel Art Gallery de Londres 38 : O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?, de Richard Hamilton. Entretanto, e é isso que nos interessa em nossa interpretação dos trabalhos de Claudio Tozzi, na ambiguidade humorada da pop o “lixo cultural” era justaposto aos símbolos permanentes, o que, no limite, levaria à própria transformação de um em outro e vice-versa, mas referenciados em suas posições originais. Por exemplo, em USA e abUSA, o artista visual paulistano justapõe por colagem a manchete de um jornal à imagem em alto contraste de policiais fascistas (elementos transitórios) à bandeira dos EUA (símbolo permanente). Para o museólogo e crítico Fábio Magalhães, neste sentido, os objetos gráficos de Tozzi seriam marcados por uma narrativa de linguagem direta a fim de um “maior poder de comunicação e de significado junto às massas”.39 Tal preocupação aproximou o artista paulistano das proposições do Novo Realismo de Mário Schenberg e do que seria a Nova Objetividade de Hélio Oiticica. Desta forma, o artista opera com várias vozes, as quais podem ser de seus amigos politicamente comprometidos com a causa antiditadura ou dos brasileiros que sofreram com o governo autoritário. A disposição dos fragmentos em USA e abUSA, assim, guarda o sentido de suas proveniências, o “de onde vem”, “ab” ou made in evidenciando a apropriação racional de Tozzi, que se apropriou do texto da manchete de Battaglie Sindacali e o identificou à luta de resistência ao autoritarismo. Ou seja, o artista relacionou o que na Itália era a luta contra o fascismo à luta contra a ditadura militar no Brasil. Há também um diálogo com Mimmo Rotella em USA e abUSA, como salienta Fábio Magalhães, que vê o italiano como um dos precursores da colagem de cartazes de rua “destacados como fragmentos da iconografia urbana”.40 Contudo, apesar de Tozzi e Rotella pensarem o jornal como um elemento efêmero, porém, crucial da vida urbana, o artista paulistano recusa o palimpsesto não-intencional do italiano, no qual o cartaz rasgado permite ver fragmentos de outros cartazes colados por baixo e arranjados de modo aleatório41, que podemos observar em Marilyn (1963). No trabalho de Tozzi não existe esta arbitrariedade na escolha e disposição dos

MCCARTHY. Arte Pop, p. 6. MAGALHÃES. Obra em construção, p. 18. 40 MAGALHÃES. Obra em construção, p. 21. 41 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 643. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 38 39

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fragmentos, pois eles decorrem de uma pesquisa que resulta em indícios de eventos políticos e sociais, os quais são colados “como pedaços de documentos da realidade”42 com o propósito comunicativo e crítico da obra. Assim, ressalto as apropriações que este artista fez da teoria da comunicação e da semiologia, que eram disciplinas muito estudadas naquele momento. Tozzi participou diretamente disso a partir de sua entrada na FAU-USP, que no final de 1961 havia reorganizado o currículo para enfatizar o design e a comunicação visual.43 Entretanto, creio que mais do que de Rotella, Tozzi esteve próximo de Waldemar Cordeiro, artista concreto influente na década de 1950, mas que em 1963 se aproximou da teoria da Obra Aberta de Umberto Eco e da Arte Pop. Deste modo, surgiu sua proposta de arte concreta semântica, mais conhecida como popcreto, publicada em dezembro de 1964, na qual defendeu a pesquisa do comportamento frente aos eventos visíveis marcados por intenção e significação a partir de contextos histórico-sociais. 44 No clima pós-golpe, Cordeiro produziu Jornal (1964), trabalho que prontamente incorporou a preocupação de estimular problematizações de ordem social e política naquele que o vê. Assim, acentua-se o uso político da colagem de jornal já praticada por Picasso que, durante 1912 e 1913, esteve preocupado em selecionar fragmentos de jornais que tratassem a Guerra dos Bálcãs e a situação política e econômica da Europa.45 Contudo, Jornal é todo ele uma reprogramação visual de uma manchete – produzida alguns meses após o golpe civil-militar de 1964 –, quando o periódico Última Hora, que apoiava as reformas de base do governo João Goulart, teve suas instalações no Rio de Janeiro destruídas por militares. Segundo Gustavo Motta, tal operação não tinha mais relação com as reformas visuais pelas quais passavam os jornais naquela época, mas sim sem relacionava a um propósito crítico de oposição política, quando a censura e a violência atingiram os meios de comunicação. Cordeiro enfatizava a dificuldade da leitura dos jornais naquele momento ironizando a realidade que se manifestava nas entrelinhas da notícia, dada a sua não confiabilidade. Assim como, chamava o espectador-participador para decifrar o enigma das palavras embaralhadas pela reprogramação visual, sendo que esse jogo estimularia uma nova perceptividade diante das notícias dos periódicos existentes na realidade.46

MAGALHÃES. Obra em construção, p. 21. OLIVEIRA. o nalisa a a s as s n a o s os s a os ni os o asil na i nal n na ional ao Paulo, em 1967, p. 239. 44 RIBEIRO, José Augusto. Vanguarda brasileira dos anos 60: propostas e opiniões. In: COSTA, Cacilda Teixeira da. Aproximações do espírito pop: 1963-1968. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2003. p. 124-139, p. 128. 45 KRAUSS. Os papéis de Picasso, p. 14. 46 MOTTA, Gustavo de Moura Valença. No fio da navalha – diagramas da arte brasileira: do programa ambiental à economia do modelo. 2011. 354 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 40-43. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 42 43

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Além disso, Tozzi atuaria como agente de circulação do signo a partir de sua própria obra, pois em 1968, ano no qual se acirraram paradoxalmente as proposições de arte pública e o autoritarismo, ele utilizou apenas a imagem dos policiais fascistas apropriada em USA e abUSA fechando o plano em suas cabeças sobre em um fundo amarelo. Sintomaticamente o artista intitulou esse trabalho de Repressão (ver Figura 2), no qual é apenas apresentado o signo militar, ausentando-se qualquer elemento visual indicativo de possibilidade de resistência.

Imagem 2: Claudio Tozzi, Repressão, 1968. Liquitex sobre duratex, 120 × 120 cm. Fonte: TOZZI, Claudio. Claudio Tozzi: Artes Plásticas. São Paulo: J. J. Carol, 2009. (Portfolio Brasil: Artes Plásticas). [p. 14].

Aliás, para o artista, este período de endurecimento do regime com o Ato Institucional nº 5 (AI-5) significou “uma ruptura muito grande”47, quando, a partir desse momento, ele começou a desenvolver uma poética mais elaborada, realizando um trabalho mais reflexivo, porém, com menor engajamento político explicitado nas obras.

Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional Nesta via, para o trabalho de Tozzi de 1967, Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional (ver Figura 3), tendo em vista a semelhança de estrutura e operação compositiva realizadas pelo artista, proponho as mesmas relações que tracei acima para USA e abUSA: circulação do signo (Rosalind Krauss), arte como jogo (Hans-Georg Gadamer) e apropriação 47

TOZZI. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros, p. 12. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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racional dos objetos (inspirada em Duchamp). Contudo, nesta obra os elementos que a compõem dão conta de uma manifestação de resistência mais explícita, aberta a partir da incorporação de temas familiares ao cotidiano de brasileiros no ano de realização da obra.

Imagem 3: Claudio Tozzi, Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional, 1967. Tinta alquídica, gesso, fórmica e plástico sobre madeira, 80 × 120 cm. Fonte: KIYOMURA, Leila; GIOVANNETTI, Bruno (Org.). Claudio Tozzi. São Paulo: Edusp, 2005. p. 30.

A seta, elemento que fortalece o caráter de comunicação direta e objetiva, aponta aqui, diferentemente de USA e abUSA, não a solução contra o autoritarismo, mas o “culpado” representado na imagem em alto contraste do general-presidente Humberto Castello Branco. Como na obra de 1966, Tozzi estrutura um campo no qual serão arranjados os elementos que vão compor o trabalho, operação essa que, aliás, marcaria os primeiros trabalhos do artista, a qual podemos notar em Paz (ver Figura 4) de 1963/1964, até sua imersão na linguagem pop em 1967 com seus estudos principalmente dedicados ao trabalho de Roy Lichtenstein.

Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Imagem 4: Claudio Tozzi, Paz, 1963/1964. Massa alquídica e resinas, colagem sobre madeira, 28 × 51 cm. Fonte: MAGALHÃES, Fábio. Obra em construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi. Rio de Janeiro: Revan, 1989. p. 20.

A semelhança desta obra com USA e abUSA e Nós somos os guardiões-mó … é evidente, isto é, a compactação dos vários elementos que a compõem: a imagem apropriada do Papa Paulo VI, as engrenagens de relógio, a letra “G”, a figura de um grupo, no qual cada um dos membros está articulado a uma palavra-fala, e a bandeira dos EUA, que aparece aqui de modo muito semelhante ao trabalho de 1966, à direita e em diagonal. Tudo isto marcado por um caráter direto que atua como força comunicativa, no qual cada elemento apropriado se relaciona significativamente com os outros e todos “se articulam para formar uma unidade compositiva sob tensão”.48 Paz, marcaria, deste modo, por um lado, a crítica do artista ao didatismo artístico e, por outro, sua inserção na vanguarda que se esboçava naquele momento: Em [19]63, antes de entrar na FAU, eu comecei a fazer alguns trabalhos, mas ainda em casa, não tinha o ateliê, e fiz os primeiros trabalhos que eram umas colagens utilizando materiais de jornais, com poliuretano, com imagens queimadas – eu jogava no álcool misturado com uma tinta de pintar sapato que era solúvel em álcool, daí eu punha fogo – então, dava umas texturas, dava um trabalho já que depois eu te mostro, tem nos livros as imagens, eu tenho aqui comigo também. Então, esses trabalhos já tinham uma intenção de fazer um trabalho que não fosse simplesmente um desenho, que não fosse simplesmente 48

MAGALHÃES. Obra em construção, p. 20. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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um trabalho quase que didático e ligado à escola. Fazia isso com um prazer muito grande e por coincidência era o que estava se fazendo, não é?49

Assim, a apropriação de objetos continuou marcando a operação do artista paulistano, porém, em Nós somos os guardiões-mó … incorporou-se um dos principais mitos brasileiros naquele momento, o próprio presidente, que fora o coordenador da conspiração militar de 1964. Castello Branco foi eleito por um “Congresso saneado” em 11 de abril de 1964, tomando posse 4 dias depois e realizando seu mandato até 15 de março de 1967. Contudo, tal imagem apropriada vem acompanhada, além da seta que lhe aponta, à direita na porção superior por uma medalha na qual se lê o título do trabalho rodeando um busto de uma figura militar, assim como na parte inferior por um retângulo/caixa dividido em três setores: Lei de Segurança Nacional, Culpado (em destaque) e Lei de Imprensa. Após o golpe, com o pronunciamento do senador Auro de Moura Andrade em 1º de abril de 1964, o qual declarou vaga a presidência da República e, constitucionalmente, o presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili para assumir o cargo, os militares iniciaram com aspecto legal – aliás, havia uma razoável preocupação em fazer com que o golpe parecesse legal, tanto que o movimento golpista não se denominou deste modo, mas como movimento revolucionário –, a instalação da ditadura militar. Logo após isto, o Ato Institucional nº 1 (AI-1) de 9 de abril agendou eleições para dali a dois dias, quando Castello Branco foi “eleito” com a maioria esmagadora dos votos por um Congresso Nacional, no qual os parlamentares considerados contrários aos desígnios da “revolução” já não mais atuavam, pois tinham sido cassados. Os Comandantes-em-Chefe lançaram uma “operação limpeza” no AI-1, quando se atribuíram o direito de suspender os direitos políticos por dez anos e cassar mandatos legislativos a nível federal, estadual e municipal. Além disso, durante a operação milhares foram presos em todo o país, incluindo aí membros de diferentes organizações: Movimento de Educação de Base (MEB) e Juventude Universitária Católica (JUC), militantes do “moscovita” Partido Comunista Brasileiro (PCB), do maoísta Partido Comunista do Brasil (PC do B) e trotskistas da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-Polop), assim como articuladores do proletariado urbano e rural, oficiais e praças das Forças Armadas considerados simpatizantes da esquerda.50 Este momento marcou a primeira cisão entre civis e militares golpistas, pois Castello teria sido escolhido como candidato pelo Comando Supremo da Revolução por ser uma liderança hábil em unir as Forças Armadas. Portanto, ficou evidente a proeminência dos militares sobre os 49 50

TOZZI. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros, p. 4. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 55-56. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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políticos civis golpistas, fato este que gerou séries de desentendimentos, como o caso envolvendo o governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda, que fora um dos políticos mais entusiastas do movimento que culminou no golpe de 1964 e que teria entregue simbolicamente seu cargo ao novo Ministro da Guerra.51 Entretanto, sabemos através da historiografia sobre o período que a escolha do marechal não foi bem aceita nem por todos os militares, como, por exemplo, pelo autodenominado comandante-em-chefe do Exército Nacional e líder do Comando Supremo da Revolução Arthur da Costa e Silva, assim, ecoando divergências entre os grupos que simplificadamente João Roberto Martins Filho52 chamou de “liberais”/“moderados”/“castelistas” e “linha dura”. Nesta interpretação, havia entre as Forças Armadas uma divisão interna anterior ao início do regime militar, na qual os “moderados” seriam aqueles com formação intelectual mais apurada, mais atentos às normais legais e menos severos na punição aos inimigos da “revolução”53, enquanto que à “linha dura” representada por Costa e Silva pertenciam os militares que defendiam um nacionalismo militar e maior rigor na “limpeza” do sistema político, bem como pretendiam assumir para si a tomada de decisões do governo militar em franco desprezo aos civis.54 Note-se, contudo, que tais categorias de análise referem-se mais às divergências quanto ao “uso e papel político da repressão legal e ao grau de violência policial direta neste processo”55, não necessariamente indicando que um grupo seria autoritário e outro não, até porque todos os militares defendiam o autoritarismo como forma de controle sobre a nação. Nesta via de análise, Castello Branco, como a associação de seu nome com os “moderados” indicava, liderava esse grupo formado por oficiais conectados, sobretudo, como professores à Escola Superior de Guerra (ESG), os quais estavam articulados por resultado de experiências compartilhadas que viveram na Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Grande Guerra.56 Muitos deles tinham feito cursos em instituições militares no exterior, como o próprio Castello, que tinha cursado dois anos na École Supérieure de Guerre, na França, assim como o curso de estado-maior e comando na Fort Leavenworth War School, nos EUA.57

MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (19641969). 1993. 239 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993, p. 54. 52 _______. O palácio e a caserna, p. 50. 53 FICO. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, p. 32. 54 MARTINS FILHO. O palácio e a caserna, p. 61. 55 NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (19641980). 2011. 374 f. Tese (Livre-Docência em História do Brasil Independente) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 41-42, nota 59. 56 SKIDMORE. Brasil, p. 52. 57 SKIDMORE. Brasil, p. 51. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 51

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Deste modo, vinha daí a “fidelidade democrática” do primeiro general-presidente da ditadura, o qual em sua posse declarou cumprir como Chefe de Estado a Constituição de 1946 e entregar o cargo a um brasileiro em 31 de janeiro de 1966.58 Pois sim, pretendia-se inicialmente “apenas” efetuar a “operação limpeza”, na qual as forças reformistas que atuaram no governo Goulart seriam expurgadas. Porém, a eleição que se realizaria em 3 de outubro de 1965 por ocasião do fim do mandato do presidente deposto foi adiada em até um ano por Castello Branco. Quase dois meses depois da posse de Castello, foi instituído em 13 de junho o Serviço Nacional de Informações (SNI), idealizado e dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva – que dirigira o IPES logo após a fundação da entidade em 29 de novembro de 1961 até março de 1967 –, o qual também vinha da ESG, com a intenção de desenvolver uma instituição de informações que consolidasse o novo regime. Atuando na superintendência e coordenação de atividades de informações e contrainformações, principalmente as que interessassem à segurança nacional, o SNI ofereceria subsídio às decisões de Castello Branco. Entretanto, com a posse de Costa e Silva em março de 1967, o SNI, sob chefia do general Emílio Garrastazu Médici, foi transformado em centro de uma extensa rede de espionagem, ou seja, ultrapassando as intenções de Golbery, que afirmaria ter criado um monstro. Mas não teria sido ele o responsável por isso, e sim a “linha dura”.59 Após um ano e meio de governo sob pressão principalmente da dita “linha dura” e com as dificuldades em diversas áreas que culminaram na crise de outubro de 1965, Castello Branco, sem o apoio do Congresso, decretou o Ato Institucional nº 2 (AI-2). Este Ato de 27 de outubro de 1965 sinalizaria certo recuo do general-presidente a fim de atender às exigências da linha-dura e se manter na presidência60. Lembro que as eleições para presidente e vice-presidente estavam fixadas para acontecer até 3 de outubro de 1966. O AI-2 marcou especialmente por atender à insatisfação dos oficiais com as eleições recém-realizadas a partir da extinção das siglas partidárias então existentes, deste modo, dificultando vitórias eleitorais da oposição, alienando os políticos a partir de 1966 ao postiço sistema bipartidário Arena (Aliança Renovadora Nacional, partido de situação) versus MDB (Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição “consentida”). Além disso, o AI-2 suspendeu as eleições diretas para presidente, vice-presidente e governadores, os quais seriam eleitos indiretamente pelo Congresso Nacional e pelas assembleias legislativas, respectivamente, o que praticamente significava que a presidência não seria sucedida por um civil. Isto é, os militares anunciavam que tinham vindo para ficar como bem sugere O DIA que durou 21 anos. FICO. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, p. 36. 60 SKIDMORE. Brasil, p. 99-100. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 58 59

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Marcos Napolitano: “A partir daí, o que era um ‘golpe civil-militar’ começa a se transformar, efetivamente, em um ‘regime militar’”.61 Entretanto, a trajetória de institucionalização da ditadura militar no governo Castello Branco ainda seria muito afetada pela “cizânia militar” – termo utilizado por Martins Filho para enfatizar a heterogeneidade no interior das Forças Armadas –, sobretudo após a retificação da sucessão em 3 de outubro de 1966 por Costa e Silva, que na época era Ministro da Guerra. Mesmo a contragosto, Castello teve de admitir como sucessor o condestável de seu governo, porém, pressionou Costa e Silva por uma continuidade política pautada na democracia62, que, como sabemos, não se efetivou. Neste ínterim, os “moderados” dedicaram os últimos meses de governo à criação de dispositivos legais que impediriam arbitrariedades do grupo sucessor e abusos tanto da direita quanto da esquerda. Assim, estes apareceram entre final de 1966 e início do ano seguinte com datas para entrar em vigor fixadas concomitantemente à posse de Costa e Silva, ou seja, tornando evidente a estratégia “castelista”. Tal estrutura estava baseada em três itens: uma nova Constituição, a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional (LSN). A história das Constituições brasileiras acompanha as rupturas de governo e tendem a legitimar o regime que a redige. Isto não ocorreu de modo diferente no governo militar, quando a Carta que entrou em vigor em 15 de março de 1967 apresentou de diferente à Carta de 1946 basicamente o conteúdo dos três Atos Institucionais baixados até então e leis correspondentes.63 Um dos pontos-chave da Constituição decretada e promulgada pelo Congresso Nacional em 24 de janeiro de 1967 se referiu à constitucionalização da Doutrina de Segurança Nacional (DSN).64 A DSN, que nasceu nos EUA, chegou ao Brasil pelos oficias que tinham lutado na Segunda Grande Guerra. Nos campos de batalhas italianos, os brasileiros foram seduzidos pela máquina de guerra estadunidense, que os levaria a participar de cursos de escolas de guerra nos EUA (vide Castello Branco).65 A DSN originária dos gabinetes do National War College dos EUA estava marcada pela guerra fria, na qual se estabelecia um forte antagonismo das relações LesteOeste, deste modo, ficando evidente os EUA como potência ocidental e a batalha anticomunista.

NAPOLITANO. Coração civil, p. 41-42, nota 59. SKIDMORE. Brasil, p. 111. 63 _______. Brasil, p. 119. 64 BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. (O Brasil Republicano, 4). p. 13-42, p. 39. 65 BORGES. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares, p. 35. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 61 62

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Esta DSN seria adaptada ao Brasil na ESG, fundada em 1949 pelo Exército brasileiro, de matriz liberal e anticomunista atrelando segurança externa e segurança interna. A LSN decretada por Castello, ex-ESG, que fora prevista enquanto dispositivo na Constituição de 1967, estabeleceu no quadro de crimes à segurança nacional aqueles de ordem política e social 66 , assim, instituindo-se a noção de “guerra subversiva” ou “guerra interna”. 67 Deste modo, consequentemente, justificava-se “o controle da população e o exercício da violência física e simbólica para o opositores do regime”68 através de aparelhos de repressão, que figuraria como porta de entrada da institucionalização do aparato repressivo que, em 1969, viria a ser a Operação Bandeirante (OBAN) e por sucessão o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o qual estabeleceu um sistema de repressão com “as turmas de captura e interrogatório”69 articuladas por militares e policiais. Logo, vê-se que a estratégia legalista dos “castelistas” tinha saído como “um tiro pela culatra”, como diz Thomas Skidmore, O frenético recurso à lei tinha por fim moldar definitivamente o Brasil pós- 1967. Mas a tentativa continha forte dose de ironia. Ao codificar os poderes arbitrários considerados necessários, por exemplo, Castelo achava que podia impedir no futuro novas leis para impor medidas ainda mais arbitrárias. […] Ao elaborarem uma nova Constituição e a Lei de Segurança Nacional, Castelo e seus colegas pretenderam criar um sistema político que reconciliasse as idéias militares e constitucionalistas do país, da sociedade e do indivíduo. Mais importante e paradoxal, os castelistas acreditavam que tais leis – quase todas em conflito com os princípios constitucionais anteriores a 1964 – eram o único meio de preservar a democracia. Na realidade, eles foram vítimas da suposição elitista há muito predominante em Portugal e no Brasil de que a solução de qualquer problema consistia em uma nova lei. A UDN [União Democrática Nacional], o partido de Castelo, era o exemplo acabado deste tipo de mentalidade. Seu governo operava, portanto, no contexto de uma velha, melhor dizendo, antiquíssima tradição política brasileira.70

Em 1983 com o processo de abertura democrática, uma ampla campanha popular encabeçada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com o pedido de revogação da LSN, o qual foi atendido simbolicamente pelo presidente do julgamento, o ex-senador Teotônio Vilela do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), no Tribunal Tiradentes. Ocorrido em 10 de maio daquele ano no Theatro Municipal de São Paulo, o tribunal foi filmado

BRASIL. Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 mar. 1967. Seção 1, p. 2993. Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967366980-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 9 set. 2014, [p. 1], Arts. 2º e 3º. 67 FICO. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, p. 33. 68 BORGES. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares, p. 37. 69 FICO. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, p. 34. 70 SKIDMORE. Brasil, p. 121. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 66

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e, deste modo, produziu-se o documentário de Renato Tapajós Em Nome da Segurança Nacional, lançado no ano seguinte. sPor meio deste filme é possível constatar, a partir dos vários depoimentos prestados, que a LSN pautada na DSN significou a militarização da sociedade brasileira em todos os aspectos, como ressonância da “guerra interna”, na qual civis eram julgados por dispositivos militares. 71 Entretanto, a revogação daquela levaria a outra LSN sancionada no final de 1983, que é interpretada ao final do filme, ao contrário da leitura que a OAB fez, como um dispositivo “que modificaria apenas superficialmente a antiga lei, sem alterar em nada a DSN”.72 Assim, vale salientar que esta LSN vigora até hoje. A outra lei do final do governo de Castello Branco foi a Lei de Imprensa, a qual causou certa dor de cabeça ao general-presidente. Pois, com a negativa crítica da imprensa ao governo militar, o projeto de lei apresentado pelo general-presidente no final de 1966 ao Congresso pretendia enquadrar a mídia a partir da censura. Entretanto, os principais jornais do país (Correio da Manhã, Estado de São Paulo e Jornal do Brasil) atacaram contundentemente a lei que, segundo os jornalistas, incorporava a DSN da ESG, assim, instituindo que alguns crimes de imprensa poderiam ser tomados pelo viés de crimes à segurança nacional.73 Produzido neste calor, o documentário reflexivo de João Batista de Andrade Liberdade de Imprensa condensou as críticas direcionadas à Lei de Imprensa. Neste filme podemos ver e ouvir alguns bastiões do jornalismo da época como Carlos Lacerda, fundador do Tribuna da Imprensa, o qual denunciava que “a Lei de Imprensa feita pela semi-ditadura que tivemos ultimamente é uma lei contra a imprensa”74, pois tolhia a liberdade de notícia e crítica. É interessante percebermos como o feitiço retornou contra o feiticeiro. Entretanto, a pressão sobre a imprensa que o governo militar exerceu se baseava no pensamento de que a segurança nacional também dependia da conquista da opinião pública. Aliás, o filme de Andrade é costurado pela história de Celso Monteiro da Silva, um homem simples que, contando com o emprego no Estado de São Paulo e a renda vinda de uma banca de jornais e revistas, esforçava-se para construir uma casa para a sua família. Tal situação de pobreza vivida pelo personagem é contrastada e ironizada na montagem da parte final do

EM NOME da Segurança Nacional. Direção: Renato Tapajós. Produção: Suzana Villas Bôas, Aurea Gil e Beth Ganymedes. Intérpretes: Teotônio Villela, Clara Araújo, Aurora Maria, Luis Inácio da Silva, Rosalinda Santa Cruz, Ivan Seixas e outros. Roteiro: Renato Tapajós e Roberto Gervitz. Campinas, SP: Tapiri Cinematográfica, 1984. 1 DVD (48 min), son., color., 16 mm. 72 EM NOME da Segurança Nacional. 73 MARTINS FILHO. O palácio e a caserna, p. 104. 74 LIBERDADE de Imprensa. Direção: João Batista de Andrade. Produção: Sidnei Paiva Lopes. Intérpretes: Celso Monteiro da Silva; João Calmon; Carlos Lacerda e outros. Roteiro: João Batista de Andrade. São Paulo: Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP; Jornal Amanhã da UNE. 1 DVD (25 min), son., P&B, 16 mm. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 71

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filme, quando vemos o interior da casa de Celso, sua esposa e os vários filhos. Ao mesmo tempo, ouvimos o depoimento em off de Celso, que concordava com a intervenção estadunidense sobre São Domingos a fim de garantir a não-instalação de um governo socialista na ilha. Perguntado por João Batista de Andrade, o trabalhador ainda diz que, caso acontecesse algo semelhante no Brasil, ele apoiaria a interferência dos EUA.75 Mal sabia Celso que isto já ocorrera em 1964. Deste modo, a intenção do diretor foi evidenciar como a mídia poderia manipular (e manipula) a opinião pública. A este fato os militares estavam atentos. Nesta via, sob pressão da opinião pública, a Lei de Imprensa aprovada em 9 de fevereiro de 1967 incluiu várias emendas importantes, as quais garantiram a calma e relativa aceitação pela imprensa. A lei, em sua tarefa de regulação da liberdade de declaração do pensamento e de informação, não estabeleceu a censura. Aliás, seu artigo inicial definia ser “livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer” 76 . No entanto, ela também determinava um amplo aparato burocrático para o funcionamento dos meios de comunicação, bem como previa um amplo rol de penalizações relativas aos abusos da liberdade de imprensa. Portanto, uma interpretação de Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional deve levar em conta que Claudio Tozzi estava atento à realidade política e social brasileira daquele momento e a problematizou em seu trabalho. Lembro, inicialmente, que o artista participou da formulação do projeto gráfico e acompanhou a diagramação do jornal Amanhã em 1967 – periódico que coproduziu o filme de João Batista de Andrade –, “um tablóide alternativo, de conteúdo contestatório ao regime militar, fundado por Raimundo Pereira”. 77 Tal fato e o engajamento político de Tozzi junto ao movimento estudantil levam a crer que a organização dos elementos desta obra de 1967 é intencional e crítica, principalmente quanto ao uso da imagem de Castello Branco. Assim, esta convoca diretamente o público à problematização da situação política, pois em caso de uso de uma imagem amplamente conhecida, As obras têm efeito impactante sobre o espectador, expondo-o a imagens icônicas do cotidiano contemporâneo. O uso da imagem familiar, deslocada para outro contexto, induz a um certo nível de identificação e participação ativa do observador, motivado para alcançar os significados potenciais que a obra sugere. Ele se engaja em atividades associativas, e nesse processo obtém um LIBERDADE de Imprensa. BRASIL. Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967. Regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 fev. 1967. Seção 1, p. 1657. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5250.htm>. Acesso em: 9 set. 2014. 77 MAGALHÃES. Claudio Tozzi, p. 20. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 75 76

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efeito colateral da Pop Art: uma ampliação da consciência, no que se refere ao ambiente em volta e ao cotidiano. O observador, através de respostas perceptivas provocadas pelo reconhecimento imediato da imagem e pela dimensão visivo-tátil presente na obra Pop, preenche o espaço vazio que o artista deixou ao optar pela atitude de distanciamento e impessoalidade.78

Igualmente, o artista paulistano aproximava-se da ideia de Sérgio Ferro, seu professor e companheiro de luta artística e política, que intencionara “fazer uma pintura que se aproximasse das pessoas, que qualquer um pudesse entender”. 79 Sintomaticamente, isto tinha a ver com a aproximação de arte e vida que, no caso dos pintores-arquitetos, especialmente, significou vida engajada politicamente. Em 1971, tal engajamento rendeu um processo movido pelo regime militar contra Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Carlos Heck, Júlio Barone e Sérgio de Souza Lima – o grupo de arquitetos da ALN –, o qual resultou na sentença do juiz militar que os condenou a dois anos de prisão “por atentados a bomba, pertencer a organizações terroristas e outros delitos”.80 Aliás, nesta mesma época em que os arquitetos foram presos, o ateliê de Claudio foi invadido pelos agentes do DOI-CODI e Nós somos os guardiões-mó … foi destruído81. Deste modo, acredito que os eventos estavam conectados, porém, o artista não deixou isso evidente na entrevista concedida a mim. Ora, a destruição do quadro-objeto pelo regime militar não consistiu em mera casualidade. O trabalho tinha sido apresentado na Primeira Feira Paulista de Opinião realizada em São Paulo82, espetáculo realizado pelo Teatro de Arena em 5 de junho de 1968, no qual artistas das várias artes respondiam à pergunta: “O que pensa o Brasil de hoje?”. 83 Assim, o evento pretendeu reunir interpretações de artistas sobre a realidade social e política brasileira daquele momento a partir de suas obras. Deste modo, Tozzi, que, com Nós somos os guardiões-mó …, apresentou sua interpretação de um Brasil que em 1967/1968 se enveredava para a militarização da esfera civil, também culpou Castello Branco por ter decretado a Lei de Segurança Nacional que incorporava a Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra, a qual, como já supracitado, abriu as portas para a institucionalização do aparelho repressivo militar. Além disto, o trabalho do artista visual tem certa dose de ironia. A iniciar pelo título: Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional, que aliás, era o discurso dos militares golpistas OLIVEIRA. o nalisa a a s as s n a o s os s a os ni os o asil na i nal n na ional ao Paulo, em 1967, p. 90. 79 FERRO, 1997 apud RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 177. 80 RIDENTI. Em busca do povo brasileiro, p. 181. 81 TOZZI. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros, p. 6. 82 MAGALHÃES. Claudio Tozzi, p. 37. 83 ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Teatro. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. Primeira Feira Paulista de Opinião. Disponível em:<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction= espetaculos_biografia&cd_verbete=4153>. Acesso em 9 set. 2014. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 78

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que tinham feito a “revolução” para garantir a ordem democrática e vinham se mantendo no poder para continuar a “garantindo”. Nesta falácia que durou 21 anos, as Forças Armadas instauraram uma ditadura militar, a qual desde o início marcada por uma ordem autoritária que contrariava o discurso da salvaguarda da democracia. Portanto, esta ironia aparece no próprio discurso da obra com a apropriação da medalha com o busto do militar, na qual está inscrito o nome do trabalho, e sua relação com os outros elementos que indicavam a culpa de Castello: o autoritarismo e, por fim, a contradição entre a fala pretensamente democrática do governo e a realidade social e política. Nesta via, a inscrição do texto na medalha se configura, segundo o historiador da arte Peter Wagner, como “iconotexto”, que serve como um guia em direção a uma leitura proposta pelo artista.84 Contudo, este iconotexto lido em relação aos outros elementos da obra não apresenta valor literal, mas sim estabelece um valor comunicativo de ironia relacionada ao discurso dos militares que se autodenominaram “guardiões-mór da sagrada democracia nacional”. Neste sentido, é possível constatar que a operação de apropriação em USA e abUSA e em Nós somos os guardiões-mó … tem a ver com o que o historiador Roger Chartier aponta sobre as apropriações culturais – porque estou pensando a produção artística como prática cultural também –, que são pensadas enquanto exercícios de apoderamento sempre criadores, desviantes, nos quais os usos ou as representações “não são de forma alguma redutíveis à vontade dos produtores dos discursos e das normas”.85 Considerações finais Neste ponto de utopia do deslocamento semântico, pode-se sinalizar também aproximações do trabalho de Tozzi com a ideia de détournement, ou seja, “de ‘desvio de finalidade’: que consiste em tomar elementos previamente disponíveis, para lhes conferir, em um novo contexto, um sentido inovador e revolucionário”. 86 A ideia foi desenvolvida nos anos 1950 pela Internacional Letrista e posteriormente utilizada pela Internacional Situacionista, grupo francês atuante de 1957 a 1972, que contou com a participação de intelectuais de diferentes áreas e teve como figura mais proeminente o pensador e ativista Guy Debord.

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004. (Coleção História), p. 49. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2. Ed. Algés: DIFEL, 2002. (Memória e Sociedade), p. 136. 86 JAPPE, Anselm. Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após cinquenta anos? Baleia na Rede, Marília (SP), v. 1, n. 8, p. 192-205, dez. 2011, p. 195, grifo meu. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 84 85

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Então, notamos um novo valor conferido aos objetos apropriados nas obras de 1966 e 1967, isto é, uma atualização da referência ao fascismo e aos EUA como crítica à ditadura militar e a ironia atribuída à salvaguarda da democracia nacional, e também, na via de leitura proposta por Anselm Jappe, a “dissolução das formas artísticas tradicionais”87. Tal dissolução foi proposta por Claudio e, mais especificamente, pela Nova Objetividade: a superação do quadro de cavalete em direção à criação de objetos interventores na realidade que com ela dialogassem. Nesta via, as convergências dos nouveaux réalistes com os situacionistas compreenderam também algumas temáticas caras aos artistas visuais brasileiros na década de 1960, ou seja, a crítica à institucionalização da arte, o diálogo arte e realidade, principalmente a realidade inventada pela cultura de massa, que leva à apropriação de fragmentos (e mitologias) do mundo espetacularizado, alienado, enfim, industrializado e urbano. No sentido de uma proposta de arte engajada, a partir da qual Tozzi atuou como força resistente e crítica da realidade política e social brasileira nos primeiros cinco anos de regime militar, assim, promovendo a atuação da arte na causa revolucionária e uma revolução na arte, lembro a posição do filósofo Mikel Dufrenne 88 sobre a não neutralidade da arte e do artista, porque acredito no jogo propositivo/participativo entre o artista e público, principalmente, em um momento como o vivenciado em 1966 e 1967 e marcado pela institucionalização da ditadura que se mostrava cada vez mais militar e autoritária. Era preciso, como disse Gadamer89, apresentar uma justificativa para a arte, assim como todos os tempos produziram as suas. Na poética de Tozzi no período 1964-1968, a arte se justificou por seu caráter de resistência, de luta contra o regime. Portanto, o artista politizou a arte, pois desejava a partir da estrutura de seus trabalhos ressoar sua vontade de organizar o mundo. Tal preocupação de organização no caso de Claudio Tozzi também esteve referida à sua formação em arquitetura, a qual desaguou na necessidade de pensar o espaço que não se limitava ao arquitetônico, sobretudo com o diálogo que travou na FAU-USP com Sérgio Ferro e Farid Helou – este último foi diretamente ligado a Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, e a Carlos Marighella da ALN90 –, mas que também estava relacionado com um pensamento de ação sobre o espaço artístico, político e social.

JAPPE. Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após cinquenta anos?, p. 197. DUFRENNE, 1974 apud AMARAL, Aracy Abreu. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 19301970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 3. ed. São Paulo: Studio Nobel, 2003, p. 14. 89 GADAMER. A atualidade do belo, p. 16. 90 TOZZI. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros, p. 5. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 87 88

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Fim da História?: uma reflexão sobre as possíveis implicações políticas do regime de historicidade presentista

Artigos

End of History?: a reflection on the possible political implications of the presentist regime of historicity Danilo Araújo Marques1 Mestrando em História – UFMG danilomarques.his@gmail.com Recebido em: 29/10/2014 Aprovado em: 15/04/2015

RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre as possíveis implicações políticas daquilo que François Hartog denominou “regime de historicidade presentista” de nossos dias ao afirmar que, na articulação das categorias metahistóricas de “espaço da experiência” e “horizonte de expectativa”,“ficamos habitando um presente hipertrofiado que tem a pretensão de ser seu próprio horizonte”. Relacionando este diagnóstico do tempo histórico ocidental contemporâneo à conclusão exposta por Francis Fukuyama em sua polêmica tese do “fim da História”, buscaremos expor uma leitura sobre a atual condição política das sociedades ocidentais, tomando como base o raciocínio do filósofo Slavoj Žižek. A partir disso, incitaremos uma reflexão sobre a necessidade de se repensar o formato da ação política tendo em vista a irrupção de uma ordem do tempo centrada no presente. PALAVRAS-CHAVE: Temporalidade, Presentismo, Política. ABSTRACT: The objective of this paper is to discuss the possible political implications of what François Hartog has called "presentist regime of historicity" of our days, stating that, at the articulation of meta-historical categories of "space of experience" and "horizon of expectation", "we inhabiting a hypertrophied present that pretends to be his own horizon." Relating this diagnosis of the contemporary historical time with the conclusion expounded by Francis Fukuyama in his controversial thesis about the "end of History",we'll seek expose a read about the present political condition of western societies, based on the philosopher Slavoj Žižek's reasoning. From this, we'll incite a reflection on the need to rethink the format of political action, in view of the emergence of a time's order focused on the present. KEYWORDS: Temporality, Presentism, Politics.

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O autor agradece aos pareceristas pela leitura atenta e respeitosa que em muito contribuíram para a conclusão do texto. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Desde que adentramos o “novo século”, tal como nos atentava Eric Hobsbawm, novas questões, surgidas desde pelo menos os dois últimos decênios do século passado, naturalmente também se tornaram mais recorrentes.2 Entre as mesmas, chama particular atenção aquela que propõe a reflexão sobre uma nova ordem ou lugar-comum do tempo, um novo “cronótopo”, como nos diria Hans Ulrich Gumbrecht.3 Vários pensadores, entusiastas ou não do que viria a ser a nossa famosa – mas não menos famigerada – pós-modernidade versaram sobre a atual irrupção da categoria temporal do presente, especificamente nas sociedades ocidentais contemporâneas. Entre eles, podemos citar, por exemplo, o filósofo Michel Maffesoli e sua noção do trágico “instante eterno”4 ou o sociólogo Zygmunt Bauman com sua reflexão sobre o “presente contínuo”.5 Mas qual teria sido a postura do pensamento concernerte ao saber histórico diante de uma questão tão patente e cara àquilo que seria mesmo o locus profissional do historiador, a saber o próprio tempo? Há pouco mais de uma década, no ano de 2003, o historiador François Hartog publicava a obra Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Articulando as categorias metahistóricas de “espaço da experiência” e “horizonte de expectativas” propostas por Reinhart Koselleck para se pensar o tempo histórico,6 numa espécie de visada antropológica declaradamente influenciada por Marshall Sahlins,7 o autor chegava à conclusão de que atualmente as sociedades ocidentais viveriam em um novo “regime de historicidade”. Diferente do “regime de historicidade” futurista da modernidade, tão bem explorado pelo já citado Koselleck, mas não mais semelhante àquela ordem do tempo predecessora, passadista, que se fundamentava na tradição e nas lições fornecidas pelo passado captado pela Historia Magistra Vitae, o novo “regime de historicidade” traria a marca imperiosa da categoria do presente, caráter este que passa, então, a ser exposto e expresso pelo neologismo “presentismo”. Assim, nas palavras do próprio Hartog, desde o último decênio do século XX, o “futurismo deteriorou-se sob o horizonte e o presentismo o substituiu. O presente tornou-se 2HOBSBAWM,

Eric. O novo século: entrevista a Antônio Polito. Trad. de Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 3GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e estagnação: ensaios escolhidos. Trad. Luciana Villas Bôas e Makus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012. 4MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Trad. de Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003. 5BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 6 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 7 SAHLINS, Marshall David. Ilhas de história. Trad. de Barbara Sette. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. Ver ainda: HARTOG, François. Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire. Annales ESC, 38e année, n.6, 1983, p.1256-1263. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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o horizonte. Sem futuro e sem passado , ele produz diariamente o passado e o futuro de que sempre precisa, um dia após o outro, e valoriza o imediato”.8 Comentando a obra de Hartog em seu Teoria & História, José Carlos Reis chega mesmo a afirmar a possibilidade de se concluir que “o tempo histórico parece parado”, uma vez que a noção de presentismo proposta pelo historiador francês fornece a imagem de um presente hipertrofiado, um “horizonte-dique, sem passado e sem futuro imediato”.9 De um ponto de vista epistemológico relativo ao campo do saber historiográfico, Hartog afirmou algumas vezes a necessidade de se refletir sobre uma nova historiografia, diferente da dita “grande forma do século XIX e parte do XX” tributária do ponto de vista do futuro. Uma nova forma, um novo método, que tome o presente em que age como parâmetro perspectivo próprio. Não sem razão, aponta a extrema dificuldade de tal empresa. “Era o futuro que dava inteligibilidade ao presente e ao passado. Agora”, pergunta ele, “será que é possível escrever uma História do presente do ponto de vista do presente, tomando o presente como ponto de vista sobre ele mesmo? Aparentemente é difícil, para não dizer impossível”.10 Para fins do exercício aqui proposto, tomemos por um instante esta questão levantada por Hartog e substituamos o caráter de reflexão sobre o que parece ser o “futuro presentista” da disciplina histórica por uma reflexão que leve em conta a ação política. A história já deu mostras suficientes de como fazer política tendo como ponto de vista tanto o passado e a tradição, como o futuro, o porvir e a utopia revolucionária, estruturalmente diferentes da ordem presente. Contudo, apropriando-se da pergunta acima, será que é possível fazer política do ponto de vista do presente, tomando o presente como ponto de vista de si mesmo? Se sim, o que poderia sobrevir de uma novidade tão contemporaneamente perturbadora como esta? Na mesma obra citada até aqui, Hartog fornece, rapidamente, uma espécie de indício sobre o que se esperar da atividade política em uma

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Trad. de Andréa Souza de Menezes [et al.]. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.148. 9REIS, José Carlos. Teoria & História: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012, pp.54-55. 10 HARTOG, François. Entrevista com François Hartog. SCRIPTA CLASSICA ON-LINE. Literatura, Filosofia e História na Antiguidade. Tema: Contestações do Mito. Belo Horizonte: NEAM/UFMG, nº1, abr. 2003. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8

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ordem do tempo presentista ao afirmar que “Olha-se o futuro, com certeza, mas a partir de um presente contínuo, sem solução de continuidade nem revolução”.11 Ora, o diapasão de semelhante afirmação remete-nos de súbito às páginas conclusivas da polêmica e controversa – mas não menos instigante – tese do “fim da História”, proposta por Francis Fukuyama na última década do século passado. Lembremos as palavras do cientista político em O fim da História e o Último Homem: Nós [...] vivemos em uma situação fora do comum. No tempo dos nossos avós, muitas pessoas sensatas podiam prever um futuro socialista luminoso no qual teriam sido abolidos a propriedade privada e o capitalismo e no qual a própria política seria uma coisa ultrapassada. Hoje, ao contrário, mal podemos imaginar um futuro radicalmente melhor do que o nosso. [...] Podemos imaginar [...] mundos futuros muito piores do que o que conhecemos hoje [...] Mas não podemos visualizar um mundo essencialmente diferente do atual e ao mesmo tempo melhor.12

E é diante de tal constatação, portanto, que Fukuyama propõe sua polêmica ilação: Se chegamos hoje a um ponto em que não podemos imaginar um mundo essencialmente diferente do nosso, no qual não existe nenhuma perspectiva visível ou óbvia de que o futuro representará uma melhora fundamental da ordem atual, então devemos tomar também em consideração a possibilidade de que a própria História tenha chegado ao seu fim.13

Seria esta uma característica de nossa época? O fim das idelogias e das esperanças revolucionárias, do futurismo utópico ao fim do século XX, teria gestado um novo ethos de apatia no que diz respeito à ação política? Ou seria possível o surgimento de um novo formato de ação? De acordo com Russel Jacoby, a ideia de que o futuro pode transcender, superar fundamentalmente o presente foi praticamente extinta, sobretudo no ambiente intelectual. O consenso de que “não há alternativas” teria repentinamente surgido no cenário político desde o fim do século XX, e no início do XXI já teria fagocitado gregos e troianos, progressistas e conservadores, esquerda e direita, transmutando-se ligeiramente em uma espécie de paradigma geral da apatia na vida da pólis. Dessa forma, afirma Jacoby, em questões como a de que a história teria chegado ao seu fim diante da hegemonia de uma suposta “revolução liberal mundial”, Fukuyama teria mesmo “exagerado na mão”. Por outro lado, diz ele, “Sua afirmação de que a hora do radicalismo

11HARTOG,

François. Regimes de historicidade, p.256. Francis. O Fim da História e o Último Homem. Trad. de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco,

12FUKUYAMA,

1992, p.77. 13______. O Fim da História e o Último Homem, p.82. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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[transformador] passou soa verdadeira. [...] Hoje a visão [de uma realidade diferente por vir] apagouse, a autoconfiança esvaiu-se e as alternativas desapareceram”.14 As antigas propostas de ações transformadoras da sociedade teriam sucumbido diante das atuais “ações afirmativas” – não raro determinadas pelo próprio Estado – as quais, em sua maioria, há que se reconhecer, possuem o louvável ímpeto da busca por uma integração cidadã, mas que declaradamente visam a perpetuação da lógica da absorção em detrimento da crítica e do iminente conflito. A despeito de tudo isto, poder-se-ia objetar tais argumentos, tomando como exemplos as “jornadas de junho de 2013” ocorridas no Brasil, bem como outros movimentos de natureza semelhante em países da Europa e nos Estados Unidos da América – para ficarmos apenas na realidade ocidental. A noção de uma apatia política proveniente de uma ordem do tempo, um regime de historicidade presentista talvez fosse realmente uma realidade entre a última década do século passado e a primeira do século atual. Entretanto, não se sustentaria diante dos recentes gritos e palavras de ordem vindos das ruas. No limite, seria possível mesmo afirmar a implausibilidade da ideia de um presentismo que não vislumbra a possibilidade de um novo “horizonte de expectativas”, visto que as gigantescas mobilizações, possuidoras de um contingente sem número de adeptos, teriam franqueado o impulso coletivo por um futuro diferente. É correta a afirmação de que aquilo que se viu nas ruas das principais cidades brasileiras há quase dois anos sugere o clamor por uma ação e participação intensamente políticas15 – sobretudo se se considera a variedade reivindicatória, representada pela imagem de um verdadeiro mosaico de vozes e palavras de ordem.16 Seria de uma tacanhice galopante – muitas das vezes digna de certos círculos intelectuais que teimam em se manter recolhidos nas suas “fortalezas sistemáticas” – sustentar a extensão e a continuidade de uma “era da apatia política” após tais eventos. Entretanto, há que se refletir sobre o formato de ação política concernente a tais manifestações. Qual seria o objetivo deste impulso coletivo? Haveria um ethos transformador, a busca forçosa de um novo

JACOBY, Russell. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp.25-26. 15HARVEY, David; MARICATO, Hermínia; ŽIŽEK, Slavoj, DAVIS, Mike et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo. 2013. 16A respeito da ideia de que é “um grande equívoco [...] ver os jovens manifestantes como um todo, um bloco homogêneo”, ver: GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 14

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“horizonte de expectativas”, proponente de uma alteração do presente e da atual ordem por uma outra realidade? Provavelmente, o filósofo Slavoj Žižek nos diria que não. Analisando algumas das manifestações ocorridas no ano de 2011 em países de regimes democráticos - como o Occupy Wall Street, nos EUA, e os Indignados, na Espanha – possuidoras, também, da característica dimensional imensa do ponto de vista per capita (para usar usar um termo estatístico tão impessoal e desporsinificador), Žižek aponta a falta de programas. Para ele, este seria um traço político do nosso atual “deserto pós-ideológico”, anexo à conjuntura mais ampla da pós-modernidade. O que se presenciou, foram manifestações explosivas – e não raro violentas – desprovidas de uma exigência particular ou que, em meio a uma infinidade de exigências, tornaram-se “protestos de nível zero”. Diz ele: O fato de não existir um programa é em si algo que deve ser interpretado e que nos diz muito sobre nossa condição político-ideológica [...] O triste fato de que uma oposição ao sistema não possa se articular na forma de uma alternativa realista, ou pelo menos de um projeto utópico significativo, [...] é uma acusação grave à nossa condição.17

Tal condição seria atravessada ainda por outra questão, que vai além da mera constatação de uma falta de programa, mas que, como real efeito desta, endossa o argumento da deficiência de uma ética transformadora nas manifestações: a inexistência de alternativas políticas nas propostas e exigências. Como afirmou a filósofa Marilena Chauí, “os grupos não têm um plano de organização social futuro, em substituição à estrutura social vigente”.18 Questionado sobre a possibilidade de haver uma qualidade utópica nas manifestações de junho de 2013, o historiador Valdei Lopes de Araújo, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), sustentou que havia algo de novo em seu formato de ação política e que, por isto mesmo, […] se há vestígios de utopia, de projeto social, nas manifestações dos últimos dias, ela é bastante diferente de sua forma moderna, já que não é visível qualquer esforço para fundamentar um caminho de transformação. Antes de tudo vemos uma vontade de participação, de correção de injustiças, que é sempre um motor poderoso de mobilização, mas não uma vontade de mudança estruturada ou de

17ŽIŽEK, 18CHAUÍ,

Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012, p.59. Marilena. “‘Black blocs’ agem com inspiração fascista”. Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2013, p. A9. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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ruptura das condições de reprodução do mundo atual. Muitos parecem desejar apenas esse mesmo mundo de forma mais eficiente e justa.19

No livro Em defesa das causas perdidas, Slavoj Žižek – o qual, há que se notar, é um filósofo contemporâneo proponente de uma releitura do pensamento marxiano – chega à conclusão – não sem um tom provocador – de que […] é fácil rir da noção de fim da história de Fukuyama, mas o ethos dominante hoje é “fukuyamiano”: o capitalismo democrático é aceito como a fórmula da melhor sociedade possível que finalmente se encontrou – só resta torná-lo mais justo, mais tolerante etc.20

Tal como afirmado por Hartog no excerto citado mais acima, o futuro é visto a partir de um presente contínuo, sem revolução. Parece haver o consenso tácito de que as bases sócio-políticas já foram lançadas e que resta, tanto quanto possível, torná-las mais abrangentes e integradoras. Não há alternativas políticas “realistas”. No limite, este seria, talvez, um problema típico da sociedade de consumo, onde o consumidor se vê investido de uma liberdade de escolha suficiente para optar entre esta e aquela embalagem ou marca – visivelmente distintas entre si –, sabendo, no entanto, que se tratam de conteúdos ou produtos pouco ou nada diferentes. Tem-se um ordem política estabelecida, portanto, diante dessa condição, o cidadão-consumidor (ou consumidor-cidadão?) vê-se imbuído da plena liberdade de poder reivindicar o rótulo que pareça mais agradável dentre as outras possibilidades de rótulos ofertadas.21 De acordo com Žižek, essa ordem política estabelecida – e que parece atualmente inquestionável – seria a da democracia de cunho liberal, tal como projetava Francis Fukuyama em seu suposto “delírio de duas décadas atrás, quanto dizia que […] agora [...] parece haver um consenso geral que aceita a afirmação da democracia liberal de que é a forma mais racional de governo, isto é, o Estado que realiza com maior perfeição o desejo racional ou o reconhecimento racional.22

As ultrapassadas propostas de transformação da ordem política – os chamados “discursos de emancipação” – teriam deixado a cena na esteira pós-moderna do desgaste das utopias, em favor de 19ARAUJO,

Valdei Lopes. Entrevista: Com a palavra...Valdei Lopes. História, Saúde, Ciências – Manguinhos, junho de 2013. Captado em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/mais-do-que-narrar-esses-eventos-precisamos-vive-losintensamente/. Acesso em: 11 de abr. 2015. 20 ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Trad. de Maria Beatriz de Medina. Trad. de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2011, p.416. 21BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 22FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o Último Homem, pp.259-260. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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um reconfiguração, uma reforma interna ao próprio “sistema” (para utilizar outro termo tão desgastado), muito mais sóbria e realista. “Tornemos nossa democracia liberal mais transparente!”, um novo rótulo – plus – para o mesmo conteúdo. Ora, mas o que dizer da constante aversão ao liberalismo econômico, bem como as críticas dirigidas aos efeitos nefastos do capitalismo como sistema econômico no seio das sociedades? Lembremo-nos, por exemplo, dos gritos contrários à corrupção, à utilização de verbas públicas para o financiamento dos megaeventos, do “Não vai ter copa!” em junho de 2013 ou do “We are the 99%” do OWS,23 e ponderemos: será mesmo que o argumento de certa aquiescência política diante de uma democracia de verniz liberal se sustentaria diante de tais ocorrências? Mesmo nestes casos, nos diria Žižek, o quadro liberal democrata da luta contra os excessos não é questionado. O objetivo (explícito ou implícito) é democratizar o capitalismo, estender o controle democrático à economia por meio da pressão da mídia pública, dos inquéritos parlamentares, de leis mais rigorosas, de investigações políticas honestas etc., mas sem questionar o quadro democráticos do Estado de direito (burguês). Essa é ainda a vaca sagrada que nem mesmo as formas mais radicais de “anticapitalismo ético” [...] ousam tocar.24

Diante deste quadro, reportando-nos à pergunta que gerou toda essa necessária divagação sobre os recentes eventos, que mal saídos das ruas já receberam a alcunha histórica de “jornadas de junho” – outra característica do presentismo, nos diria Hartog –,25 somos tentados novamente a questionar: quais seriam as possíveis implicações políticas de nosso atual regime de historicidade presentista? Talvez, a primeira resposta que se insinue em forma de diagnóstico à tal questão seja a de que, atualmente, vivendo de acordo com estes que parecem ser os parâmetros temporais do presentismo – aparentemente tão próximos à conclusão exposta na tese fukuyamiana do “fim da História” – nossa presente condição política, de um ponto de vista geral, esteja permeada por um conservadorismo tácito – entendendo o termo “conservadorismo” em seu sentido mais estrito:

23O

principal slogan do Occupy Wall Street faz referência à desigualdade da distribuição de renda nos Estados Unidos. Neste caso, a pauta de reivindicação tem nome e endereço: “Nós somos os 99%”, dizem, “e não vamos mais tolerar a ganância e a corrupção de 1%”. Captado em: http://occupywallst.org/ Acesso em: 11 de abr. de 2015. 24ŽIŽEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente, p.91. 25HARTOG, François. Temps et histoire: comment écrire l’histoire de France? Annales HSC, 50e année, n.6, novembredécembre 1995, pp.1219-1236. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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talvez não tanto relacionado ao tradicionalismo, mas certamente avesso à instabilidade e abrupção das estruturas políticas. No limite, se se estiver de acordo com Jacques Derrida, poder-se-ia afirmar que, neste caso, já não existiria nem mesmo o conceito de política em sua forma conhecida. Concluindo sua crítica à tese de Fukuyama, Derrida aponta certa necessidade de “não mais renunciar a [...] pensamento afirmador da promessa messiânica e emancipatória como promessa”, dado que esta seria “a condição de uma re-politização”.26 Contudo, ao sugerir uma resposta como esta, é possível que se esteja operando com ferramentas não mais cabíveis ao entendimento de um possível renovação da ideia de ação política. O já citado Valdei Araújo, comentando e relacionando as referidas manifestações com o que parece ser nossa atual experiência do tempo, afirmou que “as pessoas [estavam] reunidas enquanto indivíduos ou grupos de afinidade, mas não no sentido político tradicional”.27 Há algo de novo em tudo isso, para bem ou para mal – não cabe aqui uma discurso moralizante. Em seu estudo sobre as “jornadas” no Brasil e no mundo, Maria da Glória Gohn defende que as “manifestações de junho fizeram eclodir novos modos de organização política”,28 que, portanto, “só poderão ser considerados com em transição para movimentos políticos, desde que se entenda a política de forma diferente da atualidade”.29 Tais palavras a respeito dessa necessidade em se repensar o sentido da ação na cena pública remetem à tese principal do filósofo Paulo Arantes, segundo a qual a certa altura do curso contemporâneo do mundo, a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais e numa direção surpreendente, como se a brecha do tempo fosse reabsorvida e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era que se poderia denominar das expectativas decrescentes, algo “vivido” em qualquer que seja o registro, alto ou baixo, e vivido em regime de urgência.30 (Grifos no original)

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, pp.104-105. 27ARAUJO, Valdei Lopes. Entrevista: Com a palavra... Valdei Lopes. Captado em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/mais-do-que-narrar-esses-eventos-precisamos-vive-los-intensamente/. Acesso em: 25 de out. 2014. 28GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p.86 29______. Manifestações de junho de 2013 no Brasil..., pp.64-65. 30ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p.67. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 26

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Sendo assim, o “novo tempo do mundo”, este “fato consumado de [nossa] época”, seria marcado, sobretudo, pelo sentido político da emergência. Poderíamos sustentar que um de seus principais atributos, como bem mostraram as citadas manifestações, estaria no fato de que a ação na cena pública volta-se subitamente para o aqui-agora. Sem mais projetos, sem mais vanguardas, sem mais futuro. O que deve ser feito, num piscar de olhos já é, e intensifica-se no embalo juvenil da “espontaneidade”: a “referência é o presente”, a “permanência é circunstancial”.31 Tal como nas palavras de Zaki Laïdi – um dos autores que fundamentam o estudo de Paulo Arantes, A urgência [...] procura destruir todos os rituais – através da prática do curtocircuito – para deles pôr em cena apenas um – o do ativismo, da ação rápida, imediata e febril, que joga nervosamente com todos os objetos tecnológicos da simultaneidade [lembramos, aqui, dos twitters, facebooks e whatsapps da vida], bem como o registro da emoção que frequentemente o acompanha.32

Se aceitarmos, portanto, que há latente um novo sentido político, distinto do sentido político tradicional, talvez a conclusão de Derrida, por outras vias de efeito, estivesse mesmo correta e o conceito de política, tal como pensado até então, não mais se sustente. Se assim for, é bem possível que este intenso e atual debate em torno da experiência de uma nova ordem do tempo engendre a reflexão sobre um novo conceito de política, a partir da acepção de um novo tipo de ação, realizada do ponto de vista, não mais do passado tradicional, nem de um futuro utópico, mas de um presente onipresente e autorreferenciado. Quem sabe, o próprio baluarte de “uma antipolítica que saiba decifrar o renascimento paradoxal de expectativas que se abram para outras dimensões temporais”,33 como pontuou Paulo Arantes ser hoje nossa principal carência? Talvez uma boa pista para esta reflexão possa ser extraída dos escritos “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin.34 Nas palavras de Arantes, Benjamin apresentou “a primeira célula temática de um diagnóstico histórico-filosófico da Era da Emergência”.35 Assim sendo, seria cara a este debate em torno da sugestão de uma “antipolítica” a interpretação da práxis oferecida por Giorgio Agamben, que, em leitura das teses benjaminianas em questão, sustenta que

COHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil..., p.71. Zaki. A chegada do homem-presente: ou da nova condição do tempo. Trad. de Isabel Andrade. Lisboa: Instituto Piaget, p.226. 33RODRIGUES, Carla. No tempo da emergências – uma entrevista com Paulo Arantes. Jornal Valor Econômico, caderno “Eu & fim de semana”, 9 de abril de 2014. Captado em: http://blogdaboitempo.com.br/2014/05/11/no-tempo-dasemergencias-uma-entrevista-com-paulo-arantes/. Acesso em: 25 out. 2014. 34BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. de João Barrento. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. 35ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo..., pp.268-269. 31

32LAÏDI,

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o tempo da história é o cairós em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade. [...] Verdadeiro materialista histórico não é aquele que segue ao longo do tempo linear infinito uma vã miragem de progresso contínuo, mas aquele que, a cada instante, é capaz de parar o tempo [...] É este o tempo experimentado nas revoluções autênticas, as quais, como recorda Benjamin, sempre foram vividas como uma suspensão do tempo e como uma interrupção da cronologia; porém, uma revolução da qual brotasse, não uma nova cronologia, mas uma mudança qualitativa do tempo (uma cairologia), seria a mais grávida de consequências e a única que não poderia ser absorvida no refluxo da restauração.36 (Grifos nossos)

36AGAMBEN,

Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.126. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Artigos

“Não temos nada, nada”: políticas públicas voltadas aos sertanejos em períodos de estiagem na microrregião de Sobral na década de 1970 "We have nothing, nothing": public policies aimed sertanejos years in drought periods of Sobral in the micro 1970s Luciane Azevedo Chaves Mestranda em História Universidade Federal de Uberlândia (UFU) lucianeazechaves@gmail.com Recebido: 29/03/2014 Aprovado: 06/06/2014 RESUMO: O artigo consiste numa discussão sobre as políticas públicas implementadas pelo Estado no período da Ditadura militar abordando os períodos de estiagem na microrregião de Sobral-CE na década de 1970. Essas políticas eram realizadas através de prestações de socorros como frentes de serviços, projetos agroindustriais e projetos de irrigação e noticiadas como iniciativas para amenizar o sofrimento dos sertanejos. Como forma de obter lucros e angariar votos, os governos estaduais utilizavam essas políticas como práticas assistencialistas que se tornaram mecanismos de dominação sobre os trabalhadores rurais. O artigo propõe uma análise de dois periódicos cearenses na década de 1970, o Jornal Correio da Semana, e o Jornal Correio do Ceará. Atenta - se para a construção entorno dos modos de vida do sertanejo da microrregião de Sobral durante os períodos das secas que afetaram o Nordeste brasileiro, em especial a Zona Norte do Ceará, na década de 1970, percebendo como a imprensa e o Estado mitificou essa região como sinônimo de pobreza e atraso. PALAVRAS-CHAVE : Políticas públicas, Seca, Sertanejo. ABSTRACT: The article is a discussion on public policies implemented by the State during the military dictatorship addressing periods of drought in the microregion of Sobral -CE in the 1970s. These policies were implemented through the provision of aid as fronts services , agroindustrial projects and irrigation projects and reported as initiatives to alleviate the suffering of the backlands . In order to make profits and garner votes , state governments used these policies as welfare practices that have become mechanisms of domination over rural workers . The article proposes an analysis of two journals Ceará in 1970 , the Journal of the Week Mail , and Mail Journal of Ceará . Attentive - to the construction around the lifestyles of the backcountry of micro- Sobral during periods of droughts that affected the Brazilian Northeast , in particular the North Zone of Ceará , in the 1970s , noting how the press and the state mythologized the region as synonymous with poverty and backwardness . KEYWORDS: Public policy, Drought, Country.

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Introdução Este artigo consiste numa investigação sobre as políticas públicas realizadas pelo Estado do Ceará em períodos de estiagem na microrregião da cidade de Sobral na década de 1970, abordando a forma de desenvolvimento econômico proposto ao homem do campo pelos governos militares através dos investimentos econômicos em projetos que visavam modernizar o campo na justificativa de amenizar o sofrimento do agricultor sertanejo em períodos de estiagens, e, ao mesmo tempo tornar a região Nordestina produtiva, desconstruindo a ideia de atraso devido ao flagelo da seca. Essas políticas eram efetuadas através de prestações de socorros, entre podem ser destacadas: as frentes de serviços, os projetos agroindustriais e os projetos de irrigação. Elas eram noticiadas como iniciativas para amenizar o sofrimento dos sertanejos. Para obter lucros e angariar votos, os governos estaduais utilizavam essas políticas como práticas assistencialistas que se tornaram mecanismos de dominação sobre os trabalhadores rurais. Para dar suporte a essa problemática utiliza - se os jornais Correio da Semana1 e Correio do Ceará2 dá década de 1970. Esses periódicos contemplam minha pesquisa de mestrado ainda em desenvolvimento e problematizam as políticas públicas designadas para o sertanejo durante a seca de 1970. Até o presente momento, é percebido que esses jornais atendem a um público pequeno de leitores. O jornal Correio da Semana é de responsabilidade da Diocese de Sobral e em seu discurso há preocupação em apresentar uma Igreja solidária a situação do sertanejo, onde, transforma essa gente em vítimas indefesas. Então, o sertanejo se tornava o flagelado, o pedinte, o faminto que vagava pelas ruas de Sobral em busca de auxílios. O periódico também apresenta notícias a respeito de verbas enviadas pelo Governo do estado para serem implementadas no campo e na construção de estradas de rodagem. Jornal da Cúria Diocesana de Sobral. Fundado em 1918 por Dom José Tupinambá da Frota (primeiro bispo da cidade). Registrado sob o número 17.506 de acordo com o artigo 8 do decreto-lei Nº 1343, é o mais antigo jornal em circulação no Estado do Ceará. Era Localizado na Avenida Dom José (em frente ao Colégio Santana). Atualmente localiza-se na Praça Quirino Rodrigues, 76 – Sala 4, Centro – Sobral- CE. Em 1970, era dirigido e editado pelo Cônego (padre) Egberto Rodrigues de Andrade, tendo também como editor gerente Francisco Oliveira de Morais. Era editado de seis a oito páginas. Nessa época a assinatura anual custava NCR$ 20,00; por via aérea NCR$ 2500; avulso custava CR$ 0,30. O periódico era publicado semanalmente, sempre aos sábados. 2 Considerado um dos mais tradicionais jornais cearenses. Fundado em 2 de março de 1915 por Álvaro da Cunha Mendes, mais conhecido como A. C. Mendes, empresário do ramo gráfico, passaria a integrar os Diários Associados de Assis Chateubriand a partir de 1937. O jornal deixou de circular em dezembro de 1982. Durante o ano de 1970 tinha como diretor Manoel Eduardo P. Campos, gerente era Antonio Carlos Campos de Oliveira, editor Lustosa da Costa e secretário Felizardo Mont´ Alverne. Localizado na Rua Conde de Mauá, 2390. Sendo assim, os setores estavam estruturados em: Diretoria, gerência, secretaria, publicidade, assinaturas e redação. Geralmente o jornal apresentava doze páginas (às vezes essa quantidade era ultrapassada) com dois cadernos. As assinaturas anuais custavam NCR$ 120,00, assinaturas semanais eram de NCR$ 50 a 0,60; Números avulsos NCR$ 0, 50. O Periódico era publicado diariamente com exceção dos domingos. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 1

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Com relação ao Correio do Ceará, apresenta um discurso que visa construir o Nordeste do progresso, que recebia recursos para investimentos no campo. Nesse jornal há diversas reportagens sobre cursos técnicos agrícolas, verbas da SUDENE e incentivo ao crédito rural. Esse jornal constrói um discurso político pautado em maquiar a real situação do homem do campo, isso é um ponto norteador dessa pesquisa. Mas essas notícias duram apenas alguns meses, pois o período chuvoso não se manifestou no sertão. É importante indicar nesse artigo a preocupação com a imagem construída pelos jornais sobre os sujeitos históricos a partir do discurso da imprensa cearense. Compreendendo o cotidiano dos agricultores sertanejos e os percebendo como sujeitos construtores de uma cultura capaz de proporcionar a eles uma identidade social. Refletindo os pensamentos Edward Palmer Thompson, é papel da história é procurar enveredar pelo caminho da reconstituição do passado, tentando compreendê-lo e a partir de então, constituir uma história fundamentada na experiência vivida. Ao falar em experiência de vida, fala - se também em um conjunto de significados constituídos ao longo do tempo que assim formam a identidade de um povo. Esse conjunto de significados, chamados por Thompson de “costumes” caracterizam um dos pontos pertinentes a designar a definição de cultura como os hábitos de um povo cristalizado a partir de seu comportamento3. As discussões de Thompson sobre cultura ajudam a pensar sobre o cotidiano dos grupos de agricultores da região Norte de Sobral diante da seca que se arrastava no Ceará. Bem como, as modificações do ritmo de vida devido a realidade da ausência de chuvas. Acostumados com o ciclo de trabalho no campo onde implica desde o preparo da terra para o plantio e colheita até o momento da consolidação de seu trabalho com o resultado desse plantio. Na ausência de chuvas, restava ao agricultor sertanejo modificar seus modos de vida para se adequar a nova realidade: a seca que levava muitos agricultores a migrarem em busca de trabalhos para sua sobrevivência e a de sua família. Frederico de Castro Neves no artigo A seca na história do Ceará, afirma que, devido às irregularidades de chuvas, predominante do clima semiárido, há consolidação de um verdadeiro problema para a economia cearense, isso porque trata - se de uma região instável. O autor traça um discurso em torno das relações sociais e econômicas cearenses, problematizando a seca como um fator social, não permanente e climático, e debate ainda sobre a postura solidária e caritativa incentivada pela Igreja Católica4.

THOMPSON, E. P. Introdução. Costumes e culturas. In: ______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 13-24. 4 NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. In: SOUZA, Simone de (Org.). Uma nova história do Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 3

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O livro A invenção do Nordeste, de Durval Muniz de Albuquerque Junior, levanta importantes questões sobre a região Nordeste na passagem do século XIX para o século XX. Seu trabalho inspira pensar como, para além do conceito homogeneizante de região e dos artifícios sociais e politicamente criados para delimitações e diferenciações regionais, o espaço de vida e de trabalho pode ser reinventado pela experiência, no cotidiano de homens e mulheres, e, ao mesmo tempo, como essa noção de região volta a ser abordada através do argumento dos jornais cearenses da década de 19705. Marta Emísia Jacinto Barbosa, em seu artigo Imprensa e fotografia: imagens de pobreza no Ceará, discorre sobre seca, precisamente no final do século XIX e início do século XX, levantando uma discussão a respeito do mecanismo de poder que a imprensa exerce para construir uma ideia sobre a seca no Ceará. Os meios de comunicação apontam a miséria com uma lente de aumento e inferiorizam a população nordestina, por seus exóticos hábitos alimentares6. As discussões desse artigo sugerem pontos norteadores para o desenvolvimento dessa pesquisa, atentando para questões como a memória construída sobre a seca a partir das ideias dos periódicos. A linguagem visual apresentada na problemática do artigo possibilita também reflexões sobre o lugar social desses sertanejos, bem como a representação da realidade desses sujeitos ampliada no enfoque dado através das imagens. O diálogo com imagens no artigo Os Famintos do Ceará, propõe um discurso com a memória, pensando como ela vai se construíndo a partir das fotografias de J. A. Corrêa apresentadas nos jornais do século de XIX e da escrita apresentada nesses noticiários. Aborda sobre a problemática reproduzida e impressa a respeito do “flagelo” e dos “famintos”, possibilitando novas reflexões sobre a seca, não apenas no que está registrado nas entrelinhas dos textos jornalísticos, mas nos silêncios das notícias sobre seca no Ceará7. Essa ideias arroladas nesses dois artigos a partir das indagações ajudam a pensar como a escrita sobre seca era impressa e como a visibilidade da imagem apresentada nos jornais complementam pontos relevantes para o desenvolvimento dessa pesquisa sobre a percepção de seca na década de 1970, período marcado por implementação de políticas públicas ao Nordeste Ceará. 2 ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002. p. 97. 5 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN; Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. 6 BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Imprensa e fotografia: imagens de pobreza no Ceará entre final do século XIX e início do século XX. Projeto História. São Paulo, n. 24, p. 421-429, jun. 2002. 7 BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Os famintos do Ceará. In: FENELON, Déa Ribeiro e outros (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004. p. 94-115. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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pelos governos militares. Thompson ao falar sobre A economia moral da multidão inglesa do século XVIII, levanta questões pertinentes sobre o comportamento dos trabalhadores pobres que contestavam melhorias na política econômica. Não se tratava apenas de um ato pacífico da multidão reagindo à fome, mas de indignação ao desrespeito de valores morais tão presentes em seus costumes. Em A Economia Moral Revisitada o autor enfatiza seu objeto de análise que é a cultura política pautada em valores, tradições, experiências 8. Esse olhar aguçado de Thompson para a cultura enquanto experiência de vida evidenciada nos comportamentos das multidões vem a contribuir na realização desse trabalho, fazendo refletir sobre os comportamentos dos agricultores diante da seca de 1970. Segundo reportagens dos periódicos Correio da Semana e Correio do Ceará, muitos se deslocavam até as cidades para pedir esmolas ou saquear armazéns. Com as prestações de socorros enviadas como medidas paliativas pelos governantes, grupos de agricultores passaram a se deslocar para as frentes de serviços que não eram suficientes para todos. No primeiro tópico intitulado Os sertanejos e os Socorros públicos, é realisado uma discussão sobre as Políticas Públicas, bem como sua forma de implementação nas regiões atingidas pela seca. As frentes de serviços faziam parte do cenário dessas políticas assistencialistas realizadas pelo Estado, e mais, eram disponibilizados recursos pela SUDENE9 para amenizar o sofrimento dessa gente que começavam a se aglomerar nas cidades em busca de auxílio para sobreviver. Há uma discussão também a respeito da Indústria da seca que será institucionalizada num período marcado pela ditadura militar representada por políticos que buscavam enriquecer a partir das verbas destinadas a construção de estradas. Além disso, utilizavam-se da situação do sertanejo para adquirir votos. E assim, a indústria da seca se reafirmava na década de 1970 em toda a região Nordeste, no Ceará na microrregião de Sobral, consolidando cada vez mais o poder das elites locais que não resolviam esse problema, tornando o sertanejo dependente de seu assistencialismo. No segundo tópico intitulado As frentes de serviço e os Projetos de salvação, é realizado uma discussão em torno da insuficiência das frentes de serviços, e as possíveis realizações de projetos THOMPSON, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: ______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 150–202. _______. Economia moral revisitada. In: ______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 203-266. 9 Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, criada pela Lei n o 3.692, de 15 de dezembro de 1959, foi uma forma de intervenção do Estado no Nordeste, com o objetivo de promover e coordenar o desenvolvimento da região. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 8

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de irrigação e, principalmente investimentos no setor agroindustrial. A ideia dos governantes seria apresentar a nação um outro Nordeste, desprovido de miséria e capaz de gerar empregos e renda. O estado buscava transformar essa região numa potência industrial, mas existia a realidade social do sertanejo que vivia em condições precárias devido à falta de água. Seria necessário adequar essa realidade as condições oferecidas pela região. Mas, ao contrário disso o estado buscou modificar a região e adequá - la as realidades de outros estados do Brasil. Porém, esses investimentos beneficiaram em grande parte as elites locais juntamente com os empresários envolvidos, em detrimento aos sertanejos. O artigo analisa nesse segundo momento as intencionalidades do estado com as práticas assistencialistas, a insuficiência das frentes de serviços, a implementação dos projetos salvacionistas e falta de preparo dos governantes diante da miséria social, numa época marcada pelos incentivos a programas como o de integração nacional e investimentos no setor industrial. Diante disso, as instituições governamentais voltadas a problemática da seca buscavam através de medidas paliativas e depreciativas, resolver a situação precária vivida pelo sertanejo em tempos de estiagem. Dessa forma, pretende-se nesse segundo tópico discutir todas essas problemáticas mencionadas que serviram de pano de fundo para a construção desse artigo, principalmente com relação aos investimentos realizados no Nordeste em 1970 no intuito de tornar essa região produtiva, desmistificando a imagem de atraso que se perpetuava como lugar de pobreza e miséria.

Os sertanejos e os socorros públicos Durante muito tempo o Nordeste serviu de lugar para a realização das chamadas políticas assistencialistas10. Desde a época do Império a implementação de tais políticas tem atuado como medidas de caráter emergencial diante das estiagens que afligiam os sertanejos. Tais práticas aconteciam através de doações como donativos que chegavam até os governos locais para serem repassadas aos denominados “flagelados” da seca. Essas medidas paliativas segundo Teoberto Landim acarretaram no surgimento da Indústria da seca. Percorrendo os episódios que retratam as grandes secas, como as ocorridas durante São ações que não emancipam aqueles que são beneficiados por elas, pelo contrário, reforçam sua condição de subalternização perante os serviços prestados. Estas ações constituríam-se com base na troca de favores, principalmente no que se refere às políticas partidárias, em que parte da população torna-se receptora de“benefícios” na perspectiva da troca de votos e favores. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 10

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primeira metade do século XX (1915, 1919, 1932, 1942, 1951 e 1953), percebe-se a projeção da imagem do sertanejo como um sujeito pobre e miserável. Nesse período há o que Landim sinaliza como uma verdadeira eternização “da miséria nordestina”11, pois é em função dessa miséria que se institucionalizou a indústria da seca predominando também no século XX. Diante de tamanha farsa essa indústria beneficiava os governantes locais, utilizando - se de facetas para maquiar a realidade apresentada nas frentes de trabalho, pois a “indústria da seca é uma “indústria mafiosa” organizada e dirigida pelos detentores do poder que diretamente se aproveitam das “frentes de trabalho” e “planos de emergência” para o enriquecimento ilícito ou, indiretamente, fecham os olhos para que terceiros se aproveitem, como bem entenderem, das oportunidades que lhes oferecem, para locupletarem - se com o dinheiro público.12

A discussão de Landim contempla o pensamento de José Olivenor onde diz que nas frentes de trabalho de 1877 eram aproveitadas a mão - de - obra dos flagelados, sendo esta desvalorizada devido a situação em que se encontravam. A partir da desvalorização desse trabalho os governantes locais tomavam proveito da situação para se deleitarem com o dinheiro público, gerando assim a indústria da seca13. É importante ressaltar que a ideia de assistência pública surgiu através da Lei francesa de 1848 e a partir de então os socorros realizados aos flagelados passaram a ser prestados em troca de trabalho. Em 1878 serão construídas no Ceará as vias férreas de Baturité e Sobral, vista como obras de socorros públicos. Em 1970 as prestações de socorros continuaram como medidas paliativas voltadas agora para a construção de estradas de rodagem. Essas políticas assistencialistas continuaram submetendo as camadas mais necessitadas da população à dependência de políticos que se utilizavam desses mecanismos para angariar votos em suas campanhas. Devido tamanha calamidade a “solução” que se apresentaria com “as obras públicas a serem implementadas que teriam uma função não só de equipar o Estado de um sistema de armazenamento de água [...]14, mas de manter o camponês no sertão. Essa mentalidade já perpetuava no início do século XX quando surgiram os projetos assistencialistas. Podemos evidenciar que, de acordo com o tecnicismo que marca essas políticas, a importância do trabalho humano vai perdendo espaço, e é com isso que se pretende firmar a LANDIN, Teoberto. Seca : a estação do inferno – Uma análise dos romances que tematizam a seca na perspectiva do narrador, p. 177. 12 LANDIM, Seca : a estação do inferno – Uma análise dos romances que tematizam a seca na perspectiva do narrador, p. 177. 13 OLIVENOR, José. “Metrópole da fome”: a cidade de Fortaleza na seca de 1877 – 1879. In. : SOUZA, Simone de. NEVES, Frederico de Castro (orgs.); VIEIRA, Tarcísio... [et al.]- Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002, p.64. 14 NEVES, Frederico de Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900), 2002, p. 89. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 11

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ideia de um Nordeste “em desenvolvimento”, tanto urbano quanto agrícola. No ano de 1970, em uma fábrica de Fortaleza, capital do Ceará, foram extintos 200 empregos para dar lugar a um novo maquinário15. Desse modo, é importante refletir sobre esse desenvolvimento econômico proposto ao homem do campo pelos governos militares através dos investimentos econômicos em projetos que visavam modernizar o campo na justificativa de amenizar o sofrimento do agricultor sertanejo em períodos de estiagens. Paralelo aos grandiosos projetos financiados pelo governo, como perfuração de poços profundos e eletrificação rural, lançados aos municípios cearenses que visavam o progresso, havia uma grande parcela da população de sertanejos que minguavam na pobreza e buscavam trabalho nas frentes de serviço. Era preciso “inventar” o Nordeste para fortalecer a nação, daí a preocupação dos governantes em apresentá-lo como uma região em desenvolvimento16. O jornal Correio do Ceará mostra claramente essa preocupação com a imagem construída sobre a região nordestina e especial o Ceará. Na reportagem intitulada “Notícias de sêca prejudicam o Ceará”17, o governador Plácido Castelo se mostra indignado com a imagem construída por jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro de que havia muito “flagelo’’ no Ceará, chegando a se indignar com notícias publicadas por esses periódicos de que tal situação estava sendo encoberta em seu governo. Já o Jornal da Cúria Diocesana de Sobral, de 30 de abril de 197818 apresenta um posicionamento político sobre a seca e a situação das famílias de agricultores, procurando sensibilizá-los. Faz menção às Políticas Públicas promovidas pelos governos, acompanhada de uma reflexão sobre sua falta de caráter que em períodos de estiagem se apropriavam das calamidades para superfaturarem com a miséria dos menos favorecidos. A década de 1970 representou mais um período a ser registrado na história das secas no Ceará. O país apresentava um cenário de ditadura militar e estava se preparando para viver a efervescência da copa do mundo. Em Sobral, o jornal Correio da Semana noticiava tais acontecimentos que traziam euforia para a nação, porém, vinha repleto de reportagens sobre a situação do homem do campo que clamava por alternativas dos governos diante da escassez de água.

Jornal O Povo, Fortaleza, 2 jan. 1970. Setor de microfilmagem da Biblioteca Pública Menezes Pimentel (BPGMP). ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. Op. Cit. 17 NOTÍCIAS de sêca prejudicam o Ceará. Correio do Ceará, Fortaleza, 3 mar.1970. Biblioteca Pública Menezes Pimentel (BPGMP). 18 Correio da Semana, Sobral, 30 abr. 1978. Ano 53, s/ n. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 15 16

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Na verdade os governos eram vistos como figuras de salvação pela grande massa de cassacos19 que perambulavam em busca de trabalho. No período da ditadura militar continuou perpetuando a atitude paternalista do governo em relação à seca, agora centrada nas mãos de políticos conservadores nordestinos. Grandes latifundiários e industriais receberam em 1972 incentivos fiscais do governo para efetuarem empreendimentos industriais e agropecuários no Nordeste. Os jornais Correio da Semana e Correio do Ceará anunciavam a liberação de frentes de serviços, consequentemente vultosas verbas, destinadas a amenizar o sofrimento de agricultores da região Norte devido aos fatores climáticos oscilantes com relação as chuvas. Tais frentes de serviço envolveram obras como a construção da rodovia Sobral - Santana - Morrinhos fiscalizada pelo Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER)20 alistando em julho de 1970 cinco mil homens, além da construção da primeira rodovia litorânea, a CE 111, ligando Aprazível (distrito de Sobral) a Camocim. A seguir destaca - se algumas reportagens dos referidos jornais sobre a construção dessas duas rodovias. Está previsto para a próxima segunda - feira o início dos trabalhos na rodovia Sobral - Santana - Morrinhos, numa frente de trabalho de governo que vem atender a milhares de flagelados desta região. O alistamento do pessoal está sendo feito no escritório central do DNER, em Santa Bárbara distante de Sobral alguns quilômetros. (...) serão empregados nesta emergência 5 mil homens, ganhando uma diária de dois cruzeiros (...). Desta maneira ficará solucionado pelo menos parcialmente os problemas de muita gente deste município, que já não dispõe de meios de sobrevivência, tendo em vista que seus recursos a muito estão esgotados, em consequência de falta de chuvas. 21

A referida reportagem ganhou destaque na primeira página do jornal e informava a construção de rodagens como medida paliativa na década 1970 para amenizar o sofrimento do sertanejo diante da falta de chuvas. Foram empregados cinco mil homens para trabalhar arduamente e ganhar uma diária de dois cruzeiros, o que em real equivale a dez reais e quarenta e oito centavos, chegando ao fim da semana com o equivalente a quatorze cruzeiros, convertido em real dará um total de setenta e três reais e trinta e seis centavos22.

Trabalhador na construção de estradas de ferro, de engenho e de usinas. No caso da discussão deste artigo o termo cassaco é atribuído aos trabalhadores das frentes de serviços ofertadas pelas políticas governamentais de combate as secas. 20 “Autarquia Federal criada pelo Decreto-lei no 8.463, de 27 de dezembro de 1945, reestruturada pelo Decreto-lei nº 512, de 21 de março de 1969, vinculada ao MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES, com sede no Setor de Autarquias Norte, Quadra 3, Lote A, Edifício Núcleo dos Transportes, na Cidade de Brasília, Distrito Federal, inscrita no CGC/MF sob o no 33.628.77710001-54, doravante denominada DNER.”Captado em: www.jusbrasil.com.br/. Acesso :17 de dezembro de 2012. 21 Jornal Correio da Semana, Sobral, ano 53, n.16, 25 jun. 1970. 22 Informação extraída da Fundação de Economia e Estatística. Captado em: www.fee.tche.br. Acesso em:11/03/13. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 19

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Segundo a reportagem do Correio da Semana o poder aquisitivo desse dinheiro não era suficiente para amenizar o sofrimento dessa gente. Em diálogo com o governador Médici o operário Raimundo Melo Gomes dizia que “[...] não dá nem para comer [...]” e acrescenta “[...] abaixo de Deus só o senhores pode salvar a gente”23. A reportagem chama a atenção do leitor para as medidas tomadas diante da situação calamitosa do homem do campo. É importante pensar sobre a intencionalidade dessa notícia, bem como ao público leitor desse jornal. O trabalho com jornais é bastante minucioso, ele representa uma fonte historiográfica, um instrumento mobilizador de opiniões, que deve ser percebido como algo que vai além de um simples veículo de informação. Segundo Heloísa de Farias Cruz a utilização da imprensa como fonte de pesquisa não possui um fim em si mesma, pois há a necessidade do diálogo com outras fontes que proporcionam a interação com outros sujeitos sociais. É importante ressaltar que o diálogo com os periódicos cearenses Correio da Semana e Correio do Ceará contempla uma pesquisa ainda em andamento. Dessa forma, pode ser constatado até o presente momento que o Correio da Semana possuía vínculo com A Cúria Diocesana de Sobral e transformava o sertanejo em vítima da seca, algo também predominante no discurso do Correio do Ceará, ambos apresentam um discurso pautado na construção da imagem de um Nordeste em desenvolvimento, que recebe recursos para investimentos no campo e construção de estradas de rodagem, mas também, apresentam um Nordeste que sofre com a estiagem. É preciso estar atento aos detalhes que são importantes para a desconstrução do periódico. Perceber por exemplo, qual sua importância para a sociedade leitora, detalhes como o título, a intensidade do período de publicação, o público leitor, o valor estipulado para adquirí lo, enfim, são pontos cruciais capazes de sinalizar ao historiador o perfil de um determinado jornal. Sendo assim, a forma como o pesquisador lida com o periódico está relacionada ao seu embasamento teórico sobre essa fonte histórica24. Quando o jornal menciona sobre uma solução parcial para o problema daquela gente, a qual se encontrava em difíceis condições de sobrevivência deixa claro que o problema não estaria resolvido completamente e tal medida seria apenas momentânea. Na década de 1970 o governo Médici estabeleceu o PIN, Plano de Integração Nacional, pautado na construção de estradas na Jornal Correio da Semana, Sobral, 6 jun. 1970. Ano - 53, N. 10. CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35, p. 255-272, dez. 2007. 23

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região amazônica. Tal plano abrangeu o Nordeste no intuito de estabelecer uma economia voltada para o investimento em indústrias. Segundo Bernardo Pacheco Loureiro era preciso integrar, viabilizando o crescimento econômico da Amazônia, bem como industrializar o Nordeste. É importante refletir a respeito do investimento em industrialização numa região sofrida pela seca, levando em consideração as intenções de interligação da Rodovia transamazônica com o Nordeste. Logo a seguir um trecho do jornal Correio do Ceará que trata sobre a construção de uma rodovia litorânea na zona norte do Ceará ligando Aprazível a Camocim. O Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem, pela sua Divisão de Pavimentação, informou que os trabalhos de implantação da Ce -111, a segunda obra rodoviária em construção pelo governo Plácido Castelo, está em 54km trabalhados, prevendo - se que sua conclusão se dê dentro do prazo previsto. Informou o DAER, ainda, que com a conclusão da rodovia do algodão, da ligação Aprazível – Camocim... Seu prazo de entrega pelo DAER é dezembro de 1970. Na zona Norte continuam os trabalhos de terra planagem da ligação Aprazivel – Camocim que também será asfaltada até dezembro do corrente ano.25

Segundo a reportagem do jornal Correio do Ceará, as frentes de socorros emergenciais surgiram no intuito de amenizar o sofrimento dos cassacos (como eram chamados os sertanejos das frentes de serviço). Muitos sertanejos migravam para o Norte sem a certeza do que lhe esperava, outros ficavam para trabalhar nas frentes de serviços de condição penosa, submetendo - se a minguadas diárias de dois cruzeiros. O valor dessas diárias não eram suficientes para a sobrevivência desses agricultores, pois viviam submissos aos governos local e federal. As condições precárias dos sertanejos flagelados os obrigavam a se submeter a qualquer serviço em troca de um amparo assistencial, pois “qualquer trabalho para o retirante é melhor do que nenhum”26. A peregrinação de flagelados famintos era algo que os governos buscaram erradicar, pois a mendicância dessa gente tumultuava as cidades causando completa desordem. O jornal Correio da Semana de 06 de junho de 1970 noticia a esperança de um cassaco que cita a palavra “salvação” diante do presidente Médici no sertão de Inhamuns. É depositada nos governantes a confiança e a esperança de salvar o povo nordestino da miséria que é atribuída à falta de chuvas. Os projetos governamentais foram lançados nesse período com o intuito de potencializar a região, na certeza de torná - la mais produtiva e ao mesmo tempo eliminar a imagem de um Nordeste seco e atrasado. Jornal Correio do Ceará, Fortaleza, 25 maio 1970. Ano 16.640, Biblioteca Pública Menezes Pimentel (BPGMP). NEVES, Frederico de Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900), In. : SOUZA, Simone de. NEVES, Frederico de Castro (orgs.); VIEIRA, Tarcísio... [et al.]-Fortaleza: edições Demócrito Rocha, 2002, p. 97. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 25 26

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Com tudo isso, algumas reportagens apresentavam esperanças aos sertanejos da região norte. O Correio da Semana de 27 de junho de 1970 apresentava a liberação de investimentos aos pequenos agricultores. O que se percebe é que uma nova imagem começa a ser traçada e o período do regime militar começa a ser o momento em que o agricultor se “beneficia” com os recursos da SUDENE para superar o lugar da miséria. O jornal começa a mesclar a sua notícia: ao invés de “fome”, “miséria” e “flagelo”, surgem as palavras “financiamentos”, “verbas vultosas destinadas aos pequenos agricultores”. Já na reportagem de 25 de junho de 1970, o mesmo jornal noticiava alistamentos de frentes de serviço realizados pelo DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem) para a construção da rodovia que ligaria a cidade de Sobral a Santana do Acaraú e Morrinhos. Diante disso, percebe-se que, embora os governos tentassem com suas políticas públicas modernizar o pequeno agricultor, a realidade de escassez de chuva submetia o homem do campo a migrar para as frentes de serviço da região norte em busca de trabalho para prover seu sustento e de sua família. Há uma preocupação desses jornais em apresentar a seca como algo catastrófico e o sertanejo como o coitado que deve ser amparado pelas políticas públicas governamentais. A própria igreja católica busca sensibilizar a população católica com campanhas de solidariedade, como mostra o Correio da Semana, de 08 de agosto de 1970, que conclama a população sobralense para ajudar a solucionar o problema da seca. A Campanha de Solidariedade proposta pela Diocese de Sobral visava arrecadar alimentos, roupas, remédios para serem doados às “vítimas da seca”, à “gente do sertão”, como cita o Correio da Semana ao anunciar as campanhas e ao apresentar o sertanejo como vítima, como se vê em reportagem de 11 de abril de 1970, quando noticia mais uma “estiagem que leva famintos ao saque” na cidade de Sobral: A cidade vai se enchendo de retirantes, famintos e esmolambados, nas ruas, nas esquinas flagelados esticam as mãos no alcance de “uma esmola pelo amor de Deus”. Começam a aparecer ajuda dos Estados vizinhos, dos ou mesmo de particulares: são donativos, roupas velhas, dinheiro e alimentos. Para as divisões, são nomeadas Comissões especiais. Mas o “retirante” é privado de usufruir de tudo que lhe foi dado, porque por traz dessas Comissões há sempre alguém que procura enriquecer à custa da miséria de outros. Cada seca ou calamidade que surge o Ceará deixa meia dúzia de ricos. 27

Importante perceber que a imagem de faminto e flagelado é apontada como um referencial característico do que seria o Nordeste, paulatinamente construída como uma região de pobreza e miséria. Nas fotografias da seca de 1877-78 no Ceará, analisadas por Marta Emisia 27

Jornal Correio do Ceará, Fortaleza, 30 abr. 1978. BPGMP. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Jacinto Barbosa há pessoas praticamente desnudas e esqueléticas. Nesse período, a fome não é mais uma ameaça e sim um fato constatado a partir das imagens produzidas pelo fotógrafo J. A. Correia, pois ela esta presente nos corpos sofridos dessa gente que chegava até as cidades em busca de auxílios28. Nos periódicos de 1970, o chamado flagelo é uma possível ameaça que leva os sertanejos a buscarem trabalho em frentes de serviço enviadas pelos governos Federal e Estadual. Uma vantagem desse assistencialismo resultou na abertura de estradas, proporcionando a interligação entre cidades e regiões, entre elas a construção da Ce - 111 que ligaria o distrito sobralense de Aprazível a Camocim e consequentemente interligaria o Ceará ao Rio Grande do Norte. Os programas de obras na região Norte já aconteciam desde a seca de 1919, quando o flagelo assolado nessa região levou o governo a construir estradas ligando Granja a Viçosa, Sobral - Ibiapina, Massapê - Palma e Massapê - Meruoca 29. As prestações de socorros proporcionavam a permanência do sertanejo no sertão, dando a ele uma referência de sujeito social, pois de flagelado o homem do campo passava a ter uma ocupação, retirando - o do ócio. Ao discutir sobre as relações de trabalho do homem nordestino no séc. XIX, Francisco José Pinheiro enfatiza a relação deste sertanejo com seu trabalho e da influência que a igreja católica exercia, combatendo o pecado e o ócio. Para os cléricos um homem desocupado poderia praticar o pecado, desse modo o sertanejo do século XIX construía açudes, poços, estradas e casas de caridade 30. Esse comportamento cultural também presente no cotidiano de agricultores do séc. XX proporcionou a aglomeração dessa gente nos centros urbanos. Isso preocupava os governantes, pois temiam que essa multidão sujasse a cidade. Outra preocupação era a postura tomada pelas autoridades locais de não permitir que essa gente fosse vista como pobres miseráveis sem ocupação. É evidente que esses trabalhos de socorros legitimavam cada vez mais o poder do estado sobre a população pobre e desprovida de recursos. A necessidade de sobreviver no sertão somada a ignorância daqueles que não tinham oportunidades de estudar ou até mesmo de se tornar um cidadão politizado facilitavam o controle dessa instituição sobre a massa de sertanejos.

BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Os famintos do Ceará, p. 98. POMPEU SOBRINHO, Thomaz. História das Secas (Século XX). 2. ed. Mossoró: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte; Fundação Guimarães Duque; Escola Superior de Agricultura de Mossoró,1982. 30 PINHEIRO, Francisco José. O homem livre-pobre e a organização das relações de trabalho no Ceará. In: Revista de ciências sociais. Fortaleza: Edições UFC, v. 20-21, n. 1 e 2, 1989/90, p. 199-230. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 28 29

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É importante indicar a preocupação com as experiências sociais dos sujeitos históricos. Compreendendo o cotidiano dos agricultores sertanejos problematizados nesse artigo como sujeitos construtores de uma cultura capaz de proporcionar a eles uma identidade social. Refletindo os pensamentos Thompson, é papel da história procurar enveredar pelo caminho da reconstituição do passado, compreeendendo-o, e, a partir de então, constituir uma história fundamentada na experiência vivida. Ao falar em experiência de vida, fala - se também em um conjunto de significados constituídos ao longo do tempo, formando a identidade de um povo 31. Esse conjunto de significados, chamados por Thompson de “costumes” caracterizam um dos pontos pertinentes a designar a definição de cultura. Os hábitos de um povo cristalizado a partir de seu comportamento. A microrregião de Sobral como já mencionada possuía da década de 1970 o maior contingente de sertanejos das regiões assistidas por obras emergenciais. Déa Ribeiro Fenelon enfatiza que a cultura “é um campo de possibilidades” 32, pois engloba valores, luta de classe. Fortalecendo os pensamentos de Thompson quando focaliza a importância das experiências vividas no livro Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional e enfatizando Fenelon ao apresentar a cultura no plural, fortalecendo discussões dentro da História social. Algo ainda a ser investigado é sobre o silêncio da notícia, o que ela não nos diz sobre essa gente e a cidade de Sobral. O jornal Correio da Semana não traz em suas entrelinhas a real situação da cidade. Será preciso buscar o fio que interliga e orienta até a verdade, o rastro de Teseu ainda precisa ser encontrado 33. As frentes de serviço e os “projetos de salvação” A intenção do governo era retirar o sertanejo do ócio, mas somente as frentes de serviço pareciam ser insuficientes para conter a euforia dos sertanejos, pois essa gente continuou a realizar saques em algumas cidades cearenses inclusive em Sobral. Períodos de grande movimentação nas cidades cearenses na década de 1970 foram registrados no Correio da Semana34, informando a chegada do sertanejo que vinha em busca de auxílio nos centros urbanos, pois no campo parecia ser inviável se manter devido ao período de estiagem. Em Sobral

THOMPSON, E. P. Introdução. Costumes e culturas. In: ______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 13-24. 32 FENELON, Déa. Cultura e História Social: historiografia e pesquisa. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 73-90, dez., 1993. 33 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício; Trad. de Rosa Freire d´Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 08. 31

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chegavam grupos de pessoas que se aglomeravam pela cidade pedindo esmolas como mostra a seguinte reportagem. Em alguns municípios cearenses já houve saque, como em Mombaça e Independência onde famintos tentaram invadir o comércio a procura de alimentos. Em nossa cidade o aspecto está mudando, com a chegada da gente do sertão que reunida em grupos se espalha pelas ruas pedindo auxílios. Ontem por exemplo constatou - se a presença de grande quantidade de sertanejos que visitavam as casas comerciais pedindo auxílio e expondo sua situação. É necessária uma providência imediata, por parte dos governantes constituídos, antes que a situação venha a se agravar com maior intensidade.35

O jornal informa que “a gente do sertão” (poderiam ser homens, mulheres, idosos e crianças) se espalhava pelas ruas de Sobral pedindo auxílios nas casas comerciais, demonstrando também preocupação com o aglomerado número de pessoas indesejáveis podendo ser perigosas para a cidade. O jornal solicita dos governantes locais providências com relação as multidões de famintos que se aglomeravam pelos centros urbanos. Esse aglomerado número de pessoas se identificavam umas com as outras através da similaridade de suas histórias de sofrimento, diante da miséria em que se encontravam. Segundo ele as concentrações de multidões famintas e desconhecidas perambulando nos centros urbanos em períodos de secas provocavam a ocorrência de saques como mostra a reportagem anterior 36. Na discussão do jornal Correio do Ceará essa imagem de flagelo é muito presente. Segundo informações desse jornal, as frentes de serviços não eram suficientes diante da demanda de tantos sertanejos em busca de trabalho, de uma ocupação. “NÃO TEMOS NADA, NADA”37, essa é a chamada da notícia através da estampada no jornal Correio do Ceará. A multidão de homens em busca de derramar seu suor a troco de míseros dois cruzeiros leva - se a pensar se o caminho mais viável seria permanecer no sertão esperando a concretização das profecias dos profetas da chuva, ou de migrar para as frentes de serviço em busca de migalhas que mal davam para calar o fantasma da fome estampado nos rostos de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos. Havia aqueles que permaneciam e como alternativa de sobrevivência quando não haviam frentes de serviços para todos buscavam a indústria rural doméstica predominante no semiárido desde tempos coloniais. Essa indústria dava suporte aos agricultores que complementavam sua renda com a produção artesanal de produtos domésticos como a tecelagem 38. “Estiagem que leva famintos ao saque”. Jornal Correio da Semana, Sobral, ano - 53, n. 2,11 abr. 1970. NEVES, Frederico de Castro. Seca, Pobreza e Política: o que é politicamente correto para os pobres? Trajetos (UFC), v. 7, p. 186-199, 2009. 37 “Não temos nada, nada”. Correio do Ceará, 06 abr. 1970. Biblioteca Pública Menezes Pimentel (BPGMP). 38 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores, artesãos: origens do trabalho livre no Ceará colonial. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 35 36

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O jornal não informa a função social dessas prestações de socorros, mas a notícia se encarrega de nos apresentar um cenário repleto de enganos, desde a existência de algo que veio na intenção de amenizar o sofrimento humano, mas acabava por escravizá-lo ainda mais e de distanciá-lo do espaço urbano. Era importante manter o homem do campo “[...] longe das cidades, onde se torna um perigo para a salubridade social”39. A imprensa da década de 1970 constrói uma memória sobre a seca, sendo percebida como “[...] um universo de problemas que afetam os lugares: doenças, morte, miséria, fome ”40. Apontando essa miséria com uma lente de aumento. É importante refletir a memória construída sobre a seca e o lugar social desses sertanejos, bem como a representação da realidade dessas pessoas a partir das ideias dos periódicos abordados nesse artigo. O problema das secas angustia o sertanejo, torna-o marginalizado pela sociedade quando cruza a fronteira do campo para a cidade em busca de alternativas de sobrevivência. Albuquerque Junior discute a imagem construída a respeito dos nordestinos, enfatizando o preconceito com eles, sendo “discriminados, marginalizados e estereotipados” como pobres e miseráveis [...]” 41. Essa movimentação acarretava num processo migratório entre campo e cidade, diante disso, os governos implementavam medidas assistencialistas predominantes apenas por um curto período, pois não era intenção da SUDENE criar vínculo empregatício com os sertanejos. As frentes de serviços aconteciam sempre distantes dos locais de origem dessas pessoas que migravam na década de 1970 para cidades da Microrregião do litoral de Camocim como : Acaraú, Camocim, Bela Cruz, Chaval, Granja, Marco, Martinópole; Microregião do Baixo e Médio Acaraú: Morrinhos, Santana do Acaraú, Senador Sá e Uruoca; Microrregião de Uruburetama: Apuiarés, Irauçuba, Itapajé e Itapipoca. Segundo Luciara Silveira de Aragão e Frota a microrregião de Sobral é a maior em elevado contingente de trabalhadores alistados para as frentes de serviço, tendo doze mil e cento e quarenta e quatro estabelecimentos ocupados por quarenta e nove mil trezentos e sessenta e quatro trabalhadores de frentes de serviço42. Além das frentes de serviços, predominou no cenário das Políticas Públicas os projetos salvacionistas. Juntamente com essas políticas estavam projetos como o Programa de

Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 20-21, n. ½, p. 1-29, 1989/1990. 39 NEVES, Frederico de Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880 – 1900), p.89. 40 BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Imprensa e fotografia: imagens de pobreza no Ceará entre final do século XIX e início do século XX. Projeto História. São Paulo, n. 24, p. 421-429, jun. 2002, p. 422. 41 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes, p. 20. 42 FONTE: FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. [Seca de 1970].1985, p. 275 Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Redistribuição de Terra e de Estímulo a Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA, promovendo uma reforma agrária pacífica). Podemos citar também o Polo Nordeste e o Projeto Sertanejo, como sinaliza Lúcia Gaspar, programas e projetos semelhantes a esses tinham o intuito de tornarem a região nordestina mais produtiva economicamente através de investimentos na agricultura, pecuária e irrigação 43. O cenário brasileiro dessa época era de um país com raízes fortalecidas no meio rural. Grande parte da população do Nordeste dependia da agricultura como fonte de sobrevivência. Desse modo, surgia a necessidade de projetar nessa região o crescimento da economia nas áreas de irrigação, agropecuária e indústria. Sendo assim, podem-se interpretar tais atitudes como uma diminuição do sofrimento do sertanejo, dando condições para sua permanência no sertão, por outro lado, havia uma diminuição do sofrimento dos latifundiários rurais. Vejamos o discurso do senador Ermínio de Morais. Na agricultura está a matéria prima para certas e determinadas indústrias. De modo que o nosso pensamento era êste: que marchassem, ao mesmo tempo, paralelamente, a agricultura e a indústria, porque uma sem a outra não pode viver. 44

Segundo o Senador Ermínio de Morais, havia uma preocupação em transformar o Nordeste numa região de polo agroindustrial e de solo irrigável, pois ele acreditava que essa região precisava crescer economicamente. O Correio da Semana e o Correio do Ceará informavam que o número de agricultores era sete vezes maior que o número de industriais. O jornal Correio da Semana noticiava os projetos de irrigação, construção de estradas e perfuração de poços com o objetivo de amenizar o sofrimento dos sertanejos. Tais projetos eram destinados aos pequenos agricultores, porém o jornal continuava a noticiar levas de pedintes clamando por socorros imediatos dos governos. Em períodos de grandes secas era comum o reembolso de obras e os excessos de despesas com a construção de açudes e irrigações, procedimento que se perpetuou em períodos de calamidades públicas. O problema das secas afeta não somente a massa trabalhadora rural, mas aos grandes proprietários de terras, pois perder o controle sobre esses agricultores devido partirem em busca de melhores condições de vida. Para o jornalista carioca José do Patrocínio a seca proporciona a degradação da moral do sertanejo e do senhor rural, ambos a perdem de maneiras diferentes,

GASPAR, Lúcia. Seca no Nordeste brasileiro. Captado em: http:// basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar. Acessado em: 6 mar.2012. 44 Jornal Correio do Ceará, Fortaleza, 25 maio. 1970, p. 11. 43

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seja o proprietário de terras que perde a moral sobre a massa trabalhadora ou o camponês, submetido a vender os próprios/as filhos/as em troca de um punhado de comida 45. A SUDENE aparecia nos noticiários dos jornais cearenses como uma incentivadora fiscal da economia Nordestina e responsável pela construção de um novo olhar sobre o Nordeste como noticia o Correio da Semana. [...] os incentivos fiscais da SUDENE vem tendo excelente aplicação no desenvolvimento da Indústria e da agricultura nordestina, utilizados na construção do moderno parque industrial, na criação de empregos e no uso de matérias-primas.46

As notícias apresentadas nos jornais Correio da Semana e Correio do Ceará estão sempre informando a chegada de projetos para o Nordeste e as grandiosas verbas para a concretização de tamanho empreendimento, mostrando que houve verbas destinadas e encaminhadas para essa região, porém, muitos projetos fracassaram ou nem saíram do papel. Por meio dessas políticas assistencialistas havia os interesses das elites locais fragilizadas com os problemas da seca. Pode - se constatar no governo de Virgílio Távora um grande incentivo à política desenvolvimentalista, trazendo a industrialização para o Ceará que obviamente beneficiaria as elites locais. Em seu governo potencializou - se a industrialização e a construção de rodovias, principalmente em seu segundo mandato como governador do Estado do Ceará na década de 1970. Muitas verbas foram desperdiçadas ou absorvidas pelos governantes locais. Veja o que diz sobre o assunto o jornal Correio do Ceará. O mais importante dos projetos elaborados é o que diz respeito a atividade de nucleação artificial previstas para 1971, sendo os demais os seguintes: estudo da regionalização do Estado, diagnóstico sôbre as doênças e pragas das principais culturas agrícolas na Ibiapaba, estudo de solos, aproveitamento de matérias primas regionais, operação cajueiro, piscicultura e pesca continental, pecuária leiteira do Cariri, levantamento de solos das propriedades agrícolas do Govêrno do Estado, produção mineral, produção de inseticidas e produção de quimioterápicos. Segundo informações do professor Caio Lóssio Botelho o custo dêsses projetos foi calculado em importãncia superior a 1 milhão e quatrocentos mil cruzeiros [...].47

A SUDEC48 era um órgão representativo do governo, pois repassava os recursos para a SUDENE e essa aos governantes locais para que estes pudessem investir nas regiões afetadas pelas secas. Sobre os projetos terem progresso o jornal não menciona, mas segundo Francisco PATROCÍNIO, 1878 apud NEVES, 2007, p. 96. Jornal Correio da Semana, Sobral, 24 jan. 1970, p. 02. 47 Catorze projetos da SUDEC foram entregues a SUDENE. Jornal Correio do Ceará, Fortaleza, 25 maio 1970, p.02 48 Superintendência de Desenvolvimento do Estado do Ceará. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades 45 46

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Josênio C. Parente, no artigo O Ceará dos Coronéis (1945 -1986) aponta que as verbas destinadas para as áreas atingidas pela seca tinham o intuito de beneficiar os latifundiários afetados por ela. A escassez de chuvas sempre existiu além da necessidade de se dar condições para o sertanejo permanecer no sertão. Desse modo, na segunda metade século XX já se discutia a seca como algo a ser convivido, mas muitos governantes aproveitavam - se desse discurso de convivência com o semiárido para promover assistencialismo com os projetos a serem implantados no sertão. Mas como já discutido esses projetos não tiveram os resultados esperados, deixando o sertanejo a mercê das condições miseráveis proporcionadas pela estiagem. Os dois jornais sempre noticiavam a chegada de verbas da SUDENE, o que leva - se a pensar sobre o Nordeste estava sendo assistido com os programas sociais, mas segundo Luciara de Silveira de Aragão Frota foram mandados investimentos para essa região, porém o governo do Ceará e alguns municípios não sabiam o que fazer com tanto investimento tecnológico enviados para serem utilizados na agricultura. Veja o pensamento de Frota sobre os recursos enviados e devolvidos a SUDENE. Por falta de condições financeiras, o governo do estado devolveu a SUDENE 76 máquinas, alegando não dispor de verba suficiente para a manutenção da gasolina, nem para o óleo e peças. Estas máquinas foram colocadas no Pátio da Cadeia Pública de Sobral com militares em guarda (15), enquanto se esperava que fossem recambiadas à SUDENE.49

De acordo com Frota o Ceará não possuía recursos para manter os aparelhos tecnológicos enviados pela SUDENE e isso acarretou em vultosos desperdícios de verbas destinadas a custear o tão sonhado desenvolvimento da região nordestina. Modernizar essa região tornou-se nesse período algo crucial para o governo do país que vivia a euforia da política desenvolvimentalista de integração nacional. O Correio da Semana afirma “Vamos mostrar que é bom negócio investir no Nordeste”50. Importante observar o quanto esses investimentos trouxeram resultados somente para as elites empresariais que absorveram esses recursos enviados para o campo, deixando a margem os pequenos produtores rurais. O jornal Correio da Semana e Correio do Ceará não informam os entraves ocorridos no período da seca entre SUDENE e o governo do Estado do Ceará. Há uma legitimação da notícia, construindo a imagem de uma região em estágio de crescimento econômico devido aos recursos encaminhados por este órgão público. 49 50

FROTA, Luciara de Silveira de Aragão e. [Seca de 1970]. 1985, p. 268. Jornal Correio da Semana, Sobral, 24 jan.1970. Ano 52, n. 41 , p. 02. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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A industrialização do Nordeste na década de 1970, tão desejada pelos empresários industriais em nada resolveu a situação do homem do campo, pois continuou a migrar para os centros urbanos em busca de melhores condições de vida. Juntamente com ela veio o tecnismo que necessitou de mão - de - obra para lidar com ele. O problema social da seca iria persistir, pois potencializar essa região de máquinas não seria a solução para esse problema. Conclusão Este artigo possibilitou levantar discussões sobre as políticas públicas destinadas ao homem do campo em períodos de estiagem na década de 1970. Percebeu-se também o quanto essas políticas foram utilizadas para angariar prestígio e controle político de uma massa de trabalhadores da microrregião de Sobral que ansiavam por auxílio. Abordou-se a questão das prestações de socorros como medida suavisadora da precariedade do sertanejo, bem como o envio de recursos pela SUDENE e órgãos vinculados como a SUDEC para a implantação de projetos que não aconteceram devido ao descaso de muitos governantes beneficiados com os recursos destinados ao Nordeste. Outro ponto norteador nesse trabalho diz respeito a o problema social da seca e do sertanejo que sai do seu cotidiano para migrar em busca de trabalho. Da desmistificação de uma região maquiada por uma ideologia empresarial que visava transformar o Nordeste numa região lucrativa a partir de seus próprios interesses. Esses pontos norteadores foram abordados a partir do olhar sobre a os jornais Correio da Semana e Ceará. Tais notícias legitimam a ideologia dos governantes e dos grupos empresariais de que essa região precisava ser salva de si mesma. Havia também o discurso militar pautado em integrar essa região as demais, através do Plano de Integração Nacional, que contemplava a abertura de novas rodovias. Considerando essas problemáticas, conclui-se que as políticas públicas na década de 1970 foram utilizadas pelo Estado como instrumentos de manipulação para angariar votos, submetendo o sertanejo a ser dependente do assistencialismo imposto pelos coronéis. Sendo assim, as notícias sobre o sertão eram sempre impactantes, mitificadas na construção de uma imagem de um sertão restringido a lugar de sofrimento e miséria.

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Entrevista com a pesquisadora e ensaísta Liliana Weinberg (UNAM), por Revista Temporalidades Adriane Vidal Costa Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais adriane.vidal@uol.com.br Igor Barbosa Cardoso Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais igorbcardoso@gmail.com Lucas Madsen da Silveira Mestrando em História na Universidade Federal de Minas Gerais madsenls@hotmail.com Maria Visconti Sales Mestranda em História na Universidade Federal de Minas Gerais mariavisconti92@gmail.com Foto: Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe

Virgílio Coelho de Oliveira Júnior Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais virgiliocoelho@yahoo.com.br

A 16ª edição da revista Temporalidades conta com o dossiê Linguagens, artes e política: interseções. Esse tema está ligado a algumas das principais transformações que a historiografia tem passado pelo menos desde a década de 1970. A partir de então, tem se desenvolvido trabalhos em que os fenômenos político-sociais não são, necessariamente, pensados por meio dos mecanismos tradicionais e/ou oficiais de exercício, socialização, disputa e debate. Os símbolos, as diferentes modalidades discursivas, os monumentos e os demais elementos que fazem parte da imaginação social, compõem a vida política em sua dinâmica e significados.

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Profa. Dra. Liliana Weinberg Ensaísta e crítica literária, nasceu em Buenos Aires na Argentina, mas vive na Cidade do México. É doutora em letras hispânicas pelo El Colegio de Mexico (1991). Está dedicada a teoria e crítica da literatura, discurso social e história intelectual latino americana nos séculos XIX e XX. É autora dos livros Ezequiel Martínez Estrada y la interpretación del “Martín Fierro” (México, CCYDELUNAM, 1992), El ensayo, entre el paraíso y el infierno (México, FCE-UNAM 2001), Literatura Latinoamericana: Descolonizar la imaginación (México, CCyDEL-UNAM, 2004), Umbrales del ensayo (México, CCYDEL-UNAM, 2004) y Situación del ensayo (México, CCYDEL-UNAM, 2006). Se encuentra en proceso editorial su libro Pensar el ensayo (México, Siglo XXI editores, 2007). Também é autora de outros capítulos em obras importantes de casas editoriais como a UNAN, El Colegio de Mexico, a UAM, Editorial Siglo XXI, Fondo de Cultura Económica, Biblioteca Ayacucho de Caracas, Colección Archivos de la UNESCO, entre outras.1

A Revista conta com sua importante contribuição para o Dossiê e lhe propõe uma entrevista: Revista Temporalidades: Como foi sua trajetória intelectual? Quais foram os principais temas que compuseram ou compõem suas pesquisas e sua produção ensaística?

Profa. Dra. Liliana Weinberg Mi formación comienza con la carrera de Antropología, que estudié en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, y que me dio una formación marcadamente culturalista. Años después obtuve el Doctorado en Letras Hispánicas en El Colegio de México, con una tesis dedicada a un gran ensayista argentino, Ezequiel Martínez Estrada. Fue a partir del interés por analizar la obra de este autor que comenzó mi preocupación por la teoria y crítica del ensayo, así como por el ensayo como género. Mis principales líneas de trabajo giran actualmente en torno al gran tema del ensayo: teoría, crítica y periodización del ensayo latinoamericano. En los últimos años ha sido cada vez mayor mi interés por vincular este tema con la historia intelectual y el análisis de la cultura, así como por entender los alcances del diálogo intelectual que se traza a partir del ensayo y que confluye en él.

Informações disponíveis em: http://www.cialc.unam.mx/Revistas_literarias_y_culturales/Pages/Semblanzas/Liliana_Weinberg.html. Acesso em 25 de maio de 2015 às 20h23min. 1

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Revista Temporalidades: As relações entre as artes e a produção do conhecimento das humanidades são, por vezes, marcadas por calorosos debates. Algumas vertentes intelectuais procuraram salientar a preponderância das estruturas sociais em relação às manifestações estéticas que lhes seriam correlatas, outras, por seu turno, defenderam o primado da dimensão estética, recorrentemente pensada de forma descontextualizada, fechada em si mesma. Qual a sua avaliação sobre esses debates? Quais as possíveis contribuições da intelectualidade latinoamericana para a discussão? Profa. Dra. Liliana Weinberg: En cierta ocasión, para sintetizar este contraste, yo me referí a las diferencias entre los defensores de “la moral de la forma” y los defensores de “la forma de la moral”. En el primer caso se trata de aquellos autores y críticos que enfatizan la posibilidad del arte puro, aislado de sus condiciones de producción y de su inserción en los debates de orden moral y político. En el segundo, pienso precisamente en quienes ven un necesario vínculo de la obra con estos órdenes, en cuanto consideran que la literatura se inscribe en la vida social y se nutre de esa vida no sólo en temas sino también en estrategias discursivas. Este contrapunto se volvió muy significativo para América Latina a partir del eco que tuvieron en nuestro continente las propuestas sartreanas sobre el compromiso desde fines de los años cuarenta, y el tema de la relación entre arte y vida social se volvió de enorme importancia con la Revolución Cubana. Y por muchos años se dio una especie de “guerra fría” entre ambas posturas, que hoy, afortunadamente, al igual que la polarización artificial de puntos de vista que representó la guerra fría, se ha superado. Por mi parte yo insisto en la relacionalidad de los procesos, en el continuo paso de umbral entre texto y contexto, y sobre todo en la profunda y radical dialogicidad de la obra literaria: algo evidente en el caso del ensayo. En cuanto a la contribución de la crítica latinoamericana, considero que precisamente críticos tan brillantes como Antonio Cándido nos han dado uno de los ejemplos más admirables para solucionar estas tensiones, a través de textos tan admirables como “Dialéctica del malandraje” o “El paso del dos al tres”, verdaderos modelos de análisis el primero y de superación de los esquemas estructuralistas el segundo. Revista Temporalidades: Dentro do escopo da discussão temática proposta para este dossiê, acredita-se que é importante colocar em evidência o papel que a literatura e o ensaio têm desempenhado para a renovação das mais diferentes vertentes historiográficas da contemporaneidade. Se for possível retomar a máxima aristotélica de que a História seria uma narrativa sobre o que aconteceu e a literatura e ou o ensaio uma elaboração sobre o que poderia Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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ter acontecido, qual o papel que esta pode ter para a compreensão dos processos de construção e/ou transformação da realidade?

Como a senhora avalia a crescente valorização ou

revalorização da literatura e do ensaio como fonte de pesquisa entre os historiadores?

Profa. Dra. Liliana Weinberg: El ensayo es precisamente exploración, puesta a prueba, tensión, reinvención, de las diferentes possibilidades de relación entre historia y literatura abiertas desde Aristóteles. Para dar um ejemplo muy breve, hace unos días el crítico literario peruano Julio Ortega puso en contraste la noción de la historia como “madre de la verdad” y la historia como “madrastra de la mentira”. Se trata de una frase muy fuerte, provocativa, y que nos hace pensar mucho, pero que ilustra a las claras cómo los ensayistas pueden repensar la relación entre historia, literatura y verdad: uno de los temas de mayor importancia en la discusión contemporánea. Los grandes ensayistas latinoamericanos hicieron de historia y cultura dos de las zonas principales de reflexión, empleándolos muchas veces además en una tensión entre el papel de grandes ejes vertebradores de su discurso y nociones a ser discutidas criticamente. Cito el caso de Mariátegui em sus 7 ensayos: Mariáteegui hace un contraste entre el papel de la voz autoritaria y tradicional que se coloca como falsa neutralidad erigiéndose como “juez” y la voz del ensayista, que se coloca como “parte” que desea dar su testimonio em um juicio sobre las ideas de nacionalidad, historia, cultura etc.

Revista Temporalidades: No que se refere aos estudos sobre a América Latina, o ensaio tem sido destacado como um gênero de grande importância para o entendimento dessas sociedades e das formas como elas são significadas e discutidas. Formaram-se na América Latina gerações de intelectuais que tomaram o ensaio como forma de interpretar e transformar a realidade. Que tipo de implicações a escolha dessa modalidade de discurso sobre o real pode ter tido para os processos de conformação identitária de algumas das sociedades latino-americanas? Quais as relações entre o ensaio e os outros gêneros literários apropriados e (re) significados? Aliás, essa última questão aponta para outra: frente aos significados estéticos, políticos e sociais que o ensaio acabou recebendo, pode-se considerá-lo um gênero literário, de acordo com o conceito de gênero de tipo europeu?

Profa. Dra. Liliana Weinberg: Esta pregunta es sin duda densa y apasionante, y requiere uma respuesta no menos compleja y no menos apasionada. En efecto, el ensayo cumplió em distintos Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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momentos um papel central em América Latina: podría hablarse de um boom del ensayo latinoamericano anterior al boom de la novela. Y há habido entre ellos vaoss comunicantes: Gabriel García Márquez reconoció siempre la importância que tuvo para él la lectura de la Biografía del Caribe, de Germán Arciniegas. Y precisamente pensando em temas como éste, podemos plantear que la gran geopoética del Caribe se dio a través de grandes ensayos (Aimé Césaire, Édouard Glissant, Derek Walcott...). El Brasil há dado algunos de los más penetrantes y provocativos ensayistas dedicados al problema de la identidade latino-americana, muchos de ellos ligados em su quehacer a ciertas esferas del conocimeinto como la crítica literária: António Candido o Roberto Schwarz, la antropologia: Darcy Ribeiro, la sociologia: Renato Ortiz... Volviendo a Germán Arciniegas, él marcó uma relación flerte entre este género y la historia de América al escribir em 1965 que “Nuestra América es un ensayo” y mostrar como desde los textos de Colón la prosa no ficcional tuvo uma importância central em América. Yo misma recientemente he estudiado la relación entre “el nuevo mundo del ensayo” y “el ensayo del nuveo mundo”, mostrando que incluso las primeras noticias y reflexiones sobre el descubrimiento y conquista de América tuvieron fuertes repercusiones en la configuración de la obra de Montaigne. El ensayo no sólo contribuyó a la reflexión identitaria sino que dotó de un “espacio simbólico” nuevo a las discusiones sobre lo latinoamericano: un espacio que en buena medida se fue construyendo fuera de las esferas institucionales, um espacio que simbolizaba lo público y ocupó um espacio de lo público que por mucho tiempo estuvo postergado en nuestra América. Um espacio de afirmación y exploración de lo nuevo, um espacio de experimentación de los significaciones y los sentidos, de lo político y lo moral, etc. Pienso que obligarnos a pensar el ensayo como género literario puede resultar restrictivo. Muchos consideran ya al ensayo como el cuarto gran género literario. Así, las siglas del PEN Club incluyen una “E” destinada al ensayo. Otros lo consideran “literatura em potencia” (De Obaldia), una clase de textos (Angenot), una textualidad (Jitrik). Yo, por mi parte, considero que la gran ampliaciónd e horizontes necessária para para pensar el problema de los géneros nos la ofreció Bajtin al hablar de “géneros discursivos”. Porque pensar al ensayo como género discursivo nos permite ponerlo en relación com la dinâmica social, com la historia y el cambio. Considero también muy fructífera la posibilidad de pensar al ensayo como membro de uma gran família mayor, com la que guarda, para decirlo con Wittgenstein, “aires de familia”. Esto nos permite ver como de acuerdo a los distintos momentos históricos y estados del campo literario, el ensayo debe entrar em diálogo com otras formas (la carta, el artículo periodístico, la crónica etc). Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Revista Temporalidades: Na América Latina tem crescido muito os estudos sobre história intelectual, são organizadas importantes coletâneas e encontros internacionais sobre o tema. Como a senhora relaciona o ensaio e a literatura com a história intelectual? Profa. Dra. Liliana Weinberg: En efecto, en los últimos años es creciente el desarrollo de la historia intelectual. Yo misma me he preocupado por establecer un diálogo entre ensayo e historia intelectual a través de varios proyectos de investigación y de publicaciones dedicadas al tema, como Estrategias del pensar, obra en dos volúmenes que coordiné, y en la que participan destacados especialistas en la materia que revisan grandes ensayos latinoamericanos del siglo XX desde la perspectiva de la historia intelectual. La historia intelectual permite atender al contexto de producción de los discursos, al marco de debates y redes de sociabilidad intelectual que acompañan al ensayo, a la selección temática, al tono de la discusión, en suma: que permiten ver la inscripción del texto em lo que he llamado “el más acá” y “más allá” del ensayo, es decir, por uma parte, sus condiciones materiales y sociales de producción, y por la otra los márgenes de lo decibel y lo pensable por uma sociedad. La historia intelectual há permitido además entender com mayor precisión los processos de “sujetivación” que se dan a través del ensayo, donde la voz de un sujeto singular, un yo subjetivo, alterna com la voz del “nosotros”, del sujeto colectivo.

A

través del ensayo podemos assistir al passo entre los processos que tan certeiramente Edward Said llamó de “filiación” y “afiliación”: el intelectual se construye como tal a través del texto, passando de las condiciones de pertinência familiar, social, étnica, religiosa de origen a la asunción de un destino.

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Resenha

Resenha: LÖWY, Michael. A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. 144 p. ISBN 978-85-7559-401-8. Glauber Miranda Florindo Doutorando em História Universidade Federal Fluminense gmfhis@gmail.com Recebido: 27/01/2015 Aprovado:03/05/2015 Publicado no Brasil pela editora Boitempo em 2014, A jaula de aço, do cientista social Michael Löwy, corrobora relacionar duas correntes sociológicas – a weberiana e a marxista –, muitas vezes entendidas como defensoras de proposições opostas, impossíveis de serem alocadas de forma amistosa na formulação de um quadro conceitual ou mesmo teórico-metodológico, mas que também, segundo o autor, têm sido frequentemente pensadas guardando convergências entre si. De ascendência judaica, Michael Löwy nasceu em 1938 no Brasil, formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo em 1960, doutorando-se sob orientação de Lucien Goldmann em 1964 pela Sorbonne. Atualmente reside na França e é diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique. Löwy tem expressiva bibliografia sobre a história do pensamento de esquerda, desenvolvendo trabalhos sobre Karl Marx, György Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin. Nesse sentido, o presente livro, o qual se resenha, é instigante, uma vez que propõe pensar os usos da sociologia de Max Weber – considerado por Löwy um pensador liberal – por autores reconhecidamente marxistas, formando assim, uma “corrente” sociológica referida como webero-marxista. A primeira parte do livro “Weber, Marx e a ‘jaula de aço’” é composta por dois capítulos. No primeiro: “Marx e Weber: Kapitalismus”, Löwy discute as divergências entre Weber e Marx. Tais diferenças seriam essencialmente políticas e metodológicas, no entanto, os dois autores teriam em suas obras questões afins, a começar pelo interesse que ambos tinham pelo capitalismo. Ademais, os dois pensadores estariam de acordo entre pontos fundamentais tais quais a compreensão das classes sociais segundo suas posições de poder e propriedade, o Estado como detentor do monopólio da violência, e, até mesmo, em certa medida, a compreensão da

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racionalidade e da burocracia como uma das condições de existência necessárias para o estabelecimento do capitalismo. Sobre as origens do capitalismo, Löwy explicita a teses dos dois autores. Para Marx, a explicação estaria posta no conceito de acumulação primitiva, isto é, posto de forma simplista, a expropriação dos camponeses pelos cercamentos, o escravagismo e a exploração colonial. Para Weber, grosso modo, o capitalismo moderno seria produto de empreendedores movidos pela ética protestante. Löwy chama a atenção para a necessidade de salientar que Weber não desconsideraria as formas do capital voltadas para a violência, denominando-as como capitalismo imperialista ou aventureiro. Ou seja, Weber priorizaria aspectos socioculturais – em uma interpretação “espiritualista” da história – enquanto Marx evidenciaria os aspectos materiais – fruto teóricometodológico do materialismo histórico. Embora seja evidente o contraste entre as duas perspectivas, o autor d’A jaula de aço chama a atenção para os fragmentos da obra de Weber que deixam claro a sua preocupação em não apresentar suas conclusões acerca do capitalismo como causas decorrentes de fatores culturais apenas, chamando atenção inclusive para a necessidade de se estudar a contribuição dos fatores econômicos que levaram ao surgimento e ao estabelecimento do capitalismo. Como afirma Löwy, embora Weber não fosse um marxista, estava longe de ser um antimaterialista, deixando de forma implícita em algumas passagens de sua obra, seu reconhecimento acerca da primazia das transformações econômicas sobre as transformações socioculturais, embora, com isso, não buscasse uma interpretação de base material, mas sim congruente entre tais esferas, a material e a cultural. Nesse sentido, Weber trabalha o termo “afinidade eletiva”. Outro ponto comum, evidenciado por Löwy, possível de ser pensado nas obras de Marx e Weber, diz respeito à crítica ao capitalismo, os dois autores perceberiam o sistema capitalista através de um prisma fundamentalmente negativo em que a quantificação da vida social, a exploração do trabalho, a desigualdade das riquezas, a reificação e a submissão ao mercado seriam imperativos. Karl Marx ao longo de suas obras desenvolveria uma crítica anticapitalista baseada na necessidade e na inevitabilidade de transformação do sistema para um estágio pós-capitalista. Já em Max Weber, a crítica seria mais ambígua uma vez que o autor, segundo Löwy, não veria horizonte além do capitalismo, pois seria este o sistema mais racional de desenvolvimento

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possível, no entanto Weber chama a atenção para o fato de que a intensa e voraz busca pela eficácia do sistema levaria a uma intensa burocratização e coisificação das atividades humanas. Enfim, a diferença estaria no pensamento pessimista e resignado de Weber frente às ideias revolucionárias do autor d’O Capital. A visão pessimista de Weber é objeto do segundo capítulo d’a jaula de aço, intitulado “O pessimismo cultural de Max Weber”. Nele o autor chama a atenção para a ênfase dada por Weber à impossibilidade para além do capitalismo, o que faz do autor de Economia e Sociedade um “pessimista resignado”, nas palavras de Löwy. A partir desta premissa Weber cunharia o termo que em uma tradução não literal, mas já recorrente nas ciências sociais, se tornou o conceito “habitáculo de aço” ou “jaula de aço”, pois o capitalismo moderno levaria os indivíduos a uma espécie de escravidão sem mestre, uma vez que todos estavam subordinados a regras cotidianas impostas tacitamente pelo sistema e que seriam absolutas e impessoais. Para Weber, o sistema capitalista não comungava com a liberdade, pelo contrário, cada vez mais a sociedade deveria seguir os imperativos do mercado. A questão a ser posta seria: como valores como os de liberdade e democracia seriam possíveis com o desenvolvimento do sistema no decorrer do tempo? A segunda parte do livro, “Max Weber sobre as afinidades eletivas”, é composta de dois capítulos, “O conceito de afinidade eletiva”, o terceiro capítulo do livro; e “A ética católica e o espírito do capitalismo: afinidade negativa”, o quarto capítulo da obra. Neles, Löwy traça a relação feita por Weber entre as condições culturais, isto é, a ética protestante e as condições materiais, que levaram à formação do capitalismo. Nesse sentido, Weber trabalha o conceito de “afinidade eletiva”. Como já dito, propondo uma congruência entre aspectos de caráter material com aspectos de caráter “espiritual” que possibilitariam o surgimento e a consolidação do sistema capitalista. Posto isso, Löwy trabalha a percepção de Weber sobre o catolicismo. Embora o autor alemão nunca tivesse se debruçado sobre o catolicismo, seria possível identificar ao longo de sua obra, a sua percepção acerca desta religião, segundo a qual a ética católica teria uma profunda antipatia pelo capitalismo, devido a sua impessoalidade nas relações entre os indivíduos, o que impediria o catolicismo de regulá-lo. Esta crítica segundo Weber teria um caráter reacionário, visto que, por exemplo, no decorrer do feudalismo o papel da igreja na regulação de certas relações era uma constante. A partir do final do século XIX surge na Europa uma crítica não reacionária ao capitalismo, segundo Löwy, uma crítica católica de esquerda, que na América latina aparece em meados do século XX – a Teologia da Libertação –, a leitura de Weber, mesmo escrevendo de Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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um passado consideravelmente distante, ajudaria a entender tais fenômenos no entender de Löwy. Na terceira e última parte do livro, “Marxismo Weberiano”, Michael Löwy discute em dois capítulos os usos de Weber por pensadores reconhecidamente marxistas. No quinto capítulo, “O capitalismo como religião: Ernst Bloch, Walter Benjamin e Erich Fromm, leitores de Max Weber”, autores que fizeram leituras anticapitalistas das obras de Weber são discutidos, embora não fossem marxistas weberianos propriamente ditos. O primeiro autor evocado é Ernst Bloch, que pautado em Weber, teria inventado o termo “capitalismo como religião” e estabelecido uma crítica ao calvinismo por ter, segundo ele, destruído o cristianismo e levantado um culto ao dinheiro. O segundo autor trazido à baila é Walter Benjamin, que desenvolve a ideia do “capitalismo como religião” a partir das conclusões de Weber acerca da íntima relação entre a ética protestante e o sistema capitalista. No entanto, Benjamin iria mais adiante no pensamento, ao afirmar que mais do que ter surgido a partir de um fenômeno religioso, o capitalismo era em si um fenômeno religioso. Por fim Löwy expõe o pensamento de Fromm, segundo o qual, o capitalismo seguindo as premissas éticas do calvinismo transformou o meio para a felicidade em um fim, ou seja, o trabalho passa ser mais importante do que a possibilidade de aquisição advinda através dele. Esta perspectiva, tal qual a dos dois pensadores anteriormente citados, teria sido embasada na obra de Weber. O último capítulo do livro, “figuras do marxismo weberiano: de Lukács a MerleauPonty”, Löwy aponta para os representantes diretos do que ele chama de marxistas weberianos. Um exemplo seria Lukács, segundo o qual a racionalização capitalista faria com que todos os elementos presentes na sociedade fossem vistos como mercadorias passíveis de serem calculadas de forma racional. Isto se estenderia às esferas da justiça e da administração entre outras. Ou seja, Lukács justificaria o conceito de mercadoria a partir do desenvolvimento de uma racionalidade característica do capitalismo, ideia desenvolvida por Weber. Seguindo esta linha, temos a escola de Frankfurt que empreenderia, segundo Löwy, uma ótica marxista, tendo como pano de fundo uma concepção de história essencialmente weberiana em que a formação do sistema capitalista e da sociedade moderna se deu a partir de um processo de racionalização, o que tornaria o Estado, a indústria e a cultura, elementos puramente formais, indiferentes a finalidade da ação dos indivíduos. Enfim, o livro A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano proporciona pensar o terreno irregular de um "webero-marxismo" e nesse sentido, possibilita, sobretudo, estabelecer um jogo entre duas importantes correntes sociológicas. Embora fique claro o pessimismo de Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2015. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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Weber e o pensamento revolucionário dos Marxistas explicitados na obra de Löwy, além de outras diferenças cruciais entre Marx e Weber, o livro de Löwy cumpre seu objetivo de fazer uma associação indispensável entre o que ele chama de o otimismo da vontade e o pessimismo da razão.

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