Jornal da ABI 359

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DIVULGAÇÃO

NÁSSARA 100 ANOS DE UM MESTRE DA CARICATURA Autor de Alá-la-ô, clássico do Carnaval, ele foi apontado como a mais perfeita síntese do Rio por seus desenhos, suas músicas e suas cores. PÁGINAS 32 E 33

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Jornal da ABI

O UTUBRO 2010

A arte reflexiva de Rubem Grilo Sua criatividade e seu domínio técnico dão-lhe especial destaque na História da xilogravura.

PÁGINAS 10, 11 E 12

PÁGINAS 34, 35 e 36

Páginas 36, 37, 38, 39, 40, 41 e 42

Páginas 20, 21, 22 e 23

COMPANHEIRO DE GLÁUBER

UMA NOVA HISTÓRIA

JUIZ GARZÓN QUER

O JB QUE AMÁVAMOS

MOSTRARÁ INÉDITOS DELE

PARA OS QUADRINHOS

PUNIR TORTURADORES

ATRAI ESTUDANTES

CINEGRAFISTA, ROQUE ARAÚJO SEGUIU A RECEITA DO CRIADOR DE D EUS E O DIABO E COM A CÂMERA NA MÃO O FLAGROU EM CENAS JAMAIS EXIBIDAS . PÁGINA 17

M UDANÇA NO PERFIL DO CONSUMIDOR ALTERA ESTRATÉGIA DE LANÇAMENTOS DAS EDITORAS E AMPLIA ESPAÇO NAS LIVRARIAS . PÁGINAS 3, 4, 5, 6, 7 E 8

A UTOR DA ORDEM DE PRISÃO DO DITADOR P INOCHET , ELE SUSTENTA QUE TORTURA NÃO É CRIME POLÍTICO E NÃO PRESCREVE . P ÁGINA 29

C ENTENAS DE ALUNOS DE C OMUNICAÇÃO LOTARAM A ABI NUM SEMINÁRIO REPASSADO DE DOCES LEMBRANÇAS . PÁGINAS 13, 14, 15 E 16 FRANCISCO UCHA

O criador da Folha Dirigida diz que as boas matérias estão na rua; o dever do repórter, inconformado, é buscá-las. PÁGINAS 19, 20, 21, 22 E 23


Editorial

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO 03

Especial - A nova explosão criativa dos quadrinhos

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Memória - Nélson Rodrigues, sem sapatos, nem falsos pudores, por Rodolfo Konder

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F uro - Uma idéia na cabeça e uma câmera na mão de Roque Araújo

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Homenagens - O premiado José Hamilton agora tem o seu nome em dois prêmios

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Depoimento - Adolfo Martins

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Centenário - Os 100 anos de um mestre do desenho não podem passar em branco

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Retrospectiva - A arte de Rubem Grilo, gravada na História da Xilogravura no Brasil

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A rrtt e - Rubens, o criador do direito de copiar

IMPÕEM-SE ESTAS REFLEXÕES porque, no exercício das intervenções que lhes cabem, os meios de comunicação tentaram no começo da campanha do segundo turno pautar os candidatos, ditar-lhes os temas e questões de que se deveriam ocupar, mesmo a despeito do conhecimento de que relevantes itens desse elenco não são matéria da competência do Presidente da República, como a falsa opção que se procurou estabelecer acerca de questões que dizem respeito mais à religião ou aos costumes do que à gestão da coisa pública, como na tentativa de se incluir no primeiro plano das exposições dos postulantes do voto a questão do aborto, que gerou controvertidas manifestações dos candidatos, e a da união entre pessoas do mesmo sexo. Queria a mídia, a toda força, que esses temas ganhassem relevo e prevalecessem sobre outros tão ou mais importantes, como a educação, a saúde, a segurança, o transporte público, a previdência social, a assistência aos portadores de deficiências, às crianças, aos idosos; enfim, a atuação do Estado Nacional em favor dos despossuídos de toda natureza.

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Centenário - O cronista da Terra da Garoa

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SEÇÕES ACONTECEU NA ABI Jornal Ex-: Histórias da imprensa de vanguarda nos anos 70

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O JB que nós amávamos

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LIBERDADE DE IMPRENSA O artigo que derrubou a colunista do Estadão

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Violência mata dois jornalistas no Brasil

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Fiscal da imprensa não é o poder, mas o leitor, diz a ABI

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“Jornalismo é um serviço público”

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O Clube Militar, quem diria, fala em liberdade de imprensa

A TENTATIVA MALOGROU. Ficou claro que a mídia pode muito, pode demais, mas não pode tudo e tem de se acautelar contra aqueles que a consideram poderosa demais.

A MÍDIA PODE TUDO? RARAS VEZES O PAÍS terá assistido a uma campanha política em que foi tão marcante a presença dos meios de comunicação, e principalmente da mídia impressa, como esta que culminou neste 31 de outubro com a votação do segundo turno da eleição para a Presidência da República e para os Governos de oito Estados e do Distrito Federal. Este é um fato alvissareiro, porque demonstra mais uma vez, e agora com ênfase especial, o papel que a comunicação passou a desempenhar desde a primeira década dos anos 1980 em momento tão decisivo para o País e o conjunto de Estados. TEMOS AÍ UMA PROVA da vitalidade da imprensa e dos meios eletrônicos de comunicação na oferta de informações que podem orientar os cidadãos comuns na escolha daqueles que vão dirigir os destinos de cada unidade da Federação e da própria União. A imprensa forte e atuante é essencial para o exercício da democracia, para sua consolidação e seu aperfeiçoamento, que se produzem à medida que se sucedem os prélios eleitorais. AO MESMO TEMPO, essa presença e influência da comunicação nas disputas políticas aumentam as responsabilidades daqueles que detêm o poder de dotar a sociedade de informações e opiniões que contribuam para o desejável aperfeiçoamento do regime democrático. A sociedade não pode ficar exposta a adulterações, manipulações e variada corte de descaminhos, que alimentam aqueles que, como evidenciam iniciativas legislativas em curso em vários Estados, imaginam que a comunicação deve servir a seus interesses políticos e econômicos, à sua ânsia de poder para práti-

Jornal da ABI Número 359 - Outubro de 2010

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br Representação de São Paulo Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

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cas que não correspondem ao melhor para a sociedade. As distorções na oferta de informações estimulam e fundamentam, aparentemente com carradas de razão, as ações de quantos ignoram a lição de um mestre, o teatrólogo Millôr Fernandes, mais de uma vez citado neste Jornal da ABI, de que jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados.

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CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer. CONSELHO FISCAL 2010-2011 Jarbas Domingos Vaz, Presidente; Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos de Oliveira Chesther e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2010-2011 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Arcírio Gouvêa Neto Conselheiros efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho. Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

DIREITOS HUMANOS Juiz que mandou prender o ditador Pinochet reclama a abertura dos arquivos ○

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Anistiados e anistiandos pedem “uma atenção mais cidadã”

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Caravana de Niterói anistia 19 perseguidos

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LIVROS No Jabuti 2010, deu jornalista na cabeça até na ficção

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A morte de Nestor Moreira, o começo do fim de Getúlio

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Eco: Além das baleias, temos de salvar os livros

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Três vezes Pelé, em imagens e textos

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O Nobel Llosa: a realidade no mundo da ficção

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V IDAS

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Conselheiros suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello (in memoriam), Salete Lisboa, Sidney Rezende,Sylvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA José Pereira da Silva (Pereirinha), Presidente; Carlos Di Paola, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Toni Marins (in memoriam). COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Lênin Novaes de Araújo, Presidente; Wilson de Carvalho, Secretário; Alcyr Cavalcanti, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente, Jorge Nunes de Freitas, Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


ESPECIAL

Expansão e renovação do público de hqs mobilizam editoras e livrarias, que diversificam sua produção e ampliam espaços de exposição e venda das publicações do gênero. POR PAULO CHICO O crescimento dos quadrinhos não está no gibi. Agora está também em álbuns de luxo e livros especiais. Já há alguns anos, a multiplicação de títulos de hqs tem levado mais cores à novos pontos de venda em todo o País. Um movimento de mercado que engloba as grandes editoras e livrarias, que chegam a criar selos e espaços especiais para as publicações do gênero. “O que acontece no Brasil é que até pouco tempo atrás havia um pequeno número de editoras especializadas em quadrinhos, como Devir, Conrad e Lettera, por exemplo. Depois, surgiu a Desiderata, voltada para o humor e cartu-

nistas, já comprada pela Ediouro. E, por fim, outras editoras grandes passaram a publicá-los, como a Cia. das Letras e a Record. Há ainda a L&PM, com livros de bolso de cartunistas nacionais”, diz Milena Duchiade, da Livraria Leonardo da Vinci, que em seu site reserva uma seção somente para as hqs. Na Europa, em especial na França, o mercado editorial de quadrinhos cresce seguidamente, com muitas editoras especializadas. Nos Estados Unidos é imenso, não apenas com revistas, mas livros e álbuns, inclusive de capa dura. No Brasil, por muito tempo as referênci-

as foram as publicações importadas. Depois, o mercado interno experimentou um processo de retração, logo superado. “Nós sempre vendemos quadrinhos. Há muito tempo trabalhamos com eles. Inicialmente, os álbuns de hqs estrangeiros, italianos e franceses, desde a década de 1960, com uma explosão no final dos 1970 e início dos 1980. Depois, nos anos 1990, a moda arrefeceu, e aos poucos foi retornando, com força, já na última década”, descreve Milena, também representante da Associação Nacional de Livrarias-ANL e da Associação Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro. Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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ESPECIAL A NOVA EXPLOSÃO CRIATIVA DOS QUADRINHOS

Diretor da Editora Devir, Douglas Quinta Reis faz uma análise parecida. “Nosso mercado parece ser cíclico. Quando eu era criança e estava aprendendo a ler, lá pelo início da década de 1960, havia muitas editoras publicando quadrinhos dos mais variados gêneros, muitos deles produzidos no Brasil. Depois, eles meio que perderam o glamour e quase desapareceram da mídia. Voltaram a ter um bom momento no fim da década de 1980 e começo da década de 1990. Na época, a maioria dos jornais tinha uma coluna sobre quadrinhos. Franco de Rosa, Rogério Campos e André Forastieri eram alguns dos jornalistas de quadrinhos da época. Martins Fontes, L&PM e Brasiliense publicavam álbuns e graphic novels para livrarias. Até que, mais uma vez, as hqs submergiram. No fim da década de 1990 não existia um único livro de quadrinhos nas livrarias. Hoje, eles estão em alta novamente, puxados pelas compras do governo e pela chegada dos mangás ao Ocidente”. Na prática, as editoras mudaram o foco das bancas para as livrarias, que acabaram reconhecendo a existência desse segmento e abriram um espaço em suas prateleiras para os quadrinhos – tendência que deve se intensificar ainda mais. No entanto, para o Diretor da Devir, que edita títulos de sucesso, como A Liga Extraordinária, o mercado enfrenta problemas. “Nos falta profissionalização. Estamos começando a ter um mercado consumidor, mas não temos ainda um quadro produtor de quadrinhos, ou seja roteiristas, desenhistas, letristas e coloristas trabalhando em tempo integral para editoras brasileiras, produzindo projetos. Além disso, as hqs não são muito rentáveis, como negócio. É preciso um livro de muito sucesso para ter algum lucro. Isto porque livros de quadrinhos são caros de produzir - todo em cores, papel couchê, com encadernação de luxo... Isso é tão dispendioso quanto produzir um livro de arte, só que para um público com um poder aquisitivo muito menor”, compara.

A Devir é uma das casas publicadoras que mais investem nos quadrinhos nacionais.

Mondo Urbano; Cogumelos do Entardecer; Xampu, de Roger Cruz, e Avenida Brasil, de Paulo Caruso, são alguns dos recentes lançamentos.

UM CRESCIMENTO SÓLIDO E SUSTENTADO? “Não sei se vivemos exatamente um boom. Mas, sim, é verdade que o ramo das histórias em quadrinho vai muito bem, está bastante aquecido. Há um grande volume de títulos saindo, sobretudo em gêneros específicos, como os super-heróis. E há maior paridade entre o mercado nacional e o que é lançado lá fora, por exemplo, nos Estados Unidos, que rapidamente chega aqui. Outro fator positivo, que ajuda os quadrinhos a venderem bem e a darem lucro, é sua crescente compra por parte do Governo, através do programa de livros paradidáticos. Além disso, existem fenômenos de vendas como os títulos da Marvel e da DC Comics. É interessante 4

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notar que vários personagens dessas editoras, como o Homem-Aranha e Batman, são embalados por filmes de sucesso nos cinemas”, diz André Conti, Editor do selo de hqs da Companhia das Letras, que lança álbuns premiados como Persépolis, de Marjane Satrapi, e as aventuras de Tintim. Quem seriam os responsáveis pelo incremento desse mercado? Que público é esse?

“Isso eu também gostaria de saber!”, brinca André Conti, antes de levantar algumas hipóteses, a partir da sua observação. “Vejo se aproximar um público adulto jovem, da minha faixa etária, na casa dos 30 anos. São pessoas que na infância e adolescência curtiram os quadrinhos. Depois, talvez tenham se desligado um pouco. Mas agora, que estão trabalhando, ganhando seu dinheiro, voltam a se interessar pelas hqs, mas buscam produtos mais refinados, bem acabados e elaborados. E, noto também, eles criam redes sociais sobre esse universo, escrevem sobre os lançamentos no Twitter. E buscam passar essa paixão para filhos e sobrinhos”, arrisca André Conti. O momento positivo das hqs não parece ser apenas um modismo. O leitor, a mídia, os editores e as livrarias parecem ter acordado para o valor dessas publicações, e já as reconhecem como linguagem e manifestação artística. “Se alguém previsse o atual cenário dos quadrinhos no Brasil há dez anos, exatamente como ele é hoje, seria visto como um otimista crônico. É claro que há muito ainda a ser melhorado, mas o fato é que os quadrinhos foram abraçados pelo público. As livrarias têm seções grandes e em destaque, colocando lançamentos nas suas vitrines. Os jornais noticiam os lançamentos com destaque e a palavra ‘quadrinista’ já não soa mais como um termo científico em latim... Fazendo uma análise fria, as hqs são uma forma de literatura mais compatível com os tempos de hoje, até mais do que a literatura tradicional – não que isso seja bom ou ruim. A nossa cultu-

ra cada vez mais visual e dinâmica começou a ver os quadrinhos como mais uma opção de lazer, entretenimento e cultura”, acredita André Diniz, roteirista e desenhista, com publicações pela Nona Arte, Record e Conrad. André, nascido no Rio de Janeiro em 1975, considera que o que torna este momento único é justamente o fato de que todos os públicos estão se abrindo para os quadrinhos: “Isso porque se percebeu o mais importante: quadrinhos não são para crianças, não são para adultos, não são engraçados, nem sérios. Eles são uma linguagem. É possível usar a linguagem escrita tradicional para escrever receitas de bolo, fazer uma tese de mestrado, narrar uma história dramática, relatar uma viagem ou contar piadas. O cinema e a televisão falam com todos os públicos. O mesmo passou a acontecer com os quadrinhos. Já fiz quadrinhos didáticos, já contei aventuras para jovens, relatei minha experiência pessoal com a Terapia das Vidas Passadas, lancei um manual de Windows em 2004 e lanço, no ano que vem, a biografia de um fotógrafo do Morro da Providência... Tudo isso através da linguagem dos quadrinhos”, anuncia.

DE MERCADO MARGINAL, A UM DOS DESTAQUES DO SETOR Nos anos 1990, quem quisesse ler algo diferente dos gibis da banca tinha que ser quase um iniciado: precisava descobrir um dos oito ou dez endereços de lojas especializadas em São Paulo ou no Rio, geralmente dentro de galerias com pouco movimento. E pagar


Notas Sobre Gaza e Scott Pilgrim caro, em dólar, por edições importadas. Contra o Mundo foram lançados A maior demanda, levou o mercado a pela Cia das Letras, que criou um organizar-se. E até mesmo a entender selo específico só para cuidar dos melhor o seu produto, como ressalta álbuns em quadrinhos. André Diniz. “Hoje, basta ir na livraria da esquina ou encomendar via internet. As livrarias descobriram, finalmente, que quadrinhos são quadrinhos, não são livros de humor, nem literatura infantil. Aliás, era bem freqüente há até poucos anos ver hqs eróticas na seção de infantis. Quanto às editoras, acabou aquele cenário em que só havia duas ou três especializadas. Hoje, qualquer editora está disposta a publicar hqs. Eu mesmo já havia publicado um romance juvenil pela Editora Record, via selo Galera Record. Mesmo sem selo específico, publicaram o meu livro, O Quilombo Orum Aiê, todo em quadrinhos”. O volume de produção de André Diniz dá a noção do interesse das editoras pelas hqs. “Tenho 17 obras publicadas, somente de 2005 para cá, e só estou listando as que são 100% quadrinhos. Até o final de 2011, tenho mais seis lançamentos agendados. Alguém acha que as editoras estão me fazendo um favor publicando meus livros? Se o retorno não fosse bom, essa marca seria impossível. Por outro lado, o resultado do nosso crescifil do leitor de hqs. Acredito que mento é que passamos a ter os a palavra que melhor resume a mesmos problemas dos demais nossa adaptação para atender autores: algumas editoras aina este mercado é ‘cuidado’. Sodo muito na última década. Nesse váda acreditam que lesar o autor mos atentos e cuidadosos aos cuo, os sites e blogs surgem como esé um bom negócio. Falta inceninteresses do público. Tanto paços disponíveis para a exposição e tivo à cultura, há desrespeito para pensar nas novidades, discussão das hqs no Brasil. aos direitos autorais, e nos é necomo para fazer os pedidos dos “A lacuna existente no que se refegada uma remuneração justa... livros e organizar eventos”, re a publicações especializadas está senIsso mostra o quanto era difíexplica Alzira. do, em parte, preenchida com os blocil fazer quadrinhos no Brasil Para ela, os quadrinhos aprogs e sites. O cenário é diverso nos jorhá alguns anos... O mercado ximam-se dos livros, sobretudo nais. A Folha de S. Paulo abre muito teve que evoluir maravilhosaem termos de acabamento e espaço para matérias de quadrinhos... mente para que esses probleapresentação. “As hqs, sem dúOutros, não. Depende do gosto de cada mas também se tornassem nosvida, diversificam o público da editor. Alguns detestam quadrinhos e sos! Agora, temos problemas livraria, e verifica-se um aumenpreferem encher as páginas de cultude gente grande”, provoca. to de leitores mais específicos do ra com outras coisas. Como seção do “O aumento dos quadrinhos segmento em eventos e noites jornal, porém, o quadrinho encolheu nas livrarias é um fenômeno de autógrafos dessas obras espebastante. Antigamente os jornais tibrasileiro que pode até ser concíficas. Mas, vale lembrar que os nham páginas inteiras dedicadas a eles. siderado tardio, pois essa tenquadrinhos são livros. Eles estão Agora, há uma seção minúscula mistudência na Europa e nos EUA já recebendo cuidados editoriais rada com horóscopo, cruzadas, sudoku ocorre há mais de duas décadas. que fazem jus ao trabalho dos e outros passatempos. Isso se deve tamAs explicações para esse ‘boom’ artistas e à riqueza dos temas bém ao encolhimento do tamanho dos das hqs podem ser várias: a que eles abordam nessa linguajornais, custo do papel e outros fatomaior diversidade de títulos; os gem artística tão peculiar. Exisres”, explica Ota, autor de Relatório Ota trabalhos editoriais cada vez tem trabalhos realizados com do Sexo, editado pela Leya Cult. mais competentes, que conmuita complexidade, que exiO cartunista concorda com André templam as potencialidades da gem bagagem cultural mais Conti, da Cia. das Letras, quanto à linguagem das hqs; o amadureampla do leitor, além de domídefinição do perfil do leitor que comcimento do mercado nacional; nio da linguagem artística própra quadrinhos. a facilidade de editar e publicar pria das hqs. Os leitores de qua“Esse público que define a tendênde forma independente e a O Quilombo Orum Aiê, um álbum gráfico de André Diniz, drinhos são, sobretudo, leitocia atual está na faixa dos 30 a 40 anos, maior profissionalização do artista tem seis novos lançamentos programados até 2011. res”, finaliza Alzira. em sua maioria. São pessoas que têm segmento, tanto dos artistas, certo poder aquisitivo e compram quaquanto de todas as outras parHÁ MAIOR COBERTURA NOS hqs dentro do nosso Departamento de drinhos porque eles os remetem a um tes que compõem essa conjuntura”, conJORNAIS. E MENOS ESPAÇO Comunicação. Através dele organizapassado nostálgico, ou gostam de obras sidera Alzira Valéria, pesquisadora de O espaço para as tiras e para a pumos, desde 2008, um evento anual. É de boa qualidade. Já o público de banhqs e responsável pela seção de quadriblicação das hqs nos jornais, é irrisório, a Semana de Quadrinhos da Travessa. cas é formado basicamente por nerds nhos da Livraria da Travessa, do Rio. afirmam os autores, apesar de a quanTemos também um trabalho de muide classe média pra cima, que compram O interesse do grupo pelos quadritidade de matérias, notícias, colunas tos anos na montagem do acervo dutudo o que sai de super-heróis. Ou pesnhos vai além da venda de exemplares especializadas, entrevistas e resenhas rante o festival AnimaMundi, que tem soas comuns que compram gibis infanem suas lojas. “Apostamos há quase de histórias em quadrinhos ter crescigrande público em comum com o pertis para distrair os filhos. E é importante três anos num Núcleo de Eventos de

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ESPECIAL A NOVA EXPLOSÃO CRIATIVA DOS QUADRINHOS

frisar que há muita coisa aqui tão boa quanto no estrangeiro. O Brasil é um celeiro de talentos. Mas, devido à natureza do mercado, e por ser este um país de Terceiro Mundo, as coisas não andam como deveriam.” É justamente ao abordar o tema ‘mercado’ que Ota revela sua visão particular. Para ele, há mesmo que se questionar sobre esse tal crescimento das hqs no Brasil. “A explosão que temos é em termos de aumento de títulos, não de aumento do mercado. Se for fazer uma conta precisa, há menos gente lendo quadrinhos. Menos gente, aliás, pagando por eles, que são baixados grátis na internet. Ocorre que houve uma diversificação maior e os quadrinhos estão mudando dos pontos de venda originais, as bancas, para livrarias e novas mídias eletrônicas. Nesse sentido, a coisa se expandiu. O mercado de bancas ficou restrito praticamente à Abril e à Panini, além de algumas espeluncas, ao invés das dúzias de editoras que existiam antigamente. E as vendas, em geral, estão cada vez mais baixas. Seria inconcebível a menor das editoras, nos tempos antigos, agüentar vendas de menos de dez mil exemplares. Mas isso é o que a maioria das revistas de bancas vende, embora haja exceções, como a A Turma da Mônica Jovem, que vende na casa dos seis dígitos”. Com licença do trocadilho, há muita coisa a ser ‘revista’ na relação entre artistas e editoras. É o que garante Ota. “Praticamente só as editoras têm lucro. Os autores, não. Uma editora que publica 50 títulos tem um pouquinho de lucro em cada um. No somatório, dá alguma coisa. Isso vale tanto para as histórias de bancas como as de livrarias. Uns poucos autores que vendem bem recebem cheques mais gordos, mas a maioria tem uma renda muito baixa de direitos autorais. Só que o que é de banca, depois que é recolhido, vai para o papeleiro. E o que é de livraria fica em catálogo... As vendas e direitos vão pingando. Mas o editor é um capitalista que visa lucro. Ponto. Para ele não interessa se é quadrinho americano, brasileiro, francês ou de que lugar for, contanto que as contas fechem. É mais fácil comprar algo já pronto e traduzir. São poucos os que têm uma visão no futuro, investindo em coisas que possam render lá na frente”, conclui.

EXPLOSÃO, NÃO. APENAS “UM ESTOURO DA BOIADA” Samuel Seibel, dono da Livraria da Vila, vê a expansão do mercado de hqs sob um olhar sociológico. “O mercado de quadrinhos, sem dúvida, cresceu muito nos últimos anos. Primeiro, por sempre ter existido um público fiel a essa categoria. Depois, pelo fato de os principais qua6

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drinistas abordarem temas universais e de contracultura, com forte apelo popular. Formou-se uma tribo toda própria, que valoriza esta forma de comunicação. Como os temas dos quadrinhos são absolutamente ecléticos, o público é igualmente variado: jovens, homens, mulheres, de diferentes faixas etárias. Como existem cada vez mais títulos no mercado, acredito que este seja um negócio rentável para as editoras. A Livraria da Vila abriu mais espaços específicos em cada uma de suas cinco lojas e tem vendedores especializados no tema”. Para alguns, a atual fase, menos que crescimento, é de ajuste do mercado: “Não houve uma explosão do mercado dos quadrinhos, foi mais um ‘estouro de boiada’. Leitores invadindo as livrarias atrás de álbuns de quadrinhos. Havia uma demanda reprimida. Quando as editoras passaram a ofertar livros de qualidade, a resposta foi imediata. Hoje, editoras e livrarias estão correndo atrás do prejuízo, aprendendo o mais rápido que podem sobre a linguagem dos quadrinhos, cujo público está ficando menos específico, assim como o de cinema, tv e livros. A diversidade de gêneros tem atingido públicos em potencial que não consumiam pela falta de algo do seu interesse. Hoje, temos quadrinhos de humor, aventura, drama, biografia... É um mercado em crescimento que ainda carece de investimento. As hqs já foram importantes em jornais e revistas. Hoje, o suporte livro e a internet têm absorvido melhor essa linguagem. Não posso falar pelas outras editoras e não existem dados de mercado sobre quadrinhos. Para mim, eles têm sido rentáveis desde 2003, quando comecei com a Mosh!, uma revista independente”, conta S. Lobo, experiente Editor de quadrinhos. Com lançamentos recentes como Agatha Christie em quadrinhos e a série de livros Peanuts Completo, a L&PM investe no setor há muitos anos. Ainda na década de 1980, a editora lançava ótimos álbuns através do selo Quadrinhos L&PM onde, autores consagrados como Milo Manara, Edgar Vasques, Guido Crepax, Hugo Pratt, Luis Fernando Veríssimo, Jules Feiffer, Moebius, Wolinski, Nico Rosso, Will Eisner e Alex Raymond, só para citar alguns, tiveram livros lançados através desse selo, hoje abandonado. Na avaliação do Editor Ivan Pinheiro Machado, ainda falta maturidade ao Brasil. “O mercado internacional de quadrinhos é muito pujante.

No Brasil ele é muito fraco, apesar da aparência. Primeiro, porque as livrarias expõem os quadrinhos em ‘guetos’, geralmente longe dos melhores lugares. As editoras estão atentas, mas as livrarias trabalham somente aqueles dois ou três títulos que vendem mais. Segundo, porque os títulos que têm chegado ao Brasil são apenas os bestsellers internacionais. Não há uma produção brasileira sistemática de hqs. Só casos isolados, e assim mesmo quando provocados por editores”. Na avaliação de Ivan, parece haver certa dose de folclore em torno dos quadrinhos e seu potencial. Tanto de atrair o público, quanto o de gerar lucro. “Na verdade, não tem essa história de público engrossando as filas, pois elas são pequenas. De novo mesmo, só há os mangás e os quadrinhos em bolso da L&PM. Para as editoras em geral eu não sei se as hqs dão retorno, resultado financeiro. No nosso caso, isso só ocorre nos pockets”, revela o Editor, que relativiza a importância da mídia para o setor: “A imprensa cultural geralmente é omissa e já não consegue mais influir no público. Uma curiosidade que prova esta afirmação: a coleção L&PM Pockets tem uma série com mais de 60 títulos em quadrinhos, com alguns dos mais importantes personagens internacionais, como Garfield, Snoopy, Hagar, Dilbert, a turma do Mauricio de Sousa e os brasileiros Laerte, An-

A Record é outra grande editora que investe em álbuns bem acabados: além da série Asterix, a casa editorial lançou humor, uma história biográfica e uma aventura. A Leya, de Portugal, fez parceria para lançar seus primeiros livros de bolso, especialidade da L&PM editores.

geli, Glauco, entre outros. Já vendeu mais de um milhão de exemplares, só em quadrinhos. E nunca saiu uma linha na imprensa”, lamenta.

A EXPERIÊNCIA DE DUAS EDITORAS Rogério Campos, Diretor Editorial da Conrad, afirma que as hqs são o segmento de publicações que mais cresce em todo o mundo, com recordes de vendas na França, nos Estados Unidos e Japão: “Se isso não é percebido por todos talvez seja porque a nova explosão dos quadrinhos não acontece nos pontos de vendas, nos formatos e com os gêneros tradicionais. Ou seja, não acontece nas bancas, no velho formato comic book, com gibis baratos de poucas páginas, ou no mundo dos super-heróis, que parecem estar por baixo. Eles não conseguem mais voar direito... A explosão acontece nas livrarias, e vem com o formato de livros com muitas páginas, e com histórias mais complexas e variadas. Se antes os quadrinhos eram leitura de meninos, agora são leitura também de meninas, de homens e mulheres adultos.” Na avaliação do Editor da Conrad, as explicações para tamanho sucesso são muitas. O fim dos preconceitos em relação ao gênero é apenas uma delas: “A internet jogou um papel fundamental. Com ela, autores e editores furaram o bloqueio da indiferença da


grande mídia, e puderam divulgar seus trabalhos para um público mais amplo. Ou seja, havia mesmo uma demanda reprimida. E só vemos isso agora”, contextualiza Rogério Campos, que elogia o esquema da produção nacional. “A produção brasileira ainda não tem ares de indústria, e isso é ótimo. O nível técnico subiu uma barbaridade, mas ainda há ousadia e variedade. E a carreira de quadrinista tem boa longevidade. Para Robert Hughes, o famoso crítico da artes plásticas da Time, Robert Crumb, aos 67 anos, é o maior artista vivo do planeta. Enquanto outros dos grandes artistas vivos, de Coppola a Paul McCartney, de Lucian Freud a Woody Allen, estão já no ocaso, Crumb continua evoluindo. Sua versão para Genesis, lançada no ano passado, é um clássico, e figura como a mais vendida em nossa loja virtual, ao lado de histórias de personagens como Warcraft e Calvin & Haroldo.” O selo Galera Record, voltado para o público infantojuvenil, existe desde 2007. No ano passado, foi criado também o selo Galera, voltado para o público jovem adulto. Embora não tenha uma linha de quadrinhos, a Record faz lançamentos no setor, apostando em títulos de qualidade, com grande êxito comercial. São exemplos recentes dessa política Príncipe da Pérsia e Kiki de Montparnasse, além da coleção de Asterix, cujo último lançamento, O Livro de Ouro, data de 2009. Sem falar no 90 Livros Clássicos Para Apressadinhos, obra que, em tempos de Twitter, segue a linha de “menos é mais” e condensa, em poucas horas de divertida leitura, algumas das mais importantes obras já publicadas. Tudo sob o traço de Henrik Lange e o texto cáustico de Thomas Wengelewski.

AS VISÕES DE UM APAIXONADO E DE UM ESPECIALISTA O radialista Paulo Henrique Góes é um colecionador e amante de séries, hqs e desenhos animados. Tanto, que administra um blog sobre esses temas – o www.tujaviu.com. Nos anos 1990, chegou a ter um programa sobre esse universo na TV Record – o Top TV. “Minha paixão pelos quadrinhos começou nas bancas de jornais nos anos

1970, com revistas da Disney e de super-heróis da Marvel e DC. O fato de ter aprendido a falar francês me abriu as portas para os quadrinhos europeus, que são a minha grande paixão. Hoje, inclusive os críticos perceberam que eles são uma forma de se contar uma história, tão importante quanto o cinema, o teatro ou os livros. Não por acaso, eles já são reconhecidos como a Nona Arte”. Para PH, o maior prestígio dos quadrinhos junto a editoras e livrarias deve-se, justamente, à conquista contínua de um público adulto. “Enquanto eles existiam apenas nas bancas de jornal sofreram muito preconceito por parte da sociedade e até por parte dos leitores de livros, que viam este tipo de publicação como algo infantil. Acho que esta explosão é fruto da migração dos gibis para as livrarias, num formato que se aproxima muito ao dos livros. O mercado editorial brasileiro acertou em sua decisão de fazer algo semelhante ao que acontece na França e na Bélgica há muitos anos. Até os Estados Unidos passaram a seguir este padrão europeu de editar quadrinhos de luxo, em capa dura. Os temas também se tornaram mais adultos, alguns até eróticos. Os editores perceberam que tinham um bom filão nas mãos, e que o potencial dos gibis nunca fora totalmente explorado.” Cartunista e jornalista, Jal, ou José Alberto Lovetro, é também Presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil-ACB e um dos criadores do Troféu HQMix, ao lado de Gualberto Costa. As políticas de reconhecimento e premiação dos melhores trabalhos, aliás, são um fator que comprova o incremento do mercado de hqs: “Notamos esse crescimento quando fizemos o levantamento dos lançamentos de 2009 na área de quadrinhos para a votação do troféu HQMix, onde os profissionais da área votam nos melhores do ano. Foram cerca de mil lançamentos entre editoras e independentes naquele ano. Com o PNBE e o Programa de Ação Cultural-ProAC, do Estado de São Paulo, houve maior aquecimento da produção. As editoras maiores, como a Companhia das Letras, Ática e FTD, também viram opor-

tunidade nesse nicho e estão editando material, que já fizeram que as livrarias tivessem que ampliar suas prateleiras para hqs. Na área de venda em bancas, a Panini tem cerca de 85% do mercado com os mangás, super-heróis e Mauricio de Sousa”, revela Jal. O cartunista chama a atenção para algo importante: “Ao contrário do que muitos pensam, a venda em bancas cresce a cada ano, desfazendo a idéia de que as crianças e jovens estão migrando para os eletrônicos como games, mp4, internet, e deixando de ler. O Mauricio de Sousa, por exemplo, criou um ‘case’ com a Turma da Mônica Jovem, lançada em 2008, e que vende cerca de 400 mil exemplares por mês. É a maior vendagem de banca dentre todas as publicações de todos os gêneros no País. Como o Mauricio vive no Twitter, e conversa constantemente com seus fãs, sabe o que eles desejam. As editoras deveriam aprender a escutar mais seus leitores”, aconselha Jal, que trabalha com os Estúdios Mauricio de Sousa e tem passagens pela Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, ganhou um Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos por suas charges sobre a Campanha das Diretas, em 1984.

EXPANSÃO MEXE COM O MERCADO Com o crescimento do setor, é natural que os consumidores estejam se apresentando cada vez mais exigentes. “Vejo as pequenas editoras conseguindo inovar para buscar leitores, justamente por ter pouca burocracia para acompanhar a evolução do público leitor. Uma Abril ou Globo, quando começam a elaborar uma publicação, perdem muito tempo para lançá-la. Há vários Maurício de Souza tem um case de sucesso com A Turma da Mônica Jovem. A série de livros de Calvin & Haroldo e o requintado álbum Mr. Punch, de Neil Gaiman, são títulos da Conrad. O desenhista Milo Manara, que desenha as mais belas mulheres dos quadrinhos,virá ao Brasil em novembro (leia matéria na próxima página).

departamentos estudando o produto; quando o lançam, o mercado já é outro. Por isso, as duas editoras perderam muita produção. A Globo desistiu das bancas depois da saída do Mauricio para a Panini. E a Abril tem pouca vendagem na produção Disney. Na época que tinha uma produção da Disney com desenhistas brasileiros, ela vendia muito bem”, recorda Jal. A Panini é mesmo um fenômeno neste mercado. Com uma visão de multinacional, ganhou os contratos da DC, Marvel e ainda do Mauricio de Sousa. Foi mais ágil por ter uma equipe com decisões rápidas. O resultado é bem visível. As vendas crescem sem parar. “Isso tudo é só o começo. O quadrinho nem entrou ainda na era do ipad, que é a plataforma ideal para essa linguagem. Os leitores exigem um visual junto ao texto. O mundo ficou mais visual e com texto sintético, como demonstra o sucesso do Twitter. Acho que temos público no Brasil para, pelo menos, dobrar nosso atual mercado, que ainda assim seria um milésimo do existente no Japão. Isso exigiria um esforço das editoras, com investimento e união de forças. Mas há uma desarticulação em nome da concorrência que impede essa evolução. E é a concorrência que alimenta e fortalece o mercado”, lamenta Jal. Em tempos de mídias e recursos digitais, seria segura a aposta de que os quadrinhos perderiam terreno, ou até mesmo caminhariam para a extinção. Mas não é para essa direção que aponta a tendência atual. “O papel pintado ainda vai durar muito tempo. Há uma diferença gigantesca entre a atenção que as crianças dão ao que está no papel e a dedicada ao que aparece nos equipamentos modernos, como videogame e computador. Meu filho Mauricio ouve música com três telas ligadas, joga videogame e estuda ao mesmo tempo. Para quem é mais velho parece estranho, mas as crianças de hoje conseguem fazer isso normalmente. Quando uma criança pega um gibi, contudo, ela se isola totalmente do mundo. Fica completamente mergulhada na história. Com isso, o gibi ou o livro ajudam os pequenos a se concentrar. O cérebro deles estabelece uma prioridade, o que é ótimo para o aprendizado e a memória. Se eles lerem gibis cinco minutos por dia, o papel nunca vai desaparecer”, apostou Mauricio de Sousa, em entrevista à Veja em fevereiro de 2009. Diante dos inúmeros acertos do pai da Turma da Mônica, alguém ousa discordar? Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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ENCONTRO

A Rio Comicon reunirá na cidade artistas nacionais e estrangeiros, verdadeiros mestres na arte dos quadrinhos. O maior destaque será a presença de Milo Manara, perito em retratar a sensualidade feminina. Afirmar que o Rio é cenário de algumas das mais belas paisagens do mundo é apostar no óbvio. Pois saibam: a cidade se prepara para ganhar novas formas e cores. Durante seis dias ela será a capital internacional dos quadrinhos. Antes dos jogadores da Copa de 2014 e dos atletas das Olimpíadas de 2016, os cariocas receberão a visita de artistas nacionais e estrangeiros na Rio Comicon, que acontece entre 9 e 14 de novembro, no Ponto Cultural Barão de Mauá, na Estação Central da Leopoldina, construção histórica, inaugurada em 6 de novembro de 1926. O maior destaque do evento será a presença do italiano Milo Manara, mestre dos quadrinhos eróticos, com adaptações de textos literários de Boccaccio e Jonathan Swift, além do Kama Sutra, para o universo hq. Ele será o grande homenageado da primeira edição da Rio Comicon, encontro internacional dedicado à cultura pop, tendo a sua versão mais famosa em San Diego, nos Estados Unidos. Com programação recheada de palestras, debates, oficinas, lançamentos, shows e até desfiles de cosplay, a Rio Comicon também abrirá espaço para uma exposição de mais de 100 originais de Manara, muitos deles criados em parceria com o cineasta Federico Fellini, em storyboards feitos especialmente para o cinema. Manara participará de uma palestra nesta que será sua primeira vinda ao Brasil. “Essa exposição será bastante grande e heterogênea, e tentará dar uma visão geral do meu trabalho, desde os quadrinhos até as ilustrações para a imprensa e a propaganda, com um olhar particular sobre minhas colaborações com Fellini. Além de uma série de ilustrações de filmes, serão expostas as pranchas do Viaggio di G. Mastornadetto Fernet, e também a história Senza Titolo, que eu realizei em homenagem ao gênio dele, como grande diretor. Acho que nunca se pode prepararse para a beleza das mulheres, muito menos para a beleza das brasileiras. Afora as brincadeiras, estou obviamente muito feliz por visitar o Brasil e poder 8

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Autor do desenho do cartaz da Rio Comicon 2010, o italiano Milo Manara será homenageado com uma exposição de seus trabalhos, como esta sensual Vampirella.

aproveitar, como inspiração, claro, as mulheres brasileiras. Tenho certeza de que a ‘mulata carioca’ poderá fazer parte da minha próxima aventura desenhada”, declarou o artista, em recente entrevista a O Globo. Outro nome já confirmado para a Comicon do Rio é o do inglês Kevin O’Neill, parceiro de Alan Moore nos diversos álbuns de A Liga Extraordinária, que deram origem ao filme homônimo estrelado por Sean Connery em 2003. A desenhista inglesa Melinda Gebbie é outra atração internacional. Casada com Alan Moore, com quem assina alguns trabalhos, é um dos poucos nomes femininos de destaque nos quadrinhos. Sua série mais famosa, Lost Girls, narra as descobertas sexuais de Wendy (de Peter Pan), Dorothy (O Mágico de Oz) e Alice (Alice no País das Maravilhas). Na programação destaca-se ainda a participação dos franceses François Boucq, Étienne Davodeau e Killofer e do norte-americano Jeff Newelt, Editor de quadrinhos alternativos, criador do coletivo Act-I-Vate e editor das revistas independentes Smith e Heeb, além de representante de nomes como Al Jaffee, Rick Veitch, Bryan Talbot, David Lloyd e Paul Pope. Seu projeto

mais recente é o lançamento de uma graphic novel sobre os efeitos do furacão Katrina sobre a cena cultural de Nova Orleans. Por fim, vale ressaltar a presença dos argentinos Lucas Nine e Patricia Breccia. Lucas é filho do ilustrador e artista plástico Carlos Nine, o nome mais representativo da nova geração de hq do país vizinho, que colabora atualmente com os jornais Clarín e La Nación. Patricia Breccia, por sua vez, é ‘cria’ de Alberto Breccia e segue a carreira do pai, já com muito sucesso, ao lado dos irmãos Henrique e Cristina.

UM EVENTO DIFERENCIADO “A Comicon de San Diego é muito voltada para o lado comercial e sofre influência direta da cultura hollywoodiana. Nossa idéia é voltar a Rio Comicon para o lado mais autoral dos quadrinhos e falar também dos independentes. Para isso, estamos fechando com 12 ou 13 nomes internacionais, entre artistas, editores e organizadores de outras feiras de cultura pop pelo mundo. Não queremos ficar restritos às hqs, e sim atingir um público maior, ligado à cultura pop em geral”, diz Ricky Goodwin, atual roteirista do Casseta & Planeta, da TV Globo, e um dos organizadores do evento.

Na prática, ainda que o festival tenha o seu enfoque principal nas histórias em quadrinhos, ele tentará dar voz ao movimento de muitos representantes da arte pop, que se manifestam também por meio da incorporação da publicidade, das imagens televisivas, do cinema e da produção multimídia urbana contemporânea. Angeli, Laerte, Ota, Rafael Coutinho, Fábio Moon e Gabriel Ba, Rafael Grampá, Orlando Pedroso, Kako, Fido Nesti, Marcelo Lelis, Eloar Guazzelli e Lourenço Mutarelli são alguns dos artistas brasileiros que participarão do evento. Depois de divulgar os nomes que estarão presentes na Rio Comicon 2010, a editora Casa 21 lançou o site oficial do evento, que pode ser acessado no www.riocomicon.com.br. A página foi desenvolvida pela agência Retina 78. O site apresenta informações sobre os encontros, debates, exposições e oficinas, além da biografia dos convidados, localização e um blog exclusivo. Links para redes sociais, informações para imprensa, vídeos e fotos sobre o universo hq são outros serviços oferecidos. A Casa 21 foi criada em 1999 para desenvolver atividades culturais relacionadas aos quadrinhos. Seu primeiro grande evento aconteceu em Belo Horizonte, em dezembro de 1999, com o I Festival Internacional de Quadrinhos-Fiq, em parceria com a Prefeitura da capital mineira.


MEMÓRIA

ELIANE SOARES

Nélson Rodrigues, sem sapatos, nem falsos pudores As idéias do dramaturgo de Vestido de Noiva, expostas com franqueza.

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é um grande amigo”; “Nunca dei um cascudo nos meus filhos”, “Há muito respeito entre nós”. Falou também de uma mulher desconhecida, que o abraçou recentemente na rua, “trazendo à tona tudo o que eu tenho de bom”. Disse que já se reaproximou do “dr. Alceu” (o pensador católico Alceu Amoroso Lima), “a quem, na verdade, nunca ataquei”. Condenou “qualquer forma de tortura”. Defendeu a virgindade, “hoje e sempre”, com a mesma ênfase com que defende todos os seus pontos de vista. Falou o tempo todo como um personagem de Nélson Rodrigues: exibiu, sem falsos pudores, suas obsessões, seus temores, suas paixões. Talvez por ser, de fato, o maior personagem de Nélson Rodrigues, um dos maiores criadores de personagens da moderna literatura brasileira. Meu encontro com Nélson aconteceu trinta anos atrás, quando eu trabalhava na revista Nova, da Editora Abril.

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irmão Joffre morreu tuberculoso; outro irmão, Paulo, morreu com mulher e filhos no desabamento de um edifício em Laranjeiras; tem uma filha cega; de seus dois filhos homens, um, Nélson Rodrigues Filho, esteve preso como subversivo, foi torturado e participou de uma greve de fome de 32 dias, num presídio do Rio; seu irmão Roberto, jornalista, foi assassinado aos 22 anos, na Redação do jornal de seu pai, Mário Rodrigues, por uma mulher que pretendia matar o pai – que, dois meses depois, “morreu de desgosto”. Talvez por tudo isso, Nélson tenha insistido tanto, durante a entrevista, na “falência dos seres humanos”. Mas fez questão de ressaltar que também acredita na “redescoberta do amor”. Disse que um homem e uma mulher podem se relacionar perfeitamente bem, “quando há amor”. Definiuse como “um maníaco pela pureza”. E o que é ser puro? “É amar.” Advertiu, porém: “O homem e a mulher que se amam não têm nada a ver com o sexo, podem passar vinte, trinta anos na mesma cama sem um toque físico”. Reafirmou seu fascínio pela morte: “Desde garoto, eu sempre dava um jeito de me enfiar nos velórios, para ver o morto”. Mórbido? “Cultivo essa morbidez”. Ao lado do homem trágico, que segurou a mão do irmão baleado, enquanto ele se esvaía em sangue, Nélson expôs seu lado terno, ao falar dos filhos com grande carinho: “Nelsinho

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo, membro do Conselho Deliberativo da Casa e também membro do Conselho Municipal de Educação da cidade de São Paulo. Romancista, jornalista, comentarista esportivo, Nélson Rodrigues revolucionou o teatro brasileiro, com peças como Vestido de Noiva (1934), Álbum de Família (1945), A Falecida (1954), Perdoa-me por me Traíres (1957), Boca de Ouro (1959), Toda Nudez será Castigada (1962) e Anti-Nelson Rodrigues (1973).

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élson me recebeu em seu gabinete de trabalho, mobiliado com simplicidade, num prédio antigo da praia de Copacabana, na altura do Leme. Olhar cansado, voz abafada, camisa esporte de manga curta, sem sapatos (mas de meias), ele primeiro investiu, uma vez mais, contra velhos fantasmas. As feministas? “São umas imbecis.” Definiuas como “machistas, que imitam os homens”. Disse que a mulher, “com o uso do topless, não e mais mulher, é homem que usa os seios de fora”. Condenou duramente o aborto, que considera “um crime com agravantes, premeditado”. Também condenou os anticoncepcionais como “uma indignidade da ciência, e me admiro que haja uma ciência que tem a coragem, a cínica coragem de fazer os anticoncepcionais. Devemos ter filhos, isso é muito importante”. Classificou a nudez de “um absurdo”, relembrando que viu uma mulher nua pela primeira vez aos sete anos de idade: “Ela era louca; empurrei a porta do seu quarto, e estava nua; então achei a nudez extremamente desagradável”. Acredita em amor sem sexo? “Claro, uma coisa não tem nada a ver com a outra”. Ao longo de uma conversa de exatamente uma hora, interrompida cinco vezes por telefonemas de jornalistas que queriam entrevistas, Nélson Rodrigues confirmou sua visão moralista e trágica da vida: “Se houvesse uma Terceira Guerra, meu querido, não valeria a pena chorar uma lágrima pela Humanidade”. Admitiu que esta visão resulta em grande parte de uma vida pessoal marcada pela tragédia: seu

POR RODOLFO KONDER

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Aconteceu na ABI

Jornal Ex-: histórias da imprensa de vanguarda nos anos 70 Um ato de celebração e exaltação do jornalismo de vanguarda praticado no Brasil nos anos 70 foi a solenidade de lançamento da coleção do antigo jornal Ex-, realizada em 5 de outubro na sede da ABI. A edição comemorativa é um trabalho conjunto da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e do Instituto Vladimir Herzog, que reúne 20 edições em fac-simile da publicação, as 16 edições que foram exibidas em bancas e uma especial inédita que na época foi censurada e não pôde circular. O Ex- era um jornal de periodicidade mensal, que devido às pressões que sofreu do Governo militar foi editado no curto período de 1973 a 1975. Uma publicação que, em face do seu projeto editorial ousado, entrou para a História da imprensa do País como uma das mais importantes publicações independentes que circularam durante a ditadura militar. A solenidade de lançamento foi complementada com um debate sobre o tema A imprensa alternativa dos anos 70, do qual participaram jornalistas que trabalharam na Redação do Ex-, como Mylton Severiano da Silva, Dácio Nitrini e Fernando Morais. Entre os debatedores estiveram presentes também o Presidente do Instituto Vladimir Herzog, Ivo Herzog; o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, e os Conselheiros Mário Augusto Jakobskind, Lênin Novaes e Arcírio Gouvêa Neto. A platéia era formada por convidados e associados da Casa. O projeto

A idéia da organização da coleção foi do jornalista Dácio Nitrini, que ingressou no Ex- como estagiário e juntou-se ao time de craques da imprensa que fundaram o jornal, como Mylton Severiano, Paulo Patarra, Narciso Kalili, Hamilton Almeida Filho, Sérgio de Souza, José Hamilton Ribeiro, José Carlos Marão e o fotógrafo Amâncio Chiodi. Dácio Nitrini disse que se sentia feliz por ter tido mais tempo para tocar um projeto que considera uma conquista pessoal, com grande significado para a memória da imprensa alternativa, que hoje já é vista sem barreiras e desperta curiosidade no mundo acadêmico: “A concepção das pautas, o vanguardismo das histórias em quadrinhos, tudo isso desperta o interesse pelos conteúdos que os jornais alternativos publicavam há 35 anos. Hoje os blogs, o twitter e o facebook não contemplam os níveis de discussão e reflexão como os alternativos fizeram”, afirmou Nitrini. Foi ele quem apresentou a idéia da organização do acervo do Ex- ao Instituto Vladimir Herzog quando soube que a instituição se preparava para desenvolver um trabalho de preservação da His10

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Lançamento da edição fac-simile da publicação enseja depoimentos de alguns dos ases que a fizeram: Dácio Nitrini, Mylton Severiano da Silva e Fernando Morais.

sobre as coisas que aconteciam no Brasil. Vale registrar que naquele tempo não existia internet e o telefone era um artigo de luxo. Então era a partir dessas publicações quase artesanais, passando de mão em mão, circulando pelo velho Correio, que as pessoas sabiam o que estava se passando no País e articulavam o movimento de resistência.” Herzog diz que os veículos sindicais também têm uma participação muito importante nesse processo. Por isso o projeto do Instituto inclui a realização de dez documentários para a televisão separados por temas, nos quais se fará uma abordagem sobre as publicações dos sindicalistas e outras que trataram da questão da mulher. “Todos esses segmentos tinham um grupo significativo de títulos e fizeram um trabalho muito importante”, diz Ivo Herzog. O título

tória recente da imprensa no Brasil, que é muito pouco conhecida: “Um dos primeiros projetos que a gente realizou com um bom aproveitamento foi a recuperação dos exemplares do jornal Ex-. Com a parceria da Imprensa Oficial de São Paulo, conseguimos colocar esse acervo disponível para consulta totalmente digitalizado através do site Memórias Reveladas do Arquivo Nacional (o acervo entrou no ar às 20h desse dia 5 de outubro), para ser consultado via internet.”, disse Ivo Herzog. Informou Ivo Herzog que o Instituto está desenvolvendo outro projeto que pretende reunir toda a História da imprensa no Brasil produzida entre 1964 e 1979, desde os jornais que iam para as bancas até os que circulavam clandestinamente e o que era editado no exílio: “Trata-se de um acervo com mais de 300 publicações. Vamos fazer um trabalho de pesquisa, catalogação, contextualização de cada uma das edições. Vamos editar também um livro sobre esse acervo, além da criação de um portal que vai reunir todo esse material. Está prevista ainda a realização de exposições, que irão percorrer todas as capitais do Brasil e o

Distrito Federal. O Ex- é o primeiro produto desse projeto maior.” As décadas de 60 e 70 foram marcantes na produção de publicações alternativas no Brasil. Ivo Herzog analisa esse período como a forma que esse setor da imprensa encontrou para articular a luta de oposição ao autoritarismo: “Eles são chamados de alternativos porque não faziam parte da grande mídia, eram menores, artesanais e tinham que usar de muita criatividade e inteligência para passar as mensagens burlando os órgãos de censura. Então, do ponto de vista ativo, foi um período riquíssimo. Se a gente pegar como exemplo o Ex-, vamos verificar que as ilustrações e os textos são fantásticos. Eu as considero verdadeiras obras de arte”, disse Herzog. Na lista dos jornais irreverentes que circularam no período do autoritarismo, Ivo ressalta aqueles que ficaram mais conhecidos, como Movimento, Pasquim, PifPaf, e os títulos menos conhecidos como o FBI, de Frente Brasileira de Informação, que era editado no exílio: “O FBI era editado no Chile, França e Itália. Foi uma maneira que os exilados encontraram para se manter informados

O bate-papo sobre imprensa alternativa na década de 70 foi realizado na Sala Belisário de Souza, localizada no 7º andar da sede da ABI. Entre os assuntos abordados, a platéia ficou sabendo da origem do título Ex-. Foi Mylton Severiano, conhecido como Myltainho, quem contou para os presentes como nasceu a idéia de lançamento do jornal e o nome com o qual ele foi batizado: “O Ex- é mais um dos brilhantes títulos do Sérgio de Souza, um dos fundadores do jornal, que teve a interessante idéia de reunir um grupo que era ex-Bondinho, ex-Realidade, ex-Folha de S.Paulo. “Ele teve esse estalo de colocar esse título no jornal, que por sinal é originalíssimo.” Contou Myltainho que o grupo que lançou o Ex- tinha trabalhado na revista Realidade e na Folha de S. Paulo, no período de 1959 a 1964. Entre eles estavam também Murilo Felizberto e José Carlos Azevedo. Todos tinham passagem pela Redação de Quatro Rodas, que na opinião dele “foi o laboratório da Realidade”. Revelou Myltainho que o cerco que os militares impuseram à imprensa acabou por precipitar o lançamento do Ex-. Segundo ele, a ditadura pressionou a Editora Abril, que resolveu se desfazer da toda a equipe. Quando veio o AI-5, eles ficaram “queimados no mercado” e sem lugar para exercer a profissão, o que os obrigou a criar o seu próprio jornal para não ficar sem trabalho: “O Sérgio de Souza se juntou com o Eduardo Barreto, que tinha sido editor de Arte da Realidade, e ao Narciso Kalili e fundaram a A&C (Arte e Comunicação), que lançou O Bondinho (1971-1972). Publicação cult, O Bondinho não durou mais do que dois anos, por falta de anunciantes. Em 1973, juntamente com o

REPRODUÇÃO

POR JOSÉ REINALDO M ARQUES


REPRODUÇÃO

Amâncio Chioti, eles criaram outra editora e aí começa a história do Ex-.” A principal proposta editorial era fazer jornalismo, quadrinhos e humor. À frente do projeto estavam Paulo Patarra, que foi um dos responsáveis pela sustentação econômica, Hamilton Almeida Filho, Palmério Dória, Mylton Severiano e os repórteres-fotográficos Elvira Alegre e Amâncio Chiodi, entre outros “ex-editores”. Como o dinheiro era curto, o jornal se sustentava da venda em banca e da ajuda de um amigo que garantia pequenos anúncios. Toda a equipe andava de ônibus, o telefone da Redação era um orelhão que ficava na esquina da rua onde se localizava a Redação. Eram compradas várias fichas e cada repórter recebia a sua cota, como lembra Myltainho:

“Nós enfrentamos muita dificuldade. Eu comi muito sanduíche de pão com mortadela. O jornal tinha uma venda tímida. A cada edição eram vendidos entre 7 e 8 mil exemplares. Somente na sua segunda fase – em meados de 1975, já próximo do seu fechamento – é que o Ex- ganhou um fôlego financeiro, com um investimento do Paulo Patarra, que tirou dinheiro do próprio bolso (a indenização que ele tinha recebido quando foi demitido da Abril) para injetar no veículo. A morte

na primeira página uma montagem em que o Presidente Nixon aparece vestido de presidiário. Esse jornalismo satírico provocou a ira dos censores, que passaram a pressionar cada vez mais o jornal.

Uma das coisas que mais chamavam a atenção no Ex- eram as suas capas extraordinárias. A do primeiro número mostrava um sósia de Hitler banhando-se nu em uma praia. No mês seguinte, o jornal pôs DIVULGAÇÃO

“Eu perguntei a ele: o que o senhor vai fazer? E ele me respondeu: ‘Ou eu pinto, ou corto’. Mas na verdade acabou que não fez nem uma coisa nem outra.” Iconoclasta, herege

Fernando Morais hoje e há 35 anos (abaixo à esquerda): queríamos fazer um bom jornalismo.

Como uma entrevista salvou Fernando Morais após três meses em Cuba ELVIRA ALEGRE

Fernando Morais contou que era ligado profissional e politicamente ao pessoal do Ex- desde o tempo do jornal Bondinho, mas a sua participação mais expressiva se deu não como jornalista, e sim como entrevistado por causa da longa reportagem que ele fez em Cuba, entrevistando Fidel Castro, e que depois se transformou no livro A Ilha. Na época Fernando trabalhava na revista Visão, que resolveu não publicar a matéria e ainda por cima o demitiu. Isso acabou por lhe causar um problema político. Como era de conhecimento público que ele havia furado o bloqueio e conseguido chegar a Cuba, os órgãos de segurança ficaram intrigados tentando descobrir o que ele tinha ido fazer na ilha,

onde passou três meses sem que tivesse publicado uma linha sequer sobre o que apurou na viagem. Isso deixou-o aflito, porque nesse momento houve um recrudescimento da repressão. Mataram Vladimir Herzog; todos os outros colegas jornalistas que iam sendo presos, acusados de comunistas, eram pressionados sob tortura a revelar aos agentes da ditadura o que ele, Morais, tinha ido fazer em Cuba: “Eu estava desesperado para tornar público que a minha ida a Cuba não tinha sido para buscar armas, dinheiro ou fazer curso de guerrilha, mas que era uma viagem profissional em pleno exercício do jornalismo. E publicamos a reportagem no Ex-, comigo como entrevistado.” A edição que exibiu essa entrevista publicou a capa famosa em que a atriz Bruna Lombardi aparece mandando Fidel Castro raspar a barba, desenhada por Jaime Leão (ao lado). A idéia nasceu de uma pergunta que Fernando Morais fez ao líder cubano sobre o que ia fazer no momento em que sua barba começasse a mostrar fios brancos:

Na opinião de Fernando Morais, o Exera um jornal “iconoclasta e herege”, que se permitia essas ousadias: “Provavelmente eu não fui preso por causa da publicação dessa matéria, mas o pessoal da base do Partidão que eles (agentes da ditadura) prenderam, como Paulo Markun e Rodolfo Konder, a todos eles na hora do pau, da tortura, era perguntado: que porr... o Fernando Morais foi fazer em Cuba? Que m... ele foi fazer lá que até hoje não publicou reportagem nenhuma? Então de alguma maneira essa capa do Ex- me protegeu do braço da repressão.” Dirigindo-se à platéia, Fernando Morais disse que considerava o Ex- uma publicação revolucionária, tanto no sentido político quanto do ponto de vista estético. Essa era, na sua opinião, uma das grandes marcas dos jornais alternativos como o Ex-. Além do enfrentamento da ditadura, eles faziam crítica aos valores da sociedade burguesa, promoviam discussões sobre sexualidade, entre outros aspectos, que funcionavam como “uma bomba” de alto valor destrutivo de alguns valores morais do período, considerados ultrapassados:

Diz Myltainho que uma das reportagens mais interessantes do Ex- foi a que relatava o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, nos porões do Doi-Codi de São Paulo, em 25 de outubro de 1975: “Essa foi a definitiva e que determinou o fechamento do jornal. Foi uma reportagem feita debaixo de medo, mais que isso: era o terror. Mas nós éramos mais jornalistas do que nós mesmos imaginávamos. Estava no sangue da gente, tínhamos que fazer aquela reportagem.” Myltainho lembra-se com carinho de uma matéria que ele próprio fez com o compositor Geraldo Vandré (Disparada; Para não dizer que não falei de flores) quando este retornou do exílio, e destaca a entrevista que Fernando Morais fez com Fidel Castro, que foi capa de uma das edições.

“Era um jornal que atraía militância, mas chamava a atenção também dos jovens, uma faixa muito grande da contracultura, pelos ataques aos valores burgueses. Porque uma das maneiras de combate à ditadura era combater a classe média, a família enquanto instituição, ou defender o uso de drogas.” Considera Fernando Morais que o grande legado que os jornais independentes deixaram para a prática profissional é o de que é possível fazer bom jornalismo partindo do nada, com zero de recursos: “Não tínhamos dinheiro às vezes para pagar o aluguel dos imóveis que utilizávamos. Não havia dinheiro para pagar a impressão dos jornais, no entanto fazíamos um jornalismo que mexia com a cabeça das pessoas. A lição é essa, de que é possível fazer um veículo de resistência debaixo da ditadura militar, que não era frouxa, que matava as pessoas nas ruas. Mas nós fazíamos essa imprensa de briga, sem nenhum tipo de apoio. Não éramos heróis, queríamos fazer um bom jornalismo e derrubar a ditadura militar.”

“Lição de vida e de adesão ao interesse social” Ao dar por encerrado o evento, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, elogiou “os ensinamentos que os depoentes trouxeram nas suas intervenções”, e o trabalho de Ivo Herzog e do Instituto Vladimir Herzog, que “patrocinou e avançou nessa idéia de reprodução da coleção do jornal Ex-”. Maurício fez um agradecimento especial aos jornalistas Dácio Nitrini, Mylton Severiano e Fernando Morais, que na sua opinião apresentaram ao plenário “uma lição de jornalismo, de vida e de adesão ao interesse social como raramente a gente encontra em qualquer reunião”. Sobre a sugestão de Fernando Morais de reunir de novo o grupo para produzir o tipo de jornalismo que os veículos independentes inauguraram no Brasil, disse o Presidente da ABI: Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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REPRODUÇÃO

“Quero assinalar que essa idéia de Fernando Morais pode ser o ponto de partida para a mudança de que se cogita e de que “Ex”, O Bondinho e essas publicações foram pioneiras. Penso que poderemos avançar diante do objetivo de todos nós, que é a democratização da informação e da implantação da dignidade da vida humana aqui no Brasil.” Lembrou o Presidente da ABI a existência de uma coleção de imprensa alternativa que foi depositada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, a qual compreende cerca de 700 títulos reunidos durante anos por uma série de pesquisadores, sob a liderança de Maria Amélia Mello, que atualmente é Diretora da Editora José Olympio. Disse Maurício que as informações sobre esse acervo figuram em um livro que a Diretora do Arquivo Geral da Cidade, pro-

fessora e pesquisadora Beatriz Kushnir, organizou para a Editora da Universidade Federal Fluminense sob o titulo Maços na gaveta, que reúne colaborações de jornalistas e pensadores sobre questões da área de comunicação. Entre os trabalhos publicados figura um estudo da Professora Sandra Alves Horta sob o título Imprensa Alternativa – Comentários ao Acervo: “O estudo contém informação preciosa sobre essa coleção da imprensa alternativa de que é proprietário o Município do Rio de Janeiro. Isto é, o povo ds cidade através do seu Poder Público. Ao final do encontro, dirigindo-se aos debatedores, o Presidente da ABI afirmou que vai torcer para que sejam criadas outras oportunidades “para que a gente possa reproduzir, em conjunto ou individualmente, essa lição de jornalismo e de vida que vocês nos ofereceram”.

Um estímulo à reflexão sobre a mídia atual POR PAULO CHICO Atual Diretor de Jornalismo da TV Gazeta, de São Paulo, Dácio Nitrini, 58 anos, considera que o lançamento do Exno Rio de Janeiro não só lançou luz sobre o passado, resgatando a história de um marco da chamada imprensa alternativa dos anos 1970, como também permitiu, na revisita às páginas do jornal, uma reflexão sobre a mídia atual. Afinal, um dos temas políticos mais explorados nas eleições deste ano foi exatamente a liberdade de imprensa e a relação da imprensa com o poder. “O lançamento da coleção do Ex- é uma feliz coincidência com o debate que se trava nesse momento. Os termos freqüentemente utilizados para qualificar o jornal (nanico, alternativo, pequena imprensa...) são, na verdade, meras metáforas imperfeitas para a expressão que nós achamos exata: jornal independente. Espero que o debate atual leve em conta que imprensa independente não é apenas aquela livre das pressões governamentais, dos conglomerados econômicos e igrejas. Quem reler a coleção verá que o único compromisso da publicação era com a liberdade de pensamento, opinião e criação dos jornalistas, que a produziam a partir da realidade que viviam e observavam”, diz ele. Nitrini reconhece que há, de fato, liberdade total de imprensa e de expressão no País. Mesmo eventuais compromissos e interesses econômicos da grande imprensa não impedem que os cidadãos tenham acesso a outros meios de informação. Basta ver a blogosfera, o Twitter e canais de tv internacionais, que podem ser acessados por assinatura ou através da internet. Ou mesmo poucas publicações impressas. “Há, no mercado, alguns veículos semelhantes, como a Caros Amigos, não coincidentemente criada pelo Sérgio de Sou12

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za, colega morto em 2008 e que foi Editor do Ex-. Porém, acho que o olhar dos que querem ser independentes deve se deslocar do papel para a tela do computador. A saída está no mundo web, no meio digital. É preciso reorganizar as redes sociais em busca de um espaço comum para publicações.” Nova forma de censura

Também membro da equipe do Ex-, no qual chegou a exercer a função de Editor-Executivo, Mylton Severiano tem uma visão menos positiva em relação à imprensa no Brasil: “Para a grande imprensa, ou mídia gorda, como eu a chamo, há total liberdade. Ela diz o que quer, publica qualquer barbaridade como se fosse jornalismo. Nos meus 50 anos de profissão, nunca imaginei que a nossa imprensa chegaria a tal nível de mediocridade. Sem dúvida, ela vive atrelada a outros interesses e compromissos, que terminam por representar uma nova espécie de censura, uma modalidade de controle. Basta lembrar o recente episódio em que o Estadão demitiu sua colaboradora Maria Rita Kehl, tão apenas por escrever que o Governo Lula deixará importantes feitos sociais como legado.” Myltainho, um dos participantes do evento realizado na ABI, aprofunda sua análise sobre a conturbada relação entre poder e mídia nos últimos anos: “O relançamento do Ex- é importante sobretudo quando se discute a liberdade de imprensa, na medida em que nosso jornal circulava durante a pior ditadura que o Brasil enfrentou. Hoje, estamos em democracia ascendente. Como o Lula ressaltou, nunca a imprensa teve tanta liberdade. Só para exemplificar, a Veja pôs na capa na campanha de 2006 o Presidente de costas, numa foto malsã, ar-

Os ex-editores: na primeira fila, a partir da esquerda, José Trajano; Luiz Fernando Vitral e Palmério Dória; atrás, Cláudio Faviere, Armindo Machado, Mylton Severiano, Hilton Libos, Alex Solnik, Márcia Guedes, Luiz Herrero, Hamilton Almeida Filho e Ivo Patarra (encoberto).

rumando o cinto das calças. Ou seja, ‘desarmado’ e se imaginando protegido, aplicaram em seu traseiro um ‘pé na bunda’. Na campanha de 2010, jamais vi tanto deboche na imprensa contra um candidato do Governo. Sem falar nas calúnias, invencionices e falta de republicanismo. Incentivam a acusação de que a Dilma é a favor de matar criancinhas! Diante do menor sinal de contrariedade do Presidente ou da própria candidata, reclamam que o Governo quer atropelar a liberdade de expressão”. “Sistema avassalador”

Colaborador de várias publicações, Myltainho colhe frutos do sucesso de Honoráveis Bandidos, Um Retrato do Brasil na Era Sarney – escrito em parceria com Palmério Dória, atualmente o título mais vendido da Geração Editorial, e prepara livro sobre outra publicação histórica: a Realidade, considerada a melhor revista de reportagens já feita no País. Ele vê a extinção das publicações alternativas como resultado do cerceamento da liberdade nos anos de chumbo. “Essa é mais uma herança maldita da ditadura. É quase impossível lançar um jornal hoje em dia, mediante mexidas no preço do papel, dificuldades de impressão. Aliás, me lembro de que o Estadão certa vez se recusou a imprimir o Ex-. O mesmo jornalão que faz coro com a mídia gorda, dizendo que o Governo quer cercear a liberdade. Os alternativos e independentes que resistem nada podem diante do sistema avassalador que temos na mídia brasileira. Sei do Jornal Pequeno, de São Luís/MA, do Jornal Pessoal, de Belém/PA, e uns poucos outros. São vozes de estreito alcance, perto da meia dúzia de famílias que desde o golpe militar se assenhorearam dos principais canais de tevê, dos jornais e das revistas.” O Mago de Id: Os quadrinhos tinham espaço no jornal.

Alguns episódios de controle e censura prévia da informação, em respeito aos interesses das próprias organizações de comunicação, chegam a ser escandalosos. “De Santa Catarina, onde vivo, até os confins do Rio Grande do Sul, há um monopólio da informação nas mãos da família Sirotsky. E veja que curiosa coincidência: há coisa de dois ou três meses, um menino de 14 anos, membro dessa mesma família, barbarizou e estuprou uma colega, na companhia de outros dois rapazes do colégio. Isso, evidentemente, não saiu nos jornais nem na tevê. Paulo Henrique Amorim foi o único que vi pôr no ar uma matéria a respeito, no Domingo Espetacular, na TV Record. Nela, uma mulher humilde, ouvida nas ruas de Florianópolis, foi direto ao ponto: se fosse um filho dela o autor do tal estupro, já estaria enjaulado na Febem”, diz Mylton Severiano. Faltou tempo ao Ex-

Dácio Nitrini lembra que dos anos 1960 até o final da década de 1970 o Brasil assistiu a um boom de publicações contestadoras, com questionamentos comportamentais e, é claro, políticos. “Havia algumas claramente ligadas a grupos políticos ou partidos de esquerda, na época ainda clandestinos. Outras, de perfil anárquico, libertários. Algumas combatiam o preconceito sexual, como o paulistano Lampião. Outros atuavam no underground, como o carioca Flor do Mal. Todos unidos contra a ditadura. O Ex- não teve tempo de alcançar a estrutura empresarial conquistada, por exemplo, pelo Pasquim. Mal chegava a bancas em outras capitais. Sua presença forte estava em São Paulo, uma cidade de difícil cobertura na distribuição. Ele era lido sobretudo por universitários, intelectuais e artistas. Embora sarcástico e bem-humorado, era mais voltado para reflexões do que Pasquim, um jornal satírico por excelência”. Como consultar

Como base para a reflexão sobre o papel da mídia, toda a coleção do Ex-, digitalizada, pode ser vista no portal do Arquivo Nacional – no site Memórias Reveladas. Basta acessar www.memorias reveladas.gov.br A ABI adquiriu exemplar dessa coleção fac-simile de Ex-, a qual está à disposição dos associados e usuários da Biblioteca Bastos Tigre, sediada no 12º andar do Edifício Herbert Moses, diariamente, das 8 às 17 horas.


Aconteceu na ABI SEMINÁRIO

(E SOBRE O QUAL MUITAS COISAS TEMOS PARA CONTAR) POR JOSÉ REINALDO M ARQUES E RENAN CASTRO FOTOS DE ALCYR CAVALCANTI A memória do Jornal do Brasil não se apagou, nem se apagará. Esta foi a conclusão do seminário O JB que nós amávamos, que nos dias 20 e 21 de outubro reuniu diferentes gerações de jornalistas e estudantes de Jornalismo para falar sobre a importância histórica e do apogeu do diário de 119 anos, cuja última edição impressa circulou no dia 31 de agosto passado. Os debates e exposições abordaram outros temas, como a origem da crise que atingiu o JB – que também ameaça os demais veículos de imprensa –, a saída para o jornalismo on-line e o futuro do jornal impresso. O encontro, realizado no Auditório Oscar Guanabarino da ABI, foi organizado pela Diretoria de Jornalismo da Casa, que dividiu a coordenação do evento com o Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense-Iacs, cujos alunos compareceram em massa. O fim da edição impressa do Jornal do Brasil, que para alguns já era uma espécie de morte anunciada, na avaliação de outros desencadeou uma série de reações positivas em benefício da sua memória, forçando uma reavaliação da mídia impressa, tanto do ponto de vista da prática jornalística quanto da ótica da gestão. Na opinião geral dos participantes, o seminário não só reafirmou o JB como um dos maiores veículos de imprensa do Brasil, como também proporcionou a realização de um rico debate sobre os novos rumos da impressa do País. Como disse Alberto Dines, um dos responsáveis pelo êxito histórico alcançado pelo Jornal do Brasi: “Se considerarmos que a vida tem limites, o JB morreu. Mas ao mesmo tempo está vivo. Temos que ressuscitá-lo. Há muita lição a ser aprendida na sua história”. Abertura

A abertura do seminário coube à Diretora de Jornalismo da ABI, Sylvia Moretzsohn, professora de Jornalismo da UFF, e ao Presidente da ABI, Maurício Azêdo. Sylvia disse que um dos objetivos da reunião era fazer que “os mais jovens conheçam a importância do JB e que os jornalistas mais antigos, como eu, que trabalharam no jornal nos anos 60, 70 e 80, possam recordar algumas passagens da sua vida profissional e da História do País”. Maurício revelou sua satisfação com a grande presença do público jovem na platéia e disse que uma das metas que a

Durante dois dias, jornalistas de diferentes gerações que trabalharam no Jornal do Brasil falaram de sua importância como paradigma do melhor jornalismo já feito no País, de sua influência na vida nacional e do companheirismo que marcou a sua existência até o fim de sua versão impressa.

Sandroni: — No tempo de Pedro II a imprensa era totalmente livre. “Se eu censurar os jornais”, dizia o Imperador, “como vou saber o que os meus ministros fazem?”

ABI pretende alcançar é atrair jovens jornalistas para o seu quadro social. “A ABI se sente muito confortada com a presença de vocês, porque um dos desafios diante dos quais se encontra esta centenária Associação Brasileira de Imprensa é exatamente atrair os jornalistas jovens e os estudantes de Comunicação para as atividades da Casa, porque é esse público que vai garantir a continuidade e a perpetuação da nossa instituição ao longo do tempo”, afirmou o Presidente da ABI. Ele ressaltou que o tema do seminário é um assunto de grande interesse para a ABI, porque o Jornal do Brasil foi ao longo de meio século “o paradigma da melhor qualidade de jornalismo que se fazia no Rio de Janeiro e no País”. Além disso, assinalou, tanto ele quanto outros membros da ABI têm “uma relação afetiva muito forte com o JB”. A esse respeito mencionou depoimentos dos jornalistas Ancelmo Gois e Sérgio Cabral antes do fim da versão impressa do jornal: “O Ancelmo Gois mais de uma vez tem evocado a sua aventura de menino sergipano, que todo fim de tarde, junto com outros companheiros, ia ao aeroporto de Aracaju receber com sofreguidão o reparte que o Jornal do Brasil mandava para o seu Estado. Sérgio Cabral,

quando o jornal ainda não havia enveredado pelo precipício que o levou ao fim, disse sem pestanejar que se ganhasse na Mega Sena compraria o JB para salvá-lo da extinção”, contou Maurício, provocando risos da platéia. Em seguida foi exibido o documentário Um moço de 74 anos, de Nélson Pereira dos Santos, com narração de Alberto Cury. O filme é uma homenagem ao septuagésimo quarto aniversário do jornal, e reúne imagens preciosas da produção do diário nos anos 60. Trata-se de um documento importante que mostra o dia-a- dia da Redação e da oficina do Jornal do Brasil , na sua antiga sede, localizada na Avenida Rio Branco, 110, no Centro da cidade. História

No primeiro dia do seminário foram promovidos os painéis Evocação e análise, com participação do professor de Jornalismo Gráfico da Universidade Federal Fluminense Ildo Nascimento, e Um jornal que fez história, em que foram palestrantes os jornalistas José Silveira, Ana Arruda Callado, Cícero Sandroni e Wilson Figueiredo. O tema foi abordado também por Alberto Dines, que, adoentado, falou de São Paulo, por videoconferência. A mediação foi do professor João Batista de Abreu, também da Uff.

O Professor Ildo Nascimento fez uma apresentação do seu trabalho de pesquisa sobre a reforma gráfica que o JB realizou nos anos 50 – comandada pelo artista gráfico Amílcar de Castro –, que se tornou uma referência da imprensa nacional e acabou sendo copiada pela maioria dos grandes jornais do País: “A reforma foi um processo no dia-a-dia do jornal, pois não havia tempo para uma mudança radical. Os primeiros passos da reforma ocorreram de uma sexta para a terça-feira da semana seguinte”, contou. Informou Ildo Nascimento que as primeiras experiências de mudanças gráficas do Jornal do Brasil ocorreram nas administrações de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, no fim dos anos 1890. Uma delas, na primeira página, ficou famosa: foi na edição sobre o falecimento do Imperador Dom Pedro II, que Ildo considera graficamente interessante, “pois utilizava fio e tarja em volta da página, forma que não era comum naquela época, principalmente em homenagens póstumas”. No final do século XIX surgiram outras mudanças. Foi quando o jornal passou a se popularizar, com notícias policiais na primeira página, desenhos e festas populares: “Na virada daquele século, o Jornal do Brasil era um veículo graficamente e visualmente muito interessante, com muitos desenhos. Foi nesse período que surgiu a tradição da sátira da caricatura, da ilustração jocosa do jornal. Com o fim da Primeira Guerra Mundial o custo do papel estava muito alto e o JB foi hipotecado. Acabou sendo vendido para o Conde Ernesto Pereira Carneiro, que era casado com uma moça chamada Maurina, que mais tarde teve um papel importante na grande reforma do jornal nos anos 1950.” Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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Alberto Dines disse que o grande mérito do JB é que ele não teve períodos, ou seja, não ocorreram mudanças na composição da Redação que afetassem a continuidade do projeto de reforma. “Vários grupos de jornalistas foram para o Jornal do Brasil de 1956 até fins dos anos 80, mas mantiveram o mesmo padrão”, lembrou. Dines disse que um dos aspectos importantes da trajetória do Jornal do Brasil foi o fato de ser um veículo contínuo, comportamento que ele enxerga como demonstração de respeito ao leitor: “O leitor quer encontrar um jornal apaziguado. O JB encontrou esse milagre: dos anos 1950 à década de 1990 manteve um padrão de excelência. O que mata a nossa imprensa são os surtos messiânicos, quando aparece um messias que muda tudo achando que está avançando, mas está regredindo. No JB, cada um chegava com a sua bagagem pessoal, mas o projeto era único.” Outro aspecto importante é que o jornal era um fenômeno eminentemente carioca. O Rio era a cidade de muitos ecos, inclusive políticos. “O Rio de Janeiro, apesar de não ser mais a capital, era o centro do Brasil”, afirmou, acrescentando que “a imprensa carioca precisa perceber que precisa se revitalizar, mas fazer o mesmo com o Rio de Janeiro, porque, sem isso, fica-se numa coisa artificial”. No entendimento de Dines, um jornal é uma organização de estudo que se desenvolve por meio do aprendizado. O Jornal do Brasil, disse, percebeu isso quando começou a administrar cursos de Jornalismo, organizados pelo Departamento de Pesquisa: “O Fernando Gabeira foi um dos primeiros nessa função quando era editor, depois Roberto Quintaes. Em seguida fizemos os Cadernos de Jornalismo. Então era um jornal voltado para o aprendizado, para o aperfeiçoamento. Eu acho isso extremamente importante, porque se um jornal não se aperfeiçoa, se as pessoas não o enxergam como uma organização de aprendizado, não vão se apegar e fazer que o veículo transmita conhecimento.” Lembrou Dines que no antigo JB as equipes se ligavam, as gerações se completavam. Em sua opinião, um jornal não pode ser feito apenas por um grupo, com uma geração apenas: “Um jornal não pode ser feito apenas por uma geração senão ele fica falando com um grupo etário, quando deveria falar para todos eles. Esse talvez seja um dos grandes problemas da imprensa brasileira e da mídia de maneira geral, que são feitas por uma geração apenas. O Jornal do Brasil era um conjunto de gerações que se sucederam e se completaram, primeiro com o grupo de 1956 e depois com os outros. São dados que não podem ser perdidos de vista. Hoje se pratica um jornalismo onde a Relação já não tem importância. No JB era o con14

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Gilberto Menezes Cortes, que foi Editor de Economia do JB, mediou o painel em que Suzana Blass e Paula Máiran expuseram, como ele, como se desenvolveu a crise do jornal. Paula trabalhou também na publicidade: viveu a agonia dentro e fora da Redação.

trário, porque a Redação podia ser mal instalada e desconfortável, mas ali havia vitalidade, centelhas e eletricidade coletiva. Jornal é isso. Não adianta querer fazer um jornal inteligente se as inteligências não se aproximam.” O jornalista gaúcho José Silveira trabalhou por mais de 20 anos no JB, no qual ocupou o cargo de Secretário de Redação em dois momentos diferentes. Ele reforçou o que já fora destacado por Dines anteriormente sobre o espírito de unidade da Redação do jornal. Ao se referir à sua passagem pelo JB, disse Silveira que percebeu que havia ali a compreensão de que “o jornalismo é um aprendizado diário, uma vez que os fatos não se repetem da mesma forma”. Disse ainda Silveira que para se obter êxito na produção de um jornal, como aconteceu com o Jornal do Brasil, é preciso lembrar que “o diálogo tem que existir entre todos os elementos da Redação e aqueles que fazem o prosseguimento dela”. Esse era o espírito da equipe com a qual trabalhava: “A reforma do JB foi feita pelo Amílcar de Castro e pelo Jânio de Freitas, que eram os mais centrados dentre os que dirigiam o jornal. Eles criaram uma filosofia de comportamento adotada por quem veio depois deles, como o Dines. Quem viesse manteria o mesmo jornal, fazendo modificações que eram quase imperceptíveis.” Outro aspecto importante destacado por Silveira é que todos os grandes jornais como o Estadão e a Folha de S. Paulo, onde ele também trabalhou depois que saiu do Jornal do Brasil, é que “a reforma gráfica do JB foi tão copiada que o próprio jornal passou a copiar o que era copiado dele” (risos). Encerrando a sua participação, Alberto Dines mandou um recado aos pesquisadores e aos estudantes de Jornalismo presentes na platéia: “O esforço dos biógrafos é examinar tudo o que aconteceu. O JB representou a inteligência do Rio, porque ele mesmo era fruto dessa inteligência. Ressuscitar o Jornal do Brasil é trabalho das novas gerações. Nós já fizemos nossa parte. Boa sorte!”

Ana Arruda Callado era uma jovem recém-formada em Jornalismo quando foi contratada para trabalhar no Jornal do Brasil, onde ingressou como estagiária. O chefe de Redação era Odilo Costa, filho; Wilson Figueiredo chefiava a Reportagem. Confessou Ana Arruda que comentar esse período sempre lhe traz uma grande emoção: “Falar do JB é sempre um prazer porque é aquele jornal que deixa saudade, com um agravante, pois foi o primeiro jornal no qual trabalhei. E o primeiro jornal a gente nunca esquece”. Em tempos em que a categoria dos jornalistas luta em defesa do diploma do curso de Jornalismo para o exercício da profissão, Ana Arruda contou uma história curiosa: “Eu tinha cursado Jornalismo na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidasde do Brasil atual UFRJ, o que era uma coisa muito rara naquele tempo. Dos meus colegas, por exemplo, só a Mary Ventura havia se formado também em Jornalismo. Os outros todos eram funcionários públicos que faziam curso superior para obter promoção. Não tinham o menor interesse em jornal. Eu fui aconselhada a não dizer que tinha feito a graduação.” Recordou Ana Arruda que ingressou como estagiária no JB em 1º de abril de 1958. Passou quatro anos no jornal, que ela diz terem sido maravilhosos. Uma das coisas importantes que ela apreciava na Redação do JB é que não havia comportamento ditatorial por parte da chefia: “Eles estavam ali para ajudar e ensinar e não para mandar os repórteres fazerem coisas absurdas. O repórter podia ter idéias. Eu dei sugestões sobre muitas reportagens que fiz, inclusive inaugurei uma coisa que estava meio esquecida que era a reportagem de arquivo. Fiz uma série de matérias sobre a reforma agrária, que me obrigou a freqüentar muitos dias a biblioteca da Câmara dos Deputados, que ainda era no Rio, lendo todos os projetos sobre o tema que tinham sido apresentados desde o Império. Outra das coisas que gosta de lembrar

Nilo Dante: O jornal em papel enfrenta há décadas uma queda visível nos números de sua circulação.

do tempo em que foi repórter no Jornal do Brasil era o trabalho em equipe: “Repórteres, motoristas e fotógrafos se ajudavam mutuamente”. Na sua opinião, este foi o contexto que consolidou a história do jornal. Na opinião do jornalista Cícero Sandroni, que é membro da Academia Brasileira de Letras, falar da história do Jornal do Brasil na primeira metade do século XX tem muito a ver com liberdade de imprensa, que existiu no Brasil durante o Segundo Império: “No tempo de Dom Pedro II a imprensa era totalmente livre de censura. Inclusive quando abordavam esse assunto com o Imperador ele dizia o seguinte: “Se eu censurar os jornais, como vou saber o que os meus ministros fazem?” Disse Sandroni que foi com a República que começaram os atentados contra a liberdade de imprensa, e “o Jornal do Brasil foi um dos mártires desses atentados”. Na opinião de Sandroni, “o JB não morreu por causa da internet, ele acabou por outras razões e não por força da web. Foi vítima de péssimas administrações”.


Evandro: Em 47 anos de JB, emoções, como a morte do poeta Pablo Neruda.

Wilson Figueiredo destacou que o sucesso do JB se deve à jovialidade da equipe de jornalistas que produzia o jornal: “Acho que muito do sucesso que foi o Jornal do Brasil se deve à mocidade dos seus repórteres, editores e redatores, que foram se revezando. Em menos de 40 anos o jornal fez toda a sua fama. O que me impressiona nessa juventude é que ela representava a quebra do padrão tradicional de se fazer jornal de uma maneira formal e cheia de amarrações. Quase todos os jornais daquela época, anos 50 do século XX, tinham um livro com os nomes que eram proibidos de ser citados. O Correio da Manhã tinha essas listas e o Jornal do Commercio também. Outra revolução promovida na imprensa pela equipe do Jornal do Brasil foi com a maneira de escrever, da apresentação da matéria, acabando com o chamado nariz-de-cera: “Isso o JB quebrou brilhantemente com um bando de repórteres novos. Isso foi importante porque se o jornal pensava que tinha um projeto, tinha um sonho que vinha sendo adiado, até que um belo dia aconteceu de maneira improvisada, sem planejamento”. Sem planejamento, disse Wilson Figueiredo, porque Odilo Costa, filho não era homem de planejar, “era uma pessoa de inspiração e de improviso”: “Ele fez uma mistura que acabou dando certo, embora tenha custado uma demora da organização da Redação. Esse talvez tenha sido o grande pecado do Odilo, não ter sido o organizador daquilo que ele criou com espírito de liberdade. Naquele tempo ainda havia uma restrição, que era o próprio jornalismo formal, com textos cheios de mesuras”, afirmou Figueiredo, que falou com entusiasmo que o JB quebrou uma série de paradigmas na imprensa brasileira, a partir dos anos 1960: “O jornal criou uma irreverência de teorias, que se consagrou quando lançou o Caderno B, que prestigiava as coisas do Rio de uma maneira diferente dos outros jornais da época. O Carnaval ganhou uma página inteira, com a história das figuras que passavam pelas escolas de samba, os compositores, os cantores. O jornal começou a usar isso como matéria viva, e não como texto de favor ”, contou o ex-Diretor de Redação.

Na segunda mesa do dia, intitulada Jotabenianos: a memória afetiva e a política da Redação, contou com a participação de Sandra Chaves, Alfredo Herkenhoff, Agnaldo Ramos, Flávio Pontes, Romildo Guerrante e Evandro Teixeira, que contaram boas e velhas histórias e lamentaram a situação atual do jornal. Apesar disso, manifestaram seu sentimento, que a princípio permanece vivo dentro de cada “ex-jotabeniano” daquela época. Sandra Chaves, criadora do blog ÁlbumJotaBeniano, contou como surgiu a idéia, a partir de uma foto enviada pela colega Tânia Rodrigues, que despertou nela a vontade de reunir outras fotos

históricas da época de ouro da Redação. A platéia presenciou depoimentos emocionantes de cada um, e uma exibição de fotos históricas e marcantes de Evandro Teixeira, que apresentou uma seleção das melhores fotos que produziu ao longo dos 47 anos em que trabalhou para o jornal. Disse Evandro que tem muito orgulho de ter feito parte da bem-sucedida trajetória da fotografia no Jornal do Brasil, cujo acervo “é um dos mais importantes da imprensa brasileira”: “O JB sempre foi o berço do jornalismo brasileiro e da fotografia em especial. Por ali passaram grandes jornalistas e fotógrafos. Trata-se de um veículo que soube valorizar a fotografia. A primeira página do Jornal do Brasil era a vitrine do jornalismo nacional”, afirma Evandro Teixeira, acrescentando que o veículo sempre teve o brilhantismo de mostrar da melhor

maneira a realidade dos fatos, “desde os dramas de enchentes, problemas sociais no Brasil e no mundo, até o Carnaval”. Disse Evandro Teixeira que aprendeu muito de fotografia trabalhando no JB. Fez coberturas importantes como Copas do Mundo, Olimpíadas e as visitas da Rainha Elizabeth e do Papa João Paulo II ao Brasil. Acha difícil indicar qual teria sido a sua melhor foto, mas deixa escapar que sente uma emoção diferente com a cobertura da morte do poeta chileno Pablo Neruda: “Aconteceu durante uma reportagem que fui fazer sobre golpe militar no Chile, em 1973, quando tive a honra, o prazer, a alegria e a tristeza ao mesmo tempo de ter sido o único fotojornalista a fotografar Neruda morto. O JB me proporcionou tudo isso. Ali eu vivi momentos importantes da expressão do fotojornalismo.”

Raul Ryff, da Internacional, e Rita Luz; Samuel Wainer Filho, o Samuca; Marcos de Castro e Hélio Pólvora, fotografados por José Carlos Avelar.

Zózimo Barroso do Amaral e Fred Sutter em flagrante de Joëlle Rouchou, que também clicou o fotógrafo Geraldo Viola (embaixo); ao lado, a bela Tereza Cristina Levy enfrenta a fera. Glória Borelli da Geral ao lado do Campanela Neto, da Fotografia

Acima, George Vidor ao lado de Cristina Chacel, e ao fundo os repórteres Josias de Souza (Folha de S.Paulo) e Nelson Hoineff (Manchete), durante um evento de tecnologia; ao lado, o crítico de cinema Sérgio Augusto fotografado por José Carlos Avelar.

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Aconteceu na ABI

A programação do segundo dia do seminário O JB que nós amávamos foi aberta pelo Presidente da ABI Maurício Azêdo, que falou sobre a importância do evento e a responsabilidade dos jovens estudantes presentes, que serão os responsáveis pelo Jornalismo que se fará nas próximas décadas. Em seguida, a Diretora de Jornalismo Sylvia Moretzsohn anunciou a exibição do programa do Observatório da Imprensa de 20 de julho deste ano, dedicado ao fim da versão impressa do Jornal do Brasil. Após o programa do Observatório da Imprensa, a platéia assistiu ao vídeo Av. Brasil, 500, de autoria do repórter-fotográfico Rogério Reis, antigo Editor de Fotografia do JB,que mostra fotos da antiga sede da Avenida Brasil após a decadência e mudança do jornal, ao lado de fotos históricas da Redação ainda em funcionamento. A primeira mesa de debates do dia teve como mediador Gilberto Menezes

Cortes e a participação de Paula Máiran, ex-repórter do JB, Suzana Blass, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, e Nilo Dante, que trabalhou no jornal em diferentes épocas, inclusive durante a reforma gráfica do jornal na década 1950. Menezes Cortes abriu a discussão sobre As Origens da Crise lembrando do início da perda de leitores jovens e da concorrência agressiva de O Globo nos classificados. Ele falou também das consequências da redução de profissionais na Redação e de correspondentes internacionais, que chegaram a ser 15. Cortes também criticou o jornalismo preguiçoso feito na internet, e fez uma crítica: “Jornalismo acomodado não existe”. Paula Máiran, que começou justamente como funcionária do setor de classificados, contou um pouco de sua trajetória no jornal e relatou os sintomas da crise que presenciou durante a década 1990 até seu pedido de demissão, em 2002. Ela criticou a falta de planejamento e ações de marketing do veículo, além da soberba de não aceitar diminuir o pre-

ço dos anúncios. Esses fatores, aliados à tática agressiva de O Globo e desvios financeiros de funcionários da empresa, disse, contribuíram diretamente para a falência do jornal como era. Com apoio numa exposição de imagens sobre a história e o futuro da imprensa, o jornalista Nilo Dante abordou problemas atuais da imprensa, com críticas e comentários. Ele falou sobre questões cruciais para a decadência não só do JB, mas também da circulação de outros jornais impressos no Brasil. Para ele, a crise começou em 1983 e se agravou pela “administração inepta e predadora”. Ele classificou os donos de jornais de hoje de “senhores feudais da informação”. Paula Máiran ainda mencionou fatos importantes como o elitismo e o racismo presentes em sua época de JB, na qual ainda existia a proibição de fotos de negros na primeira página, por exemplo. Em um encerramento esperançoso, ela levantou alternativas para salvar o jornal, e disse ainda acreditar em uma mudança, como destacou: “Nada deve parecer natural, e nada deve parecer impossível de mudar”. DÁCIOMALTA

A segunda mesa de debates do dia 21 foi sobre o futuro do jornal impresso. Contou com a presença por videoconferência de Ricardo Gandour, Diretor de Conteúdo do Grupo Estado; Caio Túlio Costa, ex-Folha de S. Paulo, professor universitário e consultor em novas mídias; e Rosental Calmon Alves, professor da Universidade do Texas e um dos que inovaram ao colocar o JB na internet em 1995. Em caráter pessoal, participou da mesa Orivaldo Perin, Editor-Executivo de O Globo, também ex-Jornal do Brasil. O discurso dominante no debate foi a necessidade de reinvenção do jornal impresso, a partir de novas formas de abordagem, gestão e de adaptação à nova configuração atual da informação e comunicação. Gandour sustentou a necessidade da convivência e convergência entre as diferentes plataformas, sem abandonar nenhuma totalmente. Defendeu também um novo modelo de gestão empresarial, adaptado às novas tecnologias como os ablets e ipads, pelo alto custo agregado da produção de um jornal impresso. Caio Túlio concordou com Gandour sobre a necessidade de uma nova lógica empresarial e alertou para o desafio enfrentado atualmente das mídias interativas e o “jornalismo colaborativo”, que deu às pessoas o poder de jornalistas. Tal novidade, segundo Caio, faz que a prática jornalística seja repensada, em termos de apuração e credibilidade. Perin apontou para a possibilidade de o jornal se tornar apenas um curador de notícias dentro desse cenário. Rosental, por sua vez, chamou a atenção para o que classificou de “enorme revolução sem paralelos na história da Humanidade”, que diz respeito à grande quantidade de informação a que estamos 16

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A Geral do JB em pleno fechamento: Tarcísio Baltar e Ghioldi Jacinto. Mônica Cotta, Carlos de Macedo Miranda Filho (Macedinho) e Sergio Fleury. Israel Tabak e Jairo Costa. Maurício Arcoverde e Bartô Brito. Tato Taborda, Wilson Costa (em pé) e Artur Aymoré.

expostos hoje. Ressaltando que não se deve ignorar tais mudanças, ele aposta nas mídias sociais como possibilidade de democratização da informação. Na visão de Rosental, apesar da imensa desigualdade social ainda existente no Brasil as novas tecnologias digitais podem ser entendidas como uma ferramenta de inclusão, e não de exclusão social. Ele citou como o exemplo do aumento do número de celulares adquiridos por pessoas mais pobres. O mediador Orivaldo Perin comentou que mesmo com a queda de circulação o jornal impresso ainda representa 95% do faturamento de O Globo, apesar do crescimento da participação da internet nos últimos anos, e do sonho de qualquer dono de empresa de informação de ter um veículo sem a base industrial, para diminuir os custos. Em sua avaliação sobre os novos rumos do Jornalismo, Rosental Calmon Alves concluiu que “o jornal impresso sozinho está morto: dependerá da criação de uma nova estrutura não centralizada no papel, capaz de entender a nova lógica”. Acrescentou que o advento das

redes sociais como o Twitter promove a integração entre a internet e o jornalismo como um todo. Perin citou a integração física das Redações do impresso e do on-line em O Globo como exemplo de tendência para o futuro. mas argumentou como contraponto que a internet também não sobrevive sem a credibilidade das grandes empresas de comunicação, que trazem maior quantidade de acessos a seus sites: “Os grandes portais de informação têm por trás uma marca de papel”, afirmou. Rosental prevê que o jornal no papel não desaparecerá, assim como não desapareceu após o surgimento da tv e do rádio. O desafio de agora é se adaptar à web e às outras mídias digitais: “O jornal vai continuar uma tendência que já vinha tendo nas últimas décadas de ser mais analítico e explicativo, mais prazeroso de ler, como as revistas semanais faziam”. Sobre essa mudança, Orivaldo Perin acrescentou que deve ser cuidadosa, e se adaptar ao novo tipo de leitor. Outra transformação essencial citada por ele foi sobre a visão dos anunciantes, ainda muito dependentes da mídia impressa.

Coligação PT-PMDB lota o Auditório Oscar Guanabarino com ato pró-Dilma Convocadas pelo Governador Sérgio Cabral, as principais lideranças fluminenses dos dois partidos mobilizaram-se para os últimos dias da campanha eleitoral do segundo turno. POR RENAN CASTRO Um ato promovido pela coligação PTPMDB e coordenado pelo Governador do Rio Sérgio Cabral reuniu prefeitos, deputados, senadores e lideranças políticas de todo o Estado do Rio em 19 de outubro no Auditório Oscar Guanabarino da ABI, que foi alugado pelo Diretório Regional do PMDB. O objetivo do encontro, que lotou o Auditório, foi reforçar a campanha local da candidata do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República, Dilma Roussef. Além do Governador, estiveram presentes o Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), o Senador eleito Lindberg Farias (PT), o Vice-Governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), o Senador Francisco Dornelles (PP), o exPrefeito de Valença Vicente Guedes (PSC), e vários deputados eleitos. Em seu discurso, o Governador Sérgio Cabral agradeceu a maciça votação que o reelegeu no dia 3 de outubro, com 66% dos votos. Cabral lembrou a importância da parceria entre o Governo Federal e o Governo Estadual, a qual, disse, assegurou grandes investimentos e melhorias para o Estado do Rio de Janeiro. O Senador Francisco Dornelles, apresentado por Cabral como um ótimo “conselheiro”, cobrou maior empenho dos prefeitos da coligação no segundo turno. Dornelles avisou em tom de brincadeira, que “Prefeito que perder vai procurar emenda em outro lugar ”. O Senador pediu o esforço de deputados eleitos, principalmente em áreas onde o desempenho da campanha de Dilma não foi considerado satisfatório, como na Região dos Lagos. O Prefeito Eduardo Paes reforçou o tom e falou sobre a polêmica religiosa que envolveu os dois candidatos na campanha presidencial no segundo turno: “Tem que acabar essa vergonha do debate entre religião e política, essas duas coisas não têm que se misturar”, afirmou o Prefeito. No discurso de encerramento do ato, Cabral enumerou os avanços econômicos e sociais do Governo Lula e as vantagens da continuidade do Governo para o Rio de Janeiro: “Em time que está ganhando não se mexe”, disse o Governador. Por fim, elogiou a atuação de Dilma como Ministra e destacou a importância de sua eleição como primeira mulher Presidente do Brasil: “Vamos deixar a mulher brasileira mostrar seu valor. A Dilma já mostrou que sabe ser mãe, avó, Ministra e vai ser Presidente da República.” Renan Castro, estudante de Comunicação, é estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.


FURO

Uma idéia na cabeça e uma câmera na mão de Roque Araújo Operador de câmera e diretor de fotografia dos filmes de Gláuber Rocha lança documentário com cenas inéditas do polêmico cineasta: Gláuber Rocha em Defesa do Cinema Brasileiro só será lançado no Festival de Cinema de Arraial d’Ajuda, em dezembro. Mas o Jornal da ABI já viu o filme e entrevistou seu autor com exclusividade. CHICO EGIDIO

POR CELSO SABADIN “Foi só depois que eu vi a velocidade com que Rossellini filmava que fui entender melhor essa história de uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. A frase não teria maior importância se não fosse dita pelo próprio Gláuber Rocha, ninguém menos que o criador do mote “Uma idéia na cabeça e uma câmera na mão” que norteou todo o movimento Cinema Novo, nos anos 50 e 60. Esta “confissão” de Gláuber está no documentário ainda inédito Gláuber Rocha em Defesa do Cinema Brasileiro, escrito e dirigido por Roque Araújo. Mais que um documentarista, Araújo realizou seu longa com o conhecimento e a segurança de quem trabalhou por anos a fio ao lado de Gláuber, marcando presença em todos os filmes do famoso cineasta baiano. “Em algumas vezes eu atuei como operador de câmera, em outras como diretor de fotografia, e outras ainda como assistente”, conta Araújo, que esteve ao lado de Gláuber na totalidade de seus longas, incluindo os produzidos no exterior. “Ele tinha tanta confiança em mim que acabei também administrando muito da vida pessoal dele, como talões de cheques e notas fiscais”, diz Roque. Brincando, o repórter sugere: “Era algo assim como uma idéia na cabeça e Roque Araújo na câmera?”. O documentarista sorri timidamente e se apressa em dizer que Gláuber fazia questão de enriquecer seus filmes com as experiências diversificadas de variados diretores de fotografia, como Tony Rabatoni, Dib Luft, Waldemar Lima e Afonso Beato (que mais tarde seria um dos preferidos de Almodóvar). “Eu mesmo fui adquirindo conhecimento com todos eles, principalmente Hélio Silva. Mas tenho orgulho em dizer que também fiz direção de fotografia para Gláuber”, afirma. Descontraído, brincalhão Roque Araújo também faz questão de dizer que aquela imagem discursiva, radical e política que a maioria das pessoas tem de Gláuber Rocha não é necessariamente verdadeira. Não totalmente: “Na hora de dirigir, por exemplo, por mais estranho que possa parecer, ele era muito descontraído e brincalhão”. Nos intervalos das filmagens, chegou a inventar um jogo chamado Dominó Cego, igual ao dominó comum,

Roque Araújo: “Depois que Gláuber morreu, muita gente começou a inventar histórias sobre ele. Já cansei de ver pessoas que o Gláuber detestava sair por aí se dizendo grande amigo dele.”

mas a pessoa colocava a pedra na mesa sem saber os números que estava jogando. Só virava na hora: quem errava, passava a vez. “Depois que Gláuber morreu, muita gente começou a inventar histórias sobre ele”, afirma Roque Araújo. “Eu já cansei de ver pessoas que o Gláuber detestava, gente de quem ele até fugia, sair por aí se dizendo grande amigo de Gláuber Rocha. O que era verdade, porém, é que ele não seguia o roteiro do filme. Ele fazia o roteiro apenas como base, mas sempre que começava a filmar ele mudava muita coisa, rapidamente, sem problema nenhum. E exigia muito do ator. O elenco sofria com diálogos imensos que tinham que ser decorados”. Gláuber X Pitanga Araújo se recorda de uma cena em que Gláuber insistia para que o ator Antônio Pitanga refizesse inúmeras vezes. “Eram textos enormes que tinham de ser ditos numa só tomada, pois Gláuber não queria editar”, diz. Conta o documentarista que Pitanga repetiu insistentemente a mesma fala, mas Gláuber nunca estava satisfeito. Até o momento em que o ator não resistiu e disse: “Não agüento mais, Gláuber. Não dá! Estou muito cansado”. Ao que Gláuber retrucou: “Agüenta sim, Pitanga. Cansado é que é bom!”. A equipe toda caiu na gargalhada e a cena saiu.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ainda segundo Araújo, o ator Lídio Silva estava fazendo uma cena carregando um estandarte num lugar alto, sobre uma pedra lisa. Como calçava um par de chinelos de couro, muito escorregadio, Lídio estava com um medo imenso de despencar lá de cima. E Gláuber forçando a cena, pedindo para ele ir adiante. Mas o ator não conseguia. Araújo conta que Gláuber parou a filmagem, chamou Lídio num canto e lhe disse com muita seriedade: “Lídio, um ator pra ser bom, mas bom mesmo, de verdade, tem de ser bicha”. Lídio respondeu: “Então, seu Gláuber, se for assim, eu vou deixar de ser ator”. Novamente todos se divertiram muito e a cena foi rodada com sucesso. O novo filme Engana-se quem acredita que tudo sobre Gláuber já foi dito e exibido. Em seu novo documentário, Gáauber Rocha em Defesa do Cinema Brasileiro, o diretor Roque Araújo traz cenas inéditas, como uma entrevista dada pelo cineasta na cidade baiana de Milagres, momentos ainda não exibidos do extinto telejornal Aber-

tura (onde Gláuber atuava como colunista) e até fragmentos do dossiê do cineasta no antigo Doi-Codi. Há também momentos raros de Gláuber como ator, como nos filmes O Rei dos Milagres, de Joel Barcelos, e Claro, dirigido pelo próprio Gláuber durante sua passagem pela Itália. Não faltam no documentário – exibido em total primeira mão para o Jornal da ABI – momentos polêmicos como Gláuber entrevistando o falecido ex-Governador baiano Antônio Carlos Magalhães (elogiando rasgadamente a liberdade de imprensa) e desabafos tipicamente Gláuberianos como “O povo brasileiro é analfabeto; mesmo os intelectuais são analfabetos”. Também é digna de nota uma reportagem em que Gláuber, no melhor estilo “cronista social eletrônico” faz a cobertura da noite de autógrafos do livro Tieta do Agreste, de Jorge Amado. Mesmo assim, Araújo afirma que muito material ainda ficou de fora da edição final. “Tenho horas e horas de gravações inéditas que foram recentemente doadas para o Centro Técnico Áudiovisual do Ministério da Cultura-CTAV para restauração além de cartas que, pelo seu conteúdo político, eu guardo a sete chaves e não deixo ninguém ver”, finaliza Araújo, fazendo mistério sobre esse material. Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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HOMENAGENS

O premiado José Hamilton agora tem o seu nome em dois prêmios Um dos profissionais de imprensa mais admirados do País, ele recebe homenagem da Federação Nacional dos Jornalistas e empresta seu nome a dois certames jornalísticos.

Batizando prêmios Zé Hamilton, como é chamado pelos companheiros, nasceu em Santa Rosa de

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MARLON FIGUEIREDO

“Um prêmio de jornalismo para mim, nesta idade, me lembra aquele episódio da guerra do Vietnã. Eu tive três medos: o primeiro, foi o medo de morrer, que era uma coisa iminente porque o sangue que saía era muito e eu pensava que em alguns minutos ia sair todo o sangue do meu corpo. O segundo, suplantado esse medo de morrer, foi o de me tornar uma pessoa incapaz fisicamente, impedida de ganhar a vida com o meu trabalho, mas ainda no hospital percebi que ia vencer este medo e assim que pude me locomover comecei a fazer entrevistas. Aí veio um terceiro medo, que foi um encanamento que durou um pouco mais: o de ser rotulado como o repórter que fez uma reportagem na guerra e depois não fez mais nada, como se aquilo fosse uma coisa por acaso. Então, durante algum tempo, preferi não conversar sobre o Vietnã, sobre o acontecimento, sem atender a eventuais pedidos de entrevistas porque o assunto ainda me incomodava. Só depois que voltei ao jornalismo no dia-a-dia e também consegui algum reconhecimento, alguns prêmios, é que assimilei bem aquela história e hoje não me incomoda mais. E um prêmio nesta idade mostra que aquele terceiro medo que tive felizmente não foi para valer.” Assim o jornalista José Hamilton Ribeiro definiu o que significava receber, dois anos depois de ser indicado, a medalha que simboliza a distinção que lhe foi concedida pela Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj no 33º Congresso Nacional dos Jornalistas, realizado em 2008, em São Paulo. Ele viveu então uma emoção que o levou a fazer uma relação com o episódio em que perdeu a parte inferior da perna esquerda na explosão de uma mina terrestre vietcong , quando cobria a guerra para a revista Realidade José Hamilton recebeu a honraria em 25 de setembro ao lado da jornalista cearense Adísia Sá, em evento promovido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo no espaço Oficina da Fama, em São José do Rio Preto. Assim como José Hamilton, Adísia Sá é uma personagem importante na construção da História da Imprensa. Foi a primeira repórter policial feminina, primeira mulher a integrar e presidir o Sindicato dos Jornalistas do Estado do Ceará e pioneira em exercer a função de ombudsman no jornal O Povo, na mesma época em que Caio Túlio Costa começou a exercer a mesma função na Folha de S. Paulo. Adísia também participou de várias diretorias da Associação Cearense de Imprensa e da Fenaj. Ainda na ativa, ela escreve artigos para os jornais O Povo e O Estado, além de atuar como comentarista da Rádio AM do Povo/CBN.

Viterbo, no interior de São Paulo, e em mais de 50 anos de ofício passou pelas Redações de importantes veículos, como a extinta revista Realidade, onde praticou um jornalismo humanizado calcado em raízes literárias, e outros de semelhante prestígio, porém maior longevidade, como a revista Quatro Rodas, o jornal Folha de S.Paulo e os programas de televisão Globo Repórter, Fantástico e Globo Rural — neste último, continua atuando como repórter e editor. É um colecionador de prêmios, como os cobiçados Esso, Embratel, Internacional Maria Moors Cabot e Prêmio Brasileiro Imortal. Agora Zé Hamilton tem seu nome vinculado a dois prêmios instituídos pelo Sindicato de São Paulo. O primeiro, intitulado Concurso Cultural José Hamilton Ribeiro, criado para destacar o trabalho dos melhores profissionais do interior paulista, premiou a empresa Lacerda Comunicação na categoria Assessoria de Imprensa, pelo case sobre o FIT (Festival Internacional de Teatro), o jornalista Raul Marques e o repórter-fotográfico Rubens Cardia Neto na categoria Jornalista, pela grande reportagem As feridas do Haiti. O segundo, o Prêmio Máster de Jornalismo Profissional José Hamilton Ribeiro, foi anunciado no evento e receberá produções jornalísticas divididas em sete diferentes categorias, no período de 26 de setembro de 2010 a 26 de junho de 2011, as quais serão avaliadas por um júri formado por expoentes dos principais veículos de comunicação. “Estamos durando muito” Ao invés de dar uma resposta convencional sobre como recebeu a notícia de que esses prêmios levariam o seu nome, Zé Hamilton preferiu relatar uma pequena história. “O Eduardo Coutinho, um dos maiores documentaristas do cinema mundial, alguns o consideram o maior, é meu ami-

Zé Hamilton (à direita) recebe, dois anos depois, a medalha concedida pelo Congresso Nacional dos Jornalistas.

go dos tempos de juventude. Ele sempre foi uma pessoa discreta, tímida, low profile, como dizem os americanos. Eu fui ao lançamento de seu filme, Edifício Master, aqui em São Paulo e quando terminou a sessão não me apressei para sair, acabei sendo um dos últimos da sala a sair e o Eduardo Coutinho estava na porta, provavelmente esperando alguém. Eu falei para ele: ‘Ô Coutinho, como é que você explica que sendo uma pessoa tão discreta, de repente com essa idade começa a ganhar prêmio? Ele respondeu: ‘É Zé, mas outro dia eu vi que você também ganhou um prêmio’. ‘É, de fato’, concordei. ‘Mas por que você acha que nós dois estamos ganhando prêmios?’ ‘Por que nós estamos durando muito’, disse. Coutinho acha que a gente, por ser profissional há muito tempo, acaba tendo tempo de ganhar prêmios. Muitos bons jornalistas ficam pouco tempo na profissão, insuficiente para serem reconhecidos”, ponderou. O caboclo e o caratê Zé Hamilton assinalou que a classe jornalística é operária e carente de valorização. “Tem gente que acha que certos jornalistas fazem reportagem para ganhar prêmios de concursos. De qualquer maneira, acho que o prêmio é um reconhecimento profissional. Como jornalismo é uma profissão de peão, porque somos sempre empregados, não se recebem mimos da empresa e de governos. Então quando você recebe um reconhecimento da própria classe, é uma coisa muito gratificante.” Sem deixar de lado seu estilo de contador de histórias, Zé Hamilton lembrou de uma piada: “O prêmio é igual ao caratê. Perguntaram para um caboclo lá do interior de Minas: ‘O que o senhor acha do caratê?’ E o cabloco respondeu: ‘É melhor o cara ter do que não ter’. Com o prêmio é a mesma coisa. É melhor ter do que não ter”, arrematou com senso de humor. A ABI e seu Jornal Nesta entrevista, ele fez questão de registrar a importância do Jornal da ABI na luta a favor classe jornalística. “O Jornal da ABI é o maior veículo de defesa da liberdade de imprensa no País. Quem atentar contra ele terá de passar pelo cadáver do Maurício Azêdo, e nós, seus camaradas no Brasil inteiro, haveremos de lutar até morrer o último cachorro”.

LEGISLAÇÃO

Isenção de tributo para fotojornalista Instrução Normativa da Receita Federal libera a aquisição de equipamento fotográfico no exterior em valor superior a 50 mil dólares. O repórter-fotográfico que viajar para o exterior, com um contrato de trabalho específico para a mesma ocasião, na volta ao Brasil estará isento do pagamento do Imposto de Importação que incidiria sobre a eventual compra de máquina e quaisquer equipamentos próprios de sua profissão. Neste caso, não há limite para a isenção. O valor da compra pode ultrapassar, por exemplo, 50 mil dólares. Só é preciso provar que a máquina e os equipamentos foram comprados e em seguida utilizados no trabalho para o qual o profissional foi contratado. É indispensável que o material seja usado. A comprovação da viagem a trabalho pode se dar por meio de uma carta, um convite, uma solicitação, enfim, um documento expedido por uma empresa ou instituição garantindo que o repórter fotográfico está sendo destacado ou contratado para cumprir uma tarefa no país de seu destino. “Não existe burocracia. Basta que o repórter fotográfico apresente à fiscalização um documento de uma instituição idônea comprovando que o trabalho será feito com o material que vai comprar”, explica Joana Aparecida Lages, chefe da Equipe de Bagagem Acompanhada do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Também não importa o tempo que o profissional leve para finalizar o serviço, mesmo que seja em 24 horas. “O profissional pode desembarcar no exterior em determinado dia, comprar a máquina e os equipamentos, realizar o trabalho para o qual foi contratado e retornar ao Brasil no mesmo dia”, complementa. Já os equipamentos que exijam qualquer tipo de conexão ao equipamento principal, para ser instalado e funcionar, estarão submetidos ao pagamento de tributo: se o valor exceder a cota de isenção de 500 dólares, o viajante deverá pagar o Imposto de Importação, com alíquota de 50%. Também se incluem nesta categoria máquinas filmadoras e computadores pessoais. Os procedimentos de controle aduaneiro e a incidência de impostos sobre os bens de viajantes foram reunidos na recente Instrução Normativa 1.059, de 2 de agosto de 2010, que entrou em vigor em 1º de outubro passado. Mais informações sobre o assunto podem ser obtidas no site da Receita Federal.


FRANCISCO UCHA

DEPOIMENTO

ADOLFO MARTINS “O REPÓRTER PRECISA SER INCONFORMADO. Boas matérias estão aí, na porta da rua: é só se levantar e ir apurá-las” que podem ter em comum um policial, um professor de escola pública, um gari e um juiz de Direito? Além do fato de serem servidores públicos, todos esses profissionais devem ter lido, em algum momento, a Folha Dirigida. Lançado há exatos 25 anos – a primeira edição chegou às bancas em novembro de 1985 –, o jornal logo tornou-se referência na área de educação, carreira profissional e, principalmente, concursos públicos. A cada semana, edições segmentadas chegam às bancas de várias capitais do País levando ao leitor não só oportunidades de emprego nos setores público e privado, como também entrevistas, provas simuladas, roteiros de estudo, artigos, opinião e sobretudo aquela informação tão necessária a quem está em busca de uma colocação no mercado de trabalho. Ao longo deste quarto de século, a Folha Dirigida tornou-se o jornal preferido dos concurseiros, com edições impressas que ultrapassam 1 milhão de exemplares por mês circulando em todo o País e um site acessado por 3,5 milhões de usuários. Isso sem falar nos livros que atendem à área de concursos e nas publicações segmentadas das áreas de turismo e educação. O homem por trás disso chama-se Adolfo Martins de Oliveira e começou numa salinha alugada no Centro do Rio. Na verdade, o grupo Folha Dirigida é fruto de uma carreira que começou há 45 anos – coincidentemente, no mesmo local que hoje abriga a sede da empresa. Foi no prédio de número 114 da Rua Riachue-

O

lo que o jovem Adolfo, oriundo de sua Araxá (MG), conseguiu um estágio no extinto Diário de Notícias. O ano era o de 1965 e sua primeira matéria, sobre a chuva que desabou naquele seu primeiro dia de foca, acabou saindo com destaque na edição. Pioneiro na cobertura de educação no Diário, Adolfo transferiu-se mais tarde para o Jornal dos Sports, incumbido de montar ali uma editoria especializada no setor. “Naquela época o movimento estudantil era fervilhante, gostoso de cobrir. Sempre havia alguma coisa acontecendo e novas lideranças despontavam o tempo todo”, lembra. Foi no JS que ele participou de uma das mais interessantes experiências do jornalismo brasileiro, o jornal O Sol, publicação voltada para estudantes que logo sucumbiu diante das adversidades. Mas a semente fora plantada. “Percebi que havia um enorme espaço para uma publicação especializada em educação”, diz Martins. Com o conhecimento adquirido em mais de duas décadas cobrindo educação, ele acabou partindo para a criação de seu próprio veículo. Mas admite que o papel de empresário não o motiva tanto quanto o exercício da reportagem. Jornalista à moda antiga, daqueles que não abrem mão de ler e reler a matéria antes de encaminhá-la à publicação, Adolfo Martins é um apaixonado pela profissão. Foi na sede da Folha Dirigida, edifício batizado com o nome de um mito do jornalismo brasileiro – Barbosa Lima Sobrinho –, que Adolfo Martins recebeu o Jornal da ABI para esta conversa.

POR CARLOS FERNANDES E FRANCISCO UCHA

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A primeira página do número 1 da Folha Dirigida, que foi lançada em 1986, e 20 anos depois, quando houve sua principal reforma gráfica.

JORNAL DA ABI – FALE SOBRE O INÍCIO DA SUA CARREIRA JORNALÍSTICA.

Adolfo Martins – A minha história começa lá em Minas Gerais, onde eu nasci. Minha cidade, Araxá, era igual a tantas outras localidades do interior, sem muitas opções para os jovens. Eu estudei no Colégio Salesiano até o segundo grau (atual ensino médio), e depois tive de sair em busca de novos horizontes. Como sou de família extremamente humilde, segui a regra geral, que era a de os jovens pobres acabarem os estudos secundários e saírem de lá. Resolvi tentar a sorte em um centro desenvolvido.

JORNAL DA ABI - COMO ASSIM? Adolfo – Acontece que o tal hotel era um estabelecimento de prostituição. A atendente foi até muito gentil; ao ver aqueles dois garotos de mala na mão, entendeu a situação e nos aconselhou: “Olha, rapazes, é melhor vocês não ficarem aqui, não”. E indicou outro hotel, digamos, mais familiar.

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Adolfo – Naquele dia mesmo caiu uma chuva forte na cidade e o Cristóvão disse para eu escrever uma matéria sobre isso. Eu não tinha a menor idéia de como era cobertura de cidade, mas ele disse para simplesmente registrar o fato. “Dá um pulo no arquivo do jornal, veja lá outras matérias sobre chuva e faz igual”, aconselhou. Imagine a minha situação – não conhecia nada sobre o Rio, nem sabia o nome dos bairros principais. Aí eu comecei a escrever com base no que vi nas outras reportagens; liguei para alguns órgãos públicos, falei dos bueiros entupidos, do atraso nos trens, essas coisas. Só que a chuva não parava de aumentar e começou a causar grandes transtornos na cidade. Acabou virando o maior temporal do ano e a matéria caiu no meu colo. O Cristóvão foi me orientando, dando dicas, e quando vi a reportagem já estava com umas cinco laudas. JORNAL DA ABI - E A MATÉRIA PUBLICADA

JORNAL DA ABI - ESSES PERIÓDICOS DAVAM LUCRO? ERA POSSÍVEL VIVER DELES? Adolfo – Não, que nada. Não dava para viver de jornal naqueles lugares, porque essas cidades do interior ainda eram pequenas e o comércio local, muito refratário à publicidade. Mas os jornais começaram a ficar conhecidos e, embora não dessem lucro, começamos ao menos a arrecadar o suficiente para cobrir as despesas de redação e impressão. Fato é que peguei gosto pela coisa; quando resolvi tentar a sorte no Rio de Janeiro, já fui com uma idéia na cabeça: procurar trabalho como jornalista. Afinal, já tinha certa experiência. JORNAL DA ABI - QUANDO VOCÊ FOI PARA RIO? Adolfo – Cheguei à cidade em dezembro de 1965 e fui direto para a Avenida Gomes Freire, sede do Correio da Manhã, na época um jornal conhecido. Dirigi-me à portaria com o nome do Jaime Negreiros, o Chefe de Redação, escrito num papel. Só que, inexperiente, disse na portaria que queria um estágio ou emprego no jornal. Mandaram que eu esperasse e, depois de um tempão, disseram que ninguém poderia me receber. Nem me deixaram subir. Fiquei bastante decepcionado. Aí, me arranjei numa pensão na Rua dos Inválidos e resolvi tentar de novo, desta vez em outro jornal. O

JORNAL DA ABI - FOI ASSIM QUE VOCÊ DIÁRIO DE NOTÍCIAS? Adolfo – Exatamente. Mas resolvi mudar de tática. Ao invés de pedir emprego, fui chegando, comecei a bater papo com o porteiro e expliquei minha situação. O sujeito então me deixou subir para falar com alguém da Redação. Lá em cima, fui recebido pelo Cristóvão, que pediu para eu deixar um currículo. Só que eu não tinha currículo, nem nada, e resolvi ser direto: “Olha, não faça isso, eu vim do interior com a cara e a coragem e só preciso de uma oportunidade. Deixa eu mostrar que sei escrever agoCHEGOU AO

ASSIM?

Adolfo – Àquela altura eu estava achando que a coisa seria apenas um teste, mas a noite caiu e ninguém conseguiu chegar à Redação. Então, a pauta ficou comigo mesmo. Por volta das dez da noite, o Diretor, Hélio Rocha, chegou afobado perguntando com quem estava a matéria da chuva. E eu, apavorado,

JORNAL DA ABI - VOCÊ FICOU NA EDITOCIDADE, MESMO? Adolfo – Sim. No dia seguinte, me mandaram fazer uma pauta sobre o aniversário do Jardim Botânico. Era uma daquelas matérias manjadas, sabe? Mas eu cheguei lá, conversei com os funcionários, pesquisei e descobri algo que a maioria das pessoas não sabe até hoje. O Jardim Botânico do Rio foi construído no mesmo terreno onde, no passado, havia um cemitério de escravos. Fiz a matéria e sugeri um título que emplacou: “No Jardim Botânico, as flores nascem do coração dos escravos”.

RIA DE

Entre os visitantes ilustres que foram recebidos por Adolfo Martins na sede da Folha Dirigida, vários políticos se destacam, como Tarso Genro (ao lado) e Sérgio Cabral Filho (abaixo).

FOLHA DIRIGIDA

JORNAL DA ABI - E COMO FOI ESSE PERÍOSÃO PAULO? Adolfo – Eu tentei a sorte como vendedor ambulante e outros servicinhos, mas a coisa não deu certo. Aí, veio o movimento de 1964 e muita coisa mudou. Depois de um ano e meio em São Paulo, o dinheiro e o ânimo acabaram e voltei a Araxá. E foi lá que minha vida deu uma guinada na direção do jornalismo. Meu irmão, Paulo, que sempre foi uma pessoa muito empreendedora, resolveu fundar um jornal na nossa cidade, o Diário de Araxá. Imagine que temeridade, lançar um jornal diário numa cidade pequena. Mas Paulo, um jornalista muito talentoso, me chamou para trabalhar com ele no jornal e eu, sem grandes opções profissionais, aceitei. DO EM

JORNAL DA ABI - QUAL FOI ESSA SUA PRIMEIRA PAUTA?

atrás da máquina de escrever, disse lá do meio do salão, com a voz sumida: “Seu Hélio, está comigo!” Ele deu um grito perguntando qual o irresponsável que fizera aquilo e eu quase sumi debaixo da mesa [risos]. Agora eu rio, mas na hora cheguei a sentir umas lágrimas quentes no rosto. Já imaginou minha situação? Mas o Cristóvão, que acabou sendo meu protetor ali, disse que a matéria estava boa. O Hélio passou correndo, pegou as folhas e sumiu lá para o copidesque. Cristóvão disse, com um jeito quase paternal: “Martinzinho, fica tranqüilo, vai para casa e volta de manhã”. Claro que eu não dormi naquela noite. De manhã cedinho, corri para o jornal e nem acreditei: a matéria estava lá, com chamada de capa, bem estruturada e arrumadinha. Não foi assinada, mas fiquei com um orgulho danado! E tive a certeza de que havia conseguido meu espaço.

FOLHA DIRIGIDA

JORNAL DA ABI - E PARA ONDE VOCÊ FOI? Adolfo – Fui com um amigo, de carona em carona, até São Paulo. O caminhoneiro com quem viajamos nos deixou na Estação da Luz com a recomendação de que tomássemos cuidado. Sabe como é, dois rapazolas – eu e meu amigo tínhamos uns 17 anos – na cidade grande e com pouco dinheiro no bolso... Era um sábado e nós, meio perdidos, começamos a procurar um hotel para dormir. Acabamos num tal Hotel Castro, na Rua João Teodoro. O lugar não parecia dos melhores, mas com grana curta, resolvemos ficar ali mesmo. Costumo dizer que comecei minha vida adulta num prostíbulo [risos].

JORNAL DA ABI - O QUE VOCÊ FAZIA NO DIÁRIO DE ARAXÁ? Adolfo – Ah, numa iniciativa dessas, a gente faz de tudo um pouco. Eu era ao mesmo tempo repórter, diagramador, linotipista, gestor, distribuidor... Enfim, ocupei todas as funções. E descobri que minha cachaça era escrever! Daí, lançamos outros jornais nas cidadezinhas da região, como a Tribuna de Patrocínio e a Gazeta de São Gotardo, de periodicidade semanal.

ra”. Ele pareceu surpreso com minha determinação e me passou uma pauta.


FOLHA DIRIGIDA

JORNAL DA ABI - E COMO VOCÊ COMEÇOU A COBRIR EDUCAÇÃO?

Adolfo – Bem, no início, as pautas de educação acabavam caindo na cobertura de cidade, mesmo. Depois de um tempo montaram uma editoria exclusiva para cobrir o setor e pude realmente me desenvolver profissionalmente e achar meu rumo. Fiz algumas matérias e comecei a gostar muito. Naquela época, o movimento estudantil era fervilhante, gostoso de cobrir. Sempre havia alguma coisa acontecendo e novas lideranças despontavam o tempo todo. Não havia essa alienação política que, infelizmente, a gente vê hoje nas escolas. Para um jovem repórter, como eu, o momento era empolgante. Só que, com a escalada do autoritarismo militar, os choques entre policiais e estudantes foram se tornando inevitáveis. JORNAL DA ABI - E COMO VOCÊ ACABOU FAZENDO A COBERTURA DA INVASÃO DA FACUL-

MEDICINA, NA PRAIA VERMELHA? Adolfo – Isso aconteceu em setembro de 1966. Fiz uma boa matéria, nem tanto pelo valor jornalístico do trabalho em si, mas pelo fato de ter sido eu o único repórter presente e pelos desdobramentos que provocou. Soubemos que havia um protesto estudantil na Faculdade Nacional de Medicina, na Urca [Zona Sul do Rio], e me mandei para lá. O que seria apenas mais uma manifestação universitária acabou virando uma crise política de medição de forças entre a linhadura do regime e os moderados. Os alunos tomaram a Faculdade e a Polícia Militar ficou em frente, de prontidão, com uns 3 ou 4 mil soldados. Eu consegui entrar e fiquei lá dentro, fazendo uma reportagem cronológica dos acontecimentos à medida que eles se sucediam. Das cinco da tarde do dia 22 até a meianoite, não houve avanço nas negociações. A certa altura, ficou claro que ninguém sairia dali por bem. E os alunos lá de dentro ficavam provocando os policiais; estava na cara que ia acontecer uma pancadaria. Líderes estudantis como o Franklin Martins e o Vladimir Palmeira queriam o confronto para mostrar que o País estava mesmo numa ditadura. O pessoal, naquele clima de radicalismo, foi na onda. O Senador Mário Martins foi lá pedir que os estudantes saíssem numa boa, mas os alunos estavam intransigentes. Daí, começou a circular a informação de que a coisa seria resolvida na porrada, mesmo. O Ministro Raimundo Moniz Aragão, da Educação – que era irmão do general linha-dura Augusto Aragão – passou por cima do Reitor, que era o professor Clementino Fraga Filho, dizendo que a coisa a partir dali era com ele. À meianoite, veio a ordem para a invasão da Faculdade. Foi uma pancadaria; os policiais entraram batendo, quebrando os laboratórios, um ato de vandalismo mesmo. Felizmente, ninguém morreu. DADE DE

JORNAL DA ABI - E COMO VOCÊS CONSEGUIRAM SAIR?

Adolfo – A gente teve de sair através de um corredor-polonês, com os policiais dando borrachada em todo mundo. Também levei as minhas, que naquela hora jornalista e estudante eram uma coisa só.

Mas fui direto para a Redação, escrevi a matéria e a repercussão foi muito grande. Uma matéria daquelas que a gente lembra com carinho pelo resto da vida. JORNAL DA ABI - VOCÊ FAZIA TAMBÉM MATÉRIAS DE POLÍTICA?

Adolfo – Sim, algumas. Tive uma boa vivência na área política também. Foi um período muito rico, profissionalmente falando. O Diário de Notícias me deu a incumbência de acompanhar a campanha do General Costa e Silva à Presidência da República. Na verdade, era uma pseudocandidatura, porque quem elegia o Presidente era o Congresso Nacional, dominado pelo partido do Governo. Eu acompanhava a comitiva durante a semana toda, sempre com o mesmo terno, que eu na sexta-feira deixava na lavanderia para pegar na segunda cedinho [risos]. JORNAL DA ABI - E COMO VOCÊ CHEGOU AO JORNAL DOS SPORTS? Adolfo – O Doutor José Eduardo, Diretor de Redação do Diário, me ofereceu a chefia de Reportagem. Eu era muito moço, mas aceitei. O problema é que o jornal estava em crise, sempre atrasava o pagamento dos repórteres. Na sextafeira, o pessoal subia para pegar vales e era aquele negócio: enquanto tinha dinheiro, a turma recebia; quando acabava, quem estava no fim da fila ficava simplesmente na mão. Era difícil cobrar alguma coisa de um pessoal tão desmotivado. Mas o trabalho no Diário foi fundamental para mim porque consegui desenvolver um bom know-how na cobertura de educação. Tive um bom entrosamento com as fontes, autoridades do setor, diretores de escolas – além dos estudantes, é claro. Esse trabalho deu frutos e fui convidado pelo Jornal dos Sports, que estava montando sua editoria na área, para ser Editor de Educação. Tínhamos um caderno chamado JS Escolar. Foi um projeto bem sucedido, que agregou muita coisa à empresa – tanto, que a parte de educação passou a ser fonte importante de receita na casa.

Homenageado com o nome do prédio onde fica a sede da Folha Dirigida, Barbosa Lima Sobrinho conheceu as novas instalações acompanhado pelos jornalistas Artur César Ferreira Reis, Mário Barata, Cícero Sandroni, Afonso Faria e José Chamilette.

tornos panfletários e começou a bater de frente com o governo. Estávamos vivendo um período duro, no qual a liberdade de imprensa era cerceada. E a proposta editorial de O Sol era voltada para universitários, justamente um dos setores mais sufocados pelo regime militar. Participar daquele projeto convenceu-me de que havia espaço editorial para uma publicação voltada para a juventude. O jornal durou pouco, mas hoje, analisando em perspectiva, entendo que O Sol foi o verdadeiro embrião da Folha Dirigida, que surgiria quase 20 anos depois. JORNAL DA ABI - O CARTUNISTA HENFIL JORNAL DOS SPORTS, NÃO É? Adolfo – Sim, ele praticamente foi lançado pelo jornal e criou muitos de seus personagens lá. Tivemos uma convivência muito fraterna. O Henfil era um grande amigo, sou até padrinho do Ivan, filho dele.

TORNOU-SE CONHECIDO NO

JORNAL DA ABI - COMO ERA AQUELA AGITAÇÃO NO PERÍODO DO VESTIBULAR, QUANDO O JORNAL DOS

JORNAL DA ABI - COMO ERA TRABALHAR COMO JORNALISTA ESPECIALIZADO EM EDUCAÇÃO NA ÉPOCA DA REPRESSÃO? Adolfo – Foi um período fantástico, de muita ousadia jornalística. Como o Jornal dos Sports, por sua ênfase na educação, era visto pelo regime como uma publicação do movimento estudantil, a vigilância era grande. Aprendi muito lá, com profissionais do quilate de Maurício Azêdo. Marcou época a chamada que Azêdo, que era o Editor, fez para a matéria da morte do estudante Edson Luiz, em 1968, com foto do velório do rapaz na primeira página: “E podia ser seu filho”. JORNAL DA ABI - O SOL SURGIU NESTE CONTEXTO...

Adolfo – Isso mesmo. Em 1967, surgiu no Jornal dos Sports o projeto de lançamento de O Sol. Era uma iniciativa magnífica de gente como Reinaldo Jardim e Ana Arruda que, infelizmente, não durou muito tempo devido ao difícil clima político da época. Primeiro, ele vinha encartado no jornal, mas logo ganhou circulação independente, assumiu con-

SPORTS CHEGAVA A PUBLICAR

VÁRIAS EDIÇÕES EXTRAS?

Adolfo – Ah! Quando havia o vestibular, era um acontecimento! Ao contrário de hoje, quando tudo fica disponível em tempo real pela internet, naquela época os candidatos iam na porta do jornal conferir o resultado das provas. Enquanto o pessoal, na maior expectativa, ficava olhando a listagem que a gente punha lá embaixo, as rotativas imprimiam a edição extra a toque de caixa. Quando o jornal saía, era disputado a tapa! Milhares de jovens, muitos acompanhados pelos pais, se aglomeravam na porta do jornal. Parava o trânsito! Quem passava para uma universidade fazia a maior festa! Uma vez precisou vir a Polícia para dispersar o pessoal. Depois aprendemos a lição e passamos a informar às autoridades sempre que um evento fosse acontecer, para que se montasse um esquema nas ruas próximas. Aquilo era realmente muito emocionante. JORNAL DA ABI - APESAR DO GRANDE SUCESSO DA EDITORIA DE EDUCAÇÃO NO JORNAL DOS SPORTS, NOS ANOS 1980 A PUBLICAÇÃO

ENTROU EM CRISE.

COMO ISSO AFETOU SEU

TRABALHO?

Adolfo – Enquanto alguns colegas preferiam ficar reclamando pelos cantos, eu fazia o possível para realizar o melhor jornalismo com os poucos recursos que tinha à mão. A proprietária na época, Dona Cacilda, não era do meio jornalístico, mas vendo meu empenho chegou a me oferecer a empresa. Só que eu não tinha dinheiro para comprar o jornal. Cheguei então a montar uma espécie de consórcio com várias universidades e colégios para tocar o negócio, na base das cotas, mas a idéia não foi para a frente. O jornal acabou vendido para a família Veloso, do grupo Casas da Banha [hoje extinto]. Aí, contrataram o Cláudio, filho do Chagas Freitas [então proprietário do jornal O Dia], para ser o Diretor. E resolveram fazer uma reforma geral aproveitando a certeza de que o Brasil seria campeão do mundo em 1982 com Telê Santana e aquela Seleção inesquecível. Mas o Brasil saiu da Copa e a coisa desandou. Cláudio foi afastado da direção e resolveram então fazer um jornal voltado para a cobertura de polícia. Mas é aquela história, esporte e crime são assuntos que não combinam, e o jornal começou a perder vitalidade. JORNAL DA ABI - QUANDO VOCÊ PERCEBEU A POSSIBILIDADE DE LANÇAR UM JORNAL ESPECIALIZADO EM EDUCAÇÃO?

Adolfo – Bem, durante anos eu vivenciei aquela experiência profissional, primeiro com o Diário de Notícias e depois com o Jornal dos Sports. Por isso, eu tinha clara a convicção de que havia espaço para um jornal voltado para educação, trabalho, formação profissional e emprego público. E o País estava no processo de redemocratização; eu sabia que haveria crescimento no mercado de trabalho e demanda por cargos públicos através de concurso. Elaborei o projeto e apresenteio à direção do Jornal dos Sports. Minha idéia era lançar o novo veículo lá, e fiz questão de ser claro e honesto com todos. Afinal, passei quase 20 anos de minha vida lá, e nesse tempo todo a gente solidifica relacionamentos. Se me dessem espaço, eu teria lançado a Folha Dirigida Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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FOLHA DIRIGIDA

DEPOIMENTO ADOLFO MARTINS

lá, como outro produto da casa. Mas a direção não assimilou a idéia. Então, resolvi publicar o novo jornal fora dali. Há males que vêm para bem, não é? JORNAL DA ABI - NÃO É FÁCIL LANÇAR UM JORNAL A PARTIR DO ZERO. COMO FOI O PROCESSO DE LANÇAMENTO DA FOLHA DIRIGIDA?

Adolfo – Como já disse, eu sabia que havia espaço para uma publicação desse tipo e estava disposto a investir minha carreira nisso. Eu não tinha dinheiro, mas sabia como fazer. No início, éramos apenas três pessoas no jornal, numa salinha na Cinelândia [região central do Rio]. Só que para executar um projeto desse porte é preciso ter paciência, e eu erradamente acreditei que as vendas iam explodir logo. A primeira edição, de novembro de 1985, saiu com 3 mil exemplares. Rodamos na gráfica da Última Hora, em tom vermelho, para chamar atenção na banca. Pelos meus cálculos, se a gente esgotasse aquela edição, as duas seguintes estariam garantidas. Mas na contagem de vendas, em pouco mais de cem bancas, veio a decepção – só vendemos 260 jornais. Um ditado italiano diz que, entre o querer e o fazer há um oceano. Pois bem, para viabilizar o jornal, seria preciso vencer aquele oceano. Mas eu continuei acreditando que o projeto era não apenas viável, como muito promissor. JORNAL DA ABI - E O QUE FOI FEITO PARA QUE A FOLHA DIRIGIDA SE TORNASSE RENTÁVEL?

Adolfo – Na verdade, aquelas primeiras edições continham alguns erros – aliás, não eram necessariamente erros, eram coisas que precisavam ser ajustadas. As chamadas, por exemplo. Os títulos do jornal eram meio poéticos demais, bonitos, mas faltava aquele pragmatismo que chama o leitor, ainda mais o tipo de leitor que eu queria conquistar. Conversando com os jornaleiros, alguns me disseram: “Ih, doutor, com essas chamadas aí, não vai vender, não”. Jornaleiro conhece o leitor, não é? E eu sabia que, se o jornal caísse no gosto dos jornaleiros, haveria exposição do produto. Um jornal tem que atender às necessidades do seu público, senão estará fadado ao fracasso. A gente tem que fazer jornal para o leitor, e não para a gente. JORNAL DA ABI - QUAL FOI A ESTRATÉGIA PARA CONQUISTAR OS JORNALEIROS?

Adolfo – Eu costumo dizer que para ganhar o jogo você precisa, evidentemen-

te, estar em campo, jogando. Mas muitas vezes o que vai fazer você acertar o chute no gol é um fator inesperado, como um vento que bate na hora e desloca a bola uns centímetros. E esse fato inesperado que me ajudou foi um distribuidor italiano, o saudoso Ari Scudieri. Ele era um dos maiores distribuidores da época, muito querido e respeitado no segmento, e me incentivou bastante. Já na terceira edição, eu estava com uma dívida acumulada na gráfica e não sabia como fazer para continuar tirando o jornal. Então, consegui rolar um pouco a dívida e o Ari me sugeriu que pulasse a tiragem para 10 mil exemplares. Era uma loucura, mas ele disse que, se encalhasse, me ajudaria a segurar a barra. Como ele tinha muita influência no setor, o pessoal comprou a idéia e a Folha começou a ser distribuída em larga escala, para muitos outros pontos de venda. Isso foi fundamental, o jornal se equilibrou e começou a dar algum retorno financeiro. Hoje, os jornaleiros são nossos aliados. Estamos em mais de 30 mil bancas em todo o País. Nunca comercializamos assinaturas da edição impressa por causa da cumplicidade dos jornaleiros com a Folha. JORNAL DA ABI - QUAL FOI, NA SUA OPINIÃO, A MAIOR CONTRIBUIÇÃO DA FOLHA DIRIGIDA?

Adolfo – Acredito que conseguimos revolucionar o processo de jornalismo nas áreas da educação e do trabalho. Ao invés da simples cobertura do setor, começamos a fazer um jornalismo prospectivo, de apuração mesmo. Também fizemos uma campanha muito forte a favor da obrigatoriedade do concurso para acesso a cargo público. Ajudamos a fomentar essa cultura do concurso, sobretudo a partir da promulgação da Constituição de 1988. JORNAL DA ABI - MUITAS PESSOAS, SOBRE-

Adolfo Martins vestiu o uniforme usado pelos impressores durante a solenidade de inauguração da rotativa da Folha Dirigida.

de um edital e a realização do respectivo concurso costuma ser pequeno. Então, leva vantagem quem sai na frente, quem começa a se preparar muito tempo antes. Um exemplo recente é o concurso do Ministério Público da UniãoMPU. Os leitores da Folha já sabiam do processo seletivo vários meses antes de o edital sair. Nossa intenção é prospectar as oportunidades para o nosso leitor muito antes da publicação dos editais, senão depois não dá mais tempo para uma preparação correta. Então, quando publicamos a entrevista com um diretor de estatal ou presidente de tribunal e ele diz que há necessidade de contratações, o que estamos dizendo ao nosso leitor é o seguinte: “Comece a estudar desde já, o concurso vem aí”. E começamos a oferecer programas, provas anteriores etc. E não é só isso – boa parte dos concursos hoje oferecem relativamente poucas vagas, mas procuramos mostrar ao leitor que lá na frente existe a possibilidade real de classificação. O próprio MPU é um exemplo. No início, falavase em apenas 100 vagas, mas o Congresso aprovou mais 6 mil. Quem acreditou e foi à luta cedo se deu bem, já saiu na frente da corrida.

TUDO OS CHAMADOS CONCURSEIROS, CRITI-

DIRIGIDA POR PUBLICAR CHA-

JORNAL DA ABI - AS INFORMAÇÕES SOBRE

MADAS SENSACIONALISTAS, DANDO A ENTEN-

CONCURSOS SÃO DIVULGADAS DA MANEIRA

CAM A FOLHA

DER AO LEITOR QUE DETERMINADO PROCESSO

CORRETA? VOCÊS ENFRENTAM ALGUM TIPO DE

SELETIVO JÁ ESTÁ ABERTO – QUANDO, NA VER-

RESISTÊNCIA?

DADE, A MATÉRIA DIZ APENAS QUE HÁ CARÊN-

Adolfo – Sim, há muitos tecnocratas que querem guardar as informações no bolso, e a gente luta contra isso. Nossa briga é pela transparência total e pela regulamentação definitiva dos concursos públicos, com a obrigatoriedade de um intervalo razoável entre o edital e a prova. A Folha está engajada há anos na luta contra as terceirizações no serviço público e os cadastros de reserva. Em 1990, criamos uma assessoria jurídica. Diante de qualquer fumaça de irregularidade numa seleção, a gente já entra com uma ação popular chamando a atenção da sociedade. Com isso, o jornal ganhou mais conceito e respeitabilidade. O jornal também luta pela dignidade do magistério, através da defesa de bons salários e condições de trabalho para os professores de todos os níveis de educação.

CIA DE SERVIDORES EM DETERMINADO ÓRGÃO.

COMO O JORNAL RECEBE ESSAS CRÍTICAS? Adolfo – Olha, nós já sofremos muitas incompreensões por causa disso. Mas essas chamadas são propositais e têm um objetivo específico. O que a gente tenta fazer é estimular a preparação prévia do leitor. O intervalo entre a publicação

ferramentas que seriam inimagináveis para a geração anterior de jornalistas. E tem gente muito talentosa saindo das faculdades, jovens com uma formação ampla, abrangente. São profissionais com um enorme potencial e com muitas possibilidades. JORNAL DA ABI - POR FALAR NISSO, QUAL A SUA POSIÇÃO ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DO DIPLOMA PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO?

Adolfo – Eu sou um jornalista autodidata porque, na minha época, era assim que a coisa funcionava. Agora, é evidente que a formação acadêmica contribui decisivamente para a construção de um bom profissional. Por isso, eu acho que a decisão do Supremo Tribunal Federal de extinguir a obrigatoriedade foi muito precipitada – tanto que estão agora preparando nova lei para fazer uma adequação. A verdade é que a faculdade promove um filtro, já que só vai para lá quem já tem um interesse específico na profissão. Agora, há uma outra questão a ser discutida, que é o acesso de profissionais de outras áreas à liberdade de expressão. Não posso ser contra, por exemplo, a publicação de textos de médicos ou advogados em jornais e revistas simplesmente porque eles não são jornalistas formados. Eu defenderia que qualquer profissional que tivesse esse interesse fizesse um curso de técnica de redação e ética jornalística. Isso exigiria uma vivência e um conhecimento maior do universo do jornalismo, o que seria excelente tanto para quem escreve como para quem lê. JORNAL DA ABI - COMO É O PROCESSO DE SELEÇÃO DE JORNALISTAS NA FOLHA DIRIGIDA?

Adolfo – Como nós somos um jornal que prestigia a formação profissional e a democratização das oportunidades, fazemos isso aqui dentro. Na Folha, promovemos o ingresso de novos profissionais através de concurso, aberto para estudantes a partir do quarto período de faculdade. Os aprovados fazem um curso de seis meses, remunerado, e os dois ou três que obtiverem melhores resultados entram como estagiários do jornal. JORNAL DA ABI - E QUE TIPO DE ORIENTAÇÃO VOCÊ DÁ A ESSES NOVOS PROFISSIONAIS?

JORNAL DA ABI - QUAL A PRINCIPAL DIFERENÇA ENTRE O JORNALISMO DE HOJE E AQUELE DO TEMPO EM QUE VOCÊ COMEÇOU NA PROFISSÃO?

Distribuído em vários cadernos, o Suplemento do Professor é uma das publicações periódicas de maior sucesso que a Folha Dirigida edita sobre educação.

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Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

Adolfo –Acho que o grande diferencial de hoje é o acesso praticamente ilimitado à informação. Essa meninada tem

Adolfo – Eu digo para o pessoal que trabalha comigo para sair da frente do computador, pegar o telefone, marcar entrevista, olhar a fonte olho no olho. Com as novas tecnologias e essas ferramentas de pesquisa virtuais, é muito fácil fazer matéria sem sair da Redação, na


Liberdade de imprensa

JORNAL DA ABI - ULTIMAMENTE, COM O SURGIMENTO DAS NOVAS MÍDIAS VIRTUAIS , UMA DISCUSSÃO TORNOU-SE OBRIGATÓRIA – A SUBSISTÊNCIA DO JORNALISMO IMPRESSO. VOCÊ ACHA QUE O PAPEL ESTÁ COM OS DIAS CONTADOS? Adolfo – O papel não está com os dias contados. Cada mídia nova que aparece cria um novo segmento de público – e com a internet não foi diferente. Acontece que os veículos precisam ter a capacidade de se reinventar a todo momento, na medida em que novas tecnologias surjam, com novas demandas. Aqui no Grupo Folha a informatização de conteúdos foi implantada há coisa de oito anos. No início, claro, houve aquela crise típica das mudanças, dificuldades de adaptação etc. Montamos um núcleo de internet aproveitando o pessoal daqui mesmo e trazendo também alguns talentos de fora. Hoje, nossos sites têm quase 3,5 milhões de usuários, sendo 90 mil assinantes virtuais pagantes. Mas o sucesso de nossas edições impressas, com milhões de exemplares circulando pelo País todo, debaixo do braço dos trabalhadores e estudantes, é a maior prova de que o jornalismo em papel ainda terá uma longa vida pela frente.

JORNAL DA ABI - E NO MERCADO DE TURISMO, QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS INICIATIVAS

GRUPO? Adolfo – Nos últimos anos, temos sido referência também nesse segmento. Editamos publicações específicas para o setor, a Folha do Turismo e a Mercado e Eventos. Entendemos que a indústria do turismo é das mais promissoras para o desenvolvimento do País e queremos participar disso. Agora, que o Brasil tem tido uma visibilidade internacional cada vez maior, estamos presentes nas principais feiras internacionais, com edições de grande qualidade gráfica em inglês, espanhol, italiano, francês e alemão. Com a proximidade da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, esse mercado estará ainda mais aquecido e nosso objetivo é crescer ainda mais. DO

JORNAL DA ABI - O QUE O MOTIVA MAIS – SER JORNALISTA OU SER EMPRESÁRIO?

Adolfo – Ah, é claro que é ser repórter. Essa inquietude, o inconformismo do exercício da reportagem, sempre me motivou bastante. Encontrar a motivação certa depende do espírito do repórter. Você tem que sempre buscar o enfoque criativo, procurar humanizar a matéria, ter sempre gente falando. Como repórter, eu me realizei muito na vida.

CPFL CULTURA

maior comodidade. Mas que tipo de matéria você vai oferecer ao seu leitor? Não tem jeito, o repórter precisa ser inquieto, inconformado. Boas matérias estão aí, na porta da rua, é só se levantar e ir lá apurá-las. Outra coisa em que eu insisto é no cuidado com o texto. Até hoje, antes de soltar uma matéria, eu leio e releio meu texto várias vezes, refaço o lide, dou uma lapidada em tudo. Então, digo a eles para nunca soltarem um lide de primeira. Esse jornalismo à moda antiga, da busca da entrelinha, da construção cuidadosa do texto e do ritmo das palavras, não pode nunca ser abandonado.

O artigo que derrubou a colunista do Estadão Texto em que questionou as críticas ao voto das classes D e E provoca a suspensão da coluna que ela fazia a cada dois sábados no Estadão, que nega motivação política ou ideológica para a decisão. “uma prima” do autor, residente em Com um artigo publicado na véspeFortaleza. A denunciante, indignada ra do primeiro turno da eleição presidencom a indolência dos trabalhadores não cial, em que questionava os reparos ao qualificados de sua cidade, queixava-se voto dos eleitores das classes D e E, a de que ninguém mais queria ocupar a jornalista e psicóloga Maria Rita Kehl vaga de porteiro do prédio onde mora. selou o fim de sua colaboração ao jornal Os candidatos naturais ao emprego preO Estado de S.Paulo. Sob as alegações de feriam viver na moleza, com o dinheique ela deveria escrever sobre psicanáro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que lise e também, de que estava prevista sua ponto chegamos. Não se fazem mais pés substituição nesse espaço, o jornal susde chinelo como antigamente. Onde fopendeu a publicação de seus textos, que ram parar os verdadeiros humildes de ocupavam a última página do Caderno quem o patronato cordial tanto gostaC do jornal a cada dois sábados, em reva, capazes de trabalhar bem mais que vezamento com o jornalista e escritor oito horas regulamentares por uma Marcelo Rubens Paiva. Essa explicação miséria? Sim, porque é curioso que ninpara a dispensa da colaboradora foi dada guém tenha questionado o valor do pelo Diretor de Conteúdo do Estadão, salário oferecido pelo Ricardo Gandour. O texto de Maria “Não se fazem mais pés condomínio da capital cearense. A troca do Rita Kehl, intitulado de chinelo como emprego pela Bolsa-Fa“Dois pesos...”, foi publiantigamente. Onde mília só seria vantajosa cado na edição de 2 de para os supostos esperoutubro. Sua íntegra é foram parar os talhões, preguiçosos e reproduzida a seguir: verdadeiros humildes aproveitadores se o sa“Este jornal teve uma de quem o patronato lário oferecido fosse inconstitucional: mais atitude que considero cordial tanto gostava, baixo do que metade do digna: explicou aos leitores que apóia o candicapazes de trabalhar mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chedato Serra na presente bem mais que oito ga a soma de todos os eleição. Fica assim mais honesta a discussão que horas regulamentares benefícios do Governo para quem tem mais de se faz em suas páginas. por uma miséria?” três filhos, com a condiO debate eleitoral que ção de mantê-los na escola. nos conduzirá às urnas amanhã está Outra denúncia indignada que coracirrado. Eleitores se declaram exaustos re pela internet é a de que na cidade do e desiludidos com o vale-tudo que marinterior do Piauí onde vivem os parencou a disputa pela Presidência da Repútes da empregada de algum paulistano, blica. As campanhas, transformadas em todos os moradores vivem do dinheiro espetáculo televisivo, não convencem dos programas do Governo. Se for vermais ninguém. Apesar disso, alguma dade, é estarrecedor imaginar do que coisa importante está em jogo este ano. viviam antes disso. Passava-se fome, na Parece até que temos luta de classes no certa, como no assustador Garapa, filBrasil: esta que muitos acreditam ter sido me de José Padilha. Passava-se fome tosoterrada pelos últimos tijolos do Muro dos os dias. Continuam pobres as famíde Berlim. Na tv a briga é maquiada, mas lias abaixo da classe C que hoje recebem na internet o jogo é duro. a bolsa, somada ao dinheirinho de alguSe o povão das chamadas classes D ma aposentadoria. Só que agora coe E – os que vivem em grotões perdidos mem. Alguns já conseguem até produdo interior do Brasil – tivesse acesso à zir e vender para outros que também cointernet, talvez se revoltasse contra as meçaram a comprar o que comer. O ecoinúmeras correntes de mensagens que nomista Paul Singer informa que, nas desqualificam seus votos. O argumento cidades pequenas, essa pouca entrada já é familiar ao leitor: os votos dos pode dinheiro tem um efeito surpreendenbres a favor da continuidade das políte sobre a economia local. A Bolsa-Faticas sociais implantadas durante oito mília, acreditem se quiserem, proporanos de Governo Lula não valem tanciona as condições de consumo capazes to quanto os nossos. Não são expressão de gerar empregos. O voto da turma da consciente de vontade política. Teriam “esmolinha” é político e revela conscisido comprados ao preço do que parte ência de classe recém-adquirida. da oposição chama de bolsa-esmola. O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao Uma das correntes chegou à minha contrário do que pensam os indignados caixa postal vinda de diversos destinada internet, mudou para melhor. Se até tários. Reproduzia a denúncia feita por

Maria Rita Kehl: Estadão alega que sua substituição estava prevista; sua dispensa não teria caráter político.

pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário-mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da BolsaFamília, que, apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem idéia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”. Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano. Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizam as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os semcidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.” Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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Liberdade de imprensa

Violência mata dois jornalistas no Brasil Um foi assassinado no Município de Caicó, no Rio Grande do Norte; outro, em Ibitinga, interior de São Paulo. Os criminosos não foram identificados. MARIA HELENA

POR JOSÉ REINALDO MARQUES O jornalista Francisco Gomes Medeiros, conhecido como F. Gomes, foi brutalmente assassinado na noite de 18 de outubro, no Município de Caicó, no Rio Grande do Norte. De acordo com o boletim de ocorrência da Polícia, ele estava saindo de casa, no bairro da Paraíba, quando foi abordado por dois homens em uma moto e um deles teria feito os disparos que o atingiram mortalmente. Francisco trabalhava na Rádio Caicó, era repórter policial do jornal Tribuna do Norte e ainda mantinha o blog F. Gomes, no qual fazia denúncias sobre o tráfico de drogas e outros delitos locais. No mês passado, ele postou uma notícia de suspeita de troca de votos por crack, ocorrida em Seridó, o que pode ter motivado a sua morte. O assassinato de F. Gomes aconteceu por volta das 21 horas e teve repercussão nacional, em diversos veículos de imprensa. O blog Repórter de Crime, do jornalista Jorge Antônio Barros noticiou o crime: “Assassinar um jornalista que serve ao público é como tentar abafar a voz de toda a sociedade. Não tolere isso em hipótese alguma. Mataram um jornalista do Rio Grande do Norte, mas a voz dele há de se multiplicar por mil. Os jornalistas potiguares não vão se calar! E precisam do apoio dos jornalistas e de toda a sociedade”, afirma Jorge Antônio Barros. Em nota assinada por seu Presidente, Emanuel Soares Carneiro, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão-Abert repudiou o assassinato do jornalista e pediu que as autoridades “procedam à apuração necessária ao esclarecimento e identificação dos responsáveis pelo crime”. Um dos trechos do comunicado da Abert ressalta que F. Gomes “é mais uma vítima da violência cometida contra jornalistas e veículos de comunicação que buscam cumprir sua missão de informar a sociedade”. O Delegado George Davi, da Delegacia local, informou que as investigações para identificação dos assassinos de F. Gomes estão sob a responsabilidade da Divisão de Investigação e Combate ao Crime Organizado-Deicor. Integrantes da cúpula da Secretaria de Segurança Pública se deslocaram para Caicó – distante 292 quilômetros de Natal – para acompanhar o andamento do caso. Na madrugada de segunda-feira, pouco depois da morte de F. Gomes, um 26

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dos suspeitos do crime foi preso pelo serviço de Inteligência da Polícia Militar. Após prestar depoimento, ele chegou a ser solto pelo Delegado George Davi, mas por ordem da Secretaria de Segurança na manhã do dia 19 de outubro voltou a ser detido para novos esclarecimentos, desta vez em um interrogatório coordenado pelo delegado Ronald Gomes. Assassinado em casa Com a morte de F. Gomes, em menos de uma semana houve o registro do assassinato de dois jornalistas no Brasil. Na noite de sábado 16 de outubro, a vítima foi o proprietário do jornal Popular News, Wanderlei dos Reis. Ele morreu na manhã de domingo, vitimado pelo tiro que levou de um homem ainda não identificado, dentro da sua casa, na cidade de Ibitinga, no interior de São Paulo. Moisés Fernandes da Silva, que morava na mesma casa da vítima, contou à Polícia Militar que ouviu um homem chamando por Reis no portão da residência. Quando saiu, o jornalista foi abordado por três homens que o fizeram e ao amigo como reféns e os arrastaram para um dos quartos do imóvel. A princípio, conforme informou a Polícia, eles pensaram tratar-se de um roubo. Os dois foram agredidos e em seguida Wanderlei foi levado à força até a cozinha, onde um dos criminosos lhe deu um tiro na perna que perfurou a artéria femoral. O jornalista chegou a ser levado a um hospital, foi operado e

não resistiu à gravidade do ferimento. O Delegado de Ibitinga, Carlos Ocon de Oliveira, que investiga o caso, disse que a Polícia ainda tem dúvidas sobre o motivo do crime. Ele declarou que não acredita que tenha sido latrocínio: “Ainda estamos investigando e é prematuro saber o motivo do crime. Não sabemos se é por coisas pessoais ou pelo fato de ele ser dono de jornal”, afirmou o delegado. No mundo, mais mortes Um levantamento da organização não-governamental Campanha Emblema de Imprensa (Pec, na sigla em inglês) registrou a morte de 59 jornalistas no exercício da profissão em todo o mundo, somente no primeiro semestre de 2010. Os números atuais superam o registro anterior que foi de 53 mortes. Em uma amostra por continentes, a região com maior incidência de crimes contra jornalistas é a América Latina. Segundo a Pec, foram registradas 24 mortes no semestre passado. O país que lidera o ranking negativo é o México, que teve nove profissionais de imprensa mortos, por causa da guerra do narcotráfico. O segundo lugar dessa estatística funesta ficou com a Ásia, onde Paquistão e Filipinas lideram a pesquisa com 14 assassinatos no total. Na África foram registradas nove mortes, colocando o continente africano em terceiro lugar e com uma tendência de alta na violência praticada contra os jornalistas. O Brasil é citado na pesquisa da Pec

com um caso: o do cronista esportivo Clóvis Silva Aguiar, assassinado no Maranhão, em 24 de junho de 2010. Com a morte de F. Gomes e de Wanderley dos Reis esse número se eleva para três. Neste caso o Brasil passa a se equiparar a Colômbia e Rússia, onde também ocorreram três mortes. Venezuela, Iraque, Nepal e Tailândia registraram dois casos cada um. O ranking da RSF Em 20 de outubro, a organização Repórteres Sem Fronteiras, sediada em Paris, divulgou o seu balanço da situação da liberdade de imprensa no mundo relativo aos três primeiros trimestres de 2010, em comparação com igual período de 2009, o qual registra que o Brasil subiu 12 pontos no ranking da entidade, no qual figuraria em 58º lugar, a melhor classificação do grupo de países denominado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). A Índia ocuparia o 122º lugar; a Rússia, o 140º ; a China, o 171º. O ranking da RSF registra que o primeiro lugar em liberdade de imprensa é ocupado pela Finlândia, Islândia, Holanda, Noruega, Suécia e Suíça; os últimos lugares, pelo Turcomenistão, em 176º; a Coréia do Norte, em 177º, e, fechando a lista, a Eritréia, em 178º. A RSF assinalou também como fato positivo no Brasil a decisão que revogou a disposição da lei eleitoral que impedia críticas e caricaturas dos candidatos a cargos eletivos; como negativo, os casos de censura prévia, que se multiplicaram nos últimos anos.


Fiscal da imprensa não é o poder, mas o leitor, diz a ABI Entendimento do Ministro da Comunicação, Franklin Martins, é contestado pela Casa. se Bucci, com ironia, que a ida do Ministro Franklin Martins à Europa para tratar de regulação da mídia é mais adequada do que ir à Venezuela ou à China “ou mesmo pegar idéias no Ministério das Comunicações do Brasil, que tem feito tudo errado na área”. Na opinião de Bucci somente o setor de radiodifusão deve ter regulação estatal, “porque o espectro é curto para acomodar redes de tv e rádio”. Como a mídia imprensa não depende em nada do Estado para funcionar, salientou, não precisa de regulação. O Ministro Franklin Martins falou sobre o marco regulatório do setor de radiodifusão em entrevista coletiva que concedeu no dia 7 de outubro na residência do embaixador do Brasil em Londres, onde se encontrava. Ele visitaria também a Bélgica, com o objetivo de convidar especialistas europeus para o Seminário Internacional Marco Regulatório da Radiodifusão, que o Governo programou para os dias 9 e 10 de novembro. O Seminário poderá oferecer subsídios para a elaboração de um anteprojeto de lei a ser encaminhado ao Presidente

FABIO POZZEBOM/ABR

Em declarações ao jornalista Moacir Assunção, de O Estado de S.Paulo, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, contestou a idéia exposta pelo Ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, de instituição de uma fiscalização da mídia ou da imprensa, como parte de um chamado marco regulatório da comunicação que o Governo pretenderia elaborar até o fim do ano: “Isso é um absurdo, porque quem deve fiscalizar a imprensa é a opinião pública, e não o Estado”, disse o Presidente da ABI, cujas declarações foram publicadas na página A20 da edição do dia 8 de outubro do Estadão. Disse o Presidente da ABI que é saudável toda discussão sobre temas relacionados à imprensa e à liberdade de expressão: “Claro que a primeira premissa destas discussões deve ser o que diz a Constituição, segunda a qual nenhuma lei pode se constituir em embaraço à livre circulação da informação e à opinião”, acrescentou. O Estadão ouviu também o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo e colaborador do jornal. Dis-

Lula antes do término do seu mandato. Franklin espera que do encontro participem as empresas do setor, que não compareceram à Conferência Nacional de Comunicação realizada há meses: “Acho que as empresas que boicotaram amadureceram. Houve parte da radiodifusão que se assustou com o barulho da bala e caiu dura no chão. Estive com dirigentes de grandes emissoras e eles concordam que a discussão é imprescindível. Não quer dizer que vão

Na visão do Ministro Franklin Martins, a regulação da comunicação faz bem a todo mundo: às telecomunicações, à radiodifusão, à segurança jurídica, à sociedade.

concordar com o Governo, mas sinto hoje mais bom senso que há dez meses. Se sair da ideologia, todo o resto fica mais fácil. Temos um primeiro nó a desatar: as pessoas entenderem que regulação faz bem para todo mundo. Faz bem para as telecomunicações, porque vai dar segurança jurídica. Faz bem para a radiodifusão, porque fornece parâmetros para ela se mexer e coloca alguns limites à ação dos outros que são mais fortes que ela. E faz bem à sociedade”.

“Jornalismo é um serviço público” POR JOSÉ REINALDO MARQUES

PUBLIC SERVICES INTERNATIONAL-MARC GRUBER

O jornalismo é um serviço público, cuja prática deve sempre estar vinculada aos interesses da coletividade. Essa foi a conclusão da conferência Ação Agora! patrocinada pela União Internacional de Qualidade de Serviços Públicos, encerrada em 14 de outubro, a qual reuniu 400 líderes sindicais de todo o mundo e de vários setores da economia global. Representantes da Federação Internacional de Jornalistas-FIJ e da Federação Européia de Jornalistas-FEJ participaram do encontro, no qual defenderam que “a crise de qualidade do jornalismo e a necessidade de preservar o interesse público” são pontos que deverão estar inseridos na campanha internacional pela qualidade da prestação de serviços à sociedade, lançada durante a conferência. O Presidente da Federação Nacional da Imprensa da Itália, Roberto Natale, disse que “a luta pela normalização e qualidade no jornalismo é do interesse de todos”, mas fez um alerta: “Alguns jornalistas estão desafiando parâmetros e quebrando regras básicas da boa prática da profissão, quando focam em notícias de celebridades e ignoram a informação sobre o que está acontecen-

Quatrocentos líderes sindicais do mundo todo debatem como melhorar a qualidade da produção jornalistica e enfrentar o uso da mídia que promova a intolerância e o racismo.

Roberto Natale: É vital para a democracia o acesso a informações confiáveis.

do verdadeiramente com a sociedade.” Disse Natale que na Itália e em toda a Europa os jornalistas estão trabalhando para restabelecer os padrões profissionais, além de encarar os desafios de enfrentar novas ameaças ao jornalismo de qualidade, como o uso da mídia para fomentar a intolerância e o racismo: “A batalha por um jornalismo ético e de qualidade é uma luta em que todos os cidadãos e grupos sociais têm uma participação. É vital para a democracia que as pessoas tenham acesso a informações confiáveis e verdadeiras”, declarou o Presidente da Federação Nacional da Imprensa italiana. O representante da União Nacional dos Jornalistas da Grã-Bretanha e Irlanda-NUJ e Presidente do Grupo Especialista de Radiodifusão da Federação Européia de Jornalistas, John Barsby, defendeu maior apoio público para a campanha global pela qualidade da prestação de serviços públicos: “Os cortes drásticos nos gastos públi-

cos também ameaçam o setor de radiodifusão. Jornalistas e sindicatos da categoria, além de entidades do movimento sindical mais amplo precisam trabalhar juntos para defender o direito de acesso ao serviço público de qualidade”, afirmou Barsby. A conferência concluiu que deve ser adotado um plano de ação abrangente, visando a delinear os objetivos da campanha, especialmente nas áreas da saúde, educação e transporte. As reivindicações das organizações ligadas à cultura, comunicação e ao jornalismo especificamente também foram debatidas em uma sessão especial, com a participação de representantes de artistas, músicos e jornalistas, na qual foi destacado o impacto que o corte nos gastos públicos tem sobre a vida cultural da sociedade. A campanha pela qualidade nos serviços públicos será desenvolvida e coordenada pelas lideranças sindicais globais nos próximos meses e utilizada para apoiar protestos em todo o mundo onde haja redução da qualidade de vida das pessoas, em função dos cortes draconianos nas despesas públicas. Mais informações sobre a conferência e o seu resultado podem ser obtidas através do site www.qpsconference.org

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Liberdade de imprensa

O Clube Militar, quem diria, fala em liberdade de imprensa No auge da campanha eleitoral do primeiro turno, a entidade promoveu uma sessão dedicada ao tema A democracia ameaçada: restrições à liberdade de imprensa, essa mesma liberdade que a ditadura sonegou. A edição anterior do Jornal da ABI, com data de capa setembro de 2010, já estava na gráfica quando o Clube Militar realizou no dia 23 de setembro uma sessão destinada à discussão desse tema, a qual é agora registrada pela singularidade da iniciativa, que para muitos soou como ironia. Membro da Comissão de Defesa de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Casa, o jornalista Mário Augusto Jakobskind fez para o site da ABI a reportagem intitulada Merval: eleitores são analfabetos funcionais, que é a seguir reproduzida com intertítulos da Redação do Jornal da ABI. É dessa época também um artigo que o jornal O Dia solicitou do Presidente da ABI, o qual é também transcrito com o seu título original. O texto foi publicado na edição do dia 3 de outubro de 2010.

DOMINGOS PEIXOTO/AGÊNCIA O GLOBO

Merval Pereira (primeiro à esquerda), de O Globo, disse aos militares que a liberdade de imprensa está ameaçada pelo Governo Lula, que se aproveitaria do fato de que 80% dos eleitores são analfabetos funcionais. Reinaldo Azevedo, de Veja, e Rodolfo Moura, da Abert, também criticaram o Governo.

POR MÁRIO AUGUSTO JAKOBSKIND “Em palestra no Clube Militar sobre o tema A democracia ameaçada: restrições à liberdade de imprensa, nesta quinta-feira, dia 23, o jornalista Merval Pereira, de O Globo, alertou os militares da reserva que no Brasil a liberdade de imprensa está ameaçada por investidas do atual Governo. Disse Merval que Lula se aproveita do fato de 60% do eleitorado ser composto de “analfabetos funcionais”, que não sabem “discernir o bem”, e, aproveitando-se desse fato, faz proselitismo ao se dirigir a esses setores. Para Merval, somente oferecendo educação aos brasileiros poderá se superar essa deficiência de que Lula se aproveita. Outro palestrante, Reinaldo Azevedo, da revista Veja, também fez duras críticas ao Presidente Lula, a quem considera um “sujeito autoritário, mas não chega a ser um comunista”. Utilizando-se de uma linguagem radical e aplaudido pelos militares da reserva, Azevedo considerou a oposição “vagabunda” e “mixuruca” e por isso os meios de comunicação estão ocupando o lugar dos partidos. “O papel dos meios de comunicação, de revistas como a Veja, segundo Azevedo, é defender a Constituição, o que está sendo feito: Não é oposição, mas defensor da Constituição. Rodolfo Machado Moura, Diretor de Assuntos Legais da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), também alertou sobre o “risco” pelo fato de o atual Governo estar disposto a restringir a liberdade de expressão. Moura defendeu enfaticamente a decisão do Supremo Tribunal Federal contra o diploma para o exercício profissional do jornalismo, o que, para ele, é restritivo à liberdade de imprensa. 28

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O seminário organizado pelo Clube Militar teve o apoio do Instituto Millenium, que distribuiu folhetos informando que o grupo, financiado por empresários, tem a “missão” de “promover a democracia, a economia de mercado, o Estado de Direito e a liberdade”. Os três palestrantes citaram como exemplo de manipulação do Governo contra a liberdade de imprensa a elaboração do projeto do Conselho Federal de Jornalismo, mas não informaram que a idéia do Conselho não foi do Governo, mas da Federação Nacional de Jornalistas-Fenaj. Merval Pereira e Reinaldo Azevedo também criticaram a exigência do diploma para o exercício profissional do jornalismo. Merval informou que não tem diploma nenhum, mas passou um ano nos Estados Unidos na Universidade Columbia, onde ministrou palestras sobre o Brasil e ainda num curso de doutorado em Standford. No entender de Merval, que também fez duras críticas ao “chavismo, que o Governo brasileiro segue”, a exigência do diploma é um viés corporativo e ainda associou isso à “tendência do Estado brasileiro em controlar a mídia”. O colunista de O Globo também fez críticas ao Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, afirmando que ele já disse que os Estados Unidos têm controle sobre a cultura no mundo e para enfrentar tal situação é necessário o Estado atuar. Do lado de fora do Clube Militar, estudantes promoveram uma manifestação contra o que consideram “golpismo da mídia conservadora”, fato que foi duramente criticado por Reinaldo Azevedo, por considerar os manifestantes autoritários e de não aceitarem quem não defende as mesmas idéias.”

A imprensa como alvo MAURÍCIO AZÊDO A campanha eleitoral exacerbou as manifestações acerca da liberdade de imprensa no Brasil, que se viu no centro de um torvelinho de acusações de toda natureza, umas defendendo limitações a essa conquista incorporada ao texto constitucional, outras sustentando que não deve haver restrição ao exercício desse bem essencial e inestimável das sociedades democráticas. Não faltou ao elenco de intervenções sobre o tema uma iniciativa que soou como irônica: o Clube Militar, a instituição que abriga os autores da mais longa privação das liberdades no País, promoveu e abrigou uma sessão em defesa da liberdade de expressão, sonegada por longos anos por seus mais destacados associados que empalmaram o poder. Ao quadro adverso que se instalou no País não faltou uma pujante decisão de um magistrado do Estado do Tocantins, o Desembargador Liberato Póvoa, que, negando o radical de

seu prenome, impôs a censura prévia a nada menos de 84 veículos de comunicação, alcançando com o seu édito proibitório desde um órgão de expressão nacional como O Estado de S. Paulo até o mais modesto periódico do interior tocantinense. O abuso de Liberato teve pernas curtas: pouco mais de 48 horas depois o plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Estado decidiu anular sua decisão. Nessa decisão chamou a atenção tanto a abrangência geográfica e multiforme da censura prévia como o furor com que o juiz Liberato pretendeu implantá-la: diante de eventual descumprimento de sua ordem, o veículo infrator sofreria multa diária de R$ 10 mil, o que na maioria dos casos dos veículos seria a imposição, também, de uma censura econômica. A liberdade de imprensa é, ainda, alvo dos saudosos da ditadura. Maurício Azêdo é Presidente da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.


Direitos humanos HUDSON PONTES/AGÊNCIA O GLOBO

MARCELLO CASAL JR./ABR ELZAFIÚZA/ABR

Tarso Genro, eleito Governador do Rio Grande do Sul, e o Ministro Paulo Vannuchi (à esquerda) vieram ao Rio para prestigiar o Juiz Baltazar Garzón, que defendeu na OAB-RJ a tese que ambos sustentam: Tortura não é crime político e não pode ser alcançada pela Lei de Anistia, como entendeu o Supremo Tribunal.

Mensagens Aplauso de Thiers à entrevista com Geneton Em mensagem enviada à Casa, o Presidente do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, Conselheiro Thiers Montebello, manifestou seu aplauso à Edição nº 357 do Jornal da ABI e especialmente à “excelente entrevista com o jornalista Geneton Moraes Neto sobre a missão de fazer jornalismo”. Diz Thiers Montebello: “Agradeço o envio do Jornal da ABI – agosto de 2010 –, que traz excelente entrevista com o jornalista Geneton Moraes Neto sobre a missão de fazer jornalismo. Tive oportunidade de assistir à sua entrevista inédita com o compositor Geraldo Vandré, tão ansiada por todos. Quanto à matéria relativa ao TCU, parece-me que a decisão de rever as indenizações determinadas pela Comissão de Anistia refere-se exclusivamente àquelas convertidas em aposentadoria. O Jornal da ABI enaltece o jornalismo e fortalece a importância do papel exercido pela imprensa. Parabéns por mais essa contribuição. Com meu cordial abraço (a) Thiers Montebello, Presidente”

Juiz que mandou prender o ditador Pinochet reclama a abertura dos arquivos A convite da OAB-RJ, Baltazar Garzón faz conferência em que sustenta que tortura não é crime político. Em conferência pronunciada, dia 13 de outubro na Ordem dos Advogados do Brasil/Seção do Estado do Rio de Janeiro, o Juiz espanhol Baltazar Garzón, conhecido por ter determinado a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, defendeu a abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil e afirmou que desaparecimentos e crimes de tortura cometidos por agentes do Estado não podem ser tratados como crimes políticos. É necessário, disse, que as instituições representativas da sociedade civil saiam da inércia e busquem a apuração dos fatos. Integrante da mesa e primeiro orador da sessão, o Presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, entregou uma placa em homenagem a Garzón e anunciou a criação de um grupo de trabalho para organizar campanha em solidariedade ao juiz espanhol, afastado das investigações que conduzia sobre os crimes cometidos pelo regime franquista. O Conselho Geral do Poder Judicial da Espanha considerou suas investigações “ilegais e abusivas”. O Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi,

e o ex-Ministro da Justiça e Governador eleito do Rio Grande do Sul Tarso Genro, participantes da mesa, ressaltaram que a visita de Garzón fortalece as campanhas em prol da abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil. “Esta visita é um momento de inspiração e encorajamento para lutas que buscam esclarecer o que exatamente ocorreu no período da ditadura”, afirmou Vannuchi, lembrando que o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, destinada a apurar casos de violação de direitos humanos, foi enviado em maio ao Congresso. O ministro afirmou também que o País aguarda a decisão da Corte Internacional de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos-OEA sobre ações de repressão realizadas pelas Forças Armadas entre 1972 e 1975 no combate à guerrilha do Araguaia. O ex-Ministro Tarso Genro fez críticas à interpretação do Supremo Tribunal Federal, em abril, de que a Lei de Anistia alcançava os torturadores. Para ele, a maior parte da mídia propagou uma visão distorcida do que pleiteava,

à época, o Conselho Federal da OAB.” Não se estava pedindo a revisão da Lei da Anistia, o que seria inconstitucional, mas uma nova interpretação dela. O pleito também foi considerado um ataque às Forças Armadas, quando o que estava sendo questionado era a punição de agentes civis e militares que praticaram a tortura”, afirmou. Compuseram a mesa do evento, também, os Presidentes da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, da Associação Brasileira de Imprensa, Maurício Azêdo, e da OAB/Pará, Jarbas Vasconcelos. Desagravo Após a sessão, Garzón viajou para Brasília, onde teria encontro com o Presidente Lula. Ele se reuniria também com estudantes da Universidade de Brasília. No dia 14, Garzón concedeu coletiva na Assembléia Legislativa do Estado do Rio, onde participou de ato de desagravo promovido pelo Deputado Alessandro Molon (PT). Reportagem da Tribuna do Advogado, órgão oficial da OAB-RJ.

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Direitos humanos

Anistiados e anistiandos pedem “uma atenção mais cidadã” Encontro de entidades de vítimas da ditadura aprova declaração em que expõe 10 aspectos negativos da tramitação dos processos de anistia e formula sete proposições para reversão de um quadro de “omissão, resistência e até negligência”. Sem merecer a atenção da grande mídia, numeroso conjunto de associações de perseguidos políticos discutiu em Brasília, em agosto passado, o andamento dos processos de anistia, sobre os quais emitiram extensa declaração em que reclamam “uma atenção mais cidadã”. O texto da declaração, encaminhado ao Jornal da ABI pelo jornalista Paulo Conserva, de Itaporanga, Paraíba, é o seguinte: “Nós, os homens e mulheres que sonhavam com um Brasil mais humano e justo, posicionamo-nos pelas reformas e depois lutamos contra a ditadura. Fomos punidos pelo Estado de então e continuamos carentes de uma atenção mais cidadã para recebermos os benefícios concedidos pelo Congresso. Já são transcorridos mais de trinta anos sem vermos as leis convenientemente aplicadas ou, no máximo, são aplicadas por metade, reiteradamente. Este período se apresenta em duas etapas: a primeira até chegarmos à Lei de Anistia – 6.638/79 –, a segunda, a partir da Lei nº 10.559/02, que regulamenta o art. 8º do ADCT-CF-88, elucida e acrescenta a abrangência de interpretações. A legislação pertinente é quase satisfatória, porém a correção em sua interpretação e aplicação foi e está sendo distorcida, ignorada e até mesmo sabotada. Na melhor das hipóteses o 30

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cumprimento é feito com omissão, resistência e até negligência. Nossas diligências no decorrer deste período, em que pese todo o nosso empenho, é frustrante, o que nos obrigou a solicitar a atenção do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, além de já termos recorrido, em apelo, ao Congresso, onde assinalamos as seguintes anomalias, na maioria dos processos em curso na Comissão de Anistia, a saber. 1. os autores de pedido de reparação ou seus representantes não recebem notificações da data de julgamento; 2. as decisões são tomadas sem levar em conta as provas contidas nos autos do processo; 3. decisões discrepantes em processos semelhantes; 4. recursos: – Foi julgado apenas um pequeno número de recursos; alguns lá dormem há mais de seis (?) anos; 5. há resistência do Estado em reintegrar os anistiados na sua condição pregressa de trabalho, conforme estabeleceu o Congresso; permanece a discriminação sub-reptícia para com os anistiados na administração militar; 6. não estão sendo observados os prazos de reparação econômica conforme o art. 12, § 4º, combinado com o art. 18 da referida Lei de Anistia; 7. não aceitamos a pregação da mídia, a mesma que sustentou o golpe e ainda o defende, como sendo uma anis-

tia cara para o País, pois muito mais cara em vidas, em desarticulação social e financeiramente foi a DITADURA, de cujos responsáveis deveriam ser exigidos os recursos indenizatórios ou reparação ao Estado; 8. se a anistia foi ampla, geral e irrestrita para ambos os lados em disputa, como sentencia o STF, que sejam abertos os arquivos da ditadura e reconhecidos os responsáveis; 9. declaramos que quanto aos trabalhadores não tem sido considerada pela Comissão de Anistia a situação jurídica das categorias profissionais a que pertencia ou pertence o anistiado, escudando-se errônea e propositalmente os parâmetros de “média salarial” da “Data-Folha salários”, lesando o anistiado ao rebaixar salários, não observando o quadro de carreiras das empresas e acima de tudo burlando na reparação o consubstanciado no princípio e espírito da Lei nº 10.559/2002, que diz: “o valor da prestação mensal permanente e continuada será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse”. Sem tergiversação contra os trabalhadores, o valor da prestação deveria ser estabelecido conforme o quadro salarial/ carreiras das empresas públicas, privadas ou empresas mistas sob controle estatal a que o anistiado pertencer ou esteve vinculado”. É a Lei;

10. nos manifestamos contra a liminar que suspendeu a anistia dos camponeses do Araguaia e, nesse sentido, solicitamos que seja dada atenção especial por parte da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça na análise do requerimento e defesa dos camponeses do Araguaia, tendo em vista as dificuldades intelectuais e financeiras de eles contratarem profissionais honestos e competentes para a condução dos seus processos. Nos manifestamos também contra as contínuas intromissões do Ministério da Defesa buscando suspender a anistia dos trabalhadores do Arsenal da Marinha e dos ex-cabos da FAB. Manifestamos ainda pela continuidade da Ceanisti em perfeita consonância com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, já que são inúmeras as tentativas de levar ao esquecimento e apagar da memória do povo brasileiro as lutas dos anistiandos, e anistiados que são verdadeiros heróis da construção da democracia do nosso País, restando ainda milhares de processos a serem analisados. Exigimos a imediata abertura dos arquivos militares e civis da ditadura visando à preservação da memória e elucidação dos fatos no sentido de impedir que parcelas significativas da sociedade brasileira tenham um discurso democrático, mas ainda mantenham


uma postura altamente autoritária e discriminatória. Destas atitudes o Conselho Federal da OAB, em reunião de nº 66 da Diretoria, Protocolo 310045501/2010, solicitou ao Sr. Ministro da Justiça informações de que, até à presente data, não temos qualquer notícia. Este é o panorama das dificuldades que todos estamos enfrentando, e que está carecendo de uma UNIÃO NACIONAL, a fim de buscarmos acolhimento pleno de nossas pretensões – legais – obstruídas e torpedeadas solertemente. Não nos tratam como ex-perseguidos políticos e, sim, continuamos a ser PERSEGUIDOS, agora pela democracia pela qual tanto lutamos e ajudamos a estabelecer!!! Que fique claro: buscávamos a democracia da Nação, humana, e não a democracia do capital de interesse dos grupos econômicos somente. NOSSA PRETENSÃO: QUE o Governo cumpra as determinações da Lei nº 10.559/02, respeitando o que está expresso no texto, sem tergiversações; QUE a Comissão de Anistia julgue os requerimentos e recursos pendentes num prazo compatível com a idade dos requerentes, deferindo ou indeferindo; QUE o tratamento aos requerentes ou seus representantes volte a ser respeitoso e coerente com o Estado Democrático de Direito. QUE o Sr. Ministro volte a receber as entidades representativas, dando cumprimento ao que estabelecem os §§ 1º e 2º do art. 12 da Lei, para que os anistiados possam acompanhar os trabalho da C.A. QUE o Governo e sua base aliada se comprometam a acionar os tribunais internacionais para o cumprimento dos tratados e decisões para responsabilização dos que cometeram crimes contra as instituições e de lesa-humanidade nas décadas de 60/70, bem como buscarem o ressarcimento ao erário público dos gastos com as indenizações através de ações regressivas contra as pessoas, políticos e organizações que participaram do golpe, que deram sustentação e justificam a destruição das Instituições vigentes em 1964; QUE a “Nota da Comissão de Anistia sobre a Decisão do TCU em Rever as Anistias às Vítimas do Regime Militar” seja inserida no relatório do IV Seminário Latino-Americano de Anistia e encaminhada a organismos internacionais de direitos humanos; QUE fique registrado o repúdio à investida do TCU, que, extrapolando suas atribuições constitucionais, se arvora ilegitimamente em submeter revisões de atos legal e legitimamente decididos pela Comissão de Anistia em atos (portarias) do Ministério da Justiça. Nossa UNIÃO nos garante confiança na APLICAÇÃO DOS BENEFÍCIOS DA LEI e nos proporcionará condições para recorrer a outros tribunais. Brasília/DF, 16 de agosto de 2010.”

Caravana de Niterói anistia 19 perseguidos Ato na Faculdade de Direito emocionou a assistência que superlotava seu Salão Nobre. Em sessões realizadas em 18 de outubro na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, RJ, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça aprovou a concessão de anistia a 19 perseguidos políticos radicados na antiga capital fluminense, que foi um dos mais importantes cenários da resistência ao golpe militar de 1º de abril de 1964. Entre os processos figurava o do jornalista Achylles Armando Jalul Peret, sócio da ABI, que tramita desde 2005, cuja apreciação foi adiada, em razão de pedido de vista. Os membros de três Turmas de Conselheiros da Comissão de Anistia que julgam processos examinaram no total 29 requerimentos, dos quais um foi indeferido e nove adiados. A apreciação dos processos constituiu o clímax da 45ª Caravana da Anistia organizada pelo Ministério da Justiça, na qual o Presidente da Comissão, Paulo Abrão Pires Júnior, ressaltou o empenho do órgão de fazer justiça, pedindo-lhes desculpas em nome do Estado, a quantos foram vítimas de perseguições da ditadura militar. Também falaram na sessão o advogado Modesto da Silveira, igualmente membro da ABI, o qual defendeu a transformação do Estádio Caio Martins em memorial da luta pelo Estado de Direito, em homenagem a centenas de cidadãos que ficaram presos em suas dependências após o golpe; o advogado Manoel Martins Filho, de 87 anos, que emocionou a assistência que superlotava o Salão Nobre da Faculdade ao relatar as violências sofridas no antigo Estado do Rio por militantes sociais e pessoas comuns após o 1º de abril de 1964, e a Professora Vitória Grabois, cujo pai, ex-Deputado Maurício Grabois, constituinte em 1946, figura entre os mortos na Guerrilha do Araguaia, cujo corpo não foi descoberto, passados mais de 30 anos. À mesa que presidiu a sessão tiveram assento o Diretor da Faculdade de Direito, Professor Edson Alvisi Neves, a representante do Governador Sérgio Cabral, Patrícia Waked Pontes, Assessora da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, o advogado Fernando José Dias, representando a Subseção de Niterói da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, o ex-Vereador Benedito Joaquim dos Santos, Presidente do Fórum de Anistiados de Niterói e São Gonçalo e ex-Presidente do Sindicato dos Operários Navais do Estado do Rio em abril de 1964, Vitória Grabois, VicePresidente do Grupo Tortura Nunca

Mais do Rio de Janeiro, e Ângelo Masullo Reis, representando o Centro Acadêmico Evaristo da Veiga, da Faculdade de Direito. Os anistiados A Comissão de Anistia deferiu os requerimentos de João Pedro de Oliveira; Hugo Chor, parcialmente; Jorge Gonçalves da Silva; Maria Felisberta Baptista de Andrade; Zélia Leocádia da Trindade Jardim; Delacy de Alcãntara, parcialmente; Stela Chor, parcialmente; Paulo Machado Marques, representado por Marilda Medina de Souza Marques; Eufrasiano Nunes Galvão, representado por Maria Edith Maciel Mendes; Aloísio Jorge Soares Lages, parcialmente; Aldair Leal de Carvalho, parcialmente, representado por Elenice Leal de Carvalho; José Mendonça da Silva, parcialmente; Pedro Izaías de Souza, parcialmente, representado por Maria das Graças Nunes de Souza;, Claudionor Gomes, parcialmente; Roberto Bussinger

de Figueiredo, parcialmente, representado por Eliane Prates de Figueiredo; Adelino Carlos Oliveira, parcialmente, e Rafael Francisco, parcialmente. Além do processo de Achylles Jalul Peret, em que houve pedido de vista na sessão da Turma 3, também tiveram a apreciação adiada os processos de Elízio Gomes de Souza, Wilson Vieira, José Ventura de Oliveira, Francisco de Assis Silva Barreto, Valdir Jorge Rodrigues e Mário Rubens Rodrigues. O processo de Carlos Moreira da Rocha foi indeferido; o de Paulo Cezar Duque de Pinho, convertido em diligência. Seis anistiados não viveram o suficiente para usufruir da anistia instituída há mais de 20 anos pela Constituição de 5 de outubro de 1988: ao longo da tramitação de seus processos morreram Paulo Machado Marques, Pedro Izaías de Souza, Roberto Bussinger de Figueiredo, Eufrasiano Nunes Galvão, Jorge Gonçalves da Silva e José Mendonça da Silva.

“Arrancaram minha mãe da cama como um embrulho” Jovens de Betim, MG, ouvem com emoção o relato de Herculano Pinto Filho, de 84 anos, que, em cadeira de rodas, narrou seus padecimentos sob a ditadura. “Em nome do Estado brasileiro, o nosso pedido de desculpas”. Foi com esta frase que a Vice-Presidente da Comissão de Anistia, Sueli Bellato, concedeu anistia a cada um dos sete ex-perseguidos políticos julgados na Caravana de Betim no dia 11 de outubro de 2010. A emoção tomou conta de todos os que acompanhavam a Caravana do Ministério da Justiça logo no primeiro julgamento da tarde. Herculano Pinto Filho, de 84 anos, chegou à sessão em cadeira de rodas e acompanhado da mulher. Ele era funcionário público e radialista na época da ditadura. Fundou e trabalhou em jornais da cidade de Lavras, interior de Minas Gerais, e foi preso inúmeras vezes ao longo do regime. “Pior do que ser preso, era a forma como eles agiam. Lembro deles entrando na minha casa, revirando tudo, arrancando minha mãe da cama como se fosse um embrulho. Passei muitas dificuldades, mas graças a Deus estou aqui hoje”, contou Herculano, sob os aplausos de mais de 250 jovens que acompanharam o julgamento.

Foram julgados também os requerimentos de anistia de Maria de Fátima Nolasco, Hervê de Melo, Renato Santos Pereira e Mary de Souza Muniz, além dos casos post mortem de Maria da Silva Gonçalves e José Deolindo de Oliveira. Esta foi a 44ª edição da Caravana da Anistia, a terceira no Estado de Minas Gerais. Os julgamentos integraram a programação do I Encontro Brasileiro de Universitários Cristãos-Ebruc e teve o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB. “A ditadura foi uma duríssima realidade vivida em nosso País. O controle das forças de repressão era brutal e violento. Os jovens precisam saber a história daqueles que lutaram pela liberdade”, afirmou o Presidente do CNBB, Dom Geraldo Lyrio, reforçando a importância educativa da Caravana da Anistia. “Nós queremos que vocês conheçam hoje as pessoas que acreditaram em suas convicções e foram capazes de dizer basta”, completou a Vice-Presidente da Comissão de Anistia. Fonte: Núcleo de Comunicação-Setor de Assessoria e Projetos da Comissão de Anistia.

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CENTENÁRIO

Os 100 anos de um mestre do desenho não podem passar em branco

Agora em novembro o caricaturista Nássara estaria completando 100 anos. Mestre do desenho e compositor de famosas marchinhas de Carnaval, este carioca emprestou seu humor e suas críticas a importantes publicações do Rio de Janeiro. POR PAULO CHICO O dia 11 de novembro de 2010 marca o centenário de um dos mais respeitados e inspirados compositores, caricaturistas e desenhistas brasileiros. Morto em 11 de dezembro de 2006, Antônio Gabriel Nássara certamente estaria em festa, ao completar 100 anos de vida. Carioca, nascido no bairro de São Cristóvão e filho de libaneses, Nássara começou a compor marchinhas de Carnaval nos anos 1930, disputando e vencendo concursos com Lamartine Babo, Noel Rosa, seu vizinho de infância em Vila Isabel, e Ari Barroso. Muitas delas são famosas até hoje. Assim como fizeram história as suas passagens pelos principais jornais do Rio de Janeiro. Apesar da vasta obra como compositor popular, com sucessos como Alála-ô, de 1941, em parceria com Haroldo Lobo, atuava mais como jornalista e caricaturista. Chegou a freqüentar a Escola Nacional de Belas-Artes, mas não se formou. Trabalhou na imprensa por toda a vida. Teve passagens por Crítica, Carioca, O Globo, Vamos Ler, A Noite, Diretrizes, O Cruzeiro, Mundo Ilustrado, Flan, Última Hora e O Pas32

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quim, onde chegou na década de 1970, após alguns anos de inatividade, resgatado pelo também cartunista Jaguar. Suas caricaturas, marcadas pela simplicidade e concisão dos traços, fizeram época, com críticas a figuras da política brasileira e internacional. “Nássara representa, com a sua música, seu desenho e suas cores, a síntese mais perfeita do Rio de Janeiro”, define Isabel Lustosa, autora de biografia O Perfeito Fazedor de Artes, obra coeditada pela Secretaria Municipal de Cultura/RioArte e a Relume Dumará, na Coleção Perfis do Rio, lançada em 1999. Com base em depoimentos de diversos amigos dele, Isabel Lustosa conta as aventuras deste carioca, cujo comportamento oscilava entre o doido e o moleque e que desfilava elegância pelas ruas da cidade, com bengala, roupas claras e sorriso maroto. “Nássara pertenceu a uma geração muito especial, que emergiu na vida cultural brasileira depois da Revolução de 1930 e mudou o País. Foi gente como ele que deu à nossa cultura a cara que ela tem hoje”. Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, com trabalhos editados sobre a História da imprensa e da ca-

ricatura brasileira, Isabel acredita que tenha faltado, sobretudo por parte da mídia, maior atenção e reverência ao centenário. “Esta data merecia ser mais festejada. O Ancelmo Gois fez um programa muito simpático na TV Brasil, mas foi só isso o que vi. O Nássara deveria ser lembrado, pois tinha uma personalidade muito interessante. E sua produção tinha a cara do Rio dos anos 1930 a 1950, tanto no que dizia respeito à música quanto à caricatura”. Isabel Lustosa não vê nos dias de hoje seguidores do estilo Nássara de compor e desenhar. Natural, pois os tempos são outros. “Acho que não temos nem algo que seja equivalente ao conceito de ‘carioca’, tal como existia naquele tempo e que chegou a sobreviver até os anos de O Pasquim, com aquela elegia de Ipanema. A cidade cresceu e se diversificou. Não vejo ninguém que caiba em um título específico de ‘o carioca’. Para a mídia televisiva, é só a Zona Sul que simboliza a cidade. Mas há muitos cariocas e há muitos Rios de Janeiro, felizmente”, diz. O artista teve a sua estréia na imprensa carioca em O Globo, em 1927, com desenho que acompanhava a reportagem de Eduardo Bahout sobre a travessia do Atlântico, feita pelo hidroavião Jahú. Euricles de Matos, então Redator-Chefe do jornal, encorajou o jovem a seguir a carreira, o que ocorreria alguns anos depois. Após a breve

passagem pela Belas-Artes, publica três caricaturas em O Globo, em 1929. É levado para a revista A Noite pelo caricaturista Fritz, em 1930, e colabora também nessa década nas publicações Crítica, Carioca e Vamos Ler. Atua em revistas e jornais relevantes, destacando-se a contribuição em Diretrizes e as duas páginas semanais em cores para O Cruzeiro, na década de 1940. Segundo estudiosos, essas páginas semanais, com humor profundamente antifascista, em resposta à Segunda Guerra Mundial de então, constituem a melhor fase de sua atividade artística, ao lado das tradicionais cenas do cotidiano do carioca. Os desenhos de Nássara caracterizam-se por linhas econômicas e formas geometrizadas, em que tudo parece pertencer ao mundo de esferas e cones. Nos anos 1950, com Samuel Wainer, ajuda a fundar o jornal Última Hora, no qual mantém página dupla em cores com a crônica do cotidiano do Rio. Em 1974, começa a colaborar com O Pasquim, iniciando a segunda fase de sua carreira, em que é descoberto e admirado pelas gerações mais novas de caricaturistas. No jornal alternativo, onde ficou até 1983, fez retratos de personalidades da música, como Caetano Veloso e Maria Bethânia, além de figuras políticas como Jânio Quadros, Ulisses Guimarães e Delfim Neto. Um dos trabalhos de mais impacto reuniu os Presidentes militares, na charge clássica Corrente pra Trás, em 1982. Uma exposição para marcar o centenário Entre os meses de junho e outubro de 1996, o artista plástico Jorge de Sales recebeu na sua residência dois envelopes repletos de desenhos originais de Nássara. Junto, o autor deixou bilhetes que orientavam o amigo a selecionar os aproveitáveis, limpá-los, retocando com guache branco, e utilizálos de alguma forma. Assim escreveu o próprio Nássara: “Estou te mandando antigos originais. Espero que algum abnegado desenhista (principiante e seu auxiliar) faça a re-colagem, dando melhor apresentação gráfica em alguns aproveitáveis...”. Em 11 de dezembro daquele ano, portanto dois meses após a conclusão do envio dos tais envelopes, Nássara faleceu aos 87 anos, na sua residência, logo após ler o jornal, como fazia todas as manhãs. Reunindo todos os desenhos enviados, contam-se mais de 100 originais, muitos deles pouco conhecidos do público. É a partir deste precioso acervo que está sendo organizada uma exposição especial sobre o centenário do artista, a qual estará em cartaz de 14 de dezembro a 6 de fevereiro de 2011, no Centro Cultural Justiça Federal, na Cinelândia, Centro do Rio, e que terá como curador o próprio Jorge de Sales. Lá, bem ao alcance do público, estarão expostos manuscritos, fotos e desenhos.


Chico Anísio, João Goulart, Noel Rosa com Wilson Batista (à direita, em cima) e Pixinguinha com Radamés Gnattali.

Um retrato tardio de Santos Dumont Parceiro de Jorge de Sales na organização da exposição e admirador da obra de Nássara, o cartunista Zé Roberto Graúna também dá seu depoimento sobre sua relação com o artista e a importância de sua obra. “No momento em que passei a levar mais a sério a possibilidade de pesquisar a caricatura e o desenho brasileiros, consegui, numa antiga lista telefônica, os contatos do Nássara. Não tive dificuldades em falar com ele e marcar um encontro. Eu, que já tinha em mãos Nássara Desenhista, obra do caricaturista e pesquisador Cássio Loredano editada pela Funarte, usei como descul-

pa para aquele encontro, justamente, a possibilidade de ter meu exemplar autografado. O brilhante caricaturista, então, marcou o nosso encontro na extinta lojinha da Funarte, que ficava na Rua México, no Centro do Rio”. Com sua bengala e vestido de branco, o artista chegou pontualmente ao local, e fez daquela tarde uma festa. Autografou o livro de Graúna e os de outros freqüentadores da loja, que não demoraram a reconhecê-lo. “Não me esqueço da sua frase ao se despedir: ‘É essa juventude que mantém minha alegria de viver’, disse. Depois, tive a oportunidade de vê-lo mais três

vezes. Uma, na Redação de O Pasquim, enquanto batia um papo com o caricaturista Amorim; outra, numa exposição em homenagem ao Álvaro Cotrim, o Alvarus, na Caixa Econômica Federal, onde pude registrar fotos interessantes com ele, Lan, Mendez e o Jorge de Sales. A última, na esquina das Ruas da Carioca e Uruguaiana, quando conversamos sobre Chico Caruso, O Globo e Mauricio de Souza. Todos esses encontros ocorreram entre 1988 e 1990. Apesar de ter recebido algumas cartas posteriores do mestre, não mais o vi pessoalmente”, recorda Zé Roberto Graúna. O cartunista revela uma passagem peculiar, e emocionante, de sua relação com Nássara. “Quando o convidei para participar de uma exposição do Instituto Cultural de Aeronáutica, em 1993, ele me

respondeu, numa simpática carta, que não poderia, já que nunca havia desenhado Santos Dumont, que seria o tema central dos trabalhos. Devido ao prazo curto, não teria tempo de entregar o trabalho. A mostra aconteceu e a vida seguiu normalmente. Até que, em 1995, o Museu Nacional de BelasArtes montou a exposição Nássara Caricaturas, apresentando dezenas de desenhos inéditos do artista. Não pude ir à inauguração, mas na mesma semana fui até lá e vibrei quando vi a belíssima caricatura de Santos Dumont exposta com destaque na entrada da sala. Apreciei atentamente todos os desenhos e deixei um recado no livro de assinaturas, parabenizando-o pela mostra, sem deixar de citar especialmente o maravilhoso desenho que retratava o aeronauta brasileiro.” Encerrada a exposição, que ficou em cartaz por dois meses, veio a surpresa: “Recebi uma ligação pedindo a minha presença no Museu o quanto antes. Lá, fui surpreendido pela diretora Mônica Xexéo ao ser informado de que Nássara havia doado todas as obras ao Museu. Todas, menos uma. A caricatura de Santos Dumont! Esta ele havia recomendado que deveria ser entregue a mim. Nem acreditava que dentro daquele pacote cuidadosamente preparado pelos profissionais do Museu estava a tão cobiçada caricatura de Santos Dumont. E desenhada pelo Nássara! Ela mede 30 x 48 cm, é colorida e finalizada a guache em papel canson. Na cena, vemos o inventor brasileiro voando, graças a uma hélice na mão direita, enquanto leva na outra uma bandeira do Brasil. Ao centro, em destaque, vemos a Torre Eiffel, imponente, com a bandeira da França bem no alto; à direita, um passarinho entoa a frase ‘Viva Santos Dumont’! A obra representa bem toda a genialidade do caricaturista.” Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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RETROSPECTIVA DESENCAIXE, 2008. XILOGRAVURA 17,5 X 27,5 CM

DIVULGAÇÃO

A arte de Rubem Grilo, gravada na História da Xilogravura no Brasil A exposição Rubem Grilo – Xilográfico (1985 a 2010), na Caixa Cultural São Paulo, mostra a riqueza e originalidade da obra do artista, com um passeio por seus 25 anos de produção. POR PAULO CHICO A Caixa Cultural São Paulo abriga de 23 de outubro até 28 de novembro a exposição Rubem Grilo – Xilográfico (1985 a 2010). A mostra, que já passou pelo Rio de Janeiro e por Salvador, tem curadoria do próprio artista, e é um passeio pelos trabalhos que realizou nos últimos 25 anos, com o foco prioritário na produção mais recente de um dos mais importantes xilogravadores brasileiros. Nela, são apresentadas 132 34

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obras, sendo 106 xilogravuras, seis matrizes e 20 colagens, a maior parte inéditas e de tamanhos variados. A prevalência das xilogravuras entre as obras expostas revela a preferência do artista pela técnica. “Escolhi a xilogravura pelo fato de ela ser simples, direta, quase rudimentar, e me permitir o envolvimento com duas experiências básicas e complementares: o desenho e a gravação. E optei pelo preto-e-branco, na xilogravura, pelo fato de a cor já ser suficien-

temente capaz de comover. O preto possui a neutralidade para visualizar o que foi gravado. Não se trata de uma escolha nostálgica, mas tem a ver com uma visão de mundo, com a concentração em mim mesmo, propiciada pela intensidade da prática manual e do olhar, sempre em busca do autoconhecimento, por meio da dilatação da experiência”, explica o artista. A mostra abrange fase de grande autonomia e liberdade produtiva, revelando um Rubem Grilo mais profundo e

amadurecido. O público tem a rara oportunidade de ver uma seleção de obras cujos temas e abordagens ganham ampla densidade e força dramática, com contornos filosóficos. Paralelamente ao mergulho atirado nas principais questões humanas, o seu processo criativo remete ao fato plástico mais essencial: o pensamento gráfico na construção e significação do espaço. Rubem Campos Grilo já realizou cerca de 60 mostras individuais e participou de mais de 100 coletivas no


Brasil e no exterior, entre elas duas Bienais de São Paulo (1984 e 1998). Ele nasceu em Pouso Alegre, Minas, em 1946. Em 1971, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde realizou as primeiras xilogravuras. Ele emprestou seu talento ao jornalismo: ilustrou as páginas de importantes jornais, entre os quais Opinião, Movimento, Pasquim, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo. Em 1985 realizou para o projeto gráfico de O Globo as vinhetas utilizadas na agenda cultural e no horóscopo. “Na imprensa ocorreu o começo do amadurecimento. O trabalho começa somente quando você descobre uma razão nele. Não é quando se faz um desenho, é quando esse desenho se converte numa coisa significativa. Ali, sempre havia um tema proposto, um desafio que vinha de fora. O jornal foi meu tempo de formação. Queria firmar uma certeza, ganhar convicção. O trabalho era raivoso, e eu era raivoso comigo também. A partir da década de 70, durante 15 anos, colaborei com a imprensa alternativa, que era um veículo de oposição aos governos militares brasileiros. Essa trincheira de certa maneira aprofundou a urgência sobre o trabalho. Passada essa fase, porém, quis desenvolver um trabalho mais autoral, mais de dentro”, conta o artista. Em 1985, ele lançou o livro Grilo: Xilogravuras. Em 1990, recebeu o segundo prêmio da Xylon Internacional, Suíça; em 2002, o Prêmio Golfinho de Ouro, concedido pelo Conselho Estadual de Cultura do Estado do Rio. Grilo tem trabalhos publicados em revistas especializadas, como Graphis e Who’s Who in Art Graphic, ambas da Suíça; Novum Gerbrauchsgrafik, da Alemanha; Print, dos Estados Unidos; e Idea, do Japão. Como curador, realizou as exposições Impressões/Panorama da Xilogravura Brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre (2004); Pensar Gráfico, no Paço Imperial (1998); e o evento Mostra Rio Gravura (1999), que reuniu 70 exposições em 45 instituições culturais da cidade, expondo 5 mil gravuras. O vasto leque de repertório de Grilo, em especial o interesse por plantas e animais, tem sua explicação lógica. Em 1969, Rubem formou-se em Agronomia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropédica. O início da formação artística ocorreu um 1970, quando teve aulas de xilogravura com José Altino, na Escolinha de Arte do Brasil. No ano seguinte, estudou na Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro por dois meses. Nesse período, freqüentou assiduamente a Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional e conheceu a obra de gravadores brasileiros, como Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi. Com a orientação de outros mestres, como Lênio Braga e Iberê Camargo, mergulhou no aprendizado técnico. Passou, então, a ser esculpido o talento de Rubem Grilo, que tem gravado, em definitivo, seu nome na arte da xilogravura.

CENTÉSIMA ILUSTRAÇÃO DE RUBEM GRILO PARA CRÔNICA DE FERREIRA GULLAR NA FOLHA DE S.PAULO, PUBLICADA EM 22 DE NOVEMBRO DE 2009.

A obra, na análise do crítico Gullar Atualmente, Grilo ilustra aos domingos a crônica de Ferreira Gullar no caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Jornalista, poeta, escritor, teatrólogo, crítico de artes plásticas e também pintor, Gullar dedicou a Grilo um de seus textos, intitulado Xilo é coisa mental, o qual ajuda a entender a riqueza da xilogravura e as muitas especificidades da obra do artista mineiro: “As suas gravuras, como criações artísticas que são, provam que ninguém pode imaginar que os homens e animais que vemos nelas sejam, de fato, expressão verdadeira de sua respectiva essência ou a realidade do que efetivamente são – e não havíamos percebido. Nada disso! Nem foi essa,

creio, a intenção do artista ao inventálos. Por que os fez, como os fez, isso não sei explicar. E nem importa, já que a expressividade deles e dos elementos gráficos que os constituem fazem-nos ‘reais’. De uma realidade própria ao universo imaginário da arte”, avaliou Gullar, seguindo em sua análise. “Rubem Grilo começou a gravar em 1971, mas tudo o que fez durante aquele primeiro ano – cerca de trezentas gravuras – ele o destruiu. A sua obra, segundo ele, começa em 1972, pois foi a partir do dia em que passou a fazer ilustrações para jornal que sua gravura tomou o rumo certo. É que, então, passou a criar dentro dos limites impostos pelos temas que lhe eram dados e pelo público a que se dirigia. Esse compromisso com a imprensa dura até 1984, quando terminou a ditadura militar e, então, Grilo considerou que não havia mais razões para trabalhar como ilustrador de temas jornalísticos. Aí começa uma nova fase de seu trabalho, que já àquela altura se definira como um modo muito pessoal de expressar-se através da xilo. As gravuras dessa data trazem as

marcas que as distinguem e que já faziam de seu autor um dos mais originais gravadores brasileiros”. Gullar conclui que a experiência desse gravador é rica e complexa, mesmo porque não se limita ao exercício da exploração apenas intuitiva da linguagem gráfica, pois, se é verdade que a intuição desempenha aí um papel essencial, é certo também que se faz acompanhar de uma constante reflexão do artista sobre a significação do seu trabalho e os fundamentos da gravura como expressão atual na sociedade contemporânea: “O que é relevante neste caso é que a reflexão não se faz em abstrato, apenas como teoria, mas como prática, em função da própria criação gráfica. E não poderia ser de outro modo num artista como Rubem, para quem a realização artesanal tem tamanha importância, uma vez que é, ao gravar, ao trabalhar sobre a placa de madeira, que ele de fato leva a obra a sua plenitude. O desenho sobre o papel dá início ao processo criador, enquanto a impressão após a chapa gravada é a conclusão – o resultado final do trabalho.”

SEM TÍTULO, 2009. COLAGEM 23 X 37CM

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RETROSPECTIVA A ARTE DE RUBEM GRILO

LINEAR I, 2008. XILOGRAVURA 17X16,5 CM GATINHOS DE ESTIMAÇÃO, 2003. XILOGRAVURA 23X33CM

“Idéia pura, sem excessos, e que coabita com o barroco” Adriana Maciel, artista plástica que realizou, nos últimos anos, diversas mostras individuais e, em 2007, recebeu o Prêmio Projéteis Funarte de Arte Contemporânea 2007–2008, ajuda a compreender o processo criativo de Rubem Grilo. “Há nele um amplo leque de liberdade de criação, que lhe possibilita avançar em territórios díspares, com a mesma desenvoltura e consistência. O humor, a solidão, a densidade do drama humano, a construção de uma idéia pura sem excessos, que coabita com o barroco. A ordem intrínseca desses diálogos é que se prevaleça a inteligência. Nesse universo tudo é permitido, quando se trata de criar. O artista chega à maturidade, com o desembaraço típico de uma criança. Criou para si um dicionário que

permite a linguagem de um mundo de personagens. Há plantas, bichos e um sistema gráfico onde os diversos elementos se combinam”, aponta ela, que também descreve parte desse processo de criação. “Rubem tem uma curiosidade extremamente aguda pelas coisas do mundo. Ele pode passar horas lendo teses científicas sobre a formação da galáxia, analisando plantas e observando comportamentos e biótipos. Ao mesmo tempo, desenvolve visão aguda sobre a sociedade, a literatura, o cinema, a música e a história. Esse perfil talvez seja o elemento que mais possibilitou a ele a construção de seu universo, tão particular e abrangente. Pois a obra é a soma de todos os detalhes da personalidade de um artista”, conclui Adriana Maciel.

GNOSIS, 2005. MATRIZ 45 X 62 X 2 CM. DESENHO E GRAVAÇÃO.

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BAD BOY, 1998. XILOGRAVURA 23 X 31CM

COSMOS, 2008. XILOGRAVURA 14,8 X 19,9CM


ARTE

RUBENS O criador do direito de copiar Primeiro artista a contar com a proteção dos direitos autorais, o pintor alemão Peter Paul Rubens reproduzia as próprias obras para divulgar seu trabalho e aumentar sua receita. POR SIBELE OLIVEIRA A pirataria vem ocupando espaço cada vez maior na imprensa mundial pela crise que tem gerado nos mais diversos setores da economia. Longe de ser um problema atual, as artes plásticas e gráficas já eram alvo de fraudadores há muitos séculos. Mesmo em épocas longínquas, os artistas se revoltavam ao ver a originalidade de suas obras usurpada. Foi o que aconteceu com o pintor e ilustrador alemão Albrecht Dürer (1471-1528), que regularmente se deparava com reproduções grosseiras de suas obras gráficas e, por conta disso, perdia um volume significativo de vendas. Como nos dias de hoje, ele até tentava processar os copiadores, mas não conseguia sequer encontrá-los. Uma história diferente viveu o reconhecido artista barroco alemão Peter Paul Rubens (1577-1640), cujo trabalho foi exposto recentemente em Fortaleza, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, na mostra Rubens e Seu Ateliê de Gravura, onde os visitantes puderam apreciar 56 gravuras do mestre. Bem relacionado nas cortes reais, tanto pelo reconhecimento artístico quanto por ser nomeado pela Casa Real espanhola para cuidar informalmente de questões diplomáticas em outros reinos, ele aproveitava as ocasiões e tratava do assunto da proteção ao direitos autorais pessoalmente com os reis da Espanha, França, Inglaterra e Holanda. Como fruto dessa iniciativa, ele foi o primeiro artista a obter o privilégio real que vetava a cópia de suas obras. “Uma vez que não existia uma lei do direito do autor, Rubens pedia a proteção do rei. Esta proteção era para as gravuras, cujas imagens não podiam ser copiadas, sob o perigo de uma infração contra a determinação do rei, o que era muito mais grave do que uma simples infração contra um artista. Rubens colocava a frase ”cum privilegius regis” e, com isto, afastava os copiadores”, conta Pieter Tjabbes, curador da mostra. Cópias autorizadas

Embora sua obra estivesse a salvo dos contraventores, Rubens não estava satisfeito por vê-la guardada a portas fechadas em palácios e igrejas, e parte restrita a coleções particulares. Queria torná-la mais acessível ao público; para isso, teve a

idéia de convocar jovens gravuristas talentosos que concordassem em fazer a transposição de seus quadros para gravuras, sob sua supervisão. Ao produzir uma espécie de catálogo de amostras, o artista não apenas se protegia de reproduções malfeitas, mas também criava uma vitrine para a divulgação do seu acervo, que além de enaltecer suas qualidades artísticas, aumentava substancialmente o número de encomendas. “Rubens queria mostrar para o mundo que sua obra pintada era de altíssima qualidade, quantidade e diversidade. Assim, ele podia apresentar para futuros clientes exemplos do seu trabalho e, ao mesmo tempo, mostrar para outros artistas como ele era genial e disseminar sua fama pela Europa”, diz Pieter Tjabbes. Católico praticante, Rubens costumava pintar cenas bíblicas, além de figuras da mitologia greco-romana, acontecimentos históricos e paisagens. Seu livre trânsito pelas diversas camadas da sociedade pode

ser conferido nos retratos da aristocracia, como em A Educação de Maria de Médici e na reconstituição de festas populares, exemplificada em A Quermesse. No ateliê do artista, seus discípulos não produziam meras réplicas dos quadros originais; ao contrário, as gravuras eram dotadas de um valor artístico e acabamento estético diferenciados. O trabalho permeado por minúcias não requeria somente habilidade e prática, como também exigia meses de dedicação, o que desmotivava a ação dos copiadores. Rubens não admitia que a idéia central fosse deixada de lado durante a confecção das gravuras, mas permitia que cada gravurista imprimisse seu estilo. O fato de as gravuras serem inspiradas nos quadros não excluía a originalidade de um ou outro, tanto que Rubens morreu bem-sucedido e cercado de prestígios. “Traduzir um quadro enorme e colorido para uma gravura pequena em branco e preto é uma interpretação artística, diferente de fotografias ou outras reproduções. O artista que interpretava a obra, às vezes tinha a liberdade de modificar a composição para funcionar em escala menor. Rubens também pedia para modificar certos detalhes ou até a composição, se julgasse necessário, para ver como ficava. Para ele, o que valia era a idéia artística, que pode evoluir na cabeça de quem cria: uma versão nova, portanto. As gravuras eram obras de arte em si. Em momento algum disputavam com os quadros. Representavam a oportunidade de conhecer a obra do artista, mas nada tirava o impacto de um encontro com um quadro original”, afirma o curador. Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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CENTENÁRIO FOTOS: DIVULGAÇÃO

Autor de biografia de Adoniran Barbosa, que teria completado 100 anos em 2010, destaca o perfil de cronista popular que marca a obra do cantor e compositor. Embora festejado com livro e shows, o centenário do artista foi esquecido pelas escolas de samba do Grupo Especial de São Paulo. Pura ironia: elas desfilam no sambódromo que leva seu nome. POR PAULO CHICO Nascido no dia 6 de agosto de 1910, em Valinhos, SP, João Rubinato teve muitas faces. Cantor, compositor, humorista e ator. Acima de tudo, um cronista popular de seu tempo. Criador de inúmeros personagens, foi com um deles que se tornou conhecido do grande público. Sob o nome artístico de Adoniran Barbosa, soube descrever com delicada poesia e humor desconcertante o cotidiano das classes populares de São Paulo. Este ano, o artista teria completado 100 anos. Apesar de emprestar seu nome ao sambódromo paulistano, no Anhembi, foi esquecido no Carnaval. Nenhuma das 14 escolas do Grupo Especial lhe prestou homenagem nos desfiles de fevereiro. Acusada de ser o ‘túmulo do samba’ por Vinícius de Moraes, parceiro de Adoniran em Bom Dia, Tristeza, teria São Paulo enterrado de vez o seu maior sambista? No Rio, o centenário de Noel Rosa, também comemorado este ano, foi tema do enredo da Vila Isabel. O ‘esquecimento’ das agremiações paulistanas pode ter ocorrido em respeito às regras do negócio, segundo as quais os patrocínios são o primeiro critério na definição dos temas dos desfiles de carnaval. “Todas as homenagens que forem feitas a Adoniran e aos outros ícones de sua geração, como Noel e Cartola, ainda serão poucas, diante da sua importância para a cultura brasileira. Mas acredito que o centenário de Adoniran foi bem lembrado não só em São Paulo, mas em todo o Brasil. Tivemos várias homenagens em forma de shows, com artistas dos mais variados, e reportagens. A imprensa esteve atenta à efeméride. Acho que o apresentamos a muitos jovens que não o conheciam – e que foram fisgados por sua figura e obra”, minimiza Celso de Campos Jr., jornalista e autor de Adoniran, Uma Biografia, livro de 2004, relançado pela Editora Globo este ano. Com uma trajetória profissional quase tão diversificada quanto a de João Rubinato (atuou como advogado, poeta, radialista, letrista e ator), Mário Lago (1911-2002) foi preciso ao 38

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definir o colega. “Adoniran foi um repórter popular ”, disse o co-autor do clássico Ai, que Saudades da Amélia. “Ele tinha um apurado senso de observação, a capacidade de extrair poesia das situações e dos lugares mais improváveis, como um simples cortiço ou um alagamento. Adoniran está em uma liga própria, não há outros como ele. Podemos dizer, para não sermos injustos com nomes da crônica paulistana que também têm o seu valor, que ele foi o mais popular dos cronistas paulistanos. Nos legou as suas observações em música e versos, facilitando a recepção e a propagação das suas mensagens. Não há quem não conheça Saudosa Maloca ou Trem das Onze”, analisa Celso de Campos Jr. descobriu a sua veia cômica como ator. Essa e outras revelações surgiram na pesquisa de Celso de Campos Jr. “Seus personagens do rádio, especialmente o Charutinho, faziam um incrível sucesso nos Anos de Ouro e ficaram na memória das pessoas com mais idade. Tanto que, ao entrevistar a turma da velha guarda, quando preparava o livro, muitos deles se referiam a Adoniran pelo nome de seu personagem. Além disso, também foi interessante reconstruir as verdadeiras histórias por trás de algumas músicas famosas do compositor. Encontrei reportagens e depoimentos do próprio Adoniran em que uma mesma história, como a origem do Samba do Arnesto, era contada de três, ou até quatro maneiras diferentes, dependendo da ocasião. Ele parecia se divertir ao confundir os interlocutores”, lembrou.

Temas e alvoroço Além da natureza dos temas abordados, a linguagem peculiar, praticamente inédita na música popular brasileira até então, é outro aspecto que determina o valor de sua obra. Os dramas dos desabrigados e dos engraxates e também os desentendimentos amorosos são descritos com o vocabulário típico das camadas populares – e não com a norma culta comum aos meios acadêmicos que versavam as mazelas sociais do País. É como se, na obra de Adoniran, o povo finalmente ganhasse voz própria. “A temática e a estética de Adoniran Barbosa causaram alvoroço, isso é fato. Em um primeiro momento, ao usar o português coloquial, cheio de erros e sotaques, e falar de tragédias como atropelamentos e despejos, das dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, ele causou incompreensão e até revolta entre a crítica e até entre outros sambistas mais ortodoxos. Com o passar do tempo, porém, a maioria acabou percebendo a inovação que o estilo de Adoniran representava na música e passou a reconhecê-lo como um dos

grandes”, aponta Celso de Campos Jr., destacando as denúncias de exclusão social como um dos traços marcantes da obra do sambista. A expectativa, neste ano de centenário, é pelo destino do acervo do artista. Ainda faltam patrocínios que possam preservar e, ao mesmo tempo, colocar acessível ao público documentos pessoais, a famosa aliança feita com a corda do cavaquinho, fotografias, discos, partituras, roteiros raros de programas de rádio, material recuperado do Museu da Imagem e do Som no final de 2009 e que já recebeu tratamento de preservação feito por profissionais. “Não adiantava apresentar o projeto de uma Casa Adoniran sem esse cuidado. Profissionais da Associação dos Arquivistas de São Paulo fizeram um trabalho que durou cerca de cinco meses, catalogando, organizando, separando por suportes adequados e acondicionando de forma correta todo o material. É uma espécie de inventário do que tem no acervo, um primeiro passo para a criação do museu sobre o artista”, explica Campos Jr.

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Trote nos jornalistas Sendo uma espécie de repórter de seu tempo, como Adoniran se relacionava com a imprensa? “Apesar de fazer o tipo ranzinza, que fingia se incomodar com as perguntas de jornalistas, ele tinha boa relação com a mídia. Por algumas matérias, é possível até perceber que ele se divertia em andar pela Praça da Sé na companhia de repórteres. Mas sempre mantinha a sua fama de mau. Fingia que queria desligar o gravador do jornalista, porque, como ele dizia, ‘nada do que eu falei você vai publicar mesmo...’. Essa era uma espécie de provocação”, revela o autor da biografia do artista, que confirma que em certo momento houve uma sobreposição do personagem à personalidade de João Rubinato. “Adoniran Barbosa surgiu como personagem, no momento em que ele começava a carreira de cantor e procurava um bode expiatório para seus insucessos. Encontrou outro nome, que enxergava como italiano demais para cantar sambas, e depois o trocou para o pseudônimo que ficou famoso. Ao longo da vida, porém, ambos se fundiram, e ficou impossível – até mesmo para seus familiares – separar um do outro. Em linhas gerais, podemos dizer que Adoniran emprestava a fachada cômica, e João o lado mais introspectivo à sua obra”. Diante do sucesso dos sambas de sua autoria, gravados por cantoras como Elis Regina e Gal Costa, além do grupo Demônios da Garoa, é compreensível que a maior parte das pessoas acredite que Adoniran sempre obteve êxito como cantor e compositor. Entretanto, não foi bem assim. É interessante saber, por exemplo, que sua principal atividade no período de seu auge criativo, nos anos 1940 a 1960, foi a de radioator. Adoniran queria começar a carreira como cantor, mas, dono de uma voz rouca e acanhada, não conseguiu espaço na época. Foi quando o jornalista e produtor Osvaldo Molles

Boêmio infatigável, que com freqüência chegava pela manhã à casa de beira de rua onde morou a vida toda (foto à esquerda, na página ao lado), Adoniran Barbosa fez com naturalidade um mergulho na vida da gente pobre de São Paulo, cujo dia-a-dia, inçado de dificuldades e sofrimento, ele retratou em obras imortais, como Saudosa Maloca, Samba do Arnesto e outras criações que resistem ao tempo.

Um artista de muitas faces Além de cantor e compositor, João Rubinato era um talentoso inventor de personagens, em especial para programas de rádio. Adoniran Barbosa, no qual ele praticamente se transformou em definitivo até o final da vida, foi certamente o mais popular e simbólico deles. Sempre de chapéu, paletó e gravata borboleta, representava quase uma caricatura dos imigrantes de bairros italianos de São Paulo. Uma figura pitoresca, como preferia se definir o próprio. Na prática, Adoniran transcendia, em suas manifestações artísticas, o universo da música. Como ator, além do famoso personagem Charutinho, criado e interpretado por ele na Rádio Record, na década de 1950, Adoniran chegou a fazer uma participação no clássico do cinema nacional O Cangaceiro (de 1953), de Lima Barreto, e

trabalhou em novelas da TV Tupi. Era também um artesão. Fazia miniaturas de bicicletas, trens e outros objetos, às vezes a partir de pedaços de arame, que catava nas ruas da cidade. O crítico literário Antônio Cândido foi uma das muitas personalidades ilustres que receberam um desses delicados presentes, depois de escrever o texto de apresentação para a capa do primeiro lp do compositor. Aliás, tantas eram suas atividades, que esse primeiro registro custou a sair. Apesar de já colecionar alguns sucessos, nas vozes de conjuntos como o Demônios da Garoa, a estréia de Adoniran na poderosa indústria fonográfica da época se deu tardiamente. Mesmo já registrada, Trem das Onze só foi chamar a atenção dos críticos em 1973, a partir de gravação intimista de Gal Costa, em

apresentação ao vivo no Anhembi, em São Paulo. Assim, no ano seguinte, e já aos 64 anos de idade, Adoniran finalmente gravava o seu primeiro lp, reunindo 12 de suas criações. A produção musical do disco ficou sob a responsabilidade de João Carlos Botezelli, o Pelão, seu amigo. “Conheci Adoniran como a gente deve conhecer os grandes amigos, em um bar. Ele criava melodias na hora, assim, no bar, assobiando. Começamos a conversar. E logo fiquei amigo dele”, contou Pelão. Com maior visibilidade, passou, então, a ser reconhecido o lado cronista do compositor. “Adoniran Barbosa pode ser considerado um grande cronista, na mesma linha de Mário de Andrade, Juó Bananère e Alcântara Machado. Retratava a cidade pelo que ouvia nas ruas. Transitava por todas as classes

Celso de Campos: A obra de Adoniran é cheia de ironias. sociais, freqüentava as malocas e ao mesmo tempo as festas do rádio. Retratava a enchente que levou o barracão de fulano, que não tinha pra onde ir. E o cortiço do pessoal que é derrubado pra fazer um edifício. Eu considero isso uma crítica social. Sua obra é cheia de ironias. E é mais atual do que nunca. São Paulo, até hoje, por vezes, fica debaixo d’água. E quem está fazendo samba sobre isso?”, questiona Celso de Campos Jr.

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Livros DIVULGAÇÃO/EDITORA GLOBO

No Jabuti 2010, deu jornalista na cabeça até na ficção Livros de profissionais da imprensa são destaque nas várias categorias de finalistas e vencedores da 52ª edição do Prêmio Jabuti, a mais importante láurea da nossa literatura. POR M ARCOS STEFANO

LEANDRO PAGLIARO

A Câmara Brasileira do Livro divulgou neste mês de outubro os vencedores das 21 categorias da 52ª edição do Prêmio Jabuti. Na lista de vencedores da mais importante premiação da literatura brasileira, o destaque ficou para os jornalistas. Além da já tradicional categoria Reportagem, obras de jornalistas figuraram entre os primeiros colocados de várias outras categorias, como Biografia, Capa, Comunicação e Romance. Os jurados do prêmio escolheram onze obras como finalistas da categoria Reportagem: Olho por Olho – Os Livros Secretos da Ditadura, de Lucas Figueiredo; Conversas de Cafetinas, de Sérgio Maggio; O Leitor Apaixonado,

de Ruy Castro; A Rotativa Parou, de Benício Medeiros; Eleições na Estrada, de Eduardo Scolese e Hudson Corrêa; Viagem ao Crepúsculo, de Samarone Lima; O Mundo não é Plano, de Jamil Chade; Imprensa e o Dever da Liberdade, de Eugênio Bucci; Eles Foram para Petrópolis, de Ivan Lessa e Mário Sergio Conti; Honoráveis Bandidos, de Palmério Dora; e Binladenistão, de Luiz Antônio Araujo. No final, o Prêmio Jabuti ficou com Ruy Castro (foto) e seu O Leitor Apaixonado (Companhia das Letras), obra que reúne 45 de seus artigos, publicados entre 1974 e 2007, em revistas do Rio e São Paulo e reescritos especialmente para a obra. Todos falam, direta ou indiretamente, do universo literário no Brasil e no mundo.

Foi surpreendente. Não pela qualidade indiscutível do trabalho de Castro, mas porque ele é mais conhecido por suas biografias, crônicas e obras relacionadas ao cinema, à musica popular e ao futebol. Desta vez, porém, ele revela que sempre foi um homem dos livros, pelo menos desde os quatro anos, quando aprendeu a ler em jornais, no colo do pai. Em seguida, ganhou um exemplar de Alice no País das Maravilhas. Era o começo de uma paixão que se tornaria base para sua carreira de pesquisador e jornalista. Assim, desde sua estréia como repórter, em 1967, no Correio da Manhã, Castro dedica grande parte de sua produção à literatura e, especialmente, aos escritores. E o lado humano de gente como Nelson Rodrigues, Paulo Francis e Carlos Heitor Cony, personagens com quem ele conviveu e que o inspiraram, é realmente o ponto alto da obra.

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A vida e o fim cheio de veneno de Wilson Simonal ALEXANDRE SANT´ANNA

A bela estréia de Edney Silvestre como romancista Numa manhã de sol de abril de 1961, dois meninos encontram o corpo de uma linda mulher. Ela fora morta e mutilada e abandonada às margens de um lago, numa pequena cidade da antiga zona do café fluminense. Assustados, vão à Polícia, mas tornam-se os principais suspeitos. Até que o marido da vítima, um homem frágil, confessa o crime. Mas a falta de lógica em tudo aquilo, a indiferença policial e a brutalidade do assassinato continuam a inquietar os garotos, que decidem começar uma investigação particular. Logo, recebem o apoio de um velho misterioso, expreso político da ditadura Vargas e ouvem um aviso quase profético: “Nada neste País é o que parece”. Este é o ponto de partida para as diversas reviravoltas do romance Se Eu Fechar os Olhos Agora, lançado pela Record, o grande vencedor do Jabuti na categoria Ficção. Toda a trama saiu da pena de um estreante no campo da ficção, o jornalista Edney Silvestre, que foi correspondente internacional do jornal O Globo e da TV

Ricardo Alexandre mostra na biografia premiada a trajetória de Wilson Simonal, da miséria ao estrelato, deste ao ostracismo.

Edney Silvestre: Experiente correspondente internacional, que cobriu o 11 de Setembro, ele fez uma vitoriosa estréia na ficção, conquistando o Prêmio Jabuti de romance de 2010.

Globo em Nova York, entre os anos de 1991 e 2002. Entre muitas de suas coberturas marcantes estão os atentados do 11 de Setembro às torres do World Trade Center, quando foi o primeiro jornalista brasileiro a chegar ao local; uma série de reportagens no Iraque; e a passagem de furacões pela Flórida e na América Central. Atualmente, Silvestre trabalha no Rio, de onde faz matérias para o Jornal Nacional, o Bom Dia Brasil e o Jornal da Globo, além de apresentar o programa Espaço Aberto

Literatura, na GloboNews. Toda essa experiência na vida real foi decisiva para a construção da trama de Se Eu Fechar os Olhos Agora. Com uma história envolvente, ele transita entre gêneros distintos como o policial, o histórico e o romance de formação, para trazer ao leitor uma obra de forte cunho psicológico, mas repleta de referências políticas e culturais a um dos momentos mais importantes da História recente do Brasil e que explica muito da formação da sociedade atual.

Retratar com maestria toda uma época também é um dos méritos de outro jornalista, Ricardo Alexandre, Diretor de Redação da revista Época São Paulo. Ex-repórter e crítico de música, uma de suas paixões, Alexandre é o autor do grande vencedor do Jabuti na categoria Biografia: Nem Vem que Não Tem – A Vida e o Veneno de Wilson Simonal (Editora Globo). Da miséria ao estrelato e do estrelato ao ostracismo, o livro revela a trajetória de Wilson Simonal, que ficou conhecido como a voz do País nos anos 1960 e 70. Fruto de dez anos de pesquisas e centenas de entrevistas, a obra passa por favelas, bailes do Exército, palcos internacionais, festivais de televisão e até pelos porões da ditadura militar para mostrar a força do romantismo da Bossa Nova, os excessos da idolatria e a amargura da decadência. Enfim, para tentar esclarecer como e por que o Brasil virou as costas para o cantor que se tornou o retrato de sua cultura de massa. Uma vitória justa. Mas também não seria nenhuma injustiça se outras biografias, também escritas por jornalistas e que ficaram entre os finalistas, levassem o Jabuti. É o caso de Padre Cícero, de Lira Neto, e Cabeza de Vaca, de Paulo Markun, outras obras de grande envergadura, que mostram a força cada vez maior dos jornalistas nessa área.


Os finalistas da categoria Reportagem Os vencedores do livro do ano, tanto de ficção quanto de não-ficção serão divulgados pela CBL em novembro. Até lá, vale conhecer os finalistas da categoria Reportagem, obras representativas do melhor jornalismo brasileiro na atualidade. ser higienizados e as escolas devem ter professores capacitados. Um processo que passa pelo claro estabelecimento das fronteiras com a indústria do entretenimento, governos, poder econômico e entidades corporativistas. O título do livro é uma paráfrase de um estudo de Barbosa Lima Sobrinho publicado em 1926: A Imprensa e o Dever da Verdade.

A ROTATIVA PAROU Benício Medeiros Civilização Brasileira 216 páginas

Redações de jornais costumam ser um mundo à parte, único. Porém, o senso comum de que jornalistas não devem escrever sobre jornalistas, a não ser para elogiar, claro, atrapalha o registro desses ambientes, que, além de contar histórias, fazem História. Benício Medeiros foge à regra para, com equilíbrio, falar sobre um momento do qual foi testemunha: os últimos dias da revolucionária Última Hora, de Samuel Wainer. Numa narrativa permeada por lembranças, ele fala sobre o clima dentro e fora do jornal, sobre o mito Wainer e polemiza na hora de discutir as inovações normalmente atribuídas ao veículo e o papel dos donos e profissionais da imprensa na época.

publicando as mensagens aos domingos, terças e quintasfeiras, numa página chamada Correspondência. Os assuntos eram os mais variados, de reflexões sobre economia e política a observações sobre os locais onde estavam trabalhando, fosse o interior do Brasil, fosse algum grande apresentado ao público no corajoso trabalho investigativo empreendido pelos veteranos jornalistas Palmério Dória e Mylton Severiano, o Myltainho. Honoráveis Bandidos é uma denúncia bem-humorada e sem meios-termos dos escândalos, armações políticas, jogos de interesses e desvarios no Brasil das últimas décadas, feito a partir da trajetória de um dos mais fortes nomes da vida pública nacional.

País que fossem campeões de singularidades, grotões de verdadeiras mazelas nacionais. Em pouco mais de 30 dias, trouxeram um retrato ora curioso, ora lamentável do Brasil. Inicialmente publicado em uma série de reportagens, o material transformou-se em livro, acrescido de um relato pessoal dos autores sobre as dificuldades, vitórias e decepções enfrentadas nesse trabalho.

centro europeu. Eles Foram para Petrópolis faz uma seleção desse material e reúne de forma original esse experiência pioneira. O resultado aparece em textos saborosos que mesclam o público com o privado, as frustrantes consultas ao saldo bancário, com revelações sobre o trabalho de dois grandes nomes do jornalismo.

O LEITOR APAIXONADO VIAGEM AO CREPÚSCULO

BINLADENISTÃO

Samarone Lima Casa das Musas 232 páginas

Luis Antônio Araújo Editora Iluminuras 304 páginas

Às vésperas do cinqüentenário da Revolução Cubana, nos meses de dezembro de 2007 e janeiro de 2008, o jornalista Samarone Lima esteve em Cuba para um passeio um tanto quanto atípico. Socialista e admirador do regime, ele se colocou o desafio de fugir dos maiores hotéis e dos pacotes turísticos para vivenciar o cotidiano da população comum, especialmente a mais pobre. O resultado é um registro ímpar e bastante pessoal, por tantas vezes até surpreendente, dos últimos dias de Fidel Castro no poder. Não do ponto de vista político e macroeconômico, mas da realidade enfrentada pelos cubanos em sua labuta diária, no mercado- negro, nas frustrações, impasses, proibições, mas também muitos sonhos.

A IMPRENSA E O DEVER DA LIBERDADE Eugênio Bucci Editora Contexto 144 páginas

Tema que pegou fogo na reta final da campanha presidencial deste ano, a liberdade de imprensa é discutida com propriedade e objetividade por um profissional que conhece as diferentes trincheiras nessa guerra. Jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Eugênio Bucci foi figura importante no Governo Lula quando, entre 2003 e 2007, foi Diretor da Radiobrás. Com termos fortes e argumentos contundentes, ele defende por que o jornalismo deve ser livre, assim como hospitais devem

nada mais de 40 combatentes de cada lado e foi silenciosa e invisível. Produziu, porém, dois registros únicos do período: Brasil Nunca Mais, uma denúncia das atrocidades das Forças Armadas no poder e a obra que o Exército produziu como resposta a esse documento, o Orvil. Em excelente trabalho de investigação, o jornalista Lucas Figueiredo escancara a história desses livros e acaba com a conversa fiada de que o Orvil seria uma lenda, uma vez que nunca foi publicado comercialmente e quase todas as suas cópias foram destruídas. Além de acabar com mitos, ele revela lances surpreendentes dessa guerra estratégica de informações, como aquele em que um grupo de religiosos e advogados conseguiu sair do Superior Tribunal Militar, em Brasília, um dos locais mais vigiados do período, com toneladas de documentos, sem levantar suspeitas.

O MUNDO NÃO É PLANO Jamil Chade Com fotos de Juca Varella Editora Saraiva 264 páginas

Atualmente, em todo o Planeta, mais de 1 bilhão de pessoas enfrentam a tragédia silenciosa da fome. Silenciosa, porque não têm como nem com quem reclamar e, na hora de resolver a questão, têm seu drama ignorado. O correspondente Jamil Chade e o fotógrafo Juca Varella viajaram o mundo para contar o drama dessas pessoas, mas não se limitaram somente ao registro da dor, como se isso só não fosse terrível. Nessa obra, refletem e trazem informações sobre o oculto jogo de interesses nas Nações Unidas e os meandros da desfuncionalidade de organismos e agências internacionais, revelando os motivos pelos quais tanta gente carece do básico em um mundo que produz enorme riqueza.

HONORÁVEIS BANDIDOS Palmério Dória e Mylton Severiano Geração Editorial 208 páginas

OLHO POR OLHO OS LIVROS SECRETOS DA DITADURA Lucas Figueiredo Editora Record 210 páginas

Durante a ditadura militar no Brasil, uma das batalhas mais secretas e acirradas envolveu

Em 2008, o Senador José Sarney voltou a ser manchete, principalmente das páginas policiais, quando revelada a organização criminosa da qual seu filho supostamente faria parte. Para não deixar o filho ir para a cadeia, ele teve de disputar no ano seguinte a Presidência do Senado: “Foi preciso colocar a cara para bater”. Pela apresentação já é possível ter idéia do que é

Quando os primeiros mísseis Tomahawk atingiram o Afeganistão por ordem do Presidente George W. Bush, em 7 de outubro de 2001, Luís Antônio Araújo era um dos poucos repórteres brasileiros na região do conflito. Enviado especial do jornal gaúcho Zero Hora, ele procurou mostrar o outro lado dessa guerra: o sofrimento da população local, encurralada entre os Exércitos norte-americanos e os combatentes talibãs e da Al Quaeda. Essa experiência fascinante e dolorosa de 29 dias foi o ponto de partida para Binladenistão, obra em que o jornalista revela os bastidores dos conflitos ocorridos desde 2001 e reflete sobre o que deu errado no Afeganistão, no Paquistão e em outros locais no qual se trava a chamada “guerra contra o terror”.

ELEIÇÕES NA ESTRADA Eduardo Scolese e Hudson Corrêa Publifolha 280 páginas

Como será a campanha eleitoral no Município com o pior índice de educação básica do Brasil? Quais serão as promessas na cidade de pior renda per capita? Na localidade líder em desmatamento como funciona o jogo político? Em um lugar totalmente dependente de um programa como o Bolsa Família, como se dá o voto de cabresto? Em 2008, os repórteres Eduardo Scolese e Hudson Corrêa, da sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo mapearam 30 Municípios de Norte a Sul do

CONVERSAS DE CAFETINAS Sérgio Maggio Arquipélago Editorial 160 páginas

Sexo é sempre um assunto instigante, mas o jornalista Sérgio Maggio encontrou um ponto de vista bastante inusitado para falar do que acontece na intimidade nacional. Pelas ladeiras de Salvador e nas ruas estreitas e esquinas das cidades do interior baiano, ele foi atrás de mulheres que protagonizam a vida nas alcovas. Não prostitutas, mas aquelas que mandam nesse mundo, comandam tanto o prazer quanto a dor. Não cafetinas, porque elas não gostam de ser tratadas dessa forma, mas “donas de casa”, como preferem. O resultado são oito animados perfis dessas “donzelas”, recheados de boas histórias e reveladores de um Brasil que tantos preferem negar, apesar de aproveitar.

ELES FORAM PARA PETRÓPOLIS Ivan Lessa e Mário Sergio Conti Companhia das Letras 264 páginas

Normalmente, a correspondência virtual pode ser classificada de duas maneiras: aquela reveladora, com segredos ou intimidades dos interlocutores, ou o lixo virtual, formado a partir de spams e mensagens toscas, carregadas de gírias e erros. Nada que chegue nem perto daquilo que Ivan Lessa e Mário Sergio Conti trocaram entre abril de 2000 e maio de 2001. Nesse período, ambos trocaram cartas por meio do portal Universo On Line,

Ruy Castro Companhia das Letras 352 páginas

Textos curtos e ágeis, cheios de bom-humor e informações. O Leitor Apaixonado não levou o Jabuti de melhor livro na categoria Reportagem à toa. A obra é um dos exemplos bem acabados do envolvente e singular jornalismo cultural praticado no Brasil nas últimas

décadas. São 45 textos de Ruy Castro, publicados entre 1974 e 2007 em revistas e jornais do Rio e de São Paulo, e selecionados por sua mulher, a artista plástica Heloisa Seixas. Todos foram reescritos para o livro. Mas nada de ensaios puros e simples, resenhas e críticas. São textos pessoais, que enfatizam o lado humano e as experiências travadas entre o jornalista-escritor e diversas personalidades. Assim, Castro conta seus muitos encontros com Nélson Rodrigues, Paulo Francis e Carlos Heitor Cony. Também relata episódios marcantes da imprensa, como a destruição e fechamento do jornal Correio da Manhã, e comenta a literatura e seus protagonistas, de diversos países e épocas, capazes de oferecer tantos prazeres à luz de um bom abajur.

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Livros

DIVULGAÇÃO

A morte de Nestor Moreira, o começo do fim de Getúlio Obra do jornalista e escritor Roberto Sander mostra como o assassinato do repórter de A Noite, em maio de 1954, conturbou o ambiente político até desembocar, três meses depois, no suicídio do Presidente. POR CLAUDIA S OUZA O jornalista e editor Roberto Sander está lançando o livro O Crime que Abalou a República – Violência, Conspiração e Impunidade no Crepúsculo da Era Vargas (Maquinária Editora) sobre a morte do repórter Nestor Moreira, na década de 1950, em decorrência de brutal espancamento por um policial dentro de uma delegacia do Rio. O episódio deu início a uma seqüência de acontecimentos que culminaram no suicídio do Presidente Getúlio Vargas. Na pesquisa dos fatos, Roberto Sander contou com a colaboração de experimentados jornalistas, como Alberto Dines e Domingos Meirelles, que assina a orelha da publicação, e do Profes-

JORNAL DA ABI - COMO SURGIU A IDÉIA DE ESCREVER O LIVRO?

Roberto Sander - Foi justamente a partir de reportagem de Ubiratan Solino no Jornal da ABI na qual é contada a história de três mártires do jornalismo: Tim Lopes, Vladimir Herzog e Nestor Moreira. Confesso que não conhecia a história de Nestor, morto após ser espancado brutalmente pelo guarda-civil Paulo Ribeiro Peixoto, mais conhecido como Coice de Mula, no interior do 2º Distrito Policial de Copacabana, em maio de 1954. Como autor, estou sempre em busca de histórias que não são conhecidas pelo grande público, mas que tiveram relevância num dado momento histórico. Como disse Maurício Azêdo, o Presidente da nossa ABI, numa frase que está na quarta capa do livro, esse episódio detonou um dos mais impressionantes movimentos de repúdio à violência policial no País. Sem contar que o crime foi capitalizado sem qualquer pudor pela oposição, sobretudo por Carlos Lacerda, para atacar o Presidente Getúlio Vargas, o que contribuiu significativamente para o clima de turbulência que culminou com a morte do presidente em agosto de 1954. Em última análise, através da história de Nestor Moreira, procurei retratar talvez o momento mais dramático na história da República. JORNAL DA ABI - COMO E EM QUANTO

sor Marco Morel, também jornalista, agora devotado principalmente ao magistério de nível superior. Em 12 de maio de 1954, Nestor Moreira, repórter do jornal A Noite, após sair de um bar, discutiu com o motorista de táxi que o conduzia para casa em Ipanema, por discordar do valor da corrida. O desentendimento levou-os à 2ª Delegacia de Polícia de Copacabana, onde era lotado o policial Paulo Ribeiro Peixoto, conhecido como “Coice de Mula” pela usual truculência. Conduzido ao xadrez, Nestor Moreira foi revistado pelo policial. Ao receber os documentos de volta, reclamou que faltavam mil cruzeiros em sua carteira. O repórter foi então surrado pelo policial, e

morreu 11 dias depois em conseqüência dos golpes. O impacto da notícia da morte do jornalista causou comoção nacional. Cerca de 200 mil pessoas acompanharam o enterro do corpo de Nestor Moreira e exigiram mudanças políticas e o fim da impunidade. A imprensa, unida em torno do fato, acentuou o clima de turbulência que culminou no suicídio de Vargas. Figuras de relevância histórica como Carlos Lacerda, Samuel Weiner, Tancredo Neves, João Goulart se entrelaçam na sucessão de eventos que marcou uma das mais importantes fases da História do País. Com passagem pelas Redações de O Globo, TV Globo, Sport TV, entre outras, Roberto Sander publicou sete livros ao longo dos 23 anos de carreira, entre os quais Anos 40 – Viagem à Década sem Copa e O Brasil na Mira de Hitler. No depoimento a seguir, Sander falou sobre a obra, que realça a figura de Nestor Moreira na História da imprensa e do País.

fartamente o caso, livros sobre o período e depoimentos de jornalistas. Foram aproximadamente seis meses de trabalho entre a pesquisa e a elaboração do texto.

Roberto Sander – Apenas as dificuldades naturais de um trabalho em que o rigor ao realizar a pesquisa é fundamental. Foram seis meses respirando dia e noite o livro. De outra forma, jamais conseguiria em tão pouco tempo escrever essa história.

JORNAL DA ABI - VOCÊ CONTOU COM A COLABORAÇÃO DE PESQUISADORES E JORNALISTAS PARA A REALIZAÇÃO DESTE TRABALHO. DE QUE MANEIRA ELES CONTRIBUÍRAM PARA O RESGATE DA HISTÓRIA? Roberto Sander - Muita gente participou do livro. Meu companheiro Eduardo Heleno, mestre em Ciências Políticas da Uff, me ajudou na primeira fase da pesquisa e revisou os fatos históricos mencionados. Alberto Dines apontou caminhos importantes, assim como contribuiu com uma frase na quarta capa. Lúcia Hippolito me ajudou da mesma forma, lendo os originais e também ilustrando a quarta capa com mais uma frase. Maurício Azêdo, como já disse, também escreveu uma frase depois de ler as provas. O modo entusiasmado com que recebeu o trabalho me trouxe grande motivação para seguir em frente. Domingos Meirelles também colaborou enormemente, fazendo uma revisão completa do texto e escrevendo um belíssimo prefácio. Marco Morel, filho do repórter Edmar Morel, cujas reportagens são freqüentemente citadas no livro, foi da mesma forma receptivo, relatando, inclusive, o episódio que usei para fechar o livro.

TEMPO FOI REALIZADA A PESQUISA?

Roberto Sander - Busquei fundamentalmente os jornais da época, que noticiaram 42

Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

JORNAL DA ABI - VOCÊ ENFRENTOU DIFICULDADES PARA APURAR OS ACONTECIMENTOS?

JORNAL DA ABI - APESAR DO GRANDE IMPACTO QUE PROVOCOU À ÉPOCA, O EPISÓDIO EM TORNO DA MORTE DE

NESTOR MOREIRA

ESTAVA ESQUECIDO?

Roberto Sander - Creio que sim. Pouca gente sabe quem foi Nestor Moreira. Isso foi o que mais me impulsionou. A certeza de que estava resgatando uma história forte, que retrata uma época de forma muito clara. Foi um momento muito delicado da nossa história. Um momento que explica também muito do que vivemos posteriormente. O livro mostra tudo isso. A violência policial, o clima de conspiração, a impunidade e a busca do poder de forma desenfreada, sem qualquer ética. A despeito de certas peculiaridades inerentes a um novo contexto político-econômico, é tudo muito parecido com o que vivemos até hoje. JORNAL DA ABI - VOCÊ LEVANTOU ALGUM FATO NOVO OU POUCO EXPLORADO RELACIONA-

Roberto Sander: O livro amarra episódios que marcaram a História do Brasil.

vro, é justamente esse. Ter conseguido amarrar episódios que, mesmo aparentemente sem ligação, formam uma teia que revela toda a complexidade daquele momento, repleto de episódios que marcaram profundamente a História recente do Brasil. JORNAL DA ABI - A MORTE DE NESTOR MOREIRA DESENCADEOU INÚMEROS ACONTECIMENTOS QUE CULMINARAM NO SUICÍDIO DE

GETÚLIO VARGAS. DE QUE MANEIRA O EPISÓDIO MARCOU A HISTÓRIA DO PAÍS E DA IMPRENSA BRASILEIRA, INCLUINDO FIGURAS DE DESTAQUE COMO C ARLOS LACERDA, J OÃO GOULART, SAMUEL WAINER? Roberto Sander - Além da presença, no livro, desses nomes tão importantes na nossa História recente, citaria, além do Presidente Vargas, Tancredo Neves, que era Ministro da Justiça, Osvaldo Aranha, Ministro da Fazenda, Golbery do Couto e Silva, que já conspirava a favor de um golpe de Estado, e Juscelino Kubitschek, vítima de uma articulação que visava a impedir sua posse. A história de Nestor Moreira envolve todos esses personagens reconhecidamente fascinantes. Todos eles estão de alguma forma presentes na trama. Tudo isso foi largamente explorado pela imprensa da época, o que me proporcionou trabalhar com temas altamente significativos do ponto de vista histórico. JORNAL DA ABI - VIOLÊNCIA POLICIAL, CORRUPÇÃO, CONSPIRAÇÃO POLÍTICA, SÃO TEMAS QUE PERMEIAM A NARRATIVA.

QUE OU-

TROS ASSUNTOS ENTRARAM EM PAUTA COM A

NESTOR MOREIRA? Roberto Sander - A impunidade principalmente. O último capítulo deixa isso bem claro. É quando acontece o julgamento do Coice de Mula, já em 1956. O livro abrange o período de janeiro de 1954 a julho de 1956, enfocando também a fase em que Juscelino é eleito e acontece a tentativa de impedi-lo de assumir a Presidência da República, conquistada pelo voto.

MORTE DE

DO AO CASO?

Roberto Sander - O mais importante foi percebido pelo Domingos Meirelles e apontado no prefácio. A morte de Nestor Moreira foi a oportunidade de juntar fatos aparentemente desconexos. Acho que se existe um mérito nesse li-

JORNAL DA ABI - DE QUE MANEIRA O DEBATE EM TORNO DA MORTE DE NESTOR MOREIRA PODE CONTRIBUIR PARA O CENÁRIO ATUAL DO JORNALISMO E DA POLÍTICA?

Roberto Sander - É uma forma de refletirmos sobre a importância da liberdade


JORNAL DA ABI - O ENTERRO DO CORPO DO JORNALISTA MOBILIZOU CERCA DE 200 MIL PESSOAS QUE EXIGIAM MUDANÇAS NA CONDUÇÃO DO PAÍS. N OS DIAS DE HOJE O CRIME TERIA A MESMA REPERCUSSÃO? Roberto Sander - Hoje em dia haveria também repercussão, mas não a ponto de fazer a cidade parar. Infelizmente, a violência está banalizada. O que aconteceu na época foi uma indignação generalizada, inimaginável nos dias de hoje. Até os cinemas fizeram um minuto de silêncio. Além disso, um jogo do Campeonato Carioca – Flamengo x América –, que se realizaria naquele dia, foi adiado. Tudo isso mostra o quanto o caso teve impacto. Dez por cento da população do Rio de Janeiro acompanharam o cortejo de Nestor Moreira. Proporcionalmente, é como se hoje um milhão de pessoas protestassem num caso semelhante. No máximo, umas 200 pessoas comparecem atualmente a manifestações desse tipo. Como já disse, nos acostumamos com a violência. JORNAL DA ABI - O QUE MUDOU NA IMPRENSA E NA POLÍTICA BRASILEIRA DESDE ENTÃO?

Roberto Sander - Atualmente, tudo é mais discreto. Na época, os jornais manifestavam explicitamente sua posição política. O papel de prestador de serviço dos jornais não existia. Eles eram meros veículos que expressavam os interesses dos seus proprietários. É lógico que isso permanece, mas de uma forma muito menos escancarada. Politicamente, a coisa evidentemente também mudou. Mas os ataques pessoais que estão caracterizando a atual campanha para a Presidência da República lembram muito aquela época. JORNAL DA ABI - ESTE É O SEU OITAVO LIO QUE O DIFERENCIA DOS DEMAIS? Roberto Sander - Meus livros são, em última instância, grandes reportagens. Procuro ser claro, objetivo e escrever de forma enxuta. Nada de gordura. Cada linha tem uma informação, tem uma razão de ser. Tudo isso está apoiado em pesquisa, em apuração incansável. Não me considero um escritor ,e sim um repórter que escreve livros.

VRO.

JORNAL DA ABI - QUAIS SÃO OS SEUS PROJETOS LITERÁRIOS PARA O FUTURO?

Roberto Sander - Hoje em dia tenho uma editora, a Maquinária, em parceria com o amigo e também jornalista Paschoal Ambrósio Filho. É a realização de um grande sonho. Trabalhar escrevendo e editando livros. Estou começando a levantar dados para um livro sobre os 50 anos do golpe de 64. É só pra daqui a uns três anos, mas já ando lendo muito sobre o período.

Eco: Além das baleias, temos de salvar os livros POR RITA BRAGA “Os livros nos deleitam quando a prosperidade nos sorri, confortam-nos durante as borrascas da vida. Robustecem os propósitos humanos, sustentam todo severo juízo. As artes e as ciências, cujas virtudes dificilmente se pode conceber, baseiam-se nos livros. Quão alto podemos estimar o admirável poder dos livros, pois que através deles podemos considerar os extremos limites do mundo e do tempo, as coisas que são e as que não são, quase fixando o olhar no espelho da eternidade.” Estas palavras, com as quais Richard de Bury testemunha a bibliofilia em 1345, são o início de uma das citações apresentadas por Umberto Eco (foto no alto, à direita) em seu livro A Memória Vegetal e Outros Escritos Sobre Bibliofilia (Editora Record, 2010). A obra reúne conferências e artigos do semiólogo, professor e escritor, com conteúdos que despertam reflexões sobre a nossa relação com o livro e com a leitura em diferentes tempos, suportes e situações. Mas bastariam essas primeiras palavras para explicar as motivações de um bibliófilo? Para alguns, sim. Porém, Umberto Eco destaca a necessidade de distinguir a bibliofilia da bibliomania e outras sutilezas do colecionismo. Há, neste conjunto de escritos, um conceito de humanidade – de ser humano como, antes de tudo, “um fato de memória” – conforme Valéry, também citado por Eco. Nossa relação com o tempo e com o esquecimento faz parte da história deste objeto que para muitos “é um meio de superar a morte”, mantendo no mundo presenças, idéias e individualidades. Com um passeio pela História, Eco discute a participação do livro na aquisição de uma memória coletiva, com referenciais e conhecimentos transmitidos que nos transformam diariamente. O suporte desta memória também teve sua estrutura transformada em diferentes contextos – tivemos uma memória mineral, em distintas escrituras em pedra e argila; orgânica, registrada em couro de animais; mas, mesmo em nossa contemporaneidade permeada pelo silício que garante o suporte digital, é no papel que estão registradas, ainda hoje, grande parte das informações. Um tópico levantado de maneira breve, mas pertinente, é a posição de Platão acerca da escrita como geradora de enfraquecimento da memória. A reflexão nos conduz ao fato de que a abundância de informação

muitas vezes gera ignorância, em vez de conhecimento. Porém, por isso mesmo, vê-se que em nosso apego à concretude do texto há ainda uma série de questões e mazelas entrelaçadas. Para começar, considera a situação dos analfabetos dentro deste contexto social, pois os livros são hoje, mais do que nunca, uma potencialização da memória que insere e exclui historicamente dados e indivíduos. Claro que o assunto entra em detalhes óbvios, mas nem sempre percebidos na pressa cotidiana da informação – por exemplo, será tão evidente a todos o fato de que ler “nos ajuda a não acreditar nos livros”? Então, como educar-se para escolher, para distinguir o que merece e o que não merece crédito? Aliás, o livro traz também uma série de considerações sobre os critérios adotados por colecionadores e bibliófilos, e chega a expor algumas “esquisitices” intrínsecas a cada perfil de colecionador, como o caso dos bibliômanos que chegam a roubar livros e muitas vezes mantê-los com as páginas intocadas apenas pelo prazer de possuí-los secretamente. Para Umberto Eco, o bibliômano que jamais lê sequer uma página de seus livros não é diferente do bibliófobo ou biblioclasta, que os condena ao esquecimento ou os destrói. Enquanto isso, os bibliófilos são aqueles que os folheiam, que os estudam, sem jamais cogitar a “completude” da coleção. Amam e cuidam dos livros, mas nem por isso escapam da angústia de não saber a quem mostrar seus tesouros. O leitor percebe o quanto Eco escreve mais uma vez com o gosto da própria experiência. Ao discorrer sobre a forma, a qualidade, a vida útil e as peculiaridades de cada exemplar, acumula argumentos para que cada livro seja “amado” por muito mais que seu conteúdo. Ousa até a conclusão de que a formação de uma boa biblioteca denota um desejo pessoal que ultrapassa limites de propriedade. Trata-se de um ambiente vivo, autônomo, e em sua diversidade de livros é até mesmo “um lugar que os lê por nós”. As obras e autores brevemente comentados no texto incluem alguns “lou-

DIVULGAÇÃO

da imprensa, sempre tão ameaçada. Esse é um dos grandes pilares de uma democracia. Nestor Moreira morreu porque suas matérias incomodavam o poder. Tentaram calá-lo, mas não conseguiram. Ele se tornou um mártir. E isso não pode ser esquecido. O seu martírio merecia ser resgatado. Por isso, encarei esse livro como uma missão. A missão de um repórter, que é o que sou. Apenas um repórter.

cos literários” – com suas edições sobre “a possibilidade de abolição da morte” e tratados sobre “a estatura de Adão”, por exemplo. Há também uma explanação sobre os critérios remotos para que um texto merecesse ou não ser publicado, e neste aspecto, destaca, inclusive com alguma curiosidade, a situação daqueles a quem ele chama de autores e filósofos “de quarta dimensão” – que são mais precisamente, “os autofinanciados”. A classificação pode ser resumida em: primeira dimensão, os autores com trabalhos encontrados em manuscritos; de segunda, os inúmeros publicados, muitas vezes, condenados ao anonimato; de terceira, são os que fizeram algum sucesso e são reconhecidos ainda hoje. Os de quarta dimensão, para Eco, estão também entre aqueles que raramente alcançam um reconhecimento, e acabam se perdendo na multidão. Porém, ao comentar casos emblemáticos do passado, o autor nos aponta reflexões bastante contemporâneas, pois afinal, o que serão dos milhões de impressos produzidos em nosso tempo? O que ficará como referência para as próximas gerações? Além de tudo, vale lembrar, a linguagem de Eco é um prazer à parte. Ao expor seu nada secreto amor pelo livro, ele aciona no leitor as mais diversas metáforas que aprofundam conceitos e significados. Como exemplo, pode-se citar passagens como aquela em que, ao discutir a relação do leitor com o objeto livro, mostra que ler é ir muito além do conteúdo, afinal: “jogar fora um livro depois de lê-lo é como não desejar rever a pessoa com a qual acabamos de ter uma relação sexual”. Outra passagem inusitada é seu comentário acerca dos “belos rendados” produzidos por brocas que ameaçam o texto. Enfim, em A Memória Vegetal, Umberto Eco reafirma mais uma vez que não tem medo de a onda tecnológica empurrar o livro para o aparentemente ilimitado mundo virtual. Em todo caso, ele não deixa de apoiar e vivenciar a bibliofilia, reconhecendo nela “um ato de piedade e solicitude ecológica” – diz – “porque não devemos salvar apenas as baleias, o urso do Abruzzo, mas também os livros”. Salvá-los do descuido, do descaso, dos lugares inóspitos e também das mãos que os condenam aos lugares inalcançáveis, longe dos leitores. Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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Livros IMAGO/SVEN SIMON/ICON SMI

E TEXTOS

No alto, um dos desenhos de Frank Morrison no livro Por Amor ao Futebol!. Acima, Pelé domina a bola no jogo que valeu o tricampeonato ao Brasil, em 1970. Ao lado, o jovem craque, seu pai Dondinho e sua mãe, Dona Celeste, durante um almoço depois da conquista da Copa de 1958. E na outra página, Pelé beija a Taça Jules Rimet, que ele ajudou a conquistar. Essas três fotos fazem parte do livro Pelé, Minha Vida em Imagens.

POPPERFOTO/GETTY IMAGES

TRÊS VEZES PELÉ EM IMAGENS Editoras lançam livros sobre o Rei do Futebol, no ano em que a maior lenda dos gramados completa 70 anos. POR SIBELE OLIVEIRA A ascensão do garoto franzino de Três Corações ao posto de maior ícone futebolístico da História é contada em três livros lançados este ano em sua homenagem. As publicações reconstituem cenas cotidianas de Edson Arantes do Nascimento, desde a descoberta da paixão pela bola ao presenciar a atuação do pai como goleiro do time local São Lourenço, até o passo-a-passo da jovem promessa dos campos de Bauru que alçou ao Olimpo do esporte mais popular do País nos gramados do Santos Futebol Clube. Pontuando os momentos mais importantes de sua trajetória, como o memorável jogo Brasil 2, Iugoslávia 2 no Estádio do Maracanã – imortalizado por ser a despedida do Atleta do Século da Seleção Brasileira – as três edições mesclam narrativas construídas a partir de diferentes ângulos, salpicadas de depoimentos de especialistas do futebol, súditos famosos e amigos do Rei. Pelé - Minha Vida em Imagens (Cosac Naify) reproduz essa história contada pelo mito em primeira pessoa. “Vivi os tempos áureos do futebol. As seleções brasileiras de 1958, 1962 e 1970 fizeram o futebol apa44

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recer para o mundo, levando as pessoas a se apaixonarem por ele. Nosso estilo alegre de jogar propiciou que outros países sentissem o gosto desse esporte maravilhoso. Naquele tempo, espalhamos uma verdadeira paixão pelo futebol, paixão que parece ter se incorporado à genética, pois hoje as crianças já nascem com o amor por esse jogo em seus corações”, ele escreve de próprio punho. Nas 100 páginas da autobiografia, mais de 70 imagens formam uma espécie de linha do tempo, documentando os jogos mais importantes e eventos de destaque da vida pública e privada do atleta. Apresentado em formato de colagens, o livro também traz itens raros para colecionadores como a reprodução do selo comemorativo da Copa de 70; o cartaz da Copa do Mundo de 1958; a primeira carteirinha da Liga Bauruense de Esportes, e fac-símiles de reportagens sobre Pelé nos principais jornais do mundo, além

do ingresso do jogo amistoso entre Cosmos e Santos no Giants Stadium, em Nova York, que marcou a sua despedida definitiva dos campos de futebol. A foto em que Pelé abraça o amigo Muhammad Ali foi tirada nesse mesmo dia e ela também está registrada no livro, juntamente com outros objetos que mostram como o craque é admirado por muitas personalidades, tais como o quadro feito pelo mago da pop art, Andy Warhol, e o ofício expedido pela Casa Branca durante uma visita de Pelé ao Presidente Richard Nixon. As páginas finais são preenchidas com um apêndice contendo a listagem de todos os gols da carreira de Pelé, separados por ano, data, time e adversário, além de curiosidades como o polêmico milésimo gol, cujo texto diz que teria acontecido em 12 de novembro de 1969, no jogo contra o Santa Cruz, em Recife, quando o Santos venceu por 4 a 0, e não contra o Vasco da Gama, como muitos acreditam.


POPPERFOTO

LITERATURA

O Nobel Llosa: a realidade no mundo da ficção Antes de se tornar escritor, o peruano Mário Vargas Llosa foi redator de rádio e revisor de nomes em lápides de cemitérios. Um perfil do Prêmio Nobel de Literatura 2010.

Mais imagens

Já o livro Pelé 70 (Realejo) é uma homenagem declarada aos 70 anos de vida do ex-jogador, e não apenas sobre o tricampeonato de 1970, quando ele conquistou pela terceira vez a Copa do Mundo com a Seleção Brasileira de Futebol. Idealizado por José Luiz Tahan e Pedro Saad, esta fotobiografia é bilíngüe, com textos publicados também em inglês, e traz imagens raras em suas 160 páginas, a exemplo de Pelé – Minha Vida em Imagens. Neste livro, porém, a trajetória do craque é narrada pelos jornalistas Roberto Muylaert, José Roberto Torero, Michel Laurence e Xico Sá. O prefácio foi escrito por seu amigo José Macia, o Pepe, ex-jogador do Santos, com quem o Rei compartilhou tempos áureos na Vila Belmiro. Há depoimentos também do Ministro do Esporte, e Vincent Defourny, Representante Geral da Unesco no Brasil. “Que outro atleta conseguiu ou consegue ser venerado, quase diariamente, depois de 33 anos da despedida do seu ofício em campo? É como se não tivesse encerrado a carreira. Não se diz o ex-jogador de futebol, como é de praxe em relação a outros personagens esportivos. Diz-se simplesmente e em qualquer língua do planeta: o Pelé”, atesta Xico Sá em Pelé 70. A obra, que oferece aos leitores dez opções de capas, prima pela seleção estética das imagens, como Pelé sendo abraçado por crianças, com o uniforme coberto de lama durante uma partida ou dando um soco no ar, flagrantes espontâneos que humanizam o mito e revelam sua essência. Para os pequenos súditos

Os torcedores mirins de Pelé não foram esquecidos: Por Amor ao Futebol (Companhia das Letrinhas) foi lançado especialmente para esse público. Com ilustrações de Frank Morrison, o livro de 40 páginas recria a história de Pelé desde a infância com uma narrativa lúdica e traz ainda dois apêndices. Enquanto o primeiro reconstitui alguns dos passes do exjogador e revela curiosidades como a origem do seu apelido, o segundo apresenta curiosidades sobre campeonatos, gols e homenagens na etapa profissional do artilheiro, destacando sua passagem pelo Santos e pela Seleção Brasileira.

Depois de quase 30 anos, finalmente um latino-americano voltou a figurar na lista dos grandes vencedores do principal prêmio de literatura do mundo. Agora em outubro, a Academia Sueca, em Estocolmo, anunciou que o peruano Mário Vargas Llosa, de 74 anos, foi escolhido para receber o Prêmio Nobel de Literatura 2010. A nota oficial da premiação dizia que o novelista e ensaísta foi escolhido por sua “cartografia das estruturas de poder” e “vigorosas imagens de resistência individual, revolta e derrota”. Uma homenagem mais do que justa a um dos principais nomes da literatura em língua espanhola e que fez da luta pela liberdade em seu país o grande tema de sua ficção. Ao lado de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes e outros, Llosa faz parte de uma geração de grandes nomes da literatura latino-americana que ganhou projeção no fim dos anos 60 e começo dos 70, conseguindo destaque e difundindo sua obra por todo o mundo. Entre suas principais obras estão A Cidade e os Cachorros, de 1963, A Casa Verde, 1966, Conversas na Catedral, 1969, Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977, Lituma nos Andes, 1993, e, mais recentemente, A Festa do Bode, 2000. “Vargas Llosa é um contador de histórias com dom divino. Capaz de tocar o leitor com o realismo de sua obra”, afirmou Peter Englund, Secretário da Academia Sueca. Perseguição

Nascido na cidade de Arequipa, em 28 de março de 1936, Jorge Mário Pedro Vargas Llosa formouse em Letras e Direito na Universidade Nacional Maior de São Marcos, em Lima. Antes de se tornar escritor, trabalhou como redator de notícias da já fechada Rádio Central, funcionário de biblioteca e até revisor de nomes de túmulos de cemitério. Em 1959, ganhou uma bolsa de estudos que o levou para uma temporada na Europa, onde se tornou doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Madri e publicou seu primeiro livro, a coletânea de contos Os Chefes, pelo qual conquistou o Prêmio Leopoldo Arias. O reconhecimento internacional viria apenas em 1963, com o ro-

REPRODUÇÃO

POR M ARCOS STEFANO

mance A Cidade e os Cachorros. Como costuma fazer em grande parte de sua obra, nesse livro Llosa carregou nos tons autobiográficos, usando suas experiências em uma academia militar. Fonte de polêmicas no Peru, pelo menos mil cópias foram queimadas em praça pública por oficiais do Exército. Não seria a última controvérsia de sua carreira. Em 1981, causou acirrados debates ao lançar A Guerra do Fim do Mundo, obra em que retrata a Guerra de Canudos e diz fazer uma homenagem a Euclides da Cunha. O efeito foi o inverso: acusaram-no de fazer uma narrativa rasa do ponto de vista social para produzir um best-seller e diminuir Cunha, descrevendo-o como um jornalista míope que perde seus óculos. Literatura e política

Simpatizante do comunismo na juventude, Vargas Llosa tornou-se com o passar do tempo um notório defensor do neoliberalismo. Ainda nos tempos de esquerda, causou furor ao esmurrar o colombiano Gabriel García Márques, na época, seu companheiro de lutas, e criticar Fidel Castro. Em 1987, engajou-se no Movimento Liberdade, que se opunha ao programa de estatização do então Presidente Alan García Pérez. Finalmente, em 1990, lançou-se candidato à Presidência do Peru pelo partido Frente Democrática-Fredemo, numa coalização de centro-direita, mas acabou derrotado, em segundo turno, por Alberto Fujimori. Mesmo morando nos Estados Unidos, onde é professor convidado da Universidade de Princeton, Vargas Llosa mantém firme sua produção política, a ponto de ofuscar a ficcional. Logo depois de ser

Vargas Llosa: Reconhecimento internacional começou em 1959, com A Cidade e os Cachorros, e chega agora ao nível alcançado por poucos escritores latinoamericanos.

anunciado vencedor do prêmio de literatura, ele elogiou a concessão do Nobel da Paz ao chinês Liu Xiaobo, como “uma homenagem a todos os dissidentes chineses e a todos que querem que o crescimento seja, além de econômico, político”. Seu mais novo livro, lançado recentemente no Brasil, é uma reunião de artigos sobre política, direitos humanos, História e literatura. Sabres e Utopias traz resenhas e até textos inspirados em autores como Jorge Amado, mas seu grande destaque são as duras críticas aos Governos latino-americanos, entre eles, o do Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Novo romance

Em mais de um século de existência do Nobel de Literatura, Mário Vargas Llosa é apenas o sexto escritor latino-americano a receber o prêmio. Antes dele, foram escolhidos a escritora chilena Gabriela Mistral (1945), o guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1967), o também chileno Pablo Neruda (1971), o colombiano García Márquez (1982) e o mexicano Octavio Paz (1990). Em 1995, Llosa já havia recebido o Prêmio Cervantes, a mais importante honra literária entre os países de língua espanhola. Sua última obra ficcional havia sido publicada em 2006: Travessuras da Menina Má. Para novembro, o escritor prepara o lançamento de um novo título, El Suenõ del Celta, que narra a trajetória do diplomata irlandês Roger Casement e sua denúncia dos abusos do colonialismo ocidental no Congo Belga e na Amazônia. Mais uma obra que deve trazer o segredo do sucesso de Llosa: a realidade misturada ao melhor da ficção. Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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Vidas

Toni Marins, um D’Artagnan

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Admirado pelo vigor físico – alto, forte, esbanjando vitalidade – e pelo permanente bom humor, João Areosa foi traído pela sensação de que sua saúde estava muito bem. Não estava: na madrugada de 15 de outubro, um infarto fulminante arrebatou-lhe a vida, deixando estupefatos e inconsoláveis sua mulher, as três filhas e as dezenas de companheiros que fez desde 1966, quando, aos 24 anos, começou na reportagem esportiva do Jornal do Brasil, início de uma trajetória que o levou a O Globo, Placar, no Rio e em São Paulo, Jornal dos Sports, Extra. Uma comovida homenagem a Areosa foi prestada em O Globo, que deslocou sua seção Obituário do dia 16 do primeiro caderno para o caderno Esportes, pelo jornalista Renato Maurício Prado, que em crônica sob o título João Areosa, o doce gigante fixou com traços poéticos o perfil profissional e o modo de ser do companheiro que partiu. Disse Renato Maurício Prado: “Tinha o corpo e o jeitão de um lutador de artes marciais e não à toa: praticava judô, jiu-jitsu e, mais recentemente, muaithay. Mas apesar da aparência e, vá lá, de algumas atitudes beligerantes, sua alma era doce como a de uma criança. “Conheci-o, numa das muitas coberturas da seleção brasileira, quando eu ainda trabalhava no JB e ele na Placar , no final dos anos 70. Logo nos tornamos ‘amigos de infância’ e toda vez que ele vinha ao Rio (na época, morava em São Paulo), me ligava: – Vamos jantar na Fiorentina? Era um prazer e tanto. Apesar do gestual rude (adorava receber os amigos com um tremendo bofetão nas costas) e do linguajar desbocado, João Areosa era espirituoso, extremamente divertido e sempre muito bem-informado, tornando especiais aqueles encontros que, invariavelmente, avançavam madrugada a dentro, no Leme. “Um belo dia, me ligou e disse: – Estou voltando pro Rio! Pro nosso JB! “Sim, como eu, ele começara lá; mas bem antes, ainda nos tempos da Redação na Avenida Rio Branco. Só que, quando do seu retorno, quem já não estava no jornal da condessa Pereira Carneiro era eu – que fora contratado pelo Globo, logo após a Copa de 78 na Argentina. “Mesmo assim, nem o fato de nos tornarmos ‘concorrentes diretos’ abalou a velha amizade. Ao contrário. Por isso, poucos anos depois, quando assumi a editoria de esportes, substituindo Cláudio Melo e Souza (outro grande e querido amigo) nem pestanejei e convidei João Areosa para ser o meu subeditor.

GUILHERME PINTO/AGÊNCIA O GLOBO

Discreto, muito educado no trato, sempre dando muita atenção ao seu interlocutor, qualquer que fosse a qualificação e a origem social deste, o jornalista Antônio Martins Lopes Filho, ou Toni Marins, um dos pseudônimos que usava, não tinha essa forma de ser e de agir ou atuar no exercício da atividade jornalística. Entre outros pseudônimos, o que mais o aprazia era o de D’Artagnan, o quarto mosqueteiro da criação imortal de Alexandre Dumas, cujas virtudes ele se esmerava em transplantar para a vida pessoal e profissional: era um ser preocupado com a justiça, altivo, solidário, dotado de grande inteligência e fina sensibilidade. Foi numa publicação alternativa que criou, dirigiu e editou em Nova Friburgo, a Serra e Mar em Revista, que Toni Marins mais exerceu essas virtudes: fazia um jornalismo de denúncia, sem descambar para o escândalo; apoiava as iniciativas que apontavam para o progresso social e cultural da região alcançada pela publicação; estimulava as manifestações nos diferentes campos das artes plásticas, incentivando a gente jovem, os talentos criativos que descobria; sustentava com determinação a dificuldade de, sem capital e recursos pessoais, manter um periódico desvinculado de interesses mercantis ou políticos. Tal como o amor no poema de Vinícius de Morais, Serra e Mar em Revista foi eterna enquanto durou. Sócio da ABI desde junho de 1992, quando atendeu a convite de Henrique Miranda, então diretor, para ingressar na Casa, Toni Marins participou de diferentes administrações, sempre com grande devotamento e nenhum alarde: nunca ninguém o ouviu proclamar-se diretor ou membro deste ou daquele órgão. Ultimamente era membro da Comissão de Sindicância da Casa, a que prestou assídua colaboração a despeito de graves problemas de saúde: não quis operar-se de um câncer, temendo as dificuldades da operação em si e de suas seqüelas, e enfrentou um doloroso processo de quimioterapia, que apenas retardou o seu fim, sem, porém, abater seu ânimo e a coragem com que enfrentava os infortúnios. Marins havia completado 73 anos em 10 de agosto. Viúvo, deixou um casal de filhos, ela com 44 anos, ele com 41. Seu passamento se deu em 29 de setembro passado.

O coração traiu Areosa

“Por motivos alheios à nossa vontade e que nem vale a pena recordar, a parceria, infelizmente, durou pouco. Coisa de um ano e meio até que ele deixasse o jornal, sem, contudo, um arranhão sequer no nosso relacionamento fraterno. “Ainda assim, houve tempo de sobra para lembranças memoráveis. Que vão de importantes ‘furos’ a hilariantes cenas no cotidiano da Redação. “No quesito jornalístico, a medalha de ouro fica com a notícia exclusiva da saída do técnico Carlos Alberto Parreira do comando do Fluminense (transferindo-se para o futebol árabe), na mesma data em que conquistou o Campeonato Brasileiro de 1984. “Todos os jornais do dia seguinte abriram os seus cadernos de esporte com manchetes alusivas ao título e à enorme festa tricolor e O Globo, graças à apuração preciosa de Areosa, anunciou, sozinho, que o novo campeão do País ficara sem treinador. Golaço, aço, aço, como diria o saudoso Jorge Cúri. (...) “Seja onde for a Redação da ‘Folha do Céu’ com certeza ela se tornará, a partir de hoje, bem mais divertida e competente. Vai com Deus, Johnny Boy! Aqui, já estamos morrendo de saudades.” Areosa (João Areosa Duarte, seu nome civil) fez 67 anos em 26 de fevereiro e deixou viúva Eny e as filhas Adriana, Márcia e Bianca. Ele ingressou na ABI em 30 de agosto de 1977, quando estava radicado em São Paulo, trabalhando na Editora Abril.

O soco do Rubão Na década de 1970, em uma luta em São Paulo promovida pelo jornal A Gazeta Esportiva, o boxeador Éder Jofre desferiu um "direto" na mandíbula de seu adversário. Nocaute. A foto do exato momento do golpe, registrada pelas lentes do repórter fotográfico Rubens Monzillo, foi eternizada pelos colegas de profissão como "o soco do Rubão". Natural de São Paulo, capital, Calsimiro Rubens Monzillo, o Rubão, iniciou sua carreira no jornalismo em 1969, na mesma Gazeta onde trabalhou até 1995. Havia sido funcionário da Mes-

bla, mas era o esporte sua paixão. Ricardo Monzillo, filho de Rubens, conta que o pai adorava o futebol, o ciclismo e o boxe. "Ele cobriu a fantástica seleção brasileira de 1982, o boxe nos Jogos Pan-Americanos de Mar del Plata e voltas de ciclismo na Argentina." Outra paixão era o tango. Adorava a música do argentino Carlos Gardel. "Em uma viagem com a família, fomos até o túmulo dele", diz o filho. Torcedor do Palmeiras, se autoproclamava palestrino. Se emocionava ao relembrar da final do Campeonato

Paulista de 1974, quando o Palmeiras ganhou do Corinthians e deixou o alvinegro mais três anos na fila. "Ele dizia que eram 100 mil corintianos e 10 mil palmeirenses", conta o filho. Rubens Monzillo era ainda um colecionador de camisas de futebol. O filho diz que são centenas delas. "A última camisa usada pelo Pelé, no Santos, em 1974, e assinada por ele está na coleção. Tem até algumas manchas de terra." Rubão morreu no dia 24 de setembro, aos 82 anos, em São Paulo. Deixa viúva e dois filhos. (Fonte: Diário de S.Paulo)


ARQUIVO/ABR

MARCOS RIBOLLI

Corrêa, o líder Ex-Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo em 1962 e 1963, Carlos Corrêa de Oliveira morreu no dia 3 de outubro, aos 87 anos, em São Paulo. Na época que dirigiu a entidade, ocorreu a histórica greve geral dos jornalistas. Coordenou a Associação Paulista de Imprensa e foi vice-presidente da Associação dos Jornalistas Profissionais Aposentados de São Paulo-Ajaesp, em 2005. Em entrevista à revista comemorativa do 70º aniversário do Sindicato, resumiu um dos momentos de sua gestão “Apanhamos da Polícia e muitos foram presos. Mas nossa união foi mais forte”. (Fonte: Diário de S.Paulo)

Glezer, o que sabia tudo

Cordeiro, biógrafo de Pelé Uma vida dedicada à comunicação. Desde a década de 1950 o jornalista Luiz Carlos Cordeiro freqüentava a Bauru Rádio Clube, onde teve o primeiro contato com a profissão. É o que relata seu colega de trabalho e amigo, o também jornalista Paulo Sérgio Simonetti, da 94 FM. “Eu estava começando a apresentar programas na rádio. Ele levava os discos dele, participava da programação e acabou com isso integrando a equipe da Bauru Rádio Clube. Ele entrou na rádio pelas minhas mãos”, orgulha-se. Ali foi produtor e apresentador musical, tanto na G-8 como na TV Bauru Canal 2, hoje TV TEM. Programas como A Melhor das Três, Show das Quatro e Moderno Musical Brasileiro marcaram a história do rádio bauruense. Sua qualidade e perseverança o levaram por alguns anos para a Rádio Excelsior de São Paulo,

onde trabalhou ao lado de Antônio Celso e Fausto Canova, entre outros. Voltou a Bauru e foi diretor artístico da Rádio Terra Branca, onde deu uma grande virada em sua audiência. Luiz Carlos Cordeiro, foi ainda diretor comercial do Diário de Bauru e há 28 anos fundou e comandou a Revista Atenção. Ele também foi o autor do livro De Edson a Pelé: A Infância do Rei em Bauru, lançado em 1997. Cordeiro morreu em 19 de outubro, a quatro dias do aniversário de 70 anos do ídolo Pelé, após sofrer um infarto fulminante enquanto caminhava com seu cão, como fazia todas as manhãs. Seu corpo foi velado na Funerária Terra Branca, em Bauru. O sepultamento ocorreu às 17 horas de ontem, no Cemitério Jardim do Ypê. Deixa sua esposa, professora Norma e dois filhos. (Fonte: Diário de S.Paulo)

Fontes Gomes, o escritor Olhar astuto e observador, era capaz de transformar um simples acontecimento numa história marcante. A riqueza dos detalhes e o jeito refinado de encaixar as palavras davam o tempero necessário para o nascimento de memoráveis e únicos contos literários. O faro para converter fatos em palavras, palavras em estrofes e estrofes em livros – dez escritos no total – vem de berço. Sobrinho de um dos principais poetas do Brasil, José Martins Fontes, o jornalista e escritor Roberto Mário Fontes Gomes nasceu e cresceu no bairro José Menino, Santos, litoral paulista. Só deixou o litoral quando já era adulto para estudar Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, na capital paulista. Logo que se formou, trabalhou na Redação de A Gazeta, tradicional jornal das décadas de 1950 e 1960. Assim como o tio poeta, Gomes também escreveu livros, a maioria crônicas de fatos vividos por ele ou por seus familiares, como em Crônica entre parentes, de 1984. Tarde de Domingo (1971), Passando em Revista (1982), Outubro 26 (1991) e Sonetos de Martins Fontes (1987) são algumas de suas obras. Esta última, em comemoração

ÁLBUM DE FAMÍLIA

Quando cursava Direito na Pontifícia Universidade CatólicaPuc, em São Paulo, Flávio Glezer sempre era o escolhido para escrever os trabalhos do grupo na sala de aula. Ele era o redator oficial da turma. Redigia como ninguém, diziam os colegas. A escolha não era à toa: ele já era jornalista. Natural de São Paulo, capital, Glezer iniciou a carreira na Folha de S. Paulo, onde foi um “foca”, um jornalista iniciante. Depois, integrou a primeira equipe de repórteres do Jornal da Tarde, em 1966. Saiu da empresa e começou a escrever para as revistas Quatro Rodas e a extinta Intervalo, da Editora Abril. Enquanto atuava na Abril, passou em 13º lugar no concurso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP). Sua colocação no vestibular lhe garantiu uma bolsa integral de estudos. Entretanto, como trabalhava o dia inteiro, resolveu trancar o curso, no período da manhã. Tudo mudou quando, anos mais tarde, foi pegar um documento na secretaria da Puc a pedido da empresa. “Foi quando ele soube que poderia freqüentar o curso, com bolsa e tudo”, contou a mulher, Amélia. O advogado era amante de música clássica. Lia bastante e era chamado pela família carinhosamente de “papai sabe tudo”. Flávio Glezer morreu no dia 28 de setembro, aos 68 anos, em São Paulo. Deixa viúva, três filhos e dois netos. (Transcrito do Diário de S.Paulo, com título da Redação do Jornal da ABI)

Pesar pela morte de Kirchner

ao cinqüentenário do falecimento de José Martins Fontes. Em 1975, ganhou um prêmio Jabuti na categoria Melhor Crítica e/ou Noticiário Literário. Foi membro da União Brasileira de Escritores-UBE e assessor da Secretaria de Cultura de São Paulo. Após sofrer uma queda em fevereiro deste ano, a saúde se agravou. O poeta morreu no dia 9 de outubro, aos 83 anos, vítima de choque hemorrágico. Deixa viúva, filha e dois netos. (Fonte: Diário de S.Paulo.)

Em mensagem enviada à Presidente Cristina Kirchner, a ABI expressou seu pesar e lhe mandou solidariedade pelo passamento do ex-Presidente Néstor Kirchner, apontado pela Casa como responsável por grande contribuição aos direitos humanos na América e no mundo, graças à sua atuação, quando chefe de Estado da Argentina, para revogar a legislação, originada do Governo Carlos Menem, que protegia os autores de assassinatos, seqüestros, desaparecimentos de cadáveres e torturas de presos políticos durante a ditadura militar instaurada no país vizinho. Graças à firmeza e à coragem política de Néstor Kirchner e sua adesão aos valores democráticos, salientou a ABI, foi possível julgar e condenar os criminosos que assaltaram o poder, à frente o ditador Jorge Videla, condenado à prisão perpétua. A ABI dirigiu-se também ao CônsulGeral da Argentina no Rio de Janeiro, Eduardo Mallea, pedindo-lhe que dê ciência de sua manifestação de pesar à colônia argentina no Rio. A mensagem da ABI foi esta: “Como chefe de Estado e como companheira de vida e de lutas desse notável estadista, peço-lhe que receba a manifestação de profundo pesar da Associação Brasileira de Imprensa pelo passamento do Presidente Néstor Kirchner, cujo desaparecimento prematuro priva seu país e o mundo de um extraordinário defensor dos direitos humanos, dos valores democráticos e do progresso social. Néstor Kirchner impôs-se à admiração de seus contemporâneos no mundo inteiro pela coragem política com que liderou a revogação da legislação do Governo Carlos Menem que protegia os autores de assassinatos, seqüestros, desaparecimentos de cadáveres e torturas de presos políticos durante a ditadura que infelicitou seu país. Graças à firmeza de Néstor Kirchner foi possível julgar e condenar tantos criminosos, à frente o ditador Jorge Videla, que cumpre pena de prisão perpétua. Receba o nosso abraço de solidariedade, que peço seja transmitido a outros parentes do ilustre morto. Cordialmente, Maurício Azêdo, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.” Jornal da ABI 359 Outubro de 2010

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