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Ficha Catalográfica Opinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus - n. 11, ano VII, 2009 © Faculdade Christus, 2009 Opinião Jurídica - [n. 11] – Fortaleza: – Faculdade Christus. [2009]v. I. Direito CDD : 340 Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP).


FACULDADE CHRISTUS

REVISTA OPINIテグ JURテ好ICA

Fortaleza, 2009


Opinião Jurídica Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus n. 11, ano 07, 2009 Diretor Prof. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha Mantenedor Estevão de Carvalho Rocha Coordenadora-Geral do Curso de Direito Profa. M. Sc. Gabrielle Bezerra Sales Coordenadora de Pesquisa e Monografia do Curso de Direito Profa. M. Sc. Gretha Leite Editora-Responsável pela Revista Opinião Jurídica Profa. Dra. Fayga Silveira Bedê Comissão Editorial Prof. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha Profa. M. Sc. Gabrielle Bezerra Sales Profa. Dra. Fayga Silveira Bedê Profa. Dra. Cláudia Sousa Leitão Profa. M. Sc. Gretha Leite Maia Prof. Dr. Etienne Picard (Paris I - Sorbonne) Prof. Dr. João Maurício Adeodato (UFPE) Prof. Dr. Friedrich Müller (Universidade de Heidelberg - Alemanha) Prof. Dr. Paulo Bonavides (UFC) Prof. Dr. Willis Santiago Guerra Filho (UNIRIO) Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues (UFSC) Prof. Dr. Roberto da Silva Fragale Filho (UFF) Prof. Dr. João Luís Nogueira Matias (UFC) Bibliotecária Tusnelda Maria Barbosa Capa Ivina Lima Verde Coordenação de Design Jonatas Barros (John) Programação Visual / Diagramação Daniel Veras Correspondência Faculdade Christus Coordenação-Geral do Curso de Direito Avenida Dom Luís, 911 – 5º andar Aldeota – CEP 60.160-230 Fortaleza – Ceará Telefone: (0**85) 3461.2020 e-mail: revistaopiniaojuridica@gmail.com Impressão Gráfica e Editora LCR Ltda. Rua Israel Bezerra, 633 - Dionísio Torres CEP 60.135-460 - Fortaleza – Ceará Telefone: (0**85) 3272.7844 - Fax: (0**85) 3272.6069 Site: www.graficalcr.com.br – e-mail: atendimento01@graficalcr.com.br Tiragem mínima 400 exemplares


APRESENTAÇÃO A Revista Opinião Jurídica chega ao seu décimo primeiro número, com redobrado afinco quanto ao cumprimento dos critérios do Programa Qualis, da Capes. Assim, em consonância com as linhas de pesquisa do periódico - vide “Normas de Publicação” ao final - apresentamos 14 artigos científicos, dentre os quais, 3 são oriundos de autores de outros Estados da Federação. É o caso de Willis Santiago Guerra Filho (RJ/SP), Luiz Henrique Cademartori e Raísa Carvalho Simões (SC), Guilherme Augusto Doin e Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza (SC). Nesse sentido, o sistema de dúplice avaliação cega foi rigorosamente acolhido. Excetuando-se três artigos de autores convidados (de modo a não ultrapassar os 25% permitidos pelo padrão Qualis), todos os demais trabalhos foram remetidos para, no mínimo, dois pareceristas cegos. Quando o mesmo artigo foi avaliado por mais de dois pareceristas, acolhemos a posição predominante. Para os trabalhos desse número, colaboraram conosco, 27 pareceristas, sendo 13 do Ceará e 14 de outros seis Estados da Federação (SC/SP/PB/PR/RS/ MA), alcançando, portanto, mais de 50% de exogenia, no contexto de um amplo quadro de colaboradores. A esses profissionais devotamos o nosso respeito e a nossa mais profunda gratidão. Sua participação diligente e laboriosa nos permitiu a publicação concomitante dos números 11 e 12, assegurando novamente a tempestividade do periódico, com a qual tanto sonhávamos. E, para nos engajarmos ainda mais nesse projeto de atualização, que agora se concretiza, optamos por fazer constar as apresentações dos autores e colaboradores, no estado real em que se encontram, nesse alvissareiro mês de março de 2011. Agradecemos também a todos os professores da casa que compartilharam conosco suas produções acadêmicas. São eles: Alexandre Aguiar Maia; Ana Stela Vieira Mendes, em co-autoria com João Luis Nogueira Matias (UFC); Fábio de Barros Bruno; Gabrielle Bezerra Sales; Germana Parente Neiva Belchior; Juraci Mourão Lopes Filho e Tércio Aragão Brilhante. Agradecimentos especiais aos alunos e professores que se lançaram na tarefa primordial de produzir ciência em relação de cooperação. São eles: Alebe Linhares Mesquita e Gretha Leite Maia; Christianny Diógenes Maia e Marina Memória; Maria Lidiane Pinheiro e Roberta Laena Costa Jucá. São co-autores em artigos que brotaram a partir dos vários programas de pesquisa fomentados pela Faculdade Christus, e que têm na Revista Opinião Jurídica um de seus canais de escoamento e divulgação. Por fim, enfatizamos o artigo de Aléxis Mendes Bezerra, egresso de nossa instituição.


Complementam o excelente cardápio de leituras desse número: parecer de Germana Belchior; jurisprudência comentada de Véronique Champeil-Desplats e entrevista com o grande jurista Arnaldo Vasconcelos, realizada por Tércio Aragão Brilhante. A todos os nossos professores e alunos, que nos engrandeceram com as suas participações, mais uma vez: obrigada!... Agradecimentos especialíssimos pelo desmesurado apoio de Tércio Aragão Brilhante, Germana Parente Neiva Belchior e Rodrigo Saraiva Marinho: cada qual, com seus talentos, todos com sua generosa amizade: essa vitória é sua também. Por fim, registramos nossa gratidão pelo apoio incontinenti de Paulo Henrique Portela (elaboração e revisão de abstracts), Stela Márcia Vasconcellos (formatação); Daniel Veras (diagramação) e pelo apoio institucional de Estevão de Carvalho Rocha, Vânia Costa e Tusnelda Barbosa. Colaboração inestimável, ainda, da equipe de professores de português: Edson Alencar, Aparecida Cláudio, Elzenir Coelho, Idália Parente e Inês Ferreira. Como resta evidenciado, grandes vitórias se concretizam pelas inúmeras mãos que as abraçam. Recomenda-se a leitura sem moderação. Cordialmente,

GABRIELLE BEZERRA SALES Coordenadora-Geral do Curso de Direito da Faculdade Christus FAYGA SILVEIRA BEDÊ Editora-Responsável pela Revista Opinião Jurídica


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PRIMEIRA PARTE – DOUTRINA NACIONAL Democracia brasileira e movimentos sociais na contemporaneidade .................. 9 Alebe Linhares Mesquita e Gretha Leite Maia Aquecimento global e o papel das empresas, governos e consumidores na redução de seus efeitos .................................................................................................. 24 Alexandre Aguiar Maia Política criminal no Brasil? ............................................................................... 46 Aléxis Mendes Bezerra Políticas econômico-tributárias e cidadania econômica: pela necessidade de ações conjuntas do Estado e da sociedade civil para a efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ...................................................................... 61 Ana Stela Vieira Mendes e João Luis Nogueira Matias O direito à saúde dos portadores de doenças raras e a necessidade de políticas públicas para a efetivação deste direito ............................................................. 83 Christianny Diógenes Maia e Marina dos Santos Memória E-commerce e o direito de arrependimento .................................................... 112 Fábio de Barros Bruno Afirmação histórica da Bioética e multiculturalismo ................................ 138 Gabrielle Bezerra Sales A natureza principiológica dos direitos fundamentais e a proteção do seu conteúdo essencial .............................................................................................. 152 Germana Parente Neiva Belchior Ativismo jurídico dos direitos humanos: as organizações não-governamentais e o Sistema Interamericano.................................................................................. 175 Guilherme Augusto Doin e Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza Linguagem e método: abordagem hermenêutica do direito como alternativa ao purismo metodológico ................................................................................... 199 Juraci Mourão Lopes Filho


A sobrevivência do modelo patrimonialista na reforma administrativa gerencial do Estado brasileiro ....................................................................................224 Luiz Henrique Urquhart Cademartori e Raísa Carvalho Simões A regulamentação da prostituição e a efetividade dos direitos fundamentais das profissionais do sexo ............................................................................ 249 Maria Lidiane Pinheiro e Roberta Laena Costa Jucá Intenção transparente do texto e afastamento judicial de escolhas legislativas: o caso da demissão de servidores públicos federais ............................................ 265 Tércio Aragão Brilhante Reapreciação da autopoiese do Direito na pós-modernidade .......................... 279 Willis Santiago Guerra Filho SEGUNDA PARTE – PARECER Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4252 ............................................... 296 Germana Parente Neiva Belchior TERCEIRA PARTE – JURISPRUDÊNCIA COMENTADA Analyse de la jurisprudence du Conseil Constitutionnel sur les Droits Fondamentaux ......................................................................... 308 Véronique Champeil-Desplats QUARTA PARTE – ENTREVISTA Com Arnaldo Vasconcelos ........................................................ 327 Por Tércio Aragão Brilhante NORMAS DE PUBLICAÇÃO.......................................................................332


DEMOCRACIA BRASILEIRA E MOVIMENTOS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE Alebe Linhares Mesquita* Gretha Leite Maia** RESUMO A pesquisa explora as contradições e as perplexidades geradas a partir da análise das relações, no atual cenário democrático brasileiro, entre os poderes instituídos e os movimentos sociais. Apesar de a experiência do Estado brasileiro ser a mais democrática de todos os tempos, índices significativos apontam a manutenção das desigualdades sociais e o aumento da violência urbana. O objetivo geral deste trabalho é entender os reais pressupostos de um governo democrático, a fim de compreender a atual democracia vivida no Brasil e, a partir desse pressuposto, tentar explicar por que certos problemas sociais persistem apesar da orientação democrática instaurada nas dinâmicas do poder no Brasil. O objetivo específico consiste em tomar conhecimento do papel dos novos movimentos sociais na presente conjuntura política e o seu potencial papel na promoção de uma sociedade justa e igualitária para todos. Para isso, promoveu-se uma investigação das relações estabelecidas pelo movimento CEARAH Periferia e as instâncias de poder instituído. Conclui-se que a participação democrática dos cidadãos atualmente restringe-se à luta por direitos concernentes a determinados grupos, olvidando-se da importância do todo da sociedade, dificultando, assim, a adoção de medidas que diminuam a desigualdade social e a promoção de políticas públicas que abranjam o conjunto da sociedade. Com isso, os movimentos sociais identificam-se mais com as ONGs e as associações comunitárias, afastando-se dos partidos políticos, e acabam por fragmentar a participação social, pulverizando-a como força política. A metodologia desta pesquisa é bibliográfica, teórica, descritiva, exploratória, seguida de entrevista qualitativa com a coordenadora da ONG CEARAH Periferia. Palavras-chave: Democracia. Movimentos Sociais. Desigualdade Social. * Graduando em Direito pela Faculdade Christus. Monitor de Teoria Geral do Estado. (2009/2010) ** Mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2001). Professora do Curso de Direito da Faculdade Christus. Email: gretha@terra.com.br. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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1 INTRODUÇÃO O termo democracia tem ocupado lugar permanente no discurso político contemporâneo, mas a compreensão do alcance e dos pressupostos desse princípio de atuação do poder ainda permanecem imprecisos. A Democracia vai muito além da significação superficial de governo do povo, sendo constituída por vários outros pontos fundamentais que caracterizam o Estado Democrático. É de extrema importância a compreensão desses pontos para que se possa entender certas contradições que presenciamos em nossa sociedade atualmente, para, assim, propor medidas de resolução desses problemas. O Brasil encontra-se em constante processo de consolidação de seu sistema democrático. Esse processo, que vem desde a ruptura do regime autoritário da Ditadura Militar, ganha força com a efetivação dos princípios e regras das previstos pela Constituição Federal de 1988. Apesar do grande avanço no sentido de consolidação da democracia no país, grandes problemas como violência, tráfico de drogas, pobreza e desigualdade social continuam assombrando a sociedade brasileira. O atual sistema democrático ainda não conseguiu acabar com graves problemas sociais que vêm perpetuando-se e, em alguns casos, agravando-se. Essa conquista democrática acaba mostrando-se contraditória, uma vez que a democracia, que pressupõe o governo do povo pelo próprio povo, deveria elaborar uma política pública ampla voltada para a totalidade da sociedade a fim de diminuir as desigualdades sociais e combater os problemas delas decorrentes. Os partidos políticos e os sindicatos, antes representantes principais do povo e das classes sociais (envolvidas nos processos de produção), distanciam-se da visão dos movimentos sociais organizados sob o signo de nossa atual democracia. Sua intenção de catalisar os anseios populares e classistas e serem os principais meios para se promover algum tipo de mudança efetiva na sociedade nos parece a cada dia mais distante. A atuação política defendida por eles é substituída pelo discurso dos direitos humanos, amplamente utilizado pelos novos movimentos sociais. Estes, embora apresentem um grande avanço no sentido de discussão democrática, apresentam-se muito restritos na elaboração de um projeto universal de governo voltado para todos os indivíduos. Tais movimentos acabam se desenvolvendo, em sua grande maioria, na defesa de certos direitos à diferença, perdendo a visão do conjunto da sociedade. O objetivo geral deste trabalho consiste em entender os reais pressupostos de um governo democrático, a fim de caracterizar a atual democracia vivida no Brasil. A partir desse pressuposto, tentar explicar por que certos problemas sociais e a grande disparidade social persistem, apesar da experiência do atual Estado brasileiro ser a mais democrática de todos os tempos. O objetivo específico limita-se em compreender o papel dos novos movimentos sociais na presente conjuntura política e o seu potencial papel na promoção de uma sociedade justa e igualitária para todos. 10

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A importância deste trabalho consiste no entendimento de um dos motivos, pelo qual o Brasil, apesar de ser um Estado democrático, ainda apresenta uma grande disparidade de classes e graves problemas de cunho social, a partir da caracterização da atual conjuntura político-social. Para, assim, a partir desse pressuposto, despertar nos cidadãos a compreensão e o entendimento do atual tipo de Democracia que se vive atualmente no país. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 Democracia A palavra democracia atravessa com tal força a linguagem política deste século, que raro é o governo, a sociedade ou o Estado que não se proclamem democráticos.1 Apesar do seu habitual emprego, o seu real significado e a prática se perdem dentre desculpas e discursos que visam a legitimar determinadas formas de governo que nada coincidem com o verdadeiro significado desse princípio. Muito se ouve falar em democracia, mas pouco se entende o que realmente significa. O que seria essa tão aclamada forma de exercício do poder soberano estatal? Esse primeiro tópico almeja discorrer um pouco sobre o que realmente é a Democracia, suas origens e a sua importância. De maneira sucinta, Democracia poderia ser conceituada como governo do povo, como a própria etimologia diz. Logo, não caracteriza um tipo de Estado, mas uma prática de governo. No entanto, o significado de Democracia vai muito além do mero governo do povo, como titular do poder. O Governo Democrático é aquele em que os indivíduos que o formam são cidadãos, partícipes, posto que titulares do poder político. Governo pelo povo. Pressupõe também formas de exercício que orientem as práticas de poder para o atendimento do maior número possível de interesses considerando o maior número possível de segmentos sociais. Governo para o povo. Antigas repúblicas gregas e romanas despontaram como as primeiras manifestações concretas do governo do tipo democrático. “A Grécia foi o berço da democracia direta, mormente Atenas, onde o povo, reunido na Agora, para o exercício direto e imediato do poder político, transforma a praça pública no grande recinto da nação”.2 Tanto na Antiguidade como na Modernidade, a ideia dessa forma de governo é a mesma, ou seja, o governo democrático é aquele exercido pelo conjunto de indivíduos ligados ao Estado por um vínculo jurídico-político. Manteve-se o princípio da soberania popular (todo poder emana do povo e em seu nome será exercido). 3 No entanto, há uma diferença quanto à noção de quem constituía o povo, titular legítimo, apto a participar da vida política da cidade. Na Antiguidade, a noção de povo era restrita àqueles que não trabalhassem. “Em Péricles, o demos abrange tão somente todos os homens atenienses livres, aptos para a guerra, contribuintes e domiciliados REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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há muito tempo”.4 Acreditava-se que, para exercer a virtude política, o cidadão deveria dedicar grande parte do seu tempo nas discussões e na formação final da vontade política; sendo assim, impossível um indivíduo que levasse uma vida de artesão ou de escravo ser tido como integrante do povo. Para Bonavides, “a democracia, como direito de participação no ato criador da vontade política, era privilégio de ínfima minoria social de homens livres apoiados sobre a esmagadora maioria de homens escravos”.5 Essa ideia restrita de povo não está presente na concepção de democracia do século XVIII. Na democracia dos modernos, uma parcela muito mais ampla dos habitantes do Estado foi incluída como povo. Isso se deu a partir da ascensão da burguesia, economicamente poderosa, que almejava ser também politicamente hegemônica, tomando o lugar da monarquia e da nobreza no domínio do poder político. Outra diferença entre a democracia dos modernos e dos antigos é que, na primeira,era exercida de forma indireta ou representativa, enquanto, na segunda, era exercida de forma direta. Segundo Maluf, “nos estados helênicos e romanos, como mais tarde nos Cantões da Confederação Helvética, a democracia foi idealizada e praticada sob a forma direta, isto é, o povo governavase por si mesmo, em assembleias gerais realizadas periodicamente nas praças públicas”.6 Motivos de ordem prática tornam o sistema representativo condição essencial ao bom funcionamento de certa forma de organização democrática no Estado moderno. Seria impossível ao Estado moderno a adoção de técnicas de conhecimento e captação da vontade dos cidadãos similar àquelas praticadas no Estado-cidade grego.7 A atual complexidade social, a extensão e a densidade demográfica das cidades modernas (as metrópoles) são razões que tornam praticamente inexequível a adoção da democracia direta na atual realidade estatal. Os únicos exemplos de democracia direta na contemporaneidade é aquele exercido “por alguns minúsculos cantões da Suíça: Uri, Glaris, os dois Unterwald e os dois Appenzells, onde anualmente seus cidadãos se congregam em logradouros públicos para o exercício direto da soberania”.8 Rousseau, em Du Contrat Social, supõe que “se houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente”.9 O pensador não acreditava na possibilidade de aplicação dessa forma de governo na sociedade moderna, tamanha sua perfeição, sendo sua verdadeira prática somente possível em um mundo de Deuses, não de seres humanos. “Para Rousseau, a democracia legítima seria a democracia direta, impraticável no Estado de grandes dimensões territoriais bem como em sociedades distorcidas pelo capitalismo”.10 É o mundo dos burgueses, preocupados com realizações na amplitude individual. O Estado Democrático moderno surge a partir dos embates contra o absolutismo, principalmente por meio da afirmação dos direitos naturais da pessoa humana. Segundo Dallari, é por meio de três grandes movimentos políticos sociais que a teoria democrática é colocada em prática. 12

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O primeiro desses movimentos foi o que muitos denominam de Revolução Inglesa, fortemente influenciada por Locke e que teve sua expressão mais significativa no Bill of Rights, de 1969; o segundo foi a Revolução Americana, cujos princípios foram expressos na Declaração de Independência das treze colônias americanas, em 1776; e o terceiro foi a Revolução Francesa, que teve sobre os demais a virtude de dar universalidade aos princípios, os quais foram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, sendo evidente nesta a influência de Rousseau.11

Aprofundando-se no que realmente representa a Democracia, Maluf diz que a ideia de democracia pode ser conceituada em dois sentidos, o formal e o substancial. Segundo o autor: Em sentido formal ou estrito, democracia é um sistema de organização política em que a direção geral dos interesses coletivos compete à maioria do povo, segundo convenções e normas jurídicas que asseguram a participação efetivas dos cidadãos na formação do governo. É o que se traduz na fórmula clássica: todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Neste conceito, são pressupostos os princípios da temporariedade e eletividade das altas funções legislativas e executivas. Em sentido substancial, sobre ser um sistema de governo temporário e eletivo, democracia é um ambiente, uma ordem constitucional, que se baseia no reconhecimento e na garantia dos direitos humanos fundamentais da pessoa humana.12

Assim, somando-se os dois conceitos (formal e substancial), podese definir a democracia como um sistema de organização política no qual todo poder emana do povo, sendo exercido em seu nome e no seu interesse; são temporárias e eletivas as funções de delegação de poder; a ordem pública é baseada em uma Constituição escrita, que respeita o princípio da tripartição do poderes; admite-se a pluralidade partidária, assegurando a livre crítica; são reconhecidos e declarados os direitos fundamentais do homem em ato constitucional, proporcionando meios e garantias para que o Estado os tornem efetivos; aplica-se o princípio da igualdade no plano jurídico, visando a diminuir as desigualdades humanas, principalmente as de ordem econômica; a supremacia da lei é assegurada como expressão da soberania popular; submete-se constantemente aos atos dos governantes ao crivo dos princípios da responsabilidade e do consenso geral a fim de serem considerados válidos.13 No mesmo sentido de entendimento da complexidade do fenômeno democrático, Dallari defende que três pontos fundamentais caracterizam o Estado Democrático: a supremacia da vontade popular (a partir da participação REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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popular no governo, seja por meio do sufrágio, seja por representatividade), a preservação da liberdade, (“entendida, sobretudo como o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem qualquer interferência do Estado” 14), a igualdade de direitos, proibindo-se distinguir os cidadãos por qualquer motivo, principalmente por motivos econômicos ou de classe, no exercício de seus direitos. Vale ressaltar que a simples realização da democracia não consiste no fim do Estado. A democracia apresenta-se como um meio para que o Estado atinja sua finalidade, sendo esta a manutenção da ordem sócio-ético-jurídica (fim imediato), e o estabelecimento de condições favoráveis à realização pessoal, inerente à pessoa humana, de cada indivíduo da sociedade (fim mediato). A partir dessas noções de como realmente se constitui um Estado democrático e a importância que ele tem na vida dos cidadãos, discute-se, em seguida, sobre a experiência democrática brasileira. 2.2 A democracia inesperada Com o fim da Ditadura Militar e a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil encontra-se em constante processo de fortalecimento e consolidação de sua democracia. No entanto, o modo como os cidadãos participam da construção desse Estado Democrático e a persistência de problemas e desigualdades sociais que deveriam ser resolvidas com a instauração dessa forma de Estado acontecem de uma maneira totalmente imprevista. Sorj, em “A Democracia Inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social”, apresenta-nos essa discussão. Segundo o autor, o mundo contemporâneo vive uma grande contradição. Mesmo com a organização e o fortalecimento da sociedade civil e o aprofundamento dos valores igualitários, persiste a dificuldade dos regimes democráticos de se confrontarem com a crescente desigualdade socioeconômica e a multiplicação dos problemas sociais, em particular, a violência.15 Duas realidades antagônicas na concepção de um sistema de governo democrático. A partir das dinâmicas do sistema capitalista e das mudanças do sistema internacional, o papel das classes sociais como núcleos de organização política e mobilização social foi diminuído, enfraquecendo, assim, a representatividade dos sindicatos e fragilizando os partidos políticos. Ao invés desses tradicionais atores, as ONGs e a sociedade civil despontam como os novos representantes capazes de reunir e alcançar os pleitos do povo. As aspirações políticas perdem espaço para o discurso dos direitos humanos. Essa inversão de papéis, por mais contraditório que pareça, é também consequência da consolidação dos direitos sociais, em especial os direitos trabalhistas. Com o fortalecimento desses direitos, as relações de produção passaram a ser mensuradas pelo sistema jurídico-político, substituindo a rela14

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ção de forças por uma relação de direito entre o empregado e o empregador. Assim, a ampliação dos direitos trabalhistas leva a uma confusão de identidade entre ser trabalhador e ser cidadão, e acabou gerando a fragmentação dos trabalhadores em categorias e subcategorias. Considerando que o mínimo de direitos à segurança e ao bem-estar são garantidos a todos, essa especialização visa a alcançar direitos específicos de cada categoria, fragmentando ainda mais a compreensão do todo. Isso acabou levando ao enfraquecimento do poder de mobilização em torno das ideologias. Além disso, o fracasso da experiência socialista na Rússia e a influência do neoliberalismo colaboraram para a “crise da classe operária” e das aspirações sociais e econômicas a elas ligadas. Por conseguinte, os sindicatos e os partidos políticos viram seu poder de mobilização da opinião pública ser extremamente debilitado. Essa mudança dos papéis também pode ser explicada pelo crescente processo de individualização dos valores e das relações sociais na sociedade moderna. “O indivíduo contemporâneo não possuiria um sistema rígido de identificações coletivas ou ideológicas e estaria fragmentado em múltiplas e mutantes redes e grupos de referência”.16 Essas novas identidades se fundamentam em torno do sucesso monetário e do consumo associado a estilos de vida cada vez mais personalizados.17 Tal sociedade acaba gerando um indivíduo ocupado demais consigo para dedicar tempo e esforço nas questões coletivas. Segundo Bonavides, “o homem moderno, via de regra, homem massa, precisa de prover, de imediato, às necessidades matérias de seu existência”. 18 Não resta tempo para ele se envolver inteiramente em questões como a análise dos problemas do governo, as questões administrativas, o exame e a interpretação dos complicados temas relativos à organização política, jurídica e econômica da sociedade. Simultânea e paradoxalmente a esse fenômeno, os indivíduos da sociedade encontram-se cada dia mais iguais, à medida que as barreiras, como status social, classes sociais, nações e ideologias, que antes separavam os indivíduos, não possuem mais a importância suficiente de fazê-lo. “Nessa nova realidade social, a luta pela igualdade é substituída pela luta pela diferença, os indivíduos não procuram mais construir uma utopia socialmente inclusiva e a desigualdade só é relevante em relação ao próprio grupo, e não ao conjunto da sociedade”.19 Logo, gênero, etnia, práticas religiosas, regionalismos e própria natureza são valores em torno dos quais os novos atores constroem suas identidades. A ideia de uma utopia universal unificadora de toda a sociedade deu espaço a uma utopia particular, restrita a garantir o direito à diferença de certos valores específicos. A respeito dessa nova forma de identidade no processo de democratização, Sorj afirma que: O impacto dessas novas identidades sobre o processe de democratização das relações sociais é contraditório. Por um lado, elas renovam a vida democrática, pois expressam grupos (a mulher, as minorias sexuais, os grupos étnicos) que tinham sido oprimidos REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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no processo de construção do Estado moderno. Por outro lado, não só elas produzem um impacto limitado na redistribuição da riqueza, como põem em questão as condições de existência de um debate sobre igualdade no conjunto da sociedade, já que muitas vezes estão associados a um discurso e a práticas institucionais constituídas em torno de identidades coletivas impermeáveis.20

A inclusão do direito à alteridade, em sociedades em que os valores de liberdade e igualdade “clássicos” não estão totalmente consolidados, pode se mostrar bastante nocivo, uma vez que a luta por esses direitos impõe uma enorme pressão nas democracias que ainda apresentam fragilidades decorrentes da perpetuação histórica de grandes problemas sociais, podendo causar, em situações extremas, riscos de fragmentação social e separatismo. Segundo Bonavides, a democracia em sociedades subdesenvolvidas ou em desenvolvimento requer duas condições básicas: “primeiro uma fé pertinaz nos seus valores e, segundo, um contínuo exercício”.21 De acordo com o autor, essas condições básicas têm faltado com frequência a homens públicos e a lideranças políticas, gerando, assim, um círculo vicioso da aparente inviabilidade do regime democrático, oscilando entre os intervalos da liberdade e as interrupções do autoritarismo. A desagregação da visão do conjunto da sociedade e o fortalecimento da luta por direitos cada vez mais específicos podem provocar o aumento da desigualdade social, uma vez que não são mais pensadas políticas públicas para a totalidade da sociedade, mas somente medidas garantidoras de certos direitos à alteridade de determinados grupos. Assim, a partir de todos os fatores aqui apresentados, pode-se dizer que a democracia se consolidou, mas não é a democracia esperada. Os partidos políticos e os sindicatos não são mais os principais autores de mudanças sociais, uma vez que suas utopias políticas são substituídas pelo discurso dos direitos humanos, o qual, largamente usado pelos novos movimentos sociais, a exemplo das ONGs e da sociedade civil. O indivíduo pós-moderno é essencialmente individualista, procurando a sua afirmação como cidadão na sua diferença, gerando, assim, uma fragmentação da representação social. Essa fragmentação tem possibilitado o paradoxo contemporâneo: cada dia mais democrático e cada vez mais desigual.22 A participação democrática dos cidadãos restringe-se à luta por direitos concernentes a um determinado grupo em especial, esquecendo-se da importância do todo da sociedade, dificultando, assim, a adoção de medidas que diminuam a desigualdade social. O grande perigo desse tipo de democracia é o abandono moral da esfera pública estatal, em razão da perda de identificação com o sistema político organizado em torno do Estado. Característica fundamental de um Estado democrático. De acordo com Friedrich Müller, “não existe nenhuma democracia viva sem nenhum espaço público”.23 16

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2.3 Novos Movimentos Sociais Scherer-Warren define movimentos sociais como uma “ação para transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção)”24. Logo, constituem-se componentes dos movimentos sociais a práxis, o projeto, a ideologia, a organização e a direção. Ajudando-nos no entendimento do fenômeno dos movimentos sociais, João Batista Herkenhoff alega que estes não se submetem aos padrões do direito estabelecido. Principalmente em sociedades, como a brasileira, em que milhões de cidadãos encontram-se à margem de quaisquer direitos, “num estado de permanente negação da cidadania, os movimentos sociais estão sempre a criar direitos à face de uma realidade sociopolítica surda aos apelos de direito e dignidade” 25 Normalmente, o que os movimentos sociais almejam é o reconhecimento de direitos que a lei ainda não consagrou, mas que, por meio da pressão popular, poderá consagrar. Eles tendem a buscar uma realidade que está sempre além da estabelecida.26 Os novos movimentos sociais constituem novos atores capazes de catalisar a vontade geral dos cidadãos e, por meio de suas ações e reivindicações, representar mudanças na sociedade e na vontade estatal. São exemplos de novos movimentos sociais, as ONGs, a “sociedade civil”, os movimentos ecológicos, feministas e de etnias. É possível destacar algumas características que perpassam os novos movimentos sociais. Dentre elas, pode-se ressaltar o número relativamente baixo de participantes, estruturas não burocráticas, até mesmo informais, formas coletivas de tomada de decisões, pequeno distanciamento social entre liderança e demais participantes; modos pouco teóricos, mas imediatos de percepção e aplicação dos objetivos do movimento em prática.27 Os novos movimentos sociais valorizam não só direito à igualdade e à liberdade, mas principalmente o direito à alteridade, ou seja, o direito de ser diferente. Segundo Claus Offe, as bases dos novos movimentos sociais são “a nova classe média, especialmente aquela formada por profissionais de serviços humanos e do setor público, a velha classe média e uma categoria da população formada por gente que está à margem do mercado de trabalho, numa posição periférica”.28 De acordo com Sorj, “a sociedade civil passou a ocupar o imaginário social e político como a única portadora de virtudes, associadas na tradição socialista aos trabalhadores e ao povo”.29 Ela é tida como a nova agente de transformação social e expressão dos desejos libertários e de justiça social em face da desumanidade do mercado e do Estado. A política “tradicional” é vista de forma negativa, como um lugar onde prevalecem a vaidade, a corrupção e os privilégios. Os partidos políticos não realizaram a tarefa de serem a referência ideológica que orienta e forma quadro se o respeito tal como a esperança e a mensagem utópica que os acompanharam durante o século XX. Com a desvinculação da “sociedade civil” REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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da política partidária tradicional, a importância da dimensão política do parlamento é reduzida, fortalecendo os processos de fragmentação social e diluindo-se a capacidade de desenvolvimento de projetos societários.30 Desde o final do século XX, o mundo presencia o crescente surgimento das Organizações não Governamentais, as tão conhecidas ONGs. As suas atuações são, em regra, voltadas para situações ou assuntos em que o Poder Público se encontra ausente. Diante da inércia da máquina estatal, ela dispõe da importante vantagem de possuir uma enorme flexibilidade e criatividade diante dos desafios de um mundo em mutação, que está sempre apresentando novos problemas. O papel das ONGs, nas últimas décadas, é inegável. Elas se transformaram nos mais importantes vetores “de inovação social e de novas práticas democráticas, atuando como geradoras e disseminadoras de propostas inéditas de reconstrução social e promovendo ou catalisando movimentos sociais autênticos”.31No entanto, embora apresentem “um poder crescente de mobilização da opinião pública, são bastante limitadas como instrumento de pressão política e apresentam como um déficit de legitimidade por não possuírem nem mandato nem representação social”.32 Essas novas formas de participação social em torno de causas morais “imateriais”, ou seja, aquelas que não se ligam a relações de poder e de interesses socioeconômicos, por exemplo, a ecologia, o feminismo ou a etnia, acabam por fragmentar a participação social e conflui para o distanciamento de uma visão da nacional sociedade.33 É inquestionável a importância dos novos movimentos sociais na atualidade, o que se discute é a incapacidade de eles canalizarem propostas de reorganização da sociedade ou de formulação de programas políticos que atinjam a maioria da população. 2.4 Entrevista com a ONG CEARAH Periferia O centro de Estudos, Articulação e Referência sobre Assentamentos Humanos – CEARAH Periferia – é uma organização não governamental, fundada em 15 de março de 1991. Sediada em Fortaleza, sua missão é o fortalecimento do movimento popular urbano para uma intervenção propositiva no processo de desenvolvimento urbano integrado, sustentável e solidário. Dentre os seus objetivos estão o de contribuir com a produção e difusão do conhecimento e com o aperfeiçoamento de tecnologias sociais no contexto urbano; contribuir para a democratização do planejamento urbano por meio da integração de políticas de desenvolvimento urbano, a partir de intervenção interdisciplinar e sensibilizar, informar, capacitar o movimento popular urbano para o exercício da cidadania com autonomia. O CEARAH Periferia é filiado à Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG, contando com uma equipe multidisciplinar para a realização de seus objetivos. Meio ambiente, gênero, raça, economia popular solidária e direitos humanos são os temas norteadores de suas ações.

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A maioria dos investimentos para a administração da ONG parte da iniciativa de programas europeus. A casa e os computadores, por exemplo, foram comprados a partir de um edital da União Européia pela cooperação internacional. O dinheiro é curto e desenvolver projetos de longo prazo é difícil, uma vez que a duração do auxílio recebido não é suficiente para projetos permanentes de longa duração. A ONG vive em constante procura de novas bolsas e editais para poder dar continuidade ao seu trabalho. Um único programa do governo brasileiro, do Ministério das Cidades, foi citado como incentivador da instituição. Demonstrou-se uma preocupação por parte da organização na fuga de investimentos europeus para áreas da Ásia e África, já que, do ponto de vista internacional, o Brasil já se encontra em um bom estado de desenvolvimento, havendo áreas que precisariam mais dessa ajuda. As articulações do movimento em relação às instituições jurídicas, como o Ministério Público e o Judiciário em especial, ainda são muito tímidas. O movimento já começa a entender a importância da luta no Judiciário para a garantia de seus pleitos, mas, por costume e temor da demora do Poder Judiciário, esse meio de garantia de direitos ainda é muito pouco utilizado. Já há uma aproximação do movimento com a Defensoria Pública em relação às lutas pelo direito de habitação. Segundo a coordenadora, há uma preferência pelo diálogo com o Poder Executivo e Legislativo, não mediado pelo Judiciário, para o alcance dos pleitos. Promove-se a entrega de documentos e dossiês nos órgãos administrativos da cidade, manifestações na prefeitura e discussões com vereadores na elaboração de leis. Ao perguntar sobre a atuação do CEARAH Periferia com partidos políticos e sindicatos para a promoção de mudanças efetivas na sociedade, foi respondido que não existe atuação conjunta da ONG com estes. A coordenadora do projeto informou que prefere a desvinculação da imagem do movimento da imagem dos partidos políticos. Em época de eleições, as intervenções em campo, feitas pela ONG, são diminuídas para que o trabalho não seja tomado indevidamente como parte de campanha eleitoreira. A aproximação com sindicatos já foi tentada, mas não obteve muitos frutos. Segundo a coordenadora, os problemas enfrentados pela ONG são problemas de base, sendo as ações pretendidas voltadas para resolver esse problema da forma mais rápida, eficiente e flexível possível. Evita-se soluções dos problemas pelos partidos, atuando-se diretamente na base. O Movimento já nota a apropriação do discurso dos direitos humanos dos movimentos sociais pelos partidos políticos, como uma forma de legitimação de sua representatividade para os cargos públicos. O CEARAH Periferia relata a dificuldade que enfrenta para se manter financeiramente e promover mudanças sociais abrangentes em uma esfera de lutas tão fragmentada. Os movimentos sociais são vários e muito maleáveis, de fácil formação e dissolução. Isso acaba por dificultar a mobilização para o fortalecimento das lutas propostas. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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3 METODOLOGIA A técnica de pesquisa utilizada para a construção do presente trabalho é bibliográfica. O método é hipotético-dedutivo. Os métodos de procedimento caracterizam-se como comparativo e histórico, sendo o nível da pesquisa teórico, descritivo e exploratório. Entrevistou-se a coordenadora da ONG CEARAH Periferia a fim de que o trabalho assumisse um caráter mais humano e pessoal. Para tal, utilizou-se como instrumento de coleta de campo uma entrevista qualitativa semiestruturada. A partir da entrevista, teve-se oportunidade de debater algumas premissas estudadas. 4 CONCLUSÃO Democracia é um sistema de organização política no qual todo poder emana do povo, sendo exercido em seu nome e no seu interesse, em que a ordem pública é baseada em uma Constituição, respeitando-se o princípio da tripartição dos poderes, a pluralidade democrática, a livre crítica, os direitos fundamentais do homem. As funções de delegação de poder são temporárias e eletivas, submetendose constantemente ao crivo dos princípios da responsabilidade e do consenso geral a fim de serem considerados válidos. O princípio da igualdade no plano jurídico é aplicado, visando a diminuir as desigualdades humanas, especialmente as de ordem econômica. A supremacia da lei é assegurada como expressão da soberania popular. Os direitos fundamentais são reconhecidos e declarados na Constituição Federal que proporciona meios e garantias para efetivá-los. A democracia brasileira encontra-se em um constante processo de consolidação. No entanto, a experiência democrática no país apresenta-se de forma totalmente inesperada. Os partidos políticos e os sindicatos, antes principais atores de mudanças sociais, não mais os são. Há um atual descrédito nas utopias políticas, sendo elas substituídas pelo discurso dos direitos humanos. Novos movimentos sociais, embasados nesse discurso, surgem como os novos agentes de mudanças sociais, a exemplo das ONGs e da “sociedade civil”. O indivíduo pós-moderno, bastante individualista, afirma-se como cidadão na sua diferença, valorizando o direito à alteridade, o direito a ser diferente. A participação democrática dos cidadãos restringe-se à luta por direitos concernentes a um determinado grupo em especial, olvidando-se da importância do todo da sociedade, dificultando, assim, a adoção de medidas que diminuam a desigualdade social e a promoção de políticas públicas que abranjam o conjunto da sociedade em sua totalidade. Essa fragmentação da representação social tem possibilitado o paradoxo contemporâneo, caracterizado pelo fortalecimento da sociedade civil e a consolidação de valores igualitários, concomitante à crescente desigualdade socioeconômica e a multiplicação dos problemas sociais, especialmente a violência. O abandono moral da esfera pública estatal é o grande vilão desse tipo de democracia, uma vez que se perde a identificação com o sistema político organizado em torno do Estado, característica fundamental de um Estado democrático. 20

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Os novos movimentos sociais, a exemplo de ONGs e “sociedade civil”, acabam por fragmentar a participação social e levam ao distanciamento de uma visão abrangente da sociedade. É indiscutível a importância do papel dos novos movimentos sociais na atualidade, o que se discute é a incapacidade de eles canalizarem propostas de reorganização da sociedade ou de formulação de programas políticos que atinjam a maioria da população. Embasados pelo discurso dos direitos humanos, eles acabam perdendo a visão do todo da sociedade e promovendo apenas mudanças pontuais em temas específicos, não ajudando na diminuição da desigualdade socioeconômica e na diminuição dos problemas sociais de maneira abrangente. A ONG CEARAH Periferia relatou a dificuldade que enfrenta para se manter financeiramente. As articulações do movimento em relação às instituições jurídicas, como o Ministério Público e o Judiciário em especial, ainda são muito tímidas. Há uma preferência pelo diálogo com os Poderes Executivo e Legislativo. Não se demonstrou nenhuma atuação do movimento com os partidos políticos e com os sindicatos, preferindo-se uma total desvinculação com estes. Obstáculos também são encontrados na tentativa de se promover mudanças sociais abrangentes em uma esfera de lutas tão fragmentada, uma vez que os movimentos sociais são vários e muito maleáveis, de fácil formação e dissolução. Assim, dificultando a mobilização para o fortalecimento dos direitos pleiteados. 5 REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. __________________ Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. HERKENHOFF, João Batista. Movimentos Sociais e Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva: 2009. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. PINTO, João. Direitos e novos movimentos sociais. São Paulo: Acadêmica, 1992. SCHERER, Warren. Movimentos sociais. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 1987. SORJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 1 2 3

No mesmo sentido: BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Id., ibid., p. 268. MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2009. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 3 ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 83 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 268. MALUF, Sahid, op. cit., p. 289. BONAVIDES, Paulo, op.cit. Id., ibid., p. 274. ROUSSEAU apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 265. MÜLLER, op. cit., p. 132. DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 147. MALUF, Sahid, op. cit., p.291. No mesmo sentido: MALUF, op. cit. DALLARI, op. cit. p.151 SORJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Id., ibid., p. 48. Id., ibid., BONAVIDES, op. cit., p. 273. SORJ, op. cit., p.51. Id., ibid., p.56-57. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 193. SORJ, op .cit., p. 59. MÜLLER, op. cit., p 132. Scherer-Warren. Movimentos sociais. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 1987, p. 20. HERKENHOFF, João Batista. Movimentos Sociais e Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 25. No mesmo sentido: HERKENHOFF, ibid. PINTO, João. Direitos e novos movimentos sociais. São Paulo: Acadêmica, 1992. OFFE, 1992 apud HERKENHOFF, op. cit., p. 16. SORJ, Bernardo, op. cit, p.68. No mesmo sentido: Id., ibid. Id., ibid., p.75. Id., ibid., p. 14-15. Id., ibid.

BRAZILIAN DEMOCRACY AND SOCIAL MOVEMENTS IN CONTEMPORARY TIMES ABSTRACT The coming research examines the contradictions and the bewilderement that emerge after the study of the relations between government institutions and social movements in the Brazilian democracy of present days. Even if we consider that the Brazilian State has never before developed their activities in such a democratic context, it is necessary to take into account the relevant figures that point to the fact that social inequalities remain, and that crime is on the rise. The main purpose of this paper is to examine the actual requirements of a democratic government, in order to explain Brazilian democracy 22

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nowadays and, with the results from this study in mind, explain the reason why certain social problems persist, even if democracy is the main guideline for power in Brazil in this moment of history. The specific aim of this article is to obtain an adequate perception of the duties of the new social movements in the present political context and their potential role in the promotion of a fair and equal society for everyone. In order to find this out, the author examined the relations between the CEARAH Periphery organization and government institutions. The authors conclude that democratic participation of citizens is actually restricted to the struggle for the rights concerning certain groups, avoiding concerns related to the interests of the society as a whole, thus making it difficult to adopt measures capable of reducing social inequality and of promoting public policies that can be for the benefit of the society in general. Therefore, social movements end up becoming more similar with NGOツエs and community associations, standing back from political parties. As a result, social participation becomes fragmented and weakened as a political force. Methodology used is bibliographical, theoretical, descriptive and exploratory, and also includes a qualitative interview with the coordinator of CEARAH Periphery. Keywords: Democracy. Social movements. Social inequality.

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O AQUECIMENTO GLOBAL E O PAPEL DAS EMPRESAS, DOS GOVERNOS E DOS CONSUMIDORES NA REDUÇÃO DE SEUS EFEITOS Alexandre Aguiar Maia*

RESUMO O aquecimento global é uma realidade e não há como contradizêla, pois seus efeitos têm sido sentidos em todos os continentes, sob a forma de desastres ambientais naturais. O Protocolo de Quioto foi a tentativa de minimização do problema, com os diversos instrumentos propostos. Mas a mudança de atitude necessária para reduzir o caos ambiental atual, resultante da emissão de gases de efeito estufa deve partir dos consumidores e das empresas, apesar de os governos representarem importante papel nesse cenário. Palavras-chave: Aquecimento global. Gases de Efeito Estufa. Protocolo de Quioto. Consumidores. Empresas. 1 INTRODUÇÃO A tônica dos noticiários nacionais e internacionais, atualmente, é a frequente ocorrência de desastres ambientais, seja em terremotos com grande número de vítimas e de prejuízos materiais, seja também em situações climáticas críticas como furacões, tornados enchentes, secas, queima de florestas e derretimento das geleiras e das calotas polares. A questão que está posta é: em quais desses eventos danosos à natureza a mão do homem é mais sentida e o que fazer para solucionar essa situação? A ciência já afirma que muitas dessas catástrofes possuem relação direta com a ação humana, notadamente aquelas que implicam na emissão de gases de efeito estufa (GEE), que, por sua vez, acarretam o aumento da temperatura do planeta, chamado, convencionalmente, de aquecimento global. Este é produzido principalmente pela queima de combustíveis fósseis que emitem dióxido *

Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Ceará e em Direito Empresarial pela Universidade Estadual do Ceará e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor de graduação e pós-graduação de Direito Ambiental. Membro das Comissões de Estudos Tributários e de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil Secção do Ceará. Consultor de Empresas e organismos governamentais nacionais e internacionais. Coordenador do Grupo de Estudo de Direito Ambiental do Curso de Direito da Faculdade Christus e autor de livros e artigos jurídicos.

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de carbono, um dos principais causadores do efeito estufa. Este artigo é resultado de um trabalho realizado em conjunto com os alunos do Grupo de Estudos de Direito Ambiental1 da Faculdade Christus que, no primeiro semestre de 2008, discutiram assuntos relativos ao aquecimento global, Protocolo de Quioto, bem como o papel das empresas, governos e consumidores nesse processo de mudança de condutas perante o meio ambiente. 2 O (DES)EQUILÍBRIO CLIMÁTICO GLOBAL Ao longo dos últimos anos, a população mundial vem sentindo que o clima no mundo tem mudado rapidamente e para pior. Essa mudança vem dificultando a vida na Terra, causando destruições e prejuízos financeiros e, muitas vezes, sofrimento pela perda de entes queridos, de bens pessoais, isso sem citar a extinção de espécies, sequer descobertas pelo homem. A tudo isso a ciência tem atribuído os efeitos do aquecimento global, que hoje, sabe-se, decorre da ação humana. É certo que já ocorreram na história do planeta outros momentos de aquecimento, mas foram lentos, e seus efeitos não foram sentidos tão bruscamente como atualmente se verifica. Fechar os olhos para essa realidade é um descaso que se comete com o meio ambiente e, principalmente, com toda a humanidade. Para mudar essa situação, os governos dos países reuniram-se, em 1997, na cidade de Quioto (Japão) para discutir e tentar aprovar um acordo multinacional, conhecido como Protocolo de Quioto, em prol do meio ambiente, de forma a reduzir os efeitos do aquecimento global. Infelizmente, esse protocolo demorou para ser ratificado pelos países membros, o que adiou sua entrada em vigor, somente para o ano de 2005. A principal resistência se deu por parte dos Estados Unidos da América, considerado o maior poluidor mundial, e que até hoje não o ratificou. É certo que várias iniciativas particulares e de estados vinham (e continuam) sendo realizadas nesse sentido, uma vez que se trata de um movimento sem retorno: aqueles que já apoiavam a adoção de medidas para melhorar as condições climáticas do planeta continuam por realizá-las por meio de legislações que reduzem os gases do efeito estufa, dentre outras. Mas, apesar de louváveis, essas ações ainda significam pouco perto das necessidades climáticas do planeta que a humanidade ajudou a comprometer. 2.1 A situação climática atual e as implicações à vida A temperatura vem subindo ao longo das últimas décadas em todo o globo. Esse é o principal alerta dos cientistas o qual hoje, finalmente, é aceito como verdade pela comunidade internacional2. Essa elevação é causa de diversos fenômenos climáticos que atingem diretamente a vida de milhões de pessoas, como tornados e ciclones cada vez mais freqüentes e de maior intensidade no hemisfério norte (o furação Katrina, ocorrido em 2005, que atingiu a cidade americada de Nova REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Orleans, além de destruí-la, causando aproximadamente US$ 30 bilhões em prejuízos materiais3, ceifou mais de 972 vidas4 e desabrigou mais de um milhão e meio de pessoas5), como também no hemisfério sul (até 2004 não tinha sido registrado esse tipo de fenômeno no Brasil e, naquele ano, ocorreu um na costa de Santa Catarina6), secas, ondas de calor, degelo das calotas polares, etc7. Segundo Rafael Kenski, a situação do clima atualmente é a seguinte: A temperatura média do planeta subiu 0,7 C no último século. Nas ultimas décadas geleiras tidas como eternas começaram a derreter, enchentes e secas tornaram-se mais violentas, ondas de calor mataram milhares, e um furacão fez sua estréia no Brasil.8

Mas o que está ocasionando essa confusão climática? Sem dúvida alguma, segundo os cientistas e os diversos relatórios já produzidos sobre o problema, é a ação do homem. Queimadas, desmatamentos, emissões de gases de efeito estufa pela queima de combustíveis fósseis e outras emanações gasosas, aumento da população mundial (que em 50 anos passou de dois para seis e meio bilhões de pessoas)9, aumento da frota de veículos movidos a combustíveis derivados do petróleo, dentre outras ações danosas são os responsáveis por essa alteração climática. Isso tudo, ao longo dos anos, foi acumulando, na atmosfera, gases que a engrossaram de forma a não permitir que os raios ultravioletas, recebidos do sol, retornassem para a atmosfera, criando uma estufa entre ela e o planeta. Desse modo, o aumento da temperatura do globo acarretou os diversos desastres ecológicos que hoje se vivenciam. Esses eventos climáticos desastrosos também afetam os serem humanos diretamente, seja com o sofrimento causado pela perda de vidas, seja com os prejuízos materiais que dificultam ainda mais a vida daqueles que sofreram diretamente os impactos da catástrofe natural. Aliás, será que se pode chamar de catástrofe natural os eventos a que os próprios homens deram causa? Hoje a temperatura do planeta já está acima da normal e, nos últimos quinze anos, registraram-se os dez mais quentes. Esse aumento da temperatura tem relação direta com o derretimento das calotas polares bem como de geleiras tidas, até poucos anos, como eternas, ou seja, incapazes de descongelar. O Ártico e a Antártida também não estão livres disso10. Em decorrência disso tudo, os cientistas já alertam para a elevação dos níveis dos oceanos com conseqüências catastróficas, principalmente para as populações que residem na zona costeira (como visto no caso de Nova Orleans). Cidades poderão deixar de existir e já se fala em refugiados ambientais11, estimando-se, nessas regiões do planeta, mais de cem milhões de pessoas desabrigadas pela elevação das marés12. O aquecimento traz, ainda, problemas para a economia dos países. Com o aumento das secas e das enchentes, tem-se, inevitavelmente, a perda de safras e a elevação da fome no mundo. Esse fato não faz menção à dificuldade de alguns povos em ter acesso à água potável, deteriorando a saúde dos habitantes, o que também implica aumento de custos. Kenski alerta que, se continuarem 26

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no mesmo ritmo, os prejuízos com desastres naturais, em 2065, serão maiores que a produção mundial.13 E não se está livre de guerras também, posto que, em se concretizando essas previsões, países poderão buscar, pela força, o acesso aos recursos naturais de que não dispõem14. 2.2 As discussões internacionais Apesar desses alertas e de a quase totalidade dos cientistas afirmarem, categoricamente, que o aquecimento global atual é produto da ação humana, ainda há quem discorde deste consenso. Mas, ressalte-se, até mesmo aqueles que questionam a visão mais apocalíptica do aquecimento global não dizem que ele não está ocorrendo, mas que seus efeitos não serão tão devastadores. Essas discussões giram em torno de aspectos econômicos, capitaneados pelos Estados Unidos da América, que se recusaram a assinar o Protocolo de Quioto, sob a alegativa de que traria prejuízos às empresas americanas. Na mesma linha, mas com argumentos diversos, alguns estudiosos duvidam dos efeitos imediatos do aquecimento global, informando que eles somente serão sentidos a longo prazo, tempo este mais que suficiente para que a humanidade possa corrigir os males causados à atmosfera. Bjorn Lomborg, conhecido como o ambientalista cético, faz parte deste grupo. Para ele, “precisamos esfriar a cabeça. Queremos mudar o mundo – ótimo. Mas não é um fato que a melhor estratégia é cortar as emissões de dióxido de carbono.”15 Outros expoentes dessa corrente são Michael Crichton e João Luiz Mauad. Para o primeiro, “a sociedade ocidental está assombrada por medos exagerados ou inadequados”16. Já para o segundo, “há mais dúvidas que certezas. Os céticos me parecem muito mais bem fundamentados que os outros. O aquecimento global virou um negócio, há muito mais dinheiro envolvido em pesquisa, e por isso, os cientistas estão forçando a barra. Apelar para um suposto consenso é uma velha estratégia para evitar o debate.”17 Podem existir dúvidas, mesmo que de uma ínfima minoria, mas os fatos e, principalmente, as recentes tragédias ocasionadas por “causas naturais” demonstram que o aquecimento global é uma realidade. Ratifica essa posição o Quarto Relatório de Avaliação do Grupo de Trabalho II do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC).18 3 O PROTOCOLO DE QUIOTO Diante dos acontecimentos climáticos que vêm ocorrendo no planeta ao longo das últimas décadas, constatam-se consequências catastróficas para humanidade e para o meio ambiente, razão pela qual as nações objetivaram negociar uma forma de corrigir o estrago já causado. A Terceira Sessão da Conferência das Partes sobre Mudança do Clima, REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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ocorrida em dezembro de 1997, em Quioto no Japão, é considerada como marco no combate aos gases do efeito estufa – GEE. Adotou-se o Protocolo de Quioto como o tratado de compromissos mais rígidos contra a emissão dos gases que provocam o efeito estufa19. Assim, contando com 28 artigos, é considerado o documento de maior importância dentre os tratados acerca das questões ambientais. O acordo, portanto, visa à diminuição da emissão dos gases que colaboram para o agravamento do efeito estufa, que são: perfluorcarbono, hexafluoreto de enxofre, metano, óxido nitroso, hidrofluorcarbono e dióxido de carbono. Para que o protocolo entrasse em vigor, decidiu-se pela necessidade da ratificação de, pelo menos, 55 países e que, somados, correspondessem a 55% das emissões de gases do efeito estufa no planeta, fato este somente ocorrido em 16 de fevereiro de 2005. Os países signatários do Protocolo de Quioto foram divididos em dois grupos, considerando o seu nível de industrialização: a) Anexo I, reunindo os países desenvolvidos e b) Não-Anexo I, com os países em desenvolvimento. Os primeiros assumiram o compromisso de reduzir suas emissões de GEE numa média de 5,2% em comparação aos níveis que emitiam em 1990, com prazo final para cumprir a meta entre 2008 e 2012. Os segundos não assumiram metas a cumprir, uma vez que não atingiram determinado grau de desenvolvimento. Contudo, poderão auxiliar na redução por meio de projetos registrados que comercializem Certificados de Emissões Reduzidas (CERs)20. Existem, ainda, os Mecanismos de Flexibilização para que haja o cumprimento das metas do protocolo. São eles: Implementação Conjunta, Comércio de Emissões e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. A Implementação Conjunta só diz respeito aos países desenvolvidos e ocorre quando dois ou mais deles implantam projetos que reduzam a emissão de GEE para posterior comercialização. O Comércio de Emissões existe quando um país do Anexo I reduz, além da meta, a emissão de gases de efeito estufa, podendo, assim, transacionar o excedente com outros países desenvolvidos que não tenham atingido. Por último, e não menos importante, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), de autoria da delegação brasileira, permite que os países em desenvolvimento comercializem créditos21 de projetos que realizam, para países desenvolvidos, de forma que estes alcancem suas metas. Com a ratificação do Protocolo de Quioto, os países que não cumprirem suas metas de redução deverão prestar contas às Partes da Conferência e estarão sujeitos a penalidades, podendo ser excluídos de acordos comerciais ou ter a sua meta de redução majorada (multiplicada por 1,3 para o próximo período, que deve ter início em 2013)22. Os Estados Unidos são responsáveis por 30,3% de todas as emissões globais de gases de efeito estufa, sendo o maior emissor de dióxido de carbono do mundo23 e por ser grande consumidor de combustíveis fósseis, não ratificaram o Protocolo, em razão de prejuízos econômicos que traria para o país. “O presidente George W. Bush considerou a hipótese do aquecimento global bastante real, mas disse que preferia combatê-lo com ações voluntárias por parte das 28

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indústrias poluentes e com novas soluções tecnológicas”.24 Alegou, ainda, para refutar o acordo, a falta de exigência sobre os países em desenvolvimento para a redução das emissões, principalmente, China e Índia. Já o Brasil, como outros países em desenvolvimento, pode comercializar créditos pelo que deixar de poluir, por meio do mercado de créditos de carbono que é utilizado entre as empresas de cada país de duas maneiras: a) valendo-se dos critérios do Protocolo de Quioto, em que as empresas criam projetos para reduzir suas emissões e os registram na ONU, e em caso de demonstrada eficácia, rendem os créditos de carbono25, que podem ser vendidos para empresas de países desenvolvidos e b) comercializando os créditos diretamente em bolsas independentes, como a Bolsa do Clima de Chicago ou a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) brasileira26. Após assinar o Protocolo de Quioto em 29 de abril de 1998, o Brasil somente o ratificou em 20 de julho de 2002, sob o Decreto Legislativo nº 14427. Com a ratificação, o país assumiu o compromisso de cumprir as regras estabelecidas no protocolo e uma vez inserido no grupo de países Não-Anexo I, pode participar desenvolvendo projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL), comercializando os créditos de carbono e gerando recursos para utilização em investimentos de tecnologia limpa, reduzindo, assim, suas emissões de GEE. 4 MECANISMO DE DESENVOLVIMENTO LIMPO (MDL) O Brasil, que é tido como a potência verde do planeta, propôs o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, em que grupos de nações desenvolvidas (Anexo I), investem em projetos nos países em desenvolvimento (Não-Anexo I), implementando aqueles que contribuem para o desenvolvimento sustentável - proporcionando condições dignas de vida à pessoa humana, sem prejudicar as gerações futuras - e que resultam em reduções certificadas de emissões (RCE). Trata-se de um mecanismo instituído pelo art. 12 do Protocolo de Quioto, objetivando assistir aos países do Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam para o objetivo final do protocolo: ARTIGO 12 1. Fica definido um mecanismo de desenvolvimento limpo. 2. O objetivo do mecanismo de desenvolvimento limpo deve ser assistir às Partes não incluídas no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam para o objetivo final da Convenção, e assistir às Partes incluídas no Anexo I para que cumpram seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões, assumidos no Artigo 3.

Dentro dos países Não-Anexo I, a geração de créditos passa por um modelo em que as nações são estimuladas a desenvolver seus processos produtivos de forma menos prejudicial ao meio ambiente, que é, o MDL28. Entretanto, cada REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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país signatário do protocolo deverá criar uma política de desenvolvimento que obrigue a adoção do estudo de impacto ambiental, visando alcançar padrões sustentáveis de produção e de consumo29. O Brasil tem um potencial latente para uma participação efetiva no contexto mundial no combate ao aquecimento global e na preservação do meio ambiente saudável dado a: a) sua geografia ecossistêmica ser propícia para o desenvolvimento de vários projetos, b) seu parque industrial ter condições de contribuir para a redução das emissões de gases do efeito estufa (GEE) e c) o sistema jurídico se estruturado e ter mecanismo de capitais. Apesar de seus problemas internos de preservação ambiental e da desigual distribuição de riquezas, o Brasil tem uma valiosa contribuição a dar. O país possui uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo e já demonstra sua capacidade de criar energias alternativas como a criação do programa de álcool combustível durante a crise do petróleo, na década de 1970. As empresas brasileiras têm confirmado essa capacidade, criando fontes de energia a partir de rejeitos industriais30. Assim, foi do Brasil o primeiro projeto de desenvolvimento limpo registrado no mundo: o projeto NovoGerar de aproveitamento de biogás de aterro sanitário31. Os projetos de MDL, obrigatoriamente, devem trazer vantagens e demonstrar resultados positivos para os países envolvidos, e a participação desses deve ocorrer voluntariamente. Porém, uma vez participando, terá o compromisso de obter os resultados a eles conferidos e beneficiar-se deles. Eles podem ser baseados em fontes renováveis e alternativas de energia, eficiência e conservação de energia ou reflorestamento, devendo observar regras claras e rígidas para aprovação de projetos, como ainda utilizar metodologias aprovadas, ser validados e verificados por Entidades Operacionais Designadas (EODs) e aprovados e registrados pelo Conselho Executivo do MDL32. Tais etapas, obviamente, devem ser obedecidas para diversos tipos de projetos, havendo algumas diferenças nos requisitos necessários que são característicos de cada um. São elas: a) elaboração do documento e concepção do projeto (DCP); b) validação e aprovação; c) registro; d) verificação e certificação; e, e) emissão e aprovação dos RCEs. Podem ser desenvolvidos projetos nas seguintes áreas, segundo o Conselho Executivo (CE) do MDL: a) Setor 1.Geração de energia (renovável e não renovável); b) Setor 2. Distribuição de energia; c) Setor 3. Demanda de energia (projeto de eficiência e conservação de energia); d) Setor 4. Indústrias de produção; e) Setor 5. Indústrias químicas; f) Setor 6.Construção; g) Setor 7.Transporte; h) Setor 8.Mineração e produção de minerais; i) Setor 9. Produção de metais; j) Setor 10. Emissões de gases fugitivos de combustíveis; l) Setor 11. Emissões de gases fugitivos na produção e consumo de halocarbonos e hexafluorido de enxofre; m) Setor 12. Uso de solventes; n) Setor 13. Gestão e tratamento de resíduos; o) Setor 14. Reflorestamento e florestamento, e, p) Setor 15. Agricultura. 30

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Vistos os setores em que podem ser elaborados os projetos de MDL, indispensável citar os que estão em desenvolvimento. São eles: captura de gás em aterro sanitário; tratamento de dejetos suínos e reaproveitamento de biogás; troca de combustível; geração de energia por fontes renováveis e energia solar; compostagem de resíduos sólidos urbanos; geração de metano a partir de resíduos orgânicos; pirólise de resíduos e florestamento e reflorestamento em áreas degradadas. Os projetos, ao alcançarem as metas determinadas de redução, obterão as Reduções Certificadas de Emissões (RCEs), conhecidas como Crédito de Carbono, que são emitidos pelo Conselho Executivo do MDL, podendo ser negociados no mercado global, incentivando, dessa forma, os países a cumprir as metas definidas. É, pois, um mecanismo de flexibilização previsto no artigo 17 do Protocolo de Quioto: ARTIGO 17 A Conferência das Partes deve definir os princípios, as modalidades, regras e diretrizes apropriados, em particular para verificação, elaboração de relatórios e prestação de contas do comércio de emissões. As Partes incluídas no Anexo B podem participar do comércio de emissões com o objetivo de cumprir os compromissos assumidos sob o Artigo 3. Tal comércio deve ser suplementar às ações domésticas com vistas a atender os compromissos quantificados de limitação e redução de emissões, assumidos sob esse Artigo.

Os Créditos de Carbono nada mais são que RCEs comercializadas em bolsa, como commodities ambientais33 e os países do Anexo I, ao assumirem o compromisso de diminuir a poluição, podem fazê-lo mediante mudanças nos processos produtivos ou por meio da aquisição dos Créditos de Carbono. O Protocolo de Quioto e o mercado de créditos de carbono são esforços bem intencionados da comunidade internacional para tentar amenizar os efeitos do aquecimento global. Ocorre que a mudança de consciência tem de começar pelos consumidores e indústrias, principais impactantes da atmosfera terrestre e aqueles, os usuários dos produtos destas. É o que desenvolvemos em seguida. 5 O CAPITALISMO EM XEQUE O advento da Revolução Industrial, no século XIX, trouxe, para a economia mundial, um intenso desenvolvimento conhecido por capitalismo. A produção em massa facilitou a vida humana, trazendo maior conforto e acesso a bens de consumo que até então estavam restritos a poucos. Mas, para atender à demanda por bens e produtos, as empresas foram buscar, na natureza, a matéria prima necessária, devolvendo aquilo que não interessava: o refugo, o entulho e os efluentes (líquidos e gasosos), sem levar em conta que essa atitude, em algum momento poderia se voltar contra elas. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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E essa situação poderia piorar. O avanço científico e a massificação do conhecimento acabaram por promover outra revolução, a tecnológica. Esta impulsionou as economias de mercado a uma busca incessante pelo capital, ao desenvolver uma visão global de economia com efeitos colaterais sentidos pelo meio ambiente. Dessa maneira, colocou o capitalismo numa verdadeira encruzilhada: forçou as corporações a refletir sobre as conseqüências de suas ações, além de se adaptar para remediar os danos ambientais já causados sem reduzir seus faturamentos. É bem verdade que a tecnologia impulsionou o desenvolvimento econômico, mas a um preço alto: a utilização de mais recursos naturais e uma maior degradação ambiental. Eis uma situação insustentável que motiva alguns empresários a adaptar seus empreendimentos na busca de um choque de ecoeficiência às suas gestões. Exemplo disso foi o ambicioso projeto da indústria farmacêutica suíça Roche de reestruturação energética para reduzir o consumo de diversos insumos e as emissões de gases de efeito estufa. Nas palavras de José Alberto Gonçalves, enquanto as vendas anuais triplicaram de 1996 a 2006, alcançando cerca de 38 bilhões de dólares, o consumo energético manteve um ritmo menos acelerado e cresceu duas vezes. O consumo por empregado, uma das métricas mais usuais para verificar os resultados de um plano de eficiência energética numa empresa em expansão, foi reduzido em 29% em dez anos. A companhia criou até seu indicador de ecoeficiência, conhecido pela sigla em inglês EER (ou taxa de ecoeficiência), que decuplicou no mesmo período. Uma das principais rupturas no caso da Roche foi substituir o carvão por outros combustíveis renováveis em suas fábricas em cerca de 150 países a partir de 2005. Essa mudança foi fundamental para a redução de 23% de suas emissões de carbono em 2006. Na última década, a queda acumulada é de 72% resultado que levou a Roche a ganhar em 2007 o primeiro prêmio ambiental realizado pelo jornal britânico Financial Times.34

Uma estratégia interessante adotada por algumas empresas no processo de sintonia com as necessidades ambientais foi o estabelecimento de uma política de remuneração de seus executivos atrelada a indicadores ambientais. Nessa linha de ação, encontram-se a Accor, o Banco Real e a Amanco, e já estudam essa possibilidade a Synteko e o Banco Itaú35. Segundo Gumae Carvalho, “trata-se dos primeiros passos no país de uma tendência capaz de mostrar se realmente o Triple Bottom Line (o equilíbrio dos resultados econômicos e ganhos para a sociedade e meio ambiente) saiu do papel e entrou na estratégia de uma organização.”36 Outra forma inovadora de criar uma consciência ecológica foi desenvolvida pela Unilever, ao economizar água. Mas, o que há de inovador nisso? Empresas que querem adotar uma gestão ecoeficiente geralmente iniciam suas ações buscando reduzir o consumo em suas linhas de produção. A inovação foi 32

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levar essa postura para os fornecedores e consumidores. Isso mesmo, os consumidores. É possível? A empresa mostrou que sim: Em vez de se preocupar apenas com suas operações, a Unilever passou a desenvolver projetos que envolvessem seus fornecedores e também estimulassem os clientes a usar menos água. No caso dos produtores, a empresa começou a disseminar técnicas de irrigação por gotejamento nas lavouras de tomate, espinafre, chá e ervilhas. Na outra ponta – a do consumo - , a abordagem também foi audaciosa. Em 2005, a Unilever decidiu que sua área de pesquisa e desenvolvimento de produtos domésticos e de cuidado pessoal precisaria reavaliar a integração dos aspectos social, econômico e ambiental no desenvolvimento de novas marcas e também na revisão de produtos existentes. Na prática, o resultado foi a criação de produtos como o detergente para lavar roupas All Small and Mighty, com dois terços a menos de água em sua composição do que seus concorrentes. Lançando inicialmente nos Estados Unidos em 2005, o detergente também possibilitou reduzir o tamanho das embalagens, que ficaram com apenas um terço das dimensões do modelo antigo. Outra investida foi à reformulação do detergente para lavar roupas Surf Excel, à venda na árida região sul da Índia. O objetivo foi fazer com que o produto gerasse menos espuma, poupando até dois baldes de água por lavagem. Dentro de casa, a empresa também vem colhendo bons resultados. Desde 1995, a Unilever reduziu em suas fábricas mundialmente 58% de consumo de água por tonelada. Em regiões secas, muitas das unidades da Unilever perseguem a meta de zerar o despejo de efluentes líquidos nos rios, reciclando-os para uso na irrigação ou na lavagem das fábricas. Na Índia, 36 das 48 unidades da companhia já alcançaram o objetivo. A Unilever não revela quanto economiza por ano. 37

Observa-se, com esses exemplos de ecoeficiência, que algumas empresas já perceberam a necessidade de adaptar suas plantas produtivas de forma a não agredir o meio ambiente. No entanto, essa mudança de atitude não é dominante, ou seja, a maioria das corporações, principalmente em mercados capitalistas menos desenvolvidos, ainda não se deram conta da encruzilhada entre desenvolvimento econômico e equilíbrio ecológico. Mesmo aquelas empresas que ainda não modificaram completamente seus hábitos passaram a contar também com ações isoladas dos seus funcionários aos quais devem ser incentivadas. Um exemplo vem da unidade do SENAC em Sorocaba (São Paulo), que arcava com duas elevadas despesas, mensalmente, para manter um grande jardim: o custo da água para irrigá-lo (mais de 30% do consumo total) e a contratação de veículo para evacuar a limpeza do material gerado. Certo dia, um funcionário, por conta própria, criou um processo de compostagem dos resíduos do jardim que representou uma redução de até 70% REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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com o custo de evacuação do rejeito e reduziu o consumo de água com planejamento, utilizando a internet como aliada na busca de informações sobre chuvas na região, para somente após, programar a irrigação (redução do consumo de água em 20%).38 Esse exemplo de atitude deve ser observado pelo setor de recursos humanos das empresas e incentivada uma mudança de postura por parte dos demais funcionários. Afinal, a educação ambiental é uma aliada importante na formação de uma consciência ambiental entre os colaboradores. Edson Ferreira corrobora com este entendimento: A evolução tecnológica dos processos e as modificações técnicas dos produtos não bastam para aliviar a carga que estamos colocando sobre a natureza. É necessária, em paralelo, uma mudança no comportamento das pessoas e é aí, principalmente, que a atuação do profissional de RH pode fazer a diferença.39

Verifica-se, com essas iniciativas, que, apesar da alegativa americana de uma suposta perda econômica para as suas empresas, o capitalismo precisa se posicionar com relação a esse tema (e isso vale para as corporações situadas em todo o mundo) uma vez que, como se verá adiante, os consumidores já começam a questionar seus fornecedores sobre a origem e o processo produtivo dos bens que adquirem. Manter uma posição de indiferença frente ao que vem ocorrendo no mundo é o mesmo que ignorar que o faturamento das empresas depende da consciência dos consumidores e que as condições climáticas interferem diretamente nas atividades empresariais. Empresas, em diversas partes do mundo, estão sofrendo os efeitos do aquecimento global, seja com a perda de safras por secas ou enchentes, seja com a destruição de instalações por tornados, furacões e tempestades, seja ainda, pelo fechamento de plantas empresariais por causa de infrações às legislações ambientais. Em breve, espera-se que a mudança se dê por transformações nos hábitos dos consumidores que deixarão de adquirir produtos de empresas que degradam o meio ambiente. 6 O PAPEL DO CONSUMIDOR NA DIMINUIÇÃO DOS EFEITOS DO AQUECIMENTO GLOBAL É fato aceito que o meio ambiente é um patrimônio da humanidade, um bem de uso comum do povo e, como tal, é responsabilidade tanto do Poder Público como da sociedade defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e as futuras gerações, inclusive, presente em nossa Carta Política (art. 225)40. Mas, dificilmente, reflete-se sobre o próprio comportamento. Os seres humanos são os maiores poluidores, em ações simples, como jogar lixo em locais inadequados. E mesmo quando se destina corretamente os rejeitos (coleta seletiva), esquece-se de que se consomem diversos produtos com embalagens altamente impactantes 34

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para o meio ambiente. Na maior parte das vezes, sequer se sabe como aquele produto foi elaborado, se causou impactos ambientais, se utilizou mão-de-obra infantil ou se está em condição análoga à de escravidão. Garrafas tipo “peti”, sacos plásticos, papéis, latinhas de bebidas, garrafas de vidros, embalagens longa vida, pilhas e baterias, que podem levar séculos para se decompor, deixam o rastro do homem no planeta. Assim, todos, enquanto consumidores, são responsáveis pela degradação ambiental? E como isso se relaciona com o aquecimento global? O plástico que se descarta leva milhares de anos para se degradar, alimentos vêm de áreas de desmatamento e compras cotidianas envolvem uma cadeia de lojas, indústrias, transportadoras e agricultores que despejam na atmosfera até 77% dos gases que estão mudando o clima da Terra.41 Dessa forma, o consumidor tem grande parcela de responsabilidade quando adquire bens de consumo. Assim, ao fazer boas escolhas, nós influenciamos uma cadeia de indústrias e fornecedores cuja política ambiental determina o futuro da vida no planeta. Portanto, a responsabilidade do consumidor está além do consumo, é uma responsabilidade social, agregado a esta, inclusive, a obrigação de repensar seus hábitos de consumo, deixar de comprar por impulso, separar o lixo para reciclagem ou, até mesmo, ao comprar um produto, observar se estes estão livres de agrotóxicos e o quanto se poluiu na sua fabricação.42

A boa notícia é que os consumidores estão começando a se preocupar com as questões ambientais e as empresas, por sua vez, impulsionadas pelas exigências cada vez mais frequentes dos consumidores e, em decorrência de uma maior conscientização ambiental, estão mudando suas posturas. Para tanto, desenvolvem meios para diminuir o máximo possível a emissão de gases poluentes, inclusive, indicando nos rótulos a quantidade de dióxido de carbono (maior poluente responsável pelo aquecimento global) necessária para sua produção. Exemplos dessa nova mentalidade são: a Ypê, que já plantou 200 mil árvores em Campinas (São Paulo) e em suas fábricas, toda a água proveniente dos processos de produção é tratada, purificada e reutilizada; o supermercado Pão de Açúcar vende sacolas retornáveis para estimular os clientes a não levar sacos plásticos; as caixas de bombom da marca Garoto agora têm um selo verde que garante que o papel não é feito com árvores de desmatamento; da mesma forma, a Tramontina e a Todeschini garantem que a madeira de seus produtos vem de áreas de reflorestamento; a Bosch e a GE usam gases refrigerantes que não afetam a camada de ozônio nem contribuem para o aquecimento global, dentre outras. Tudo isso é decorrente do aumento de conscientização, proveniente tamREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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bém da massificação da informação e da Internet, importante ferramenta nesse processo, que favoreceu o achatamento do mundo. Segundo Freidman A democratização da informação está exercendo um profundo impacto na sociedade. Os consumidores hoje são muito mais eficientes – podem encontrar informações, produtos e serviços mais rápido [através dos buscadores] que pelos meios tradicionais. Estão melhor informados ... E as pessoas têm a possibilidade de se conectarem melhor àquilo que lhes interessa, de se tornarem, com rapidez e facilidade, especialistas em determinados assuntos e de se conectarem com outros que compartilham seus interesses.43

Hy Mariampolski corrobora com este entendimento: Há uma preocupação crescente com a responsabilidade social e ambiental. Os consumidores querem que a imagem de responsabilidade social das empresas não seja só marketing, mas tenha base em políticas e programas efetivos. Na nova economia global, as empresas são vulneráveis. Isso é conseqüência da velocidade cada vez maior das comunicações.44

E o consumidor, por meio dessa vasta rede de comunicações que está à sua disposição, já percebeu que, “na corrida para associar suas marcas ao conceito de sustentabilidade, empresas de todo o mundo estão falando mais do que fazendo.”45 Empresas inteligentes buscarão cada vez mais a ecoeficiência, inclusive incentivando seus clientes a preservar o meio ambiente. Fábio Barbosa, na mesma linha de raciocínio, conclui: Quanto mais empresas e instituições começam a praticar e a comunicar suas ações em sustentabilidade, mais o tema se difunde na sociedade. Há cada vez mais opções de comunicação e a capacidade de expressão dos consumidores só aumenta. O nível de crítica e de vigilância da sociedade tem aumentado também. E essa é uma ótima notícia, pois ajudará a diferenciar aqueles que realmente fazem daqueles que fazem menos. ... Essa não é uma “onda”, mas um caminho sem volta. Tudo o que está sendo feito veio para ficar. Principalmente porque é a sociedade que está cobrando e porque não há outro jeito de se fazer. ... Os consumidores, tanto no Brasil como no mundo, estão cada vez mais exigentes e conscientes sobre o assunto, forçando as empresas a mudar suas práticas.46

Esse processo de alteração da modificação da consciência pessoal e empresarial para uma ecológica decorre também de políticas emanadas do Poder Público, o que se vê em seguida. 36

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7 A CONTRIBUIÇÃO DO PODER PÚBLICO NA LUTA CONTRA O AQUECIMENTO GLOBAL O aquecimento global é um problema mundial. Muitas ações têm sido desenvolvidas e investimentos realizados para tentar combater seus efeitos, tanto em pesquisas como na criação de políticas públicas específicas, visando a prevenir prejuízos futuros que se mostram iminentes. O que se constata, atualmente, é a participação das empresas, dos consumidores e do Poder Público, em ações que objetivam a redução dos gases de efeito estufa - GEE. Neste tópico verificamos quais as medidas adotadas pelo Poder Público no país para combater o aquecimento global. 7.1 O Governo Federal O grande marco legal na conscientização dos brasileiros para as questões da natureza foi a edição da Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental47. Com o advento dessa norma, ficou regulamentada a educação ambiental no país, obrigando o Poder Público a investir recursos na capacitação em favor do meio ambiente. Especificamente sobre aquecimento global, está em andamento, desde o ano de 2007 (com previsão de conclusão em 2009), o Plano de Mudanças Climáticas, de acordo com informação do embaixador Sérgio Serra48. O referido embaixador ressalvou que “pelo menos alguns módulos podem ficar prontos antes e, inclusive, ser divulgados com antecedência para que se possa agir sobre eles, isto é, sobre suas recomendações”.49 Programas como “Ciência, Tecnologia e Inovação para a Natureza e Clima” responsável pela pesquisa e desenvolvimento de tecnologias sobre a mudança global do clima e “Gestão da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação”, que realiza o inventário nacional das emissões e outros como a gestão das pesquisas e operacionalização dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo estão à busca de parcerias nacionais de pesquisa para gerar dados confiáveis sobre as emissões brasileiras, assim como tecnologias e metodologias para o acompanhamento dessas emissões.50 Além dessas ações específicas, é importante lembrar que campanhas de fiscalização e monitoramento em relação ao meio ambiente são indispensáveis para uma mudança de postura ambiental. No âmbito federal, são de responsabilidade do IBAMA as ações fiscalizatórias necessárias à manutenção da qualidade do meio ambiente. Aliada também a este embate está a educação ambiental, cuja obrigação do Governo Federal é auxiliar e financiar campanhas e projetos desse sentido.

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7.2 Os Governos Estaduais Diversos Estados partiram na frente nessa corrida pela redução das emissões de gases de efeito estufa e pela conscientização ambiental. Citamos alguns casos neste tópico. O Governo do Piauí adotou o meio ambiente como uma de suas políticas públicas prioritárias. Para tanto, anunciou, em junho de 2007, algumas medidas que fazem parte da Política Estadual de Desenvolvimento Local, Biocombustíveis Sustentáveis e Mudanças Climáticas. Foi primeiramente criado o Fórum Estadual de Mudanças climáticas e combate à pobreza, articulando-se a um Grupo de Trabalho que irá responsabilizar-se pela elaboração de políticas públicas de desenvolvimento sustentável. O trabalho de combate à pobreza, a preservação do meio ambiente e a redução das emissões de gases poluentes serão desenvolvidos em parceria com diversas organizações, entre elas a CARE, a CANTOR CO2 e a empresa do mercado de créditos de carbono que detém a metodologia do carbono social.51 O Paraná, por sua vez, é um dos Estados que mais se tem destacado em ações de combate ao aquecimento global. Entre suas iniciativas tem-se: a instalação do Fórum Estadual de Mudanças Climáticas que discute com a sociedade formas de reduzir a poluição atmosférica; criação de uma coordenadoria específica para auxiliar na elaboração de políticas públicas sobre o tema, ações de educação ambiental, como a cartilha “Entendendo Mudanças Climáticas” e a realização do seminário “Aterros Sanitários e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)” com intuito de reduzir a emissão dos gases poluentes nos aterros sanitários.52 No Ceará, seu órgão ambiental tem atuado fortemente com um Programa de Controle Ambiental – PCA, implementando o Sistema de Controle e Monitoramento da Qualidade do Ar e desenvolvido o Programa de Educação Ambiental - PEACE (amparado em legislação anterior à federal – Lei no 12.367, de 18 de novembro de 199453, com cursos de capacitação para Agentes Multiplicadores. São Paulo, no mesmo sentido, instituiu o Proclima – Programa Estadual de Mudanças Climáticas54. Em 2005, as Secretarias do Meio Ambiente de São Paulo e da Califórnia firmaram acordo para estabelecer ações conjuntas visando a reduzir as emissões de gases de efeito estufa.55 O Estado do Amazonas também instituiu uma Política Estadual de Mudanças Climáticas e desenvolve ações de educação ambiental, inclusive, com a publicação de uma Coleção Educação para a Sustentabilidade.56 Por fim, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul instituiu o Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas por meio do Decreto no 45.098, de 15 de junho de 2007, em que, além de promover palestras sobre o assunto, tem a possibilidade de propor ações governamentais. O Fórum é composto por setores de energia, transportes, indústria, agricultura, irrigação, silvicultura e tratamento de resíduos, por comunidade científica e entidades representantes da sociedade civil.57 38

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Muito está sendo feito para combater o aquecimento global, mas ainda há muito a se fazer. Mais políticas públicas devem ser lançadas, maiores incentivos a empresas privadas e maior conscientização da população. Enfim, um melhor uso do meio ambiente, como forma de garantir nossa permanência no Planeta Terra. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS O aquecimento global é uma realidade e não há como contradizê-la. A quase unanimidade da comunidade científica é categórica em afirmar que o próprio homem é responsável por esse aquecimento. Seus efeitos têm sido sentidos em todos os continentes, com cheias ou secas, tempestades, furacões, tormentas, calor excessivo, derretimento das calotas polares e geleiras. O Protocolo de Quioto foi fruto do esforço dos governos internacionais em tentar minimizar o problema, mas a não adesão dos Estados Unidos da América, maior poluidor mundial coloca em xeque seus resultados. Aliás, na encruzilhada está o capitalismo, já que a maioria das empresas ainda não se deu conta da necessidade de crescer e lucrar sem destruir o meio ambiente. Mas já há bons sinais de mudança nesse setor, principalmente com a utilização do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo trazido pelo acordo de Quioto. Da mesma forma, percebem-se mudanças de postura institucional das corporações, tanto pela percepção de que os consumidores estão mais exigentes e informados, quanto pela constatação de que não há futuro empresarial se o planeta de tornar caótico para a vida humana. Assim, várias delas começam a dar sua parcela de colaboração com a causa, seja capacitando e motivando funcionários, seja condicionando bônus financeiros a estes pela melhora ambiental da empresa. Consumidores conscientes sobre as questões ambientais, bem como com o problema do aquecimento global trazem benefícios a toda humanidade, posto que passam a agir como fiscais da natureza e forçam as empresas a mudar de atitude também. Os governos tentam contribuir, com políticas públicas e estratégias de capacitação e conscientização da população sobre os impactos do aquecimento global, criando fóruns de participação e discussão. Todos têm um papel a cumprir nesta importante tarefa de salvar o planeta do caos ambiental e a espécie humana de uma vida mais difícil neste Planeta Terra. 9 REFERÊNCIAS AMAZONAS. Disponível em: <http://www.sds.am.gov.br/>. Acesso em: 20 jul. 2008. BARBOSA, Fábio. A empresa verde é um caminho sem volta. Revista Época, 23 jun. 2008. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Cristiano Ribeiro de Araújo Maia, Sara Franklin Narbal de Oliveira, Idalgenya Vitoriano Barbosa, Márcio dos Santos Carvalho, Miguel Leal Neto e Francisco Dourado B. Neto, na ordem dos capítulos. 2 GUGGENHEIM, Davis (Dir.). Uma verdade inconveniente. Produção: Laurie David, Lawrence Bender e Scott Z. Burns. Intérprete: Al Gore. Paramount Classics, 2006, 1 CD (96 min.), color, documentário. 3 KATRINA e Rita podem custar US$ 40 bilhões a seguradoras. Folha Online. Disponível em: <http:// www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u88157.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2008. 4 Busca por corpos em Nova Orleans termina com 972 mortos. Folha Online. Disponível em: <http:// www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u88330.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2008.

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Aquecimento global e o papel das empresas, governos e consumidores na redução de seus efeitos

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Furacão Katrina: o documentário. Metsul Climatologia Urbana. Disponível em: <http://www.metsul. com/secoes/visualiza.php?cod_subsecao=30&cod_texto=223>. Acesso em: 20 jul. 2008. MATTAR, Maria Eduarda. Clima ruim no ar. Revista Forum. Disponível em: <http://www.revistaforum. com.br/vs2/Artigos_Ler.asp?Artigo=%7BEA1E500C-A837-4B70-8EC5-B9D 335AB61E5%7D>. Acesso em: 20 jul. 2008. GUGGENHEIM, op. cit. KENSKI, Rafael. O começo do fim: a humanidade está diante da maior ameaça de todos os tempos: o aquecimento global. Revista Super Interessante, n. 218, 2005, p. 44. GUGGENHEIM, op. cit. Ibidem. ROCHA, Délcio. Ciclones e enchentes produzem refugiados ambientais em Bangladesh. Ambiente em foco. Disponível em: <http://www.ambienteemfoco.com.br/?p=6554>. Acesso em: 17 jul. 2008. GUGGENHEIM, op. cit. KENSKI, op. cit., p. 54. ROCHA, Délcio. Mundo pode ter guerras por água, diz “Herald Tribune”. Ambiente em foco. Disponível em: <http://www.ambienteemfoco.com.br/?p=930>. Acesso em: 10 jul. 2008. TEIXEIRA JÚNIOR, Sérgio. Aquecimento sob controle: o “ambientalista cético”volta a atacar, mas traz poucas idéias novas. Revista Exame, 10 out. 2007, p. 189. VICÁRIA, Luciana. Dá para confiar nos cientistas? Revista Época, 02 abr. 2007, p. 72. Ibidem. MUDANÇA do Clima 2007: impactos, adaptação e vulnerabilidade. Ministério da Ciência e Tecnologia. Disponível em: <http://www.mct.gov.br/upd_blob/0015/15131.pdf>. Acesso em 15 de jul. 2008. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 1158. INFORMAÇÕES básicas sobre o Protocolo de Quioto. Conpet. Disponível em: <http://www.conpet. gov.br /quioto/noticia.php?segmento=corporativo&id_noticia=242>. Acesso em: 30 mai. 2008. PROTOCOLO de Quioto. Revista Veja.com. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/ perguntas_respostas/protocolo_kioto/index.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2008. INFORMAÇÕES básicas sobre o Protocolo de Quioto. Conpet. Disponível em: <http://www.conpet. gov.br/quioto/noticia.php?segmento=corporativo&id_noticia=242>. Acesso em 30 mai. 2008. GUGGENHEIM, op. cit. PROTOCOLO de Quioto. Revista Veja.com. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/ perguntas_respostas/protocolo_kioto/index.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2008. 01 tonelada de CO2 = 01 crédito de carbono. Protocolo de Quioto. Revista Veja.com. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/ perguntas_respostas/protocolo_kioto/index.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2008. BRASIL. Decreto Legislativo nº 144 de 2002 - Aprova o texto do Protocolo de Quioto à ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Ministério da Ciência e Tecnologia. Disponível em: <http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/20310.html>. Acesso em: 18 jul. 2008. BEM, Fernando; TONELLO, Keli Arisi. Análise do reconhecimento contábil dos créditos de carbono. Revista do Conselho Regional de Contabilidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 131, 2007, p. 19. VIEIRA, Tereza Rodrigues e MORETTI, Aline Rossato. Proteção do meio ambiente e o tratado de Kyoto. Revista Jurídica Consulex, ano XII, n. 265, 2008, p. 15. MECANISMO de Desenvolvimento Limpo. Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: <http://www.cebds.org.br/cebds/pub-docs/pub-mc-mdl.pdf>. Acesso em: 28 mai. 2008. BRASIL. Projeto de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo no Brasil: um levantamento de perspectiva com o setor produtivo. Ministério de Desenvolvimento Industrial e Comércio. Disponível em: <http:// www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1204751476.pdf.>. Acesso em: 28 mai. 2008. MDL. Bioenergy. Disponível em: <http://www.bioenergy.com.br/pages/mdl.php>. Acesso em: 27 mai. 2008. GONÇALVES, Cyllene Zöllner Batistella; STUMP, Daniela; MARIZ, Lívia; ANGELIM, Rodrigo Pereira; CALDERONI, Vivian; MARINHO, Yuri Rugai. Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e Considerações sobre o Mercado de Carbono. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 43, 2007, p. 92.

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34 GONÇALVES, José Alberto. À frente da corrida pelo impacto zero: como algumas das maiores empresas do mundo conciliam as restrições de consumo de recursos naturais com a oportunidade de ser mais eficientes. Planeta Sustentável. Disponível em: <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento / conteudo_265735.shtml?func=2>. Acesso em: 17 jul. 2008. 35 CARVALHO, Gumae. Uma luz sobre a remuneração sustentável: criar metas de redução de CO2 e identificar o uso ou não de mão-de-obra infantil na cadeia produtiva são alguns dos exemplos de como é possível atrelar o futuro do planeta ao contracheque dos executivos. Revista Melhor. Disponível em: <http://revistamelhor.uol.com.br/textos.asp?codigo=12254>. Acesso em 18 jul. 2008. 36 Ibidem 37 GONÇALVES, José Alberto, op. cit. 38 CARVALHO, Gumae. Ambiente além do organizacional: como o RH pode contribuir na preservação dos recursos naturais. Revista Melhor. Disponível em: <http://revistamelhor.uol.com.br/textos. asp?codigo=9831>. Acesso em: 18 jul. 2008. 39 Vice-presidente de Qualidade e Meio Ambiente da ABRH-Nacional, apud CARVALHO, Gumae. Ambiente além do organizacional: como o RH pode contribuir na preservação dos recursos naturais. Revista Melhor. Disponível em: <http://revistamelhor.uol.com.br/textos.asp?codigo=9831>. Acesso em 18 jul. 2008. 40 CF/88. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. 41 MANSUR, Alexandre. Compre Verde: como nossas compras podem ajudar a salvar o planeta. Revista Época. Edição de 30 de março de 2008, p. 65. 42 Ibidem 43 FRIEDMAN, Thomas. O mundo é plano: uma breve história do século XXI. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 180. 44 MARIAMPOLSKI, Hy. O consumidor hoje está mais cético. Revista Época, 14 jul. 2008, p. 86. 45 HERZORG. Ana Luiza. O discurso Verde. Revista Exame, 10 out. 2007, p. 142. 46 BARBOSA, Fábio. A empresa verde é um caminho sem volta. Revista Época, 23 jun. 2008, p. 87. 47 BRASIL. Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Planalto. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9795.htm>. Acesso em: 15 jul. 2008 48 BRASIL espera avanço para compensações por redução de desmatamento. Hy-line do Brasil. Disponível em: <http://www.hylinedobrasil.com.br/website/production/htms_pt/ifm_news_1.asp?id_ conteudo=1825&id_area=1>. Acesso em: 11 jul. 2008. 49 Ibidem 50 O Brasil e o Protocolo de Kyoto. Rastro de Carbono. Disponível em: < http://rastrodecarbono.hitechlive. com.br/?p=536>. Acesso em: 12 jul. 2008. 51 POLÍTICA de combate à pobreza e mudanças climáticas avança no Piauí. Care.org. Disponível em: <http://www.care.org.br/Noticia.asp?CodConteudo=327>. Acesso em: 15 jun. 2008. 52 PARANÁ: Programa Mata Ciliar combate aquecimento global. Paraná.gov. Disponível em: <http:// www3.pr.gov.br/mataciliar/noticia_visualizacao.php?noticia=200>. Acesso em: 15 jun. 2008. 53 CEARÁ. Lei no 12.367, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o artigo 215, parágrafo 1º item (g) e o artigo 263 da Constituição Estadual que institui as atividades de Educação Ambiental, e dá outras providências. DOE no 16.437, ano LXI, p. 1. 54 PROCLIMA. Homologa.ambiente. Disponível em: <http://homologa.ambiente.sp.gov.br/proclima/ default.asp>. Acesso em: 22 jul. 2008. 55 SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.ambiente.sp.gov.br/acordoSPCalifornia.php>. Acesso em: 22 jul. 2008. 56 SECRETARIA de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. SDS. Disponível em: <http://www.sds.am.gov.br/>. Acesso em: 20 jul. 2008. 57 RIO GRANDE DO SUL. Decreto no 45.098, de 15 de junho de 2007. Cria o Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas e da outras providências. Disponível em: <http://www.sema.rs.gov.br/sema/html/pdf/ decreto_45098_18_06_2007_cria_forum_mudancas_climaticas.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2008.

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GLOBAL WARMING AND THE ROLE OF C O M PA N I E S , G O V E R N M E N T S A N D CUSTOMERS IN REDUCING ITS EFFECTS ABSTRACT Global warming is an unavoidable reality, whose effects can be felt all over the world, as natural disasters clearly demonstrate. Kyoto Protocol and the instruments it proposes are an intent of minimizing this problem. However, the necessary change of attitude demanded for reverting the present environmental chaos and the pernicious consequences of the greenhouse effect gases must start from consumers and companies, not forgetting that governments also have an important role in this context Keywords: Global warming. Greenhouse effect gases. Kyoto Protocol. Consumers. Companies.

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POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL? Aléxis Mendes Bezerra* RESUMO Averiguada a inconstância do tratamento do fenômeno crime no panorama jurídico nacional, o presente trabalho propõe analisar sua adequação aos preceitos político-criminais. Para isto, o estudo inicia-se apreciando a evolução, a conceituação e os movimentos de Política Criminal, passando, empós, a verificar a relação da Política Criminal com o Direito Penal e o aplicar daquela no ordenamento pátrio. Palavras-chave: Novos movimentos. Política Criminal. Brasil. Direito Penal. 1 INTRODUÇÃO As questões criminais sempre motivam calorosos embates e, não raramente, angariam grande exposição midiática, cobrando melhor aparelhamento estatal e insuflando a sociedade a demandar um ordenamento penal mais severo, sendo inconteste a presença do Direito Penal no vivenciar de cada indivíduo. O objeto do trabalho ora proposto é precisamente permeado por toda a inquietude vivenciada nessa seara. Fora pretendido, sob a ótica da Política Criminal, verificar a aplicabilidade coesa de certa gama de preceitos políticocriminais no ordenamento penal brasileiro. O esforço inicial deter-se-á no exame bibliográfico e documental acerca da Política Criminal, assunto este de pouca popularidade e de bastante imprecisão na doutrina nacional. Depois de vencida uma conceitual celeuma inicial, serão abordados os movimentos mais atuais no tocante à Política Criminal, empós, será abordada a Política Criminal e sua relação com o Direito Penal. Concluindo o presente artigo, verificar-se-á a aplicabilidade dos movimentos de Política Criminal na conjuntura brasileira, percebendose de modo crítico a inexistência ou não de aplicação organizada nesse contexto espacial.

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Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual do Estado do Ceará. Graduado em Direito pela Faculdade Christus (2007). Advogado, com experiência em Direito Penal e Tributário.

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2 POLÍTICA CRIMINAL: ASPECTOS CONCEITUAIS E APLICAÇÃO NO BRASIL O estudo da Política Criminal exige o enfoque evolutivo e conceitual, apresentando-se um problema epistemológico evidenciado na divergência dos conceitos utilizados pelos diversos doutrinadores da temática. 2.1 Evolução e conceituação Iniciando a abordagem da Política Criminal pelo clássico conceito de Franz Von Liszt, o qual fora muito difundido na Europa no período anterior à Primeira Guerra Mundial, como sendo o “[...] conjunto sistemático de princípios segundo os quais deve o Estado conduzir a Luta (grifo do autor) contra o crime por meio da pena e instituições afins [...]”1. Mencionado conceito é abordado pelo autor João Farias Júnior, o qual noticia a crítica doutrinária de sua total defasagem. Passando a abordar a Política Criminal pela evolução conceitual estudada pela professora francesa Delmas-Marty, deve-se mencionar a contribuição do filósofo alemão Feuerbach, de importância histórica. Referido filósofo do século XVII, embasou o tradicional conceito de Política Criminal, o qual “foi durante muito tempo sinônimo de teoria e prática do sistema penal, designando [...] o conjunto dos procedimentos repressivos pelos quais o Estado reage contra o crime”2. Prossegue a autora francesa afirmando que com a fundação, em 1975, dos Arquivos de Política Criminal3 por Marc Ancel, teria a Política Criminal se isolado do Direito Penal, da Criminologia e da Sociologia Criminal, possuindo autônoma existência, entendendo-se como “a reação, organizada e deliberada, da coletividade contra as atividades delituosas, desviantes, ou anti-sociais”4 devendo, ainda, segundo referida professora, ser observado o duplo caráter, tanto de ciência de observação, quanto de estratégia metódica da reação anticriminal5. Condensando a observação desses dois caracteres explicitados por Delmas-Marty, Fernandes e Fernandes adotam conceituação bastante semelhante, focando o estudo da Política Criminal em sua abordagem mais prática: A Política Criminal, sob o ponto de vista prático compreende dois momentos: o primeiro, que é a montagem de estratégias de prevenção à criminalidade e o segundo, quando a prevenção não alcançou seus objetivos, que é o da repressão racionalmente programada de forma a obter os resultados por ela colimados, quais seja, através dos métodos aplicados, evitar a reincidência delituosa.6

Entretanto, os mesmos autores elencam diferentes conceituações quando, citando J. Antón Oneca, afirmam que a Política Criminal é “a crítica das instiREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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tuições vigentes e preparo de sua reforma, consoante os ideais jurídicos que se vão formando à medida que o ambiente histórico-cultural sofre modificações”7, conceituação semelhante a outra, também citada por Fernandes e Fernandes, dessa vez do teórico Cuello Calón, o qual afirma que a Política Criminal não é ciência autônoma, sendo apenas “critério diretivo da reforma penal, que deva basear-se no estudo científico do delinquente e da criminalidade, da pena e demais medidas de defesa social contra o crime”8. Já no início do enfoque da conceituação de Política Criminal, observa-se outra querela no tocante à autonomia ou à dependência existente entre essa e o Direito Penal, problemática que receberá especial zelo em tópico próprio. Na abordagem doutrinária brasileira, há entendimento de que o conjunto necessariamente uniforme do posicionamento estatal perante condutas sociais é a essência da Política Geral e, no tocante ao posicionamento estatal perante condutas caracterizadas como crimes, haveria a divisão na espécie Política Criminal. A assertiva que pugna pela necessidade da uniformidade do posicionamento estatal perante as condutas sociais se justifica por não haver sentido em o Estado posicionar-se de dada maneira em determinadas circunstâncias fáticas, e, em outras de cunho similar, o mesmo haja de modo dicotômico. Zaffaroni e Pierangeli defendem os lineamentos suso esposados, afirmando que “[...] por Política Criminal pode-se entender a política relativa ao fenômeno criminal, o que não seria mais que um capítulo da política geral”9, e, esclarecendo ainda sobre o conceito de Política Criminal, asseveram que a “Política Criminal seria a arte ou a ciência de governo, com respeito ao fenômeno criminal”10. Destarte, pode-se denotar como funções da Política Criminal tanto a norteadora da atividade de produção legal, como também a de embasar a atividade hermeneuta, funções estas que também se aproximam dos caracteres delineados pela autora francesa Delmas-Marty. Entendendo que o surgimento da tutela de determinados bens jurídicos ocorre com a tomada de uma decisão eminentemente política, a qual eleva tais específicos bens à proteção penal, em harmonia ao princípio da fragmentariedade do Direito Penal, há de ser perceber que a citada decisão não ocorre de modo desarrazoado, devendo se pautar, segundo a valoração social dado ao contexto histórico vivenciado. É o que também defendem Zaffaroni e Pierangeli: Toda norma jurídica surge de uma decisão política. Toda norma jurídica traduz uma decisão política. A decisão política dá origem à norma jurídica, mas isto não implica que a norma fique submetida absolutamente à decisão política. Ninguém pode argumentar que a norma não traduz adequadamente a decisão política, para defender que está proibido o que a ordem jurídica não proíbe, mesmo que tenha sido a vontade do legislador.11 48

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Os citados doutrinadores bem relacionam a norma jurídica à decisão política, como também arrematam demonstrando que não há que se cogitar a utilização dessa decisão política de proteção ao bem jurídico para subtrairse daquilo que fora efetivamente positivado na norma, esta entendida em seu sentido literal. É o império do princípio da legalidade, que, no Direito Penal, encontra sua maior expressão, deveras devido ao íntimo contato dessa área jurídica com valores fundamentais, tais como liberdade e dignidade da pessoa humana, como também ser forma de possibilitar a necessária segurança jurídica. Percebe-se, portanto, que o conjunto de normas e de princípios penais que constituem o Direito Penal é, em seu enfoque amplo, muito mais do que uma série de verbetes alocados numa codificação legal de forma a possuir semântica lógica, muito mais do que um conjugado de artigos, parágrafos, incisos e alíneas organizados no todo do dispositivo legal. Por sua própria essência de tutelar os bens caros à sociedade, tal seara jurídica deve ser positivada de acordo com a conjuntura social subjacente. Por conseguinte, poder-se-ia definir a Política Criminal como a área do conhecimento que apresenta as bases para a criação, a modificação e a extinção da forma da reação estatal perante condutas desviantes, quer seja por meio de previsões legais de condutas abstratas e hipotéticas denominadas tipos penais passíveis da punição penal, quer seja pela tutela de tais condutas indesejadas por outros meios jurídicos, sendo, de toda forma, uma manifestação efetiva da opção política do Estado em reprimir essas específicas condutas, sendo, tal opção política, uma das vertentes dessa área do conhecimento humano, que também pretende nortear a atividade interpretativa e reformadora da norma positivada para a pacificação social. Mister ressaltar que o estudo e a aplicação dos conceitos de Política Criminal devem sempre ser espelhados no panorama histórico-cultural subjacente, não devendo haver controle penal naquelas situações nas quais não sejam efetivamente necessárias aos olhos da sociedade. É o que ensinam Edmundo Mezger e Vitorino Prata, ambos citados por Fernandes e Fernandes, o primeiro afirma que “uma boa política social é a melhor Política Criminal”12 e o segundo completa que “o ódio atrai o ódio, a violência atrai a violência, onde há mais repressão ilegal há mais represália marginal”13. Destarte, deve a Política Criminal implementada ser eficiente de modo suficiente a promover segurança social e ratificar os valores socialmente vigentes, não podendo contrariar quaisquer desses intentos sob pena de ser cogente e necessária à reforma dos seus ditames. 2.2 Movimentos hodiernos de Política Criminal Para que sejam estreados os estudos acerca dos movimentos de Política Criminal mais recentes, deve ser compreendida qual é a finalidade REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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e o escopo desses movimentos. Nesse intento, inicia-se com o seguinte ensinamento de Durkheim: Em primeiro lugar, o crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele. O crime é, pois, necessário; ele se liga às condições fundamentais de toda a vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade; pois estas condições de que é solidário são, elas próprias, indispensáveis à evolução normal da moral e do direito.14

No prenúncio absoluto de Durkheim, pode-se conceber seu entendimento pela total impossibilidade da extinção do fenômeno criminoso em qualquer meio social. A despeito das possíveis e pertinentes considerações acerca de afirmações exauríveis como a do sociólogo citado, deve-se utilizar tal afirmação como nuance basilar dos movimentos de Política Criminal, os quais não pretendem exterminar totalmente o fato crime do meio social, mas, de todo modo, anseiam possibilitar que tais fatos ocorram em proporções socialmente aceitáveis. O estudo da Política Criminal adotada em determinado contexto espacial e temporal requer prévio conhecimento das posturas efetivadas de modo similar, em maior ou menor escala, enquadrando-se nos chamados movimentos de Política Criminal, os quais pressupõem identidade e permanência de conceitos e valores na tomada das decisões político-criminais, notadamente na determinação dos bens jurídicos tutelados. Meireille Delmas-Marty explicita essa identidade existente em cada movimento, assim como a motivação do surgimento de novos movimentos de Política Criminal: Todo movimento marca uma permanência. Todo sistema novo se baseia na invariabilidade de determinados elementos do sistema antigo que ainda permanecem. Tanto em Política Criminal quanto em outras áreas, os movimentos se desenvolvem a partir desta lei, de permanência de invariabilidade, nos termos da qual um sistema só existe se estiver estruturalmente estável.15

Nesse contexto, há de se defender que não existe um movimento plenamente correto, ou que qualquer dele seja mais virtuoso, ou vicioso do que outro, necessita, efetivamente, quando do estudo em abstrato dos movimentos, de sua análise sistemática isenta de ponderações íntimas. A correição ou idoneidade dos movimentos pautar-se-ão, necessariamente, quando aplicados em uma realidade social definida, e, apenas assim, poderá ser avaliada se a Política Criminal implantada está possibilitando segurança social e se tal não contraria os valores vigentes naquela sociedade.

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2.2.1 Abolicionismo penal O movimento político-criminal do Abolicionismo Penal, como sugere o próprio termo, alude a extinção do Direito Penal como instância jurídica de solução de conflitos e efetivação da justiça, por reputá-lo totalmente ineficiente e desnecessário. Traduz de modo límpido o ideário desse movimento a seguinte indagação proposta por Almeida: “Para que serve o sistema penal, se este atinge somente algumas pessoas e que não consegue ressocializá-las, mas sim dessocializá-las cada vez mais quando apela para a reconhecidamente falida pena privativa de liberdade?”16 O primeiro fundamento desse movimento é a máxima de que o crime não existe senão segundo uma hipótese humana prévia e, portanto, o que é crime não o é de modo absoluto, mas sempre relativizado ao contexto legal que prevê os atos ilícitos da sociedade em análise, criticando, ainda, que a definição do que é crime corriqueiramente ocorre por determinada parcela da sociedade, impondo aos integrantes dos mais baixos substratos sociais uma maior abrangência por tais determinações do que os próprios integrantes da parcela social dominante e determinadora dos atos considerados como crimes. Outro embasamento do ideário desse movimento afirma ser a pena e, primordialmente, a privativa de liberdade, totalmente inútil, posto não resolver o problema que lhe deu origem, além de não ressocializar o sujeito ativo do crime, agindo de modo contrário, marginalizando-o e tornando-o efetivamente excluído da possibilidade de reingresso na vida social. O principal defensor desse movimento fora o holandês Louk Hulsman, o qual trata da temática de modo enfático e, inclusive, com toques de poesia, pretendendo ensinar que há alternativas ao falido modelo penal: Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça.17

Defende o teórico holandês que a extinção penal não implica na não previsão de atos considerados ilícitos, mas ,sim, na mudança do tratamento desses atos, sendo mais adequadamente analisados e resolvidos em instâncias outras, tais como métodos civis de solução de conflitos, devendo, ainda, haver a abolição da utilização de termos estigmatizantes, tais como crime, criminoso, vítima etc. Continua Hulsman na defesa do extermínio do sistema penal afirmando que os efeitos benéficos seriam ainda maiores, trazendo para a solução do conflito aqueles que foram diretamente envolvidos na situação-problema18, uma vez que, no falido e execrável sistema penal, o Estado, com o monopólio do jus puniendi, havia retirado tal possibilidade dos particulares, distanciando-os da resolução do conflito. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Muito embora possa ser considerado utópico em sua finalidade, como deveras o é pelos doutrinadores mais recentes, o Abolicionismo Penal proporciona bases críticas para uma nova análise do sistema penal e do sistema punitivo estatal, primordialmente pelo reconhecimento da ineficácia da pena privativa de liberdade. Referida percepção é atual e observada não apenas pelos abolicionistas, mas também por estudiosos outros das ciências sociais, tendo como ícone crítico o francês Michel Foucault que afirma: “[...] conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”19. Outra base crítica fundada no movimento do Abolicionismo Penal fora a utilização de métodos outros para responder ao ilícito, principalmente a composição civil ou a conciliação. Percebe-se, nos dias atuais, a utilização desse ideário, inclusive, na legislação penal pátria, citando-se como exemplo mais representativo a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que instituiu os Juizados Especiais Criminais, passando a adotar, antes mesmo do início do procedimento penal que ocorre com o recebimento da denúncia, métodos extrapenais de solução do conflito inspirados nos ensinamentos da conciliação civil dos conflitos. 2.2.2 Movimento da Lei e da Ordem20 Movimento diametralmente oposto ao Abolicionismo Penal, surgido em meados dos anos 70 nos Estados Unidos da América, utiliza o ideário do panpenalismo e tem como principal característica o enfático combate à criminalidade por meio de excessivas previsões legais penais, com elevada cominação de penas, tanto privativas de liberdade como outras, inclusive, a de morte. Do estudo do movimento da Lei e da Ordem, podem-se observar padrões como a inflação da codificação penal especial, a ampliação dos crimes com penas mais gravosas, o enrijecimento do regime de cumprimento das penas, a adoção de penalidade capital, a impossibilidade de aplicação de medidas alternativas à punição penal, a adoção de um rito processualístico penal mais severo, enfim, toda uma série de nuances com desígnio ululante de tratar o fenômeno criminológico da forma intransigente e austera, ao menos no plano formal. Não é surpresa haver considerações críticas ao referido movimento, notadamente sob o prisma dos Direitos Humanos. A conquista social de um sistema penal garantista, ciente e cumpridor da ampla gama de direitos humanos, que, embora possa ser considerado redundância afirmar, são fundamentais e inerentes à própria condição humana, passa a ser inferiorizada pelo discurso da segurança pública, aproveitando o medo social, o sentimento de insegurança. Continua a crítica ao referido movimento afirmando que se trata de um Direito Penal meramente simbólico, subserviente a uma resposta social puramente formal, como via do Estado fazer frente à opinião pública e à imprensa perante o 52

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caos evidenciado na problemática da segurança pública, problemática esta que não se vê resolvida com a simples modificação no plano penal formal, mas, sim, com um profundo pensamento crítico da organização social e política vivenciada. No Brasil, também vivencia-se a influência desse movimento, ficando óbvio quando se é analisada a Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, nomeada lei dos crimes hediondos e assemelhados. Nesse dispositivo legal, alvo de modificação legal pela Lei n. 11.464, de 28 de março de 2007, devido ao questionamento da inconstitucionalidade do regime integralmente fechado previsto, há a previsão de uma série de agravamentos, podendo ser citado como exemplo o início do cumprimento da pena em regime fechado independente do quantum da pena, a progressão de regime apenas após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena nos casos de réu primário (para os crimes que não são abrangidos por essa lei, tal requisito é, regra geral, de 1/6 (um sexto)), dentre outros agravamentos. Conforme pode ser observado pela afirmação de Francisco de Assis Toledo, a doutrina posiciona-se criticamente no tocante à influência do Movimento da Lei e da Ordem à legislação extravagante que definira os crimes hediondos: O legislador constituinte de 1988, ao editar a norma do art. 5º, XLIII, criando a categoria dos “crimes hediondos”, bem como o legislador ordinário, ao regulamentar esse preceito através da Lei 8.072/90 agiram apressada e emocionadamente na linha da ideologia ‘law and order’.21

A observação de que o legislador da lei de crimes hediondos acatou o movimento da Lei e da Ordem é, portanto, possível tanto doutrinariamente, quanto pela própria análise do dispositivo sob a ótica dos norteamentos ora delineados. 2.2.3 Direito Penal Mínimo O movimento do Direito Penal Mínimo pode ser considerado a síntese entre a tese do Abolicionismo Penal e a antítese do movimento da Lei e da Ordem, uma vez que não nega totalmente o Direito Penal como instância jurídica de solução dos conflitos que envolvem bens importantes à ordem social, mas também não reconhece no cerceamento de direitos fundamentais e na excessiva e desarrazoada penalização a melhor forma de se combater a criminalidade. De idêntico modo também anunciam Zaffaroni e Pierangeli: Intervenção mínima é uma tendência político-criminal contemporânea, que postula a redução ao mínimo da solução punitiva nos conflitos sociais em atenção ao efeito freqüentemente contraproducente da ingerência penal do Estado. Trata-se de uma tendência que, por um lado, recolhe argumentos abolicionistas e por outro a experiência negativa quanto às intervenções que agravam os conflitos ao invés de resolvê-los.22 REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Compendia o norteamento desse movimento: “MÍNIMA INTERVENÇÃO COM O MÁXIMO DE GARANTIAS (grifo do autor)”23. Percebe-se que o garantismo penal angaria posição de elevada ênfase, uma vez ser uma de suas principais características: a existência da legislação penal e da legislação processual penal sempre em total observância aos preceitos humanos fundamentais. O principal representante do referido movimento é o italiano Luigi Ferrajoli, autor do livro Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, no qual há o resumo dos princípios do garantismo penal do seguinte modo: Nulla poena sine crimine, nullum crimen sine lege, Nulla lex sine necessitate, nulla necessitas sine iniuria, nulla iniuria sine actione, nulla actio sine culpa, nulla culpa sine iudicio, nullum iudicium sine accusatione, nulla accusatio sine probatione, nulla probatio sine defensione 24

Desse resumo principiológico, pode-se extrair todo o aparato que dá sustentação ao movimento do Direito Penal Mínimo, podendo-se iniciar sua análise pelo princípio da legalidade (nulo crime sem lei), o qual informa a necessidade prévia da tipificação penal para a possibilidade de configuração do ato como crime. Outro princípio do movimento em análise é o da intervenção (nula lei sem necessidade), o qual, reconhecendo o caráter fragmentário do Direito Penal, o estabelece como ultima ratio de proteção dos bens jurídicos, ou seja, só deverá ser utilizada a esfera penal quando as outras esferas jurídicas não tenham ofertado a proteção na medida satisfatória. Continuando a análise principiológica, há que se elencar o princípio da lesividade (nula necessidade sem dano), o qual determina que o Direito Penal só deve interferir naqueles atos que tenham a capacidade de ofender, de modo significante, direitos alheios, agredindo prejudicialmente a esfera jurídica de outrem. Atos que não possuam tal aptidão não devem ser alvo da proteção jurídica extrema da seara penal. Assim também se posiciona Damásio E. de Jesus: O Direito Penal só deve ser aplicado quando a conduta lesiona um bem jurídico, não sendo suficiente que seja imoral ou pecaminosa. Entre nós, esse princípio pode ser extraído do art. 98, I, da Const. Federal, que disciplina as infrações penais de menor potencial ‘ofensivo’.25

O princípio da culpabilidade também integra o arcabouço dos princípios desse movimento (nula ação sem culpa), postulando que a punição do sujeito ativo do crime deve ocorrer sempre na medida de sua culpa, servindo tal critério como fundamento da justa medida do jus puniendi estatal. Nesse abordar, devem ser estudados o princípio da jurisdicionalidade (nula 54

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culpa sem jurisdição) e o do acusatório (nula jurisdição sem acusação); o primeiro simbolizado pelo devido processo legal, pugnando que, para efetivação do Direito Penal, terá sempre que haver um procedimento jurisdicional regido pelas normas do devido processo legal (ou devido processo penal), e o segundo caracterizado pela necessária separação das funções de julgar, acusar e defender. Abordando o princípio do ônus da prova (nula acusação sem comprovação), nota-se a preocupação em haver o procedimento penal apenas naqueles casos em que foi demonstrável um lastro comprobatório da existência do fato criminoso e da autoria do mesmo. É o que a doutrina brasileira nomeou de justa causa penal, atualmente defendida por parte da doutrina nacional como condição para o exercício do direito de ação. Tal princípio também se desdobra no princípio da presunção de inocência, o qual defende o estado de inocência do acusado até que se comprove judicialmente sua condição de culpado. O derradeiro dos princípios do ideário do Direito Penal Mínimo é o da defesa (nula comprovação sem defesa), incluindo em seu âmbito o princípio do contraditório, determinando que a comprovação efetuada sobre o fato criminoso só será válida em havendo idônea defesa, pugnando pelo jus libertatis do acusado. São conceitos do Direito Penal Mínimo o da descriminalização, caracterizada pelo Estado efetuar “[...] renúncia formal (jurídica) de agir em um conflito pela via do sistema penal [...]”26, de despenalização, como “[...] o ato de ‘degradar’ a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possível aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade [...]”27, de diversificação, que “[...] é a possibilidade legal que o processo penal seja suspenso em certo momento e a solução do conflito alcançada de forma não punitiva.”28, e, por fim, de descarcerização, medida que objetiva “[...] evitar a imposição da prisão [...] reservando-a para aqueles casos em que haja absoluta e comprovada necessidade, em harmonia com o princípio da presunção de inocência e da ampla defesa [...]”29. A existência das atitudes estatais supraconceituadas decorre da observância de todos os estudados princípios, sendo determinação do Movimento do Direito Penal Mínimo que sejam tomadas para que possam ser satisfatoriamente atendidos os nortes principiológicos informadores do movimento. 2.3 Política criminal e sua relação com o Direito Penal Abrangendo o modo de relacionarem-se entre si a Política Criminal e o Direito Penal surgem duas correntes principais, uma defendendo ter a Política Criminal relação de dependência com o Direito Penal, dependência essa de tal monta que impossibilita sua análise como uma ciência autônoma e outra, em sentido contrário, afirmando ser a Política Criminal área do conhecimento apartado do Direito Penal, guardando com ele apenas relação de interdisciplinaridade.

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A primeira corrente, defendida pelos doutrinadores mais clássicos, informa que a Política Criminal autonomamente não possuiria objetivo prático, posto ser notória a sua existência em função do Direito Penal, servindo-lhe, na visão daqueles, a fornecer bases para possíveis melhoras no sistema penal já existente. Para tal corrente, quando não fornece bases para a reforma do sistema penal, poderá a Política Criminal, em outra análise, possibilitar a melhor aplicação do Direito Penal já existente, e, mesmo nesse viés, estaria intrinsecamente relacionada ao Direito Penal. Assim apregoam Zaffaroni e Pierangeli: [...] a real proposta político-criminológica é feita pelo saber penal, ao ensaiar uma interpretação coerente das decisões políticolegislativas, a qual irá fundamentar a solução dos casos concretos como projetos de decisões político-judiciais.30

A crítica à primeira corrente funda-se na percepção de que o controle e a forma de tratar os atos ilícitos, não mais se limitam aos meandros da pena privativa de liberdade, punição penal por excelência. Nesse diapasão, entender que a Política Criminal está necessária e umbilicalmente ligada ao Direito Penal é limitar seu escopo tão somente ao âmbito das respostas penais ao fenômeno criminológico. Continuando nesse liame racional, se não houvesse como dissuadir a Política Criminal do Direito Penal, poder-se-ia afirmar que o movimento do Abolicionismo Penal não seria considerado um movimento de Política Criminal, uma vez que, como estudado, pretende exterminar o sistema penal e não responder às situações-problema (leia-se crime) com as punições de que trata o Direito Penal. Nesse contexto, a segunda corrente defende haver efetivamente autonomia entre a Política Criminal e o Direito Penal, observando que tal separação se faz ainda mais manifesta na conjuntura jurídica atual, uma vez evidenciada a crescente complexidade dos ilícitos e a consequente ampliação do campo de observação do Direito, assim como o acréscimo das formas de resposta aos atos ilícitos e ao transbordo de parcela dessas formas para além dos limites penais. Defende a autonomia das referidas ciências a já mencionada professora francesa Delmas-Marty, informando que a Política Criminal não orienta apenas as respostas penais aos atos ilícitos, mas toda e qualquer resposta estatal a tais atos: [...] as práticas penais não estão sozinhas no campo da Política Criminal, no qual se encontram englobadas por outras práticas de controle social: não-penais (sanções administrativas, por exemplo), não-repressivas (prevenção, reparação, mediação, por exemplo) e, por vezes, até mesmo não estatais (práticas repressivas das milícias privadas, ações de protesto como a Anistia Internacional, ou medidas disciplinares, já que o termo evoca determinadas espécies de regulação profissional).31 56

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Continua a mencionada doutrinadora arrematando a questão: [...] o estudo dos ‘grandes sistemas de Política Criminal’ não se limita à comparação dos sistemas de direito penal, mas compreende as demais formas de controle social e seu lugar em relação ao direito penal. Um lugar cujas variações são, aliais, por si só significativas e objeto de um estudo que deverá integrar os principais ‘movimentos’ de Política Criminal.32

Observa-se, portanto, que todas as formas de controle social abrangidas pela Política Criminal assim o são devido ao seu objeto de estudo, isto é, as formas de o Estado intervir na sociedade quando do cometimento de um previsto ato ilícito, sendo seu objeto mais específico às formas de controle social. 2.4 Análise dos movimentos de Política Criminal no Brasil Durante o estudo dos movimentos de Política Criminal fora exposto que, no Brasil não há, nem se tem notícia histórica de que em alguma época ter havido, identidade e coesão nas decisões políticas no enfoque do fenômeno crime. No estudo do Abolicionismo Penal, foi referida a influência desse movimento na legislação que estabeleceu os Juizados Especiais Criminais, a Lei n. 9.099/95, percebendo-se que o procedimento implementado por esse diploma legal tem por primordial intento a tentativa de resolver os conflitos de natureza penal de sua alçada sem a imposição de punições penais, tentando, ainda, fazer que as partes envolvidas no conflito sejam as mesmas que o solucionem. Ao enfocar o movimento da Lei e da Ordem, também se exemplificou dispositivo legal com fulgente influência, a Lei n. 8.072/90, que estabelece o tratamento legal aos crimes hediondos e aos seus assemelhados, tratamento este inflado de visível “rancor penal”, sendo bastante penoso e ríspido e, inclusive, trazendo em seu bojo uma violação ao direito fundamental33 da individualização das penas, violação (e inconstitucionalidade) esta que motivou sua modificação legal. O movimento do Direito Penal Mínimo também trouxe influência ao sistema processual-penal brasileiro, notadamente pela tutela constitucional da manutenção de um sistema penal e processual-penal garantista, tutelador de direitos humanos fundamentais nos moldes indicados pelo italiano Luigi Ferrajoli. Dessa rápida demonstração da vigência simultânea de disciplinamentos penais influenciados por movimentos díspares, pode-se perceber a inexistência de um posicionamento estatal uno e coeso em ataque aos ilícitos, ao fenômeno crime. Assim constatam Zaffaroni e Pierangeli, afirmando que “ainda não se desenvolveu na América Latina uma verdadeira crítica sobre os seus sistemas penais, embora existam muitas vozes isoladas que se expressam em tom bem crítico”34. A falta de organização estatal no modo de tratar o fenômeno crime, adotando opções políticas incoerentes entre si no abordar penal, ou seja, traçando REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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líneas de Política Criminal sem um arranjo lógico, isento de objetivação social, finda por perpetrar e ratificar o atual panorama do fato criminológico. Constata-se que, aliada à inexistência de pensamento crítico acerca do tratamento e da resposta coesa que a Política Criminal nacional deveria nortear, há também a importação de diversos pensamentos que passam a ser aplicados de modo incoerente e, muitas vezes, sem a devida observação de compatibilidade. Zaffaroni e Pierangeli, ao tratarem da crítica penal latino-americana, concluem: [...] as limitações impostas pelo poder impedem que, na América Latina, possamos construir teorias críticas elaboradas ao estilo daquelas dos países centrais [...]. Isto faz com que as críticas não tenham suficiente coerência, o que não nos deve preocupar e, ao mesmo tempo, que sejamos forçados a buscar os próprios instrumentos críticos nos países centrais. Isto é que nos deve preocupar muito, para vacinar-nos contra o perigo de importar, a título de crítica avançada, elementos que, em nossa realidade periférica possam resultar funcionais para efeitos totalmente contrários aos desejados.35

Com efeito, verifica-se de modo contundente a falta de posicionamento político-criminal crítico na conjuntura nacional, percebendo-se carência, intimamente relacionada ao tratamento inconstante e desordenado do fenômeno crime na legislação pátria. 3 CONCLUSÃO Na busca de responder a inquietação maior do presente trabalho, teve-se celeuma inicial acerca da conceituação de política criminal, entretanto, pode-se, criticamente, atingir delineamento conceitual esclarecedor. Oportunamente, ainda quando do esforço conceitual enveredado, pugnou-se pela inexistência de prevalência entre os diversos movimentos de política criminal, defendendo, ao revés, a existência de adequação fática, dado o contexto social evidenciado. Finalizando o estudo com o posicionamento acerca da independência da Política Criminal em sua relação com o Direito Penal, concluiu-se, por derradeiro, com a verificação da aplicabilidade dos movimentos de Política Criminal na conjuntura brasileira, a inexistência de aplicação organizada dos preceitos político-criminais na conjuntura jurídico-criminal brasileira. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Gevan de Carvalho. Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. DELMAS-MARTY, Mireille. Os Grandes Sistemas de Política Criminal. São 58

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Paulo: Manole, 2004. DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1975. FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2004. FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. HULSMAN, Louk. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1997. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, v. 1. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

LISZT, Franz Von apud FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 45. FEUERBACH, Ludwig Andreas apud DELMAS-MARTY, Mireille. Os Grandes Sistemas de Política Criminal. São Paulo: Manole, 2004, p. 3. Marc Ancel fundou em 1975 o Archives de Politique Criminelle, termo que obteve tradução neste trabalho. DELMAS-MARTY, Mireille. Os Grandes Sistemas de Política Criminal. São Paulo: Manole, 2004, p. 3. Ao explanar sua conceituação moderna de Política Criminal, Mireille Delmas-Marty observa, de modo relacionado ao seu conceito, duas características desta nova nuance da Política Criminal, contemplando-a como “ciência de observação” e como “arte” ou “estratégia metódica da reação anticriminal”. FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 465. ONECA, apud FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. CALÓN, apud FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, v. 1, p. 116. Ibid. Id., ibid., p. 117. MEZGER, apud FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 466. BRANCO, apud FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 467. DURKHEIM. Émile. As Regras do Método Sociológico. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1975, p. 61. DELMAS-MARTY, op. cit., p. 325. ALMEIDA, Gevan de Carvalho. Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 13. HULSMAN, Louk. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1997, p. 140. O termo situação-problema é utilizado por Hulsman como substituto de crime, seguindo seu intento de substituição de palavras estigmatizantes por outras mais brandas. Há críticas a este seu posicionamento no sentido de se tratar de mero eufemismo, ou, até mesmo, hipocrisia terminológica, não importando diretamente na mudança do substrato social acerca da temática criminológica. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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19 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 196. 20 Movimento surgido nos Estados Unidos da América sob a alcunha de “Law and Order”. 21 TOLEDO, apud ALMEIDA, Gevan de Carvalho. Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 116. 22 ZAFFARONI; PIERANGELI; op. cit., p. 309. 23 ALMEIDA, op. cit., p. 21. 24 Nula pena sem crime, nulo crime sem lei, nula lei sem necessidade, nula necessidade sem dano, nulo dano sem ação, nula ação sem culpa, nula culpa sem jurisdição, nula jurisdição sem acusação, nula acusação sem comprovação, nula comprovação sem defesa. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2000, p. 93 (Tradução livre). 25 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1, p. 10. 26 ZAFFARONI; PIERANGELI; op. cit., p. 308. 27 Ibid. 28 Id., ibid. 29 ALMEIDA, op. cit, p. 80. 30 ZAFFARONI; PIERANGELI; op. cit, p. 119. 31 DELMAS-MARTY, op. cit, p. 4. 32 Id., Ibid., 33 De modo bastante coerente à crítica que fora enfocada no tópico de estudo do Movimento da Lei e da Ordem, que abomina os habituais cerceamentos aos Direitos Fundamentais efetuado pelo discurso de segurança social, a Lei de Crimes Hediondos, que obteve norteamento no referido movimento, também trouxe em seu disciplinamento uma previsão atentatória aos Direitos Fundamentais, ficando ainda mais latente a demonstrada influência. 34 ZAFFARONI; PIERANGELI; op. cit, p. 312. 35 Id., ibid.

CRIMINAL POLICY IN BRAZIL? ABSTRACT Deeming the unsteadiness of policies aimed at combating crime in the Brazilian juridical scene as a fact, the author proposes an assessment of criminal policy in Brazil, regarding its adequacy to political and criminal references. In order to do that, the paper examines the evolution, the main notions and the different moves of criminal policy, afterwards checking the relation of criminal policy with Criminal Law and how that policy is executed in Brazilian law. Keywords: New trends. Criminal Policy. Brazil. Criminal Law.

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POLÍTICAS ECONÔMICO-TRIBUTÁRIAS E CIDADANIA ECONÔMICA: PELA NECESSIDADE DE AÇÕES CONJUNTAS DO ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE Ana Stela Vieira Mendes* João Luis Nogueira Matias** RESUMO O presente artigo pretende fazer uma análise de medidas a serem tomadas no campo econômico para garantir a preservação do meio ambiente na modernidade. Pressupõe a existência de uma crise ambiental e de sua relação com a economia. Aborda as particularidades do problema, no que diz respeito à problemática da superação da dicotomia entre Estado e Sociedade Civil. Na primeira parte, estudam-se os deveres estatais de intervenção econômica, especialmente através das políticas de tributação. Na segunda parte, aborda a necessidade da cooperação da sociedade civil, o que se dá pelo cumprimento dos deveres de solidariedade e do pagamento de tributos e pela percepção da dimensão econômica da cidadania. Palavras-chave: Políticas econômicas. Tributação ambiental. Cidadania econômica. Meio ambiente. 1 INTRODUÇÃO O Estado brasileiro, seguindo “uma irresistível tendência internacional1”, abriga na ordem jurídica constitucional a proteção ao direito fundamental ao meio ambiente, assim descrita: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. *

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, Bolsista do CNPQ. Professora substituta da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Professora da Faculdade Christus. ** Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Ceará.

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Devemos reconhecer que o Brasil é um país privilegiado, no sentido de contar com grandes reservas de água doce e grandes áreas de florestas, que são responsáveis pelo equilíbrio ambiental do mundo inteiro. No entanto, dados apontam que quase 20% da área original da Floresta Amazônica já foram descobertos2. A Mata Atlântica, rica vegetação costeira, teve 92,7% de seu território destruído em pouco mais de 500 anos3. Essas transformações começam a produzir consequências nefastas, que se manifestam através de desequilíbrios nos biomas, alterando a saúde e a qualidade de vida das pessoas4. São várias as formas de poluição que chegaram a níveis alarmantes: a poluição do ar, fortemente sentida em alguns grandes centros urbanos, a poluição dos mares, a redução da biodiversidade, a grande quantidade de produção de resíduos, a qual não se dá destinação adequada, aquecimento global, dentre outros. E é sabido, não há como nacionalizar ou restringir territorialmente os efeitos maléficos da destruição do ambiente natural do planeta. A partir desta conjuntura, perfilando-nos com um segmento considerável de pensadores, desde a propagação dos efeitos poluentes da Revolução Industrial,5 verificamos que esta devastação advém majoritariamente de fatores econômicos, mais especificamente, da percepção tardia e ainda hoje retardada dos bens ambientais como recursos finitos – alguns deles, inclusive não renováveis – e de uma má adequação das atividades econômicas à internalização dos custos ambientais, tendo em vista ofertar melhores preços. Isto traz uma série de questionamentos acerca das atividades econômicas, de como as desenvolvemos, do que precisa ser transformado e adequado às novas exigências de preservação ambiental na contemporaneidade. Por uma real questão de sobrevivência, até. A Constituição brasileira reconhece a existência de tais distorções econômicas, bem como a necessidade de adaptação da economia aos interesses ambientais. Assim, coerentemente, dispõe em seu Artigo 170, que: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”. Apesar das acertadas previsões do constituinte, as intervenções ambientais na economia, ainda são incipientes, pontuais. Reconhecemos, pois, estar diante de um grave problema. No entanto, entre o que temos de aplicações conjuntas dos princípios econômicos e ambientais, a pequena parcela que se tem realizado, às ainda poucas intervenções verificadas, têm parte significativa relacionada à políticas de tributação, a incentivos fiscais e à utilização da função extrafiscal dos tributos. 62

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Políticas econômico-tributárias e cidadania econômica: pela necessidade de ações conjuntas do estado e da sociedade civil para a efetivação do direito fundamental ao meio ambiente

Assim, da mesma maneira que sabemos estar diante de um grave problema, também temos consciência das perspectivas potencialmente promissoras que desabrocham das atividades econômico-tributárias. Isto já não seria, por si, uma grande novidade, tendo em vista o grande rol de pesquisadores que atualmente se debruçam sobre este tema, já sendo possível um consenso – diferentemente dos moldes preconizados pelo liberalismo – em torno da relevância da atuação estatal no processo de reversão da atual situação de crise ambiental. O que nos chama atenção e nos movimenta a escrever neste instante, no entanto, é o fato de que, ao refletirmos sobre possíveis soluções para o problema ambiental face à instrumentalização da economia e da tributação, entendemos que, por maior que sejam os esforços dos entes públicos, no intuito de elaborar políticas, compreendemos ser este esforço insuficiente quando singularmente considerado, levando-se em conta a complexidade atingida pelo nível de organização institucional e civilizacional contemporâneo. Dessa forma, também pensamos caber à sociedade civil uma grande parcela de responsabilidade, algumas delas relacionadas ao aprimoramento do exercício da dimensão econômica e fiscal de sua cidadania, compreendidos aí os deveres jurídicos de solidariedade social, do pagamento dos tributos e o deveres éticos relacionados à esfera dos hábitos de consumo. Não se descartam também mobilizações e parcerias da sociedade civil organizada com o poder público para que tenhamos a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente, de acordo com o que determinam os novos desafios de alcançar o patamar de Estado Democrático de Direito Ambiental6. 2 ESTADO, SOCIEDADE, ECONOMIA E O MEIO AMBIENTE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TITULARIDADE DE DIREITOS E DEVERES Durante a segunda metade do século XIX, a produção científica de Norberto Bobbio exercia uma grande influência sobre o modo de compreender as instituições. Naquele momento, ele reconhecera o público e o privado como expressões da dimensão social dos indivíduos, espécies de categorias distintas e dicotômicas, as quais se manifestariam desde os primórdios da tradição jurídica ocidental. Nas palavras do próprio autor, [...] no entanto a contraposição entre sociedade civil e Estado continua a ser de uso corrente, sinal de que reflete uma situação real. Embora prescindindo da consideração de que os dois processos – do Estado que se faz sociedade e da sociedade que se faz Estado – são contraditórios, pois a conclusão do primeiro conduziria ao Estado sem sociedade, isto é, ao Estado totalitário, e a conclusão do segundo à sociedade sem Estado, isto é, à extinção do Estado, o fato é que eles estão longe de se concluir (...)

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Estes dois processos representam bem as duas figuras do cidadão participante e do cidadão protegido que estão em conflito entre si às vezes na mesma pessoa: do cidadão que através da participação ativa exige sempre maior proteção reforça aquele mesmo Estado do qual gostaria de se assenhorear e que, ao contrário, acaba por se tornar seu patrão. Sob esse aspecto, sociedade e Estado atuam como dois momentos necessários, separados mas contíguos, distintos mas interdependentes, do sistema social em sua complexidade e sua articulação interna. 7

Apesar de reconhecer o recurso didático que representa nestes termos uma dicotomia, o fato é que essa compreensão não poderá ser descontextualizada de sua historicidade. Para servir às necessidades de nosso tempo, em que os direitos econômicos, sociais e culturais são incluídos no sistema constitucional de direitos fundamentais e passam, assim, a configurar novas exigências éticas e jurídicas do Estado, é coerente questionar o modelo que contorna a cisão entre Estado e sociedade civil, como antes exposto8. Em verdade, o nosso tempo clama por uma mudança de paradigmas, por uma reformulação das ideias relativas às organizações sociais e as formas de superação dos problemas que enfrentamos. Afinal, a concepção de espaço público não mais coincide necessariamente com a atuação estatal: Robustece-se agora um terceiro setor, que é público, mas não estatal. Ele é composto por ONG´s, associações de moradores, entidades de classe e outros movimentos sociais, que atuam em prol de interesses da coletividade, e agem aglutinando e canalizando para o sistema político demandas importantes, muitas vezes negligenciadas pelas instâncias representativas tradicionais. Tais entidades, que assumem um papel de proa nas democracias contemporâneas, embora componham a sociedade civil, regem-se por uma lógica que se diferencia radicalmente da busca de maximização dos interesses privados, própria das forças econômicas do mercado.9

Ao trazermos essas considerações para o caso específico do bem ambiental, isso pode ser claramente observado. Como se sabe, está-se aqui a tratar de um direito de titularidade difusa, cujos destinatários são complexamente (in) determinados, confundindo-se, assim, com as próprias pessoas que têm o dever de respeitá-lo e garanti-lo. Conforme determina a Constituição de 1988, constitui, pois, um dever “do Estado e de todos” primar pela preservação ambiental. Poderíamos afirmar até mesmo a prescindibilidade da palavra “Estado” nesse contexto, pois ao se falar em “todos”, abrange-se todas as pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado. São pertinentes as palavras do Ministro do Superior 64

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Tribunal de Justiça Antonio Herman Benjamin acerca do ordenamento constitucional brasileiro de 1988: Comparando-a com os paradigmas anteriores, nota-se que o eu individualista é substituído pelo nós coletivista, e o típico nós welfarista (o conjunto dos cidadãos em permanente exigência de iniciativas compensatórias do Estado) passa a agregar, na mesma vala de obrigados, sujeitos públicos e privados, reunidos numa clara, mas constitucionalmente legitimada, confusão de posições jurídicas; finalmente, em conseqüência disso tudo, o rigoroso adversarismo, a técnica do eu/nós contra o Estado ou contra nós mesmos, transmuda-se em solidarismo positivo, com moldura do tipo em favor de alguém ou em favor de algo10.

De fato, percebe-se a relevância dessas inovações advindas da Constituição de 1988, que institui um Estado Democrático de Direito e, com ele, o intuito de sedimentar alguns valores do Estado de Bem-Estar Social. Quando observamos a temporalidade do fenômeno positivado em 1988 no Brasil, tão logo verificamos que outros países, como México, Estados Unidos e Alemanha já haviam passado por semelhantes momentos décadas antes, e, quando tais efeitos chegaram aqui, na maioria desses outros países já era possível sentir fortemente o retorno ao liberalismo. Assim, o que aconteceu foi que, logo após a sua promulgação de tão extensa ordem de valores, fez-se sentir muito rapidamente os efeitos do neoliberalismo, cujos principais contornos na América Latina, acompanhando a descrição de Atílio A. Boron, são: a) a mercantilização de direitos e prerrogativas conquistados, que passam a ser encarados como bens e serviços; b) desequilíbrio maniqueísta entre a relação mercado (o virtuoso) e Estado (o malfazejo); c) aproximação da cultura e da crença popular, por meio de um senso comum; d) propagação como o único pensamento econômico possível, gerando, assim, uma sensação de resignação e conformidade11; Diante desse quadro, o meio ambiente, enquanto conjunto de bens que é, se encontra-se em uma situação bastante delicada. Afinal, [...] atingir metas ambientais significa, muitas vezes, retirar no curto prazo recursos econômicos de investimentos produtivos ou aumentar custos de produção presentes. Assim, a garantia de um meio ambiente saudável exige sacrifícios de curto prazo e gera custos políticos elevados, uma vez que é difícil para qualquer sociedade assumir esta decisão intertemporal de sacrificar o presente em troca de um futuro mais sustentável.12

Resta-nos, pois, a certeza de que os desafios que nos esperam são significativos. Diante disso, é de extrema importância acompanhar a doutrina que REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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reafirma o Estado como o protagonista das relações sociais13, especialmente no que diz respeito à sua soberania, à possibilidade de intervir economicamente para garantir o bem comum de seus súditos e, por meio de seu poder, dedicar inegáveis esforços para promover14 políticas econômicas e tributárias de desestímulo a práticas poluidoras ou de incentivo a preservação do meio ambiente. Dessa maneira, mesmo que o particular ao qual cabe diretamente a preservação do meio ambiente natural se recuse a fazê-lo, por priorizar interesses econômicos, competirá ao ente estatal “a sua defesa, ainda que contra a vontade expressa de seus titulares imediatos”15. Assim ressaltamos a necessidade das políticas estatais de intervenção na economia para a proteção do ambiente. Tanto é assim que o dispositivo constitucional que trata do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de fato, é o único a prever um dever constitucional expresso, que é, o dever de preservação ambiental. 3 O DEVER DE INTERVENÇÃO ECONÔMICA PARA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE O meio ambiente, mais do que um valor qualquer, é verdadeiro corolário do direito à vida. Ainda há pensadores que defendem também a sua instrumentalidade estrita, mas a cada dia cresce os que o reconhecem enquanto fim em si mesmo, bem como o dever de cuidar da terra, de respeitar a vida em todas as suas formas, a partir da superação do antropocentrismo, para o ecocentrismo16. Dito isso, entendemos ainda ser importante frisar que a economia é um instrumento do Estado e dos cidadãos para, por meio dela, alcançar a dignidade e os valores democraticamente eleitos como prioritários. Ela não é, pois, um fim em si própria; diz respeito ao modo de organizar as relações entre produção e consumo, indivíduos e bens, para possibilitar o acesso ao pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, inclusive em um sentido imaterial, filosófico ou espiritual. O Estado Democrático de Direito, como já foi mencionado, tem por base a dignidade humana e a busca pela efetivação dos direitos fundamentais. Para organizar esse nível de civilidade, é necessário haver uma ordem econômica, por meio da qual se obtêm recursos para realizar seus investimentos, a fim de possibilitar a melhoria de vida da coletividade. Dentro desse quadro, ainda há de se convir que realmente não há direito garantido pelo Estado a que não corresponda um custo, mesmo aqueles em que se exige um não fazer17. Da mesma forma, não há utilização ou modificação de recursos naturais que não apresente um custo ambiental, que na grande maioria das vezes, não é contabilizado pelo explorador, que acaba repassando ao final o serviço ou produto por um custo bem inferior ao real. 18 66

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Foi o economista inglês John Pigou que primeiro atentou para essa deficiência da atividade econômica. Para corrigi-la, seria necessário alterar os preços dos custos de utilização do meio ambiente. Isso demandaria a formulação de políticas que acrescentassem, pois, esse sobrepreço não contabilizado à utilização dos recursos. A isto se convencionou chamar imposto pigouviano19. No entanto, devido às dificuldades práticas de quantificar os custos ambientais decorrentes do uso dos bens naturais, bem como, às pequenas possibilidades de tratamento diferenciado e isonômico de acordo com os diferentes contextos, que a solução apontada por Pigou não pode ser implementada com total precisão e nem em curto prazo, porque poderá ter impactos bastante altos na sociedade, conforme explica o relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: Essas normas específicas são orientadas por relações tecnológicas que definem níveis de emissão ou de uso do recurso a serem obedecidos por todos os agentes econômicos, independentemente do seu porte, tecnologias, localização, etc. Embora o atendimento a essas normas imponha uma variação no custo do recurso ambiental, essa se realiza de forma pouco flexível, pois impõe padrões de uso iguais a todos os usuários sem nenhuma consideração específica às características específicas de cada um. Dessa forma, agentes econômicos com estruturas de custo completamente diferentes são incentivados a alcançar um nível de uso igual, não podendo optar por estratégias mais custo-efetivas. A implicação imediata é que os custos impostos à sociedade para atingir um mesmo objetivo ambiental são desnecessariamente altos 20.

Assim, uma alternativa de maior flexibilidade aos impostos pigouvianos seria a tributação ambiental 21, com algumas experiências já concretizadas e passíveis de ampliação em curto prazo. Além disso, poderá desempenhar um importante papel não somente de adequação, mas também de educação dos agentes econômicos, para possibilitar, no futuro, um padrão de proteção ambiental mais rigoroso. 4 POLÍTICAS DE TRIBUTAÇÃO E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL ATUAL E PERSPECTIVAS PARA O FUTURO 4.1 A relevância da atividade tributária A atividade econômica do Estado conta com as fontes primárias e secundárias de ingresso de recursos. Do montante das receitas gerais, a arrecadação mais significativa para o Estado é oriunda dos tributos, motivo pelo qual constatamos ser este um ponto a que se deve dar especial atenção. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Em consequência disso, não seria possível ao Estado realizar as políticas de intervenção no domínio econômico sem contar com o capital proveniente da tributação. Dentro desse contexto, é possível falar em um dever fundamental de pagar tributos, sobre o qual José Casalta Nabais bem nos situa, quando afirma a existência de um mínimo estadual no que diz respeito à tributação: À semelhança do que acontece com o mínimo de existência (fisiológico e cultural) dos indivíduos, há que ter em conta também, no respeitante às necessidades do estado (e demais entidades públicas em que o mesmo se desdobra), a existência de um nível de gastos abaixo do qual o estado seria incapaz de cumprir as suas funções mais elementares. Por isso, ele tem poder de impor e cobrar os impostos necessários ao cumprimento daquelas tarefas que, independentemente do tempo e do lugar, indiscutivelmente lhe correspondem. 22

Diante, portanto, da necessidade de garantir a atividade estatal para perquirir os direitos fundamentais é que se justifica ética e juridicamente toda a atividade econômica e, consequentemente, a atividade tributária e o dever de pagar tributos. Ao mesmo tempo, não se devem perder de vista as limitações máximas ao poder de tributar, para que se não se afaste daquilo que preleciona a dignidade humana e os direitos fundamentais do contribuinte, expressos por meio de diversas garantias constitucionais, como a legalidade, a anterioridade, irretroatividade, a capacidade contributiva, dentre outras. Em termos gerais, explicitamos as potencialidades de atuação do Estado no domínio econômico para preservar o meio ambiente por meio da intervenção nas políticas de tributação. Passemos agora a breves considerações sobre a economia, a tributação e o meio ambiente a partir do texto constitucional brasileiro. Estariam os intérpretes da nossa Constituição autorizados a entender o meio ambiente como valor fundamental, norteador do Sistema Tributário Nacional?23 Ainda que no título constitucional específico da tributação não esteja literalmente prevista a utilização de políticas de tributação com esta diretriz, a resposta será afirmativa; e não o será por meio de um esforço hermenêutico de utilização da interpretação sistemática, mas por uma conexão direta, conquanto seja um princípio da ordem econômica a proteção do meio ambiente, a este necessariamente se submete a tributação, já que esta nada mais é do que um dos seus elementos constitutivos essenciais ao funcionamento de todo o sistema. E a decorrência prática desse entendimento deverá se manifestar por um necessário fortalecimento, uma otimização da internalização do dever jurídico de preservar o meio ambiente, seja pelos legisladores, pelos administradores e gestores públicos ou pelos magistrados nos respectivos exercícios de suas funções relacionadas à matéria tributária. 68

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5 A TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL: EXPERIÊNCIAS EXISTENTES E AS PROPOSTAS DE REFORMA TRIBUTÁRIA A experiência pós-88 mais significativa se deu através de um critério ecológico de repartição entre os Municípios das receitas provenientes do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, numa tentativa de compensação financeira àqueles com restrições de uso do território em decorrência de mananciais de abastecimento ou de unidades de conservação ambiental24. Atualmente, essa experiência se estende a mais da metade dos Estados da Federação e tem alcançado resultados satisfatórios, já que incentiva um círculo virtuoso de estímulo à preservação ambiental. Conforme os dados que apresentamos em outra oportunidade, vê-se que os principais desempenhos até agora são o do Paraná25, o pioneiro, e o de Minas Gerais, embora outros Estados prevejam percentuais bem maiores para a repartição segundo critérios ambientais. Isso chama a atenção, porque nos faz refletir sobre a importância não somente da aprovação da legislação que institua esse tipo de medida, mas, principalmente, torna o olhar para a atribuição do Executivo de elaborar meios eficazes para concretizar as políticas. E a atuação dos dois referidos Estados da Federação são exemplos da relevância prática disso. Apesar das potencialidades e dos resultados positivos decorrentes da implementação do ICMS Ecológico, há que se reconhecer, também, sua insuficiência para solucionar os problemas ambientais e também as suas limitações naquilo a que se propõe. Por se tratar de um percentual fixo de redistribuição de acordo com critérios ambientais, ele tenderá a chegar a um ponto de saturação; como o estímulo a comportamentos ambientalmente desejados é oferecido a todos os municípios, poderá chegará um momento em que os recursos a serem redistribuídos entre eles com base nesses critérios poderá se diluir, a tal ponto de não se tornar mais atrativo investir na melhoria das condições do meio ambiente. A esperança que resta, no entanto, é que se ou quando isso vier a acontecer, a política do ICMS Ecológico tenha conseguido internalizar nos administradores e na sociedade mais do que a vontade de aumentar seus recursos, mas verdadeiramente alcançar o sentido de educação ambiental e da cultura do cuidado com a preservação que guarda a essência deste tipo de intervenção política e econômica. Além do ICMS Ecológico, há outras inserções do valor ambiental na tributação. Não pretendemos ser exaustivos, mas ao menos demonstrar os exemplos que venham a fortalecer e inspirar a possibilidade de estender a integração entre tributação e preservação ambiental. Terence Trennepohl cita, por exemplo, a Lei 9.393/96, que isentou áreas de reserva legal, de preservação permanente, de reservas particulares do REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Patrimônio Natural e a de áreas de servidão florestal da cobrança do Imposto Territorial Rural – ITR26. Além desta, há a Lei 948/85 do Estado do Rio de Janeiro, que estabelece alíquotas diferenciadas do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores – IPVA para veículos movidos a gasolina e a álcool (porque estes últimos causam menor poluição atmosférica), bem como para os aqueles que realizam trabalho de limpeza urbana e coleta de resíduos. Afirma, ainda, que recentemente os carros aptos a funcionar com gás natural tiveram desconto de 75% do imposto27. Há também exemplos de matérias para as quais os incentivos não seriam suficientes, motivos pelos quais se instituiu tributação positiva. O caso mais emblemático seria a cobrança de taxa para a preservação do Arquipélago Fernando de Noronha28. Em relação às contribuições de melhoria, no Estado do Rio de Janeiro há previsão de cobrança quando se trate de obra pública que acresça valor ambiental positivo a determinada propriedade, em decorrência de arborização de ruas, praças, dentre outras ações semelhantes29. As contribuições de intervenção no domínio econômico são instrumentos potencialmente poderosos no que diz respeito à proteção ambiental, tanto por seu caráter vinculado, quanto pela possibilidade direta de intervenção, melhoramento e recuperação de áreas degradadas pelas atividades relacionadas à exploração de petróleo e seus derivados. Resta um trabalho de maior efetivação prática. Apesar dos inúmeros exemplos citados, pode-se afirmar que as experiências de orientação ecológica aos tributos no Brasil ainda são incipientes e ainda há muito a ser feito, especialmente no atual contexto de discussão de uma reforma tributária. Embora reconheçamos que a matéria já tem previsão constitucional, o que ficou explicitado logo no início deste trabalho, acreditamos que um ponto importante, no que diz respeito à alteração da Constituição, é reforçar esta determinação. Isso se explica pelo mesmo motivo que se prevêm, por exemplo, certos dispositivos constitucionais aparentemente repetitivos ou desnecessários, como a garantia de contraditório, ampla defesa, de duração razoável, entre outras, quando poderíamos simplesmente nos ater à garantia do devido processo legal, apesar de que ele, por si, já seria suficiente para externar todos os valores e garantias necessários a um processo compatível com o que apregoa o Estado Democrático de Direito. Tanto os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada quanto da Consultoria Legislativa do Congresso Nacional reconhecem a necessidade de ampliação de normas constitucionais a esse respeito, especialmente para evitar que alguma aberração legislativa venha a implicar em retrocesso de proteção ambiental30. 70

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Outro aspecto importante, que ainda não foi citado, está em torno da constitucionalização da essencialidade do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI – em face dos padrões de tecnologias de produção e das matériasprimas utilizadas. Em suma, as alternativas de ampliação são muitas, as áreas de atuação, diversificadas e as perspectivas de atuação do poder público em um futuro próximo são desafiadoras. Acreditamos já ter deixado suficientemente clara a necessidade de qualificar a intervenção estatal na economia com a finalidade de preservar o meio ambiente. No entanto, como já foi dito anteriormente, a proposta desse trabalho baseia-se fundamentalmente no reconhecimento de que, diante das atuais circunstâncias organizacionais de nossa civilização, percebe-se que as ações estatais de intervenção na economia, per si, não têm condições de alcançar o almejado resultado de um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para as gerações presentes e futuras. Isso não significa que tenhamos desperdiçado tempo e recursos tratando deste tema, mas sim, que uma visão compartimentalizada que esse ângulo traz será honestamente insuficiente, o que, em nenhum momento diminui a importância do aprimoramento desses estudos. Faz-se necessário, pois, uma correlação entre o todo e as partes, entre a coletividade e o indivíduo; a adequação aos paradigmas de complexidade e ao reconhecimento da correlação entre os diversos sistemas existentes. Afinal, a nossa maneira de enxergar o mundo, a vida e os problemas existentes determinarão inexoravelmente as respostas que alcançaremos. 6 DO DEVER JURÍDICO DE SOLIDARIEDADE AO EXERCÍCIO DA DIMENSÃO ECONÔMICA DA CIDADANIA PARA A PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE “A decisão firme de um povo é mais forte que qualquer poder governamental”31. Aduzimos à feliz afirmação do historiador Caio Prado Jr. para iniciar este tópico porque ela consegue expressar o potencial e a responsabilidade que os indivíduos que compõem a coletividade têm em suas ações para o redirecionamento dos rumos do desenvolvimento econômico e social. É acerca disso que passaremos a explanar, e, para tanto, serão necessárias algumas considerações, além de jurídicas, econômicas e ambientais, de ordem filosófica, moral e política. Primeiramente, cabe fazer uma importante distinção entre Estado Social e Estado de Bem-Estar Social, para que possamos tentar situar o Estado brasileiro adequadamente. O primeiro é aquele que insere em seu ordenamento normas que positivam os direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais. Seu fundamento ético e político é o mínimo de justiça e igualdade material; já o REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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segundo caracteriza-se por institucionalizar a solidariedade, em busca de atender a um critério de bem-estar da maioria da população, o que acaba levando à adoção de políticas paternalistas, assistenciais, gerando cidadãos heterônomos e dependentes32. Nas palavras de Adela Cortina, O sujeito tratado como se fosse heterônomo acaba convencido de sua heteronomia e assume na vida política, econômica e social a atitude de dependência passiva própria de um incompetente básico. Certamente reivindica, se queixa e reclama, mas ficou incapacitado para perceber que é ele quem tem de encontrar soluções, porque pensa, com toda a razão, que se o Estado fiscal é dono de todos os bens é dele que se deve esperar o remédio para seus males ou a satisfação de seus desejos33.

É possível observar no Brasil algumas das características apontadas pela autora, como as políticas assistenciais e benfeitoras, sem, no entanto, ser possível observar uma contrapartida de ações emancipatórias que tenham um alcance da mesma magnitude, o que realmente prejudica o desenvolvimento de uma consciência ativa dos cidadãos, de sua capacidade de mobilização para intervir no mundo ao seu redor. Esta realidade nos preocupa. É possível encontrar algumas políticas de educação cidadã na área econômico-fiscal. No Estado do Ceará, por exemplo, existe o Programa de Educação Fiscal, da Secretaria da Fazenda do Estado, que visa a conscientizar, desde a infância, os alunos das redes estaduais e municipais de ensino sobre a importância de se pagar tributos e que estes desempenham importante função social, com a produção de cartilhas e de revistas em quadrinhos34. O ideal é que ações com este propósito possam crescer e atingir um público-alvo cada vez maior e assim ter uma repercussão significativa no corpo social. Afinal, vivemos um momento de crise de valores cidadãos e coletivos, em que é parca a noção de participação ativa na economia. Não obstante, ainda há um fator bastante delicado no andar das coisas: o avanço do neoliberalismo e a ausência de perspectivas de sistema econômico diverso. José Casalta Nabais também compartilha desta opinião, quando afirma a cidadania econômica, como “contrapeso ao “prejuízo egoísta” com expressão na “força excludente e dominadora do mercado”, ouve-se de novo, o bater das badaladas da “hora dos cidadãos”35. Essa constatação é compartilhada com o filósofo Gilles Lipovetsky, que aponta um número quase irrisório de europeus, apenas 4% dos entrevistados, que estaria disposto a fazer algum sacrifício por seu país em nome da liberdade, da justiça ou da paz36. Neste contexto de desgaste, afirma que o direito e a moral vêm passando por uma reavaliação social, nos seguintes termos: 72

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Ganha força uma nova ética democrática, não mais baseada unicamente no critério do sufrágio universal, mas que incorpora em si também o constitucionalismo e o primado dos direitos do homem, a independência das instituições políticas perante o Estado, a lógica jurídica, como princípios também reguladores da economia e da sociedade37

Dessa forma, segundo o raciocínio desenvolvido por ele, vivemos o momento de transição de uma cultura individualista irresponsável para o ressurgimento da ética, atendendo a um parâmetro de um individualismo responsável, onde a responsabilidade relaciona-se com o utilitarismo, significando um dever desonerado da noção de sacrifício, sem intenção de ruptura com o sistema.38 Afinal de contas, não é possível viver em uma sociedade em que para todos só existam direitos, sem que haja a correspondência de uma “face oculta”, ou seja, de deveres jurídicos. Enquanto superdimensionamos a dimensão dos direitos, esquecemos os deveres, o que provoca um desequilíbrio no seio social, especialmente no que diz respeito à questão ambiental. Assim, constatamos que está na ordem do dia a necessidade de avaliar o conteúdo do dever jurídico de solidariedade, porquanto este tem uma íntima relação com a garantia de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, bem como acarrete repercussões significativas na seara econômico-tributária. O que percebemos é que estas noções ainda são pouco difundidas, inclusive na academia, motivo pelo qual a ela nos dedicamos agora, no intuito de contribuir para sua expansão, a partir de uma avaliação da importância da doutrina na formação jurídica. De acordo com José Casalta Nabais, é possível afirmar que a noção de solidariedade possui alguns graus de compreensão. O que se chama de “solidariedade dos modernos” veio a se destacar especialmente após o reconhecimento e a constitucionalização dos direitos ecológicos. Difere da concepção antiga de solidariedade, justamente por aqui se tratar de um verdadeiro dever jurídico, e não mais apenas de um princípio moral39. Posteriormente a esta noção inicial da solidariedade como dever jurídico, o referido autor português diferencia outros dois aspectos da solidariedade que para nós serão importantes. Primeiro caracteriza uma manifestação de natureza mutualista, ou seja, “traduzida numa repartição sustentada pela intenção de criar riqueza em comum em matéria de infraestruturas, de bens e serviços considerados indispensáveis e necessários ao bom funcionamento e ao bom desenvolvimento da sociedade”40 e, posteriormente, descreve a solidariedade altruísta, aquela da qual nada se espera em troca, sem qualquer conotação remuneratória. Esta segunda visão, para o autor, é o modelo desejado para a atualidade41. Há, por fim, mais duas vertentes: uma seria a vertical, ou paternal, aquela que resulta da atuação estatal, e a outra seria a solidariedade horizontal, ou REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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fraternal, cujos deveres “cabem à comunidade social ou sociedade civil, entendida esta, com contraposição à sociedade estadual ou política, como a esfera de relações entre os indivíduos42. A segunda dimensão do fenômeno é a que está diretamente relacionada a este tópico e a que vem, segundo o referido autor, adquirindo crescente relevo, a partir da constatação de [...] um certo fracasso da estadualidade social, um fracasso que é resultado tanto dos limites naturais que a escassez de meios coloca à realização estadual dos direitos econômicos, sociais e culturais, como do seu retrocesso atual que o abrandamento do desenvolvimento econômico, de um lado, e o egoísmo pós-moderno, de outro, vieram suportar43.

Desse modo, é possível compreender que há uma relação direta entre a solidariedade e o exercício da cidadania no âmbito das relações econômicas e ambientais, a partir de um ponto a elas comum: a necessidade de participação e articulação da sociedade civil. Dada esta noção inicial de vinculação destas duas ideias, surge a intenção de estudá-las conjuntamente, motivo pelo qual passamos a enumerar os três elementos constitutivos da ideia de cidadania, que são: 1 A titularidade de um determinado número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade; 2 a pertença a uma determinada comunidade política (normalmente o Estado); 3 a possibilidade de contribuir com a vida pública dessa comunidade através da participação44

Observando o desenvolvimento das instituições, o complexo nível de organização social e a expansão do capitalismo, é possível constatar que o exercício da soberania popular e de participação ativa na vida pública contemporânea têm a possibilidade de ultrapassar as tradicionais noções de participação política e legitimamente intervir em outras áreas das relações humanas, alcançando proporções nunca antes vistas. Isto enseja um novo modo de compreender o alcance da cidadania. Poderíamos citar, assim, de acordo com Adela Cortina, o reconhecimento de cinco dimensões de expressão da cidadania: a política, a social, a econômica, a civil e a intercultural. Destas, a que mais imediatamente interessa neste momento ao nosso objeto de estudo é a dimensão econômica, a qual reflete uma aspiração tanto dos setores mais conservadores quanto dos mais progressistas, a fim de que se torne possível o exercício de uma cidadania econômica e fiscal ativa, que venha a marcar a passagem do tempo dos direitos ao tempo das responsabilidades45. De uma maneira geral, é possível afirmar que os membros da coletividade ainda não despertaram para a dimensão econômica de sua cidadania. É possível sentir isto empiricamente, basta olhar ao nosso redor. Pelo fato de esta percepção gerar inquietação, ela também passou a ser objeto de investigação científica. 74

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Nas palavras de Adela Cortina: “Em princípio, existe uma consciência muito fraca, para não dizer nula, de que os “habitantes” do mundo econômico são cidadãos do mundo econômico. [...] os afetados pelas decisões nelas tomadas são “seus próprios senhores e não súditos”46. Nessa perspectiva, Adela Cortina identifica algumas diretrizes que se identificam com a descrição de Casalta Nabais da dimensão mutualista da solidariedade, como, a necessidade de as empresas se reconhecerem como unidades participantes e responsáveis pelo desenvolvimento da atividade empresarial de maneira humanizada, através da aplicação do diálogo conciliador na busca de interesses universalizáveis e do fomento à cultura de cooperação, em vez da cultura do conflito entre diferentes categorias hierárquicas47. Manifestando-nos especificamente acerca das preocupações com o meio ambiente, por se tratar da proteção de um bem que envolve a atenção de múltiplos setores, exige o desenvolvimento de valores mais solidários e coletivos, que, em nossa compreensão, abarcariam também a necessidade da solidariedade altruísta, tendo em vista que nem sempre é possível auferir grandes vantagens pecuniárias quando se trata de concretizar o direito à qualidade de vida, em si inspirador de preocupações como a água, as reservas florestais, a atmosfera, dentre outros bens naturais48. Gilles Lipovetsky, ao tecer considerações acerca do comportamento moral dos indivíduos relativamente ao dever de preservação ambiental face aos hábitos econômicos, dispara: A moral ecológica no dia a dia é minimalista; não prescreve nenhuma auto-renúncia, nenhum sacrifício supremo, somente não desperdiçar; consumir um pouco mais ou um pouco menos [...] O consenso ecológico de nenhum modo tolheu a corrida ao crescimento e ao consumo individualista, mas gerou uma ecoprodução associada a uma ecologia de consumo49.

A partir dessas colocações, achamos necessário observar que, de fato, compreendemos a importância de se investir em ecoprodução, ecoturismo, bem como buscar consumir produtos fabricados com tecnologia de menor potencial lesivo ao meio ambiente, estimular socialmente a adoção de produtos ambientalmente adequados, como o consumo de alimentos orgânicos, redução de utilização de sacolas plásticas, implementação de coletas seletivas de lixo em condomínio, dentre outras medidas. No entanto, apesar de considerarmos todas estas ações como necessárias, posto que configuram verdadeiros avanços do ponto onde estamos, fazem total sentido as palavras de Fátima Portilho: Paradoxalmente, enquanto os paradigmas vigentes nas sociedades industrializadas de consumo eram apontados como a causa priREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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meira da problemática ambiental, o consumo verde, ao contrário de promover um enfrentamento, atenderia à continuidade dos privilégios das sociedades afluentes, dando continuidade à sacralização da Sociedade de Consumo e favorecendo a expansão do capitalismo predatório. Isso tudo leva a crer que bastariam algumas, comparativamente, pequenas mudanças e tudo estaria bem. Além disso, o consumo verde atacaria somente uma parte da equação – a tecnologia – e não os processos de produção e distribuição, além da cultura do consumo propriamente dita.50

Essa visão do consumo verde, unicamente, também não será suficiente para adequar o objetivo fundamental da República, que, diga-se de passagem, também é um objetivo da ordem econômica, de “redução das desigualdades sociais e regionais”, de democratização da qualidade de vida e dos bens de consumo mais essenciais, sem que haja uma necessária redução no padrão de consumo das classes mais abastadas da sociedade. Assim, para o desenvolvimento de uma cidadania econômica responsável, é preciso superar o antropocentrismo, que considera a vida não humana apenas como um instrumento a nos servir, que poderá ser explorado até a medida em que nos seja conveniente e ampliar a percepção de que nós fazemos parte desta natureza. Enquanto não houver essa mudança de pensamento em nível individual, provavelmente não teremos meios suficientes para cumprir o nosso desafio de preservação do meio ambiente para as gerações futuras. É necessário um trabalho de expansão de consciência acerca dos nossos hábitos pessoais e realmente repensar acerca do nosso modo de viver, de se organizar na família e na sociedade. É um grande desafio para todos, porque implicará em reeducar-se, em reorganizar hábitos, como o consumo e a nossa relação com os objetos. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho pretendeu analisar aspectos econômicos relacionados ao direito fundamental ao meio ambiente, a partir da característica notadamente difusa de sua titularidade. Assim, entendemos que deve ser superada a dicotomia entre direito público e privado, principalmente no que diz respeito aos deveres de proteção ambiental, posto que essa separação somente atrapalha o reconhecimento da responsabilidade dos dois setores, conquanto um culpa o outro por suas faltas, sem lembrar que aquele dever é igualmente de ambos. Verificamos a importância das políticas de intervenção no domínio econômico, mais especificamente as de tributação ambiental, que, no Brasil, embora incipientes, já apresentem resultados estimulantes. 76

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Quanto à possibilidade de uma reforma tributária, sugere-se a inclusão de dispositivos constitucionais relativos ao meio ambiente no título específico do sistema tributário nacional. Não que atualmente os intérpretes das normas tributárias já não devam obedecer ao princípio do art. 170, VI, mas, certamente, fortaleceria essa obrigação dos legisladores e gestores públicos. Como se viu, nem tudo será intervenção econômica ou atribuição do Estado. Há que se ter cautela com o modelo do Estado de Bem-Estar Social, posto que é possível que acomode seus cidadãos, a ponto de não compreenderem a sua responsabilidade em preservar o meio ambiente, achando que tudo deve ficar sob encargo do ente estatal. Da mesma forma, o neoliberalismo avança e traz seus aspectos negativos de fetichismo material, da cultura do consumo, de forma tão forte que chega a provocar descrença quanto a outro tipo de organização econômica menos predatória. Assim, ao próprio Estado deve caber uma tentativa de reversão desses danos, por meio de políticas de educação e de conscientização sobre o exercício da dimensão econômica da cidadania. Isso traz uma grande responsabilidade e novos desafios. Um aspecto que merece relevo é o reconhecimento do dever jurídico de solidariedade social e do dever fundamental de pagar impostos, tendo em vista sua importância para a concretização dos fins a que se propõe o Estado. A partir dessa perspectiva pode-se atribuir às empresas uma atuação ética e não somente preocupada com bons resultados financeiros, assim como o reconhecimento da importância da organização da sociedade civil em mobilizações sociais, do cidadão enquanto consumidor consciente. Uma das estratégias pensadas para diminuir o problema do meio ambiente seria o estímulo ao consumo verde. No entanto, há críticas a este comportamento, posto que só haveria interferência na esfera da produção, continuando o restante do ciclo da mercadoria igualmente danoso ao meio ambiente. No mais, essa estratégia não repara o problema do culto exagerado ao consumo, nem interfere de forma mais profunda no centro do problema ambiental. Isto segue o parâmetro de uma ética indolor do nosso tempo, que não admite sacrifícios para a preservação ambiental, a não ser pequenas e cômodas atitudes que não interfiram de forma significativa no modo de vida das pessoas, ou na organização dos meios de produção. Acreditamos, por fim, que neste trabalho reunimos diversas formas de se pensar acerca de alternativas contributivas para a solução dos problemas ambientais. No entanto, nenhuma delas isoladamente será suficiente. O que há, na verdade, é a necessidade de se repensar o padrão ético, de se respeitar a dignidade da vida em todas as suas expressões. Isto implica em revisitar a integração do ser humano com a natureza de uma maneira geral e colocar as relações econômicas em sua posição legítima de instrumentalidade.

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8 REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstituindo o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 2 tir. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. BENJAMIN, Antônio Herman. In: Direito constitucional ambiental brasileiro. CANOTILHO, J.J. Gomes; MORATO, José Rubens (org). São Paulo: Saraiva, 2008. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007. _______. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007. BORON, Atílio A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: Pósneoliberalismo II: Que Estado para que democracia? SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org). 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.mma. gov.br/ascom/ultimas/index.cfm?id=4493>. Acesso: 25 nov. 2008. CANOTILHO, J.J. Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (org). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. CAVALCANTE, Denise Lucena; MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, sistema tributário e meio ambiente. Revista Nomos. v. 28.2. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008, p. 29-39. CEARÁ. Governo do Estado. Secretaria da Fazenda. Disponível em: <http:// www.sefaz.ce.gov.br/content/ aplicacao/ internet/programas_campanhas/ gerados/projeto_apresentacao.asp>. Acesso em: 28 abr. 2009. CORTINA, Adela. In: LEITE, Silvana Corbucci (Trad.). Cidadãos do mundo. Para uma teoria da cidadania. São Paulo: Edições Loyola, 2005. GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos. Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. JACCOUD, Cristiane Vieira. Tributação ambientalmente orientada: instrumento de proteção ao meio ambiente. Disponível em: <http://conpedi.org/ manaus/arquivos/anais/manaus/direito_tribut_cristiane_v_jaccound. pdf>. Acesso em: 05 dez. 2008. JURAS, Ilidia da A. G. Martins; ARAÚJO, Suely M. V. Guimarães de. Considerações sobre reforma tributária e meio ambiente. Apache.câmara. Disponível em: <http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/estnottec/pdf/2003_1325.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2008. LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a 78

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Políticas econômico-tributárias e cidadania econômica: pela necessidade de ações conjuntas do estado e da sociedade civil para a efetivação do direito fundamental ao meio ambiente

ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005. LOUREIRO, Wilson. O ICMS ecológico nos estados brasileiros. In: Audiência Pública sobre o ICMS Ecológico, Assembléia Legislativa do Ceará. Arquivo em vídeo da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, 14 de Agosto de 2007. MENDES, Ana Stela Vieira. O ICMS ecológico como instrumento de preservação do meio ambiente: a experiência nos Estados brasileiros e perspectivas de implementação no Ceará. Monografia de conclusão de curso. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007. MOTTA, Ronaldo Seroa da.; OLIVEIRA, José Marcos Domingues de; MARGULIS, Sérgio. Proposta de tributação ambiental na atual reforma tributária brasileira. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. IPEA. Disponível em: http://www.ipea. gov.br/pub/td/td_2000/td0738.pdf. Acesso: 03/12/2008. NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina. 1998. _______. Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005. PIGOU, John. The economics of welfare. 4. ed. London: Macmillan, 1952. PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo: Cortez, 2005. PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. Versão digitalizada. Disponível em: <http://www.4shared.com/get/63599169/a8ec5832/HISTRIA_ ECONMICA_DO_BRASIL_-_Caio_Prado_ Junior.html>. Acesso em: 03 dez. 2008. SARMENTO, Daniel (org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstituindo o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 2 tir. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008. 1 2 3 4 5

BENJAMIN, Antônio Herman. In: Direito constitucional ambiental brasileiro. CANOTILHO, J.J. Gomes; MORATO, José Rubens (org). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 61. Conforme documento do Greenpeace no Brasil entregue ao Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva. Disponível em http://www.greenpeace.org/brasil/documentos/amazonia/carta-ao-presidente-darep-bli. Acesso: 25 nov. 2008. Dados oficiais do Ministério do Meio Ambiente do Brasil. Disponível em: <Http://www.mma.gov.br/ ascom/ultimas/index.cfm?id=4493>. Acesso em: 25 nov. 2008. Apesar de nos afetar incisivamente, insistimos que esse não é um problema exclusivo do Brasil. Isso porque a poluição tornou-se um fenômeno mundial, que aponta para uma crise ambiental sem precedentes na história. Mas este problema não será aprofundado aqui, merece estudos apropriados. PIGOU, John. The economics of welfare. 4. ed. London: Macmillan, 1952.

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Conforme defende J. J. Gomes Canotilho, na obra Direito constitucional ambiental brasileiro. J.J. Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite (org). São Paulo: Saraiva, 2008. 7 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007, p. 51-52. 8 CORTINA, Adela. In: LEITE, Silvana Corbucci (Trad.). Cidadãos do mundo. Para uma teoria da cidadania. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p.61. 9 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados: desconstituindo o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 2 tir. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p. 47. 10 BENJAMIN, op. cit., p. 59. 11 BORON, Atílio A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: Pós-neoliberalismo II: Que Estado para que democracia? SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org). 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 9-11. 12 MOTTA, Ronaldo Seroa da.; OLIVEIRA, José Marcos Domingues de; MARGULIS, Sérgio. Proposta de tributação ambiental na atual reforma tributária brasileira. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. IPEA. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/pub/td/td_2000/td0738.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2008. 13 BARROSO, Luis Roberto. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstituindo o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 2 tir. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p. ix. 14 V. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007. 15 BARROSO, op. cit., p. xiv. 16 Este tema é bem desenvolvido por autores como Leonardo Boff, Plauto Faraco de Azevedo e Nancy Mangabeira Unger. 17 GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos. Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. 18 Cf. MOTTA; OLIVEIRA; MARGULIS, op. cit. 19 idem. 20 idem. 21 idem. 22 Conferir mais detalhes na obra quase homônima de NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina. 1998, p. 216. 23 Esta pergunta nos foi dirigida pelo Professor Hugo de Brito Machado, num de nossos encontros no Curso de Mestrado na Universidade Federal do Ceará e nos levou a essas reflexões. 24 Cf. Já tratamos com maior profundidade desse assunto em outros estudos: MENDES, Ana Stela Vieira. O ICMS ecológico como instrumento de preservação do meio ambiente: a experiência nos Estados brasileiros e perspectivas de implementação no Ceará. Monografia de conclusão de curso. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007; e CAVALCANTE, Denise Lucena; MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, sistema tributário e meio ambiente. Revista Nomos. v. 28.2. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008, p. 29-39. 25 Wilson Loureiro, engenheiro florestal que trabalha com o ICMS Ecológico no Paraná, forneceu os seguintes resultados em seu Estado. De 1991, ano de implementação do tributo ambiental, até junho de 2007: a) o total de áreas protegidas no Estado teve um crescimento de 163%, representando, em números, um salto de 792.772,81 para 2.084.971,06 Km². Inclusive, estima-se que, atualmente, cerca de 40% dos Municípios paranaenses têm a verba proveniente do ICMS Ecológico como fundamental para o bom funcionamento de suas administrações; b) os critérios avaliados propiciam um diagnóstico verossímil em relação à situação ambiental dos Municípios, evitam troca de favores políticos e geram uma aproximação do ideal de justiça fiscal, visto que só se beneficiam do repasse os Municípios que efetivamente vêm procurando investir no desenvolvimento do meio ambiente; c) para tornar esse investimento possível, há uma reorientação das políticas públicas dos Municípios interessados, que ocasiona a modernização institucional e até mesmo permite a capacitação de pessoas das comunidades tradicionais para o trabalho e para a educação ambiental; d) o embelezamento dos Municípios, o desenvolvimento do turismo local e a melhora da auto-estima de seus habitantes, bem como mudança da mentalidade de descrença e ceticismo quanto ao futuro; In LOUREIRO, Wilson. O ICMS ecológico nos estados brasileiros. In Audiência Pública sobre o ICMS Ecológico, Assembléia Legislativa do Ceará. Arquivo em vídeo da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, 14 de Agosto de 2007. 26 TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 83.

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27 Ibid., p. 84-85. 28 TRENNEPOHL, Terence Dornelles. op. cit. p. 86. 29 JACCOUD, Cristiane Vieira. Tributação ambientalmente orientada: instrumento de proteção ao meio ambiente. Disponível em: <http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/direito_tribut_cristiane_v_ jaccound. pdf>. Acesso em: 05 dez. 2008. 30 MOTTA; OLIVEIRA; MARGULIS, op. cit, e JURAS, Ilidia da A. G. Martins; ARAÚJO, Suely M. V. Guimarães de. Considerações sobre reforma tributária e meio ambiente. Apache.câmara. Disponível em:<http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/estnottec/pdf/2003_1325. pdf>. Acesso em: 05 dez. 2008. 31 PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. Versão digitalizada. Disponível em: <http:// www.4shared.com/get/63599169/a8ec5832/HISTRIA_ECONMICA_DO_BRASIL_-_Caio_Prado_ Junior.html>. Acesso em: 03 dez 2008. 32 CORTINA, Adela. In: LEITE, Silvana Corbucci (Trad.). Cidadãos do mundo. Para uma teoria da cidadania. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 51-76. 33 Ibid., p. 64. 34 CEARÁ. Governo do Estado. Secretaria da Fazenda. Disponível em: <http://www.sefaz.ce.gov.br/content/ aplicacao/internet/programas_campanhas/gerados/projeto_apresentacao.asp>. Acesso em: 28 abr. 2009. 35 NABAIS, José Casalta. Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 124. 36 LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005, p. 180 e ss. 37 idem, p. 183. 38 idem, passim. 39 NABAIS, op. cit., p. 111-113. 40 idem, p. 114. 41 idem, p. 114. 42 idem, p.114-115. 43 Ibid., p. 115. 44 Ibid., p. 119. 45 CORTINA, op. cit., p. 77. 46 Ibid., p.78-79. 47 Idem, passim. 48 idem, p. 195. 49 LIPOVETSKY, op. cit., p. 195-196. 50 PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo: Cortez, 2005, p. 119.

ECONOMIC AND TAX POLICIES AND ECONOMIC CITIZENSHIP: THE NEED FOR JOINT INITIATIVES OF STATE AND CIVIL SOCIETY FOR EFFECTIVATING THE FUNDAMENTAL RIGHT TO A HEALTHY ENVIRONMENT ABSTRACT This paper intends to develop an analysis of measures to be taken in the economic field to assure environmental preservation in modern days. The authors assume there is an environmental crisis, which is related to the economy, and tackles the peculiar aspects related to the problem of overcoming the dichotomy between State and civil society. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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In the first part, the essay examines State duties in the field of economic intervention, especially when taxation is used. In the second part, the authors verify the need of co-operation of civil society through the accomplishment of the duties of solidarity and of paying taxes and by the perception of the economic dimension of citizenship. Keywords: Economic policies. Environmental tax. Economic citizenship. Environment.

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O DIREITO À SAÚDE DOS PORTADORES DE DOENÇAS RARAS E A NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EFETIVAÇÃO DESTE DIREITO Christianny Diógenes Maia* Marina dos Santos Memória** SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Aspectos preliminares sobre a efetividade dos direitos sociais. 3 Por uma política pública direcionada ao tratamento das doenças raras. 3.1 As doenças raras como relevante questão de saúde pública. 3.2 O direito à saúde e a integralidade de assistência como diretriz constitucional e como princípio norteador das políticas públicas do SUS. 3.3 A efetivação do direito à saúde dos portadores de doenças raras: problematizando o tema. 3.3.1 As Políticas Públicas de recuperação e de prevenção: crítica à insuficiência das medidas adotadas. 3.3.2 A judicialização da política de saúde: o caso das doenças raras. 3.3.3 Ratificando as medidas inclusivas defendidas. 4 Considerações finais. 5 Referências.

RESUMO A Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) inauguraram, ao certo, um novo momento na história da saúde do nosso país, conferindo ampla tutela a esse direito. Entretanto, os portadores de doenças raras têm dificuldades em acessar o Sistema Único de Saúde. Além disso, o Brasil não dispõe de dados oficiais acerca do perfil de incidência dessas patologias, no intuito de darem direcionamento ao Poder Público sobre as necessidades reais desses pacientes e, consequentemente, à elaboração de políticas públicas específicas. A partir dessa realidade, o presente artigo, baseado em pesquisas normativas, jurisprudenciais e doutrinárias, tem por escopo justificar a necessidade de adoção de critérios diferenciados no tratamento desses pacientes. Concluímos que, no Brasil, os meios ofertados para que os pacientes em questão tenham acesso à saúde são ainda insuficientes, e apesar da atuação destacada do Poder Judiciário ao garantir tal direito, há necessidade de abordagem do problema por meio de políticas públicas mais incisivas. *

Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Constitucional e de Direitos Humanos e Fundamentais da Faculdade Christus. Colaboradora do Escritório de Direitos Humanos – EDH da mesma Faculdade. ** Graduanda em Direito pela Faculdade Christus. Bolsista do Programa de Iniciação Científica da referida Instituição. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais. Direito à saúde, Doenças raras. Políticas públicas. 1 INTRODUÇÃO A Constituição de 1988 (CF/88) apresenta um significativo rol de direitos fundamentais, mas, apesar de sua força normativa, alguns desses direitos ainda carecem de maior efetividade, notadamente os direitos sociais, econômicos e culturais, tais como o direito à saúde. É inquestionável a fundamentalidade desse direito para o desenvolvimento de uma vida digna, tanto é que o Poder Constituinte Originário assim o reconheceu (art. 6º, CF/88), impondo ao Estado a obrigação de garantir a todos tal direito (arts. 196 a 200, CF/88). É notório, também, que muito ainda há de ser feito para que esse direito tão essencial seja plenamente garantido, basta verificar as recorrentes notícias que denunciam a carência do nosso Sistema de Saúde. Porém, um número significativo de pessoas sofre ainda mais com a insuficiência da prestação desse direito. Trata-se dos portadores de doença rara, aos quais dedicamos as pesquisas desenvolvidas para a confecção deste trabalho, inseridas, portanto, na problemática da efetivação do direito à saúde. Portanto, o presente artigo, sob um prisma crítico e inclusivo, objetiva tratar da insuficiência na abordagem, dos portadores de doenças raras , pelo Sistêma Único de Saúde (SUS) e justificar a premente necessidade de políticas públicas que considerem as particularidades desse grupo de pacientes. Para tanto, utilizamos o método dedutivo, partindo de uma pesquisa bibliográfica mais geral, de teorias já afirmadas, envolvendo os seguintes temas: direitos fundamentais sociais, princípio da dignidade da pessoa humana, mínimo existencial e cláusula da reserva do possível, dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais e princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. O desenvolvimento desses temas constitui uma análise preliminar, que foi inserida no item dois deste artigo, e que é essencial para contextualizar o problema das doenças raras na necessária efetivação dos direitos fundamentais. Em seguida, no item três, passamos à análise das razões que exigem a implementação de uma política voltada às doenças raras. Dividimos esse item em três subitens: no primeiro, trazemos dados, inclusive estatísticos, por meio dos quais pretendemos demonstrar a relevância de abordagem da problemática ora posta; no segundo, propomos o estudo da integralidade da saúde como princípio e diretriz que deve pautar as políticas públicas, vinculando as ações do Poder Público à da efetivação do direito à saúde dos pacientes com doenças raras; no terceiro, com mais três subdivisões, apontamos a insuficiência das medidas de recuperação da saúde e de prevenção de agravos voltadas às patologias raras na política vigente, analisamos a judicialização da saúde e, por fim, ratificamos as medidas que consideramos necessárias para o enfretamento da problemática. 84

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Certas de que todos os instrumentos internacionais e nacionais que consagram direitos humanos e fundamentais não representam mero reconhecimento desses direitos, mas também vinculam os particulares e, mais especificamente em nossa abordagem, o Estado, condicionando a dignidade das pessoas com doenças raras a determinadas prestações estatais, desenvolvemos este trabalho, buscando contribuir para a efetivação do direito fundamental à saúde dessa minoria de pessoas, hoje, mal assistida pelo sistema público de saúde brasileiro. 2 ASPECTOS PRELIMINARES SOBRE A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS Os direitos sociais, econômicos e culturais pertencem à segunda dimensão de direitos fundamentais, que, segundo Paulo Bonavides, foram introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado Social, fruto das ideologias e das reflexões antiliberais do século XX, lembrando, ainda, que tais direitos nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar.1 Também denominados de direitos de prestação, segundo parte da doutrina, estes se diferenciam dos direitos de defesa (de status negativus), de primeira dimensão, por ensejarem ações positivas estatais que, por sua vez, implicam custos para o Estado. Em posição contrária, Ingo Sarlet defende que todos os direitos fundamentais são, de certo modo, direitos positivos.2 Ora, os direitos de liberdade ou direitos de defesa também exigem, em geral, um conjunto de medidas positivas do Poder Público, que abrangem a alocação de recursos materiais e humanos para a sua proteção e implementação, lembramos, por exemplo, os custos do Estado para proteger o direito individual de propriedade ou para garantir o direito de petição, os quais são de primeira dimensão. Ingo Sarlet destaca, ainda, que o fator “custo” nunca constituiu um elemento impeditivo da efetivação dos direitos de defesa pela via jurisdicional, ao contrário do que se costuma ressaltar em relação aos direitos sociais, cujos “custos” assumem especial relevância no âmbito de sua efetivação, ao menos para significativa parcela doutrinária.3 Boa parte da doutrina defende, também, que os direitos de defesa e os direitos de prestação se distinguem quanto à sua forma de positivação e à sua estrutura jurídico-normativa. Segundo Ricardo Lobo Torres: Os direitos sociais e econômicos estremam-se da problemática dos direitos fundamentais porque dependem da concessão do legislador, estão despojados do status negativus, não geram por si sós a pretensão às prestações positivas do Estado, carecem de eficácia erga omnes e se subordinam à idéia de justiça social. Revestem eles, na Constituição, a forma de princípios de justiça, de normas programáticas ou de policy, sujeitos sempre à interpositio legislatoris, especificamente na via do orçamento público, que é o documento de quantificação dos valores éticos, a conta corrente da ponderação dos princípios REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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constitucionais, o plano contábil da justiça social, o balanço das escolhas dramáticas por políticas públicas em um universo fechado de recursos financeiros escassos e limitados.4

A partir desse raciocínio, alguns doutrinadores entendem que as normas de direitos sociais não teriam aplicabilidade imediata, já que necessitariam da intervenção do legislador para se concretizarem, pois, por serem normas programáticas, apenas orientariam as ações dos Poderes Públicos, estabelecendo programas a serem seguidos. Por outro lado, destacamos as seguintes lições de Robert Alexy: [...] a todos são conferidas posições no âmbito do direitos a prestações, na forma de direitos fundamentais sociais, que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples. [...] Mesmo os direitos fundamentais sociais mínimos têm, especialmente quando são muitos que deles necessitam, enormes efeitos financeiros. Mas, isso, isoladamente considerado, não justifica uma conclusão contrária à sua existência. A força do princípio da competência orçamentária do legislador não é ilimitada. Ele não é um princípio absoluto.5

Apesar de as normas programáticas necessitarem de intervenção legislativa para se materializarem, questionamos: até que ponto vai a discricionariedade do Legislador ou do Executivo em concretizar esses programas constitucionais? Entendemos que a programaticidade de algumas normas de direitos sociais não implica uma liberdade absoluta dos Poderes Públicos, pois, se assim fosse, não haveria de se falar em imperatividade das normas constitucionais, ou ainda, em força vinculante da Constituição, características do atual momento constitucional. Para reforçar nosso entendimento, tomamos as lições de Crisafulli, citado por Paulo Bonavides, sobre o conceito de normas programáticas: Com referência àquelas postas não numa lei qualquer, mas numa Constituição do tipo rígido, qual a vigente entre nós, pode e deve dar-se um passo adiante, definindo como programáticas as normas constitucionais, mediante as quais um programa de ação é adotado pelo Estado e cometido aos seus órgãos legislativos, de direção política e administrativa, precisamente como programa que obrigatoriamente lhes incumbe realizar nos modos e formas da respectiva atividade. Em suma, um programa político, encampado pelo ordenamento jurídico e traduzido em termos de normas constitucionais, ou seja, provido de eficácia prevalente com respeito àquelas normas legislativa ordinárias: subtraído, portanto, às mutáveis oscilações e à variedade de critérios e orientações de partido e de governo e assim obrigatoriamente prefixados pela Constituição como fundamento e limite destes.6 (grifo nosso) 86

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É dever dos Poderes Públicos assegurar os ditames constitucionais, observando ao máximo a garantia dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre eles, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). A Constituição de 1988 traz um rol amplo de direitos fundamentais, das mais diversas dimensões, pautados no princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil. Tais direitos são complementares e interdependentes entre si, de modo que a dignidade humana só se concretiza com a efetividade das variadas dimensões dos direitos fundamentais. Nessa linha de raciocínio, destacamos o conceito de dignidade da pessoa humana lecionado por Ingo Sarlet: Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distinta reconhecida em cada ser humano que faz merecer do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direito e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.7 (grifo nosso)

Podemos afirmar, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana possui uma dupla dimensão, tanto negativa quanto positiva, consistindo não apenas na garantia negativa de que a pessoa não será alvo de ofensas ou humilhações, mas agregando também a afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo8, ou seja, implica não só o dever negativo de não prejudicar ninguém, mas também o dever positivo de favorecer a felicidade9 alheia, justificando o reconhecimento, além dos direitos individuais, também dos direitos de conteúdo econômico e social, dignidade como “limite e tarefa”.10 Reafirmando o compromisso da nova ordem constitucional com os direitos sociais e sua relação com o princípio da dignidade humana, Clémerson Clève leciona que “os direitos fundamentais sociais devem ser compreendidos por uma dogmática constitucional singular, emancipatória, marcada pelo compromisso com a dignidade da pessoa humana e, pois, com a plena efetividade dos comandos constitucionais”.11 Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, impõe um facere aos Poderes Públicos, vinculando suas ações, é o que leciona Clémerson Clève ao discorrer sobre a dogmática constitucional emancipatória: Na moderna concepção do direito constitucional desenvolveuse uma renovada linha doutrinária conhecida como dogmática REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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constitucional emancipatória, tendo, esta vertente, o objetivo de estudar o texto constitucional à luz da idéia de dignidade da pessoa humana. Consiste em formação discursiva que procura demonstrar a radicalidade do Constituinte de 1988, tendo em vista que o tecido constitucional passou a ser costurado a partir de uma hermenêutica prospectiva que não procura apenas conhecer o direito como ele é operado, mas que, conhecendo suas entranhas e processos concretizadores, ao mesmo tempo fomente uma mudança teorética capaz de contribuir para a mudança da triste condição que acomete a formação social brasileira. O foco desta dogmática não é o Estado, mas, antes, a pessoa humana exigente de bem-estar físico, moral e psíquico. Esta dogmática distingue-se da primeira (dogmática da razão do Estado), pois não é positivista, embora respeite de modo integral a normatividade constitucional, emergindo de um compromisso principialista e personalizador para afirmar, alto e bom som, que o direito Constitucional realiza-se, verdadeiramente, na transformação dos princípios constitucionais, dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e dos direitos fundamentais em verdadeiros dados inscritos em nossa realidade existencial.12

É certo que a garantia de muitos direitos fundamentais depende de uma destinação orçamentária que, por sua vez, não é ilimitada, levando o Estado, muitas vezes, a invocar o princípio da reserva do possível, que corresponde ao fenômeno da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades a serem supridas pelo Poder Público. Defendemos, no entanto, que há um mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas para a existência, dentre as quais se insere o direito à saúde, correspondendo a uma fração nuclear do princípio da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer a eficácia jurídica positiva, que deve corresponder às prioridades do Estado na implantação de suas políticas públicas voltadas à garantia dos direitos fundamentais13, conforme destaca Ana Paula de Barcellos: Se os meios financeiros são limitados, os recursos disponíveis deverão ser aplicados prioritariamente no atendimento dos fins considerados essenciais pela Constituição, até que eles sejam realizados. Os recursos remanescentes haverão de ser destinados de acordo com as opções políticas que a deliberação democrática apurar em cada momento. [...] A meta central das Constituições modernas, e da CF/88 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial) estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de 88

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atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.14 (grifo nosso)

O entendimento de que o mínimo existencial obriga o Poder Público a garantir os direitos essenciais a uma vida digna está contemplado na seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que entende necessária a atuação do Poder Judiciário quando os outros Poderes falharem na materialização desse mínimo fundamental à dignidade humana: Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado15.

Além do exposto, convém, também, destacarmos as dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, que reforçam seu caráter vinculante. Corroborando com o entendimento da melhor doutrina, no sentido de que tais direitos geram para os indivíduos a faculdade de ingressarem junto ao Judiciário pleiteando o cumprimento da obrigação, por parte do Estado, de garantir determinado direito fundamental, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins dispõem sobre a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais: A dimensão subjetiva aparece também nos direitos fundamentais que fundamentam pretensões jurídicas próprias do status positivus. Quando o indivíduo adquire um status de liberdade positiva (liberdade para alguma coisa) que pressupõe a ação estatal, tem como efeito a proibição de omissão por parte do estado. Trata-se aqui de direitos sociais e políticos e de garantias processuais entre as quais a mais relevante é a garantia de acesso ao Judiciário para apreciação de toda lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV). O efeito para o Estado é o dever de fazer algo.16 REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Além disso, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais reforça a tese Neoconstitucional de que tais direitos ocupam um status privilegiado no nosso Ordenamento Jurídico, funcionando como um “sistema de valores” para o intérprete, irradiando-se por todas as normas jurídicas. Nessa linha de raciocínio, Paulo Bonavides destaca que: Com efeito, os direitos e garantias ao extrapolarem aquela dimensão cidadão-Estado, adquirem, segundo Böckenforde, uma dimensão até então ignorada - a de norma objetiva, de validade universal, de conteúdo indeterminado e aberto, e que não pertencem nem ao Direito Público, nem ao Direito Privado, mas que compõe a abóbada de todo o ordenamento jurídico enquanto direito constitucional de cúpula.17

Com isso, entendemos que a dimensão objetiva dos direitos fundamentais ressalta que a efetividade de tais direitos constitui a verdadeira finalidade do Estado e da Sociedade, implicando, até mesmo, uma mudança de postura da sociedade, como adverte Daniel Sarmento: A dimensão objetiva decorre do reconhecimento de que os direitos fundamentais condensam os valores mais relevantes para determinada comunidade política. E, como garantia de valores morais coletivos, os direitos fundamentais não são apenas um problema do Estado, mas de toda a sociedade. Neste sentido, é preciso abandonar a perspectiva de que a proteção dos direitos humanos constitui um problema apenas do Estado e não também de toda a sociedade. A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais pertinentes, mas também no espaço público, através de mobilizações sociais, da atuação em ONG’s e outras entidades, do exercício responsável do direito de voto.18

Ademais, lembremos, ainda, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, ou seja, tais normas são dotadas de eficácia jurídica e devem ser interpretadas e aplicadas, buscando sua máxima efetividade, reforçando, portanto, a materialização da dignidade da pessoa humana, conforme é ressaltado por Paulo Bonavides: Toda problemática do poder, toda a porfia de legitimação da autoridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados.19 90

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A Constituição Cidadã, portanto, ao estabelecer o Estado Democrático de Direito fundado no princípio da dignidade humana, impõe ações voltadas para a garantia dos direitos fundamentais e cria, no País, um sentimento constitucional que fortalece a cidadania, impulsionando a luta por direitos e potencializando a participação dos brasileiros nos espaços de decisões. Assim, a Constituição deixa de ser uma promessa vazia para assumir um protagonismo, sem precedentes, no universo jurídico. Dentre os direitos fundamentais sociais, inclui-se o direito à saúde, tema central deste trabalho, que se encontra protegido constitucionalmente no caput do art. 6º e nos arts. 196 a 200 da Carta Constitucional, sobre o qual passaremos a discorrer, focando o direito à saúde dos pacientes de doenças raras e as problemáticas em torno do tema. 3 POR UMA POLÍTICA PÚBLICA DIRECIONADA AO TRATAMENTO DAS DOENÇAS RARAS 3.1 As doenças raras como relevante questão de saúde pública Os pacientes com doenças raras estão mais suscetíveis às deficiências do sistema público de saúde, e a baixa incidência dessas doenças contribui para torná-los grupo vulnerável em saúde. Para auxiliar esse entendimento, destacamos as lições de Adriana Miranda e Rosane Lacerda, ao assinalarem que a vulnerabilidade se relaciona a duas situações de suscetibilidade: a desigualdade e a diferença. Nesse contexto, as autoras defendem que grupos com certas especificidades devem ser submetidos a tratamento jurídico diferenciado, permitindo a sua inclusão social: Os princípios da igualdade, universalidade e equidade, aliados à garantia do direito de participação na formulação das políticas públicas em saúde, são portanto de importância capital para que os grupos vulneráveis – consideradas tanto as suas identidades e necessidade específicas quanto às situações desvantajosas a que são submetidos – tenham garantidos o mesmo direito à saúde que os demais segmentos, sendo contudo respeitados em suas necessidades específicas. [...]20 (grifo nosso)

Podemos dizer que os pacientes com doenças raras, em virtude das próprias características dessas patologias (rápida progressão, sintomas severos, característica crônicas e degenerativas), necessitam de abordagem diferenciada, razão pela qual afirmamos que constituem grupo vulnerável de pacientes. Ratificando a relevância da temática, a Organização Europeia de Doenças Raras (EURORDIS) afirma que existem implicações médicas e sociais para os portadores de doenças raras: as médicas dizem respeito ao fato de serem REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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doenças pouco estudadas, sendo o diagnóstico preciso, quando ocorre, dado tardiamente. As conseqüências sociais são relativas à cobertura inadequada do sistema público de saúde, requerendo políticas específicas.21 Um estudo realizado pela referida organização, em 2006, por meio da aplicação de questionários a pacientes, em instituições de 17 países europeus que trabalham com doenças raras, apresentou os seguintes dados: para 25% dos pacientes, o diagnóstico correto levou de 5 a 30 anos, a contar do início dos sintomas; 40% dos pacientes receberam diagnóstico errado ou não o receberam. Quando impreciso, os diagnósticos levaram a intervenções desnecessárias: 16% passaram por cirurgia, 33% não receberam tratamento adequado e em 10% foram considerados potadores dos casos psicossomáticas. Além disso, o trabalho cita a peregrinação dos pacientes em busca do diagnóstico: 25% viajaram para outra região para obter confirmação e 2% relataram que tiveram que buscar ajuda fora do seu país.22 A preocupação pública com as dificuldades enfrentadas pelos portadores de doenças raras foi primeiramente apresentada pelos Estados Unidos, por intermédio do Comitê Nacional de Doenças Raras do governo, em 1989, ao identificar os problemas que afetam o tratamento desses pacientes, como pouca informação sobre doenças raras, dificuldades de financiamento de pesquisa, obstáculos na promoção da adequada cobertura de tratamento, e disponibilidade limitada de tratamentos efetivos.23 Trazendo o tema para o cenário brasileiro, destacamos alguns dos problemas, apontados por Mônica Vinhas de Souza et al., que exigem a implementação de uma política específica para doenças raras: 1) As doenças raras representam importante causa de mortalidade infantil no Brasil; 2) 85-90% das doenças raras são graves e põem em risco a vida dos pacientes; 3) o número de pacientes diagnosticados com esse tipo de doença tende a aumentar; 4) o custo dos medicamentos geralmente é elevado; 5) inexiste uniformidade de conduta dos estados brasileiros no enfretamento dessa problemática, com relação à implantação de programas para o atendimento dos pacientes; 6) judicialização da saúde, já que a maioria dos medicamentos é obtida por demandas judiciais.24 Os problemas acima elencados colocam os pacientes à mercê de decisões judiciais subjetivas. Tais decisões podem refletir um caráter conservador, quando não reconhecem os direitos em questão, devido ao fato de os condicionarem à observância de critérios legais objetivos, que entendemos não se adequarem às especificidades desse grupo de pacientes, e assim, não poderiam ser parâmetros para julgamento. Entretanto, essas decisões podem ser progressistas, ao garantir a efetividade de tais direitos fundamentais, conforme destaques jurisprudenciais apresentados adiante. De todo modo, inevitavelmente, tais problemas evidenciam a situação de insegurança jurídica que permeia a vida de quem tem doença rara. A análise de Paloma Oliveto também nos mostra a dimensão das dificuldades desses pacientes e ratifica a necessidade premente de enfrentamento dos problemas relacionados à efetivação do direito à saúde do grupo em estudo: 92

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A preocupação com essas pessoas é tão pouca no país que nem existe um levantamento oficial para determinar quantos pacientes são acometidos por males desconhecidos mesmo por profissionais da saúde. De acordo com a organização não governamental Europeia Eurordis, formada por associações de portadores, no mundo todo cerca de 8% da população é vítima de alguma doença chamada rara. Na realidade brasileira, isso significaria mais de 15 milhões de habitantes sofrendo de um dos 5 mil tipos de enfermidades reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde. O número equivale a sete vezes a população do Distrito Federal (grifo nosso).25

A partir dos dados apresentados, é possível concluir que a mobilização governamental, com elaborações de políticas públicas específicas, faz-se necessária, primeiramente, para capacitar os profissionais de saúde para o correto atendimento e tratamento de doenças ainda pouco conhecidas, o que prolonga, portanto, as dificuldades enfrentadas por pacientes e por seus familiares em busca de respostas e de alívio para sintomas, geralmente, de rápida progressão que colocam a dignidade dos pacientes em questão; em segundo lugar, para a organização em centros de referência, como vem ocorrendo em diversos países26, permitindo uma maior cooperação entre os pacientes e os gestores na disseminação de informações, o que contribui para uma melhor condição de vida dos pacientes. 3.2. O direito à saúde e a integralidade de assistência como diretriz constitucional e como princípio norteador das políticas públicas do SUS Saúde, segundo a Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), é um “estado de completo bem estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade”, sendo reconhecida como um dos “direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político e condição econômica ou social”.27 Na CF/88, o direito à saúde representa não só um direito fundamental, mas também um dever fundamental, estabelecido no caput do art. 196: “Saúde é direito de todos e dever do Estado”, que se materializa em duas dimensões, uma defensiva, relacionada à proteção da saúde, e outra lato sensu, relacionada ao dever de promoção à saúde, ambas sendo destinadas aos particulares e, principalmente, ao Poder Público, apontando-se, portanto, para a importância da dimensão objetiva do direito à saúde, que gera, para além dos efeitos genéricos relacionados à dimensão objetiva de todos os direitos fundamentais, deveres derivados e originários, dependentes de regulamentação normativa infraconstitucional e impostos diretamente pela própria Constituição, respectivamente.28 O conceito de saúde albergado pela CF/88 é amplo e conexo com aquele proposto pela OMS e, nesse sentido, a Carta Magna, “ao aduzir à ‘recuperação’, estaria conectada ao que se convencionou chamar de saúde curativa; as expressões ‘redução do risco de doença’ e ‘proteção’, por seu turno, teriam relação com REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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a saúde preventiva; enquanto, finalmente, o termo ‘promoção’ estaria ligado à busca de qualidade de vida”.29 Assim, nessa definição, é possível incluir todos os meios necessários ao alcance do equilíbrio preconizado pela OMS e acatado pela CF/88, que deve ser materializado por meio de medidas de “promoção, proteção e recuperação” da saúde, nos termos do art. 196 da CF/88, as quais são viabilizadas por políticas públicas. Maria Paula Dallari Bucci estabelece o seguinte conceito para políticas públicas, sentido que emprestamos ao termo, nesse artigo: Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, política pública deve visar à realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados.30

A política pública de saúde brasileira, com dispositivos relacionados ao Sistema Único de Saúde, foi prevista na Lei 8.080/1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde. Essa Política Pública, mais abrangente, dá origem a políticas públicas específicas, que são parte do SUS e que visam a atender determinados grupos de pacientes. Dessa forma, as políticas públicas de saúde direcionadas a determinados objetivos são desdobramentos de uma política mais abrangente, estabelecida pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990), que traz disposições sobre o Sistema Único de Saúde, cujos princípios, coadunados às diretrizes constitucionais estabelecidas no artigo 198 da Constituição Federal31, devem orientar o gestor público na tomada de decisões: [...] Uma vez estabelecidos os princípios que organizam o SUS, a Constituição aponta caminhos (diretrizes) que devem ser seguidos para que se alcancem os objetivos nela previstos. Se os princípios são os alicerces do Sistema, as diretrizes são os seus contornos. O recado dado pela Constituição resta evidente: os objetivos do SUS devem ser alcançados de acordo com os princípios fundamentais e em consonância com diretrizes expressamente estabelecidas pela Constituição e pela Lei Orgânica da Saúde. Tais princípios e diretrizes vinculam todos os atos realizados no âmbito do Sistema (sejam eles da Administração Direta ou Indireta, sejam eles normativos ou fiscalizatórios).32 94

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Os princípios do Sistema Único de Saúde encontram-se elencados no art. 7º da Lei 8.080/9033, dentre os quais destacamos a integralidade de assistência, definida como “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”. A integralidade assume, simultaneamente, o papel de princípio e de diretriz constitucional, por força do art. 7º da Lei 8.080/90 e do inciso II do art. 198 da CF/88, respectivamente, estabelecendo um atendimento com prioridade para as atividades preventivas. A esse respeito, Fernando Aith faz interessante afirmação ao analisar a relação entre a integralidade e suas implicações, quando da não observância do Estado às ações preventivas: A diretriz de integralidade às ações e serviços públicos de saúde representa um importante instrumento de defesa do cidadão contra eventuais omissões do Estado, pois este é obrigado a oferecer, prioritariamente, o acesso às atividades preventivas de proteção da saúde. A prevenção é fundamental para evitar a doença, entretanto, sempre que esta acometer um cidadão, compete ao Estado oferecer um atendimento integral, ou seja, todos os cuidados de saúde cabíveis para cada tipo de doença, dentro do estágio de avanço do conhecimento científico existente [...]34. (grifo nosso)

Uma política pública de cuidados integrais poderia voltar-se, por exemplo, para enfrentar as seguintes situações: casais com histórico de doenças genéticas na família, que precisam avaliar a probabilidade de a enfermidade acometer seus descendentes; pacientes, em decorrência das complicações da doença, que necessitam de tratamento multiprofissional em saúde, muitas vezes para que os benefícios proporcionados pelo tratamento farmacológico sejam alcançados a contento; capacitação profissional para a identificação dos primeiros sinais e sintomas de enfermidades raras, proporcionando aptidão e segurança na abordagem clínica do paciente, contando com uma estrutura mínima para a realização dos procedimentos necessários em cada caso; pesquisas que precisam ser impulsionadas. Entretanto, muito ainda há que ser feito para que propostas como essas se tornem acessíveis. Além de políticas públicas preventivas, ressaltamos a importância das ações curativas ou de recuperação, que estão mais diretamente relacionadas aos tratamentos, sobretudo medicamentoso. Sobre o assunto, ressalta Marcos Maselli Gouvêia: Questionável a eficácia do art. 196 da Constituição como supedâneo para o pedido de fornecimento estatal de medicamentos, resta tal óbice ultrapassado quando se tem em mente o art. 6º, I, d, da Lei 8.080/90 que, de modo peremptório, inclui no campo de atuação do SUS “a execução de ações de assistência REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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terapêutica integral, inclusive farmacêutica”. Ainda que se compreenda o preceito constitucional como norma programática, impende reconhecer que foi evidente o propósito do legislador de densificá-la, dirimindo qualquer dúvida quanto à existência de um direito subjetivo ao amparo terapêutico e farmacêutico. Refulge neste dispositivo a menção ao caráter integral da assistência a ser prestada, referência esta que, longe de mera figura retórica, desempenha importante papel interpretativo. [...] Quando o art. 6º, VI, da Lei 8.080/90 encarrega o SUS da “formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde”, ou quando estabelece – na esteira da Constituição – um emaranhado sistema de financiamento para as ações de saúde, não está conferindo ao legislador uma autorização para [...] restringir o alcance do direito material, de fundo, à plena assistência farmacêutica. Embora reconhecendo a importância do trabalho de previsão e controle das ações e despesas, é imperioso ter em mente que a ênfase da lei recai [...] sobre a execução das ações-fim, com destaque para a prestação da integral assistência terapêutico-farmacêutico. [...]35

Portanto, fica claro que tanto as ações preventivas quanto as curativas são imposições constitucionais, que contornam o SUS por meio de suas diretrizes, não sendo possível que o gestor público restrinja o alcance dos ditames da Lei Maior, ou seja, não se configura uma possibilidade de escolha entre a adoção de uma linha de ação preventiva ou curativa, uma vez que elas devem ser vistas em conjunto, pois são dependentes, devendo ser, nessa condição, respeitadas. 3.3. A efetivação do direito à saúde dos portadores de doenças raras: problematizando o tema Passaremos a analisar a situação da assistência à saúde dos portadores de doenças raras no Brasil, com foco nas ações curativas e preventivas por parte dos Poderes Públicos e em um estudo da atuação do Poder Judiciário na efetivação dos direito desses pacientes. Apontamos, outrossim, medidas inclusivas para o atendimento deles pela política pública de saúde vigente. 3.3.1. As Políticas Públicas de recuperação e de prevenção: crítica à insuficiência das medidas adotadas O direito à saúde não pode ser dissociado do acesso aos medicamentos, pois eles têm papel essencial em todos os níveis de cuidado, sendo indispensáveis à manutenção e à recuperação da saúde, bem como à prevenção de doenças. Entretanto, os medicamentos para doenças raras carecem de incentivos governamentais à pesquisa e à produção. Tais medicamentos são denominados órfãos porque os investimentos em pesquisas não são retornáveis, economicamente, da maneira desejada pelas indústrias, em virtude do reduzido número 96

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de pacientes destinatários dos produtos: Medicamentos órfãos são produtos médicos destinados à prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças muito graves ou que constituem um risco para a vida e que são raras. [...] Estes medicamentos são designados como órfãos porque, em condições normais de mercado, a indústria farmacêutica tem pouco interesse no desenvolvimento de produtos dirigidos para o pequeno número de doentes afetados por doenças muito raras. Para as companhias farmacêuticas, os custos do desenvolvimento de um medicamento dirigido a uma doença rara não seriam recuperados pelas vendas esperadas para esse produto [...]36

Assim, a pesquisa e a produção desses medicamentos necessitam ser impulsionadas pelo Poder Público. O estudo com a experiência de outros países no enfretamento dessa problemática mostra que o desenvolvimento de medicamentos órfãos pode ser aperfeiçoado, conforme afirmam Patrice Trouiller et al, por parcerias entre os setores público, representado, por exemplo, pelas agências governamentais, pela academia, pelas instituições de apoio a pacientes e pelas fundações, e o setor privado, representado pelas indústrias farmacêuticas. No caso, podem ser oferecidos créditos fiscais, exclusividade de mercado e proteção da propriedade intelectual, com a contrapartida da pesquisa e desenvolvimento de medicamento destinado ao tratamento de doença rara, o que é feito, por exemplo, nos Estados Unidos, desde 1983, com o Orphan Drug Act, legislação que foi estabelecida visando à regulamentação dessa parceria entre setor público e privado. No que tange às políticas públicas relacionadas à acessibilidade aos medicamentos órfãos, no Brasil, a Assistência Farmacêutica37 disponibiliza alguns medicamentos para o tratamento de doenças raras, por meio de seu atual Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), instituído pela Portaria 2.981/2009.38 A partir de uma análise normativa do CEAF, observamos que este continua seguindo a linha da Medicina Baseada em Evidências39, por meio dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT)40, mas com uma reorganização da assistência farmacêutica básica e especializada, resultando em uma ampliação no financiamento do CEAF de R$ 402,8 milhões e otimização de R$ 250 milhões ao ano41. Ressaltamos que o aumento do financiamento proporcionado pelas mudanças, por si só, não é capaz de mudar a realidade de quem vive com uma doença rara. A alocação de recursos deve ser concatenada à elaboração de novos protocolos clínicos e à revisão periódica dos Componentes da Assistência Farmacêutica, visando à inclusão de novos medicamentos, permitindo que, progressivamente, os portadores de doenças raras tenham seus direitos garantidos e efetivados no âmbito do SUS. Portanto, a inclusão de tratamento para algumas doenças raras à AssistênREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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cia Farmacêutica do SUS é insuficiente para a concretização do direito à saúde de pacientes com essas patologias, revestindo-se tal conduta de cunho meramente paliativo, uma vez que não é reflexo de estratégias voltadas a esse escopo, ou seja, à ampliação do rol de pacientes a serem atendidos pelo SUS. Nesse contexto, destacamos os esforços envidados pelas associações de pacientes para que as doenças raras sejam, também, alvo de atuação do sistema público de saúde. No entanto, afirmamos ainda ser insuficiente a ampliação proporcionada pelo Poder Público, pois, no presente, a atualização do CEAF, com inclusão de novos medicamentos, esbarra em critérios relacionados aos parâmetros e aos procedimentos adotados para inclusão de novos produtos ao SUS, que são genéricos, utilizados para todas as patologias. Esses critérios são inadequados, porque não é razoável avaliar a incorporação de tecnologias ou de medicamentos da mesma forma para doenças que atingem milhões de pessoas ou que sejam diagnosticadas com facilidade e para aquelas que os dados oficiais de incidência são ainda pouco conhecidos. Essa situação é agravada pela própria condição de raridade das doenças, que não atingindo um número significativo de pacientes, não chama atenção das autoridades, não compele o Poder Público a adotar novas condutas, ao contrário do que ocorre com as dificuldades enfrentadas por um número maior de pacientes, pois geram repercussão mais expressiva e, de certa forma, adquirem maior visibilidade. Lembremos, ainda, que o Estado deve dar preferência às ações preventivas, sem prejuízo dos serviços de assistência, nos termos da CF/88 e, nesse contexto de prevenção de agravos, a Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica (PNAIGC), instituída no âmbito do SUS por meio da Portaria 81/2009, terá grande importância, uma vez que cerca de 80% das doenças raras tem origem genética.42 O texto dessa Portaria define como objetivos da PNAIGC, em linhas gerais, tratar e reabilitar portadores de doenças genéticas, em todos os níveis de atenção, contando com equipe multiprofissional, para “possibilitar a identificação de determinantes e condicionantes de principais problemas de saúde relacionados a anomalias congênitas e doenças geneticamente determinadas”, o que, por seu turno, fornecerá “subsídios para a elaboração de ações e políticas públicas no setor, sem prejuízo da participação social”, além de incentivar a pesquisa e a incorporação de novas tecnologias em genética, bem como qualificar a assistência e promover a educação permanente dos profissionais da área, estabelecendo-se ações de promoção e de prevenção em genética. Não restam dúvidas, portanto, de que a concretização dessa portaria traria grandes ganhos para os pacientes, atualmente sem uma devida assistência. De acordo com o texto do artigo 5º da Portaria 81/2009, a plena estruturação da PNAIGC compete à Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde, que, em recente nota publicada à imprensa43, afirma que estão sendo anali98

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sados aspectos “técnicos e operacionais” relativos à Política instituída, “para estabelecer parâmetros de necessidades de serviços, regulação de atendimento e protocolos de atendimento para pessoas portadoras de alterações genéticas. O estudo técnico encontra-se em análise no Ministério e entrará em consulta pública assim que esta fase for finalizada”. Entretanto, não foi mencionada previsão para finalização desse estudo e para a implementação da Política. Salmo Raskin alerta para a premente necessidade da concretização da genética no SUS e da dignidade dos pacientes com doenças raras: Em janeiro de 2009, foi publicada a Portaria 81/ 20 de janeiro de 2009, que instituiu, no âmbito do SUS, a Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica, assinada pelo Ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Porém a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) não publicou as medidas necessárias para plena estruturação da política. [...] A maioria das doenças raras são graves, incuráveis, crônicas, frequentemente degenerativas e progressivas, além de constituírem risco de vida. A qualidade de vida dos pacientes é frequentemente afetada pela perda ou diminuição da autonomia. Os pacientes e suas famílias enfrentam o preconceito, a marginalização, a falta de esperança nas terapias e a falta de apoio para o diaa-dia. Isso acontece em todo o mundo, não apenas no Brasil. [...] devemos todos os dias assegurar que o bem mais precioso do ser humano – A VIDA – seja garantido e tratado com dignidade. Podemos dizer que dignidade é viver com qualidade, podendo usufruir de todas as conquistas da humanidade. Negar ao ser humano, qualquer uma destas conquistas, significa degradar sua dignidade. [...]44

Vimos que a própria condição de raridade dificulta o acesso à saúde por pacientes com doenças raras. Essa realidade é agravada quando inexiste legislação voltada ao desenvolvimento e à pesquisa dos chamados medicamentos órfãos e quando da burocrática implementação de serviços de saúde, colocando a dignidade desses pacientes em xeque. Nesse contexto, há necessidade de atuação mais incisiva do Poder Executivo e Legislativo, destacando-se a atuação do Poder Judiciário na materialização de direitos negados ou violados pelos outros Poderes, sobre a qual passaremos a discorrer. 3.3.2. A judicialização da política de saúde: o caso das doenças raras Salvo alguns casos de pacientes que tiveram o tratamento incluído na lista da Assistência Farmacêutica, o direito fundamental à saúde dos portadores de doenças raras tem sido concretizado por via judicial. Recentemente, inclusive, REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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o STF manifestou-se sobre a questão do fornecimento de medicamento não elencado em lista do SUS, para tratamento de doença rara: O Tribunal negou provimento a agravo regimental interposto pela União contra a decisão da Presidência do STF que, por não vislumbrar grave lesão à ordem, à economia e à saúde públicas, indeferira pedido de suspensão de tutela antecipada formulado pela agravante contra acórdão proferido pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Na espécie, o TRF da 5ª Região determinara à União, ao Estado do Ceará e ao Município de Fortaleza que fornecessem a jovem portadora da patologia denominada Niemann-Pick tipo C certo medicamento que possibilitaria aumento de sobrevida e melhora da qualidade de vida, mas o qual a família da jovem não possuiria condições para custear. [...] Relativamente à possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, reportou-se à decisão proferida na ADPF 45 MC/DF (DJU de 29.4.2004), acerca da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de injustificável inércia estatal ou de abusividade governamental. [...] Afastaramse, da mesma forma, os argumentos de grave lesão à economia e à saúde públicas, haja vista que a decisão agravada teria consignado, de forma expressa, que o alto custo de um tratamento ou de um medicamento que tem registro na ANVISA não seria suficiente para impedir o seu fornecimento pelo poder público.45

O reconhecimento da existência de um direito subjetivo bem como a apreciação pelo Poder Judiciário não afastam a necessidade de abordagem da problemática pelo Poder Público; pelo contrário, ratifica-se que o acesso dos pacientes portadores dessas doenças ao SUS é obstacularizado, denunciando, portanto, a necessidade de esses pacientes terem seus direitos garantidos, reconhecidos e efetivados no Sistema Público de Saúde Brasileiro, que precisa ser reorganizado de modo a acolher essas demandas, considerando-se as necessidades inerentes a esse grupo, e permitindo a coexistência com os demais serviços de saúde estabelecidos e o respeito ao direito dos demais pacientes, não sendo possível estabelecer “relativismo” nessa área, de acordo com Andreas Krell: Nesse contexto, não parece ser bem escolhido o exemplo trazido pelo autor, que deveria ficar ao critério do Executivo a escolha se tratará com os recursos disponíveis “milhares de doentes vítimas de doenças comuns à pobreza ou um pequeno número de doentes terminais de doenças raras ou de cura improvável”. A resposta coerente na base da principiologia da Carta de 1988 seria: tratar todos! E se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas [...] onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, sua integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a 100

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“ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo “por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?”.46

Desse modo, não cabe considerar a total discricionariedade do Poder Público quanto à destinação dos recursos para a saúde, já que esse direito, conforme exposto anteriormente, compõe o mínimo existencial, núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, não cabendo, portanto, a invocação da cláusula da reserva do possível. Em casos como os analisados nesse trabalho, em que há visível omissão dos responsáveis pela implementação de políticas públicas, não há que se observar limites de atuação impostos ao Poder Judiciário pelo princípio da separação dos Poderes, pois tal princípio resta superado pela necessária efetivação da dignidade humana. Ademais, como um dos paradigmas do Neoconstitucionalismo, temos a dimensão objetiva dos direitos fundamentais vinculando as atividades dos particulares e dos entes estatais em prol da efetivação desses direitos. Assim, o Judiciário assume uma posição protagonista na materialização de direitos que “carecem de efetivação, na maioria das vezes, por inércia dos poderes públicos”47, e assim, “a luta por direitos transfere-se para o Poder Judiciário, que ao longo dos últimos anos, tem se transformado em um palco de grandes discussões políticas e jurídicas”.48 Nesse diapasão, Lenio Luiz Streck: No Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. A Constituição não está sendo cumprida. As normas-programa da Lei Maior não estão sendo implementadas. Por isso, na falta de políticas públicas cumpridoras do Estado Democrático de Direito, surge o Judiciário como instrumento para o resgate de direitos não realizados. Por isso a inexorabilidade desse “sensível deslocamento” antes especificado. Com todos os cuidados que isso implica.49

Nesse contexto, o Poder Judiciário exerce um relevante papel na efetivação dos direitos fundamentais, revertendo o pseudocaráter programático das normas que tratam de tais direitos. Ressaltamos que essa transferência das decisões, antes estritamente políticas, para o Judiciário, deve ocorrer democratizando-se esse Poder, por meio da interpretação da Constituição aberta à sociedade, conforme proposto por Peter Häberle, em sua Sociedade Aberta de Intérpretes, o que legitima ainda mais o deslocamento provocado pela judicialização das políticas públicas: A vinculação judicial à lei e a independência pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o fato de que o juiz interpreta a REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Constituição na esfera pública e na realidade [...] Seria errôneo reconhecer as influências, as expectativas, as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes apenas sob o aspecto de uma ameaça a sua independência. Essas influências contêm também uma parte de legitimação e evitam o livre arbítrio da interpretação judicial. A garantia da independência dos juízes somente é tolerável, porque outras funções estatais e a esfera pública pluralista [...] fornecem material para a lei [...].50

Portanto, malgrado as discussões acerca da (i) legitimidade da atuação judicial em matéria de políticas públicas e, no caso em estudo, da efetivação do direito à saúde dos portadores de doenças raras pelo Poder Judiciário, a judicialização marcada por uma sociedade aberta aos intérpretes de uma sociedade pluralista, na forma de audiência pública, a exemplo da Audiência em Saúde promovida pelo STF, e realizada em abril e maio de 2009, torna plenamente aceitável o posicionamento a favor da legitimidade das decisões nesse âmbito, pois, além de essas decisões representarem um “reflexo” das necessidades de uma sociedade, apontando as inércias estatais, a atuação judicial, quando comprometida com a efetividade de direitos que, inquestionavelmente, sejam integrantes do mínimo existencial, compromete-se, outrossim, com a concretização e com o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Para além disso, a tensão gerada pelo Poder Judiciário pela ingerência em matéria de políticas públicas, muitas vezes, é salutar na promoção de uma mudança de postura dos poderes Executivo e Legislativo, que passam a atuar positivamente na efetivação de direitos fundamentais. Destacamos o seguinte julgado, oriundo do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), que arvora esse entendimento: Todavia, a interferência judicial em política pública há de ser feita com elevada cautela, de modo a não invadir demasiadamente as esferas dos demais poderes, em especial do Poder Executivo. Por outro lado, não se pode esquecer que muitos dos avanços nas políticas brasileiras se devem a provocações originadas no Poder Judiciário. Exemplo disso, no campo da saúde, foram as inúmeras decisões judiciais, com respaldo no STF, no início da década de 90, assegurando tratamento gratuito aos portadores de HIV, o que, posteriormente, acabou levando a Administração Pública a construir uma política específica para a AIDS, nos termos da Lei n. 9.313/96, que resultou no barateamento dos medicamentos, inclusive com a quebra de patentes, merecendo elogios mundo afora.51

A problemática requer abordagem pelo Poder Público, objetivando viabilizar a inclusão do atendimento das necessidades dos portadores de doenças raras na política de saúde brasileira, pois entendemos que, somadas todas as doenças raras, seja significativo o número de pacientes à margem de um sistema de saúde que se propõe “universal e igualitário”, à espera de atendimento pro102

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fissional, de medicamentos, de exames e de outras prestações condicionantes da (in) existência da vida com dignidade. 3.3.3. Ratificando as medidas inclusivas defendidas Ao longo desse trabalho, pretendemos mostrar as dificuldades enfrentadas pelos pacientes com doenças raras e as necessidades de medidas diferenciadas, que se voltem a esses pacientes, no âmbito do SUS. Tais medidas decorrem da constatação de falhas na abordagem da problemática das doenças raras, assumindo, portanto, o presente artigo, uma perspectiva crítica e inclusiva. A partir desse contexto, sentimos a necessidade de reforçar, tornando mais claras as medidas inclusivas que reiteramos nesse trabalho. Portanto, chamamos a atenção para os seguintes pontos, que julgamos relevantes na condução da elaboração de uma política pública direcionada às doenças raras: 1) necessidade de conhecimento das demandas – entendemos que para gerir bem, sobretudo num cenário de recursos limitados, conhecer as demandas é essencial para a definição de metas. Assim, a delimitação do perfil de incidência das doenças raras poderá conduzir o gestor público na tomada de decisões, possibilitando alocação racional dos recursos; 2) revisões periódicas dos protocolos de tratamento e atualização das listas de assistência farmacêutica – conforme mencionado anteriormente, o aumento dos recursos disponíveis requer, paralelamente, a revisão constante dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e a incorporação de novos medicamentos às listas de fornecimento gratuito da Assistência Farmacêutica. Para esse objetivo, o conhecimento das demandas também teria grande valia; 3) incentivo à pesquisa e à produção de medicamentos órfãos – o modelo americano, depois seguido por diversos países, com sucesso, mostra-nos que nosso sistema precisa ser melhorado. A experiência desses países atesta que a incorporação de leis que dão garantias às indústrias, conferindo uma maior segurança financeira em relação aos gastos envolvidos na pesquisa e na produção, bem como na fase de comercialização dos produtos, atrai as indústrias para o desenvolvimento de medicamentos órfãos e, por conseguinte, permite acesso dos pacientes a esses produtos52; 4) adequação da política de genética – evidentemente, uma política pública não pode se materializar sem prévia organização e planejamento, razão pela qual entendemos a demora na implementação da política de genética. Entretanto, nosso objetivo é, também, repisar a necessidade dessa iniciativa e da efetiva tomada de decisões para estruturação da Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Sabemos que essa implementação requer vultosos investimentos iniciais. Contudo, lembramos que os benefícios que poderá trazer, a longo prazo, para os pacientes e para o Poder Público, poderão ser aferidos pela melhor qualidade de vida de quem porta doença rara e pelo alcance da REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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dignidade, conferindo à Administração Pública, por sua vez, maior controle sobre os recursos, reduzindo as constantes – mas, no momento, necessárias – intervenções do Poder Judiciário. Essas medidas devem balizar as ações do Poder Público na construção de uma política pública voltada às doenças raras. Trata-se de iniciativas que, certamente, já foram pensadas pelos teóricos da Saúde e do Direito e, também, pelos próprios gestores que, com a incumbência de administrar as demandas infindáveis em saúde, em um contexto orçamentário desafiador e de limites fáticos, estabeleceram cuidados direcionados às doenças de maior incidência. Tal priorização, entretanto, não deve obstar medidas que objetivem ampliar o rol de doenças tratadas e de pacientes atendidos. Gradativamente, devem ser traçadas metas para que a política pública alcance novos grupos de pacientes, situação que atualmente não verificamos para as doenças raras. Assim, os pontos que elencamos representam o que o Poder Público não pode deixar de enfrentar, na tarefa de promover acesso universal, igualitário e integral em saúde. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito à saúde é protegido constitucionalmente, mas, a despeito disso, é um dos direitos fundamentais que mais carecem de efetividade. À sombra de todos os problemas de saúde existentes, os pacientes de doenças raras, indiscutivelmente, sofrem ainda mais com a insuficiência desse sistema. O que temos hoje à disposição para os cuidados com doenças raras está muito aquém daquilo previsto pela Constituição Federal de 1988, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana. Percebemos que a ausência de normas específicas e a burocracia na implementação de atos normativos obstam o acesso às ações e aos serviços de saúde, que se destinariam à proteção, à promoção e à recuperação da saúde dos pacientes com doenças raras. Nesse sentido, evidencia-se uma insegurança jurídica no contexto de efetivação desse direito, apesar da atuação protagonista do Poder Judiciário na concretização do direito social à saúde desses pacientes. Propomos uma maior aproximação do Poder Público à problemática, com políticas públicas direcionadas a enfrentá-la de forma mais incisiva, por meio, por exemplo, do incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento de medicamentos órfãos; da revisão dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas com periodicidade, resultando na efetiva ampliação das doenças tratadas no SUS; da transformação dos dados da Portaria 81/2009, que aprova a genética clínica no SUS, em realidade. Somente com tais medidas há de se falar em uma verdadeira efetivação da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, em mais um passo rumo à concretização dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

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12 Ibid., p. 29. 13 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 236; 248. 14 Ibid., p. 242; 246. 15 STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 29 abr. 2004. Diário da Justiça de 04 de maio 2004. INFORMATIVO STF nº 345 (26 a 30 de abril de 2004) – Transcrições. 16 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pág. 118. 17 BONAVIDES, op. cit., p. 541. 18 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pág. 107. 19 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 233. 20 MIRANDA, Adriana; LACERDA, Rosane. O direito à saúde de grupos vulneráveis. In: COSTA, Alexandre Bernardino et al. (Org.). O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde, Brasília: CEAD/UnB, 2008, p. 219. 21 RARE diseases: Understanding this Public Health Priority. Paris, nov. 2005. Organização Europeia De Doenças Raras – EURORDIS. Disponível em: <http://www.eurordis.org/IMG/pdf/princeps_documentEN.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2010. 22 SCHIEPPATI, Arrigo; HENTER, Jan-Inge; DAINA, Erica; APERIA, Anita. Why are rare diseases an important medical and social issue. The Lancet, v. 371, jun. 2008 disponível em: <http://www.thelancet. com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(08)60872-7/fulltext>. Acesso em: 21 mai. 2009. 23 Ibid. 24 SOUZA, Mônica Vinhas de; KRUG, Bárbara Corrêa; PICON, Paulo Dornelles; SCHWARTZ, Ida Vanessa Doederlein. Medicamentos de alto custo para doenças raras no Brasil: o exemplo das doenças lisossômicas. Revista Ciência e Saúde Coletiva. Disponível em: <http://www.abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/ artigos/artigo_int.php?id_artigo=2406>. Acesso em: 27 nov. 2009. 25 OLIVETO, Paloma. Portadores de doenças raras sofrem para conseguir atendimento. Jornal Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/02/28/ cienciaesaude,i=176378/PORTADORES+DAS+CHAMADAS+DOENCAS+RARAS+SOFREM +PARA+CONSEGUIR+ATENDIMENTO.shtml>. Acesso em: 02 mar. 2010. 26 Suécia, Inglaterra, Dinamarca, Bélgica, França e Itália, conforme apontado por SCHIEPPATI et al., op. cit. 27 CONSTITUTION of the World Health Organization, 1946. World Health Organization. Disponível em: <http://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/constitution-en.pdf>. Acesso em 28 ago. 2010. 28 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição de 1988. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 17, n. 67, jul/set 2008, p. 132-135. 29 SCHWARTZ, Germano André Doederlein. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 27. 30 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39. 31 Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. 32 AITH, Fernando Mussa Abujamra. Teoria Geral do Direito Sanitário Brasileiro. 2006. 458 f. 2 v. Tese (Doutorado em Saúde Pública). Universidade de São Paulo – Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, 2006, p.394. 33 Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer

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espécie; V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII - participação da comunidade; IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo: a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população; XII capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência e XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos. AITH, op. cit., p. 397-398. GOUVÊIA, Marcos Maselli. O Direito ao fornecimento estatal de medicamentos. In: GARCIA, Emerson (Coord.). A Efetividade dos Direitos Sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 212. BIGNAMI, Fabrizia. O que é um medicamento órfão? Eurordis, set. 2006. Disponível em: <http:// archive.eurordis.org/article.php3?id_article=1177>. Acesso em: 14 abr. 2009. Resolução nº 338/2004, art. 1º, III, do Conselho Nacional de Saúde, in verbis: “A Assistência Farmacêutica trata de um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, tanto individual como coletivo, tendo o medicamento como insumo essencial e visando ao acesso e ao seu uso racional. Este conjunto envolve a pesquisa, o desenvolvimento e a produção de medicamentos e insumos, bem como a sua seleção, programação, aquisição, distribuição, dispensação, garantia da qualidade dos produtos e serviços, acompanhamento e avaliação de sua utilização, na perspectiva da obtenção de resultados concretos e da melhoria da qualidade de vida da população”. Disponível em: <http://portal.saude.gov. br/portal/arquivos/pdf/resol_cns338.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2010. O CEAF revogou o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional (Portaria 2.577/2006), que, embora fosse voltado para tratamento de doenças raras ou de baixa prevalência, não definia critérios objetivos para a caracterização dessas doenças, o que deixa à discricionariedade do gestor público a inclusão de medicamentos. A Medicina Baseada em Evidências propõe que toda intervenção médica seja orientada, apoiando-se em quatro áreas distintas: epidemiologia, clínica, metodologia científica, estatística e informática. (SOUZA et al., op. cit.). Representa, portanto, um instrumento de segurança para o paciente, sendo, também, útil ao gestor público no conhecimento do perfil das doenças, possibilitando que a tomada de decisões em saúde tenha maior respaldo técnico e científico. Os protocolos têm o “objetivo de estabelecer claramente os critérios de diagnóstico de cada doença, o algoritmo de tratamento das doenças com as respectivas doses adequadas e os mecanismos para o monitoramento clínico em relação à efetividade do tratamento e a supervisão de possíveis efeitos adversos. Observando ética e tecnicamente a prescrição médica, os PCDT, também, objetivam criar mecanismos para a garantia da prescrição segura e eficaz. Portanto, no âmbito do CEAF, os medicamentos devem ser dispensados para os pacientes que se enquadrarem nos critérios estabelecidos nos respectivos PCDT”. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=28510.>. Acesso em: 02 mar. 2010. Segundo dados publicados no site oficial do Ministério da Saúde, disponíveis em <http://portal.saude.gov.br/ portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_NOTICIA=10895>. Acesso em: 17 jan. 2010. Conforme RODRIGUES, Greice; MAGRO, Maíra. A difícil vida de quem tem doença rara no Brasil. Revista Isto é, São Paulo: Três Editorial, ano 32, n. 2087, 11 nov. 2009, p.114. Nota na íntegra disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/02/28/ cienciaesaude,i=176381/CONFIRA+INTEGRA+DE+NOTA+DO+MINISTERIO+DA+SAUDE +SOBRE+DOENCAS+RARAS.shtml> Acesso em 02 mar. 2010. RASKIN, Salmo. Raras e subdiagnosticadas: um dia para as raras. Jornal Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/02/28/cienciaesaude,i=176382/LEIA+ ARTIGO+DO+GENETICISTA+SALMO+RASKIN+PRESIDENTE+DA+SOCIEDADE+BRAS ILEIRA+DE+GENETICA+MEDICA.shtml>. Acesso em: 15 ago. 2010. STF. STA 175 AgR-CE. RELATOR: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 17 mar. 2010. Publicado no Diário da Justiça de 25 mar. 2010. INFORMATIVO STF nº 579 (15 a 19 de março de 2010) – Transcrições. KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e o controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 52-53.

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O direito à saúde dos portadores de doenças raras e a necessidade de políticas públicas para a efetivação deste direito

47 MAIA, Christianny Diógenes. Paradigmas do Neocontitucionalismo Brasileiro. In SALES, Gabrielle Bezerra; JUCÁ, Roberta Laena Costa (Org.). Constituição em Foco: 20 anos de um Novo Brasil. Fortaleza: LCR, 2008, p.62. 48 Ibid., p. 62. 49 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 54-55. 50 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional - a sociedade aberta de intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p.31-32. 51 TRF5. Ação Ordinária nº 2008.80.00.003451-8 / AL. Juiz Federal Leonardo Resende Martins. Julgado em 09 set. 2008. Publicado no Diário da Justiça de 11 set. 2008. 52 Para análise do impacto da Legislação Americana sobre Medicamentos Órfãos, de 1983 a abril de 2008, 1841 drogas receberam a designação de droga órfã, das quais 325 receberam autorização para comércio. Na década anterior ao estabelecimento da norma, somente 10 produtos como esses chegaram ao mercado. Estima-se que mais de 17 milhões de pessoas se beneficiam com a legislação medicamentos órfãos, nos Estados Unidos (TEJADA, Paloma. The US Orphan Drug Act celebrates its 25th Anniversary. Eurordis, jun. 2008. Disponível em: <http://archive.eurordis.org/article.php3?id_article=1751>. Acesso em: 19 nov. 2009).

THE RIGHT TO HEALTH OF PATIENTS LIVING WITH RARE DISEASES AND THE NEED OF PUBLIC POLICIES FOR PERMITTING THE EXERCISE OF THIS RIGHT ABSTRACT The Brazilian Constitution of 1988 and the Organic Law on Health (Law 8.080/90) inaugurated a new moment in the history of health in Brazil, due to the rules it includes, which offer a broad protection of that right. However, patients with rare diseases still find difficulties in accessing the public health care system in Brazil. Besides that, Brazil does not have official figures available about the profile of the incidence of these diseases, in order to offer to the government the correct guidelines on the real needs of these patients and hence to permit the promotion of the development of specific public policies in this area. From this fact, this paper, based on normative, case law and doctrinal researches, aims to demonstrate the need to adopt different criteria for treating patients with rare diseases. We conclude that the means of access to health care offered to patients with rare diseases in Brazil are still not sufficient, and despite the outstanding performance of the Judiciary to ensure that right, it is still necessary to approach the problem through more emphatic public policies. Keywords: Fundamental social rights. Right to health. Rare diseases. Public policies. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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E-COMMERCE E O DIREITO DE ARREPENDIMENTO Fábio de Barros Bruno* RESUMO O direito de arrependimento é a prerrogativa instituída pelo art. 49 do Código de Defesa do Consumidor mediante a qual é facultado ao consumidor desistir, no prazo de sete dias e sem qualquer ônus, do contrato que tenha efetuado fora do estabelecimento comercial do fornecedor. Este instituto tem por objetivo básico garantir a conveniência e a oportunidade no ato de consumo, tanto suprindo a falta de contato prévio do consumidor com o produto ou serviço que adquire fora do estabelecimento do fornecedor, como coibindo as práticas comerciais eivadas de marketing agressivo. Os limites de sua aplicabilidade no comércio eletrônico, todavia, devem ser traçados a fim de se estabelecerem regras claras para os participantes da relação de consumo. O exercício do direito de arrependimento deve ocorrer em conformidade com princípios que regem o sistema, como meio de harmonização das relações de consumo no comércio eletrônico e, por conseqüência, como instrumento para a ampliação do número de pessoas incluídas na rede mundial de computadores. Palavras-chave: Direito de arrependimento. Comércio eletrônico. E-Commerce. Consumidor e Internet. Prazo de reflexão. Artigo 49 do CDC. Contratos eletrônicos. INTRODUÇÃO Impulsionado por milhares de empresas, o chamado comércio eletrônico é uma realidade inquestionável. Comprar e vender bens e serviços pela Internet é uma atividade cada vez mais corriqueira para vários setores da população. O comércio eletrônico, contudo, sob a óptica jurídica, apresenta alguns problemas relevantes, sobretudo quanto à interpretação e à aplicação do ordenamento pátrio vigente às novas situações nascidas em seu ambiente. Dentro deste contexto, destaca-se o chamado direito de arrependimento preconizado pelo Código de Defesa do Consumidor. *

Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP. Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas - Escola de Direito de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU – SP. Professor de Direito Empresarial do curso de graduação da Faculdade Christus – Fortaleza-CE.

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E-commerce e o direito de arrependimento

O direito de arrependimento, expressão atribuída pela doutrina consumerista, constitui prerrogativa instituída pelo art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, mediante a qual é facultado ao consumidor desistir, no prazo de sete dias, do contrato que tenha efetuado fora do estabelecimento comercial do empresário. Uma vez aplicado ao comércio eletrônico, o consumidor poderá contratar e, caso o produto ou serviço não atenda as suas conveniências ou expectativas, poderá se arrepender e simplesmente devolvê-lo ao empresário. Notadamente, tal prerrogativa só tende a difundir o comércio eletrônico, haja vista que o direito de arrependimento supre a falta de contado prévio do consumidor com o produto ou serviço e coíbe as práticas de venda eivadas de marketing agressivo. De acordo com uma interpretação gramatical do art. 49 do CDC, no primeiro momento, salvo o lugar onde foi firmado o contrato e o prazo de reflexão, aparentemente não existiria qualquer outro limite para que o consumidor exerça o direito nele descrito. Em suma, basta que o produto ou o serviço tenha sido adquirido fora do estabelecimento comercial e que o direito de arrependimento seja exercido no prazo de sete dias. Desta forma, o objetivo deste artigo, em poucas linhas e sem qualquer pretensão de exaurir o tema, é justamente, em razão da escassa bibliografia sobre o tema, analisar e estabelecer uma interpretação mais adequada desse instituto; uma técnica hermenêutica que busque não só um ponto de equilíbrio na aplicabilidade do direito de arrependimento fundamentado no próprio sistema jurídico, mas também desperte os consumidores a se valerem desta prerrogativa, sobretudo no comércio eletrônico. Para tanto, utiliza-se pesquisa bibliográfica, teórica, descritiva e jurisprudencial. O caminho trilhado de forma dedutiva, passa tanto pela análise do conceito do direito de arrependimento, quanto pelo exame das principais hipóteses de sua incidência, para, ao final, traçar possíveis limites extrínsecos e intrínsecos de sua aplicabilidade no comércio realizado pela rede mundial de computadores. 1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O DIREITO DE ARREPENDIMENTO O Código de Defesa de Consumidor, ao tratar da contratação à distância, estabeleceu o chamado, pela doutrina consumerista, direito de arrependimento. Trata-se da faculdade conferida ao consumidor de desistir do contrato que tenha efetuado fora do estabelecimento comercial do fornecedor, desde que o faça no prazo de reflexão de 7 dias, contados estes da assinatura do contrato ou do ato de recebimento do produto ou serviço. 1 A expressão direito de arrependimento foi adotada pela doutrina por causa do parágrafo único do referido artigo. Todavia, autores há que adotam expressões diferentes como: direito de recesso2, talvez por já existir no Direito Civil a previsão expressa de um direito de arrependimento no art. 420 do Código Civil que trata das arras penitenciais3. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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A razão principal que levou o legislador a proteger o consumidor na contratação à distância foi resguardar a discricionariedade no consumo. Esta discricionariedade, a seu passo, é a conveniência e a oportunidade do consumidor no ato de consumir. O consumidor, diferentemente do que habitualmente ocorre dentro do estabelecimento comercial do fornecedor, quando contrata à distância, estará ainda mais sujeito a consumir determinado produto ou serviço sem a devida reflexão. Isto é, ao consumidor será ainda mais difícil, em tal hipótese, avaliar se o produto ou o serviço que pretende adquirir irá corresponder realmente as suas necessidades ou aspirações. Poderá ele ser levado a consumir por impulso, a adquirir um produto ou um serviço sem a devida liberdade, a contratar motivado ou constrangido por técnicas agressivas de venda, ou ainda, estará ele sujeito a comprar algo que desconhece, a que não lhe foi dado oportunidade de ter contato prévio. A falta de reflexão do consumidor no ato de consumo, como bem assinala Cláudia Lima Marques4, contribui no sentido de lhe gerar uma série de problemas, como o superendividamento, a insolvência, dentre outros. Logo, para garantir a devida oportunidade e conveniência no ato de consumir, ou seja, para assegurar a discricionariedade no consumo, é que o CDC, visando a impedir abusos por parte de fornecedores e equilibrar a relação consumerista, estabelece o direito de arrependimento do consumidor, quando este contratar fora do estabelecimento comercial do fornecedor. Note-se que o Código adotou um critério objetivo, ou seja, o local da feitura do contrato, para presumir uma hipótese de falta de discricionariedade do consumidor. Em outros termos, o Código assumiu, a princípio, a idéia de que todos e quaisquer contratos firmados pelo consumidor fora do estabelecimento comercial do fornecedor sujeitam-no (o consumidor) a uma possível falta de conveniência e oportunidade no ato de consumir, o que nem sempre é verdade.5 A falta de discricionariedade na contratação na relação de consumo resulta basicamente de dois fatores: I - do emprego de técnicas de marketing agressivo. II - do desconhecimento prévio do consumidor do produto ou serviço.6 No primeiro caso, isto é, no emprego de técnicas de marketing agressivo, o consumidor tem sua discricionariedade maculada pelo fato de o fornecedor, ao utilizar tais técnicas, interferir, de certa forma, na vontade do consumidor, fazendo com que ele consuma independentemente de sua necessidade ou conveniência. Percebe-se que a conduta do fornecedor, e não a conduta do consumidor, determinou o consumo; consumo esse não espontâneo, mas sim induzido por tais técnicas. Sendo assim, nada é mais justo do que esta conduta seja albergada pelo risco da atividade empresarial. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, o marketing agressivo consiste “na utilização de técnicas de venda que, em diferentes graus, inibem a reflexão sobre a conveniência e oportunidade do ato de consumo”.7 São métodos que, segundo 114

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E-commerce e o direito de arrependimento

o autor: a) procuram precipitar a decisão da compra, reduzindo o tempo para o consumidor meditar sobre a real necessidade do produto ou serviço, hipótese do famoso: “ligue já e ganhe inteiramente grátis”; b) levam o consumidor a consumir por mero constrangimento, como no caso de reuniões feitas na casa de amigos onde são oferecidos produtos pelos anfitriões; c) utilizam técnicas ligadas à exacerbação de vantagens do negócio aliadas a um clima de festividade, como é o caso dos contratos de multipropriedade ou time-sharing. Vale ressaltar que técnicas de marketing agressivo também são utilizadas por alguns fornecedores no comércio eletrônico. Como exemplo, podemos destacar os banners de propaganda em um site que trazem uma contagem regressiva para o clique do consumidor, ou o uso excessivo de páginas que se abrem sem solicitação, conhecidas como pop-ups. Tais páginas, uma vez que tragam uma oferta, poderiam, por exemplo, ficar incessantemente se abrindo à medida que o consumidor navega por determinado site. Além das técnicas agressivas de marketing, a falta de conhecimento prévio do produto ou serviço também atinge a discricionariedade no consumo. Nestes casos, todavia, diferentemente do que ocorre com a utilização do marketing agressivo, o consumidor não será incitado a consumir; pelo contrário, agirá livre e espontaneamente, mas estará sujeito a adquirir um produto ou serviço que desconhece. Ao consumir à distância, geralmente, a análise do produto ou serviço pelo consumidor é prejudicada. O consumidor, em tais casos, não pode se valer de seus sentidos para verificar se produto ou serviço atende as suas expectativas, isto é, tocar, ver, cheirar, provar ou escutar aquilo que deseja adquirir. Importante é ressaltar que nem sempre isto, ou seja, a análise completa do produto ou serviço, também será possível quando a relação de consumo ocorrer dentro do estabelecimento comercial. Ainda que não possível, porém, em todos os casos no mundo físico, no comércio eletrônico, com efeito, o consumidor não poderá utilizar todos os sentidos para avaliar o produto ou serviço que pretende adquirir. O Código, contudo, não leva em conta tal fato, considerando passível do direito de arrependimento, em regra, qualquer contrato de consumo, desde que firmado fora do estabelecimento comercial do fornecedor. O que deve ficar evidente, no entanto, é que a intenção do legislador, ou seja, a teleologia normativa, foi a de garantir a discricionariedade no consumo. Sendo assim, em regra, não se justifica o exercício do direito de arrependimento, quando esta discricionariedade não for afetada, seja pela conduta do fornecedor ao utilizar técnicas agressivas de marketing, seja pelo desconhecimento do produto ou serviço ocasionado pela contratação à distância. Fala-se, em regra, porque haverá casos em que, em virtude da natureza da atividade econômica desenvolvida, o arrependimento será possível, independentemente de violação da discricionariedade no consumo. É a hipótese, por exemplo, da venda de bilhetes de passagens aéreas à distância, onde a possível desistência de passageiros já é prevista, sendo inerente à natureza do negócio.

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2 HIPÓTESES DE INCIDÊNCIA DO DIREITO DE ARREPENDIMENTO O fato de o caput do art. 49 CDC mencionar no seu final a expressão especialmente por telefone ou a domicílio para designar os contratos fora do estabelecimento comercial sujeitos ao arrependimento do consumidor não exclui outros contratos realizados fora do estabelecimento do fornecedor. Como bem assinala Nelson Nery, trata-se de elenco meramente exemplificativo, podendo a contratação ser efetuada fora do estabelecimento comercial das mais variadas formas. Segundo o autor, “o caráter de numerus apertus deste elenco é dada pelo advérbio ‘especialmente’, constante da norma. Esta expressão indica claramente o propósito da lei de enumerar exemplos e não hipóteses taxativas”.8 A obra de Rizzatto Nunes9 oferece um elenco bastante vasto de hipóteses de contratações efetuadas fora do estabelecimento do fornecedor em que o direito de arrependimento poderá ser exercido pelo consumidor. Tomando por base a sua lição, destacam-se algumas hipóteses mais comuns em que o consumidor, com base no artigo 49 do CDC, poderá, unilateralmente, arrepender-se do contrato de consumo firmado. São elas: a) os contratos de consumo realizados em seu domicílio ou resultantes da venda de porta em porta10; b) contratos de consumo realizados por telefone decorrentes das vendas por telemarketing ou, ainda, das ofertas em veiculadas por TV, sites na Internet, mala direta, dentre outros; c) contratos de consumo realizados por correspondência decorrentes de repostas do consumidor a ofertas usualmente feitas por mala direta; d) contratos de consumo resultantes de vendas emocionais de time-sharing ou multipropriedade; 11 e por último, o objeto desta pesquisa, e) contratos de consumo realizados por meio eletrônico, isto é, os contratos eletrônicos de consumo efetuados pela Internet, pelos caixas eletrônicos, pelos telefones celulares, pelo sistema de TV a cabo, dentre outros. É importante ter em mente a noção de que os contratos por meio eletrônico ou contratos eletrônicos não se restringem aos contratos firmados pela Internet. Hoje, já contratamos pelo sistema de TV a cabo, pelos telefones celulares, pelos mais diversos tipos de terminais eletrônicos espalhados pelas cidades e, certamente, com o continuar da evolução da tecnologia, muitos outros meios não mencionados aqui surgirão. O que deve restar claro, todavia, é o fato de que este tópico diz respeito a todo e qualquer contrato de consumo, firmado a distância, por meio capaz de transmitir e registrar eletronicamente a vontade das partes. Não se pode duvidar de que os contratos eletrônicos ainda representam uma certa novidade para o Direito, pois, a despeito de, tanto a doutrina, como a jurisprudência, caminharem no sentido de se amoldar às novas relações jurídicas nascidas com a revolução tecnológica, alguns temas, como o próprio direito de arrependimento, ainda demandam melhor análise. O arrependimento do consumidor ao contratar nessas hipóteses, em regra, também será possível, no entanto, em razão das peculiaridades impostas por esta 116

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nova forma de contratação, a interpretação até hoje estabelecida pela doutrina para as relações construídas no mundo físico, como veremos, não serão as mesmas quando a relação de consumo for estabelecida por meio de contrato eletrônico. Em outros termos, os limites ao exercício do direito de arrependimento serão os mesmos, não há qualquer dúvida, pois eles sempre existirão e continuarão a existir para qualquer relação de consumo que atente contra a discricionariedade no consumo. A interpretação de tais limites, contudo, é que variará em função das peculiaridades existentes nos contratos firmados por meio eletrônico. 3 LIMITES DE APLICABILIDADE DO DIREITO DE ARREPENDIMENTO AO COMÉRCIO ELETRÔNICO No comércio eletrônico, o direito de arrependimento será também, assim como o é nas relações no mundo físico, um direito subjetivo do consumidor. Tal fato se revela habitualmente por uma razão simples: o consumidor no comércio eletrônico, mesmo não sendo alvo de marketing agressivo (e, como visto, nada impede que seja), comumente não tem como aferir as reais características do produto e serviço que irá consumir ou realmente atestar se estes se adéquam as suas necessidades ou satisfazem as suas expectativas. O consumidor, com já exposto, no comércio eletrônico, freqüentemente, também não terá como consumir com plena discricionariedade no seu ato, isto é, não terá total conveniência e oportunidade no seu consumo. Sendo assim, para impedir abusos por parte de fornecedores e equilibrar a relação de consumo, é que o Código de Defesa do Consumidor igualmente possibilita que o consumidor se arrependa do contrato, nesses casos, no prazo de 7 dias. Nenhum exercício de direito subjetivo, entretanto, é absoluto. O próprio ordenamento jurídico cuida de estabelecer limites ao exercício dos mais variados direitos que estabelece. É caso do exercício do direito de arrependimento pelo consumidor, que por mais ilimitado que possa parecer à primeira vista, sobretudo no comércio eletrônico, por não exigir a exposição de qualquer motivo por parte do consumidor para o seu exercício, também possui limites estabelecidos pelo próprio sistema. Eles se encontram dentro da própria redação do artigo 49 e no micro sistema de normas de defesa do consumidor traçadas pelo CDC. Os limites ao direito de arrependimento contidos expressamente na redação do art. 49 do CDC serão aqui chamados de limites intrínsecos e os demais limites, exteriores à redação do artigo, de limites extrínsecos, como serão analisados adiante. 3.1 Limites Intrínsecos Os limites intrínsecos ao exercício do direito de arrependimento serão o limite espacial e o limite temporal, isto é, o critério objetivo do local da contratação e o prazo de reflexão de 7 dias, respectivamente. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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3.1.1 Limite espacial O art. 49 do CDC adotou um critério objetivo para estabelecer a violação à discricionariedade no ato de consumo. Assumiu o legislador a noção de que todo e qualquer contrato efetuado fora do estabelecimento comercial do fornecedor sujeitaria o consumidor a adquirir um produto ou um serviço sem a devida necessidade ou conveniência. Sendo assim, em regra, basta que o consumidor contrate fora do estabelecimento fornecedor para que tenha direito de arrepender-se no prazo de 7 dias. O consumidor poderá então se arrepender quando contratar por telefone, por correspondência, em seu domicilio, ou quando efetuar um contrato eletrônico. O Código Civil de 2002 define o estabelecimento comercial, ou melhor, já dentro da teoria da empresa por ele adotado, o estabelecimento empresarial, em seu artigo art. 1.142, in verbis: “considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Ora, o estabelecimento é um complexo de bens, ou seja, é um conjunto de bens corpóreos (loja, mobília, carros, máquinas, mercadoria etc.) e incorpóreos (marcas, invenções, nome empresarial, etc.) organizado e utilizado pelo empresário, pessoa física ou jurídica, para exercício profissional de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços. Da análise de ambos os artigos (art. 49 do CDC e art. 1.142 do Código Civil), percebe-se claramente que o conceito espacial de dentro e fora do estabelecimento não mais se coaduna com o atual conceito do que seja estabelecimento empresarial, haja vista que o art. 49 do CDC se refere, na realidade, ao local onde o empresário exerce a sua atividade. Na relação de consumo, tal local será a loja, o restaurante, a concessionária de veículos, a farmácia, o supermercado, dentre outros. O artigo, na verdade, cuida do ponto comercial ou empresarial, ou seja, do local (ordinariamente um imóvel) onde o fornecedor oferece seus produtos e serviços. Tal local estará contido no conceito de estabelecimento empresarial, mas o conceito de estabelecimento é bem mais amplo e, todavia, não se restringirá ao lugar onde é exercida a atividade empresarial. À época da entrada em vigor do CDC, mormente 1990, a lei ainda não trazia expressamente o conceito de estabelecimento comercial, ficando ao cargo da doutrina tal obrigação, o que de certa forma até justifica a escolha da referida expressão pelo legislador. Hoje, no entanto, percebe-se facilmente uma atecnia na redação do art. 49, que, ao se referir a estabelecimento comercial, na realidade pretende tratar, não de um conjunto organizado de bens para o exercício da atividade econômica pelo empresário, mas sim do local físico (ponto empresarial12) onde o fornecedor desenvolve a sua atividade e onde o consumidor pode entrar ou dele sair. O Código parte do princípio de que, em tal local, o consumidor uma 118

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vez que terá contato direto não só com os vendedores do empresário, como também com os produtos e serviços oferecidos por este não terá, em regra, a sua discricionariedade no consumo maculada. Melhor seria que a redação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor não condicionasse o exercício do direito de arrependimento ao critério da compra ser efetuada dentro ou fora do estabelecimento comercial e sim, ao critério da compra ser feita à distância. Melhor ainda, porém, seria se o CDC adotasse como critério o fato de o contrato ser firmado sem a devida discricionariedade por parte do consumidor e explicasse em um parágrafo as hipóteses em que tal discricionariedade seria violada, mormente quando houvesse a utilização de técnicas de marketing agressivo por parte do fornecedor, ou quando o consumidor, em função da distância, não pudesse ter contato prévio com o produto ou serviço que pretende adquirir. Na falta de uma lei mais detalhada sobre o tema, caberá à doutrina e à jurisprudência de nosso País suprir as possíveis lacunas na aplicação do direito de arrependimento. Esta última, como observado, já caminha nesse sentido, ao permitir o arrependimento do consumidor nos contratos de consumo resultantes de vendas emocionais de time-sharing ou multipropriedade, independentemente do fato de serem eles firmados dentro ou fora do estabelecimento comercial do fornecedor.13 Percebe-se que jurisprudência brasileira, à falta de um tratamento mais específico do tema pela lei, acertadamente, afasta o critério objetivo do local do contrato de consumo para adotar um critério subjetivo, ou seja, a falta de discricionariedade de consumo ocasionada pela utilização de técnicas agressivas de marketing, mesmo no caso em que a contratação acontece dentro do estabelecimento do fornecedor. Alguns autores14, todavia, na tentativa de resguardar o empresário que atua no comércio eletrônico, apegam-se à idéia de que o consumidor, ao efetuar um contrato de consumo na Internet, o faz dentro do estabelecimento comercial do fornecedor. O que ocorre, na realidade, segundo a referida corrente, é a diferença no acesso ao estabelecimento, que, no meio virtual, não se dá de forma física, mas sim por meio da conduta do consumidor em, ao navegar pela Internet, acessar determinado endereço eletrônico pelo seu computador. O acesso do consumidor ao estabelecimento do fornecedor é assim virtual e não físico. Vê-se que, ao adotar esta interpretação, nega-se qualquer possibilidade de arrependimento do consumidor decorrente da falta de contato prévio deste com o produto ou serviço que adquire. Notadamente, trata-se de uma tentativa de resguardar o empresário da aplicação indiscriminada do direito de arrependimento causada pela confusa redação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor. Como visto, quando o art. 49 do CDC fala de contratação firmada fora do estabelecimento comercial, em verdade está se referindo ao local físico onde REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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o fornecedor desenvolve a sua atividade econômica. Não se pode dizer que o local físico onde o fornecedor exerce sua atividade é igual ao lugar virtual, isto é, ao website do fornecedor. O site, quando muito, poderia ser comparado a um catálogo de vendas, mas não a um catálogo estático feito de papel, e sim a um catálogo interativo, onde o consumidor, por meio de cliques do botão do mouse, poderia, de acordo com sua vontade, examinar ofertas de produtos e serviços ao navegar por páginas eletrônicas. Uma coisa, entretanto, é entrar no estabelecimento físico do fornecedor e tocar, ver, cheirar, provar, em suma, analisar produtos; outra é acessar ofertas inseridas no seu website por meio de um computador conectado à Internet. Tais experiências de consumo são totalmente diferentes. Se há de se comparar a relação de consumo ocorrida na Internet como qualquer outra, que se compare com os contratos de consumo nascidos da aceitação do consumidor as ofertas de produtos e serviços feitas por catálogos e não com os contratos efetuados dentro do estabelecimento do fornecedor. Os contratos relacionados às ofertas feitas por catálogo impresso, a seu passo, são contratos realizados à distância, ou seja, que se concretizam, em última instância, por telefone, em domicílio ou por correspondência, ou até mesmo pela Internet (correio eletrônico, por exemplo), sendo plenamente possível o arrependimento do consumidor. Não se pode dizer, contudo, é que o consumidor contratou dentro do estabelecimento comercial do fornecedor apenas pelo fato de ter acessado o site deste na Internet. Se assim fosse, estaríamos incentivando a venda por catálogo em detrimento da venda feita pela Internet, porque, no primeiro caso, o consumidor poderia se arrepender e no segundo não. Acessar um catálogo eletrônico interativo e firmar um contrato não é a mesma coisa que contratar dentro do estabelecimento comercial do fornecedor. O consumidor, em regra, uma vez dentro do estabelecimento do fornecedor, pode averiguar com maior clareza a necessidade e a conveniência no consumo de determinado bem ou serviço. O consumidor, dependendo das peculiares características do produto ou do serviço, estando dentro do estabelecimento, poderá ver, tocar, cheirar, escutar ou provar aquilo que pretende consumir. Sua discricionariedade será salvo exceções ligadas à natureza do produto ou serviço negociado completa, diferentemente de quando contrata à distância e, por conseqüência, não tem oportunidade de ter contato prévio com o bem ou serviço que busca adquirir. 3.1.2 Limite temporal: o prazo de reflexão O art. 49 do Código de Defesa do Consumidor estabelece como prazo de reflexão o período de 7 dias. Trata-se do limite temporal para o exercício do direito de arrependimento, haja vista que, uma vez ultrapassado, o consumidor não poderá mais se arrepender do contrato que tenha firmado fora do estabelecimento comercial do fornecedor. 120

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Não se sabe ao certo o que levou o legislador a escolher o prazo específico de 7 dias e não de 10, 20, 30 dias, ou qualquer outro. Talvez a escolha tenha se dado pelo fato de o referido prazo, em sua fluência, sempre contemplar um final de semana. Certamente, neste período de descanso, os consumidores, submetidos à agitação e ao estresse comuns nas grandes cidades, podem refletir de um modo mais tranqüilo e sensato sobre os contratos de consumo que tenham firmado durante os dias da semana. Segundo assinala Nelson Nery, “o legislador brasileiro optou por conceder o prazo de sete dias, de relativa exigüidade, de modo a evitar eventuais abusos que possam ser cometidos pelo consumidor”.15 Da análise do art. 49 do CDC, percebe-se ainda que o termo inicial para contagem do prazo de reflexão será a data da assinatura do contrato ou a data em que o produto ou serviço for recebido pelo consumidor. São, com efeito, duas situações diversas, pois nem sempre a assinatura do contrato coincidirá com a entrega do produto ou serviço, devendo, em regra, a contagem do prazo sempre ser iniciada com o último desses eventos, caso ocorram em datas distintas. Seria o caso da assinatura de um contrato de compra e venda em domicílio, em que o consumidor paga o preço e, somente após o decorrer de um mês, recebe o produto em sua casa. Ora, caso se contasse o prazo de reflexão da assinatura do contrato, o direito de arrependimento do consumidor cairia por terra, uma vez que, com a entrega do produto, o prazo já estaria extinto.16 Uma vez fixado o termo inicial, aplica-se supletivamente o artigo 132 do Código Civil para se contar o prazo de reflexão de 7 dias. Sendo assim, exclui-se o dia do início e inclui-se o último dia. Se o dia inicial da contagem do prazo cair em dia não útil ou feriado, inicia-se a contagem a partir do próximo dia útil subseqüente. Da mesma maneira, se o dia final do prazo cair em dia não útil ou feriado, prorroga-se o seu vencimento para o primeiro dia útil posterior. Importante ressaltar que o prazo de 7 dias estabelecido pelo CDC é um prazo mínimo, isto é, nada impede que seja ampliado pelo fornecedor. 17 O que não pode ocorrer, todavia, será a existência de cláusula contratual que estabeleça um prazo menor do que 7 dias. Tal cláusula, se existente, será tida por abusiva e, por conseqüência, nula nos termos do art. 51 do CDC. O consumidor que intente se arrepender deverá, dentro do prazo de reflexão de 7 dias, manifestar ao fornecedor a sua desistência do contrato de consumo, nada impedindo que essa manifestação ocorra no último dia do prazo, ou seja, no sétimo dia útil. O Código não determina nenhuma forma especial mediante a qual o consumidor deverá comunicar a sua desistência ao fornecedor. Logo, ao consumidor é facultado utilizar qualquer meio de comunicação para manifestar sua desistência.18 Logicamente, sua escolha deve se pautar no fato de que talvez tenha que comprovar em juízo o dia exato em que desistiu do contrato, para tornar seu arrependimento eficaz. Sendo assim, considerando a facilitação da prova, talvez a utilização de carta registrada seja a solução mais adequada.19 REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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O Código também não exige qualquer justificativa do consumidor ao manifestar a sua desistência, ou seja, pouco importa os motivos que levaram o consumidor a desistir do contrato do consumo, bastando que, em regra, o contrato tenha sido firmado fora do estabelecimento comercial do fornecedor e que o consumidor manifeste a desistência do contrato ao fornecedor dentro do prazo de reflexão.20 3.2 Limites Extrínsecos Os limites extrínsecos ao exercício do direito de arrependimento (não contidos na redação do artigo 49 do CDC) serão os limites social e material, isto é, o princípio da boa-fé objetiva e a relação de consumo, respectivamente. 3.2.1 O limite social: o princípio da boa-fé objetiva O artigo 49 do CDC busca proteger a discricionariedade no consumo, ou seja, visa a assegurar a conveniência e oportunidade do consumidor no ato de consumir, garantindo que a sua vontade seja livremente manifestada. Ao fazer isso, pode-se dizer, em uma última análise, que o referido artigo, com efeito, procura assegurar a boa-fé na relação de consumo, possibilitando o arrependimento do consumidor tanto nos casos da utilização, por parte do fornecedor, de técnicas de marketing agressivo, quanto nos casos em que o consumidor, ao contratar à distância, não tiver oportunidade de ter contato prévio com o produto ou serviço que pretende adquirir. O Código visa a assegurar que tanto consumidores quanto fornecedores ajam de boa-fé, ou seja, manifestem-se de uma forma honesta e leal ao firmarem o contrato de consumo. Esta boa-fé na relação de consumo, que motiva o CDC a estabelecer o possível arrependimento do consumidor nas hipóteses que cuida, encontra expressão no próprio texto do Código, mormente no seu art. 4°, inc. III.21 O referido inciso, outrossim, é uma manifestação clara do princípio da boa-fé objetiva. Fala-se em boa-fé objetiva em razão da existência de uma boa-fé subjetiva, a qual com aquela não se confunde. A boa-fé subjetiva é um estado psicológico. É a crença de uma pessoa de que está agindo corretamente, sem qualquer intenção de causar dano ou prejuízo a quem quer que seja e sem qualquer intuito de infringir a lei, a moral ou os bons costumes, com o seu comportamento. O indivíduo, em sua mente e para todos os efeitos, acredita estar se portando de forma íntegra e honesta. É uma boa-fé interna, uma boa-fé íntima, relacionada a um comportamento sem qualquer mácula que o agente, em seu pensamento, acredita estar cumprindo.22 Plínio Lacerda Martins cita como exemplo típico de boa-fé subjetiva o caso de uma pessoa que, ao alienar um bem, desconhece a existência de vícios ocultos e realiza o negócio acreditando praticar o ato conforme o Direito.23 122

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Já a boa-fé objetiva não é um estado psicológico, mas uma regra de conduta. Trata-se do dever das partes de se comportar de uma forma leal e honesta no sentido de respeitar a outra, evitando causar-lhe prejuízos desnecessários ou obstar o correto cumprimento do contrato. Este princípio, vale ressaltar, deve ser observado pelas partes da relação de consumo, tanto na fase preliminar de negociações quanto na fase de conclusão do contrato e mesmo após a sua execução.24 É um princípio dinâmico que se impõe por toda a vida do contrato e continua mesmo após a sua morte.25 É mister destacar o fato de que o princípio da boa-fé objetiva dirige-se tanto aos consumidores quanto aos fornecedores. Em outras palavras, a boa-fé na relação de consumo é uma via de duas mãos, ou seja, não só o fornecedor deve estar de boa-fé, mas também o consumidor, sobretudo quando exerce o direito de arrependimento. Ao contrário do que se pensa, facilmente o consumidor poderá ferir o princípio da boa-fé objetiva quando exercitar o direito de arrependimento, muitas vezes por pensar que esta é uma prerrogativa sem qualquer parâmetro, haja vista que a lei não exige qualquer demonstração dos motivos de sua desistência. Ronaldo Alves de Andrade26 aponta interessantes exemplos de violação do princípio da boa-fé objetiva pelo consumidor no comércio eletrônico. O primeiro é o caso de um consumidor que adquire, numa loja virtual na Internet, inúmeros CD´s de músicas e, após gravar apenas as músicas que lhe interessam, arrepende-se do contrato firmado no prazo de 7 dias. Outro exemplo é, segundo o autor, um caso verídico, mas que não chegou a ser discutido em juízo, em que um consumidor se arrependeu, no prazo de reflexão, da compra de um automóvel popular que efetuou pela Internet, após receber o veículo, isto é, depois de retirá-lo da concessionária. Em ambos os exemplos, o jurista assinala não caber o exercício do direito de arrependimento por parte do consumidor, por haver clara violação ao princípio da boa-fé objetiva. O princípio da boa-fé objetiva é um dos principais limites ao exercício do direito de arrependimento pelo consumidor no e-commerce. Com base no princípio da boa-fé objetiva, percebe-se que o exercício do direito de arrependimento no comércio eletrônico não deve ocasionar prejuízos injustos para o empresário e muito menos para o consumidor. No entanto, cada relação de consumo deve ser analisada caso a caso com base na característica do produto ou serviço e, sobretudo, com vistas à natureza do negócio para determinar-se se o comportamento do consumidor em arrepender-se representa uma violação ao referido princípio. Em outros termos, a violação ao princípio da boa-fé objetiva deverá ser aferida pelo juiz no caso concreto, pois se trata de um conceito aberto.27 Apesar das dificuldades que esta tarefa possa representar a princípio, é possível determinar um caminho lógico para se avaliar quando o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor representa violação ao princípio da boa-fé objetiva, sobretudo no comércio eletrônico.28 REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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O primeiro passo é identificar se houve ou não intervenção do consumidor no produto e se esta produziu um injusto prejuízo ao fornecedor. O segundo é perceber se o próprio exercício do direito de arrependimento, pelo fato da natureza da atividade econômica desenvolvida ou pela própria característica do produto ou serviço, por si só, não importa violação ao princípio da boa-fé objetiva. Ao se devolver um produto, o arrependimento do consumidor poderá ser extremamente lesivo ao fornecedor, pois, uma vez que o produto devolvido esteja inutilizado, ou ainda tenha o seu valor excessivamente diminuído pelo simples fato da intervenção do consumidor, o fornecedor, independentemente de qualquer motivo, terá que suportar todos os prejuízos advindos da devolução. Ora, como é habitual, dependendo do tipo de produto, a maioria dos consumidores precisa olhar, tocar, vistoriar, experimentar, em suma, precisa certificar-se de que realmente o produto atende as suas expectativas. Não que isto seja possível em todos os casos no mundo físico, mas no comércio eletrônico, sobretudo na Internet, inegavelmente, o consumidor não pode exercer todos os seus sentidos em relação ao produto ou serviço que pretende adquirir. Em outras palavras, o consumidor no comércio eletrônico, geralmente, apenas pode ver o produto por meio de uma foto digitalizada, que na maioria das vezes não representa claramente seu tamanho real, sua cor ou sua forma. Além disso, ele, dependendo do produto, não os pode tocar, cheirar ou provar. Essas sensações obviamente influenciam na compra e na conseqüente satisfação ou não do consumidor. Como visto, quando o consumidor não tiver a oportunidade do contato prévio com o produto ou serviço, logicamente, poderá exercer o direito de arrependimento. Consoante já expresso, entretanto, o exercício desse direito deve estar necessária e estritamente limitado pelo princípio da boa-fé objetiva. Assim, entende-se que nas hipóteses em que a conveniência e a oportunidade no consumo do produto ou serviço são as mesmas, isto é, quando a discricionariedade no consumo for igual, tanto no mundo físico quanto no mundo virtual, no caso de uma intervenção no produto que o inutilize ou diminua excessivamente o seu valor, entendemos que não há, em regra, de se falar em direito de arrependimento. Haverá casos, todavia, em que o consumidor, uma vez que possua interesse, poderá até mesmo se arrepender se assim desejar, mas, em contrapartida, deverá ele ressarcir o fornecedor pelos prejuízos causados.29 Apesar de esta solução ir também ao encontro do princípio da boa-fé objetiva e, consequentemente, do equilíbrio da relação de consumo, a aferição do cabimento ou não do exercício do direito de arrependimento do consumidor dependerá sempre da análise do caso concreto, podendo esse, inclusive, ser negado, quando houver desvalorização ou inutilização do produto decorrente de intervenção do consumidor ou mesmo pelo simples fato da natureza da atividade econômica desenvolvida ser incompatível com o exercício do direito 124

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de arrependimento do consumidor (compra e venda de ações da bolsa feita pela Internet, por exemplo). No comércio eletrônico, quando existir uma conduta ativa e livre do consumidor, ou seja, quando o fornecedor não utilizar técnicas de marketing agressivo, o direito de arrependimento poderá ser negado, quando não houver diferença na discricionariedade do consumo entre a relação no mundo virtual e a relação firmada no mundo físico, ou mesmo no caso de simples incompatibilidade do direito de arrependimento com a natureza do produto ou serviço negociado, ou, ainda, com a atividade econômica desenvolvida. Ao comprar uma garrafa de vinho pela Internet em um supermercado virtual, por exemplo, pela característica do produto, e pela natureza do negócio, o consumidor poderá exercer o direito de arrependimento no prazo de reflexão legalmente estipulado, desde que não tenha aberto o vinho, ou seja, não tenha intervindo no produto de modo a inutilizá-lo ou diminuir excessivamente o seu valor. Ao devolver uma garrafa não aberta, não haverá qualquer prejuízo que não seja albergado pelo risco da atividade econômica desenvolvida pelo empresário. Se o consumidor abrir a garrafa de vinho, contudo, ele não poderá se arrepender depois porque, ao interferir no produto, estará inutilizando-o, e por conseqüência, violando o princípio da boa-fé objetiva. Ocorrerá nesse caso um prejuízo indevido ao empresário (fornecedor), na media em que o vinho aberto não poderá ser negociado novamente pelo supermercado virtual. Desta feita, mesmo que diante de outros motivos plausíveis decida desistir do contrato, sendo seu arrependimento acatado em juízo, o consumidor deverá ser condenado, em contrapartida, a ressarcir os prejuízos causados ao fornecedor. Ora, o consumidor, ao comprar o mesmo produto no estabelecimento físico, ou seja, no supermercado, ordinariamente não o pode abrir, quanto mais o experimentar. Logo, ao adquirir pela Internet o mesmo produto, também não poderá experimentá-lo. Assim, caso o consumidor compre o vinho, abra-o e o experimente, ficará clara a violação ao princípio da boa-fé objetiva caso queira devolver o produto. A intervenção no produto e sua conseqüente devolução, por si só, já caracterizam violação ao princípio da boa-fé objetiva na relação contratual. Notadamente, a própria característica do produto e a natureza do negócio, no caso exposto da compra de uma garrafa de vinho no supermercado virtual, impõem que o produto não seja aberto caso se queria devolvê-lo. Dessa forma, o arrependimento do consumidor após abrir o produto representa um injusto prejuízo ao empresário fornecedor e, por conseqüência, uma violação ao princípio da boa-fé objetiva. Vale ressaltar que, se o consumidor compra não uma, mas uma caixa com doze garrafas de vinho, e decide desistir do contrato de consumo após abrir apenas uma garrafa, poderá arrepender-se do contrato, sem qualquer ônus, em relação às demais (onze garrafas), uma vez que não haverá qualquer prejuízo ao empresário não albergado pelo risco da atividade empresarial desenvolvida. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Se o consumidor compra um vinho em um website de uma loja especializada na venda de vinhos, no entanto, em que são oferecidas degustações aos clientes em sua sede física, o consumidor, mesmo o abrindo, poderá devolvê-lo, pois, nesse caso, a própria natureza do negócio desenvolvido permite o arrependimento. Ora, alguém que tem por atividade específica a venda de vinhos e oferece degustações, sabe que tanto no mundo físico como no mundo virtual se deparará com clientes insatisfeitos com o produto adquirido e terá que suportar a sua devolução. Nesse caso, sem dúvida, existirá um risco inerente à natureza da atividade econômica desenvolvida. Esse empresário, ao propor-se vender vinhos pela Internet, assumirá os riscos e estará sujeito ao direito de arrependimento, pois a natureza de sua atividade impõe que assim proceda. Nessa hipótese, caso ele se recuse a receber um vinho aberto comprado em seu website, estará ele, a seu turno, violando o princípio da boa-fé objetiva. Vale ressaltar que, logicamente, se o vinho estiver estragado, é claro que, independentemente da natureza do negócio desenvolvido, o consumidor poderá devolver o produto, mas nesse caso trata-se de devolução por vício no produto, ou seja, de rescisão do contrato por vício de fornecimento30 e não de direito de arrependimento31. Da mesma forma, se o consumidor comprar um sofá em um website de uma loja de móveis pela Internet, caso não goste da dureza da espuma, logicamente poderá devolver o sofá. Vale atentar ao fato de que, nesse caso, diferentemente da hipótese da garrafa de vinho, a intervenção não causa nenhum prejuízo injustificável, pois a intervenção de sentar no sofá não inutiliza o produto, ou sequer diminuiu excessivamente o seu valor. Ora, ao se comprar um sofá, é manifesta a noção de que a maioria dos consumidores o experimenta. Logo, se o consumidor, privado de tal sensação, adquire um sofá pela Internet e, por motivos pessoais não goste da dureza da espuma do estofado, poderá arrepender-se do contrato, mesmo intervindo no produto, ou seja, sentando nele, ou até abrindo-o de sua caixa ou proteção. O empresário que se propõe a vender móveis pela Internet assumirá o justo risco de encontrar consumidores que não gostem deles mesmos após a entrega, devendo suportar os prejuízos de sua devolução (embalar novamente o produto, perda da venda para outro consumidor, despesas com entrega etc). Os riscos, nesse caso, serão novamente inerentes à natureza da atividade empresarial desenvolvida. Já diante de um contrato de corretagem de valores mobiliários, por exemplo, mormente da compra e venda de ações negociadas na bolsa de valores feita pela Internet por intermédio de empresas de corretagem virtuais, o exercício do direito de arrependimento do consumidor, no caso de prejuízo, claramente, violará o princípio da boa-fé objetiva. Ora, se o consumidor obtivesse lucro, logicamente, não teria razão alguma para desistir do contrato. Percebe-se nesta 126

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hipótese, de forma manifesta, que a natureza da atividade econômica desenvolvida, apesar de ser realizada a distância, é incompatível com o direito de arrependimento do consumidor. Não cansa lembrar, todavia, que haverá casos em que a desistência do consumidor, ao contrário do exemplo anterior, já faz parte do negócio, independentemente de qualquer violação à discricionariedade no consumo. O arrependimento, nestas hipóteses, é um risco inerente à natureza da atividade econômica desenvolvida pelo fornecedor. É o caso da venda de bilhetes de passagens aéreas feita pela Internet. O exercício do direito de arrependimento do contrato, em suma, poderá ser exercido pelo consumidor no comércio eletrônico, em regra, toda vez que sua discricionariedade no ato de consumir for, de alguma forma, maculada, respeitado o limite imposto pelo princípio da boa-fé objetiva e nos casos em que o arrependimento for da própria natureza no negócio; isto é, o consumidor poderá arrepender-se nos casos em que a sua desistência já é permitida, nos casos de utilização de técnicas de marketing agressivo, ou ainda, quando não tiver a oportunidade prévia de ter contato com o produto ou serviço, desde que não ocorra violação ao princípio da boa-fé objetiva. Ocorrer á violação a esse princípio quando o exercício do direito de arrependimento ocasionar injustos prejuízos ao empresário. Tais prejuízos, por sua vez, serão injustos e, por conseqüente, estarão fora do risco da atividade econômica, quando o exercício do direito de arrependimento importar na inutilização, ou mesmo na diminuição excessiva do valor do produto. E, finalmente, ao se avaliar tais prejuízos, hão de ser ainda observadas a natureza do negócio, as características do produto ou serviço oferecido e a ocorrência, ou não, de intervenção do consumidor no produto. 3.2.2 Limite material: a relação de consumo A própria relação de consumo será um limite ao exercício do direito de arrependimento do consumidor, pois, logicamente, não havendo dita relação, não se aplica o CDC e, conseqüentemente, há de se falar na desistência do consumidor, no prazo de 7 dias, dos contratos que tenha firmado fora do estabelecimento comercial do fornecedor. Para demarcar as balizas da relação de consumo, é necessário analisar as definições dos sujeitos que a compõem, ou seja, o significado jurídico dos termos consumidor e fornecedor, bem como o seu objeto. Os sujeitos da relação de consumo serão, assim como o seu objeto, obviamente, os mesmos relacionados ao exercício do direito de arrependimento. O próprio CDC se encarrega de estabelecer o conceito de consumidor em seu art. 2°: Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

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Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Sendo assim, o sujeito do direito de arrependimento será uma pessoa natural ou jurídica que, como destinatário final, contrata a prestação de um serviço ou adquire determinado produto fora do estabelecimento comercial. O conceito de consumidor, todavia, não se restringe ao que reza o caput do referido art. 2° do Código. Ainda haverá os consumidores por equiparação nos termos do parágrafo único do art. 2°, bem como nos casos dos arts. 17 e 29, todos do CDC32. Como o exercício do direito de arrependimento, entretanto, depende da existência de um contrato firmado entre consumidor e fornecedor, tais consumidores ficam de fora do tema, uma vez que não dependem de qualquer contrato para serem considerados como tal. Outro ponto da definição importante para o comércio eletrônico é o fato de ser considerado consumidor somente aquela pessoa que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, isto é, para seu uso pessoal ou de sua família, não comercializando o produto ou serviço, ou mesmo não os utilizando como insumos para a produção ou prestação de outros produtos ou serviços, respectivamente. 33 Sendo assim, deve-se ter em mente a idéia de que os negócios jurídicos por meio eletrônico que envolverem em ambos os lados apenas empresários — comércio eletrônico B2B (business-to-business) — bem como apenas consumidores — comércio eletrônico C2C (consumer-to-consumer) — não são relações de consumo, ficando excluída, em tais casos, qualquer possibilidade de arrependimento, fundada no art. 49 do CDC. Percebe-se, todavia, que, assim como ocorre no comércio tradicional, no comércio eletrônico, tanto a identificação do consumidor e da relação de consumo quanto a possibilidade do exercício do direito de arrependimento pelo consumidor dependerão sempre da análise do caso concreto. Logo, haverá casos em que, apesar do negócio assumir à primeira vista características de comércio eletrônico B2B ou C2C, na realidade o que ocorrerá no caso concreto será um comércio eletrônico B2C (business-toconsumer), ou seja, uma típica relação de consumo, com plena aplicabilidade do direito de arrependimento. Como exemplo, destacamos o caso de pessoas naturais que, de forma habitual e profissionalmente, vendem seus produtos por meio dos chamados sites de leilão virtual.34 Em contrapartida, estariam excluídos do alcance do direito de arrependimento os contratos firmados em leilões virtuais35, onde figurarem apenas consumidores e outros negócios entre particulares, como a venda de veículos por meio de anúncios feitos em classificados on-line. Da mesma maneira que fez com o conceito de consumidor, o CDC tam128

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bém trouxe expressamente o conceito de fornecedor em seu art. 3°, abaixo: Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Insta notar que o CDC buscou ser o mais abrangente possível, considerando como fornecedores não só quaisquer pessoas naturais e jurídicas, mas até mesmo entes despersonalizados, desde que, em suma, desenvolvam atividade econômica regular ou eventual que vise, direta ou indiretamente, à produção ou à circulação de produtos ou prestação de serviços. O conceito de fornecedor sujeito ao direito de arrependimento, todavia, dependerá ainda de outros dois fatores também tratados pelo artigo em questão, a saber: o produto ou o serviço. Estes, a seu passo, serão os objetos do contrato alvo do arrependimento, isto é, do qual o consumidor, como visto, poderá eventualmente desistir, desde que, em regra, tenha contratado fora do estabelecimento comercial do fornecedor e exerça tal prerrogativa dentro do prazo de reflexão. O CDC é claro ao estabelecer o direito de arrependimento do consumidor, tanto em relação aos produtos que adquire quanto aos serviços que contrata, quando firma relação de consumo à distância. Nos termos do art. 49, o consumidor poderá desistir do contrato “sempre que a contratação de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial”. (destaque nosso). O arrependimento do consumidor, todavia, não se dará sobre qualquer serviço ou produto, pois, dependendo do caso concreto, este não será admissível ou será inviabilizado por ensejar uma responsabilidade do próprio consumidor. Em outros termos, seja por haver clara incompatibilidade entre o referido direito e a própria natureza do produto ou serviço, ou mesmo com a natureza da atividade econômica desenvolvida, seja por haver clara intervenção do consumidor no produto que traz prejuízo e, por conseqüência, traz injustos prejuízos ao fornecedor, violando o princípio da boa-fé objetiva, haverá hipóteses em que o exercício do direito de arrependimento não será possível, ou ainda, mesmo que concedido, será inviável por ensejar uma responsabilização posterior do consumidor pelos danos causados. O CDC traz as definições de produto e serviço nos parágrafos 1° e 2° do seu art. 3°, respectivamente. O primeiro objeto mencionado pelo artigo 49, isto é, o produto, nos termos do parágrafo primeiro é “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. O produto nos termos do Código será qualquer bem, isto é, qualquer coisa suscetível de apreciação econômica. Mesmo os recursos encontrados em abundância na natureza poderão vir a ser bens. A água, por exemplo, hodierREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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namente, é engarrafada e vendida nos mais variados estabelecimentos empresariais. O próprio ar, uma vez associado a um serviço, também pode ser tido como um bem, como no caso da venda e carga de cilindros de ar comprimido para mergulho autônomo. José Geraldo Brito Filomeno assinala que produto é “qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final”.36 Além disso, percebe-se ainda que os produtos, segundo o referido parágrafo, poderão ser bens materiais ou imateriais. Logo, com efeito, no caso do comércio eletrônico, resta clara a possibilidade do exercício de direito de arrependimento do consumidor em relação aos negócios à distância que envolvam a compra de softwares37, ou bens imateriais, outros, como músicas, fotos, livros, filmes, artigos, revistas, jornais, desde que em formato eletrônico. O Código, ainda, no artigo 26, inc I e II, cuidou da classificação de produtos em duráveis e não duráveis. Dentro desta outra classificação, é importante salientar que a intervenção do consumidor, dependendo do tipo de produto, ou seja, ser durável ou não, poderá ocasionar violação ao limite social do direito de arrependimento, isto é, ao princípio da boa-fé objetiva. No caso de bens duráveis, em regra, mesmo ocorrendo qualquer intervenção do consumidor, não haverá qualquer violação do princípio da boa-fé objetiva, uma vez que ocorra a desistência do contrato pelo consumidor. Nestas hipóteses, a intervenção não produzirá nenhum prejuízo que já não esteja albergado pelo risco da atividade econômica. Produtos não duráveis, a seu passo, por se extinguirem com o seu uso, de ordinário, não poderão ser objeto de intervenção do consumidor que deseje se arrepender. São os casos de produtos como alimentos, bebidas, remédios, produtos de higiene pessoal, dentre outros. Em tais hipóteses, o consumidor que pretende desistir do contrato de consumo firmado a distância deverá zelar pela integridade do produto adquirido, cuidando para que este não seja inutilizado ou não seja alvo de qualquer tipo de desvalorização, sob pena violar o princípio da boa-fé objetiva e, por conseqüência, ver negado em juízo o seu direito de arrependimento, ou mesmo ter que arcar com os prejuízos advindos do seu ato, caso este, mesmo assim, seja concedido. Merece destaque o fato de o Código, ao tratar da definição de produto, ainda faz menção aos bens móveis e imóveis. Sendo assim, depara-se com o seguinte questionamento: será possível que o consumidor exerça o direito de arrependimento no caso de contrato de consumo no comércio eletrônico cujo objeto seja um bem imóvel? Apesar da existência de opiniões contrárias38, mais acertada é a posição defendida pelo doutrinador Rizzatto Nunes, no sentido de que o direito de arrependimento, dependendo do caso concreto, será plenamente aplicável quando 130

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a relação de consumo tiver como objeto bem imóvel.39 A lei veda, por exigir a forma solene (escritura pública), que sejam realizados contratos eletrônicos de compra e venda de imóveis. Contudo, a venda de imóveis não se restringe ao contrato de compra e venda que demanda escritura pública. Existem outros contratos, envolvendo bem imóvel, que poderão ser firmados entre consumidor e fornecedor fora do estabelecimento comercial, isto é, no domicílio daquele, pelo telefone ou, inclusive, pela Internet. Nada impede, por exemplo, que o consumidor firme um contrato eletrônico pela Internet cujo objeto seja o pagamento de uma entrada para se adquirir determinado terreno.40 Sendo assim, na relação de consumo no comércio eletrônico que envolva bem imóvel, o direito de arrependimento, dependendo do caso concreto, poderá ser plenamente cabível. No que tange ao segundo objeto mencionado pelo artigo 49, isto é, o contrato de consumo que envolva a prestação de serviços, o exercício do direito de arrependimento, apesar de previsto e possível, envolve uma série de peculiaridades quando este serviço é prestado no comércio eletrônico. O ponto de fundamental importância em relação ao direito de arrependimento dos contratos cujo objeto seja um serviço diz respeito ao momento da desistência por parte do consumidor. Na prestação de serviços, sobretudo os de execução imediata, o arrependimento do consumidor deve ocorrer, em regra, antes da prestação do serviço, sob pena de o consumidor, ao fazê-lo após a sua conclusão, violar o princípio da boa-fé objetiva e tornar seu arrependimento inviável por ter de ressarcir os possíveis prejuízos gerados ao fornecedor com a sua conduta. Ora, quando o fornecedor presta um serviço ao consumidor, uma vez que este seja concluído, não há como mais se voltar atrás, não há mais como se desfazer o móvel pronto e acabado, como tirar a tinta da parede pintada, como desconsertar o aparelho de televisão consertado, em suma, como retornar o serviço já prestado ao status anterior a sua prestação. Sendo assim, não que o retorno ao status anterior seja obrigatório, uma vez que a o artigo 49, simplesmente, diz que o consumidor poderá desistir do contrato. Qualquer arrependimento posterior a prestação do serviço, no entanto, em regra, produzirá injusto prejuízo ao fornecedor, prejuízo este não alcançado pelo risco da atividade econômica por ele desenvolvida. Logo, mesmo que se arrependa, o consumidor terá que arcar com os prejuízos causados ao fornecedor, o que, em tese, poderá até inviabilizar o próprio arrependimento.41 Por outro lado, extrai-se que, mesmo no caso de serviços, haverá hipóteses em que o arrependimento do consumidor se justificará. Estas hipóteses dizem respeito aos contratos de prestação de serviços continuados. Em tais episódios, será plenamente justificável que o consumidor, querendo romper com o vínculo contratual, tencione arrepender-se, dentro do prazo de reflexão. Poderá ele assim, após a prestação de um serviço continuado, por REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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não gostar deste, arrepender-se do contrato no prazo de 7 dias contados da primeira prestação de serviço. Seria o caso, por exemplo, de um consumidor que adquire um telefone celular com desconto pela Internet atrelado a um plano de tarifas que o condiciona a adquirir uma quantidade predeterminada de minutos de conversação mensalmente durante o período de um ano. Caso o consumidor ateste, por exemplo, que a cobertura oferecida pela operadora não satisfaz seus interesses, poderá desistir do serviço de telefonia contratado, no prazo de reflexão. Em contrapartida, o consumidor terá que devolver o telefone, ou pagar a diferença sobre o preço do produto sem o plano e habilitá-lo em outra operadora. Note-se que o arrependimento, na segunda hipótese, acontecerá apenas com relação ao serviço contratado e não, necessariamente, em relação ao produto adquirido. A definição de serviços feita pelo Código ainda abrange os serviços públicos, sendo plenamente possível o direito de arrependimento nesses casos, inclusive no comércio eletrônico. Desta forma, nada impede, por exemplo, que determinado bacharel em Direito, após realizar sua inscrição em determinado concurso público pela Internet, arrependa-se, nos termos do art. 49, no prazo de 7 dias e antes da realização do concurso (prestação do serviço), da inscrição efetuada, devendo o valor da taxa ser devolvido a ele pela instituição responsável pelo concurso. CONCLUSÃO Diante da breve investigação realizada, conclui-se que no comércio eletrônico, assim como no comércio tradicional, o direito de arrependimento pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor é plenamente aplicável. Constata-se, outrossim, que este direito existe para garantir a devida oportunidade e conveniência do consumidor, ou seja, para assegurar a discricionariedade no consumo, sendo certo que a falta de discricionariedade na contratação na relação de consumo resulta basicamente de dois fatores: do emprego de técnicas de marketing agressivo ou do desconhecimento prévio do consumidor do produto ou serviço. Percebe-se ainda que a interpretação das normas consumeristas — por buscar, à luz do espírito traçado pelas normas constitucionais e pelas normas do próprio CDC, a harmonia entre a relação de consumo e a atividade econômica, o equilíbrio entre fornecedor e consumidor — impõe limites ao exercício do direito de arrependimento, sobretudo, no comércio eletrônico. Tais limites estão presentes tanto na redação do próprio do art. 49 do CDC (limites intrínsecos), como no micro sistema de normas de defesa do consumidor traçadas pelo CDC (limites extrínsecos - exteriores à redação do artigo). Estes seriam os limites social e material, isto é, o princípio da boa-fé objetiva e a relação de consumo, respectivamente, enquanto aqueles seriam o limite espacial e limite temporal, ou seja, o critério objetivo do local da contratação e o prazo de reflexão de 7 dias. 132

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Por derradeiro, imperioso ressaltar que o aplicador do Direito deve buscar confrontar o caso concreto com os limites intrínsecos e extrínsecos aqui analisados para determinar o real alcance e as possibilidades de arrependimento do consumidor no comércio realizado por meio da grande rede mundial de computadores. A legislação possui orientações, vetores normativos que serão utilizados pelo intérprete no momento da aplicação, em virtude da dialética do Direito. REFERÊNCIAS ANDRADE, Ronaldo Alves de. Contrato eletrônico no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Barueri: Manole, 2004. CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. CARPENA. Heloísa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 3. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008. GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações de consumo. 4. ed. São Paulo: RT, 2004. MARTINS, Plínio Lacerda. O abuso nas relações de consumo e o princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2002. NUNES, Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. SANTOLIN, César Viterbo Matos. A eficácia probatória dos contratos por computador. São Paulo: Saraiva, 1995. 1

Art. 49 do CDC. “O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados”. 2 ANDRADE, Ronaldo Alves de. Contrato eletrônico no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Barueri: Manole, 2004, p. 107-116. 3 Art. 420 do Código Civil: Art. 420. Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento para qualquer das partes, as arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Neste caso, quem as deu REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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perdê-las-á em benefício da outra parte; e quem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em ambos os casos não haverá direito à indenização suplementar. (Destaque nosso). O Código Civil ainda menciona o termo arrependimento nos artigos 463, 725 e 1417. Nas palavras da autora, “a decisão irrefletida, não preparada, emocional do consumidor está ligada fatidicamente a uma série de perigos, vale lembrar os fenômenos atuais de superendividamento, insolvência, abusos contratuais, frustração das expectativas legítimas etc. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações de consumo. 4. ed. São Paulo : RT, 2004, p.717. Num contrato de compra de uma passagem aérea pela internet, o consumidor terá praticamente a mesma discricionariedade se efetuar a compra numa agência de viagens. Como bem assinala Nelson Nery, “quando o espírito do consumidor não está preparado para uma abordagem mais agressiva, derivada de práticas e técnicas de vendas mais incisivas, não terá discernimento suficiente para contratar ou deixar de contratar, dependendo do poder de convencimento empregado nessas práticas mais agressivas. Para essa situação é que o Código prevê o direito de arrependimento. Além da sujeição do consumidor a essas práticas comerciais agressivas, fica ele vulnerável também ao desconhecimento do produto ou serviço, quando a venda é feita por catálogo, por exemplo. Não tem oportunidade de examinar o produto ou serviço, verificando suas qualidades e defeitos etc”. (Destacamos). GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 494. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p.47. GRINOVER, op. cit. p. 495. NUNES, Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. Terminologia adotada por Cláudia Lima Marques. MARQUES, op.cit., p. 704. Como bem assinala Cláudia Lima Marques, não obstante estes tipos de contratos acontecerem dentro do estabelecimento comercial, eles são equiparados pela jurisprudência a relações de consumo ocorrentes fora do estabelecimento do fornecedor. MARQUES, op.cit., p. 716-717. Neste sentido vide ainda: Apelação Cível Nº 196115299, Nona Câmara Cível, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 10/09/1996 e Apelação Cível Nº 70001471523, Décima Sétima Câmera Civil, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Elaine Harzheim Macedo, julgado em 03/10/2000. Segundo Sérgio Campinho, o ponto empresarial “consiste no lugar, no espaço físico onde o empresário encontra-se situado e para o qual converge sua clientela”. CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 324. Waldo Fazzio Júnior traz o termo ponto de negócio como sinônimo de ponto empresarial, sendo, para o autor, não apenas o local onde se localiza a empresa, mas determinado imóvel acrescido de valor imaterial resultante da organização empresarial, resultado da existência do próprio estabelecimento empresarial nele situado. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 67 Apelação Cível Nº 196233506, Nona Câmara Cível, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 17/12/1996. Fábio Ulhoa Coelho, por exemplo, entende que “a compra de produtos ou serviços através da internete realiza-se ‘dentro’ do estabelecimento (virtual) do fornecedor. Por isso, o consumidor internetenáutico não tem direito de arrependimento, a menos que o empresário tenha utilizado em seu website alguma técnica agressiva de marketing, isto é, tenha-se valido de expediente que inibe a reflexão do consumidor sobre a necessidade e conveniência da compra”. COELHO, op. cit., p. 50. César Santolim, ao analisar o art. 49 em obra pioneira sobre contratos eletrônicos, também adota uma linha de pensamento contrária à aplicação do direito de arrependimento a tais contratos. SANTOLIN, César Viterbo Matos. A eficácia probatória dos contratos por computador. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 39. GRINOVER, op. cit., p. 492. Neste sentido é a lição de Nelson Nery, que, com propriedade, assinala: “Se o produto ou serviço for entregue ou prestado no dia da assinatura do contrato, a partir daí é que se conta o prazo para o exercimento do direito de arrependimento. Caso o contrato seja assinado num dia e o produto ou serviço entregue ou prestado em época posterior, o prazo de reflexão tem início a partir da efetiva entrega do produto ou prestação do serviço. Isso porque, na maioria das vezes, as compras por catálogo ou por telefone são realizadas sem que o consumidor esteja preparado para tanto, e, ainda, sem que tenha podido ter acesso físico ao produto. Quando recebe o produto encomendado, verifica que está aquém de suas expectativas, pois, se o tivesse visto e examinado, não o teria comprado. GRINOVER, op. cit., p. 493.

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17 Segundo Rizzatto Nunes, ”[...] como a oferta vincula o fornecedor e como o prazo de 7 dias do art. 49 é um mínimo legal, nada impede que ele seja ampliado pelo fornecedor. Se isso foi feito, passa a valer, então, como prazo de reflexão aquele garantido na oferta do vendedor”. NUNES, op. cit., p. 543. 18 Rizzatto Nunes arrola uma série de meios pelos quais o consumidor poderá manifestar a sua desistência ao fornecedor, dentre eles: telefone, Internet, correspondência entregue pelos correios ou pessoalmente no domicílio do fornecedor, preposto ou representante, telegrama e notificação extrajudicial via Cartório de Títulos e Documentos. Ibid., p. 544. 19 Neste sentido, opina a professora Cláudia Lima Marques. MARQUES, op.cit., p. 713. 20 Conforme assinala Rizzatto Nunes, “[...] a norma não exige qualquer justificativa por parte do consumidor: basta a manifestação objetiva da desistência, pura e simplesmente. No íntimo, o consumidor terá suas razões para desistir, mas elas não contam e não precisam ser anunciadas. Ele pode não ter simplesmente gostado da cor do tapete adquirido pelo telefone na oferta feita pela TV, ou foi o seu tamanho que ele verificou ser impróprio. O consumidor pode apenas não querer gastar o que iria custar o bem. Ou se arrepender mesmo. O fato é que nada disso importa. Basta manifestar objetivamente a desistência”. NUNES, op. cit., p. 543. 21 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: [...] III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; (destaque nosso). 22 Segundo Rizzatto Nunes, “A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Neste sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no art. 1.561, caput, quando trata dos efeitos do casamento putativo, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, no art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido, no art. 113, que trata da intenção e do comportamento efetivo das partes na conclusão do negócio jurídico etc”. NUNES, op. cit., p.117-118. 23 MARTINS, Plínio Lacerda. O abuso nas relações de consumo e o princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 75. 24 CARPENA. Heloísa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.85. 25 Cláudia Lima Marques, boa-fé objetiva significa “[...] uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.” Esclarece ainda a autora que a boa-fé objetiva não se contrapõe à má-fé. “[...] a boa-fé objetiva é um standard, um parâmetro objetivo, genérico, que não está a depender da má-fé subjetiva do fornecedor A ou B, mas de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai de família que agiria de maneira normal e razoável naquela situação analisada” MARQUES, op.cit., p. 181. 26 ANDRADE, op.cit., p.107. 27 Ronaldo Alves de Andrade salienta que “a boa-fé, em realidade, constitui conceito juridicamente indeterminado e competirá ao julgador, no caso concreto, colmatar esse tipo aberto. Para efetuar uma perfeita colmatagem, o julgador deverá analisar os aspectos exteriores do ato, como as práticas comerciais usadas para celebrar um contrato de compra e venda, a forma de publicidade e o comportamento anterior à realização do contrato — relação pré-contratual —, pois dificilmente poderá apreciar os aspectos subjetivos de determinado ato ou negócio jurídico”. Ibid., p.105. 28 Esta interpretação fundamentada na intervenção do consumidor no produto e na natureza do negócio também poderá ser utilizada como base para aferir a violação ao principio da boa-fé objetiva nos demais casos de arrependimento do consumidor. 29 Neste sentido é a solução apontada por Cláudia Lima Marques, ao tratar da vendas e porta em porta,

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para os casos em que existe dano ou desvalorização do produto. Segundo a autora, se o consumidor pretende exercer o direito de arrependimento, deve “[...] cuidar para que o bem não pereça e não sofra qualquer tipo de desvalorização, devendo evitar usá-lo ou danificá-lo (abrir o pacote, experimentar o shampoo, manusear e sujar a enciclopédia etc.). Se o fizer, [...] poderá até desistir do vínculo obrigacional, liberando-se das obrigações assumidas, (por ex.: pagamento da segunda prestação, recebimento mensal dos fascículos da enciclopédia etc.), mas como não pode mais devolver o produto nas condições que recebeu (volta ao status quo), terá que ressarcir o fornecedor pela perda do produto ou pela desvalorização que o uso causou, tudo com base no princípio do enriquecimento ilícito”. MARQUES, op. cit., p. 711. 30 Artigos 18, § 1°, II, 19 e 20 do Código de Defesa do Consumidor. 31 Artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor. 32 Parágrafo único do art. 2°, art. 17 e art. 29 do CDC: Art. 2° [...]. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento. Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. 33 José Geraldo Brito Filomeno salienta que “[...] o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial”. GRINOVER, op. cit., p.26. 34 www.mercadolivre.com.br; www.arremate.com; dentre outros. 35 Salvo quando ficar caracterizado que uma das partes do negócio atua como empresário. 36 GRINOVER, op. cit., p. 44. 37 A proteção aos softwares é disciplinada pela lei nº 9.609, de 19.02.98 (lei dos softwares) que, nos seus termos, “dispõe sobre a proteção de propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências”. 38 GRINOVER, op. cit., p. 495. 39 Segundo Rizzato Nunes, “tem-se entendido, de maneira equivocada, que o art. 49 não tem aplicação na aquisição de imóvel, sob o argumento de que a compra e venda de imóvel é celebrada, de regra, no recinto do Cartório de Notas, na presença do oficial. Acontece que, em primeiro lugar, não existe nenhum impedimento legal para que mesmo um imóvel seja vendido no televendas da TV e adquirido por telefone – sendo que a escritura será feita a posteriori – [...]. O erro de quem pensa em excluir o imóvel está atrelado à idéia da escritura. Claro que um dia ela será lavrada no tabelionato. Mas até lá é possível fazer compromisso de compra e venda, recibo de sinal e princípio de pagamento, reserva com entrada, e tudo se encaixa perfeitamente, como uma luva, no texto do art. 49, que fala expressamente na assinatura do contrato [...]”. NUNES, op. cit., p.545-546. 40 Ibid. p. 546. 41 Neste sentido, Cláudia Lima Marques, ao tratar da questão dos serviços nas vendas de porta em porta, assinala que “[...] o direito de arrependimento é independente da possibilidade física de volta ao status quo, o direito assegurado é para liberar o consumidor do vínculo contratual, sem ônus, devendo porém, restabelecer o seu parceiro contratual, o fornecedor, na situação que se encontrava antes da contratação. Neste sentido, seria possível ao consumidor exercer seu direito de arrependimento, mas teria que ressarcir o fornecedor pelo serviço já prestado. A pergunta que fica, portanto, é qual seria o interesse do consumidor em exercer este direito nos casos de contratação de serviços prestados a domicílio, daqueles de execução imediata. Se o consumidor não se obrigou a nada mais que ao pagamento do serviço, manter o vínculo contratual lhe será de maior interesse, porque facilita a reclamação do serviço eventualmente defeituoso ou incompleto”. MARQUES, op. cit., p. 715.

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E-COMMERCE AND THE RIGHT TO RETURN UNWANTED MERCHANDISE ABSTRACT Article 49 of the Brazilian Consumer Bill of Rights (CDC – Law 8.078/1990) establishes the right of consumers to return unwanted merchandise they previously purchased to suppliers within a period of 7 days for a full refund, in the case of distance contracts. This law is intended to ensure the convenience and opportunity of consumers at the moment of purchase, to compensate the lack of familiarity of consumers with the product or service purchased and to protect consumers against particularly aggressive marketing practices. In e-commerce dealings, however, the unrestricted exercise of this right can lead to significant losses for suppliers. But, far from ignoring the rights of consumers, suppliers often underscore them, though the actual scope and applicability of these rights remain to be clearly limited. If the right of consumers to return unwanted merchandise is exercised within the framework created by the principles that inform the legal system, these rights may eventually become a means of harmonizing e-commerce relations and, consequently, of encouraging the participation of citizens in the worldwide web of computers. Key-words: Right to return unwanted merchandise. E-Commerce. Consumer and Internet. Refund period. CDC Article 49. Distance contracts.

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AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DA BIOÉTICA E MULTICULTURALISMO Gabrielle Bezerra Sales** RESUMO O artigo medita sobre a afirmação histórica e cultural dos grupos e minorias vulneráveis no âmbito da saúde, comparando-a com a consolidação paralela dos movimentos, originariamente estadunidenses, da bioética e do multiculturalismo. Intenta relatar os casos paradigmáticos de violação das garantias e direitos fundamentais da pessoa humana para, a partir deles, apontar para um perfil reinventado de relação social na área da saúde, em que a autonomia e a dignidade passam a ser os referenciais, especialmente após a inserção da escola principialista. Confronta, por fim, a extensão e a validade do principialismo norte-americano com a complexa teia de seres humanos, refletindo acerca da impossibilidade de uma espécie de padronização, enaltecendo como conseqüência natural do amadurecimento do discurso bioético, a inclusão de todos, mediante a idéia de pluralismo e tolerância, para o reconhecimento da diversidade social. Palavras-chave: Bioética. Diversidade. Pluralismo. 1 INTRODUÇÃO O multiculturalismo é uma reação às supostas formas de integração monoculturais, denunciando a bipolarização das concepções modernas focadas nas tipologias de maioria/minoria, numa exaltação ao direito à expressão da diferença. Trata-se de movimento, tal qual a bioética, originário do final do século, que, partindo dos EUA, se estendeu para os demais países. Firma-se na explanação da singularidade como elemento identificatório essencial para estruturar as formas de tutela na construção de sociedades livres, solidárias e plurais. A bioética, paralelamente, é um discurso que se viabilizou em virtude dos apelos da sociedade em sua busca do pluralismo ético, estando sob o signo da tolerância ao diferente e do respeito à multiplicidade de raças, de crenças e de opiniões. *

Gabrielle Bezerra Sales é Advogada, Coordenadora Geral do Curso de Direito da Faculdade Christus, membro do Comitê de Ética na Pesquisa com seres humanos da Faculdade Christus, Mestre em Direito Constitucional pelo convênio das Universidades Federais do Ceará e de Santa Catarina (UFC- UFSC), atualmente em fase de defesa de doutorado em Direito Civil na Universidade de Augsburg na Alemanha e cursando créditos na qualidade de doutoranda em Bioética pelo convênio luso-brasileiro entre a Universidade do Porto e o CFM- Conselho Federal de Medicina.

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Afirmação histórica da bioética e multiculturalismo

Mainetti adverte que, frente à bioética, não se trata mais de uma discussão meramente acerca do direito individual e negativo à saúde, muito menos do direito à assistência sanitária, mas também e prioritariamente, a respeito de uma macrobioética, isto é, acerca de uma responsabilidade global em relação a toda e qualquer forma de ameaça à vida1. Efetivamente, a bioética surgiu na esteira dos questionamentos dos progressos tecnocientíficos, em que são colocados a descoberto os processos médicos, científicos e biológicos, anteriormente considerados naturais. Consiste na inaugural forma de procedimento que clama não apenas pelo conhecimento e sua divulgação responsável, mas pela justificativa moral dos fatos e circunstâncias envolvidas. Revela, portanto, que toda ação humana é, antes de tudo, uma ação baseada numa opção ética e, conseqüentemente, sempre pode ser traduzida numa justificativa moral. Percebe-se que atualmente foi colocada à prova a lógica dos mais importantes processos biológicos para o Homem: o nascer2 e o morrer3. A crise desvelada é de caráter tanto público quanto privado, no sentido de que esses processos não podem mais ser relegados à natureza ou às leis ditadas por ela. Repercutem, então, na forma como o homem costumeiramente forjou seu entendimento sobre a vida, bem como sobre as normas éticas, morais e jurídicas que o ajudam a delinear esse perfil. Face ao progresso tecnocientífico, a Humanidade se viu forçada a reavaliar seus pressupostos e categorias éticas. Diante das múltiplas possibilidades apresentadas atualmente pela biotecnologia, até mesmo a mera omissão já se caracteriza como um ato eticamente responsável e de profunda relevância. Assim, é que no processo de surgimento da bioética, alguns fatores formam o mosaico do pano de fundo que foi decisivo para o cenário dos EUA dos anos 60 e 70. Inicialmente, a profusão de denúncias relacionadas às pesquisas científicas com seres humanos. E naquele momento, ressurgiu a profunda indignação coletiva existente na época da Segunda Guerra quando foram reveladas as atrocidades dos campos de concentração sob orientação dos regimes nacionais-socialistas, ao tempo em que advém o movimento do multiculturalismo. 2 AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DA BIOÉTICA Rothman sugere que os julgamentos dos cientistas e médicos do regime nazista eram considerados pela comunidade científica mundial, até meandros da década de 70, como um acontecimento distante, de caráter perverso, que havia recebido pouca cobertura da imprensa e que teria tido uma mínima e incipiente repercussão no âmbito da ciência.4( Rothman D, 1999) O Código de Nüremberg, lembra ainda Rothman, era raramente citado e os cientistas, até os anos 70, o consideravam irrelevante para o seu trabalho. De fato, os cientistas consideravam improvável que tais experimentos fossem REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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obra de algum médico e restringiam a responsabilidade daquelas crueldades a soldados nazistas e a oficiais que, em seu explícito sadismo, nada se pareciam com o perfil de um médico ou um pesquisador5. Outros aspectos imprescindíveis ao surgimento da bioética foram os movimentos contra o universalismo, a gradual abertura e a democratização do saber, especialmente nas áreas da saúde, deixando a medicina de ser uma profissão fechada em guetos de radical autoritarismo e passando a ter que dialogar com profissionais de outras áreas, numa perspectiva de atravessamento dos saberes. Igualmente determinante foi a participação da mídia nesse processo, fortalecendo-se a ponto de ser atualmente um dos mais consistentes meios de formação do senso comum. Para grande maioria das pessoas, atualmente, a mídia ocupa o status que outrora foi ocupado pelo Estado e pela Religião. Nesse sentido, Jonsen aponta como de decisiva relevância, dentre outros dois acontecimentos, a publicação em 1962, na revista Life, do artigo da jornalista Shana Alexander sobre o Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle, ou melhor, Comitê de Seattle, como ficou usualmente conhecido6. Segundo Jonsen, esse comitê tinha como objetivo primordial a decisão das prioridades na alocação de recursos na área da saúde. E como havia, naquela cidade, uma demanda superior de pacientes renais crônicos para a disponibilidade de máquinas no recém-inaugurado programa de hemodiálise, os médicos optaram por incumbir a um pequeno grupo de leigos a tarefa de eleger os critérios de seleção daqueles que poderiam ser atendidos7. Jonsen afirma ainda que, inusitadamente, ocorreu a transferência de uma área de decisão que outrora era restrita aos médicos para a comunidade, ou seja, para o domínio público8. E, com isto, houve uma irrefutável ruptura no saber e na ética médica com a conseqüente afirmação dos direitos civis das minorias, notadamente dos vulneráveis. 3 CASOS PARADIGMÁTICOS Em 1966 ocorreu nas palavras de Jonsen, outro fundamental acontecimento para a história da bioética9. Trata-se da divulgação do artigo de Henry Beecher sobre os experimentos em seres humanos realizados com recursos provenientes de instituições governamentais e da indústria farmacêutica em que os indivíduos eram meramente desconsiderados como cidadãos10. Da compilação dos relatos extraídos dos jornais, Beecher publicou 22 casos que envolviam indivíduos destituídos de toda e qualquer possibilidade de exercer alguma forma de autonomia ou, até mesmo, de resistência, frente à imposição da pesquisa e, muito menos à autoridade investida pelo pesquisador. Eram relatos que envolviam: crianças portadoras de retardos mentais, internos em hospitais de caridade, idosos abandonados em asilos, pacientes psiquiátricos em geral, recém-nascidos e presidiários11. 140

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Além da incapacidade, da vulnerabilidade e da falta de autonomia daqueles que estavam submetidos aos experimentos, o que também os caracterizava era a completa desinformação acerca dos procedimentos, das drogas e substâncias que lhes eram inoculados, bem como sobre as possíveis e cruéis conseqüências decorrentes. Beecher concluiu, desta forma, que dentre 100 pesquisas envolvendo seres humanos publicadas no ano de 1964 num jornal de grande notoriedade científica, um quarto delas ou haviam sido realizadas em condições desumanas que contrariavam todos os princípios morais e éticos, ou então foram detectados problemas com os protocolos12. O número de casos arrolados por ele13 teve um efeito considerável na comunidade científica estadunidense e também na sociedade em geral, pois dos 50 artigos compilados, somente dois apresentavam, atrelados aos seus respectivos protocolos, os termos de consentimento dos participantes dos experimentos. Tal constatação o levou a propor o consentimento informado do paciente e o compromisso de agir responsavelmente por parte do pesquisador, dali em diante, como parte obrigatória do protocolo de pesquisa. Outro caso igualmente eloqüente, ocorrido nos EUA, em termos de abuso em experimentos com seres humanos, ficou conhecido como caso Tugeskee14. Consistiu numa pesquisa conduzida pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos(U.S. Public Health Service – PHS) para acompanhar o ciclo natural da evolução da sífilis em sujeitos infectados. Em Julho de 1972 o The New York Times revelou ao mundo que a pesquisa realizada no Alabama com um contingente de 600 pessoas negras, na maioria analfabetas, duraria originalmente apenas um ano, mas era regularmente reavaliado por oficiais do Serviço Público de Saúde (Public Health Service) que entenderam o seu valor científico e a necessidade de seu prosseguimento por longos 40 anos. Ocorre que, no intuito de avaliar as condições e o desenvolvimento da enfermidade, de 1930 ao início de 1970, 400 pessoas negras, com diagnóstico de sífilis, foram largadas sem o devido tratamento, tendo sido utilizado apenas o placebo. Os pesquisadores, todavia, afirmaram que se tratava de medida necessária, pois após a descoberta e a difusão dos antibióticos, não era mais possível acompanhar os efeitos da sífilis, em longo prazo. Aos pacientes, todavia, no decurso da pesquisa, não foi nada informado sobre o experimento e nem quanto à possibilidade de um tratamento alternativo. No entanto, a penicilina15 que é o principal medicamento para sífilis, já havia sido descoberta e já era comumente aceita e recomendada a sua utilização nesses casos. O fato é que o caso Tugeskee tornou-se notório, além da aberrante forma de recrutamento de pacientes, também devido à relação existente entre ele e REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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as formas de discriminação racial. Os pesquisadores haviam prometido, por exemplo, além de outras coisas, internamento em hospitais, tratamento para as doenças, meios de deslocamento para os pacientes e lanches grátis. Jonsen esclarece que o caso só veio a público, através da reportagem do New York Times, após várias tentativas por parte de Peter Buxtun (funcionário do PHS- Public Health Service), de esclarecimento aos órgãos do governo americano, das impossibilidades éticas, morais e científicas e de seu injustificado prosseguimento16. The study had been perpetrated by the government through officials of the Public Health Service, whose sworn duty it was to protect the health of Americans, not to exploit them, even for science’s sake. The revelations seemed to bring the horrors of the Nazi medical experiments, which many had judged impossible in the United States, into our benign scientific and medical world. The ethics of research, which had been under quiet scrutiny for a decade, now broke into public view17.

Em sua historiografia da Bioética, Jonsen aponta, porém, como o terceiro evento relevante, os efeitos na sociedade após a divulgação na mídia de um transplante de coração de uma pessoa quase morta em um doente cardíaco terminal, realizado em 1967, por Christian Barnard, um cirurgião cardíaco da África do Sul. O fato é que se tratava de um paciente que estava “quase” morto, então houve nítida mobilização social no sentido de forçar a comunidade científica a estabelecer critérios que indicassem e, portanto, definissem o instante preciso da morte. Tal interrogação, “who shall live? Who shall die?”, se tornou desde então, uma questão tanto plena quanto perene, na bioética. Em cinco de agosto de 1968 um comitê ad hoc formado por médicos e leigos da Universidade Harvard anunciou, através de artigo publicado no Journal of the American Medical Association, o estado de coma irreversível como o critério para a definição de morte encefálica e, com isto, a liberação para o transplante dos órgãos não-afetados18. Ramsey acusou, no entanto, de utilitarista a decisão do comitê e afirmou que se tratava de uma tentativa de ter mais órgãos e materiais humanos disponíveis para as cirurgias de transplante. E atribuiu a decisão de definir morte pelo critério cerebral como algo resultante do fato de que dois dos membros do comitê haviam sido transplantados19. Então, ele conclamou a revisão desse critério de morte encefálica, alegando que poderia ocorrer uma falta de devido cuidado com pacientes que, recorrendo às medidas de ressurreição, fossem simplesmente deixados de lado; e também que esse conceito de morte, considerado por ele obsoleto, causava controvérsias na obtenção de órgãos para transplante20. 142

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O fato é que, muito embora não tenha sido aceito de forma unânime, o critério estabelecido pela Escola Médica da Universidade Harvard, passou a ser utilizado, no cenário internacional, como modelo oficial de morte clínica. Porém, a despeito do desenvolvimento dos postulados que embasavam o conceito de morte, da legislação e da divulgação sobre o assunto, as bases científicas arroladas pelos membros do comitê da Harvard não satisfizeram muito a comunidade científica e a sociedade. Principalmente no que tange à distinção entre inconsciência permanente, normalmente causada por problemas cerebrais, e o conceito de morte encefálica. Havia uma substancial perplexidade, portanto, em torno da forma de definição da morte21, levando a formulação da pergunta em termos filosóficos, ou seja: quais são as funções humanas necessárias para uma definição da vida, e como se reconhece a sua presença ou a sua ausência? O surgimento desse tipo de argumento no meio de discussões de caráter científico, segundo Morison, consistiu num dos momentos mais luminosos do início da bioética22. Jonas foi um dos pioneiros, dentre os filósofos, a se ocupar da indagação e, para tanto, objetou que: We must remember, that what the Harvard group offered was not a definition of irreversible coma as a rationale for breaking off sustaining action, but a definition of death by the criterion of irreversible coma as a rationale for transposing the patient’s body to the class of dead things, regardless of whether sustaining action is kept up or broken off […] (this was) motivated not by the exclusive interests of the patient but with extraneous interests in mind…(and thus) they serve the ruling pragmatism of our time which will let no ancient fear and trembling interfere with the relentless expanding of the realm of sheer thing hood and unrestricted utility23.

Birnbacher, objetando as possíveis questões acerca do critério de morte encefálica, afirma que para uma definição de morte, é necessária a pressuposição de um critério. E entende que: „In der Tat richten sich die häufigsten geäußerten Bedenken gegen das Hirntodkriterium nicht gegen die wissenschaftliche Validität des Hirntods als Kriterium, sondern gegen die von diesem vorausgesetzte Todesdefinition: Was immer dieses Kriterium anzeigt, es ist nicht der Tod des Menschen.24“ Adverte que, segundo a sua definição de morte, se obtém que a morte pode ser entendida em duas perspectivas distintas, isto é, uma perspectiva em que predomina o aspecto corporal e outra em que o indivíduo é concebido como pessoa. Porém, compreende que corpo e alma formam uma unidade individual que deve ser subentendida como a totalidade que perfaz o conceito de Homem25. Alude, todavia, a posição do cérebro como órgão que, efetivamente, realiza a integração das funções corporais do indivíduo. E ensina que, no caso REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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de lesão ou mau funcionamento cerebral, o corpo não poderá mais ser entendido como uma totalidade26. Observa que a morte encefálica entendida como um critério não poderá ser embasada em postulados morais ou éticos, e que a implicação principal desse critério consiste em seu uso para a aceitação e regulamentação dos transplantes de órgãos e para a definição do instante de início da vida humana, gerando também inevitáveis conseqüências sobre a forma de entendimento da condição humana dos fetos anencefálicos. 4 GENEALOGIA DO PRINCIPIALISMO NORTE AMERICANO Foi exatamente nesse clima de extremos questionamentos e consternação pública que, em 1974, o Governo e o Congresso norte-americanos decidiram instituir um comitê nacional com o objetivo27 de definir princípios éticos norteadores para as pesquisas envolvendo seres humanos. E assim formou-se a Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental. O que caracterizou a comissão foi a nova forma de discutir problemas éticos. Para a uniformização de um discurso, mediante a determinação de princípios que servissem de critérios para todos os tipos de pesquisas realizadas em humanos, partiram de um caos ético, mediante análise de dogmas, convicções religiosas e regras jurídicas e morais, visando meios de solucionar os conflitos. Outro aspecto importante foi a transdisciplinaridade observada na seleção dos membros dessa comissão. Dentre os onze membros, havia: médicos, teólogos, advogados, eticistas, dentre outros. Esse critério transdisciplinar marcou definitivamente as decisões no âmbito da Bioética. Durante o período de funcionamento, ou seja, de 1974 a 1978, foram editados vários relatórios sobre os diversos entendimentos que haviam sido obtidos pela Comissão Nacional. A partir de 1976 foram editados relatórios que ressaltavam a necessária compatibilidade entre a vulnerabilidade de alguns grupos e a tutela que deveria ser proporcionalmente assegurada: Research Involving Prisoners(1976); Research Involving Children(1977); Psychosurgery(1977);Disclosure of Research Information(1977); Research Involving Those Institutionalized as Mentally Infirm(1978); Institutional Review Boards(1978); Delivery of Health Services(1978); and Special Study(1978). O documento mais importante produzido por esse grupo de pessoas ainda estava por vir. De fato, na tentativa de encontrar os princípios adequados, em fevereiro de 1976, houve um intenso debate no centro de conferências Belmont House, isto é, Centro de Conferências do Smithsonian Institution em Elkridge, no Estado de Maryland.

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Participaram desse debate eticistas famosos como: Alasdair MacIntyre, Kurt Baier, James Childress, H. Tristam Engelhardt, LeRoy Walters, entre outros. Os principais temas tratados foram: princípios para a pesquisa médica, relação risco-benefício, consentimento informado etc. Somente no quadragésimo segundo encontro da comissão, no dia 10 de junho de 1978, o relatório Belmont foi aprovado. Esse curto documento, contudo, repercutiu de maneira decisiva na história e no desenvolvimento da bioética. Tornou-se a declaração principialista clássica, não somente para a experimentação em humanos, mas para a bioética em geral. Os três princípios que ficaram estabelecidos neste relatório foram: respeito pelas pessoas; beneficência e justiça. Inicialmente deve ser entendido que quanto ao respeito há uma conjunção de dois outros aspectos, ou seja, os indivíduos devem ser considerados e tratados como agentes autônomos e as demais pessoas, com autonomia diminuída, os chamados socialmente vulneráveis, devem ser protegidos de toda e qualquer forma de abuso ou violação. 5 PROBLEMATIZANDO O PRINCIPIALISMO Importa considerar ainda que a vontade, uma espécie de pré-requisito, tornou-se o aspecto principal ressaltado nesse princípio, tendo como pano de fundo a obrigatoriedade de informação suficientemente clara e precisa para a validez do consentimento na participação de qualquer pesquisa. Pessini adverte, entretanto, que o conceito de autonomia empregado pelos participantes da comissão não era o conceito kantiano, ou seja, o homem como autolegislador, mas um conceito de natureza empírica que se resume a considerar autonôma toda ação advinda de um consentimento legitimamente informado28. Adverte ainda que do princípio de respeito às pessoas deriva também dois outros procedimentos práticos: o mais importante, segundo ele, é a obrigatoriedade do consentimento informado; e o outro é a necessidade de se discutir a forma de tomada de decisão por substituição, ou seja, quando se trata de pessoa incapaz e portanto impossibilitada de praticar ações autônomas29. A Beneficência, por sua vez, é o princípio que mais se adéqua à deontologia médica do ocidente, remontando à história da ética médica, notadamente em relação ao juramento hipocrático. Consiste no compromisso do pesquisador de assegurar o maior bem-estar aliado aos menores riscos possíveis, aos seres humanos envolvidos, direta ou indiretamente, na pesquisa. De inspiração filosófica, o princípio da Justiça se baseia no conceito de equidade social formulado por Rawls. Consiste basicamente no reconhecimento de necessidades diferentes para interesses iguais e é considerado, portanto, a REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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maior novidade instituída pelos membros da Comissão Nacional30. Segundo Diniz e Guilhem, Os participantes do Relatório Belmont justificaram a eleição de três princípios éticos, dentre um universo de possibilidades, argumentando que a escolha baseava-se em uma estrutura profunda do pensamento moral. Para eles, os princípios éticos escolhidos pertenciam à história das tradições morais do ocidente, havendo uma relação de dependência mútua entre eles, fato que garantiria sua harmonia quando aplicados31.

Os anos 90, todavia, marcaram um novo acontecimento relevante na história da Bioética32. Para alguns autores, trata-se de um novo começo que se destacava principalmente pelo abandono de um paradigma liberal dominado pelo principialismo norte-americano e pelo advento de uma nova fase, apoiada num paradigma pós-liberal33. 6 MULTICULTURALISMO E BIOÉTICA O esgotamento do modelo principialista se deu basicamente devido à constatação das limitações dos modelos únicos e universais, que seriam supostamente aptos a solucionar todos os conflitos éticos, apesar da diversificação. Assim, tanto o idealismo dos primeiros anos quanto a idéia de universalidade dos princípios foram colocadas à prova diante da necessária integração das diferenças sociais, sexuais, econômicas, dentre outras, que separam os homens em diversos grupos. Houve, para isso, apenas o reconhecimento de que o indivíduo compreendido no ato de elaboração dos princípios, não possuía contrapartida no mundo real. Tratava-se de um indivíduo livre de qualquer tipo de opressão social, independente de orientação política, destituído de qualquer subordinação hierárquica. Um modelo humano, portanto, voltado totalmente ao individualismo e a conseqüente marginalização daqueles que não podiam ser enquadrados naquele protótipo universalista34. Nesse sentido, o indivíduo da ética principialista era uma idealização norte-americana que prefigurava uma situação também idealizada em que as desigualdades eram relevadas em nome de um modelo universal. Tratava-se de um imaginário indivíduo ascético, secularizado, limpo, culto, emocionalmente seguro, profissionalmente bem posicionado, branco35, do sexo masculino e aspirante à imortalidade etc. E em nome desse projeto ético único, as especificidades de cada grupo cultural foram submetidas a critérios absolutos, ou seja, a padrões fechados e inflexíveis de solução das controvérsias morais. 146

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Diniz e Guilhem ensinam que: Sob a ditadura da opressão, a vontade do oprimido é antes a expressão da moralidade dominante que uma escolha livre. E para se referir à liberdade ou mesmo à autonomia é preciso que a pessoa esteja livre de todas as formas de opressão social.Definitivamente é preciso uma certa dose de crítica à hegemonia da autonomia em contextos de desigualdade36.

Runtenberg e Ach apontam motivos para o abandono do modelo liberal em favor do reconhecimento de uma nova fase na afirmação histórica da Bioética. Inicialmente, declaram a incapacidade do modelo liberal para consideração adequada da dimensão afetiva, da complexidade dos problemas práticos e das necessidades cotidianas que circundam as práticas médicas atuais37. Declaram também que houve uma hiperinflação no conceito de autonomia, gerando atualmente uma necessidade de reformulação desse conceito, em que sejam considerados não apenas os desejos, expectativas e convicções morais dos pacientes, mas também dos médicos e da sociedade em geral. Afirmam a precariedade do modelo liberal para a percepção das particularidades das minorias. E reconhecem a urgência da reabertura do discurso bioético a grupos outrora simplesmente não considerados. Entendem como extremamente ingênua a forma que a universalidade foi utilizada para entender e solucionar as controvérsias morais da atualidade. Finalmente, demonstram que há uma significativa alteração nos postulados básicos da medicina, na medida em que os conceitos de saúde e enfermidade foram afetados no sentido de que não possa mais se embasar meramente em critérios científicos objetivos, mas devem considerar a história da vida do paciente e as condições as quais ele se encontra submetido. Face às incessantes críticas e ao choque com a realidade, iniciou uma fase de extremo ceticismo no âmbito da bioética no sentido de uma formulação única que viesse a atender a todas as demandas e também servisse de parâmetro para os conflitos e inúmeras diversificações que envolvem o fenômeno humano. Assim, em dezembro de 1990, em Chicago, por ocasião do Congresso médico no Park-Ridge-Centers, pode ser reconhecido o momento fundamental para a mudança do paradigma bioético. Houve o alargamento da perspectiva bioética a partir de uma perspectiva multicultural, mediante a profusão de discursos inéditos38, e o deslocamento do centro de produção e difusão das idéias e teorias dos EUA para outros países e continentes. A Bioética deixava de ser um produto importado para adquirir características nacionais, particularizadas à situação de cada Povo, Estado e Nação39. (Cardoso de Oliveira R, 1988)

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclusivamente, entende-se que a bioética nasceu embalada pela dinâmica do processo de extrema autonomização estadudinense que eclodiu com o movimento de afirmação dos direitos civis, notadamente dos direitos dos diferentes, daqueles que eram lançados à marginalização das universalizações. Tal circunstância foi, ato contínuo, copiada pelos outros Estados, transformandose em fenômeno mundial, historicamente reforçado com o fim da Guerra Fria, traduzindo-se pela urgência dos apelos identitários na mudança de paradigma de integração dos vulneráveis. Alinhavaram-se igualmente discursos que, sobretudo, visam compreender a conjunção entre a essência e a existência face ao maior anátema do ser humano: a transitoriedade, a multiplicidade e a complexidade da vida. Contributo relevante foi da Imprensa que, assumindo função de vigilância e, conseguintemente, de coresponsável pela tutela dos vulneráveis, passou a denunciar casos que, posteriormente foram considerados paradigmáticos para a construção e maturação da bioética como área do saber de caráter eminentemente crítico, cujos principais atributos são: o pluralismo, a tolerância e a transdisciplinariedade. Importa destacar a radicalidade do pensamento bioético, notadamente quando se apercebe do movimento multiculturalista, abandonando a padronização inicialmente regida pelo principialismo estadudinense para assumir feições próprias de profunda valorização da singularidade de cada cultura, etnia e nação. REFERÊNCIAS BEECHER, Henry. Ethics and clinical research. The New England Journal of Medicine. v. 274, n. 24, 16 jun. 1996. BIRNBACHER, Dieter. Einige Gründe, das Hirntodkriterium zu akzeptieren. In: HOFF, Johannes; SCHMITTEN Jürgen in der (Hrsg.). Wann ist der Mensch tod? Organverpflanzung und << Hirntod>> -Kriterium. Hamburg: Rowohlt Verlag GmbH, 1994. CAHILL, Lisa Sowle; RICHARD A; McCORMICK, S.J.’s. To Save or Let Die: The Dilemma of Modern Medicine. In: The Story of Bioethics: from seminal works to contemporary explorations. (Jennifer K. Walter and Eran P. Klein Editors). Washington D.C.: Georgetown University Press, 2003. DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, Coleção Primeiros Passos. JONAS, Hans. Against the stream. In: Philosophical Essays: From Ancient Creed to Technological Man. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1974. JONSEN, Albert R.. The Birth of Bioethics. New York: Oxford University Press, 1998. 148

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8 Ibid., p. 51-54. 9 Ibid., p. 51-54. 10 Henry Beecher era um médico anestesista que compilou alguns relatos de pesquisas científicas envolvendo seres humanos em condições imorais e degradantes, transcritos em jornais de grande circulação, tais como New England Journal of Medicine. 11 BEECHER, Henry. Ethics and clinical research. The new England Journal of Medicine. v. 274, n. 24, 16. jun. 1996, p. 1354-1360. 12 Ibid., p. 1354-1360. 13 Ibid., p. 1354-1360. 14 WEYERS, Wolfgang. The abuse of man: an ilustrated History of dubious medical experimentation. New York: Ardor Scribendi Ltd, 2003, p. 583-591. 15 A descoberta da penicilina ocorreu em 1928 e sua utilização passou a ser recomendada e aceita internacionalmente a partir da década de 30. Para alguns autores esse acontecimento marca o início da biotecnologia ou bioindústria, pois a penicilina foi obtida devido a uma manipulação do Penicilium notatum que fabricava a substância em quantidades restritas ao seu próprio consumo. Cf.: OLIVEIRA, Fátima. Engenharia Genética: o sétimo dia da criação. In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996, p. 154. 16 JONSEN, op. cit., p. 146-148. 17 Ibid., p. 239. 18 Ibid.,p. 238. 19 Ibid., p. 239. 20 JUNGHANNS. Ray, Verteilungsgerechtigkeit in der Transplantationsmedizin: eine juristische Grenzziehung. Frankfurt am Main: Surhkamp, 2001, s. 07. 21 WINAU, Rolf. Einstellungen zu Tod und Sterben in der europäischen Geschichte. In: WINAU, Rolf; ROSEMEIER, Hans Peter (Hrsg). Tod und Sterben. Berlin, New York: Walter de Gruyter. 1984, s. 15. 22 MORISON, Robert, apud JONSEN, Albert R. The Birth of Bioetics. New York: Oxford University Press, 1998, p. 237. 23 JONAS, Hans. Against the stream. In: Philosophical Essays: from ancient creed technological man. Englewood Cliffs: Perentice Hall, 1974, p. 132-140. 24 BIRNBACHER, Dieter. Einige Gründe, das Hirntodkriterium zu akzeptieren. In: HOFF, Johannes; SCHMITTEN Jürgen in der (Hrsg.). Wann ist der Mensch Tod? Organverpflanzung und Hirntod Kriterium. Hamburg: Rowohlt Verlag GmbH, 1994, p. 31. 25 Ibid., p. 32. 26 Ibid., p. 35. 27 JONSEN, op. cit., p. 99. “The Commission is designed to help us find the critical balance required to satisfy society’s demands for advancement of knowledge while abiding by (the rights) of its individual members.” 28 PESSINI, Léo. Os Principios da Bioética: breve nota histórica. In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de (Orgs.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996, p. 53. 29 Ibid., p. 53. 30 Ibid., p. 53. 31 DINIZ, Débora; GUILHEM. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, Coleção Primeiros Passos, p. 22. 32 Ibid., p. 33. 33 RUNTENBERG, Christa; ACH, Johann S. Bioethik zwischen Disziplin und Diskurs. In: GESANG, Bernward (Hrsg.). Biomedizinische Ethik: Aufgaben, Methoden, Selbstverständnis. Münster: mentis Verlag GmbH, 2002, p. 16-17. 34 Ibid., p. 16-17. 35 Oliveira esclarece que a desigualdade entre brancos e negros, mulheres e homens, no mundo e particularmente no Brasil, é um dado que precisa ser definitivamente apontado e confrontado com as propostas do discurso bioético e afirma, para isso, que: “As mulheres e os negros, até hoje, são consideradas(os) inferiores, por parcela significativa da comunidade científica(The Bell Curve comprova isso). Historicamente, foram barradas(os), ou tiveram o acesso dificultado aos centros de produção do saber formal, institucionalizado. Hoje, quando freqüentar universidades parece não ser tão difícil para mulheres brancas, mas para negras ainda é dificílimo, tornar-se cientista é quase impossível, para as mulheres em geral, na mesma proporção em que para os homens, brancos ou negros, é mais fácil.” (OLIVEIRA, op. cit., p. 160.) 36 DINIZ, op. cit., p. 33.

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37 RUNTENBERG, op. cit., p. 17-18. 38 Ibid., p. 18. 39 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Antropologias periféricas versus antropologias centrais. In: O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15, 1998, p. 110.

HISTORICAL ASSERTION OF BIOETHICS AND MULTICULTURALISM ABSTRACT This paper examines the historical and cultural process of the assertion of minorities and vulnerable groups as regards the access to health care, in comparison with the simultaneous consolidation of the movements of bioethics and multiculturalism, both originally from the USA. The paper intends to report paradigmatic cases of violation of the guarantees and fundamental rights of human beings and point to a reinvented profile of social relationships in health, which emerged especially after the insertion of Principialism, in which autonomy and dignity are the benchmarks. In the end, the paper compares the extent and the validity of American Principialism with the complex web of human beings, taking into account the impossibility of standardization and highlighting, as a natural consequence of the maturation of the bioethical discourse, the inclusion of all individuals, possible as pluralism and tolerance take to the recognition of social diversity.

Keywords: Bioethics. Diversity. Pluralism.

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A NATUREZA PRINCIPIOLÓGICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO DO SEU CONTEÚDO ESSENCIAL Germana Parente Neiva Belchior ** RESUMO Na medida em que o pós-positivismo confere a natureza normativa aos princípios e comprova que o valor é inafastável ao Direito, urge analisar as diferenças básicas entre regras e princípios. Nessa linha, o objetivo principal deste trabalho é investigar a natureza jurídica dos direitos fundamentais, haja vista que sua caracterização é imprescindível para o estudo da sua eficácia, restrição e colisão, além da proteção do seu conteúdo essencial. A metodologia utilizada é bibliográfica, teórica, descritiva e exploratória. Constata-se que todo direito fundamental possui um conteúdo essencial oriundo de sua natureza principiológica, intimamente ligado à dignidade da pessoa humana e ao valor justiça, essência do Direito. Referido conteúdo, entretanto, não é absoluto, nem imutável. É maleável, sendo definido pelo intérprete no momento de sua aplicação, de acordo com as questões fáticas e jurídicas do caso concreto. Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Pós-Positivismo. Natureza Jurídica. Princípios. Conteúdo Essencial. INTRODUÇÃO No âmbito da teoria do Direito, dá-se início a um período intitulado de pós-positivista, em que ocorre a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo, com a distinção das normas jurídicas em regras e princípios, tendo como conteúdo os valores. Além da normatividade alcançada pelos princípios, percebe-se que os valores fazem parte das ciências sociais e, por consequência, do Direito, amadurecendo a tridimensionalidade de Miguel Reale. Nessa linha, o objetivo principal deste trabalho é investigar a natureza jurídica dos direitos fundamentais, haja vista que sua caracterização é imprescindível para o estudo da sua eficácia, restrição e colisão, além da proteção do seu conteúdo essencial. *

Doutoranda em Direito pela UFSC. Professora de Hermenêutica Jurídica e Aplicação do Direito, Direito Ambiental e Ecologia da Faculdade Christus – Fortaleza, onde também é colaboradora do Escritório de Direitos Humanos – EDH. Pesquisadora do Projeto Casadinho (CNPQ-UFC-UFSC). Advogada.

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Para tanto, inicia-se o estudo pela evolução da natureza jurídica dos princípios, até chegar ao pós-positivismo. Em seguida, apontam-se diferenças estruturais e qualitativas entre regras e princípios para analisar a natureza de um direito fundamental. Por fim, discute-se a caracterização do conteúdo essencial dos direitos fundamentais e o papel do intérprete em sua materialização, mediante auxílio da hermenêutica e da lógica jurídica. A metodologia utilizada é bibliográfica, teórica, descritiva e exploratória. 1 A NATUREZA JURÍDICA DOS PRINCÍPIOS: DO JUSNATURALISMO AO POS-POSITIVISMO Os princípios, por muito tempo, eram considerados apenas instrumentos de interpretação e integração do Direito, buscando auxiliar seus aplicadores. Não possuíam, assim, status de norma jurídica. É importante, ainda que rapidamente, fazer um relato histórico sobre os princípios, desde o jusnaturalismo até o pós-positivismo, a fim de que se possa compreender a sua natureza jurídica hodierna. O jusnaturalismo1 moderno ocorre a partir do século XVI, com o intuito de superar o dogmatismo medieval, assim como vencer o fundamento teológico que o criara. Naquele momento, os princípios tinham uma função meramente informadora e esclarecedora do texto legal. Ocupavam, por conseguinte, uma esfera metafísica e abstrata, como matriz inspiradora de um ideal de justiça, cuja eficácia se limita a uma dimensão ético-valorativa do Direito. No decorrer do século XIX, o jusnaturalismo inspira várias teorias como o contratualismo, o iluminismo e o racionalismo, que fundamentam as revoluções liberais marcando o início do Estado Liberal. Naquele contexto histórico, a lei, a regra jurídica, era a única espécie de norma jurídica. Assim, a lei como fonte criadora do Direito, condicionava à validade somente o que estava escrito. Para garantir os direitos de liberdade (direitos civis e políticos), o Direito é a forma de limitar o poder, evitando o abuso do Estado, em prol da segurança jurídica. Isto se deve ao fato de que, durante aquele período, “a necessidade de segurança se sobrepõe à idéia mais elevada de justiça, fazendo com que o direito se circunscreva à ordem formal. O que mais se preconizava era a liberdade individual. E, para se garantir a liberdade, era preciso segurança jurídica.” 2 É o que se verifica com a Escola da Exegese e o Código Civil francês, em 1804, marcando o início do movimento pela codificação na Europa. Havia a crença de se encontrar no Código a resposta para todos os conflitos, nascendo o fetichismo legal que limitava o Direito ao plano formal, e, por conseqüência, a liberdade do intérprete. A codificação tende a identificar o direito com a lei. Na lição de Bobbio, a codificação é a positivação do direito natural, oriunda do iluminismo e do racionalismo. Os ideários jusnaturalistas foram, portanto, incorporados aos textos legais. 3

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Com a sacrificação do direito à letra da lei, surgiram movimentos e escolas com o intuito de criticar e buscar soluções para o exagero da Escola da Exegese. É o caso da Escola da Livre Investigação Científica de François Gény, que cria um método científico para resolver as lacunas do sistema francês, utilizando pesquisa de base empírica e sociológica. Por mais que Gény não tenha ousado ir contra a lei, constatou-se que o raciocínio jurídico meramente dedutivo e a legislação por si só não eram suficientes para resolver os conflitos sociais.4 Ainda nessa linha, pode-se destacar a Escola Histórica do Direito, na Alemanha, tendo como grande teórico Savigny, que considerava o Código um sinal de despotismo. Sob a influência do historicismo, referida corrente sustentava que o costume é o espírito do povo, que está em constante movimento, valorizando o direito consuetudinário. De acordo com Savigny, o direito científico, ou seja, a ciência do Direito, era a forma mais adequada para resolver os impasses sociais, baseado no organicismo. 5 Apesar das críticas em torno da codificação, como resultado último e conclusivo da legislação6, esta acabou sendo inevitável em quase todos os países da Europa. Nasce o positivismo jurídico que fornece um enorme e ilimitado poder ao legislador para dispor sobre o Direito do modo como bem entender, tendo por base a crença de que a sociedade se deixa reger em absoluto por normas jurídicas em sentido estrito. Ocorre, pois, a ruptura com o direito natural. 7 Durante o positivismo jurídico, os princípios só eram utilizados com o objetivo de orientar o intérprete na reconstrução da vontade do legislador, com uma função subsidiária. Apesar da forte tendência de a lei querer tudo abarcar, os princípios passaram a ser instrumentos de integração do Direito, apenas para remodelar a vontade do legislador. Quando os meios de interpretação textual positivistas não eram suficientes para resolver um litígio, o juiz buscava os instrumentos de interpretação extratextual, nas modalidades da analogia legis e analogia juris. Nesta última, o magistrado recorria aos princípios gerais do ordenamento jurídico, por meio de um procedimento de abstração e subsunção para completar o sentido da lei.8 Nota-se, aqui, um avanço em relação ao momento anterior, na medida em que se admite uma aplicação diferida dos princípios como forma de solução das lacunas. No entanto, os princípios não gozavam de normatividade, haja vista que esta só cabia às regras que davam competência ao julgador para aplicá-los. Por conseguinte, durante o positivismo jurídico, os princípios tinham função puramente garantidora da inteireza dos textos legais, com o intuito de suprir os vácuos normativos que as leis, por acaso, não conseguiam realizar. Não há dúvida de que a normatividade é uma das características essenciais do Direito, vez que, além do aspecto normativo, o Direito possui, segundo a teoria tridimensional proposta por Reale, os aspectos éticos e axiológicos. Observa o autor que “fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou sociólogo 154

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do direito, ou pelo jurista como tal [...]”. 9 Como se vê, a exaltação da norma jurídica, em seu sentido mais estrito, ou seja, na forma de lei e regra jurídica, sem considerar os fatos e os valores, acaba por desnaturar o próprio Direito. A superação histórica do jusnaturalismo demonstra que o Direito não tem como se justificar por fundamentos abstratos e metafísicos de uma razão subjetiva. Por outro lado, a crise do positivismo jurídico ensina que há um longo caminho entre Direito e norma jurídica e que a ética e moral, próprias de uma sociedade em constante transformação, não têm como permanecer distantes da ciência jurídica. Nenhum dos dois movimentos consegue mais atender de forma satisfatória às demandas sociais. Inaugura-se, por conseguinte, um novo período intitulado de pós-positivista10, onde ocorre a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo, com a distinção das normas jurídicas em regras e princípios, tendo como conteúdo os valores. Além da normatividade alcançada pelos princípios, percebe-se que os valores fazem parte das ciências sociais e, por conseqüência, do Direito, amadurecendo a tridimensionalidade de Reale. O que importa ser destacado, no momento, é que os princípios jurídicos no atual contexto histórico do pós-positivismo são o espelho da ideologia da sociedade e dos valores acolhidos na ordem jurídica. Objetivam dar unidade e harmonia ao sistema, além de serem guias do intérprete. 11 12 Segundo Canotilho, os princípios [...] são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).13

Interessante, ainda, mencionar que os princípios não precisam estar positivados de forma expressa na ordem jurídica para ter validade. Não há como o rol dos princípios ser taxativo, na medida em que eles sinalizam os valores e os anseios da sociedade, que estão em constante transformação. Por conseguinte, limitá-los à ordem jurídica positiva é impossível, pois não se tem como engessar a sociedade. Os princípios nascem de um movimento jurídico de indução, ou seja, do individual para o geral, emanando a justiça. A doutrina e, em especial, a jurisprudência realizam referido processo de abstração na teorização e aplicação do Direito. Vê-se que, neste momento, eles já são normas jurídicas, condensando valores e orientando o intérprete, à medida que o Direito não só a lei, como queria o positivismo jurídico. Com a sua reiterada aplicação e permanência no seio social, o legislador, a fim de lhe garantir também segurança jurídica, ampara-o em uma lei, ou na própria Constituição, por meio de um raciocínio jurídico por dedução. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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A partir de então, os estudos vêm ocorrendo no sentido de analisar as diferenças estruturais e qualitativas entre regras e princípios, conforme será analisado a seguir. 2 DO DIREITO POR REGRAS E PRINCÍPIOS: DIFERENÇAS ESSENCIAIS Na medida em que o pós-positivismo confere a natureza normativa aos princípios e comprova que o valor é inafastável ao Direito, sendo conteúdo das normas, resta saber as diferenças básicas entre regras e princípios, para então determinar qual a natureza jurídica de um direito fundamental. A diferenciação entre regras e princípios foi inaugurada por Dworkin14 em sua crítica ao modelo positivista, marcando a entrada do momento póspositivista. Propõe o autor norte-americano uma distinção lógica entre regras e princípios, ambas normas jurídicas com força vinculante e validade positiva. Os princípios possuiriam uma dimensão de peso, sendo sua colisão resolvida segundo o peso de cada um deles no caso concreto. Diante disso, devem ser “levados a sério”, reaproximando, por conseguinte, o Direito da Moral. Já as regras, por sua vez, teriam estrutura lógica diferenciada dos princípios, sendo aplicadas caso estivessem presentes todos os seus pressupostos fáticos. Trata-se do que Dworkin intitula de “tudo ou nada” (all or nothing), o que implica dizer que, havendo conflito entre regras jurídicas, este seria resolvido no âmbito da validade.15 Como forma de complementar e aprofundar os estudos realizados por Dworkin, propõe Alexy uma teoria mista de direitos fundamentais, fundamentando que podem se caracterizar por meio de regras ou princípios16, mas que a diferença entre as suas espécies normativas não se trata de grau, como queria Dworkin, mas sim uma diferença qualitativa.17 Os princípios relevantes para as decisões que envolvem direitos fundamentais seriam aqueles que poderiam ser utilizados argumentativamente de forma substancial. 18 Bonavides aponta três principais críticas à teoria de Alexy: 1) a da possibilidade de se declarar a invalidade de princípios no caso de colisão; 2) a possível existência de princípios absolutos; 3) o conceito de princípio seria demasiadamente amplo e, portanto, sem qualquer aplicabilidade prática.219 Além disso, ainda há autores que sustentam que a dimensão de peso não seria exclusiva dos princípios, podendo ser atribuída às regras em determinado caso20, assim como outros defendem uma maior importância para os princípios, haja vista que as regras jurídicas seriam originadas deles.21 Ávila diz que as regras são normas descritivas, retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, enquanto os princípios são normas imediatamente finalísticas, prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade. 22 Não obstante a discussão que permeia na doutrina, apontam-se diferenças 156

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estruturais e qualitativas em relação às duas espécies normativas. Na estrutura dêontica de uma regra, há relatos objetivos, com a descrição de determinadas condutas, possuindo âmbito de incidência delimitado.23 Os direitos nelas previstos são garantidos de forma definitiva.24 Outro ponto interessante é que todas as regras estão expressas, possuindo, por conseguinte, um rol taxativo. Outrossim, a estrutura fechada da regra tem como objetivo a perseguição da segurança jurídica, pois “um dos papéis mais importantes das regras no ordenamento jurídico é justamente aumentar o grau de segurança na aplicação do direito”.25 Por conta disso, toda regra manifesta valor, mas de uma forma bem menor do que em relação à norma-princípio. Basta pensar na segurança jurídica, autêntico valor que emana de qualquer regra. Por fim, uma regra é aplicada por meio de raciocínio jurídico dedução (de cima para baixo). Neste diapasão, em virtude do caráter definitivo das regras, caso ocorra a hipótese prevista, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção, ou seja, enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se resolve na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Segundo Silva, “caso contrário não apenas haveria um problema de coerência no ordenamento, como também o próprio critério de classificação das regras – dever-ser definitivo – cairia por terra”. 26 Notadamente, havendo conflito entre duas regras, aplicam-se os mandamentos de validade, de onde apenas uma irá prevalecer. O próprio vocábulo conflito já dá a entender um choque, sendo impossível que duas regras coexistam. Somente uma será valida. Alerta Silva, entretanto, que, havendo incompatibilidade parcial entre os preceitos de duas regras, a solução ocorre por meio de uma cláusula de exceção em uma delas. No entanto, caso referida incompatibilidade seja total, é que a solução se dá com a declaração de invalidade de umas delas. 27 Como forma de solucionar o clássico conflito entre regras, já presente desde o positivismo jurídico (já que naquele modelo só existiam as normas-regra), o ordenamento jurídico se utiliza de três critérios tradicionais – logicamente nessa ordem - para resolver as antinomias: o da hierarquia – pelo qual a lei superior prevalece sobre a inferior (lex superior derogat legi inferiori) –, o cronológico – ao assegurar que a lei posterior deve prevalecer sobre a anterior (lex posteriori derogat legi priori) – e o da especialização – em que a lei específica prevalece sobre a lei geral (lex specialis derogat legi generali). Já os princípios, por sua vez, contêm, em sua estrutura dêontica, relatos com maior grau de abstração, não apontam uma conduta específica a ser seguida, possuindo um âmbito de incidência amplo, e até indeterminável de situações. Os diretos previstos em um princípio são prima facie, não tendo o mesmo caráter de definitividade das regras. Tem conteúdo altamente axiológico, além do fato de que nem todos os princípios estão obrigatoriamente expressos. Seu rol, por conseguinte, é meramente exemplificativo, vez que surgem da própria realidade, em busca da justiça, captados por raciocínio jurídico indutivo (de baixo para REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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cima). Ademais, as regras são oriundas dos princípios por meio da indução, o que comprova que ferir um princípio é muito mais grave do que violar uma regra. Diante das características expostas, é inevitável, portanto, que ocorram tensões constantes entre os princípios jurídicos, em virtude da ordem democrática e pluralista, o que faz com que haja uma tensão dialética. Havendo uma colisão entre princípios, a solução será realizada por meio de mandamentos de otimização, segundo Alexy, haja vista serem normas que exigem que algo deva ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. 28 Como se vê, diz-se colisão (e não conflito), porque não se pode excluir totalmente um princípio, cuja aplicação se dá por meio do balanceamento para fixar as “relações condicionadas de precedência”.29 Há acatamento de um em relação ao outro, sem que isso implique em completo desrespeito daquele que não prevaleceu. 30 Uma pergunta interessante que pode ser feita é: como resolver uma colisão entre regras e princípios? Há muita discussão em torno do tema. Ao adotar os mandamentos de validade (critérios de antinomias), conclui-se que caso um princípio não prevaleça, em detrimento de uma regra, terá ele que ser expelido do ordenamento jurídico, o que é um absurdo. Por conta disso, entende-se que a solução mais conveniente é que o princípio não entra em colisão com a regra, mas com o princípio no qual a regra se baseia, ou seja, o princípio de onde a regra foi abstraída. Diante disso, o método para solucionar uma colisão envolvendo regras e princípios é baseado nos mandamentos de otimização. 3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO NORMAS-PRINCÍPIO E O SEU CONTEÚDO ESSENCIAL 3.1 Algumas notas sobre direitos fundamentais A expressão “direitos fundamentais” deve ser aplicada, segundo Sarlet, aos direitos do homem, reconhecidos e positivados nas constituições. Para o citado autor: Não há como olvidar, neste contexto, que a opção do Constituinte, ao erigir certa matéria à categoria de direito fundamental, se baseia na efetiva importância que aquela possui para a comunidade em determinado momento histórico, circunstância esta indispensável para que determinada posição jurídica possa ser identificada como fundamental. 31

Notadamente, é com base nos valores considerados importantes a uma dada sociedade que o constituinte, de forma intuitiva e racional, seleciona quais bens terão proteção na Lei Maior. Os direitos fundamentais são aqueles que, ao incorporar os valores mais importantes de determinada sociedade, protegem os bens mais caros a ela. 158

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Salienta-se, ademais, que os direitos fundamentais não são criados pela Constituição, e sim reconhecidos por esta, sendo originários em meio à sociedade, através da indução. É por isso que se defende o caráter vinculativo dos direitos fundamentais em relação ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. Não se confundem, entretanto, com os direitos humanos, típicos de normas de cunho internacional, carecendo, em regra, mas não sempre, de eficácia jurídica perante um dado ordenamento jurídico. Ainda sobre o tema, Marmelstein explica que [...] a noção de direitos fundamentais como normas jurídicas limitadoras do poder estatal surge justamente como reação ao Estado absoluto. [...] Os direitos fundamentais pressupõem um Estado juridicamente limitado (Estado de direito / separação dos poderes) e que tenha preocupações éticas ligadas ao bem comum (direitos fundamentais / democracia). 32

No âmbito da historicidade dos direitos fundamentais, a doutrina aponta a existência de gerações ou dimensões33 de acordo com o contexto de determinada sociedade. Em um primeiro momento, com as Revoluções liberais, inaugura-se o Estado liberal e, por conseguinte, surgem os direitos fundamentais de primeira geração. Objetivam conferir direitos de liberdade, tipicamente individuais, revelando-se como direitos civis e políticos. Referidos direitos se caracterizam “pela necessidade de não-intervenção do Estado no patrimônio jurídico dos membros da comunidade”.34 Esta categoria é fundada no Estado Liberal absenteísta, onde se deu a manifestação do status libertatis ou status negativus. Realçam, portanto, o princípio da liberdade.35 Os excessos do ideário liberal, decorrentes da omissão estatal, acarretaram o aumento das desigualdades sociais, o que gerou movimentos revolucionários de base proletária. Segundo Marmelstein, era uma liberdade de “faz de conta”, que beneficiava apenas a elite. Ou seja, tratava-se de uma “igualdade meramente formal, da boca para fora, que não saía do papel, era mesmo que nada. Por isso, eles pretendiam e reivindicavam também um pouco mais de igualdade e inclusão social”. 36 O Estado Social entra em cena, objetivando a igualdade social contraposta à igualdade jurídica da visão liberal, ou seja, da justiça formal, que não é inerente às pessoas nem preexiste ao Estado, cumprindo-se essencialmente por meio de prestações por este devidas aos indivíduos. A partir deste momento, visualizam-se os direitos fundamentais de segunda geração. Os direitos de segunda geração são os direitos econômicos, culturais e sociais, só que os últimos requerem prestações positivas (status positivus) por parte do Estado para suprir as carências da sociedade. É nessa dimensão que surge a idéia de mínimo existencial como núcleo da dignidade da pessoa humana.37 São os direitos dos cidadãos às prestações necessárias ao pleno desenvolvimento da existência individual, tendo o Estado como sujeito passivo, que devem ser cumpridos REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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mediante políticas públicas. De uma forma objetiva, pode-se dizer que são direitos não contra o Estado, tipicamente liberais, mas direitos através do Estado. 38 No entanto, ainda perdura no Estado contemporâneo o essencial da concepção liberal, traduzindo na afirmação de que o homem, pelo simples fato de o ser, tem direitos e que o Poder Público deve respeitá-los. Assegurar o respeito da dignidade humana continua sendo o fim da sociedade política. Dignidade esta, no entanto, que não é vista apenas no âmbito do indivíduo isolado, mas sim de uma forma coletiva, em virtude da solidariedade. Por conta disso, é que surgem direitos de titularidade coletiva, intitulados pela doutrina de direitos fundamentais de terceira geração. Consagram o princípio da solidariedade, englobando, também, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, autodeterminação dos povos e outros direitos difusos. Notadamente, são direitos que transcendem o individual e o coletivo, na medida em que os interesses individuais ou privados se subordinam a interesses da maioria em prol do bem-estar social. Têm como característica a sua titularidade coletiva, sendo, muitas vezes, indefinida ou indeterminável. 39 Na lição de Morais: São interesses que atinam a toda a coletividade; são interesses ditos metaindividuais. São direitos que se referem a categorias inteiras de indivíduos e exigem uma intervenção ativa, não somente uma negação, um impedimento de violação – exigem uma atividade. Ao contrário do Direito excludente, negativo e repressivo de feitio liberal, temos um Direito comunitário, positivo, promocional, de cunho transformador.40

Bonavides41 traz, ainda, uma quarta geração de direitos fundamentais: o direito à democracia, à informação e o direito ao pluralismo. Recentemente, vem defendendo o mencionado autor o direito à paz como direito fundamental de quinta geração, por ser um direito natural dos povos ao abraçar a idéia de concórdia. 42 Em suma, não obstante a que geração pertença, os direitos fundamentais tem como premissa promover a dignidade da pessoa humana. À medida que a sociedade reclama por anteparos, o Estado e o Direito precisam se manifestar para atender às demandas sociais. 43 A cada nova geração, há uma nova roupagem, um redimencionamento do direito fundamental anterior, com vistas a garantir a dignidade da pessoa humana. O constituinte brasileiro, inspirado em constituições sociais democratas do século anterior, inscreveu em seu art. 1º, inciso III, o postulado da dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da organização nacional. De fato, pode-se afirmar que o Estado Democrático de Direito, fórmula política adotada pelo constituinte, marca uma abertura constitucional radicada no princípio da dignidade do ser humano, tendo-o como eixo central. Trata-se, pois, do cons160

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titucionalismo das comunidades humanas, mais orgânico e voltado mais para a sociedade do que para o Estado. 3.2 O status formal e material dos direitos fundamentais Ao analisar o art. 5º, da Carta Magna, a doutrina já é uníssona ao defender que o rol dos direitos e garantias do art. 5º não é taxativo, na medida em que o §2º, do art. 5º, traz uma abertura de todo o ordenamento jurídico nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e aos direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Notadamente, quando um direito fundamental estiver expresso na CF, como o direito à vida (art. 5º), os direitos sociais (art. 7º) e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), por exemplo, constata-se que tem status formal (pois está previsto no Texto) e material (vez que seu conteúdo é imprescindível à dignidade humana). Tem, por conseguinte, aplicabilidade imediata, com fundamento no art. 5º, §1º, da Constituição de 1988, por possuir supremacia normativa conferida pela ordem jurídica constitucional. Trata-se da coerência interna dos direitos fundamentais, baseada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana defendida por Sarlet, sendo capazes de gerar efeitos jurídicos. 44 É o mesmo entendimento de Krell ao observar que: Todos os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata (art. 5º. §1º, CF), sem a necessidade de uma intermediação por leis ordinárias. No caso dos direitos fundamentais da segunda e terceira geração, existe um espaço mais abrangente que o legislador ordinário deve preencher, concretizando e conformando a implementação dos direitos sociais e difusos, cuja densidade mandamental é menos expressiva do que a dos direitos fundamentais individuais de liberdade. 45(Destaque no original.)

Sobre os tratados internacionais de direitos humanos, importa recordar que a Emenda Constitucional 45/2004 incluiu o §3º ao Texto Constitucional, dando a possibilidade de que os tratados de direitos humanos sejam submetidos a um procedimento diferenciado de incorporação legislativa, que consiste na aprovação de seu texto, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação, por três quintos dos votos dos respectivos membros. Cabe destacar que a aprovação do tratado nesses termos confere às normas de direitos humanos que se encontram em seu bojo o caráter de equivalentes às emendas constitucionais. A preocupação do constituinte derivado era, aparentemente, dirimir controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, já existentes pela interpretação do §2º, do art. 5º, CF/88. Após nova redação, a doutrina internacionalista, destacando Piovesan, REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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defende que passam a existir duas categorias de tratados de direitos humanos: os materialmente constitucionais (antes da EC 45) e os material e formalmente constitucional (depois da EC 45). Vale lembrar que todo tratado de direitos humanos, uma vez ratificado, passa a ter status materialmente constitucional, em virtude do §2º, art. 5º (cláusula de abertura). Caso os mesmos tenham alcançado o referido quorum do §3º, passarão a ser considerados, também, como formalmente constitucionais.46 47 A discussão maior gira em torno daqueles tratados que foram incorporados antes da EC 45. No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, houve uma mudança de entendimento radical no que concerne à natureza dos tratados internacionais de direitos humanos, pois sempre se defendeu que os mesmos equivaleriam às leis ordinárias, fazendo pouco caso da cláusula de abertura do §2º do art. 5º. Atualmente, o Ministro Gilmar Mendes entende que os mesmos possuem status de supralegalidade, ou seja, estão acima da lei ordinária, mas abaixo da Constituição. Já o Ministro Celso de Mello lidera uma corrente no sentido de que os tratados de direitos humanos têm status de norma constitucional. 48 A importância dessa discussão é que o status material do direito fundamental alcança todos os tratados internacionais de direitos humanos incorporados pela República Federativa do Brasil antes da EC 45. Em outras palavras, pode-se ir além, ao afirmar que o status material dos direitos fundamentais faz parte do bloco de constitucionalidade, ou seja, do conjunto normativo que serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade e para a interposição de recurso extraordinário. Entender que o bloco de constitucionalidade só é a Constituição formal é pensar de acordo com o modelo positivista, totalmente ultrapassado. 49 O Estado não é obrigado a ratificar um tratado internacional. Se assim o faz, é porque é conveniente com seu modelo político e com o ordenamento jurídico interno, devendo ter a consciência da repercussão de referido instrumento para a ordem jurídica local e global. É cabível, portanto, o controle de constitucionalidade, seja pela via concentrada ou difusa, alegando que determinado dispositivo é inconstitucional por violar um tratado internacional, por conta do status material do direito fundamental ao meio ambiente. Ademais, é possível interposição de recurso extraordinário pelo não cumprimento do mesmo tratado internacional, o que implica que não deve mais prosperar o entendimento de que violação reflexa da Constituição não é tão grave a ponto de fundamentar referido instrumento recursal. O STF precisa rever seu posicionamento para ser coerente com as recentes decisões ora destacadas. Referido entendimento, como se vê, é uma conseqüência inafastável da interpretação do §2º, do art. 5º, da Constitucional, que passa a ser fortalecido pelo pós-positivismo, pela unidade axiológica da Constituição, pelo recente entendimento do STF, em especial pela corrente defendida pelo Ministro Celso de Mello. 162

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3.3 A natureza principiológica dos direitos fundamentais No que concerne às normas de direitos fundamentais, mister ressaltar que não há identidade perfeita entre direitos fundamentais e princípios. No entanto, é perceptível o caráter principiológico que as normas de direito fundamentais possuem por conta do forte conteúdo axiológico em face dos bens jurídicos que visam proteger. Segundo a doutrina majoritária, um modelo puro de princípios é inadequado, pois a rejeição das normas-regra impossibilita limitações aos princípios que consagram direitos fundamentais, prejudicando a segurança jurídica e sua concretização.50 Ilustra Alexy que um modelo baseado puramente em princípios “[...] não leva a sério a constituição escrita.”51 A crítica de Alexy (assim como de boa parte da doutrina) acerca da abstração, da relatividade e da insegurança jurídica oriunda de um modelo exclusivo de princípios pode ser refutada. As correntes que defendem que os direitos fundamentais são binormativos apontam que é papel do intérprete decidir, no momento da aplicação, se referido direito fundamental é uma regra ou um princípio. Oportuna manifestação de Silva: É tarefa do intérprete definir se a norma, produto da interpretação, é uma regra ou um princípio. Qualquer distinção das normas jurídicas em mais de uma categoria – e a ênfase no “qualquer” é, aqui, fundamental – terá que seguir sempre esse raciocínio. O texto legal, em geral, utiliza-se sempre da mesma linguagem e dos mesmos operadores dêonticos. Não é o legislador que tem que se preocupar com eventuais distinções e classificações dogmáticas, mas o intérprete e o aplicador do direito. 52(Destaque no original)

A distinção entre regras e princípios não é de textos, mas de normas.53 Com base em que critérios o intérprete decidirá acerca da natureza jurídica de um direito fundamental? Ora, dependerá de como ele quer que referido direito seja efetivado intuitiva e racionalmente e, por conseqüência, a melhor forma de se lidar com uma colisão (ou conflito, se for regras). É simples verificar. Ao se tratar de uma colisão entre o direito à vida com o direito à liberdade de crença religiosa, por exemplo, caso o intérprete queira, previamente, que prevaleça o direito à vida de modo total e definitivo, dirá que se trata de uma regra, excluindo, portanto, qualquer hipótese material do direito à liberdade de crença ser aplicado. Por outro lado, caso seja interessante para o intérprete que os dois direitos fundamentais sobrevivam, concluirá que se trata de princípios. Como se vê, as mesmas críticas imputadas ao modelo puramente principiológico podem ser atribuídas ao um sistema binormativo de direitos fundamentais, na medida em que dependerá do intérprete decidir qual será a natureza jurídica do direito no momento de sua aplicação.

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No entanto, ao se tratar de direitos fundamentais, percebe-se que não é apenas seu forte conteúdo axiológico que coopera para sua natureza jurídica principiológica, mas também sua abertura semântica e dimensão objetiva.54 Na mesma linha, manifesta-se Steinmetz: [...] os direitos colidem porque não estão dados de uma vez por todas; não se esgotam no plano da interpretação in abstracto. As normas de direito fundamental se mostram abertas e móveis quando de sua realização ou concretização na vida social. Daí a ocorrência de colisões. Onde há um catálogo de direitos fundamentais constitucionalizado, há colisões in concreto.55

Diante disso, defende-se que os direitos fundamentais são assegurados em normas-princípio, à luz de uma teoria externa, com conteúdo essencial, intimamente relacionado à dignidade da pessoa humana. 3.4 O conteúdo essencial dos direitos fundamentais Todo direito fundamental possui um conteúdo essencial oriundo de sua natureza principiológica, núcleo este que representa a própria justiça, essência do Direito. Referido conteúdo não é absoluto, nem imutável. Ora, para que serve o Direito, afinal? De uma forma bem simples, pode-se afirmar que o Direito tem como objetivo regular as condutas humanas em prol de uma pacificação social, ou seja, em busca da justiça. Oportuna a lição de Bello Filho: O núcleo essencial de um direito fundamental não é um núcleo duro que impede todo e qualquer movimento restritivo de normas que se baseiem em outros princípios que colidem por trabalharem em sentidos invertidos. O núcleo essencial do direito é um núcleo maleável, que se constitui desde a atividade de ponderação, e a partir da realização do princípio da proporcionalidade. Na efetivação desta ponderação, com obediência aos cânones da proporcionalidade, os direitos fundamentais enquanto princípios obedecem a limites, uma vez que o esvaziamento completo de sentido para uma norma princípio seria o mesmo que esvaziar completamente a sua própria normatividade.56

E o que vem a ser a dignidade humana, este conteúdo essencial do direito fundamental e, por conseguinte, da própria essência do Direito? Entende-se que a dignidade humana se confunde com o próprio conteúdo essencial. Parafraseando Kelsen, é um conceito emoldural, ou seja, trata-se de uma moldura dêontica (dever-ser) criada pelo constituinte, mas que será preenchido pelo intérprete de acordo com questões históricas, culturais, sociais e econômicas, por meio da indução, ou seja, de acordo com a realidade naquele momento da aplicação da norma. Basta refletir: o que é dignidade humana para quem está na beira de um 164

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leito de morte por uma doença terminal, por mais que tenha excelentes condições financeiras? E para um membro de uma família grandiosa que vive (ou sobrevive) com uma cesta básica por mês? Vê-se, pois, que é um conceito relativo, emoldural e elástico, não havendo possibilidade de uma rigidez em seu conteúdo. Dignidade da pessoa humana, conteúdo essencial e justiça são institutos que estão intrinsecamente ligados entre si por caracterizar a própria essência do Direito. São conceitos emoldurais que serão preenchidos pelo intérprete, considerando todas as condições fáticas e jurídicas do caso concreto. Ao violar um deles, todos os outros serão atingidos, como efeito dominó. Notadamente, quando ocorre a colisão entre direitos fundamentais, aquele que não prevalecer no caso concreto não pode ser simplesmente excluído da ordem jurídica porque desnaturaria a própria razão de ser do Direito. 3.5 O apofântico e o deôntico da norma jurídica de direito fundamental O estudo da hermenêutica e da lógica jurídica são imprescindíveis para delimitar o conteúdo essencial de um direito fundamental. Vilanova explica que a existência da lógica jurídica se justifica “se encontrarmos formas ou estruturas no discurso ou linguagem normativa (in specie, jurídica) próprias do direito”.57 São as formas apofânticas e deônticas, conforme serão analisadas neste tópico. A partícula operatória do deôntico é o dever-ser que, segundo Vilanova, [...] estatui relação entre sujeitos-de-direito, que tomam o papel sintático de termos-sujeitos, e relação entre tipos de ações ou condutas, decorrentes da verificação de pressupostos fácticos, que tomam o papel sintático de proposições antecedentes de uma relação hipotética. A norma, que é, fenomenologicamente, a significação do enunciado proposicional, diz que se se dá (se ocorre na realidade) um fato que através do pressuposto a ele referido entre no universo do direito, então um sujeito deve fazer ou omitir tal ou qual conduta face a outro sujeito, termo relato daquele termo referente. 58

A forma deôntica refere-se a um dever-ser objetivo. A norma traz uma estrutura lógica, cognoscente da conduta, estando, assim, formalizada. Por conta disso, a lógica jurídica não tem como deixar de ser formal exatamente pelo fato de suas estruturas serem aptas a acolher o objeto jurídico, que é uma espécie de objeto deôntico (normativo). Também “representa, ainda, a formalização da linguagem do direito positivo”, que se expressa por meio de normas. 59 Os raciocínios jurídicos, no entanto, são acompanhados por incessantes controvérsias, buscando uma decisão justa e com aceitabilidade social. Tal fato, segundo Perelman, é o bastante para “salientar a insuficiência, no direito, de um raciocínio puramente formal que se contentaria em controlar a correção das inferências, sem fazer um juízo de valor da conclusão”. 60 REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Em outras palavras, pode-se dizer que o Direito pretende atender aos anseios da sociedade, permitindo uma convivência pacífica entre os homens. No que concerne aos direitos fundamentais, sua tarefa primordial é garantir a dignidade da pessoa humana. O conteúdo dos direitos fundamentais, por conseguinte, é dinâmico, estando em constante transformação, haja vista que o conceito de dignidade humana não é engessado. Nessa linha, o mesmo deve ocorrer com o sentido captado pela norma, sob pena de uma estagnação. É exatamente nesse conteúdo que se visualiza a forma apofântica, ou seja, do ser, da prática, do concreto, da dignidade humana de acordo com as condições fáticas e jurídicas do caso, isto é, do que efetivamente ocorre na realidade, o que nem sempre corresponde ao que está previsto na forma deôntica. Logo, na formalização da norma de direito fundamental, ocorrente pela sua estrutura deôntica, não há como abranger todo o conteúdo do Direito, nem como assegurar de forma material o que vem a ser dignidade humana. Principalmente quando se verifica, durante a evolução histórica, que o Direito vai muito além daquilo que está explícitado na norma. Direito é mais do que lei, mais do que regra, mais do que norma. É de se notar, por oportuno, que referida afirmativa se coaduna com a natureza principiológica dos direitos fundamentais. Notadamente, o intérprete não pode ficar adstrito à norma, olvidando o grande mundo que é o sistema jurídico. A norma pretende trazer a segurança, mas isso não implica o alcance da justiça. Esta segurança é garantida pela forma deôntica, que cuida da estrutura da norma, impondo um dever-ser. Aqui, percebe-se claramente que o movimento do pensamento é o dedutivo, partindo do geral (norma) para o individual (regular as relações jurídicas), cuidando os argumentos do ponto de vista da sua correção formal. A estrutura deôntica é verificada, portanto, pela lógica formal. A norma de direito fundamental ganha uma estrutura, podendo ter vários objetos, ou seja, inúmeros conteúdos que serão delineados pelo operador do Direito, em especial, pelo julgador no momento de uma decisão, ao delimitar o conteúdo essencial de um direito fundamental. Como a sociedade, porém, é dinâmica e, por conseguinte, referido conteúdo também deve ser, necessária se faz outra forma, que é exatamente o apofântico. Pode-se dizer, de uma forma bem simples, que o apofântico é que permite a justiça e a eqüidade das decisões judiciais, por meio do movimento indutivo. 61 O apofântico é que traduz a materialização da dignidade da pessoa humana e do conteúdo essencial do direito fundamental no caso concreto. Assim, quando a norma é criada pelo legislador (incluindo-se o constituinte), permanece no campo dêontico, do dever-ser, formando uma espécie de moldura, que não poderá nunca ser engessada, como queria o positivismo jurídico. É o que ocorre no caso dos direitos fundamentais previstos de forma expressa no Texto Constitucional (status formal).

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Caberá ao intérprete o preenchimento dessa moldura, com a captação de um (ou vários) sentido(s) guiado(s) por meio da hermenêutica jurídica, haja vista que os fenômenos da pré-compreensão, do círculo hermenêutico e da dialética dos opostos hegeliana comprovam que o sentido a ser interpretado é filosoficamente inesgotável. Notadamente, referido(s) sentido(s) deverá(o) acompanhar os reclamos da sociedade de forma a preencher o conteúdo essencial do direito fundamental. Quando se tratar de direitos fundamentais apenas materialmente constitucionais, em virtude do §2º, art. 5º, CF, nada impede que o legislador, administrador ou juiz, por exemplo, no momento de uma tomada de decisão, capte por meio de um raciocínio jurídico por indução, ou seja, da realidade, um princípio que entenda ser imprescindível para a dignidade humana, elevando-o, assim, ao rol dos direitos fundamentais. Nessa linha, no momento de referido processo de abstração e indução, o intérprete/aplicador deverá delimitar a moldura da dignidade da pessoa humana, preenchendo-a com o conteúdo essencial do direito fundamental que, como já dito, é relativo, pois oriundo da própria dialética do Direito. A relação entre segurança jurídica e justiça, dedução e indução, é clássica, haja vista que “em todo sistema jurídico coexistem dois valores ético-sociais: a justiça e a segurança”.62 O Direito deve se adequar à sociedade (por meio da indução em prol da justiça), assim como a sociedade deve se conformar ao Direito (realizado pela dedução, garantindo a segurança jurídica). Trata-se do equilíbrio clássico que deve ocorrer no Estado Democrático de Direito, como sugere a dialética jurídica. CONCLUSÃO Os direitos fundamentais são determinados com base nos valores considerados importantes a uma dada sociedade, mediante captação intuitiva e racional do constituinte, de forma a garantir os bens que merecem especial proteção na Lei Maior. Verifica-se que referidos direitos não são criados pela Constituição, e sim reconhecidos por esta, sendo originários em meio à sociedade, através da indução. No atual momento do pós-positivismo, visualiza-se que os direitos fundamentais possuem natureza jurídica de princípios, o que, por sua característica prima facie, demanda um esforço interpretativo bem maior do que em relação às regras. Isto se deve ao fato de os princípios serem abertos e possuírem uma série indeterminada de facti species, ou seja, de situações concretas no seu âmbito normativo. Ademais, todo direito fundamental possui um conteúdo essencial que precisa ser resguardado, com íntima ligação à dignidade da pessoa humana e ao valor justiça, razão de ser do Direito. Referidos conteúdos, como visto, são relativos e elásticos, devendo o intérprete delimitá-los por meio da abstração e indução da realidade, isto é, do apofântico. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Além do status formal dos direitos fundamentais, quando estão previstos expressamente na Carta Magna, há ainda um imenso rol de direitos materialmente constitucionais fora do Texto, de acordo com a cláusula de abertura do art. 5º, §2º, CF. Nessa linha, em virtude de os princípios não estarem necessariamente expressos na ordem jurídica, haja vista que nascem da realidade que está em constante transformação, o intérprete poderá captá-los por indução ao verificar a sua importância para a dignidade humana. Assim, poderá nascer um direito fundamental, cujo conteúdo essencial será delimitado de acordo com as situações fáticas e jurídicas do caso concreto. No entanto, resta destacar que, se tal atitude não for feita de forma racionalmente justificada pode, colocar em xeque os fundamentos de um Estado de Direito pautado na segurança jurídica. Não se pode cair no subjetivismo e no ativismo exacerbado, havendo de se incorporar uma dimensão crítica que permita aos intérpretes e aos operadores do Direito manter uma postura de vigilância, principalmente quando se trata de direitos fundamentais. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Trad.). Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ: Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 6, setembro, p. 1 – 32, 2001. Disponível em: <www.direitopublico.com. br>. Acesso em: 20 de fev. 2009. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da fundamentalidade do direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Tese apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: 2006. BOBBIO, Norberto. In: PUGLIESE, Márcio (Trad.). O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 168

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Pietro de Jesus Lora; LENZA, Pedro; TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005. PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Tratados Internacionais de Direitos Humanos: análise à luz do Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos nas Relações Internacionais do Brasil. Dissertação de mestrado apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. Fortaleza: 2007. PUIGARNAU, Jaime M. Mans. Logica para juristas. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S.A., 1978. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1968. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SILVA, Virgílio Afonso da Silva. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz. Porto Alegre: Fabris, 1987. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. VILANOVA, Lourival. Lógica Jurídica. São Paulo: Bushatsky, 1976.

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Observa Barroso que o jusnaturalismo se funda na existência de um direito natural. Explica que “sua idéia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito positivo. Esse direito natural tem validade em si, legitimado por uma ética superior, e estabelece limites à própria norma estatal”. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n. 6, setembro, p. 1 – 32, 2001. Disponível em: <www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2009, p. 13. MOREIRA, Rui Verlaine Oliveira; PEIXOTO, Francisco Davi Fernandes; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. A crise do positivismo jurídico. XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais do XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI – Salvador. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux. 2008, p. 1002. BOBBIO, Norberto. In: PUGLIESE, Márcio (Trad.). O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006, p. 119. Gény utilizava a legislação vigente como instrumento por meio do qual se analisava os dados da realidade, para se então obter o construído. Ou seja, a lei era a lente do intérprete (pré-compreensão) ao buscar as aspirações e valores da sociedade, adequando-os ao Código. Há, assim, uma abertura, ainda pequena, para o raciocínio por indução, ou seja, do individual (ao captar os valores e anseios da sociedade no dado, desde que não violasse o Código de Napoleão) para o geral. Sobre o organicismo, é importante observar que “a doutrina do direito científico (Escola Histórica) considera como material jurídico ´dado´ ou ´posto´ o direito romano (Código de Justiniano), que deve ser analisado pela ciência jurídica mais do que pelo legislador, transformando esse material num ordenamento jurídico unitário e sistemático. O sistema jurídico deve ser visto como o conjunto vivo em

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constante movimento, onde a convicção comum do povo seria o elemento primordial para a interpretação das normas.” MOREIRA; PEIXOTO; BELCHIOR, op. cit., p. 1002. BOBBIO, op. cit., p. 212. Interessante que o movimento pela codificação representou o auge do direito natural e, por outro lado, de forma paradoxal, simbolizou a sua superação histórica. Como se vê, no início do século XIX, os direitos naturais cultivados por mais de dois milênios foram incorporados de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Constata-se que não há mais a revolução natural, na medida em que eles se encontram conservados em códigos. O que prevalece é a onipotência positivista, deixando-os tão-somente na margem da história, considerados como metafísicos e anti-científicos. BARROSO, op. cit., p. 16. BOBBIO, op. cit., p. 213. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 73. Ainda na lição de Barroso, “o pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana.” BARROSO, op. cit., p. 19. BARROSO, op. cit., p. 20. Diante da sua atual importância, Barroso resume que os princípios desempenham três papéis distintos na ordem jurídica, a saber, “a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete”. Idem, p. 20. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1124. DWORKIN, Ronald. In: BOEIRA, Nelson (Trad.). Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 35-63. DIAS JÚNIOR, José Armando Pontes. Princípios, regras e proporcionalidade: análise e síntese das críticas às teorias de Ronald Dworkin e Robert Alexy. In: Revista NOMOS Fortaleza, v. 27, p. 177-201, jul./dez. 2007, p. 178. ALEXY, Robert. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Trad.). Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 135-144. Idem, p. 31-49. Idem, p. 135-144. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 600. GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 178-179. BONAVIDES, op. cit., p. 701. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 78-79. BARROSO, op. cit., p. 14. SILVA, Virgílio Afonso da Silva. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 45. Idem, p. 52. Idem, p. 47-48. Idem, p. 48. ALEXY, op. cit., p. 117-118. SILVA, op. cit., p. 50. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2003, p. 45. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 96. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas: 2008, p. 42. Willis Filho entende que é melhor falar em dimensões de direitos fundamentais à medida que as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas. Para o autor, “os direitos ´gestados’ em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos da geração sucessiva, assumem uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada”. GUERRA FILHO, op. cit., p. 47. LIMA, Francisco Gérson Marques de. Fundamentos constitucionais do processo: sob a perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.

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35 Acerca do Estado liberal, Bastos ensina que “seu pressuposto fundamental é o máximo de bem-estar comum atingido em todos os campos com a menor presença possível do Estado. [...] Sua máxima principal está esculpida na expressão francesa ´laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même´ (´deixai fazer, deixar passar, o mundo caminha por si só´). BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 139. 36 MARMELSTEIN, op. cit., p. 46. 37 Barcellos destaca que o núcleo da dignidade humana é o mínimo existencial, “na medida em que procura representar um subconjunto, dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais, menor – minimizando o problema dos custos – mais preciso – procurando superar a imprecisão dos princípios – e, mais importante, que seja efetivamente exigível do Estado, sob a forma da eficácia jurídica positiva ou simétrica”. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p. 118. 38 Segundo Bulos, os direitos fundamentais de segunda geração, advindos logo após a Primeira Grande Guerra, “compreende os direitos sociais, econômicos e culturais, os quais visam assegurar o bem-estar e a igualdade, impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo de natureza social em favor do homem”. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 104. 39 SARLET, op. cit., p. 53. 40 MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 96. 41 BONAVIDES, op. cit., p. 571. 42 BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental da quinta geração. In: Revista Interesse Público, v. 8, n. 40, nov./dez. 2006, p. 18-19. 43 Importante salientar que os direitos fundamentais se manifestam, segundo Alexy, em sua forma deôntica, por meio de regras (comandos de definição) e de princípios (comandos de otimização), tese que não será adotada neste estudo. ALEXY, op. cit., p. 81-88. 44 SARLET, op. cit., p. 78-79. 45 KRELL, Andreas J. Desenvolvimento sustentável às avessas nas praias de Maceió/AL: a liberação de espigões pelo Novo Código de Urbanismo e Edificações. Maceió: EDUFAL, 2008, p. 68. 46 PIOVESAN, Flávia. Reforma do Judiciário e direitos humanos. In: ALARCON, Pietro de Jesus Lora; LENZA, Pedro; TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 47-48. 47 Outro ponto interessante é que os tratados incorporados pelo procedimento do §3º serão equivalentes à emenda constitucional. Nesse sentido, a doutrina aponta dois efeitos: a capacidade de reformar a Constituição, o que não é possível tendo-se apenas status materialmente constitucional, e a impossibilidade de os tratados, uma vez incorporados como emendas, serem denunciados, na medida em que a denúncia é um ato unilateral do Executivo pelo qual um Estado se retira de um tratado. PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Tratados Internacionais de Direitos Humanos: análise à luz do Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos nas Relações Internacionais do Brasil. Dissertação de mestrado apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. Fortaleza: 2007, p. 268-275. 48 Referidos entendimentos foram manifestados por conta das discussões levadas a cabo pelo Tribunal em julgados nos quais se discute a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia. O inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal da República estabelece que “não haverá prisão civil por dívida, salvo o devedor de pensão alimentícia e o depositário infiel”. O Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992), em seu art. 7, n. 7, vedou a prisão civil do depositário infiel, somente permitindo-a na hipótese de dívida alimentar. Logo, a priori, percebe-se um conflito entre o texto constitucional e o referido tratado internacional de direitos humanos. Neste sentido, o voto do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343/SP, cujo acórdão foi publicado em 12 de dezembro de 2008, manifesta o entendimento no sentido de que os tratados de direitos humanos passam a ser considerados acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição, ou seja, passam a ter status supralegal. Assim como o Min. Gilmar Mendes, também votaram no mesmo sentido os Ministros Cesar Peluso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandoswki, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio. Recentemente, o Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC 87.585/TO, modificou seu posicionamento anterior, reconhecendo que os tratados de direitos humanos se revestem de hierarquia

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constitucional. O acórdão do referido julgamento foi publicado também no dia 12 de dezembro de 2008, afastando de vez o entendimento do STF de paridade hierárquica entre os tratados de direitos humanos e a legislação ordinária. Até o presente momento, a ementa dos julgamentos não está disponibilizada no site do STF. Entende Portela que, havendo conflito entre a norma constitucional e o tratado internacional de direitos humanos, devem ser aplicados o princípio da primazia dos direitos humanos e o princípio da norma mais favorável. PORTELA, op. cit., p. 277-285. LOPES, Ana Maria D’Ávila. Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo Fundo: UPF, 2001, p. 21. ALEXY, op. cit., p. 122. SILVA, op. cit., p.57. AVILA, op. cit., p. 44. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudos das restrições de direitos fundamentais na teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 94. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 63. BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da fundamentalidade do direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Tese apresentada junto ao Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: 2006, p. 79-80. VILANOVA, Lourival. Lógica Jurídica. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 84-85. Idem, p. 86-87. Idem, p. 106. PERELMAN, Chaïm. In: PUPI, Vergínia K. (Trad.). Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 13. O raciocínio jurídico por indução parte do individual (relações sociais, incluindo os costumes, valores e a jurisprudência) para o geral (norma jurídica). Puigarnau ressalta um dos óbices para a indução, ao acentuar que “salta la vista que el problema de la inducción estriba en determinar cuál sea el fundamento o principio de la misma, esto es, en justificar o legitimar el tránsito de la pluralidad a la totalidad y de la mera realidad a la necessidad”. PUIGARNAU, Jaime M. Mans. Logica para juristas. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S.A., 1978, p. 128. SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz. Porto Alegre: Fabris, 1987, p. 19.

THE NATURE OF FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE PROTECTION OF THEIR ESSENTIAL CONTENT ABSTRACT As postpositivism grants a compelling nature to principles and demonstrates that value is inherent to Law, it becomes more and more necessary to examine basic differences between principles and rules. In this sense, the main purpose of this paper is to analyse the juridical nature of fundamental rights, as establishing their main features is essential for studying their efficacy and their limits, as well as the possibility of collision with other fundamental rights and the protection of their essential content. Methodology used is bibliographical, theoretical, descriptive and exploratory. It is also to be noted that every fundamental right comprises essential REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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features, that stem from their nature of principles and that are deeply related to human dignity and to justice, which is the very core of Law. Nevertheless, such essential content is neither absolute nor unchangeable, but it is flexible, being defined by the interpreter at the moment of the execution of the fundamental rights, according to the facts and juridical issues involved in the actual situation. Keywords: Fundamental Rights. Postpositivism. Juridical nature. Principles. Essential Content.

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ATIVISMO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS: AS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS E O SISTEMA INTERAMERICANO Guilherme Augusto Doin** Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza**** SUMÁRIO: Introdução; 1. Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos; 1.1 O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos; 2. As Organizações NãoGovernamentais ; 2.1 Ativismo Jurídico Interamericano dos Direitos Humanos; 2.2 Ongs e o Sistema Interamericano; 2.2.1 Casos de Notória Repercussão contra a República Federativa do Brasil; 3 Avanços e Desafios das Ongs no Sistema Interamericano; 3.1 Avanços; 3.1.1 Capacidade Postulatória ao Sistema; 3.1.2 O Instituto do Amicus Curiae; 3.1.3 Educação para Defensores Locais dos Direitos Humanos; 3.1.4 Fundo de Amparo Aos Litigantes no Sistema Interamericano, 3.2 Desafios; 3.2.1 Problemas Internos das Ongs; 3.2.2 Legitimidade das entidades não governamentais; 3.2.3 Controle dos Estados; Considerações Finais; Referências.

RESUMO A proteção dos Direitos Humanos no continente americano conta na atualidade com um Sistema criado no seio da Organização dos Estados Americanos (OEA), composto pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos com sede em Washington, D.C., e pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, sediada em São José da Costa Rica. Entretanto, o trabalho destes órgãos no controle dos Estados violadores não pode ser visto de forma isolada, devendo ser levado em conta a atuação da Sociedade Civil Organizada na luta pela promoção e proteção das garantias capitaneadas nos Tratados Internacionais e Regionais dos Direitos Humanos. Quando esta luta passa a contar com a estratégica da litigância internacional no Sistema Interamericano nasce o ativismo jurídico dos direitos humanos, tendo como atores principais aqueles que normalmente têm sido relegados a um segundo plano na Comu* Acadêmico do 8º período do curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, e do 6º período do curso de Administração Pública da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. ** Professora no Curso de Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI- Campus Itajaí (SC).Doutoranda em Derecho Ambiental y Sostenible pela Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Derecho Ambiental y Sostenible pela Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Membro do Grupo de Pesquisa Regulação da Infraestrutura e Juridicidade da Atividade Portuária. Advogada REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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nidade Internacional: as Organizações Não-Governamentais (ONGs). Este artigo procura estudar o papel destas entidades não governamentais no Sistema Interamericano, identificando os principais avanços auferidos por elas, em especial, a conquista de uma capacidade postulatória ante a Comissão de Washington, D.C. originando assim uma pressão jurídica internacional contra os Estados violadores na busca de modificações em suas políticas públicas e estruturas legais. Além disso, procurou-se trazer à baila os principais desafios internos e externos enfrentados pelas Organizações Não-Governamentais na consecução de suas estratégias de trabalho, notadamente, seus problemas de gestão e transparência, abordando-se ainda, a questão da legitimidade destes atores e sua capacidade única na formação de redes de cooperação. O presente trabalho foi concebido segundo o Método Indutivo, acionadas as Técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica. Palavras-chave: Direitos Humanos, Sistema Interamericano, Organizações Não-Governamentais INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo principal estudar as estratégias jurídicas dos atores não-governamentais na proteção e promoção dos direitos humanos (incluindo os direitos civis, sociais e econômicos) junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Tal fenômeno, incorporado por entidades da Sociedade Civil de todo o mundo resultou no processo conhecido por ‘ativismo jurídico internacional’. Na estrutura do projeto, parte-se, inicialmente, para uma definição dos Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos do Homem, especialmente o desenvolvido no quadro da Organização dos Estados Americanos. A partir daí, buscar-se-á investigar os avanços e desafios enfrentados pelas Organizações Não-Governamentais envolvidas no ativismo jurídico interamericano. O presente trabalho foi concebido segundo o Método Indutivo. Nas diversas fases da Pesquisa foram acionadas as Técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica. 1 OS SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS O período pós Segunda Guerra Mundial legou à comunidade internacional frutos que ainda hoje marcam a estrutura dos Estados Democráticos de 176

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Direito. A evolução dos Direitos Humanos1, entretanto, pode ser considerada como uma das principais conquistas deste período, em especial a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948. Desde então, a necessidade da proteção de um mínimo ético2 dos direitos humanos acabou sendo reconhecida por meio de regras internacionais (tais como as Convenções de 1966), transformadas em verdadeiros parâmetros de validade das normas constitucionais no âmbito interno dos Estados3. A partir daí a pessoa humana entra em destaque na comunidade internacional, pois passa da condição de mero espectador do direito para parte integrante de seu ordenamento, não na origem das normas, mas na aplicação delas. No mesmo norte TRINDADE4 aponta a preponderância de valores, tais como a dignidade da pessoa humana, de forma a orientar o fenômeno constitucional dos Estados, ao afirmar que: Não se pode visualizar a humanidade como sujeito de Direito a partir da ótica do Estado; impõe-se reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humanidade. Na medida em que os indivíduos passam a ter seus direitos fundamentais protegidos em esfera supranacional, assiste-se ao conhecido processo de “justicionalização” internacional dos Direitos Humanos5, não somente através da criação de um Sistema Global de proteção (este muito atrelado ao caráter penal, por meio dos Tribunais Penais Internacionais), mas especialmente do surgimento de Sistemas Regionais, notadamente, nos Continentes Europeu, Americano e Africano. Tal processo tem duas conseqüências relevantes trazidas à tona por PIOVESAN6: [...]1ª) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos – isto é, transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania, centrada no Estado, para uma concepção “kantiana” centrada na noção de cidadania universal; e 2ª) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de direitos.

Pode-se assim perceber que não mais estaria livre o Estado de ser responsabilizado internacionalmente pela forma com que trata seus cidadãos. Tal responsabilização acontece de modo mais efetivo quando se envolvem um número restrito de Partes, como ocorre nos Sistemas Regionais em detrimento do Global. Desta feita, salienta SMITH7: Na medida em que um número menor de Estados está envolvido o consenso político se torna mais fácil, [...]. Muitas regiões são relativamente homogêneas com relação à cultura, à língua e às tradições, o que oferece vantagens. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Portanto, quatro são as dimensões alcançadas pela “justicionalização” regional dos direitos humanos: 1) o consenso do mínimo ético irredutível de forma mais eficaz; 2) a celebração da dicotomia direitos humanos vs. Deveres dos Estados na garantia destes direitos; 3) a instituição de órgãos de proteção (Comitês, Comissões e Cortes); e 4) a efetividade de mecanismos de monitoramento convencional (relatórios, petições individuais e etc.)8. 1.1 O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos O Sistema Interamericano de promoção e proteção de direitos humanos se desenvolveu no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA)9 no curso dos últimos quarenta anos, como uma réplica regional do movimento universal e europeu. Este sistema abrange todas as Américas10 e se fundamenta

em duas normativas, a Carta da OEA lida conjuntamente com a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. Ele baseia-se, ainda, em dois órgãos internacionais de supervisão das obrigações dos Estados: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington, D.C., e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na cidade de São José da Costa Rica11.

As necessidades da promoção dos direitos civis, sociais, e econômicos na região encontram fundamento na profunda desigualdade e exclusão social enfrentada pela América Latina, além da fragilidade das recentes instituições democráticas na maior parte de seus Estados-Membros 12. O mecanismo prático do sistema conta com um órgão prévio de submissão dos casos por particulares: a Comissão Interamericana13. Ela é de fato o primeiro organismo de proteção de direitos humanos no Sistema. Seu trabalho é considerado fundamental, pois compreende a admissão e investigação de reclamações de indivíduos ou organizações não-governamentais, inspeções nos territórios dos Estados-membros e solicitação de informes14. Segundo PINTO15, dentre as principais atribuições deste organismo, estão: [...]a) o exame de petições, nas quais se alegue a violação de algum direito protegido pela Declaração Americana dos Direitos Humanos, encaminhadas por um indivíduo ou organizações governamentais ou não-governamentais; b) a elaboração de informes sobre a situação dos direitos humanos em qualquer país do sistema interamericano, incluindo a decisão da Comissão acerca de situações que afetem gravemente a vigência desses direitos; c) a realização de investigações ‘in loco’, em território do Estadomembro a convite deste ou com o seu consentimento, que tenham por objetivo investigar fatos constantes de informes ou petições.

A Comissão Interamericana recebe, portanto, demandas subscritas por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, incluindo organizações não-governamen178

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tais16. Assiste-se, assim, uma interação direta deste órgão com atores não-estatais envolvidos na proteção desses direitos no continente. Após um tratamento prévio pela Comissão de Washington, D.C., incluindo até mesmo averiguações diretas junto aos Estados-membros acusados ante o sistema, os casos poderão ser submetidos para apreciação da Corte Interamericana, que atua como órgão consultivo e jurisdicional17. Acerca de suas atribuições especiais, esclarece o já citado FIX-ZAMUDIO18: [...] a primeira, de natureza consultiva, relativa à interpretação das disposições da Convenção Americana, assim como das disposições de tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos; a segunda, de caráter jurisdicional, referente à solução de controvérsias que se apresentem acerca da interpretação da própria Convenção.

Neste contexto, depreende-se que, muito embora o sistema interamericano esteja profundamente inspirado na experiência jurisdicional européia, avista-se uma diferença fundamental entre os dois, notadamente, no que se refere ao acesso à justiça regional. Isso porque, diferentemente da Corte Européia, que a partir do Protocolo nº 11 passou a aceitar demandas diretas de indivíduos, os pleitos levados à Corte Interamericana por particulares obrigatoriamente passam pela figura da Comissão19. Assim, indivíduos e organizações não-governamentais possuem perante a Corte Interamericana uma capacidade postulatória indireta. De mais a mais, fica claro que a pessoa humana e os Estados não estão sozinhos na conjuntura regional de proteção aos direitos humanos, tendo em vista a inevitável participação das organizações não-governamentais. Apesar disso, a maioria dos estudos acerca do tema tende a não dar o devido valor ao papel destas entidades na proteção dos direitos humanos, negligenciando o trabalho destes verdadeiros ativistas internacionais20. Parte-se agora para um estudo aprofundado destes novos atores do cenário jurídico internacional, investigando a priori suas contribuições nas mais diversas Organizações Internacionais da atualidade, au-delà da temática dos direitos humanos. Num segundo momento, porém, passa-se a esclarecer os conceitos que gravitam em torno do fenômeno do ativismo jurídico internacional liderado por estas organizações. 2 AS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS As Organizações Não-Governamentais (ONGs) estão inseridas no denominado terceiro setor, sendo normalmente classificadas como entidades que embora privadas, possuem uma vocação pública, resultando assim, na constituição de uma esfera pública não estatal21. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Estes atores têm trabalhado ativamente na Comunidade Internacional, representando um importante papel em certas áreas específicas, tais como a proteção ambiental e o Direito Humanitário (nascido com a Convenção de Genebra de 1864, sob a influência e os auspícios do Comitê Internacional da Cruz Vermelha - CICR). Contudo, as ONGs não possuem uma Personalidade Jurídica Internacional propriamente dita, pois que não são criadas pela vontade dos Estados, mas sim, pela iniciativa privada perseguindo uma finalidade nãolucrativa. CANAL-FORGUES e RAMBAUD22 conceituam tais entidades da seguinte forma: São grupos de pessoas privadas de nacionalidades diferentes, constituídos normalmente sob a forma de associação ou fundação, que, agindo no plano internacional ao lado dos Estados e das organizações internacionais, desempenham um importante papel na vida internacional. Seus domínios de intervenção são variados e correspondem freqüentemente às preocupações da comunidade internacional […] quanto mais elas se associarem aos trabalhos das organizações internacionais […] mais elas se encontrarão na origem da elaboração de novas regras ou encarregadas do controle de suas aplicações. […] Nenhuma regra geral rege atualmente estas organizações. Elas relevam do direito interno do lugar de seu nascimento. Ninguém jamais cogitou conceder-lhe uma verdadeira “personalidade jurídica” internacional[...]

O termo “ONG” nasceu no ano de 1945, como jargão das Nações Unidas, para diferenciar na Carta de São Francisco23, todas as organizações diferentes dos Estados. Muito embora inicialmente estivesse compreendido em seu conceito todas as outras Organizações que não faziam parte de governo algum, tais como Empresas e Grupos Nacionalistas ou Terroristas, sua definição foi evoluindo até alcançar a noção atualmente difundida e aceita pela própria ONU. Apesar de contarem apenas com a Personalidade Jurídica de seu Estado Sede, as ONGs têm ganhado espaço nas discussões internacionais. O artigo 71 da Carta de São Francisco24, por exemplo, dispõe acerca destas Organizações: Artigo 71 - O Conselho Econômico e Social poderá entrar nos entendimentos convenientes para a consulta com organizações não governamentais, encarregadas de questões que estiverem dentro da sua própria competência. Tais entendimentos poderão ser feitos com organizações internacionais e, quando for o caso, com organizações nacionais, depois de efetuadas consultas com o Membro das Nações Unidas no caso.

A atuação das ONGs, contudo, não se limita ao âmbito do ECOSOC no Sistema das Nações Unidas. Com a Reforma da ONU, todos os seus órgãos 180

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principais estão sendo convocados a engajarem-se na formação de parcerias e diálogos institucionalizados com a Sociedade Civil Organizada25. Observa-se, portanto, um crescente reconhecimento destes atores na Comunidade Internacional, através da formulação de políticas globais, especialmente no contexto das Nações Unidas, conforme ressalta VIEIRA26, citando o então Secretário Geral da ONU, ANNAN: Em 1947, os Estados-membros da ONU eram virtualmente os únicos atores no processo internacional. As organizações nãogovernamentais eram vistas como aliados da ONU, importantes, mas modestos, e sobretudo como mobilizadores de opinião pública em apoio unicamente aos objetivos e valores da Carta das Nações Unidas. Hoje, a relação se transformou numa parceria. As ONGs agora são vistas como parceiras indispensáveis da ONU, não apenas na mobilização da opinião pública, mas também no processo de deliberação e formulação de políticas, e, ainda mais importante, na execução de políticas, no trabalho de campo (press release do Secretariado-Geral da ONU, de 10/09/1997)

Desta forma, verifica-se que as ONGs vêm formalizando seu contato com inúmeras Organizações Internacionais, de vocação universal e regional, através de mecanismos formais de participação (como ocorre com o Conselho Econômico e Social da ONU, por exemplo). Resta agora investigar a relação destas entidades não governamentais de forma direta com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, através de sua atuação jurídica transnacional. 2.1 Ativismo Jurídico Interamericano dos Direitos Humanos Duas classes entre as Organizações Não-Governamentais atuantes nas questões relativas aos Direitos Humanos podem ser destacadas. De um lado, constata-se a existência de uma gama de entidades nacionais, preocupadas com a proteção dos direitos e garantias fundamentais no nível local. De outro lado, porém, encontram-se as denominadas International Non-Governmental Organizations (INGOs), as quais em grande parte já estão inseridas nos mecanismos formais de participação da sociedade civil propostos pelos Organismos Internacionais, mencionados no item anterior. No que tange à promoção e proteção de direitos humanos, essas ONGs Internacionais, representam um importante papel, pois que deram início ao denominado fenômeno do ativismo jurídico internacional dos direitos humanos, aproveitando-se dos sistemas regionais de proteção27. Neste sentido esclarece SANTOS28: Por ativismo jurídico transnacional refiro-me a um tipo de ativismo focado na ação legal engajada, através das cortes internacionais ou instituições quase judiciais, em fortalecer as demandas dos movimentos sociais; realizar mudanças legais e políticas internas; reestruturar ou definir direitos humanos. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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As Organizações Não-Governamentais Internacionais (INGOs) acabaram se especializando na militância jurídica dos direitos humanos, uma vez que em sua maioria, já foram criadas para atuar nesta área, em escala universal (AMARAL)29. Assim, siglas conhecidas aparecem em mente, tais como o CEJIL (Centro pela Justiça e Direito Internacional), Human Rights Watch, Amnesty International, Médecins Sans Frontières, também vistas como representantes das ONGs de primeiro mundo (first world NGOs)30. Estes atores possuem diversas estratégias para atingirem seus objetivos, que vão desde campanhas locais até cursos para defensores e promotores de direitos humanos31. Destaca-se, que por ser o acesso direto à “justiça regional” tolhido aos particulares, vez que apenas a Comissão Interamericana e os Estados (que ratificaram o artigo 61 da Convenção de 1969) podem pleitear ante a Corte Interamericana de São José, essas ONGs ganharam uma capacidade postulatória apenas ante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos de Washington, D.C. Este órgão é denominado de “quase judicial”, pois procura resolver possíveis conflitos de violações pelos Estados, de forma amigável, antes de engendrar um processo internacional propriamente dito. O acesso à Comissão por ONGs é garantido pelo artigo 44 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 196932, in verbis: Artigo 44 Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade nãogovernamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado Parte.

Para tanto, basta que a Organização Não-Governamental demandante respeite os critérios estabelecidos nos artigos 46 e 47 da Convenção, além das regras formais dispostas no regulamento da CIDH33. Frise-se, porém, que as entidades da sociedade civil organizada atuantes no nível local não foram excluídas do ativismo jurídico interamericano. O que se percebe na realidade, é que sua atuação ante o sistema fica condicionada a formação de parcerias com as Entidades internacionais já especializadas no assunto34. Para ilustrar a importância das ONGs na conjuntura do Sistema Interamericano buscou-se colacionar alguns casos importantes envolvendo as Organizações Não-Governamentais, notadamente àqueles concernentes à República Federativa do Brasil. Antes, porém, procede-se a uma avaliação desta participação procurando destacar quais as conquistas e necessidades de aprimoramento na interação destes atores não-estatais com o Sistema Interamericano.

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2.2 ONGs e o Sistema Interamericano No estudo do Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos, flagra-se que a sociedade civil organizada tem participado de forma ativa, em especial, do campo de jurisdição contenciosa, vez que a maior parte das denúncias submetidas à Comissão são oriundas de ONGs35. Os dados falam por si só. Flávia Piovesan aponta que até o ano de 2001, 100% das reclamações por violação dos direitos humanos apresentadas contra a República Federativa do Brasil, no período de redemocratização, foram encaminhadas por Organizações Não-Governamentais locais ou internacionais36. A questão que vem à mente, porém, diz respeito aos motivos que levam ao caminho escolhido por esses ativistas dos direitos humanos, a saber, a litigância internacional. Litigância esta, que num primeiro momento, não passa de um caráter quase judicial como já mencionado alhures. À primeira vista, parece que as ONGs Internacionais dedicadas ao tema estariam apenas servindo de meros advogados de causas judiciais perante um Sistema Judicial Internacional. Tal hipótese não encontra fundamento quando, em uma análise mais apurada das conseqüências do ativismo jurídico dos direitos humanos, observase que as intenções destas ONGs vão muito além do ganho de causas para particulares. Seu principal papel é o de pressionar mudanças na estrutura dos Estados envolvidos no litígio. Além do mais, os casos levados perante a Comissão ensejam a diversos pareceres e análises por parte deste órgão, pressionando o Estado violador a tomar uma atitude não apenas em relação à vítima ad causam, mas forçando o Estado em questão a rever toda sua estrutura jurídica ou funcional na matéria violada. Desta forma, verifica-se que as ONGs atuam num viés de accountability, onde sua missão passa a ser o monitoramento dos direitos humanos nas políticas públicas dos Estados Partes37. Trabalha-se, assim com a idéia de criar exemplos, não apenas interessando-se na solução de um caso individual, mas igualmente na mudança da polícia das leis e do Estado38. Lembra-se ainda, que as entidades não governamentais, ao questionarem acerca dos direitos contidos nos Pactos Internacionais rompem a inércia do sistema judicial interamericano e fazem com que sejam formados entendimentos sobre pontos controversos dos textos internacionais, através de decisões judiciais da Corte Interamericana. Destaca-se, sobretudo, que as redes formadas pelas ONGs Internacionais e as entidades não governamentais locais constituem, igualmente, uma relação de ganhos recíprocos, na medida em que os atores locais ganham mais estratégias para atingirem seus objetivos e promoverem os direitos humanos, passando a contar com um forte braço jurídico internacional contra um possível Estado violador; as ONGs Internacionais, por sua vez, ganham em legitimidade, vez que a formação de parcerias pode amenizar as críticas de sua origem, normalmente, de países do Norte (first nation NGOs). REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Ademais, a atuação da sociedade civil organizada não está limitada à Comissão Interamericana. No órgão jurisdicional do sistema, as ONGs vêm assumindo um papel denominado de Amicus Curiae, colaborando na formação de entendimentos dos juízes internacionais e contribuindo na elucidação de questões concernentes aos direitos do homem. Por todo o exposto, pode-se perceber que a Sociedade Civil Internacional encontra-se no Sistema Interamericano para desempenhar um papel que vai muito além da advocacia pura dos direitos humanos. A comprovação desta afirmação será constatada com a análise de alguns casos acionados por ONGs contra a República Federativa do Brasil. 2.2.1 Casos de notória repercussão contra a República Federativa do Brasil Os frutos do trabalho de ativistas dos direitos humanos estão nas modificações legais e nas inovadoras políticas públicas desenvolvidas no Brasil, desde a aceitação da competência do Sistema Interamericano pelo país. Apesar disso, nota-se que a maior parte dos operadores do direito não se dão conta da atuação destes atores não estatais que se encontram na origem de instrumentos jurídicos utilizados por eles em seu dia a dia. Na busca de comprovar, no campo prático, que a atuação das organizações não-governamentais promotoras dos direitos humanos (e das redes por elas estabelecidas) tem influenciado a operacionalização do direito interno brasileiro, procurou-se trazer à baila dois casos conhecidos, objetos de denúncias ante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado brasileiro. A primeira ocorrência a ser lembrada diz respeito à luta de uma forte rede de Organizações Não-Governamentais pelo direito à memória no Brasil. Cuida-se do caso “Guerrilha do Araguaia”, onde os familiares das vítimas juntamente com as ONGs Internacionais CEJIL e Americas/Human Rights Watch em parceria com as entidades locais “Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM/RJ)” e “Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP/SP)” reivindicam uma reparação do Estado brasileiro. Os fundamentos do caso são colhidos diretamente da demanda apresentada pela Comissão Interamericana à Corte de São José da Costa Rica, datada de 26 de março de 200939: [...]em virtude de sua responsabilidade pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil (doravante “PCdoB”) e camponeses da região, [...] como resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964 – 1985).

Resumidamente, este caso ilustra a dificuldade de pôr em ação os direitos capitaneados nas Cartas Interamericanas de Proteção dos Direitos Humanos, às 184

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quais o Brasil é signatário. Além de uma batalha jurídica interna, que começou no ano de 1982, o caso foi admitido pela Comissão de Washington D.C. em 2009, e posteriormente levado perante o órgão jurisdicional do Sistema. O intuito neste momento é o de notar que, no caso em apreço, operacionalizou-se de forma clara a parceria entre ONGs locais e transnacionais. Isso porque, apesar desta batalha estar longe de ser resolvida, a pressão exercida pelo acesso à Justiça Regional no Estado brasileiro já resultou na abertura de uma Comissão Interministerial para solução do caso. Além disso, as demandas que podem ser lidas nas entrelinhas desta ação vêm sendo objeto do polêmico Programa Nacional de Direitos Humanos do Brasil (PNDH) que já está na sua terceira edição40. Vale ressaltar que a estratégia de utilização do Sistema Regional de Proteção não foi a única alternativa colocada em prática pelos peticionários do caso, que também se utilizaram de outros meios de mobilização social, notadamente, a mídia. Importante destacar as palavras de SANTOS41: Diferentemente de ONGs de direitos humanos como o CEJIL, que se especializaram na defesa de causas legais de direitos humanos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o GTNM/RJ e CFMDP/SP vêem a mobilização jurídica interna e transnacional como ferramentas adicionais destinadas ao fortalecimento de suas lutas sociais e políticas.

Em que pese a mobilização jurídica transnacional aparentar ser uma opção “adicional” na luta pelos direitos humanos, o próximo caso a ser aqui retratado exemplifica que a luta dos ativistas “jurídicos” dos direitos humanos pode influenciar de forma direta o direito interno do Estado violador. Trata-se, portanto, do caso Maria da Penha. Recente e polêmico, eis aí uma ocorrência de inegável repercussão social e jurídica no Brasil. Segundo informações prestadas pelo CEJIL – Organização que representou a vítima perante o Sistema Interamericano – depreende-se, sucintamente, que Maria da Penha Fernandes foi vítima de violência doméstica durante anos, tendo seu marido inclusive disparado contra ela, deixando-a paraplégica. Após quase duas décadas de luta processual na Justiça Brasileira, e do flagrante descaso da República Federativa do Brasil com as questões concernentes à violência doméstica sofrida por milhares de mulheres no país, Maria da Penha em pareceria com a ONG supramencionada apresentou uma demanda ante a Comissão de Washington, D.C. em 1998. Cumpre destacar, que, no caso em tela, a participação do CEJIL (Centro de Estudos de Justiça e Direito Internacional), em conjunto com outras organizações da sociedade civil de interesse local (em especial a AGENDE – Ações em Cidadania, Gênero e Desenvolvimento) não teve como motivação principal apenas a busca pela reparação à vítima Maria da Penha Fernandes, mas tamREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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bém ao desencadeamento de políticas de proteção à mulher, como demonstra o relatório destas entidades não-governamentais: A razão para isso é que além de ter declarado a responsabilidade do Estado Brasileiro por negligência, omissão e condescendência com relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando a adoção de medidas relacionadas ao caso individual (parágrafo 61, itens 1,2 e 3) – [...] O caso da Maria da Penha, conseqüentemente, tornou-se paradigmático, porque expõe o modelo sistemático de violência doméstica contra as mulheres e estabelece a responsabilidade do estado no âmbito internacional em razão da ineficiência do sistema judicial.42

Destaca-se, ainda, que o primeiro relatório sobre o caso publicado pela CIDH data do ano de 2001. No ano de 2002, o governo brasileiro criou a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, e apenas em 2006 foi promulgada no Brasil a Lei 11.340/2006, destinada à proteção da mulher no ambiente doméstico, batizada simbolicamente de Lei Maria da Penha. Comprova-se, assim, que como brevemente explanado por meio da retrospecção destes dois casos, as Organizações Não-Governamentais têm sim jogado um papel crucial no monitoramento e pressão para transformações em matérias de direitos humanos, especialmente no Brasil. Justamente, em nome da ascensão na participação destes atores no sistema, que se propõe agora avaliar os avanços e desafios enfrentados por eles no contexto do Sistema Interamericano de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos. 3 AVANÇOS E DESAFIOS DAS ONGS NO SISTEMA INTERAMERICANO

3.1 Avanços Indo além das modificações legais e políticas ocasionadas pela litigância internacional das ONGs, buscou-se colacionar, brevemente, nos próximos tópicos alguns dos avanços que a Sociedade Civil Organizada tem obtido no contexto do ativismo jurídico pelos direitos humanos no continente Americano, a saber: a) Capacidade Postulatória ao Sistema; b) Superveniência do instituto do Amicus Curiae; c) Educação para defensores locais dos direitos humanos; e por fim, d) criação do Fundo de Amparo aos Litigantes no Sistema Interamericano. 3.1.1 Capacidade Postulatória ao Sistema O primeiro ponto destacado é o ganho pelas ONGs de uma Capacidade Postulatória, ainda que indireta perante o Sistema. Pese não poderem acessar diretamente a Corte de São José da Costa Rica, nos termos do artigo 44 do Pacto de 1969 garante-se a estes atores a postulação perante a Comissão de 186

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Washington. Eis um dos principais pontos que diferenciam o Sistema Europeu de Direitos Humanos do Sistema Interamericano. No primeiro, indivíduos possuem uma Capacidade Postulatória Direta perante a Corte Européia. Já no segundo, como evidenciado neste projeto, indivíduos e ONGs devem inicialmente provocar o órgão quase judicial do Sistema (Comissão) que procurará resolver o litígio antes de levá-lo ao conhecimento da Corte. Este mecanismo judicial acabou concedendo às Organizações NãoGovernamentais uma importância e participação muito maior no continente americano do que no Europeu. Nas palavras de PIOVESAN43: A estratégia de litigância das ONGs tem sido utilizar o sistema interamericano para obter ganhos e avanços no regime interno de proteção dos direitos humanos. Neste ponto específico, uma vez mais o sistema interamericano se distingue do sistema europeu, cujos frutos têm decorrido em grande parte da atuação de indivíduos singularmente considerados [...] Assim, com o intenso envolvimento das organizações não-governamentais, a partir de articuladas e competentes estratégias de litigância, o sistema interamericano tem constituído efetivo instrumento para o fortalecimento da proteção dos direitos humanos no âmbito nacional.

A mesma autora, entretanto coloca como um desafio do Sistema, a concessão de uma capacidade postulatória direta às ONGs à Corte de São José. Todavia, há que se ressaltarem as dificuldades de colocar em prática tal mecanismo no continente Americano, que, ao contrário do europeu, deve conviver com profundas desigualdades sociais e econômicas, especialmente, no que tange aos países da América Latina. Por este motivo, sobreleva-se, aqui, a importância do trabalho da Comissão de Washington que, ao atender as demandas levadas por indivíduos, procura achar soluções amigáveis aos mais variados conflitos, evitando, assim, uma sobrecarga de trabalho para a Corte Interamericana. 3.1.2 O Instituto do Amicus Curiae Uma das principais formas de interação direta entre as Organizações NãoGovernamentais e a Corte Interamericana de Direitos Humanos dá-se através do Instituto denominado Amicus Curiae. A expressão vem do latim e pode ser traduzida como “Amigos da Corte”. Desta feita, diversas organizações se colocam a disposição para auxiliar o trabalho dos juízes de São José da Costa Rica, na busca de uma solução imparcial e capacitada para temas em direitos humanos. O CEJIL atua como Amicus Curiae em diversos processos internacionais, portanto vale a pena destacar o explanado por esta organização:44 Neste sentido, o regulamento da Corte estabelece em seu artigo 44.1 que esta poderá, a qualquer tempo da causa, ouvir a REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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qualquer pessoa cujo testemunho, declaração ou opinião estime pertinente. Este preceito consultivo é o fundamento da possibilidade de intervir no processo na qualidade de amicus curiae. Os terceiros intervenientes podem ser organizações internacionais, não-governamentais ou pessoas naturais que não se constituem parte no litígio.

Cumpre destacar que estes pareceres podem ser concedidos não apenas à Corte mas também a órgãos judiciais nacionais ou ainda à própria Comissão Interamericana de Washington. 3.1.3 Educação para defensores locais dos Direitos Humanos O papel das Organizações Não-Governamentais vai muito além do ativismo “jurídico” nos direitos humanos. Isso porque, há também outra atuação desenvolvida por estes atores que compreende a educação para a promoção desses direitos no continente, notadamente, nos países latino americanos. A maior parte das ONGs Internacionais mantém programas para a educação de ativistas dos direitos humanos em todos os países onde atuam, entretanto cabe muito mais às entidades não governamentais locais esta tarefa. No Brasil algumas Organizações podem ser destacadas como educadoras de tais direitos, optou-se por tratar brevemente de duas ONGs em especial. A primeira é a denominada Justiça Global. Assim como diversas organizações da matéria, ela atua na defesa e promoção dos direitos humanos através de múltiplas estratégias, sendo apenas uma delas a litigância internacional. Destaca-se aqui sua linha de atuação voltada à “Formação de defensores dos direitos humanos”, o que faz por meio da organização de cursos, seminários e debates, especialmente na região do Rio de Janeiro.45 Outra entidade que merece destaque no campo da educação nos direitos humanos é o Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH) situado em Joinville, Estado de Santa Catarina. Atuando nos moldes do Justiça Global, trata-se de uma organização praticamente voltada à educação sobre a temática dos direitos humanos, tal como pode se depreender de sua página oficial: Nossa missão é promover a Educação em Direitos Humanos no Brasil e região através de treinamentos e oficinas temáticas para estudantes e professores de escolas e Universidades, funcionários do Estado, operadores do Direitos e ativistas de organizações não-governamentais46. Inúmeras outras entidades trabalham com estas temáticas por toda a América Latina. Convêm lembrar, que seu trabalho normalmente vem acompanhado de parcerias com outras Organizações Não-Governamentais (locais ou internacionais), órgãos governamentais (em especial o Ministério Público), Empresas e Sociedades de Advogados, ou ainda Centros Educacionais e Universidades.

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3.1.4 Fundo de Amparo aos Litigantes no Sistema Interamericano O recente Fundo de Amparo aos Litigantes no Sistema Interamericano foi aprovado em Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, passando a entrar em vigor a parte de 1º de junho de 201047. O fundo tem por objetivo principal tornar o processo internacional ante à Corte mais acessível às vítimas e Organizações que as representem. A criação do fundo é fruto do trabalho de diversas ONGs ativistas de direitos humanos no Sistema, em especial o CEJIL. A necessidade de sua criação encontra fundamento no fato de um processo judicial na Corte custar em média cerca de U$S 55.000,00.48 O pedido deve ser feito através de solicitação à Corte pela própria vítima. Espera-se que esta ajuda, que conta com recursos oriundos de diversos países e Organizações, possa encorajar ainda mais a utilização da Justiça Regional no continente americano. 3.2 Desafios As organizações não-governamentais dos direitos humanos, locais ou internacionais, assim como todas as demais criações humanas encontram-se sujeitas a desvios e provações, de ordem tanto interna quanto externa. Este ponto do projeto procura evidenciar os principais desafios destes atores, devendo ser encarados na realidade, como oportunidades para seu aprimoramento. 3.2.1 Problemas internos das ONGs Fatores de nível interno podem ser destacados como um dos principais desafios das Organizações Não-Governamentais. Afinal, para que possam desempenhar seu constante papel enquanto movimento social, seja no nível local, regional ou global, necessitam de um mínimo de preparo administrativo, político e financeiro. Sendo atores do espaço público, mesmo que privados, não há como negar sua visibilidade social. Por este mesmo motivo, as cobranças sociais em relação às ONGs têm em muito aumentado ao longo do tempo. Desta forma, gestores de Organizações dos Direitos Humanos passam a lidar com inúmeros desafios estratégicos que podem ir desde a captação de recursos e voluntários, até a conciliação de seus trabalhos na agenda de políticas nacionais e internacionais. Tudo isso, deve ser feito, diga-se de passagem, sob a ótica imperiosa da sustentabilidade. Essa conjuntura que põe em risco o trabalho das ONGs é bem colocada por ARMANI ao elencar os principais desafios na governança institucional de ONGs, aplicáveis de forma inequívoca a todas as organizações ativistas de direitos humanos no Brasil e na América Latina49: REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Ser capaz de se comunicar com a sociedade, mobilizar uma base de apoio político a causas sociais, projetar-se como sujeito político no espaço público e ampliar a geração de recursos materiais e financeiros localmente são processos que exigem grande preparação institucional e o alinhamento da gestão e cultura da organização ao princípio de que toda iniciativa de mobilização de recursos é um ato político e de educação cidadã.

Neste norte, pode ser difícil tornar duradouro o valor social do projeto de uma Organização Não-Governamental caso seus líderes (diretores, conselheiros, mantenedores) não se proponham a uma gestão pautada na sustentabilidade, na boa comunicação social e principalmente na transparência. Este último ponto tem trazido graves críticas às ONGs. Como ressalta Roberto Cuellar chegou-se inclusive a afirmar que por não serem suficientemente representativas estas organizações podem tornar-se um empecilho à própria democracia50. Pode-se considerar, portanto, que além de trabalharem pelas modificações a que se propõem, as ONGs de direitos humanos devem prezar por uma gestão aberta, transparente, inclusive para que possam auferir diversas fontes de recursos, capacitando-se assim, para continuar e melhorar seu trabalho de promoção e defesa dos direitos humanos. 3.2.2 Legitimidade das entidades não-governamentais Um segundo ponto interessante a ser destacado no rol de desafios da sociedade civil organizada faz menção ao fato de grande parte das organizações que se dizem monitoras e promotoras dos direitos humanos serem oriundas de países do norte, notadamente àquelas que atuam no contexto latino-americano. Como visto anteriormente, isso ocorre pela própria vocação universal destas organizações. Contudo críticas óbvias podem ser reiteradas a elas, na medida que uma ONG norteamericana, por exemplo, coloque-se na discussão de questões atentatórias dos direitos humanos em países da América Latina, sem que seu país de origem tenha sequer ratificado o Pacto de São José. O desafio de sua legitimidade nesta situação vem sendo respondido através do estabelecimento de redes entre ONGs transnacionais e locais. Tal qual enunciado nos casos acima estudados, observa-se que grande parte dos casos encaminhados à Comissão Interamericana são propostas de redes de proteção dos direitos humanos que incluem entidades de todos os tamanhos51. 3.2.3 Controle dos Estados Ao arremate, destaca-se outro desafio que demanda esforços hercúleos para ser superado: controlar um Estado violador. A problemática do controle dos Estados passa por diversos pontos, especialmente, o descaso destes com as decisões e pareceres emitidos pela Comissão e Corte Interamericana; a dificul190

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dade de se encontrar mecanismos de sanção aos violadores; e principalmente, a complexidade de um controle “externo” exercido por Organizações NãoGovernamentais que podem vir a receber recursos deste mesmo Estado. Neste sentido, o comportamento do Estado em relação às investigações e casos dos Direitos Humanos deve ser monitorado não apenas pela Sociedade Civil Organizada, mas também pela mídia e pela pressão social. No tocante a percepção de recursos pelas ONGs no Brasil, isto ocorre tendo em vista a entrada em vigor da Lei 9.790/99, conhecida como “Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público”. As ONGs atuantes nos direitos humanos encaixam-se perfeitamente no quadro de entidades beneficiadas pelos Termos de Parceria com o poder Público, podendo assim, vir a receber fundos públicos para cumprirem seu trabalho. A questão estaria contida em poder separar nitidamente a causa da percepção de recursos (ou seja, a prestação de um serviço de interesse público) e os motivos que conduzem a ação das ONGs monitoras dos deveres do Estado em matéria de Direitos Humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante todo o explanado, pode-se concluir que as Organizações NãoGovernamentais vêm assumindo um papel crucial no Sistema Interamericano dos Direitos Humanos, seja denunciando casos violadores ante a Comissão de Washington, auxiliando os trabalhos da Corte de São José, ou até mesmo através de suas ações in loco, na concreta fiscalização e monitoramento de violações dos termos do Pacto de São José da Costa Rica em praticamente todos os Estados americanos. Ao longo do tempo, estes atores não-Estatais têm obtido êxito na mudança de políticas públicas e estruturas legais, fazendo com que o ativismo jurídico dos direitos humanos, no Sistema Interamericano, não seja apenas uma mera advocacia destes direitos, mas sim uma forma de atuação estratégica destas entidades. Ademais, a formação de redes entre ONGs internacionais e locais vêm a corroborar com a importância do trabalho conjunto destas organizações, compreendendo não apenas a litigância internacional, mas igualmente a educação para os direitos humanos no continente, além de campanhas contra atos estatais que violem as garantias individuais e coletivas, sem mencionar modalidades de pressão social por meio da opinião pública e da mídia. Por fim, não há como deixar de mencionar os desafios colocados às ONGs que como mencionado anteriormente, devem superar seus problemas internos e sua legitimidade na atuação social, relembrando a constante luta pela transparência em sua gestão. Além disso, o controle estatal e outros problemas como a transnacionalização de atos contrários aos direitos humanos também deverão ser colocados em pauta no intuito de garantir sustentabilidade ao trabalho das ONGs ativistas dos diretos humanos no continente americano. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Uma célebre definição do termo em comento é encontrada em Norberto Bobbio: “[...] são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25.) REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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2 A expressão remete, segundo Flávia Piovesan, a idéia de que os Estados “fixam um consenso internacional sobre a necessidade de adotar parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos (os tratados não são o ‘teto máximo’ de proteção, mas o ‘piso mínimo’ para garantir a dignidade humana[...])’”. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 55.) 3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 1217. 4 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; ROBLES, Manuel Ventura. El futuro de la corte interamericana de derechos humanos. 2. ed. San José, Costa Rica: Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2004, p. 206. 5 A justicionalização internacional, por si, não é um processo exclusivo dos Direitos Humanos, é na realidade um tema que há muito tem sido debatido entre os internacionalistas. Cecília Macdowell Santos expõe que: “Os juristas têm analisado a internacionalização do judiciário a partir de uma perspectiva de resolução de disputas, debatendo se a judicialização global é inevitável e desejável para o fortalecimento eqüitativo do Estado de Direito. Em um lado do debate estão aqueles a favor de uma regulamentação jurídica global sobre jurisdição e julgamentos, tanto no âmbito cível e comercial, quanto para a resolução de questões criminais. [...] No outro lado do debate estão aqueles que não vêem a judicionalização global como um desenvolvimento inevitável do direito internacional e parecem estar menos entusiasmados com esta tendência.” (SANTOS, Cecília Macdowell. Ativismo jurídico transnacional e o Estado: reflexões sobre os casos apresentados contra o Brasil na Comissão Interamericana de direitos humanos. Sur-Revista Internacional de Direitos Humanos, p. 29. Disponível em: <http://www.surjournal.org/conteudos/ getArtigo7.php?artigo=7,port,artigo_santos. htm>. Acesso em: 04 ago. 2010.) 6 PIOVESAN,op. cit., p. 12. 7 SMITH, Rhona. Textbook on international human rights. Oxford: Oxford University Press, 200, p. 84. 8 PIOVESAN, op. cit., p. 55. 9 Acerca desta Organização Regional esclarece o Manual para la Participación de la Sociedad Civil en la OEA y las Cumbres de las Américas: “La Organización de los Estados Americanos es el principal foro politico del Hemisferio para el dialogo multilateral y el establecimiento de la agenda interamericana. La OEA desempeña un papel fundamental em promover la paz, la democracia y la justicia, fomentar la solidaridad, fortalecer la cooperatión y defender la soberanía, la integridad territorial y la independencia de sus Estados Miembros” (ORGANIZAÇÃO dos Estados Americanos. Manual para la Participación de la Sociedad Civil en la OEA y las Cumbres de las Américas, p. 4) 10 Ressalva-se, porém, que diversos Estados signatários do Pacto de São José da Costa Rica não reconhecem plenamente a competência do Sistema, tendo em vista a não ratificação do artigo 62 da Convenção que dispõe sobre a competência da Corte Interamericana. 11 GALLI, Maria Beatriz; DULITZKY, Ariel. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o seu papel central no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia. (Coord.) O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o direito brasileiro. p. 53-80. 12 Sobre o assunto vale a pena citar Flávia Piovesan: “[...] a região latino-americana tem um duplo desafio: romper em definitivo com o legado da cultura autoritária ditatorial e consolidar o regime democrático, com pleno respeito aos direitos humanos […]. há uma relação indissociável entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento.[...] Em outras palavras, a densificação do regime democrático na região requer o enfrentamento do elevado padrão de violação aos direitos econômicos, sociais e culturais, em face do alto grau de exclusão e desigualdade social, que compromete a vigência plena dos direitos humanos na região, sendo fator de instabilidade ao próprio regime democrático.” (PIOVESAN, op. cit., p. 86-87.) 13 Refere-se aqui, aos casos que não sejam encaminhados à Corte diretamente pelos Estados-partes da Convenção Interamericana de 1969. Estes poderão encaminhar uma demanda sem passar pela Comissão Interamericana, nos termos do artigo 61 da Convenção. 14 FIX-ZAMUDIO, Héctor. Protección jurídica de los derechos humanos. México: Comisión Nacional de Derechos Humanos, 1991, p. 164. 15 PINTO, Monica. Derecho internaccional de los derechos humanos: breve visión de los mecanismos de protección em El sistema interamericano. Montevidéo: Comisión Internacional de juristas/Colégios de Abogados Del Uruguay, 1993, p. 83. 16 BUERGENTHAL, Thomas; NORRIS, Robert. Human rights: the inter-american system. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, v. 45/46, n. 84/86, p. 11-36, dez. 1992/mai. 1993, p. 454.

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17 Cumpre resgatar que no plano contencioso as decisões proferidas pela Corte são juridicamente vinculantes aos Estados-membros da Convenção Interamericana que aceitem sua competência nos termos do artigo 62. A Corte poderá condenar o Estado violador de direitos humanos e garantias fundamentais, ordenando-lhes o pagamento de indenizações às vítimas. 18 FIX-ZAMUDIO, op. cit., p. 177. 19 Imperioso trazer em voga o destaque de Cecília Macdowell Santos: “Considerando que a CIDH e a Corte possuem uma função subsidiária vis-à-vis o sistema judicial interno, a admissibilidade da denúncia pela CIDH está sujeita ao esgotamento dos recursos internos pelo denunciante. Apesar da CIDH poder aceitar denúncias individuais e realizar investigações in loco, ela não é um órgão judicial e não pode proferir decisões judiciais vinculantes”. (SANTOS, op. cit., p. 36) 20 SANTOS, op. cit., p. 27. 21 Esta esfera é definida em Teixeira como uma “dimensão aberta, plural, permeável, autônoma de interação social”. Assim, a intenção neste trabalho é a de se ater, não apenas ao conceito excludente do termo ONG (aquilo que não faz parte do governo), encarando-o também de maneira mais ampla. Por essas razões, ONGs e Sociedade Civil Organizada são por vezes tratadas aqui como sinônimos. Vale destacar a definição de ‘sociedade civil’ trazida por Maia Gelman Amaral: “[...] conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão de diferentes ideologias, compreendendo todas as associações civis que se formam em torno de interesses comuns (universidades, escolas, grupos religiosos, partidos políticos, sindicatos, organizações profissionais, associações de moradores, organizações não-governamentais... [...]” (AMARAL, Maia Gelman. A sociedade civil brasileira no monitoramento dos direitos humanos: os relatórios alternativos. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006, p. 42.) e (TEIXEIRA, Elenaldo Celso. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. 2. ed. São Paulo: Corte; Recife: EQUIP; Salvador: UFBA, 2001, p. 46.) 22 CANAL-FORGUES, Érick; RAMBAUD, Patric. Droit international public. 2. ed. Paris: Flammarion, 2007, p. 256-258. 23 A Carta de São Francisco, assim conhecida por ter sido assinada na cidade norteamericana de São Francisco, Estado da Califórnia no ano de 1945, é o tratado constitutivo da Organização das Nações Unidas. 24 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Carta de São Francisco. ONU. Disponível em: <http://www. onu-brasil.org.br/doc5.php>. Acesso em: 02 set. 2010. 25 Tal qual propõe o Relatório especial da 60ª Assembléia Geral sobre relações entre Estados Membros e ONGs, datada de 1º de setembro de 2006: “A consulta de ONG com governos no nível nacional é indispensável, e alguns Estados Membros da ONU têm incluído representantes em suas delegações em conferências especiais da ONU e comissões. Mas vale lembrar que ONG’s nas delegações oficiais não falam livremente em seu próprio nome. Tal processo não substitui ou reduz a necessidade de um engajamento independente das ONG’s a nível internacional. Na realidade, crescentes questões globais requerem discussões de políticas globais que podem ser muito beneficiadas com a participação das ONGs.” (UNITED Nations Non-Governmental Liaison Service. Relatório da 60ª Assembleia Geral das Nações Unidas. UNNGLS. Disponível em: <http://www.un-ngls.org/spip.php?page=article_fr_s&id_article=1303> Acesso em: 20/08/2009.) 26 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 121. 27 Ressalta-se, porém que o início, propriamente dito, do ativismo internacional dos direitos humanos tem origem anterior a isto. Tal como ressalta Maia Gelman Amaral: “[...], o ativismo internacional de direitos humanos encontra seus primeiros ecos históricos em campanhas muito mais antigas como a campanha anglo-americana para extinguir a escravidão nos EUA (1833-1865), a campanha pelo direito de sufrágio das mulheres (1888-1928), a campanha de missionários ocidentais da China para erradicar a prática de pés-atados na China (1874-1911) [...]” (AMARAL, op. cit., p. 76.) 28 SANTOS, op. cit., p. 28 29 AMARAL, op. cit., p. 57 30 Sobre a expressão ensina Henry Steiner “[...] o termo ONG de “primeiro mundo” indica tanto a base geográfica da organização, como tipifica certas características da entidade, como seu mandato, suas funções e sua orientação ideológica. [...] Em resumo, ONGs de primeiro mundo significam aquelas organizações comprometidas com tradicionais valores liberais ocidentais, associados com as origens do movimento de direitos humanos. [...] a categoria de primeiro mundo também inclui boa parte das poderosas ONGs que investigam fundamentalmente eventos do terceiro mundo. Sua auto-imagem é a de monitora, investigadora

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objetiva, que aplica normas consensuais do movimento de direitos humanos aos fatos a serem apurados. Elas são defensoras da legalidade.” (STEINER, Henry. Diverse partners: nongovernmental organizations in the human rights movement, the report of a retreat of human rights activists. Co-sponsored by Harvard Law School Human Rights Program and Human Rights Internet, 1991, p. 91.) No tocante à importância das ONGs para proteção dos direitos humanos expõe Henry Steiner: “As ONGs têm se tornado indispensáveis para o movimento de direitos humanos, em virtude de suas atividades peculiares: monitoramento, investigação e relatórios referentes aos Estados violadores; lobby com relação aos governos nacionais e ONGs internacionais; mobilização de grupos interessados; educação do público; [...]” (STEINER, op. cit., p. 1.) COMISSÃO Interamericana de Direitos Humanos. Convenção Americana dos Direitos do Homem. Disponível em: < http://www.cidh.org /Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm >. Acesso em: 9 ago. 2010. Dentre os critérios a serem atendidos pode-se destacar: a natureza das pessoas interveniente (diferenciando-se o peticionário da(s) vítima(s), não sendo obrigatório o consentimento desta(s)); exposição dos fatos atentatórios à Convenção que está sendo alegado; a matéria objeto da petição; os lugares aonde ocorreram os fatos; o esgotamento dos recursos internos; e demonstrar por fim, a ausência de outro processo internacional ou de litispendência. (CENTRO pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL). Guia para defensores y defensoras de derechos humanos. CEJIL. Disponível em: < http://cejil.org/publicaciones/ guia-para-defensores-as-de-derechos-humanos > Acesso em: 9 ago .2010.) O fenômeno da formação de redes entre ONGs locais e internacionais é de extrema importância na promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano, por isso será tratado de forma mais concisa adiante. De antemão vale ressaltar o destacado por Kathryn Sikkink “Pressões e políticas transnacionais no campo dos direitos humanos, incluindo network de ONGs, têm exercido uma significativa diferença no sentido de permitir avanços nas práticas dos direitos humanos em diversos países do mundo. Sem os regimes internacionais de proteção dos direitos humanos e suas normas, bem como sem a atuação das networks transnacionais que operam para efetivar tais normas, transformações na esfera dos direitos humanos não tem ocorrido”. (SIKKINK, Kathryn. Human rights, principled issued-networks, and sovereignty in Latin America. In: International organizations. Massachusetts: IO Foundation and Massachusetts Institute of Technology, 1993, p. 414-415.) PIOVESAN, op. cit., p. 140. Ibid., p.141. Retratando o trabalho da sociedade civil brasileira expõe a já citada Cecília Macdowell Santos: [...] as ONGs brasileiras têm formado redes nacionais e internacionais para a defesa de causa de direitos humanos a fim de pressionar o governo a cumprir a legislação progressiva, criar novas leis e formular políticas para a proteção dos direitos humanos. Desde meados dos anos noventa estas redes têm aumentado seu engajamento no ativismo jurídico transnacional, mobilizando-se para assegurar o apoio de organizações internacionais tais como a OEA e seu Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Indo mais além, Maia Gelman Amaral ensina que as ONGs brasileiras a partir da década de 90 extrapolam a proteção de áreas tradicionais passando a abarcar os temas dos direitos humanos em todas as suas vertentes: homossexuais sem-terra, trabalhadores rurais, pessoas vivendo com HIV/AIDS, [...]” (SANTOS, op. cit., p. 36) e (AMARAL, op. cit., p. 71.) SANTOS, op. cit., p. 44. COMISSÃO Interamericana dos Direitos Humanos. Relatório do caso Guerrilha do Araguaia. CIDH. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/demandas/11.552%20Guerrilha%20do%20Araguaia%20 Brasil%2026mar09%20PORT.pdf >. Acesso em: 29 ago. 2010. Acerca do Programa esclarece a Secretaria dos Direitos Humanos: “O PNDH 3 esta estruturado em seis eixos orientadores, subdivididos em 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos que incorporam ou refletem os 7 eixos, as 36 diretrizes e as 700 resoluções da 11ª CNDH. O Programa tem ainda, como alicerce de sua construção, as resoluções das Conferências Nacionais temáticas, os Planos e Programas do governo federal, os Tratados internacionais ratificado pelo Estado brasileiro e as Recomendações dos Comitês de Monitoramento de Tratados da ONU e dos Relatores especiais.” Ver mais em: BRASIL. Programa Nacional dos Direitos Humanos. Secretaria Dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://www1. direitos humanos.gov.br/pndh >. Acesso em: 29.ago.2010. SANTOS, op. cit., p. 43. Ibid., p. 44. PIOVESAN, op. cit., p.142-143.

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Ativismo jurídico dos direitos humanos: as organizações não-governamentais e o Sistema Interamericano

44 No original: “En este sentido, el reglamento de la Corte establece en su articulo 44.1 que esta podra, en cualquier estado de la causa, oir a cualquier persona cuyo testimonio, declaracion u opinion estime pertinente195. Este precepto constituye el fundamento de la posibilidad de intervenir en el proceso en calidad de amicus curiae. Los terceros intervinientes pueden ser organizaciones internacionales no gubernamentales o personas naturales que no se constituyen como parte del litigio.” (CENTRO pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL). Guia para defensores y defensoras de derechos humanos. CEJIL. Disponível em: < http://cejil.org/publicaciones/guia-para-defensores-as-de-derechos-humanos > Acesso em: 9 ago .2010, p. 95.) 45 JUSTIÇA Global. Global.org. Disponível em: <http://global.org.br/estrategias/formacao/>. Acesso em: 29 ago. 2010. 46 INSTITUTO de Desenvolvimento e Direitos Humanos. IDDH. Disponível em: <http://www.iddh.org. br/v2/parceiros/ >. Acesso em: 29 ago. 2010. 47 CORTE Interamericana de Derechos Humanos. Reglamento de La corte interamericana de derechos humanos. Corte IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/regla_victimas/victimas_esp.pdf >. Acesso em: 29 ago. 2010. 48 Custo estabelecido pelo Centro de Estudos de Justiça e Direito Internacional. Para maiores informações ver: CENTRO pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL). Guia para defensores y defensoras de derechos humanos. CEJIL. Disponível em: < http://cejil.org/publicaciones/guia-para-defensores-as-de-derechoshumanos > Acesso em: 9 ago .2010. 49 ARMANI, Domingos. Mobilizar para transformar: a mobilização de recursos nas organizações da sociedade civil. São Paulo: Peirópolis, 2008,. p. 33. 50 CUELLAR, Roberto. Participacion de la sociedad civil y sistema interamericano de derechos humanos em contexto, p. 349. 51 Acerca do tema não há como não citar a inegável contribuição de Cecília Macdowell Santos citando Margaret Keck e Katharyn Sikkink ao definirem as redes entre ONGs Internacionais e locais como “formas de organização caracterizadas por modelos voluntários, recíprocos e horizontais de comunicação e troca. Apesar das diferenças entre os âmbitos doméstico e internacional o conceito de rede transita bem por estas esferas, porque ele enfatiza as relações fluidas e abertas entre atores comprometidos e instruídos trabalhando em áreas específicas. [...] Elas são organizadas para promover causas, idéias principistas e normas e, com freqüência, envolvem indivíduos apoiando mudanças políticas que não podem ser facilmente atribuídas a um entendimento racionalista de seus interesses”. (KECK, Margaret; SIKKINK, Kathiryn. apud SANTOS, Cecília Macdowell. Ativismo jurídico transnacional e o Estado: reflexões sobre os casos apresentados contra o Brasil na Comissão Interamericana de direitos humanos. Sur-Revista Internacional de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.surjournal.org/conteudos/getArtigo7. php?artigo=7,port,artigo_santos. htm>. Acesso em: 04 ago. 2010,. p. 30).

JURIDICIAL ACTIVISM ON HUMAN RIGHTS: THE NON-GOVERNAMENTAL ORGANIZATIONS AND THE INTER-AMERICAN SYSTEM. ABSTRACT The protection of human rights in the American continent currently counts with a System created within the Organization of American States (OAS), made up by the Inter-American Commission on Human Rights, based in Washington, D.C., USA, and the Inter-American Court of Human Rights, based in San Jose, Costa Rica. However, the work of these institutions in controlling violating States cannot be perceived as a feature separated REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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from the rest of society, and, in this sense, the action of the organized Civil Society has to be taken into account in the quest for promotion and protection of the rights and guarantees ensured in the International and Regional Treaties of Human Rights. When this struggle is aided by the international litigation strategy of the Inter-American System, human rights legal activism is born, being the main players of this initiative those who are normally relegated to the background by the International Community: the Non-Governmental Organizations (NGOs). This work studies the role of these non-governmental bodies within the Inter-American System, identifying the main advances they have promoted, particularly the fostering of their advocacy capacity before the Inter-American Commission, putting international legal pressure on violating States in an attempt to bring changes in their public policies and legal structures. The paper also essays to present the most relevant internal and external challenges faced by NonGovernmental Organizations in the development of their working strategies, particularly addressing their problems in the areas of management and transparency. The paper also tackles the issue of the legitimacy of these players and their unique ability to form co-operation networks. This work was designed using the inductive method, through the techniques of referent, category, operational concept, and bibliographic research. Keywords: Human Rights, Inter-American System, Non-Governmental Organizations.

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LINGUAGEM E MÉTODO: ABORDAGEM HERMENÊUTICA DO DIREITO COMO ALTERNATIVA AO PURISMO METODOLÓGICO Juraci Mourão Lopes Filho**

RESUMO O presente artigo apresenta uma abordagem do direito a partir de uma perspectiva da hermenêutica filosófica de Gadamer como uma alternativa ao purismo metodológico típica de uma perspectiva positivista. É abordada a evolução da epistemologia e sua transposição das ciências naturais para as ciências sociais, especialmente para o Direito, e as modificações ocorridas no século XX a partir das críticas de Karl Popper. Será também exposta a reviravolta lingüística na filosofia ocidental, que traz o referencial adequado para se superar as dificuldades da concepção empirista de método e a inadequação da concepção construtivista para o Direito. Palavras-Chave: Epistemologia jurídica. Hermenêutica. Filosofia da linguagem. 1 INTRODUÇÃO Assunto que tem dominado os debates epistemológicos nas últimas décadas consiste na busca de uma alternativa, no âmbito das ciências sociais, e em especial no Direito, ao positivismo de bases metodológicas empiristas. Ainda não se apresenta um modelo acabado e definitivo, tampouco se acredita na simples transposição dos novos aportes da epistemologia das ciências naturais. Tanto assim que é comum se aludir a um pós-positivismo, revelando simplesmente a superação de algo, sem que esse posterior tenha autonomia científica própria. O presente trabalho tem por objeto a exposição das idéias centrais da reviravolta hermenêutica da ontologia, sobretudo a hermenêutica filosófica de Gadamer, por acreditarmos que essa perspectiva teórica, que se contrapõe justamente à aplicação do método científico aos domínios sociais, traz elementos suficientes para uma nova e adequada compreensão do Direito que supere, em definitivo, a perspectiva positivista, com feições suficientes para uma autonomia. * Mestre (UFC) e Doutorando (UNIFOR) em Direito Constitucional. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil (UFC). Professor do Curso de Direito da Faculdade Christus. Procurador do Município de Fortaleza. Advogado

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Para tanto, apresentaremos a evolução da epistemologia e sua transposição das ciências naturais para as ciências sociais, assim como explicitaremos as críticas feitas no século XX, especialmente por Karl Popper, e que mudaram a concepção do método científico. Nesse ponto, também as profundas mudanças sociais que contribuíram para a derrocada das concepções modernistas serão apresentadas. Em seguida, apresentaremos a reviravolta lingüística na filosofia ocidental, que traz o referencial adequado para se superar as dificuldades da concepção empirista de método e a inadequação da concepção construtivista. Nesse ponto é que se dará especial atenção ao pensamento de Gadamer. A evolução da epistemologia jurídica, até a crise do positivismo, será tratada em tópico próprio para só a partir dele apresentar as principais conseqüências da hermenêutica filosófica na ciência jurídica, evidenciando elementos principais do novo modelo dela emergente. Não pretendemos encerrar verdades ou exaurir o tema, o que seria impossível em trabalho desta monta, mas simplesmente apresentar as idéias centrais de uma nova perspectiva do Direito e o caminho percorrido até ela. 2 MÉTODO E CIÊNCIAS SOCIAIS Característica marcante do pensamento moderno foi a busca por um racionalismo na compreensão do mundo que se afastasse das influências das tradições, superstições e referências de autoridades próprias da Idade Média. Tudo que não fosse estritamente derivado de uma análise puramente racional seria considerado um obstáculo a um entendimento verdadeiramente científico. Daí o prestígio de um método racional que indicasse o caminho correto para se acessar propriamente a verdade sobre o objeto de investigação. Construiu-se, então, a teoria para substituir a dogmática da Idade Média. Conquanto a existência de alguma espécie de método não fosse ignorada pela filosofia clássica, foi a partir do pensamento moderno que gradativamente ele passou a ter contornos cada vez mais rígidos, com etapas estanques e formais, sendo esse método considerado auto-sufiente para alcançar a verdade, entendida como relação com a realidade existente em si mesma. É a partir dessa perspectiva que Descartes afirma: “a ciência deve nos tornar senhores da natureza”. Nesse período e no que imediatamente o segue, tem-se o ápice da concepção empirista, de origem na medicina grega, que prima pela indução realizada a partir de experimentos e observações dos fenômenos, a qual, uma vez complementada por aportes teóricos, completa o conhecimento neutro do objeto. É uma alternativa à concepção racionalista, de prevalência até o Século XVI, que tomava a ciência a partir de um método dedutivo e demonstrativo derivado de axiomas gerais estabelecidos teoricamente, sendo os experimentos a busca da confirmação desses postulados abstratos. 200

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Linguagem e método: abordagem hermenêutica do direito como alternativa ao purismo metodológico

A despeito das distinções, ambas as concepções acreditavam poder reproduzir a realidade, dando um quadro da existência em si mesma, livre de qualquer influência ou distorção provocadas por elementos não racionais. Essas concepções epistemológicas iam ao encontro da conjuntura social então vigente, dominada por uma burguesia capitalista e liberal emergente, ciosa por um rompimento com o passado e pelo estabelecimento de um conhecimento que permitisse previsibilidade de resultados. De fato, a economia de mercado é, intrinsecamente, refratária a incertezas e imprevisões, justificando, assim, a ampla aceitação dessa nova ciência. Ademais, a necessidade de acumulação de capital impõe essa técnica dada pela ciência para modificar e explorar a natureza possibilitando um melhor aproveitamento da mão-de-obra. Com o sucesso do método científico nas ciências naturais, foi realizada sua transposição para outros domínios que passaram também a receber o rótulo de ciências, ainda que com suas particularidades, pelo que a denominação de ciências sociais ou do espírito, o que afastava outras terminologias “impuras” como ciências morais ou letras clássicas. Com efeito, somente no século XIX, sobretudo após o trabalho de Dilthey, se passou a tomar o ser humano como objeto da ciência. Até esse período, só a filosofia teve tal sorte de preocupação, tendo como especial referência o humanismo dos Séculos XV a XVII, além da filosofia grega clássica. Foi Dilthey que concebeu uma perspectiva histórica, sendo esta nota que bem distinguiria ciências do espírito e ciências da natureza, pois os atos humanos só poderiam ser compreendidos se considerados adicionalmente seu valor, sentido, significação e finalidade. Refutava a mera transposição do método empirista e propunha um próprio que buscasse o sentido desses atos humanos. Daí porque concebeu uma hermenêutica metodológica que prima pelo elemento histórico para compreensão. Sobre o assunto, José Luis Brandão da Luz1: Por oposição aos factos materiais, os factos da consciência põem às ciências humanas o problema da sua interpretação e conduzem-nos à dissociação que Dilthey estabeleceu entre explicação causal e compreensão. Os factos de consciência constituem um sistema de implicações entre conceitos, valores afectivos, morais, etc., que se não deixam interpretar em termos de relação causais, como acontece com os fenômenos naturais, sejam, por exemplo, as conexões do sistema nervoso ou até mesmo os resultados duma máquina de calcular. Deste modo, não é evidência que acompanha o desenvolvimento conseqüente dos factos de consciências que, segundo regras da lógica, confere inteligibilidade a esses enunciados, mas antes a reconstituição do processo cognoscitivo que conduziu à sua formação e determinou o seu lugar no contexto de significados que dão sentido à realidade. É nesta linha que podemos entender a afirmação do autor, segundo a qual “a compreensão e a interpretação constituem o método que informa as ciências do espírito”. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Entretanto, dado o ambiente de forte influência do empirismo, foi natural que as ciências sociais se vissem influenciadas pelo mesmo método daquelas ciências tidas como nobres, resultando no positivismo que tanto marcou o Século XIX e boa parte do Século XX. Seu objeto de investigação seria o ato humano isolado, despojado de qualquer compreensão metafísica ou religiosa, representando, por esse motivo, a emancipação intelectual do homem. Até chegar a essa emancipação, a humanidade teria passado por estágios. No primeiro, as explicações do mundo seriam especulativas, fundadas em uma ação direta de entidades sobrenaturais. No segundo, os entes sobre-humanos teriam dado espaço a abstrações personificadas, típica da metafísica. O último seria o estágio positivo, também conhecido como da racionalidade definitiva, no qual o valor de uma asserção dependeria de sua relação com os fatos. Dava-se importância à criação de leis gerais inferidas por indução dos casos particulares, pressupondo e expondo suas relações necessárias, aptas ao posterior exercício de previsões. Esse conhecimento geral e abstrato permitia um conhecimento cumulativo e enciclopédico, já que puro, neutro e absoluto, insuscetível de alteração por influências do local ou do tempo. Após esse período de esplendor, as bases sociais e epistemológicas da modernidade foram gradativamente alteradas. A epistemologia do Século XX não mais acreditou que o método científico, seja o racionalista ou o empirista, seria capaz de reproduzir a realidade, dando espaço uma concepção construtivista, segundo a qual a ciência apresenta modelos que provisoriamente explicam e interpretam a realidade e não que a representa de maneira definitiva. Os cientistas, encabeçados por Karl Popper, não têm certeza da afirmação positiva, apenas da afirmação negativa. A ciência não poderia dizer o que é certo ou o que é bom, mas o que não é bom, que pode ser melhor. Popper se opõe à certeza absoluta dos enunciados científicos e anuncia sua descrença no indutivismo como base do conhecimento científico. Escreve: Ora, está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo pode revelarse falsa: independentemente de quantos casos de cisnes branco possamos observar, isso não significa a conclusão de que todos os cisnes são brancos. 2

Com essa passagem, Popper evidencia o salto indutivo dos casos particulares para o geral realizado sem a certeza absoluta empiricamente verificada, pelo simples fato de que todos os elementos contidos no caso universal não foram confirmados por uma verificação empírica. Ele desenvolve, então, o ponto central de seu pensamento: a provisoriedade do 202

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Linguagem e método: abordagem hermenêutica do direito como alternativa ao purismo metodológico

conhecimento científico. Afirma: Qualquer que possa ser nossa resposta final à questão da base empírica, um ponto deve ser deixado claro: se concordarmos com a nossa exigência de que enunciados científicos devem ser objetivos, então os enunciados que se refiram à base empírica da ciência deverão também ser objetivos, isto é, suscetíveis de teste intersubjetivo. A possibilidade de teste intersubjetivo implica em que outros enunciados suscetíveis de teste possam ser deduzidos dos enunciados que devam ser submetidos a teste. Assim, se os enunciados básicos devem ser, por sua vez, suscetíveis de teste intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver, em Ciência, enunciado insuscetível de teste e, conseqüentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidas3.

Contudo, essa afirmação não representa um abandono completo do empirismo, mas implicava em mudança na compreensão de que a ciência que não mais seria uma representação da realidade em si e, sim, uma conjectura provisória válida até seu falseamento por outra melhor. Em outra de suas obras clássicas, escreve Popper:4 Pode-se formular o terceiro ponto de vista a respeito das teorias científicas em poucas palavras, dizendo que elas são conjecturas genuínas, altamente informativas, que, embora não verificáveis (isto é: passíveis de ser provadas) resistem a testes rigorosos. São tentativas sérias de descobrir a verdade. Sob esse aspecto, as hipóteses científicas são exatamente como a famosa conjectura de Goldbach a propósito da teoria dos números. Goldbach pensou que ela pudesse ser verdadeira o que pode acontecer, embora não saibamos, e talvez nunca cheguemos a saber se de fato é verdadeira ou não.

Portanto, Popper entende que não se pode ter certeza da verdade, apenas certeza daquilo que é refutado numa conjectura. O acesso direto à realidade, por via de conseqüência, é tido como algo impossível de ser alcançado com definitividade. As certezas científicas não passariam de um modo de explicar e compreender a realidade, cujos embasamentos e justificativas ainda não foram refutadas por outra compreensão mais bem calcada. Essa firme posição epistemológica abala a certeza e previsibilidade tão cruciais para a modernidade, impedindo a pretensão da ciência de “nos tornar senhores da natureza”. A própria apreensão direta da realidade, como visto, se tem como algo inviável, prevalecendo tão-somente uma explicação, uma interpretação, por definição, provisória.

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No âmbito das chamadas Ciências Duras, veio da Física o golpe. A incompatibilidade entre os princípios da física newtoniana (dos grandes corpos) e os da física quântica (dos microcorpos) lançaram os cientistas em um paradoxo no qual essas teorias excludentes entre si explicam, cada uma a seu modo, uma fatia da realidade, sem se saber onde se encontram as fronteiras que dividem precisamente o âmbito de validade de cada uma delas. Por essa razão, não mais se crê, com segurança, em uma realidade unificada regida pelas mesmas leis, porquanto, para tentar justificar essa unicidade, tem-se apenas proposta ainda não inteiramente acabada na Teoria das Supercordas, que, porém, abala de maneira radical a própria compreensão do que seja realidade.5 Mesmo no domínio interno da física quântica não se pode assegurar um pleno domínio da realidade, como demonstra a Teoria da Incerteza de Heisenberg, muito bem sumariada por Brian Greene6: Por exemplo, quanto maior for a certeza com que você sabe onde uma partícula está, maior será a incerteza quanto à sua velocidade. Reciprocamente, quanto maior for a certeza com que você conhece a velocidade com que uma partícula está se movendo, menor será a sua probabilidade de saber onde ela está. A teoria quântica estabelece, assim, a própria dualidade: você pode determinar com precisão certos aspectos físicos do reino microscópico, mas, ao fazê-lo, elimina a possibilidade de determinar com precisão outros aspectos complementares.

Na segunda metade do século XX, houve a consolidação dos avanços científicos verificados na primeira metade, os quais derrogavam as leis newtonianas para certos domínios da física. Em livro com sugestivo título, Ilya Prigogine afirma que “todos sabem que a física newtoniana foi destronada no século XX pela mecânica quântica e pela relatividade”7. A concepção de que a natureza, o cosmo seria regido por leis absolutas, imodificáveis e perenes foi abaixo, passando a ser apenas uma verdade parcial. Não mais predomina a arrogância humana de outrora de que dominamos todo o mecanismo da existência A compreensão total da realidade não mais se dava integralmente como base nos cálculos newtonianos, que apresentavam resultados certos, seguros e previsíveis. Instaura-se a era das incertezas, que não deixou o campo da ciência, de um modo geral, ileso. O contexto social não se manteve alheio a esse abalo às firmes bases do modernismo clássico, tanto assim que Zygmunt Bauman, sociólogo polonês de grande influência nos dias atuais, cunhou a concepção de modernidade líquida8, na qual as relações sociais são fluídas e provisórias. Esse afrouxamento e perda de referências também são expostos por Jorge Forbes: Nosso mundo organizava-se por um eixo vertical das identificações – um homem queria ser igual ao pai, ou ao seu superior do trabalho, por exemplo. Padrões ideais orientavam as formas de satisfação, 204

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de amor, de trabalho, de aproximação e separação, de ter e educar os filhos, de fazer política. Havia uma predeterminação de modelos no mundo vertical. A globalização, porém, conduziu essas formas ao excesso, à multiplicidade de modelos sem hierarquia predeterminadas. Hoje as relações sofrem influências globais. As referências se contrapõem, são múltiplas, invalidam-se.9

Em linha de pensamento análoga, Edgard Morin afirma que “vivemos entre dois mundos, um que está morrendo, mas ainda não morreu, e outro que está nascendo, mas ainda não nasceu”. O moribundo seria o mundo moderno com suas aspirações de certeza, previsibilidade e de domínio absoluto da razão humana sobre fenômenos sociais e naturais. O nascente seria ainda carente de plena conformação, mas é calcado na perda do domínio geral do homem sofre todos os fenômenos que o cerca. É por essa carência de definição acabada que é comum se ouvir que os tempos atuais são pós-modernos, numa flagrante demonstração de que não tem, por enquanto, identidade própria e plenamente definida, ainda que distinta de uma anterior que está para ser abandonada, causando o que o mesmo Bauman denominou como o “mal-estar da pós-modernidade”10. Por via de conseqüência, a epistemologia das ciências sociais sofreu mudança. O próprio Karl Popper concebeu uma mudança nesse âmbito, mas ainda considerando que ambos os domínios seriam compreensíveis pelo mesmo método, evidenciando crença numa unicidade científica mediante a criação da idéia de “sociedade aberta”, cujo paradigma seria a argumentação crítica da comunidade de cientistas. A esse respeito, Karl-Otto Apel11 explica que Popper “pretendia extrapolar o paradigma normativo do método científico, no sentido de uma filosofia da sociedade e do progresso histórico possível que se mostrasse ética e politicamente relevante”. Entretanto, o mesmo Apel acusa Popper de se basear em aporia: “A meu ver, há de fato dois tipos de ‘falácias abstrativas’ [abstraktive fehlschüsse] na estratégia popperiana de extrapolação, que, se não estou enganado, coexistem lado a lado na obra sem qualquer explicação”12. A primeira, “a falácia cientificistatecnicista, em sentido mais estrito, consiste no fato de Popper tomar a um só tempo o ideal metódico da ciência unitária (social engeering), para fazer de ambos os fundamentos da racionalidade crítica na política social de uma ‘ sociedade aberta’”13. A outra falácia abstrativa seria que, sendo a argumentação crítica o paradigma da “sociedade aberta”, “ignora-se com facilidade que, dessa maneira, já se terão instituído um interesse cognitivo e o estabelecimento prático de certos fins como parâmetro para a argumentação crítica, e que, com isso, eles terão sido eximidos de qualquer discussão.”14 Diante dessas críticas que se opõem à simples transposição dos aportes das ciências naturais para as sociais, vem-se buscando alternativas. Entre elas, pretendemos destacar, neste trabalho, a corrente hermenêutica, cuja compreensão depende da compreensão da filosofia da linguagem e da reviravolta lingüística na filosofia ocidental. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Juraci Mourão Lopes Filho

3 A REVIRAVOLTA LINGÜÍSTICA NA FILOSOFIA OCIDENTAL A expressão filosofia da linguagem pode ter, ao menos, duas acepções, uma mais restrita (entendida como uma análise do funcionamento da linguagem) e outra mais ampla (consistente numa abordagem crítica de questões filosóficas mediante concepção que se orienta pela investigação da linguagem). A acepção de filosofia da linguagem na qual se localiza o linguistic turn é na mais ampla, precisamente porque apresenta uma abordagem nova de investigar os problemas da filosofia. Sua importância para a filosofia e, conseqüentemente, para a epistemologia, é muito bem ressaltada por Manfredo de Araújo Oliveira já nas primeiras linhas de sua obra sobre o tema: A linguagem se tornou, em nosso século, a questão central da filosofia. O estímulo para sua consideração surgiu a partir de diferentes problemáticas: na teoria do conhecimento, a crítica transcendental da razão foi, por sua vez, submetida a uma crítica da linguagem; a lógica se confrontou com o problema das linguagens artificiais e com a análise das linguagens naturais; a antropologia vai considerar a linguagem um produto específico do ser humano e tematizar a correlação entre forma da linguagem e visão do mundo; a ética, questionada em relação a sua racionalidade, vai partir da distinção fundamental entre sentenças declarativas e sentenças normativas. Com razão se pode afirma, com K.-O. Apel, que a linguagem se transformou em interesse comum de todas as escolas e disciplinas filosóficas na atualidade.15

É possível fazer uma sistematização em fases da filosofia da linguagem. A primeira – apontada como da semântica tradicional – apresenta uma visão da linguagem cujo escopo seria o de bem reproduzir a realidade. Agrega pensadores que, a despeito de variação e distinção nas abordagens, têm por premissa a idéia de haver uma realidade autônoma a que teria acesso direto o ser humano para, então, descrevê-la e reproduzi-la pelas palavras. Cronologicamente, vai desde Platão (com sua visão no Crátilo) até o primeiro Wittgenstein (com seu Tractatus) que sintetiza a compreensão de que os problemas da filosofia seriam decorrentes dos significados das palavras. Essa primeira é uma fase instrumentalista da linguagem, em que ela é reduzida a sua função designativa, segundo a qual intermedeia o objeto a ser conhecido e o sujeito cognoscente e os toma como realidades autônomas e estanques, sem qualquer tipo de interferência mútua. Haveria, portanto, o ato de conhecimento e, em seguida, o ato de comunicação, sendo apenas este estruturado em linguagem. Como esclarece Manfredo Araújo de Oliveira16: A tradição do pensamento sempre pressupôs uma isomorifa entre realidade e linguagem: porque há uma essência comum a um determinado tipo de objetos é que a palavra pode designá-los e 206

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assim aplicar-se a diferentes objetos que possuem essa essência. A palavra designa, precisamente, não a coisa individual, mas o comum a várias coisas individuais, ou seja, sua essência. Para a metafísica clássica, o conhecimento verdadeiro consiste na captação da essência imutável das coisas, o que, precisamente, é depois comunicado pela linguagem.

Como se percebe, nessa perspectiva, o conhecimento verdadeiro é aquele que acessa diretamente a essência das coisas e, posteriormente, o reproduz por uma linguagem precisa e clara, sem ambigüidades, a outros indivíduos. O conhecimento verdadeiro seria, portanto, metafísico, devendo a linguagem ser a mais precisa possível de modo a não comprometer o perfeito e adequado conhecimento do objeto obtido por um ato cognitivo não lingüístico. A imprecisão terminológica seria o pior dos males para o adequado conhecimento, tendo sido precisamente o objetivo do primeiro Wittgenstein resolver os problemas filosóficos mediante proposta com o máximo grau de precisão. Toda a epistemologia moderna tem esse referencial de linguagem. Essa primeira fase começa a ser questionada por muitos filósofos precisamente a partir da crítica a esse conhecimento direito da realidade (que, como vimos, é de certa forma também realizado pela concepção construtivista de ciência de Karl Popper). Não mais haveria objetos em si mesmos ou realidade em si. Tudo decorreria de um modo de ver e compreender a realidade da maneira que se apresenta ao homem segundo o modo que ele mesmo constrói de forma hermenêutica. É na segunda fase, da reviravolta pragmática, quando ocorre realmente uma ruptura com o pensamento filosófico clássico consistente numa abertura da linguagem para os fatos. O segundo Wittgenstein (em suas Investigações Filosóficas), ao lançar mão da idéia de jogos de linguagem, defende que entender a realidade, os termos, enunciados, palavras não pode ocorrer numa dimensão individualista, em um solipsismo epistemológico, mas em um contexto em que os indivíduos comunicam entre si. O segundo Wittgenstein (o da Investigações Filosóficas) é o maior crítico do primeiro (doo Tractus Lógico Filosófico). Nessa fase, faz-se oposição à mencionada função designativa da linguagem, segundo a qual a palavra designa a essência de uma determinada realidade do mundo, alcançável pela razão humana desprendida de sua sociabilidade. Conforme explica José Medina,17 “os argumentos da indeterminação, de Wittgenstein, também expressam alguma coisa de holístico sobre a linguagem, isto é, que o significado não pode ser descontextualizado e encapsulado em uma interpretação.” Contudo, é a última fase, da Reviravolta Hermenêutica da Ontologia, que há uma inegável superação da filosofia moderna, pois ela própria se torna hermenêutica. Não mais se crê, nesse âmbito, em verdades absolutas e desprendidas da cultura, compreensão e histórica inerentes ao indivíduo. O ser humano não é capaz de obter um conhecimento puro e descontextualizado, não é possível definir REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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a essência imutável e permanente de algo para, em um momento cognitivo distinto e isolado, submetê-lo às variações de espaço e tempo. Como nada possui sentido em si, sendo o homem que dá sentido às coisas, esse ato de atribuir sentido ao mundo é feito linguisticamente, ou seja, não há um ato racional do indivíduo que não seja linguisticamente estruturado e é por meio desta racionalidade lingüisticamente estruturada que o indivíduo ver o mundo. O que Gadamer entende por mundo, evidencia a posição da linguagem na própria ontologia (que deixa de ser uma abordagem abstrata e puramente ideal dos seres): A linguagem não é somente um dos dotes, de que se encontra apetrechado o homem, tal como está no mundo, mas nela se baseia e representa o fato de que os homens simplesmente têm o mundo. Para o homem, o mundo está aí como o mundo, numa forma sob a qual não tem existência para nenhum outro ser vivo nele posto. Essa existência do mundo, porém, está constituída lingüisticamente.18

Sobre esse específico ponto, explica Lenio Streck: Estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. Esse poder-dizer é lingüisticamente mediado, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo é limitada e capitaneada pela linguagem.19

A partir do existir na linguagem é que as coisas podem ser conhecidas não a partir de uma existência autônoma, mas nesse ambiente em que há o encontro de horizontes do intérprete e do objeto de interpretação, no qual a tradição (com significação que lhe é própria) e historicidade atuam de maneira determinante. Daí sua famosa frase: “o ser que se conhece é linguagem”. Não aceita Gadamer que algo seria compreensível abstrata e objetivamente a ponto de permitir uma síntese universalizante que constituiria sua essência imutável. O homem não é capaz dessa objetivação porque ele está imerso em um mundo linguisticamente construído. Há uma similaridade com o pensamento popperiano ao se contrapor a um pensamento totalizador fruto do método científico puro que retrataria realidade imutável. Ao contrário, propõe um pensamento provisional que jamais explica e entende total e completamente o ser. Não haveria, pois, uma fronteira bem distinta entre o físico (existente independentemente do sujeito e da linguagem) e o que seria além do físico (próprio da razão humana), porquanto tudo condicionado e submetido pela subjetividade do indivíduo linguisticamente constituída. A linguagem, portanto, passa a ter uma função ontológica e não de mera intermediadora entre sujeito e objeto. A filosofia passa a ser hermenêutica, porque todos os seus problemas e proposições são lingüisticamente formulados e investigados. Não seria possível um “ser enquanto ser” (objeto de estudo da metafísica clássica), apenas um “ser 208

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no mundo” (dasein, na expressão de Heidegger). Portanto, assim se tem uma superação da ontologia realista clássica por uma filosofia da linguagem. Gadamer, em sua principal obra “Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica”, tem por objetivo justamente se contrapor a aplicação irrestrita do método científico às ciências do espírito. Logo na introdução da obra escreve: O fenômeno da compreensão impregna não somente todas as referências humanas ao mundo, mas apresenta uma validade própria também no terreno da ciência, resistindo à tentativa de ser transformado em método da ciência. A presente investigação toma pé nessa resistência que vem se afirmando no âmbito da ciência moderna, contra a pretensão de universalidade da metodologia científica. Seu propósito é rastrear por toda parte a experiência da verdade, que ultrapassa o campo do controle da metodologia científica, e indagar por sua própria legitimação onde quer que se encontre. É assim que as ciências do espírito acabam confluindo com as formas de experiência da arte e com a experiência própria da história. São modos de experiência nos quais se manifesta uma verdade que não pode ser verificada com os meios metodológicos da ciência.20

O ponto de vista de Gadamer é refratário às concepções empirista e dedutivista do método científico, precisamente porque não admite, repita-se, que o homem seja capaz de conhecer e reproduzir a realidade em si mesma. Embora nesse ponto guarde similaridade com Popper, não se pode afirmar que ele proponha algo semelhante ao método construtivista, porque não propõe um método, mas entende que o conhecimento é uma experiência semelhante a das artes, insuscetível de apreensão por normas rígidas que impõe um embasamento empírico para sustentação do sentido proposto. Tanto assim que a primeira parte de sua Magnus Opus intitula-se “a liberação da questão da verdade a partir da experiência da arte”. Esse conhecimento como experiência seria algo mais profundo e revelador da verdade do que a rígida metodologia poderia revelar. Para sustentar seu ponto de vista, se vale das lições de Heidegger sobre a arte ao se contrapor ao pensamento de Platão e Kant. Platão opôs arte e filosofia, mencionando que somente esta ensejaria o verdadeiro conhecimento, seria o único meio de ser conhecer a verdade. Os filósofos, por possuírem conhecimentos puros e não distorcidos pelas influências das formas mundanas, alcançariam uma visão imediata dos vários graus da realidade. Os artistas, em contrapartida, trabalhariam com ilusão, porquanto a própria arte seria uma distorção da realidade, e o mundo por eles apresentados seria retratado por perspectivas subjetivistas sem qualquer compromisso com a razão. É com Platão que se inicia a suspeita da filosofia com todo tipo de arte. Kant seguiu a mesma linha ao conceber sua estética apenas no âmbito REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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dos sentimentos. Portanto, para ambos a arte seria mero deleite subjugado por sentimentos inábeis de fornecer qualquer conhecimento à altura da filosofia. Heidegger vai de encontro a esse papel inferior da arte ao defender que ela revela o ser por uma experiência que lhe é própria, sendo, portanto, hábil de também mostrar a verdade. Para ele, correspondência ou relação é apenas um modo de conceber a aletheia grega, que também pode ser entendida como revelação ou ato de manifestar alguma coisa de maneira aberta. É muito cultuada e repetida a explicação de revelação da verdade que Heidegger faz ao discorrer sobre o quadro “Sapatos de Camponês” de Van Gogh. Mais do que despertar o sentimento de consternação com a imagem de dois calçados desgastados, maltratados e sujos, o quadro revela, de maneira insuscetível de ser aprisionada por regras metodológicas, o mundo do camponês, sua vida, seus hábitos e seu sofrimento, o contexto social em que estaria inserido e sua realidade. Analogamente, podemos afirmar que o quadro “Guernica” de Picasso, sem qualquer compromisso de retratar um episódio específico da guerra civil espanhola, mais bem demonstra a verdade sobre uma guerra do que seria capaz uma exposição metodologicamente estruturada a respeito de todos os fatos que a compõem. A abertura e o jogo hermenêutico que a pintura permite, inclusive dando espaço para sentimentos e emoções, permitem a revelação mais ampla da verdade. Um pai pode ter relevada, a partir do quadro, a dolorosa experiência de perder um filho, enquanto um filho, a partir desse mesmo quadro, pode ter relevada em toda sua amplitude a perda do pai. Esse jogo, esse movimento dee-para, é mais rico e revelador de uma verdade que não seria mera correlação com os fatos históricos que ocasionaram a pintura. Com efeito, a verdade sobre a guerra assim experimentada é conseguida sem uma necessária relação com os fatos reais da guerra civil espanhola, mas que igualmente apresenta para o indivíduo o que foi aquele trágico episódio histórico. É essa idéia de jogo, desse movimento de-e-para, que Gadamer procura transpor para sua hermenêutica, especialmente a interpretação de textos, que teria, porém, especificidades em relação à interpretação de uma obra de arte, bem explicada por Rui Verlaine Oliveira Moreira: Porém, a criação artística se opõe à compreensão do texto, pois do texto pode-se extrair o conteúdo. Na arte, partilha-se o sentimento e a percepção. Ao se olhar uma obra de arte, deve-se manter aberto para se poder fazer-lhe justiça. O público deve jogar o jogo da obra de arte, entrar no seu mundo. Só assim os seus múltiplos sentidos se revelam, ouvindo-se a voz da arte. Efetua-se desta forma a experiência estética, isto é, a captação do significado individual, intraduzível e inesgotável. Individual, porque é pessoal, cada um lê um quadro de forma diferente. Intraduzível, diferentemente do texto, o significado da obra de arte não pode ser traduzido sem perder a essência. Inesgotável, a cada releitura, descobrem-se novos elementos.21

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Com essas especificidades próprias aos textos, Gadamer redefine a idéia de ciclo hermenêutico já apresentada por Schleiermacher e Dilthey. Embora concorde com ambos no sentido de ser a hermenêutica o modo próprio de compreender os objetos das ciências sociais, Gadamer os critica por terem caído no “canto da sereia da modernidade” por submeterem a hermenêutica à metodologia, a qual contrapõe e isola sujeito e objeto, ignorando que ambos existem na linguagem e o objeto é inarredavelmente influenciado pelas pré-compreensões e pré-juízos do intérprete, ou seja, o objeto não é em si, ele é para. Conhecer o objeto não deixa de ser conhecer a si mesmo em alguma medida. Diante da impossibilidade de afastar da cultura, tradição e momento histórico em que está inserido o sujeito – os quais compõem seu horizonte – critica o método divinatório de Schleiermacher, por ser impossível ao intérprete se colocar “no lugar do autor”. Critica ainda a subordinação da interpretação à vontade do autor. Quanto a Dilthey, se contrapõe ao distanciamento entre o sujeito e contexto atual. Precisamente por conta de ser o objeto não “algo em si”, mas “algo para”, Gadamer combate o que chama de mito do dado, ou seja, não admite que o conhecimento parta de um dado que independa de interpretação do sujeito. A compreensão decorreria da fusão de horizonte que se opera em um jogo de perguntas e respostas, plenamente condicionados pelos prejuízos e pré-conceitos do indivíduo e do objeto de investigação. Passagem de Arnaldo Vasconcelos, a propósito de prefácio de obra coletiva sobre epistemologia, pode ser explicada sob essa perspectiva. Escreve: Acerca do tema, há ainda uma derradeira observação a fazer, e que é a seguinte: a possibilidade de leituras diferentes de um mesmo texto. Fala-se a propósito, em níveis de leitura, o que é perfeitamente legítimo. Esses são de duas ordens e dizem respeito, respectivamente: a) a leitura repetidas em tempos distintos; b) a leituras de um mesmo texto segundo perspectivas disciplinares diversas. Tem-se, na primeira, por exemplo, a leitura de um romance por uma pessoa aos quinze e aos cinqüenta anos. As impressões colhidas numa e noutra oportunidades são tão dessemelhantes, como desigual, em corpo e em espírito, é a mesma pessoa nessas duas idades. O resultado disso é, muitas vezes, a injusta decepção com o livro e seu autor, que nada têm a ver com o fenômeno. A outra hipótese remete à diversidade de leituras segundo a vasta gama de perspectivas disciplinares possíveis, com independência do gênero a que pertença a obra. Fala-se, então, em leitura econômica, sociológica, política, etc., conforme a dimensão dela a ser sublinhada.22

As leituras em tempos distintos que ocasionam interpretações igualmente diferentes pode ser explicada pela mudança de horizonte do intérprete REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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entre os quinze e cinqüenta anos. O conhecimento adquirido, sua vivência e experiência em outros domínios da vida, modificaram os juízos e compreensões prévias que determinam as perguntas formuladas ao texto, o qual, por sua vez, pode ter tido seu próprio horizonte alterado por novas interpretações, ocasionando, pois, sentidos diferentes para o intérprete nos dois momentos. Se naquela primeira ocasião representa uma revelação de algo novo para o indivíduo, causando um estado de inovação, na segunda revelou algo a respeito do qual o intérprete passou a ter como ordinário ou mesmo vulgar. Interpretar é algo que ocorre em conformidade com o que se sabe previamente, e este saber se altera ao longo do tempo, mudando a interpretação. Por sua vez, com relação à leitura à luz de perspectivas distintas, também a idéia de círculo hermenêutico como um jogo de perguntas e respostas explica a distinção de interpretação. Quem procura fazer uma análise econômica de uma obra, formula, em sua interpretação, perguntas dessa natureza, à quais responderá o texto, revelando-se esse aspecto com muito mais evidência do que qualquer outro. Em qualquer hipótese, não se pode falar de uma interpretação verdadeira no sentido de adequadamente relacionada a algo que estaria por traz do texto interpretado. Não seria a interpretação do homem maduro mais verdadeira do que a do jovem adolescente. Nem a interpretação econômica de uma obra seria mais verdadeira do uma interpretação sociológica. Precisamente por não existir algo por traz do texto com a qual a interpretação deveria guardar rígida correspondência para poder ser verdadeira é que, no domínio da hermenêutica, não se pode falar de conhecimento como relação ou correspondência, mas sim como experiência, nos moldes traçados por Gadamer. Conhecer é ter essa experiência fruto da fusão de horizontes e não descobrir aquilo que estaria “escondido” por trás dele. E mais, não existe um dado, um ponto inicial firme e objetivo a partir do qual o sujeito irá desenvolver o conhecimento, tudo é condicionado pelo mundo linguisticamente constituído e hermeneuticamente compreendido. O intérprete deve buscar racionalizar seus pré-conceitos e pré-juízos no intuito de submetê-los à prova, mantê-los ou substituir por melhores, embora essa tarefa nunca seja capaz de ser realizada em relação a todos os seus préconceitos e pré-juízos de uma única vez. Daí porque se diz que a hermenêutica é descobrir e revelar o não dito, levando-o para um diálogo com o dito. Como se percebe, Gadamer propõe uma maneira completamente distinta de entender a compreensão humana. Conquanto tenha se preocupado em apresentar novos parâmetros para as ciências sociais, sua explicação extravasa esse âmbito e realmente muda o modo de se compreender os questionamentos filosóficos. O Direito não se manteve alheio – não poderia – a tudo isso, nem às disputas epistemológicas, nem à reviravolta lingüística, embora nosso país de modernidade tardia ainda dê prevalência aos institutos modernos, sobretudo ao positivismo, conforme passamos a expor.

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4 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA Desde a Roma antiga, se pode afirmar a existência de um método próprio de estudo, compreensão e aplicação do Direito. A vida social romana, com complexa ordenação jurídica, demandou a formação da jurisprudentia que indistintamente era nominada de arte, ciência e disciplina, tanto que o termo tanto se referia à atividade do pretor (influenciando o que atualmente no Brasil se chama jurisprudência) e o trabalho dos teóricos (ensejando o termo jurisprudência como sinônimo de ciência do Direito muito comum na Alemanha). Na Idade Média, o pensamento jurídico, na linha do pensamento teológico cristão, foi essencialmente dogmático, apresentando o Corpus Juris Civilis como um algo incontestável e inquestionável, fazendo, no Direito, papel similar ao da Bíblia. Contudo, na esteira do que aconteceu com a epistemologia em geral, só no século XIX, com a Escola Histórica, surgiu propriamente a Ciência do Direito. Nesse primeiro instante, houve uma observância aos aspectos históricos e sociais. Deu-se, gradativamente, prevalência a um método que buscasse fórmulas universais e invariáveis, decorrentes diretamente da razão humana. O embate em torno da criação de um código civil para a Alemanha do Século XIX é um amostra da contraposição dessas idéias, sendo inegável a prevalência das grandes codificações e, portanto, do método formal. Também na Ciência Jurídica houve uma guinada para o positivismo. O Direito passou a ter por objeto a norma, entendida como um imperativo com feição própria e distinta da moral. Em assim sendo, permitiu a aplicação da concepção empirista, sendo, portanto, a Ciência do Direito calcada na observação dos institutos comuns nas mais variadas ordens jurídicas, que deveriam ser objeto de uma análise racional e pura para explicar seus institutos fundamentais, mediante a apartação entre sujeito e objeto, cuja verdade emergente se imporia a qualquer sujeito, podendo, então, ser transplantada para qualquer país, independentemente de sua história e tradição. Naturalmente, cogitações metafísicas não correlacionadas às normas positivas não seriam objeto da ciência, por serem impossíveis de apreensão pelo método empirista indutivo. A Teoria do Direito, portanto, seria essa organização racional e sistematizada do Direito cujo objeto seria o ordenamento jurídico, suas leis, a maneira pela qual se relacionam, como deve ser interpretado, etc. O embasamento teórico para essa perspectiva é a constatação de que a lei escrita e posta seria o único fato objetivo do Direito, único passível de uma compreensão racional objetiva. A partir desse ponto de vista, todo o resto passou a ser algo que não compunha o Direito, não merecendo atenção por parte de uma abordagem estritamente jurídica. Com isso, desnecessária tornou-se a Filosofia do Direito, que cedeu espaço a essa Teoria Geral do Direito dedicada ao estudo dos elementos comuns a todas as ordens jurídicas estatais. Seu objeto é o ordenamento, a norma e a distinção entre Direito e Moral. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Historicamente, essa compreensão encontra guarida no fortalecimento dos Estados-Nações e no incremento do ideal de soberania. Compreender o Direito como um produto do Estado nacional evidenciava sua relevância para o indivíduo e para a própria sociedade. Essa perspectiva positivista deu origem a uma compreensão reducionista, formalista e vazia do Direito. Simone Goyard-Fabre muito bem explicita: Assim, em seu formalismo, o positivismo legal apresenta-se como um dos maiores trunfos do Estado moderno e costuma ser apresentado pelos autores como uma aquisição definitiva da ciência do Direito. Por influência da racionalidade cuja lógica intrínseca tende para a sistematização da ordem jurídica, a natureza do direito acaba se confundindo com a forma estatutária da lei. Desse princípio decorrem todas as características do positivismo: o estatismo centralizador, a organização dedutivista do direito e, portanto, a coerência do aparelho jurídico, a separação entre legalidade jurídica e legalidade moral, a automatização do direito que deve evitar, em seu formalismo, qualquer referência ao horizonte de valor. O poder racional, que constitui a trama do positivismo jurídico, vem junto com o que Max Weber denomina ‘neutralidade axiológica’ do corpus jurídico.23

A lei (entendida como a própria norma escrita), como se vê, é exaltada. Nada mais lógico, pois é tomada como produto da própria racionalidade humana (característica redentora responsável pela “iluminação” dos indivíduos que deixaram as “trevas medievais”) para o Direito. À lei são atribuídas, além da certeza, segurança e justiça, capacidades superiores, indo ao encontro da busca de previsibilidade e certeza da burguesia liberal emergente. Hans Kelsen24, ilustre expoente da corrente (e principal responsável por sua consolidação no século XX), não desconhecia os valores e a moral, apenas os considerava elementos estranhos ao Direito, fora de uma abordagem daquilo que seria puramente Direito: as normas postas pelo Estado. A axiologia possuía importância para o Direito, mas isso não significava que ela fizesse parte dele. A fenomenologia jurídica era reduzida ao esquema silogístico formal da subsunção, compreendida como uma dedução de conclusões previamente inseridas na norma jurídica (que faria o papel de premissa maior) para os casos concretos (premissa menor). O aplicador do direito apenas enunciava aquilo já prenunciado na norma, deveria apenas conhecer aquilo que nela estivesse contido. Não só se reduzia o Direito à norma, mas esta também possuía uma concepção reduzida, vez que confundida como o texto legislativo, com o enunciado. É certo que, no próprio positivismo, Kelsen arrefeceu o rigorismo do entendimento passivo do intérprete do direito ao idealizar o quadro hermenêutico, dentro do qual haveria várias interpretações válidas, cabendo ao juiz, por um ato político, escolher qualquer uma delas. Contudo, a despeito 214

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disso, manteve-se como explicação suficiente da fenomenologia jurídica a atividade como meramente cognitiva do direito anteriormente posto. A norma concreta e individual de Kelsen não deixava de ser uma decorrência da norma geral e abstrata. Passagem de Karl Engisch bem sumaria essa postura quando afirma que “poderemos mesmo dizer que aquilo a que se chama ‘metodologia jurídica’ tem por objecto em primeira linha a obtenção da premissa maior jurídica”. Foi precisamente a “pureza metodológica” e a conseqüente neutralidade axiológica que ocasionaram a derrocada do positivismo (ou, ao menos, a mitigação de sua aceitação universal para compreensão do fenômeno jurídico). Sobretudo após as agruras da Segunda Guerra Mundial, o mundo se viu chocado com as atrocidades que se poderia praticar sob o manto da legalidade e, portanto, segundo a perspectiva positivista, sob o manto da juridicidade. Nesse sentido, Luiz Roberto Barroso destaca: O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem.25

A busca por uma ordem justa, a busca pela justiça mesmo, revigorou-se, inicialmente por mais uma retomada do jusnaturalismo. As idéias de Rudolf Stammler, na defesa do Direito justo, datadas dos anos 20 do século XX, foram revigoradas, numa corrente procedente do neokantismo, inspirada na conjugação de duas grandes correntes das ciências do espírito, quais sejam, o jusnaturalismo e o historicismo. Como muito bem coloca Karl Larenz26, tais concepções reverberaram com Binder, Radbruch e Max Ernest Mayer. A superação do positivismo jurídico, entretanto, não impossibilitou se reconhecer o direito positivo como o modo de ser do Direito. Põe-se em evidência, então, a distinção entre Direito Positivo e Positivismo, exposta por Lenio Streck: O positivismo traduz uma certa índole do pensamento jurídico, ou uma certa forma de considerar o Direito e a posição do jurista perante ele; enquanto que o Direito positivo tem a ver com o modo de existência do Direito, o qual nesse modo de existência pode ser ou não perspectivado positivisticamente. Por isso é que a aceitação ou não do positivismo jurídico é problema de gnosiologia REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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e da metodologia jurídicas, e a consideração do Direito positivo é o problema jurídico da teoria do Direito, especialmente das fontes do Direito, ou é o problema jurídico da filosofia do Direito (o problema do ser do Direito).27

Já a inviabilidade do purismo metodológico é muito bem exposta por Arnaldo Vasconcelos ao desferir suas críticas à Teoria Pura do Direito de Kelsen: Ocorreu que a lógica da teoria pura, por unilateralmente formal e absoluta, não conseguiu dar conta da complexidade do Direito bem como essência, nem, tampouco, como fenômeno. Satisfez-se com imobilizá-lo, tornando Kelsen, demais, refém de seu método, que tudo dirigia no rumo da via única da realidade ideal e mental. O mundo fenomênico, a vida das relações entre homens socialmente desiguais, com divergências em suas possibilidades e aspirações, nada disso lhe interessou. O motivo, muito simples: incompatibilidade com a pureza metódica. Entre a realidade fática e a teoria sacrificouse, pois, sem a mínima contemplação, toda a realidade.28

De forma geral, passou-se a buscar alternativas ao positivismo e sua metódica pura e vazia, como se disse. Somente em países de modernidade tardia como o Brasil, o positivismo jurídico experimentou uma sobrevida, ainda assim, não vem mais se sustentando. Abrem-se várias alternativas. Começa a “era das incertezas” também para o Direito, tanto que é muito comum se falar em um pós-positivismo, revelando a falta de definição de um critério prevalente com identidade própria. Exemplificando essa busca, Carla Farali29, após mencionar a crise do positivismo, menciona a abertura da Filosofia do Direito aos valores ético-políticos; aos fatos e os estudos sobre a argumentação jurídica, como alternativas que se apresentam ao positivismo. A busca por uma nova forma de compreender o Direito sem o formalismo e purismo metodológico do positivismo passa, necessariamente, ainda que não exclusivamente, a nosso ver, pela hermenêutica filosófica de Gadamer, justamente por se crer na hermenêutica como critério próprio da Ciência do Direito e não uma transladação da concepção empirista ou construtivista (esta tentada por Arthur Kalfman). Mas a hermenêutica não mais como um mero método para se conhecer algo pré-existente, e sim como um modo de construção de sentido (hermenêutica ontológica). O papel do intérprete/aplicador também não mais pode relegado a uma dimensão passiva, secundária, de mero espectador e investigador apartado plenamente de seu objeto, passando a ocupar uma função mais ativa e determinante, como agente construtor. A lei escrita não mais abarca todo o Direito, sendo pelo fio condutor da linguagem (que invoca a cultura, tradição e história) que se pode buscar essa emancipação.

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5 O DIREITO PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA É facilmente perceptível a manutenção no Direito dos paradigmas da semântica tradicional e do purismo metodológico de origem moderna. Embora se fale em pós-positivismo ou pós-modernidade, ainda se mantém acriticamente várias das premissas próprias do positivismo e da modernidade. Ainda se busca entender o Direito mediante um distanciamento entre o sujeito e o objeto de investigação, procurando compreender, para depois aplicar o Direito. A noção ainda comum que se tem de norma a confunde com o texto ou enunciado normativo, pressupondo que a linguagem legislativa pode comunicar a essência de todas as hipóteses fáticas e significativas possíveis de serem encontradas na realidade, fazendo-a figurar na premissa maior de um silogismo dedutivo típico de uma relação sujeito-objeto. Ainda se tem como pressuposto de muitos institutos jurídicos e de várias posturas da jurisdição e da doutrina a filosofia moderna a respeito da linguagem. É exemplo disso o controle abstrato de constitucionalidade que se propõe a vaticinar, com força vinculante, a validade de uma norma jurídica, mediante uma análise abstrata sem consideração real de um contexto de aplicação. Quando muito, imaginam-se situações padrões de aplicação, e supõe-se que serão as únicas encontráveis nas diversas ocasiões de incidência, mediante uma busca da essência dos institutos pertinentes, mesmo que nelas a resposta hermenêutica correta devesse ser outra. A compreensão do Direito pela perspectiva da hermenêutica filosófica de Gadamer (no contexto da reviravolta lingüística) tem por primeira conseqüência modificar a ontologia da norma jurídica ao lançar lúcido enfoque sobre a distinção/ relação entre texto e norma. Conquanto seja comum se apontar essa diferença, a doutrina e a jurisprudência ainda não fizeram uma revisão de idéias levando em conta rigidamente essa nova perspectiva e as conseqüências dela decorrentes, especialmente as oriundas da compreensão de que a norma é sentido construído e não um dado apriorístico a ser alcançado pela simples atividade intelectiva intermediada pela linguagem legislativa, doutrinária e jurisprudencial. A própria existência da norma ocorre na linguagem (que é mais do que simplesmente o texto) e não é algo que existe a par da linguagem que seria alcançado com uma mera mediação dela. O que se pode compreender é linguagem e esse acontecer normativo na linguagem faz que os momentos de conhecimento, interpretação e aplicação deixem de ser estanques, confundindo-se em um único acontecimento. Não que a norma seja uma experiência individual e subjetiva, conhecida segundo uma perspectiva própria um específico intérprete/aplicador. A linguagem da maneira concebida por Gadamer, ao contrário, permite a comunhão de compreensão, pois ela, necessariamente, invoca a tradição e a história de um povo, formando, inexoravelmente, a pré-compreensão do intérprete. Com efeito, Gadamer muito bem expõe que nós pertencemos à história e não ela nos pertence, REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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a compreensão que temos de nós mesmos e do mundo que nos cerca é historicamente definida e conduzida pela linguagem. Assim, como somente um francês sabe o que é, a seu modo e tradição, ouvir e cantar a Marseillaise, somente um jurista brasileiro pode conhecer o verdadeiro alcance e significação dos institutos jurídicos de nossa realidade, impedindo a mera transladação de institutos apriorísticos para interpretar nosso ordenamento. Não se pode encapsular o entendimento, inseri-lo em uma enciclopédia e despachá-lo para qualquer destino sem modificação. Embora muitos anunciem a “distinção” entre texto e norma, não incorporam todas as sérias mudanças que isso causa nem seguem, com coerência e sistematicidade, os aportes teóricos da perspectiva filosófica que ela invoca. Ainda se crê no mito do dado, ou seja, que a norma seria fornecida ao jurista que, a partir dela, deveria formular interpretações. O conhecimento do Direito não é mais puro, neutro e abstrato, é concreto e compromissado com a realidade em que está inserido. A insistência no purismo metodológico, com categorias de conhecimento, causa uma cisão entre Direito e sociedade, em um descompasso pernicioso à própria legitimidade jurídica, causando um afastamento entre o cidadão e os aplicadores/intérpretes formais das leis, tão comum de se ver em salas de audiências. O fim da distinção entre interpretação e aplicação e do mito do dado muda o papel do intérprete que não mais pode ser descompromissado e passivo, especialmente em relação às conseqüências de sua atividade. O mesmo acontece com a jurisprudência que não mais deve se limitar a “dizer o direito”, já que o juiz, em grande medida, cria norma; não a norma individual e concreta de Kelsen que se situava no dispositivo do julgado e era fruto de um ato de vontade, mas a norma geral e abstrata utilizada no fundamento da decisão e fruto a experiência própria do caso submetido a julgamento. Quanto mais o caso for padronizado e comum, mais geral e padronizada será a premissa utilizada e a conclusão a que se chega. Em contrapartida, quanto mais singular e permeado de particularidades, mais será determinante a construção específica da premissa de julgamento e mais particularizada será a conclusão. Isso demonstra quem nem todo julgado pode ser um precedente a ser utilizado no futuro para compreensão de uma lei, evitando prática cada vez mais comum no fórum e nas salas de aulas de tentar explicar o Direito mediante invocação de julgamentos apenas em suas ementas, sem qualquer consideração do contexto social e axiológico em que foi produzida. Como muito bem explica Gadamer: Antes, a ordenação geral da vida através das regras do direito e dos costumes é bastante deficitária, necessitando de uma complementação produtiva. Ela precisa avaliar corretamente os casos concretos. Conhecemos essa função do juiz, sobretudo a partir da jurisprudência, onde a contribuição da hermenêutica em complementar o direito consiste em promover a concreção do direito. 218

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Isso representa mais do que aplicação correta de princípios universais. Nosso saber acerca do direito e dos costumes sempre será complementado e até determinado produtivamente a partir do caso particular. O juiz não só aplica a lei in concreto, mas colabora ele mesmo, através de sua sentença, para evolução do direito (direito judicial).30

Nessa perspectiva, o ensino jurídico também deve alterar seu paradigma e também abandonar a preocupação de expor e explicar institutos jurídicos de maneira científica, ou seja, por categorias abstratas e enciclopédicas, típicas da postura metodológica do positivismo. Nesse sentido, Lenio Streck lança veemente crítica: A doutrina que sustenta o saber jurídico resume-se a um conjunto de comentários resumidos de ementários de jurisprudência, desacompanhados dos respectivos contextos. Cada vez mais a doutrina doutrina menos; isto é, a doutrina não mais doutrina; é, sim, doutrinada pelos tribunais. É nisto que se baseia o casuísmo didático: a partir da construção de ‘categorias’, produzem-se raciocínios ‘dedutivos’, como se a realidade pudesse ser aprisionada no ‘paraíso dos conceitos do pragmatismo positivista dominante.31

Também a hermenêutica filosófica apresenta aporte teórico para se superar a idéia de segurança jurídica do positivismo e que consistiria na previsibilidade de resultados decorrente do silogismo subsuntivo e que, na realidade, muito mais causava um sentimento de injustiça quando havia variação necessárias de resultados em situações aparentemente similares, mas essencialmente distintas. Não se pode crer que toda situação possa ser antevista pelo legislador e encapsulada em um texto, o que se pode querer como segurança é que o julgador tenha a autoridade (em sentido bem próprio para Gadamer como aquele que realmente suscita as questões importantes para o conhecimento, daí porque seu modelo de autoridade, nesse aspecto, é o professor) de avaliar as peculiaridades próprias e relevantes para se determinar o direito aplicável. Escreve: O caso individual não se limita a confirmar uma legalidade, a partir da qual, em sentido prático, se poderia fazer previsões. Seu ideal é, antes, compreender o próprio fenômeno na sua concreção singular e histórica. Por mais que a experiência geral possa operar aqui, o objetivo não é confirmar nem ampliar essas experiências gerais para se chegar ao conhecimento de uma lei – por exemplo, com se desenvolvem os homens, os povos, os estados -, mas compreender como este homem, este povo, este estado é o que veio a ser; dito genericamente, como pode acontecer que agora é assim.32

Por todos os pontos aqui exemplificados, percebe-se que o Direito na perspectiva aqui apresentada se livra das amarras metodológicas, com resultados expressivos e compromissados com a realidade que o circunda. Ocorre que, mais do que uma preferência ideológica, cremos que essa perspectiva é REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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uma constrição ontológica ao Direito que tem de ser compreendido na nova perspectiva da reviravolta hermenêutica da ontologia. Certamente, Gadamer não pode ser um único referencial, mesmo porque recebe críticas de pensadores de igual envergadura intelectual, e com as mesmas referências da reviravolta hermenêutica, como Habermas e Karl-Otto Apel, mas suas contribuições em relação à reinserção da histórica, tradição e cultura no âmbito da hermenêutica; e a consideração da compreensão como fusão de horizontes são marcas indeléveis e contribuições definitivas para uma Ciência do Direito livre das amarras do purismo metodológico. 6 CONCLUSÃO A epistemologia jurídica sempre esteve subordinada à transposição teórica provinda dos domínios das ciências naturais, tendo seu ápice no positivismo de base empirista. Contudo, a superação da concepção empirista do método no âmbito das ciências naturais, bem como as intestinas mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas impedem a permanência não só dessa compreensão, mas também dessa própria transladação do método de um âmbito científico para outro. Sendo a hermenêutica o modo próprio de se compreender as ciências sociais, entre elas o Direito, livra-se ela das amarras do método. A hermenêutica filosófica de Gadamer se apresenta, então, como alternativa própria e adequada para compreender o Direito sem o purismo metodológico do positivismo empirista que tanto dominou o século XX e causou sérias conseqüências sociais. REFERÊNCIAS APEL, Karl-Otto. In: SOETHE, Paulo Asfor (Trad.). Transformação da Filosofia I: Filosofia Analítica, Semiótica, Hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2000. BARROSO, Luiz Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. _______. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. FARALLI, Carla, La Filosofía Del Derecho contemporánea. Madrid: Servicio de Publicaciones Faculdad de Derecho Universidad Complutense, 2007. FORBES, Jorge; REALE JÚNIOR, Miguel; FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A invenção do Futuro: Um debate sobre a pós-modernidade e a hipermodernidade. São Paulo: Manole, 2005. 220

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Linguagem e método: abordagem hermenêutica do direito como alternativa ao purismo metodológico

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LUZ, José Luis Brandão da. Introdução à epistemologia: Conhecimento, verdade e história. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2002, p. 80. POPPER, Karl. A lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 2007, p.27-28. Ibid. p. 49 POPPER, Karl. Conjecturas e refutações: O progresso do conhecimento científico. 5. ed. Brasília: UNB, 2008, p. 142. “Essa é uma pretensão grandiosa e, se correta, representa um avanço monumental. Mas o aspecto mais impressionante da teoria das supercordas, que, sem dúvida, faria palpitar o coração de Einstein, é o profundo impacto que ela exerce sobre o entendimento que temos do tecido do cosmo. Como veremos, a fusão entre a relatividade geral e a mecânica quântica que a teoria das supercordas oferece só faz sentido, matematicamente, se submetermos a nossa concepção do espaço-tempo a uma outra revolução. Em vez de três dimensões espaciais e uma dimensão temporal da experiência comum, ela requer nove dimensões espaciais e uma temporal. E em uma versão mais robusta da teoria das supercordas, denominada de teoria-M, a unificação requer dez dimensões espaciais e um temporal – um substrato cósmico composto de um total de onze dimensões espaço-temporais. Como não vemos essas dimensões adicionais, a teoria das supercordas nos informa que até aqui só vimos uma fatias estreita da realidade”. GREENE, Brian. O Tecido do Cosmo: Espaço, Tempo e a textura da realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 34-35. GREENE, op. cit., p.121-122. PRIGOGINE, Ilya. In: FERREIRA, Roberto Leal (Trad.). O Fim das Certezas: Tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,1996. BAUMAN, Sygmunt. In: DENTZIEN, Plínio (Trad.). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. FORBES, Jorge. Mundo Mutante, Século XXI: as identidades em crise. In FORBES, Jorge; REALE JÚNIOR, Miguel; FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A invenção do Futuro: Um debate sobre a pósmodernidade e a hipermodernidade. São Paulo: Manole, 2005, p.5. BAUMAN, Sygmunt. In: GAMA, Mauro; MARTINELLI, Cláudia (Trad.). O mal-estar da pósmodernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. APEL, Karl-Otto. In: SOETHE, Paulo Asfor (Trad.). Transformação da Filosofia I: Filosofia Analítica, Semiótica, Hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 16. Ibid., p. 17. Ibid., p.17. Ibid., p.20. OLIVEIRA, Manfredo de Aráujo. Reviravolta Lingüístico Pragmática na Filosofia Contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006, p.11. Ibid., p.120. MEDINA, José. Linguagem. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 100. GADAMER, Hans-Georg. In: MEURER, Paulo (Trad.). Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 643. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da Construção do Direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 234. Ibid.p. 29. MOREIRA, Rui Verlaine Oliveira. A hermenêutica filosófica de Gadamer. In MOREIRA, Rui Verlaine Oliveira; BARRETO, José Anchieta Esmeraldo (Org.). O elefante e os cegos. Fortaleza: Casa José de Alencar, 1999, p. 52. VASCONCELOS, Arnaldo (Coord.); ARAGÃO, Nílsiton Rodrigues de Andrade; VIANA, Renata Neris (Org.). Temas de Epistemologia Jurídica. Fortaleza: UNIFOR, 2009, v. 2, p. 16. GOYARD-FABRE, Simone. In: BERLINER, Claudia (Trad.). Os Fundamentos da Ordem Jurídica. São Paulo : Martins Fontes, 2002, p. 76. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BARROSO, Luiz Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 26. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 113. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 29. VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria Pura do Direito: repasse crítico de sues principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 208.

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29 FARALLI, Carla, La Filosofía Del Derecho contemporánea. Madrid: Servicio de Publicaciones Faculdad de Derecho Universidad Complutense, 2007. 30 Ibid. p. 79. 31 STRECK, 2009, op. cit., p. 79. 32 Ibid. p. 39.

LANGUAGE AND METHOD: A HERMENEUTICAL APPROACH OF LAW AS AN ALTERNATIVE TO METHODOLOGICAL PURISM ABSTRACT This paper presents an approach of Law from a different outlook, inspired in the philosophical hermeneutics of Gadamer, which the author considers as an alternative to the methodological purism typical from a positivist point of view. The paper includes an account of the evolution of epistemology, of the moment it started to be used in social sciences, especially Law, and of the changes it went through in the last century, provoked by the critical ideas developed by Karl Popper. The author also intends to expose the radical linguistical change that took place in western philosophy, which contributed to build the appropriate references to overcome the challenges imposed by the empiricist idea of method and the lack of adequacy of the constructivist perception of Law. Keywords: Juridical epistemology. Hermeneutics. Philosophy of language.

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A SOBREVIVÊNCIA DO MODELO PATRIMONIALISTA NA REFORMA ADMINISTRATIVA GERENCIAL DO ESTADO BRASILEIRO Luiz Henrique Urquhart Cademartori** Raísa Carvalho Simões**** RESUMO O objetivo principal desse artigo é demonstrar que, apesar de oportuna a estratégia do governo na década de 90 de estruturar a administração pública sob um modelo gerencialista, como uma forma de superação da crise fiscal que atingia o Estado, a reforma administrativa nasceu fadada a ser um retrocesso institucional em virtude da persistência de um modelo existente desde o colonialismo e que nesse momento vinha revestido de um moderno aparato de gestão, o patrimonialismo. Palavras-chave: Intervenção do Estado. Patrimonialismo. Sobrevivência. Reforma Administrativa Gerencial. 1 INTRODUÇÃO A crise fiscal que atingiu o Estado brasileiro na década de 80 trouxe consigo tendências reformadoras mundiais em minimizar, em grau significativo, o papel estatal na vida econômica e política dos países1. A partir disso, no contexto brasileiro, já não vendo outra esperança de solução ao período de instabilidade senão questionar a administração pública baseada em estruturas burocráticas, a gestão governamental de Fernando Henrique Cardoso apresentou ao Congresso Nacional o plano de “Diretrizes da Reforma do Aparelho do Estado”. Compilada em tópicos voltados à redução do déficit público, à eficiência administrativa e a sua conseqüente transparência e participação, foi aprovada em julho de 1998 a Emenda Constitucional nº19, que tinha como finalidade incorporar na administração pública brasileira um modelo gerencialista de gestão. Todavia, como se verá adiante, o plano de desestatização – um dos pilares do * Mestre em Instituições Jurídico-políticas e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; tem Pós-Doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada – Espanha, é professor Adjunto I da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC na graduação e pós-graduação; consultor do INEP e SESu – MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional; foi assessor jurídico do CECCON – Centro de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria de Justiça de Santa Catarina; autor de várias obras e artigos sobre Direito Público. ** É discente integrante do grupo de pesquisa do Projeto Casadinho (Edital MCT/CNPq/CT-Infra/CT-Petro/Ação Transversal IV n 16/2008) parceria entre a Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC- e a Universidade Federal do Ceará - UFC, pesquisando temática referente à Intervenção do Estado no domínio econômico.

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novo modelo de gestão - proposto pela EC/19 possuía em sua estrutura diversos pontos que permitiam a fácil confusão do patrimônio da esfera pública com a esfera dos interesses privados, característica fundamental do modelo patrimonialista2 que imperou na sociedade brasileira durante todo o século XIX e que, supostamente, havia sido superado pelo advento do modelo burocrático de organização administrativa, posteriormente implantado. Atualmente, observa-se uma constante pretensão em buscar um modelo de organização governamental primoroso, que seja capaz de atender às demandas sociais e cumpra, principalmente, a função para o qual o Estado foi destinado constitucionalmente. No entanto, ainda que não seja o objetivo desse trabalho descrever um modelo de gestão administrativa em detalhes, o que se pretende é a identificação de práticas patrimonialistas no seu bojo, contrariando a idéia de já ter sido superado pelos modelos de organização posteriores. Cumpre mencionar, a propósito, que os pontos a serem suscitados revelam apenas alguns dos requícios do patrimonialismo na reforma administrativa gerencial, a fim de instigar uma reflexão sobre o tema no contexto jurídico-administrativo brasileiro, não sendo o propósito desse artigo, pois, totalizar os estudos sobre a matéria.

2 DESENVOLVIMENTO 2.1 Aspectos históricos do Patrimonialismo Já não é de hoje que o termo favoritismo surge no contexto da administração pública brasileira e nos holofotes da mídia. Durante o processo de formação do Estado e, sobretudo, desde o início da modernização da administração pública do país, já se evidenciavam práticas de favorecimento indevido imperando na esfera pública e seu entorno de relações privadas. Em contrapartida aos tempos atuais, em que o conceito, associado ao termo patrimonialismo, é objeto de repúdio por parte das modernas sociedades, noutro tempo, o favoritismo demonstrava-se como um dos traços fortes do sistema patrimonialista vigente nos modelos de organização do Estado pré-legalista. Pertencia, pois, a um padrão social tradicionalista propenso a entrelaçar a coisa pública com a privada e supervalorizar os interesses pessoais no âmbito público. Patrimonialismo é uma definição oriunda das obras do sociólogo Max Weber que, ao estudar detalhadamente as relações das sociedades com o Estado, concebeu ser um tipo específico de dominação tradicional existente entre uma autoridade política e o povo. Para o autor, está presente a dominação tradicional quando a legitimidade do soberano dá-se por meio da própria crença de seus súditos na santidade das ordens emanadas pelo seu senhor, caracterizando-se, o patrimonialismo, quando a forma do exercício desse modelo de dominação tendesse ao seu extremo, momento em que o poder individual do governante REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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é amparado por critérios unicamente pessoais, sendo natural a apropriação da coisa pública como se sua fosse3 Sobre o assunto, Reinhard Bendix4 ensina que: No patrimonialismo, o governante trata toda a administração política como seu assunto pessoal, ao mesmo modo como explora a posse do poder político como um predicado útil de sua propriedade privada. Ele confere poderes a seus funcionários, caso a caso, selecionando-os e atribuindo-lhes tarefas especificas com base na confiança pessoal que neles deposita e sem estabelecer nenhuma divisão de trabalho entre eles. [...] Os funcionários, por sua vez tratam o trabalho administrativo, que executam para o governante como um serviço pessoal, baseado em seu dever de obediência e respeito. [...] Em suas relações com a população, eles podem agir de maneira tão arbitraria quanto aquela adotada pelo governante em relação a eles, contanto que não violem a tradição e o interesse do mesmo na manutenção da obediência e da capacidade produtiva de seus súditos. Em outras palavras, a administração patrimonial consiste em administrar e proferir sentenças caso por caso, combinado o exercício discricionário da autoridade pessoal com Weber descrever a característica historicamente vislumbrada do fenômeno da “distribuição das terras senhoriais”, sendo este o núcleo embrionário da transformação de um patriarcalismo originário em patrimonialismo puro. consideração devida pela tradição sagrada ou por certos direitos individuais estabelecidos.

Já a típica forma moderna de legitimar a dominação política, conhecida por racional-legal, nos dizeres de Max Weber, constituir-se-ia quando todas as funções públicas pertencessem a um mesmo sistema de normas racionalmente organizadas que, de forma impessoal e universal, estabeleçam as esferas necessárias de atuação da autoridade. Da História de formação do Estado brasileiro retira-se que, desde a época em que o país era uma colônia de Portugal, a administração pública já atuava como sendo uma extensão do quintal do patrimônio do soberano, característica típica do modelo patrimonialista de dominação. Como representação mais original nessa seara, jurista e intelectual Raymundo Faoro, em sua paradigmática obra “Os donos do Poder”, apontou ter sido estruturado o país pelos ditames do patrimonialismo, fruto de uma cultura herdada dos colonizadores portugueses. Para ele, os primórdios de existência do Estado brasileiro estariam inspirados no estamento, modelo no qual os membros da sociedade são rigidamente divididos em grupos conforme a posição social que ocupam. Estruturado, sobretudo, na desigualdade social, o estamento configuraria, assim, o governo em que poucos dirigem e percebem privilégios em decorrência do status ocupado. É um sistema governamental em que uma minoria, “ao pretexto de representar o povo, deturpa, o controla”5 226

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Nesse sentido, elaborando uma refinada teoria descritiva do patrimonialismo sobre o território brasileiro, ensina Faoro6: De outra natureza é o estamento – primeiramente uma camada social e não econômica, embora possa repousar, em conexão não necessária real e conceitualmente sobre uma classe. O estamento político, de que aqui se cogita, abandonado o estamento profissional, por alheio ao assunto – constitui sempre uma comunidade, embora amorfa: os seus membros pensam e agem conscientes de pertence a uma mesmo grupo, a um círculo elevado, qualificado para o exercício do poder. A situação estamental, a marca do indivíduo que aspira aos privilégios o grupo, se fixa no prestígio da camada, na honra social que Lea infunde sobre toda a sociedade. [...] ao contrário da classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas – o estamento é, na realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social. [...]. Significa esta realidade – o Estado patrimonial de estamento – que a forma de domínio, ao contrário da dinâmica da sociedade de classes, se projeta de cima para baixo. Todas as camadas, os artesãos e os jornaleiros, os lavradores e os senhores de terra, os comerciantes e os armaleiros, orientam suas atividade dentro das raias permitidas, respeitam os campos subtraídos ao controle superior e submetem-se a regras convencionalmente fixadas

O monarca português enxergava-se como uma “autoridade incontestável” no Brasil-colônia, não admitindo aliados ou sócios, acima dele só a Santa Sé. Aos súditos, cumpria o dever de obediência suprema à majestade e, aos que bem o serviam, restava a gratificação com privilégios sob de todas as formas, como doações de terras, isenção de impostos, cargos administrativos, qualificações honoríficas, etc. A propósito, extrai-se da aludida obra: A propriedade do rei – suas terras e seus recursos – se confundem nos seus aspectos públicos e particulares. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos da família ou em obras e serviços de utilidade geral. O rei, na verdade, era o senhor de tudo – tudo hauria dele a legitimidade para existir – como expressão de sua autoridade incontestável bebida vorazmente da tradição visigótica e do sistema militar7

Entretanto, Raymundo Faoro não foi o único estudioso a associar o termo patrimonialista, proposto por Weber, como descrição histórica da organização brasileira. Antes dele, Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro “Raízes do Brasil”, já constatava a essência fundamental do “homem cordial brasileiro”. Predispostos a confundir o espaço público com o privado, os membros da pequena classe dominante do país estavam adstritos ao modelo patrimonialista de gestão: REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Não era fácil aos detentores das posições publicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do publico. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalece a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer as funções publicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. [...]8

Seguindo em seus estudos, o sociólogo paulista traz à tona o ponto chave de sua obra. Salienta que, exatamente por estarem desde as suas históricas formações entrelaçados ao núcleo familiar, o homem público brasileiro não consegue desfazer-se de seus valores antiquados e, portanto, mesmo com as evoluções democráticas na administração pública, continuam a tratar a coisa pública sob o comando de seus próprios interesses. Aliás, retira-se de seus trabalhos: No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrario, e possível acompanhar, ao longo de nossa historia, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem duvida o da família aquele que se exprimiu com mais forca e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos defeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – esta em que as relações que se criam na vida domestica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendam assentar a sociedade em normas antiparticularistas.9

A história de Portugal demonstra que o país lusitano, desde as primeiras conquistas de terras inimigas, estabelecia mal o liame entre o bem público e o bem privado, justificando, pois, a origem dos valores patrimonialistas na administração pública brasileira. Sem qualquer receio, o rei lusitano utilizava o patrimônio público para o 228

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pagamento das despesas do seu próprio lazer e de sua família e, principalmente, para o sustento de todos aqueles que por ele eram, de alguma forma, privilegiados. Formava a Coroa, assim, um imenso patrimônio rural de bens “requengos”, “regalengos”, “regoengos”, “regengos”. Aliado às circunstâncias na qual se organizava Portugal, a mudança da Coroa lusitana para o Brasil foi o fator preponderante para estruturar a administração pública brasileira sob os valores portugueses vinculados ao patrimonialismo. Com D. João IV e sua família, embarcavam cerca de 10 a 15 mil pessoas no começo do século XIX que, diante dos receios de invasão francesa no território português, buscavam, essencialmente, a manutenção do sistema de privilégios do qual eram dependentes. Os dados históricos revelam que a realeza portuguesa, contando com 736 (setecentos e trinta e seis) anos de existência, detinha 16 marqueses, 26 condes, 8 viscondes e 4 barões. Já a monarquia brasileira, depois de somenos oito anos de vivência, já ultrapassava o número de nobres portugueses, possuindo cerca de 28 marqueses, 8 condes, 16 viscondes e 21 barões. Mas não era só isso que evidenciava o sistema de privilégios no início da formação da sociedade brasileira. A primeira das conhecidas vantagens a ser oportunizada naquela época foi a oferecida aos desbravadores das terras do Brasil-colônia. Através da carta de doação e do foral os exploradores e o monarca estabeleciam os direitos e obrigações de cada um acerca da regência das capitanias hereditárias. Entretanto, a Coroa portuguesa não simplesmente distribuía as terras para quem as quisesse explorar. Ao contrário, meticulosamente, selecionava pessoas próximas de sua própria realeza, com o único intuito de manter-se vigilante do aparelhamento estatal e manter o sistema de privilégios que imperava na sociedade. Como mencionado alhures, o Estado brasileiro era gerido por um estamento, de modo que ser um mero súdito brasileiro não bastava para perceber as vantagens concedidas pela Coroa. A título de exemplo, era requisito indispensável para a investidura em funções públicas que o candidato fosse um “homem bom”. Estavam nesse grupo enquadrados, “além dos nobres de linhagem, os senhores de terra e engenhos, a burocracia civil e militar, com a contínua agregação de burgueses comerciantes” 10 A partir do sistema de concessões das capitanias hereditárias, advieram inúmeras outras formas de gratificações, dentre elas as delegações de chefia de poder e as nomeações em cargos públicos. O sistema de “cabides de emprego” demonstrar-se-á, como se verá adiante, como sendo uma das formas mais evidente do favoritismo brasileiro durante todo o processo de desenvolvimento da administração pública. O clientelismo é uma conhecida prática política contemporânea que consiste em confundir o patrimônio público com o privado que, próxima à corrupção pura, faz uso das finanças do Estado de forma indireta, utilizando REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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os recursos estatais para a promoção de interesses pessoais e favorecimento da própria carreira política. O fisiologismo é o outro termo utilizado para essa prática no Brasil. Assim, o modo patrimonialista de gestão, como bem ressaltado pelos historiadores Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, não ficou adstrito ao século XIX. Como se pretende demonstrar adiante, o sistema de privilégios configura-se como uma herança tradicionalista lusitana capaz de atravessar as fronteiras do tempo e da democracia, à medida que, em sua manifestação mais recente na administração pública, a reforma administrativa da década de 90, que pretendia superar o modelo burocrático de gestão e instituir o gerencialismo, acabou perpetuando, inclusive institucionalmente, o patrimonialismo existente desde o colonialismo e que, com a última reforma administrativa, revestiu-se de um moderno aparato de gestão. 2.2 Os modelos da administração pública brasileira e sua evolução A Administração pública brasileira vivenciou desde a sua formação três modelos de gestão: o patrimonialista, o burocrático e o gerencialista. Produto da sociedade mercantil e senhorial lusitana, o primeiro deles marcou todo o século XIX, persistindo até a Era Vargas do século XX. Buscando ampliar o grupo minoritário que governava o país e superar o sistema de privilégios que imperava na sociedade oligárquica, o governo de Getúlio Vargas burocratizou a administração pública, criando em 1936 o Departamento de Administração do Serviço Público – DASP. Com o passar do tempo, portanto, a Administração pública brasileira, estruturada basicamente pelos ditames do patrimonialismo, passou a sofrer mudanças significativas, de modo a reprimir paulatinamente a prática de favorecimento pessoal praticando dentro do Poder Público. Promovida por Maurício Nabuco e Luiz Simão Lopes, a reforma administrativa de 1936, dentre outras coisas, instituiu: a) o ingresso no serviço público por concurso; b) os critérios gerais e uniformes de classificação de cargos; c) a organização dos serviços de pessoal e de seu aperfeiçoamento sistemático; d) a administração orçamentária; e) a padronização das compras do Estado e f) a racionalização geral de métodos. Destarte, baseada no mérito profissional e obediente ao princípio da hierarquia dos cargos, a administração pública burocrática foi adotada em substituição à administração patrimonialista. É que o modelo vigente no estado oligárquico do século XIX não mais se revelava compatível com a expansão inevitável do capitalismo industrial, que necessitava para a sua atuação uma definida e clara separação entre o Estado e o mercado. Além do mais, as democracias parlamentares surgidas naquele tempo não compactuavam com o favoritismo e com a corrupção, intrínsecas ao sistema patrimonial de gestão pública. 230

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No entanto, no período do pós-guerra, a partir do momento que o chamado Estado do bem-estar social começa a ser delineado e, definitivamente, quando este passa a suplantar o anterior Estado liberal, a lenta e cara administração burocrática anuncia a sua fuga. As bandeiras do humanismo, do pluralismo e do reformismo levantadas pelo Welfare State não se mostram, pois, amigáveis à burocracia. A recessão econômica decorrente das duas grandes guerras mundiais e a anterior quebra da bolsa de Nova York, em 1929, foram marcos decisivos para traduzirem “a urgência da superação dos postulados liberais da mão invisível do mercado, e consequentemente, da não intervenção do Estado na esfera econômica”11 Isto porque o Estado do bem-estar social insere-se numa concepção de Estado-Providência, colocando-se como agente promotor positivamente da educação, da saúde, da previdência, do desenvolvimento econômico, da garantia salarial, ou seja, dos direitos e garantias fundamentais de segunda dimensão inerentes aos cidadãos. Acerca das finalidades cometidas ao Estado-providência, retira-se da doutrina que: [...] a função primordial atribuída ao Estado do século XX – pondose de lado as experiências totalitárias de direita e esquerda, aqui consideradas como regimes de exceção – é a proteção a uma determinada gama de direitos ‘fundamentais’. Noutros termos, o Estado está a serviço da sociedade e perante ela deve legitimar o poder de que foi investido, utilizando-o para cumprir as promessas inscritas no estatuto da modernidade. [...]. Humanismo, pluralismo e reformismo são, pois, valores básicos desse Estado nascido da Ilustração e que pretende levar a efeito as promessas inscritas no estatuto da modernidade, e o Welfare State é produto da articulação, da dinâmica, desse princípios num momento histórico específico.12

Nesse sentido, no instante em que o gigante Estado social do século XX toma posição central no contexto mundial, produto das acirradas críticas à teoria liberal clássica do Estado mínimo, percebeu-se que a burocracia racional-legal descrita por Max Weber não proporcionava nem rapidez, nem boa qualidade e tampouco custo baixo pra os serviços prestados ao público. Verificou-se que apenas enquanto prevaleceu o abstencionismo social do Estado Liberal a administração burocrática revelou-se hábil a atender as demandas societárias e, sobretudo, a superar a administração patrimonialista existente desde os primórdios de existência do Estado brasileiro até o início do século passado. No Brasil, a administração pública burocrática predominou até a década 60, quando, durante o regime militar, o país começava a dar os seus primeiros REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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passos contra a densa, centralizadora e burocrática gestão administrativa e rumava ao modelo gerencialista, que se inspirava numa concepção de Estado e de sociedade democrática e plural13 Proporcionando, pois, a implantação de uma filosofia de desburocratização, através do Decreto-Lei nº 200 de 1967, a administração pública federal brasileira foi descentralizada e as noções de administração direta e indireta instituídas. Em seu art. 4º, foram estabelecidos os órgãos e entidades integrantes de cada uma das esferas, compreendendo nesta as autarquias, as empresas públicas e sociedades de economia mista e naquelas os órgãos de cúpula da presidência da República e de seus Ministérios. Também, pelo mesmo Decreto Lei foram inseridos os institutos das concessões, permissões e autorizações de serviços públicos14 Fragmentada, assim, a administração pública em direta e indireta, a gerência de recursos públicos e a prestação de serviços foi flexibilizada e os controles meramente formais foram abrandados no setor indireto. Todavia, apesar de destituído o poder hierárquico nessa esfera, um sistema de controle de resultados ainda se fez presente. Elencando os produtos advindos com o Decreto-Lei 200/1967, ensina Bresser Pereira15: A reforma iniciada pelo Decreto-Lei 200 foi uma tentativa de superação da rigidez burocrática, podendo ser considerada como um primeiro momento da administração gerencial no Brasil. Toda a ênfase foi dada à descentralização mediante a autonomia da administração indireta, com base no pressuposto da rigidez da administração direta e da maior eficiência da administração descentralizada. Instutuíramse como princípios de racionalidade administrativa o planejamento e o orçamento, a descentralização e o controle de resultados. Nas unidades descentralizadas foram utilizados empregados celetistas, submetidos ao regime privado de contratação de trabalho. O momento era de grande expansão das empresas estatais e das fundações. Com a flexibilização de sua administração, buscava-se uma maior eficiência nas atividades econômicas do Estado.

Entretanto, apesar da suposta superação do patrimonialismo com o modelo anterior de gestão administrativa, as alterações administrativas proporcionadas pelo texto do Decreto-Lei pretendendo a reforma administrativa no âmbito federal trouxeram conseqüências inesperadas. Isso porque, ao permitir a contratação de funcionários públicos para o ingresso na administração pública indireta sem a efetiva aprovação em concurso público, incitou práticas obsoletas de favoritismos e desprestigiou qualquer mudança a ser feita na administração pública, enrijecendo ainda mais o sistema burocrático nela antes implantado. E, não obstante a desejável situação econômica existente naquela época, as décadas seguintes revelaram-se financeiramente problemáticas ao Estado. 232

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Nos anos 70 e 80, cinco fatores foram componentes básicos para desencadear a crise fiscal experimentada pela maioria dos países do mundo, sobretudo para aqueles em desenvolvimento. São eles: déficit público, poupanças públicas negativas, dívidas internas e externas exorbitantes, falta de crédito do Estado e baixa credibilidade do governo. No caso brasileiro, as rentáveis poupanças públicas dos anos 70, capazes de financiar as infindáveis obras do Estado a que tudo prestava, são substituídas por uma crescente dívida pública externa na década seguinte. No âmbito interno, os dados revelavam que 48,1% do PIB brasileiro representavam a dívida interna do Estado.16 Diante do fracasso das economias do Estado-providência, aliado ao caminho de ruína pela qual rumava o comunismo, as críticas, ditas “neoliberais” contra o protecionismo estatal, desencorajador do trabalho e alvo de interesses pessoais, ganhavam ênfase no contexto mundial. Se, nos anos 30, os tempos propiciavam uma avaliação crítica do liberalismo econômico, os anos 70 e 80 favoreceram o reaparecimento do discurso neoliberal defendendo o Estado-mínimo, quanto ao intervencionismo nos setores sociais e econômicos. Em decorrência de tal contexto econômico, os países da América Latina, Estados ainda fracos quanto às suas instituições políticas, foram submetidos a rígidas políticas de ajuste fiscal e levados a reverem suas posições intervencionistas perante a sociedade. O Consenso de Washington, preconizado por John Willianson numa conferência realizada em Washington pelo IEE (Institute for International Economics), elencava uma série de políticas públicas neoliberais a serem adotadas pelos países a fim de superar a crise fiscal. As fórmulas político-econômicas apresentadas foram adotadas, posteriormente, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial para – aparentemente - todos os países do mundo, mas na realidade incidiu nos países latino-americanos endividados, em toda e qualquer renegociação de dívida externa. Assim, a privatização, a desregulamentação e a liberação comercial apresentaram-se como meios de ultrapassagem da crise fiscal do Estado e o setor privado tornou-se, pois, estratégico. O Estado interventor, então, sujeita-se a uma reforma administrativa. Em outras palavras: Nessa perspectiva, o rigor do cumprimento do ritual burocrático não conseguiu sobreviver aos avanços tecnológicos e ao mundo globalizado, de mudanças constantes e imprevisíveis. A gestão da coisa pública passou a exigir uma forma de administrar mais ágil, descentralizada, e mais voltada para o controle dos resultados que dos procedimentos. É nesse contexto que surge a chamada administração gerencial.17 REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Nesse sentido, com a crise estatal das décadas de 80 e 90 atingindo diversos países, as críticas neoliberais contra a ineficiência do gigante “EstadoProvidência” reaparecem no contexto mundial e propuseram a sua substituição pelo chamado “Estado mínimo”. Passa a ser o grande projeto de marketing político do governo de Fernando Henrique Cardoso, o modelo gerencial de administração, vale dizer, a resposta efetiva para parte da crise fiscal do Estado brasileiro. O mero ensaio de desburocratização experimentado com o DecretoLei 200 dá lugar, pois, à Emenda Constitucional nº 19/98. Com a crise assolando as contas públicas brasileiras, portanto, teve-se como necessário reduzir a intervenção do Estado e a década de 90 foi o momento ideal para tanto. Compilada em tópicos voltados à redução do déficit público, à eficiência administrativa e a sua conseqüente transparência e participação, a Emenda Constitucional nº19 foi aprovada em julho de 1998, apresentando um novo modelo de gestão administrativa, o gerencialismo. No entanto, apesar de oportuna, a estratégia dos congressistas em estruturar a administração pública em moldes gerencialistas, a reforma nasceu voltada ao retrocesso político em virtude da persistência de um modelo existente desde o colonialismo e que agora vinha revestido de um moderno aparato de gestão, o patrimonialismo. É que, como bem concluído pelo economista Bresser, para uma perfeita e possível administração pública em moldes gerencialistas, o modelo de dominação tradicional patrimonialista não pode ser intrinsecamente desejável de ser exercido ou, muito menos, fazer-se claramente presente e aceito na sociedade. E, ao contrário do caso brasileiro, deve-se demonstrar ultrapassado e arcaico.18 2.3 A sobrevivência do modelo patrimonial na reforma administrativa Como se pode perceber pelo detalhado histórico traçado anteriormente, o Brasil, quando de sua colonização, recebeu da tradição cultural portuguesa a prática patrimonialista de condução das relações entre interesses públicos e privados e que, diante tal fato, fez com que a herança recebida se refletisse em diversos setores do País, fazendo-se presente ainda hoje, sobretudo na administração pública. Quanto aos pontos a seguir suscitados, como já mencionado anteriormente, o que se pretende demonstrar são os requícios do patrimonialismo no corpo do texto da Reforma Gerencial da década de 90. Para tanto, tratar-se-á no tópico seguinte, de alguns institutos criados com a reforma e sua repercussão no contexto social e político. 2.3.1 Contratos de gestão e organizações sociais As organizações sociais são figuras alternativas ao engessado e falido 234

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Estado burocrático que foram implementadas no Brasil com a Reforma Administrativa Gerencial no final da década de 90. Na Lei das Organizações Sociais (Lei 9.637/98), faculta-se ao Poder Público a possibilidade de firmar “parcerias” com pessoas de direito privado, sem fins lucrativos, a fim de desenvolver atividades importantes para a coletividade, como ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde (art. 1º). Representavam as organizações sociais, pois, uma estratégia de execução descentralizada de políticas sociais. Desde que atendidos os requisitos estabelecidos em lei, as entidades privadas tornam-se aptas a habilitarem-se como organizações sociais, cabendo, no entanto, ao Ministro ou titular de órgão supervisor da área de atividade, correspondente aos seus objetos sociais, e ao Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, após um juízo de conveniência e oportunidade, portanto, de ampla discricionariedade, assim qualificá-las. As parcerias travadas seriam estabelecidas através de um chamado contrato de gestão, em que o Estado, saindo da posição de prestador de serviços e nesse instante atuando como mero controlador de resultados, sujeitar-se-ia a destinar recursos orçamentários, bens públicos e ceder servidores públicos para o efetivo cumprimento do referido contrato (arts. 12 e 14). Em contrapartida, caberia à entidade privada a fiel obediência ao programa de trabalho proposto, bem como o alcance às metas nele estipuladas, sob pena de sua desqualificação como organização social (art. 16). Os requisitos específicos para a habilitação de uma entidade privada como organização social são: Art. 2º- São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social: I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre: a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação; b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades; c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei; d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral; e) composição e atribuições da diretoria; f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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contrato de gestão; g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto; h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade; i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados; II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado.

O primeiro ponto a ser levantado diz respeito ao procedimento de habilitação e qualificação de uma organização social. O art 2º, II, da Lei 9.637/98 estabelece que, alcançados todos os requisitos para a habilitação, a qualificação de uma entidade privada como organização social só será efetivada caso haja: “aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado” (atual Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão). Ou seja, após atendidas as exigências previstas em lei para habilitação, ficaria a entidade privada à mercê da ampla discricionariedade de dois Ministros do Estado. O procedimento de qualificação das organizações da sociedade civil de interesse público, figuras também criadas com a Reforma Administrativa Gerencial, em compensação, é vinculado, sendo permitida a todo e qualquer entidade privada que preencha as condições necessárias previstas em lei. Tratase de entidades privadas sem fins lucrativos que, semelhantes às organizações sociais, firmam parcerias com o Poder Público, com a qual a ele se credenciam a receber recursos e bens públicos e sujeitam-se ao fomento de assistência social, combate à pobreza, promoção gratuita de saúde, da cultura, da cidadania ou dos direitos humanos. Não se trata aqui de questionar o instituto jurídico da discricionariedade administrativa. Em diversas situações, na verdade, a figura jurídica demonstra-se pertinente à atuação dos agentes políticos e, acima de tudo, imprescindível para a atuação do Estado como administrador dos interesses da sociedade. Entretanto, sendo o contrato de gestão um instrumento que permite que o Poder Público destine recursos orçamentários, bens públicos e até mesmo servidores públicos a 236

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serem por ele próprio custeados, o juízo de conveniência e oportunidade, caracterizador da conduta discricionária, não se pode fazer presente. Permitir tal prática, é afrontar o princípio administrativo da licitação, é não oportunizar um processo de qualificação igualitário entre as entidades privadas, é, pois, abrir as portas para o favorecimento e retroceder a práticas semelhantes a condutas patrimonialistas. A questão da discricionariedade outorgada aos Ministros de Estado tornase ainda mais crítica quando evidenciados outros dois pontos: a possibilidade do fornecimento de bens públicos sem um regular processo licitatório (art. 12, § 3º) e a transferência de servidores públicos, às custas do erário, para as organizações sociais (art 14). A propósito, como bem apontado por Celso Antônio Bandeira de Mello, ao relacionar os singelos requisitos exigidos para estarem aptas as organizações sociais a receberem todas as gratificações previstas em lei com o emaranhado de condições necessárias para se firmar meras relações contratuais com o erário público: [...] para alguém qualificar-se a receber bens públicos móveis e imóveis, recursos orçamentários e até servidores públicos, a serem custeados pelo Estado, não necessita demonstrar habilitação técnica ou econômico-financeira de qualquer espécie. Basta a concordância do Ministro da área (ou mesmo do titular do órgão que a supervisione) e do Ministro da Administração que já não existe mais, por força da Medida Provisória 1795, de 1.1.99, hoje 2.216-37, de 31.8.2001, e cujas atribuições passaram para o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Enquanto que para travar com o Poder Público relações contratuais singelas (como um contrato de prestação de serviços ou de execução de obras) o pretendente é obrigado a minuciosas demonstrações de aptidão, inversamente, não se faz exigências de capital mínimo nem demonstração de qualquer suficiência técnica para que um interessado receba bens públicos, móveis ou imóveis, verbas públicas e servidores custeados pelo Estado, considerandose bastante para a realização de tal operação a simples aquiescência de dois Ministros de Estado ou, conforme o caso, de um Ministro e de um supervisor da área correspondente à atividade exercida pela pessoa postulante ao qualificativo de ‘organização social’. Trata-se, pois, da outorga de uma discricionariedade literalmente inconcebível, até mesmo escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá favorecimentos de toda espécie.19

O questionamento sobre a constitucionalidade da Lei 9.637/98, que se refere à qualificação de entidades de direito privado como organizações sociais, já chegou, inclusive, no Supremo Tribunal Federal. Em 1999, o Partido dos Trabalhadores – PT e o Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizaram ação direta de inconstitucionalidade em face do dispositivo de lei que trata das organizações sociais e do inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Argumentaram, em síntese, que os textos impugnados tiveram como única finalidade a transferência de atividades já desenvolvidas por autarquias e fundações de direito público para entidades de direito privado, mantendo, contudo, a possibilidade de transferência pelo Poder Público de recursos públicos, bens do erário e, ainda, de servidores públicos, tudo às custas do Estado, de maneira que permaneceram, portanto, em seu substrato, encargos públicos, devendo ser orientadas, por conseguinte, pelas normas de direito público. A ADIN ainda não foi julgada pelo plenário, tendo havido apenas o julgamento da medida cautelar, após a realização de quatro sessões. A última sessão aconteceu em 01.08.07, tendo o tribunal, então, por unanimidade, indeferido a cautelar que requeria a suspensão imediata dos textos contestados. Ainda sobre os contratos de gestão, dispõe o art. 3º da Emenda Constitucional nº 19/98: § 8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: I - o prazo de duração do contrato; II - os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes; III - a remuneração do pessoal. § 9º O disposto no inciso XI aplica-se às empresas públicas e às sociedades de economia mista, e suas subsidiárias, que receberem recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral.

Nesse sentido, além da possibilidade da Administração direta firmar contratos de gestão com organizações sociais, poderá ainda firmar ajustes com entes da própria administração pública indireta. A previsão demonstra-se um tanto quanto estranha, na medida em que os contratos de gestão são instrumentos que permitem à Administração Central conceder maior autonomia aos contratados, liberando-os de determinados procedimentos supostamente excessivos, em troca do cumprimento efetivo de um programa pré-definido, bem como do alcance das metas pré-estabelecidas. Ora, abrir brechas nos procedimentos constitucionais a serem seguidos pelo Poder Público, a fim de que esse mesmo erário cumpra determinados programas de forma efetiva, é não ter em mente que, com ou sem contratos, está livre a Administração Pública para exigir que seus entes assim o façam. Não há razão lógica para que o erário responsabilize-se gratuitamente em contratos de gestão para atingir determinado objetivo se pode alcançá-lo sem que se firme qualquer contrato. E, ainda que se possa questionar quanto à possibilidade que os “administradores públicos” firmem contratos de gestão com o erário, ou considerando 238

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que a lei a que faz menção o dispositivo da EC/19 ainda não se faz vigente no ordenamento jurídico brasileiro, tal previsão torna-se imperativa de ser aqui suscitada. É que o que se nota sobre tal instituto, num primeiro momento, é um propósito de fugir à todo custo das normas de direito público a que estão sujeitos todos os integrantes do Poder Público, caso contrário, vota-se à confusão patrimonial de interesses públicos e privados. 2.3.2 Sujeição das empresas estatais de prestação de serviços público ao regime jurídico próprio das empresas privadas Visando superar o modelo de administração pública burocrático e detallhista, que se fazia presente até então, A Emenda Constitucional nº 19/98 visou sujeitar as empresas estatais prestadoras de serviços públicos ao regime jurídico próprio das empresas privadas. (). As empresas estatais compreendem as empresas públicas, estas formadas por capital unicamente de pessoas de direito público, e as sociedades de economia mista, caracterizadas por serem sociedades anônimas constituídas com recursos públicos e privados, tendo como maior detentor de ações com direito a voto o Poder Público. Revelando-se como um instrumento de ação do Estado, há duas espécies de empresas estatais, umas que exploram atividade econômica, praticando, pois, uma atividade substancialmente atípica do Estado e outras que prestam serviços públicos ao Estado, exercendo, então, atividades próprias do Estado. Exatamente por praticarem atividades essenciais do Estado, comparada com as primeiras, as empresas prestadoras de serviços públicos, ocupam um posição de maior sujeição aos princípios e regras que regem a Administração Pública. Tais espeficidades eram, até então, inquestionáveis na doutrina publicista brasileira. Não obstante, dispôs o art. 22 da EC/19: Art. 22. O § 1º do art. 173 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art.173.............................. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: [...]; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; [....]

Desse modo, estranhamente, sem que fosse feita qualquer distinção entre as empresas prestadoras de serviços e as exploradoras de atividade econômica, REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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o dispositivo de lei submeteu ambas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, livres, portanto, numa primeira análise, de licitarem, de abrirem concursos públicos, de prestarem contas com o Poder Público, bem como de sujeitarem-se às rígidas normas de direito público. Nesse sentido, é a lição de Bandeira de Mello: Como os objetivos estatais são profundamente distintos dos escopos privados, próprios dos particulares, já que almejam o bem estar coletivo e não o proveito individual, singular (que é perseguido pelos particulares), compreende-se que exista um abismo profundo entre as atividades que o Estado criou para secundá-la e as demais pessoas de Direito Privado, das quais se tomou por empréstimo a forma jurídica, ao ser transposto para empresas públicas e sociedades de economia mista, tem que sofrer – também naturalmente – significativas adaptações, em atenção a suas peculiaridades. Se assim não fosse, e se as estatais desfrutassem da mesma liberdade que assiste ao comum das empresas privadas, haveria comprometimento de seus objetivos e funções essenciais, instaurando-se, ademais, sério risco para a lisura no manejo de recursos hauridos total ou parcialmente nos cofres públicos. [...] Em suma: a correta interpretação do art. 22, XVII, é – e só pode ser – a de que a lei a ele se refere disporá sobre o estatuto das empresas exploradoras de atividade econômica, nada tendo a ver com as prestadoras de serviço público ou outra atividade propriamente pública.20

Por tal motivo e visando reprimir qualquer possibilidade que práticas tipicamente patrimonialistas começassem a ser exercidas, alguns publicistas manifestaram a opinião de que a norma de sujeição das empresas estatais ao regime próprio das empresas privadas limita-se às empresas exploradoras de atividade econômica, sendo esta a versão que se incorporou definitivamente na Constituição Federal, no art. 173, § 2º 2.3.3 Agências reguladoras e a previsão de admissão de pessoal técnico em caráter temporário Atualmente, as agências reguladoras têm recebido grandes destaques na doutrina publicista brasileira. Muito se discute sobre o poder de regulação que estaria ao seu alcance, bem como quais seriam os limites pertinentes a serem impostos, a fim de que não haja uma efetiva invasão na competência do Poder Legislativo. Não obstante, outro tema a ela referente mostra-se igualmente importante e, aliás, imprescindível de ser tratado no presente artigo, a saber, a admissão de pessoal técnico em caráter temporário sem concurso público por até 36 meses. Talvez, em função de ser fruto da Reforma Administrativa Gerencial da década de 90 e a brecha no quadro de pessoal técnico ter sido prevista naquela 240

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mesma época, o tema tenha perdido certo impulso após ter sido exaustivamente debatido por renomados doutrinadores e magistrados sem que qualquer medida retificadora fosse tomada pelo Poder Público. Brasilino Pereira dos Santos, procurador regional da República, no interessante artigo “Ilegalidade das contratações temporárias para o quadro das agências reguladoras e fiscalizadoras e o projeto para proibição de concurso”, escancara ao público a sua indignação sobre o assunto. Assim também faz Celso Antônio Bandeira de Mello, incansavelmente e seguidamente, em todas as edições de seu Curso de Direito Administrativo desde que o fato esdrúxulo veio à tona. Agências reguladoras são entidades da administração pública indireta enquadradas no gênero de autarquias sob regime especial, tendo como função precípua o controle de pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos, regidas sob o regime de concessão e permissão. A título de exemplo, pode-se citar a ANEEL, ANCINE, ANPM, ANVISA, ANA, ANP, ANATEL, dentre outras . Os pontos principais que as diferenciam da generalidade das autarquias, conforme detalhado na Lei da ANATEL, está na independência administrativa (grau maior de liberdade), ausência de subordinação hierárquica, autonomia financeira, fixidez do mandato e estabilidade de seus dirigentes (art. 8º, § 2º, da Lei 9.472/97). Diversas agências reguladoras, como a ANP (Agência Nacional do Petróleo), a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e a ANA (Agência Nacional de Águas) prevêem em seus dispositivos originais de lei a admissão de pessoal técnico temporário pelo período de 36 (trinta e seis) meses. À propósito: § 1º Nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição, fica a ANA autorizada a efetuar contratação temporária, por prazo não excedente a trinta e seis meses, do pessoal técnico imprescindível ao exercício de suas atribuições institucionais. § 2º Para os fins do disposto no § 1º, são consideradas necessidades temporárias de excepcional interesse público as atividades relativas à implementação, ao acompanhamento e à avaliação de projetos e programas de caráter finalístico na área de recursos hídricos, imprescindível à implantação e à atuação da ANA” (Lei 9984/00 - ANA). 2º É a ANEEL autorizada a efetuar a contratação temporária, por prazo não excedente de trintae seis meses, nos termos do inciso” (Lei 9.479/96 - ANEEL). Art. 76. A ANP poderá contratar especialistas para a execução de trabalhos nas áreas técnica, econômica e jurídica, por projetos ou prazos limitados, com dispensa de licitação nos casos previstos na legislação aplicável. Parágrafo único. Fica a ANP autorizada a efetuar a contratação temporária, por prazo não excedente a trinta e seis meses, nos REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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termos do art. 37 da Constituição Federal, do pessoal técnico imprescindível à implantação de suas atividades (Lei 9.478/97 - ANP). Art. 36. São consideradas necessidades temporárias de excepcional interesse público, nos termos do art. 37 da Constituição Federal, as atividades relativas à implementação, ao acompanhamento e à avaliação de projetos e programas de caráter finalístico na área de vigilância sanitária, à regulamentação e à normatização de produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde, imprescindíveis à implantação da Agência. § 1º Fica a ANVS autorizada a efetuar contratação temporária, para o desempenho das atividades de que trata o caput deste artigo, por período não superior a trinta e seis meses a contar de sua instalação. § 2º A contratação de pessoal temporário poderá ser efetivada à vista de notória capacidade técnica ou científica do profissional, mediante análise do curriculum vitae (Lei 9.782/99 – ANVS, hoje ANVISA). “Art. 28. Nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, é a ANS autorizada a efetuar contratação temporária por prazo não excedente a trinta e seis meses, a contar de sua instalação (Lei 9.961 - ANS).

Tratando sobre a contratação excepcional sem concurso público, a Constituição Federal de 1988 permite que determinada lei estabeleça os casos de contratação temporária, fora, portanto, do regime do concurso público, a fim de atender necessidade provisória de excepcional interesse público (art. 37, IX). Em vista disso, por não haver tempo hábil para a realização de concurso e porque presente uma situação, frisa-se, excepcional, ou seja, destoante dos casos normais, permite-se que a exigência de prévia aprovação em concurso público para a investidura em cargos seja amenizada. Não obstante, ao passo que a Carta Magna consente tal gozo, não autoriza que, sob a aparente escusa de uma situação de excepcional interesse público, admita um ente público a contratação de pessoal técnico sem concurso público para atender demandas que, em realidade são de caráter rotineiro e/ou permanente. O que se infere dos transcritos textos de lei é que se trata de normas genéricas que não fazem qualquer tipo de menção a qual situação excepcional as agências estariam enfrentando, nem tampouco justificam o longuíssimo e não temporário prazo de 36 (trinta e seis) meses de contratação. Efetivada nesses termos, a lei termina por tornar as entidades verdadeiros antros de “cabides de emprego”. Evidenciando ainda mais a total disparidade com as normas de direito público, em 25 de fevereiro de 2000, o então Presidente da República assinou a Mensagem nº 25, que encaminhava o projeto de Lei nº 2.549/2000. Dentre os atos atentatórios aos bons princípios consagrados na democrática Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, previa o projeto a prorroga242

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ção dos referidos contratos de trabalho temporários por um prazo, “novamente curto”, de 24 (vinte e quatro) meses. Demonstrando seu repúdio contra tais práticas, retira-se do ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello: Ora, nos casos das Agências citadas, se a atividade é realmente apenas temporária não se justifica contrato que possa se estender por 36 meses, que este seria um ‘temporário’ longuíssimo. Se o preenchimento PE que deveria ser temporário, pela necessidade ingente de preencher cargos ou empregos necessários, então é igualmente absurdo o prazo, pois não se concebe que seja necessário tanto tempo para realizar o cabível concurso público. Em suma: há nisto uma ostensiva burla ao disposto no art. 37, II, da Constituição, pelo quê são inconstitucionais as regras introduzidas nas referidas leis de tais Agências. Pelas duas amostras – intento de escapar ao rigor moralizante da Lei Geral de Licitações e admitir pessoal sem concurso público – bem se vê a que vieram as tais ‘agências controladoras’. Se tal despautério já não bastasse, foi ainda ampliado pela citada Lei 9986, de 18.1.2000, cujo art. 26 estabeleceu: “As agências reguladoras já instaladas poderão, em caráter excepcional, prorrogar os contratos de trabalho temporário em vigor, por prazo máximo de vinte e quatro meses além daqueles previstos na legislação pertinente, a partir do vencimento de cada contrato”21

E, em que pese os mencionados dispositivos de lei ter sido objeto de revogação na Lei 10.871/04, fruto da Medida Provisória nº 155/2003, o fato inusitado no ordenamento jurídico brasileiro já havia se disseminado para outros órgãos, institutos e agências (agora no âmbito estadual e municipal). A fim de evitar a burla constitucional de exigência de concurso público para o provimento em cargos públicos, a jurisprudência, incansavelmente, vem reprimindo desde então tal conduta e declarando, por conseguinte, inconstitucionais as normas de direito que nesse moldes são editadas. Nesse sentido, à título de exemplos, o Supremo Tribunal Federal, analisando casos de contratação temporária no Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, na Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina e, mais recentemente, na Secretaria de Saúde – SESA- do Espírito Santo, assim se manifestou: Deferido pedido de liminar em ação direta ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, para suspender, até decisão final, a eficácia do art. 2º da MP nº 2.014/2000, que autoriza o Instituto Nacional de Propriedade Industrial a efetuar contratação temporária de servidores, por doze meses, nos termos do art. 37, IX, da CF (CF, art. 37 ... IX – “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;”). O Tribunal, à primeira vista, entendeu haver REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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relevância na tese sustentada pelo autor, em que se alegava inconstitucionalidade por ofensa à obrigatoriedade de concurso público para investidura em cargo ou emprego público (CF, art. 37, II), por se tratar de contratação por tempo determinado para atender necessidade permanente – atividades relativas à implementação, ao acompanhamento e à avaliação de atividades, projetos e programas de área de competência do INPI – não se enquadrando na hipótese prevista no inciso IX do art. 37 da CF”. (Ação Direta de Inconstitucionalidade em Medida Cautelar nº 2.125-DF, Rel.: Min. Maurício Corrêa, j. em 06.04.2000 - INFORMATIVO STF – 03 A 07 DE ABRIL DE 2000 – Nº 184). “Julgado o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra os artigos 1º e 2º da Lei 9.186/93, do Estado de Santa Catarina, que dispunha sobre a concessão de autorização e estabelecia os casos e condições para contratação de pessoal, por prazo determinado, no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde. Preliminarmente, o Tribunal, à vista da superveniente revogação do art. 2º da norma impugnada, julgou prejudicada, no ponto, a ação direta. Em seguida, o Tribunal, por ofensa ao art. 37, II e IX, da CF/88, julgou procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade do art. 1º da mencionada Lei que, sem especificar quais seriam as atividades de necessidade pública para a contratação temporária, nem demonstrar a real existência de necessidade temporária, autorizava a contratação de pessoal, no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde, por tempo determinado. Precedentes citados: ADI 1500/ES (DJU de 16.8.2002) e ADI 2125 MC/DF (DJU de 29.9.2000). ADI 2987/SC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19.2.2004. (ADI-2987)” (Ação Direta de Inconstitucionalidade 2987, DI 2987/ SC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 19.2.2004. - INFORMATIVO Nº 337 16 a 20 de fevereiro de 2004). Por entender caracterizada a ofensa aos incisos II e IX do art. 37 da CF, o Tribunal julgou procedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra a Lei Complementar 300/2004, prorrogada pela Lei Complementar 378/2006, ambas do Estado do Espírito Santo, que dispõem sobre a contratação de servidores, em caráter temporário, para atender as necessidades da Secretaria de Saúde SESA e do Instituto Estadual de Saúde Pública - IESP. Realçou-se que a Corte possui orientação consolidada no sentido de que, para a contratação temporária, é preciso que: a) os casos excepcionais estejam previstos em lei; b) o prazo de contratação seja predeterminado; c) a necessidade seja temporária; e d) o interesse público seja excepcional. Entendeu-se que as leis impugnadas fixam hipóteses abrangentes e genéricas de contratação temporária, sem especificar a contingência fática que, presente, justificaria a edição de lei que indicaria a existência de um estado de emergência, atribuindo-se, ao Chefe do Executivo interessado na contratação, a competência para estabelecer os casos. Tendo em conta a situação excepcional pela qual passa o país em virtude do surto da denominada “gripe 244

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suína” (Influenza A), o Tribunal, por maioria, modulou os efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99, para que ela tenha eficácia a partir de 60 dias da data de sua comunicação ao Governador e à Assembléia Legislativa. Vencido, neste ponto, o Min. Marco Aurélio, que simplesmente declarava as leis inconstitucionais, sem adentrar o campo da modulação”. Precedente citado: ADI 2987/SC (DJU de 2.4.2004). ADI 3430/ES, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 12.8.2009. (ADI-3430). (Ação Direta de Inconstitucionalidade 3430/ES, rel. Min. Min. Ricardo Lewandowski, 12.8.2009 - INFORMATIVO Nº 555, de 10 a 14 de agosto de 2009).

3 CONCLUSÃO Diante de tudo o que aqui foi exposto, observa-se que o modelo de dominação patrimonial, caracterizado pela confusão indiscriminada dos interesses públicos com os interesses privados e pela concentração do poder numa camada institucionalizada, imperou na sociedade brasileira durante todo o século XIX. Tal fato decorreu de uma herança tradicionalista lusitana assimilada pelo Brasil na época em que era uma colônia de Portugal que, capaz de atravessar as fronteiras do tempo e da democracia, mostra-se bastante presente, ainda nos dias atuais, especialmente na administração pública brasileira. No que toca à reforma admiministração gerencial, certo é que para se entender os novos entes com ela advindos é preciso que se modifique o modo de pensar e enfocar a administração pública, desonerando o aparato público das excessivas exigências formasi nos processos de implementação de medidas administrativas e nas variadas formais de interação do Poder Público com os particulares. Em contrapartida, ainda que não se questione sobre ser o gerencialismo o modelo de gestão mais indicado para a administração pública brasileira, uma mudança drástica no modo de atuação do Estado não poderia ser feita como aconteceu na década de 90. Resumidamente, sob um processo de mega-privatização de entes públicos, pouco transparente, voltado a grandes grupos empresarias, ao invés de uma pulverização acionária dessas empresas aos cidadãos, com subsídos generosos do BNDS para a aquisição das empresas públicas pelos grupos privados a juros muito baixos de retorno ao ente público. Isto sem mencionar a extrema rapidez das privatizações, tendo sido criadas as agências reguladoras, após as vendas das empresas, quando o bom senso recomendaria primeiro a criação e aparelhamento dos entes controladores e após isto a alienação das empresas a serem fiscalizadas. Isto porque a administração gerencialista, ao conferir maior autonomia aos entes públicos e parceiros privados e passando a controlar apenas os resultados das suas atividades, parte do pressuposto de que existe uma ilibada intenção das entidades e parceiros em primarem pelo interesse público, ou seja, que interesses pessoais não se farão presentes nesse âmbito de gestão administrativa. No entanto, não se pode perder de vista a herança patrimonialista que recebeu o País, por um largo tempo, de Portugal, especialmente porque a confusão do interesse público com o privado vêm se demonstrado quase imutável ao longo do tempo e bastante REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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atuante atualmente na administração pública, embora deva-se reconhecer vários avanços institucionais criados ou redefinidos na Constituição de 1988, tais como o novo papel do Ministério Público, a Controladoria da União, novas legislações como as de responsabilidade fiscal e improbidade administrativa, dentre outros. Tais mecanismos de garantias republicanas vêm, dia a dia travando duro combate com as mais diversas formas de atividades antirepublicanas, sem falar nas práticas de corrupção. Esta realidade, portanto, não se quer aqui questionar e sim, a contraproducente reforma administrativa, como exemplo de práticas que, embora baseada numa fórmula geral aparentemente mais racional, descentralizando a execução de atividades públicas via parceriros privados e mantendo com o Estado a fixação dos marcos regulatórios de tais implementações, encetou tal mudança a partir de critérios abertos a uma excessiva falta de controle prévio sobre decisões políticas por parte de tecnocratas sem o respaldo da legitimidade popular, típica dos parlamentares ou chefe do Executivo. É que, se num primento momento as propostas de implementação de uma desestatização na administração pública serviriam como forma de superaração à crise fiscal que vinha enfraquecendo o estado brasileiro, num segundo momento tais mudanças poderiam vir a fomentar as velhas práticas de tráfico de influência, clientelismo e favoritismos em geral. A propósito, Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Adminsitração Federal e Reforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso (19951998), ao tratar das mudanças imprescindíveis de serem realizadas junto com a Reforma Administrativa Gerencial, ressaltou que o mero repúdio ao patrimonialismo não seria capaz de extingui-lo da cultura brasileira. Seria preciso mais.22 Apenas a título de exemplo, convém enumerar determinados pontos da Reforma Administrativa que tenderam ao regime patrimonialista de dominação. Antes de tudo, é preciso ter em mente que licitação, concurso público e legalidade administrativas representaram avanços democráticos muito importantes para o Brasil, na medida em que se revelaram como instrumentos hábeis para reprimir o favoritismo clientelista. No entanto, às agências reguladoras, como a ANP, ANEEL, ANVISA, ANA, e outras, foi dada a permissão de admitirem pessoal técnico em caráter “temporário” (sem concurso público), pelo “curto ”prazo de 36 meses. Outras distorções se revelam com a qualificação das organizações sociais, as quais, mesmo após preencherem os requisitos de habilitação previstos em lei, ficam sujeitas ao juízo discricionário de dois Ministros de Estado quanto à sua contratação com o Poder Público. Ainda que os pontos levantados nesse artigo não representem uma total influência patrimonialista na Reforma Administrativa Gerencial, revela-se essencial denunciar seus pontos problemáticos para que seja dado um passo importante rumo à uma autêntica democratização da gestão administrativa do Estado. Assim, considerando que o modelo patrimonial, como prática instituída e hegemônica, já foi objeto 246

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de superação na organização administrativa do Brasil e que atualmente a sua prática é aparentemente repudiada, mostra-se oportuno evidenciar a permanência de alguns traços típicos desse antigo modelo organizacional no atual modelo gerencialista, de modo a ser, futuramente, objeto de supressão e aperfeiçoamento da gestão pública. REFERÊNCIAS BENDIX, Reinhard. In: HANNA, Elisabeth; VIEGAS FILHO, Jose (Trad.). Max Weber: um perfil intelectual. Brasilia: Unb, 1986. BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do Estado. Barueri: Manole, 2003. BRASIL.Decreto Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil/Decreto-Lei/Del0200.htm>. Acesso em: 22 nov. 2009. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996. ______. Da administração pública burocrática à gerencial. In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter Kevin (Org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1998a. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Jose Olympio, 1969. JUCÁ, Maria Carolina Miranda. Crise e reforma do Estado: as bases estruturantes do novo modelo. 2002. Jus Navigandi. Disponível em <http://jus2.uol. com.br/doutrina/texto.asp?id=3598>. Acesso em: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: EdUnb, 1991, v. 1. 1

Embora tenha se apresentado como uma tendência aparentemente geral, em realidade as fórmulas minimizadoras do papel do Estado no contexto sócio-econômico foram direcionadas aos países de terceiro mundo e em desenvolvimento que apresentavam grave déficit fiscal aliado a hiperinflação, dentre eles o Brasil 2 A categoria descritiva “patrimonialismo” foi utilizada inicialmente por Max Weber, ao descrever o modelo de organização estatal pré-burocrático e posteriormente utilizada por Raymundo Faoro, ao descrever a forma de organização administrativa do colonialismo brasileiro. Conferir respectivamente: WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol 1. Brasília: EdUnb, 1991 e FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989. 397p. 2. 1v. 3 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: EdUnb, 1991, v. 1. 4 BENDIX, Reinhard. In: HANNA, Elisabeth; VIEGAS FILHO, Jose (Trad.). Max Weber: um perfil intelectual. Brasilia: Unb, 1986, p. 270-271. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989, v.1. Ibid., p. 46-47. Ibid., p. 8. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Jose Olympio, 1969, p. 105-106. Ibid., p. 106. FAORO, op. cit. BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do Estado. Barueri: Manole, 2003. Ibid., p. 8-10. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996. BRASIL.Decreto Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0200.htm>. Acesso em: 22 nov. 2009. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Da administração pública burocrática à gerencial. In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter Kevin (Org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1998a, p. 273. Ibid. JUCÁ, Maria Carolina Miranda. Crise e reforma do Estado: as bases estruturantes do novo modelo. 2002. Jus Nagigandi. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3598>. Acesso em: BRESSER, 1996, op. cit. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 200, 239. Ibid., p. 216. Ibid., p. 180-181. BRESSER, 2003, op. cit.

THE SURVIVAL OF THE PATRIMONIALIST MODEL IN THE ADMINISTRATIVE REFORM OF THE STRUCTURE OF BRAZILIAN STATE ABSTRACT The main objective of this article is to demonstrate that, despite the timely strategy of the Brazilian government, executed in the nineties, to re-structure public administration based on a managerial model, aimed at overcoming the fiscal crisis that struck the State, the administrative reform was ill-fated since the beginning, due to a patrimonialist model, that has existed since colonial times and that still persists. Keywords: State Intervention. Patrimonialism. Survival. Managerial Administrative Reform.

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A REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PROFISSIONAIS DO SEXO Maria Lidiane Pinheiro* Roberta Laena Costa Jucá** RESUMO Inobstante a evolução normativa dos direitos fundamentais das mulheres no Brasil, as profissionais do sexo ainda são vítimas de discriminação de gênero e preconceito social, o que reflete na efetividade de seus direitos mais básicos. Essa situação é agravada pela adoção do sistema abolicionista pelo Ordenamento brasileiro, que não regulamenta nem criminaliza a prostituição, mas apenas algumas condutas que ocorrem no entorno da atividade. Nesse diapasão, objetiva-se com este artigo mostrar como a regulamentação da atividade prostituinte pode auxiliar na efetivação dos direitos fundamentais das prostitutas brasileiras. Palavras-chave: Prostituição. Regulamentação. Direitos Fundamentais. 1 INTRODUÇÃO No Brasil, o Estado Democrático de Direito está preconizado na Constituição Federal de 1988, que também disciplina os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Tais direitos traduzem os valores essenciais e necessários à vida digna do ser humano1, como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a igualdade perante a Lei, a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, a cidadania, a vida, a segurança, a liberdade e a igualdade entre homens e mulheres, a moradia etc. Em relação às mulheres, a Carta Magna brasileira estabeleceu vários direitos fundamentais que lhes asseguram condições básicas para uma vida digna: artigo 5º, inciso I, que preconiza a igualdade de homens e de mulheres perante * Graduanda em Direito pela Faculdade Christus, aluna da Iniciação Científica, com o projeto intitulado “O tráfico interno de mulheres para fins de exploração sexual e sua relação com a prostituição: análise das ações de enfrentamento e prevenção realizadas pelo Estado do Ceará.” lidicelso@yahoo.com.br ** Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professora da Faculdade Christus. robertalaena@gmail.com REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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a lei; artigo 6º, inciso XX, que versa sobre a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; artigo 7º, incisos XVIII, que dispõe sobre a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias, e XX, que estabelece a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei, e o art. 226, que garante a proteção e a participação das mulheres no âmbito familiar, dentre outros. Todavia, tais direitos nem sempre são concretizados e assegurados às mulheres brasileiras, as quais ainda enfrentam a discriminação de gênero e o machismo da maioria da população. Essa situação se agrava quando se trata das profissionais do sexo, que exercem a prostituição, em razão do acentuado preconceito ainda persistente em relação a essa atividade. Outro problema que contribui para essa situação é a adoção do sistema abolicionista, vigente no Brasil, o qual não regulamenta e nem criminaliza a prostituição, tratando as prostitutas apenas como vítimas dos aliciadores e ignorando a vontade desse grupo de exercer sua atividade de forma profissional, com o resguardo de seus direitos fundamentais.

Nesse contexto, objetiva-se entender como a regulamentação da prostituição pode auxiliar na efetivação dos direitos fundamentais das mulheres que exercem essa atividade. 2 REFERENCIAL TEÓRICO - SISTEMAS NORMATIVOS DA PROSTITUIÇÃO: O REGULAMENTARISMO COMO OPÇÃO MAIS FAVORÁVEL À CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PROSTITUTAS Como se sabe, a prostituição é reconhecida mundialmente como a profissão mais antiga do mundo e a sua definição é trabalhada por alguns doutrinadores, a exemplo de Reverón2, que dá a seguinte conceituação: “A prostituição (do latim prostitutio onis, de prostituere, que significa expor em público, pôr à venda) é toda atividade na qual uma pessoa troca serviços sexuais por dinheiro ou qualquer outro bem”. Para Rago3 a prostituição reside em [...] fenômeno essencialmente urbano, que se inscreve numa economia específica do desejo, característica de uma sociedade em que predominam as relações de troca, com a presença de todo um sistema de codificações morais, que valoriza a união sexual monogâmica, a família nuclear, a virgindade, e a fidelidade feminina.

Assim, a prostituição deve ser entendida como uma atividade de prestação 250

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de serviços sexuais em favor de uma contraprestação pecuniária, que deve ser analisada como um fator histórico mutável, pois várias foram as modificações ocorridas com o tempo, adequando essa atividade às características e aos avanços de cada sociedade. Ela pode acontecer de forma autônoma, quando a profissional não depende de ninguém para o exercício dessa atividade, ou dependente, quando a mulher trabalha para outrem, podendo haver exploração ou não. Acerca da condição normativa da prostituição, há três sistemas legais que dispõem sobre o tema: o regulamentarismo, o proibicionismo e o abolicionismo. No Brasil, a concepção regulamentarista surgiu de forma associada à política higienista. Gabriela Silva Leite esclarece como se desenvolveu a relação entre o regulamentarismo e o higienismo na sociedade brasileira: Na perspectiva higienista, a prostituta era considerada uma ameaça à construção da família higienizada. Ela era vista como responsável pela degradação física e moral dos homens e, por extensão, pela destruição das crianças e da família. Além disso, pervertiam, com o exemplo desregrado de suas vidas, a moral da mulher-mãe com os homens, o advento das doenças venéreas (no caso, a sífilis, para a qual não havia medicação curativa considerada eficaz) trouxe a necessidade de implementação de uma intervenção preventiva em relação à prostituição. Esse fato fomentou a discussão entre neo-regulamentaristas e abolicionistas que norteou a política sanitária de combate à prostituição implementada na época no Brasil. Uma das conseqüências dessa política foi a regulamentação confinatória ou isolacionista, que tolerava o meretrício apenas no âmbito fechado do bordel, aliada à repressão à prostituição de rua. Embora se soubesse da existência de outras modalidades de prostituição, principalmente as mais refinadas, considerava-se que essas envolviam um número pequeno de mulheres e, portanto, não necessitavam de intervenção.4

E segundo Luis Regis Prado5: A regulamentação tem por escopo objetivos higiênicos, a fim de prevenir a disseminação de doenças venéreas e também a ordem e a moral públicas. Por este sistema a prostituição fica restrita a certas áreas da cidade, geralmente distantes do centro, onde as mulheres sujeitam-se a um conjunto de obrigações, como a de submeterem-se a exames médicos.

Portanto, a ideia inicial do regulamentarismo não era fundamentada no interesse de resguardar os direitos das prostitutas; ao revés, objetivava isolar a prostituição das demais atividades e confinar as prostitutas a locais afastados do centro das cidades. Atualmente, o regulamentarismo funda-se na proteção e na efetividade REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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dos direitos das prostitutas. Esta é a tendência mundial, tendo como expoentes a Holanda, o Uruguai, a Bolívia, a Alemanha etc. Nesses locais, a prostituição está sob responsabilidade estatal para facilitar o combate à exploração sexual de mulheres, evitar a discriminação sofrida pelas profissionais do sexo e angariar mais tributos para o país. De acordo com Greco6: “Nesse sistema de regulamentação, as pessoas que se prostituem trabalham, em geral, com carteira assinada, possuem plano de saúde, aposentadoria, tal como ocorre na Holanda.” Nas palavras de Dimenstein7: Quebrando tabús! Países do Primeiro Mundo estão agora adotando leis que tratam a prostituição como se fosse qualquer outro negócio. Neste mês, o governo da Bélgica apresentou um projeto de lei para legalizar os bordéis, medida que a Nova Zelândia adotou no mês passado. Há três anos, os holandeses legalizaram os bordéis, e as prostitutas passaram a ter os direitos de qualquer trabalhador: carteira assinada, plano de saúde e aposentadoria. Em contrapartida, vão descontar para a previdência e pagar imposto de renda, como todo mundo.

Já segundo o proibicionismo, a prostituição é uma atividade criminosa, devendo serem punidos todos os envolvidos na atividade, inclusive as prostitutas. De acordo com essa corrente, tal atividade consiste em infração penal, como leciona Sanchez8: Proibicionista, a terceira concepção vê a prostituição como uma situação de compra e venda de prestação de serviços sexuais que deve ser proibida – acredita que a intervenção na demanda é a solução do problema. “Durante a década de 60, começou a surgir na França uma quarta concepção, chamada de autodeterminação. Esta linha de pensamento nasceu de um Movimento formado por prostitutas e simpatizantes à causa, tendo como bandeira a defesa dos direitos civis das mulheres em situação de prostituição, trabalhando questões como o resgate da auto-estima, a preservação às doenças – em particular às DSTs e AIDS, e o exercício pleno da cidadania”, afirma Irmã Roseli. A luta deste Movimento serviu de referência para a organização da Associação Nacional de Prostitutas e a Rede.

O proibicionismo trata a prostituição como uma chaga social ao tentar repreender todas as pessoas ligadas ao meretrício, não diferenciando as que apenas exercem daqueles que a exploram. Sendo assim, para esse sistema, até os clientes e as prostitutas devem ser punidos. Felizmente, essa é uma corrente minoritária, até pelo seu grau de abstração, dada a dificuldade de se determinar quem seriam as profissionais do sexo. Por fim, o abolicionismo consiste na crença de que a prostituta é uma mera 252

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vítima do explorador e, portanto, não deve ser considerada criminosa, responsabilizando criminalmente aquelas pessoas que contribuem de alguma forma para o seu exercício, a exemplo do cafetão. Esse pensamento parte do pressuposto de que a prostituta sempre é coagida por um terceiro a exercer a prostituição, e nunca a exerce por vontade própria. É a corrente adotada pelo Brasil e pela maioria dos países. Acerca do abolicionismo, preleciona Barreto9: O Brasil é um país considerado abolicionista em relação à prostituição, tendo assinado, em 1951, o Tratado Abolicionista Internacional, da ONU. Possui uma política de tolerância, não penalizando quem exerce a atividade, mas considerando crime ser gerente ou dono de casa de prostituição, impedindo o requerimento de leis trabalhistas. Pode-se observar que, por trás de tal postura, há uma visão de que a prostituta não tem culpa, embora esteja fazendo algo errado, sendo uma vítima que é ‘induzida ou atraída à prostituição’, conforme descrito no Código Penal Brasileiro.

A visão abolicionista foi adotada, no Brasil, pelo Código Penal de 1940, estando positivada no título Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual, título alterado pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. O legislador optou em criminalizar apenas as condutas que estão no entorno da atividade prostituinte, não considerando criminoso o ato de se prostituir, como se depreende dos artigos a seguir mencionados. Artigo 228: “Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”. § 1o “Se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos”. § 2º “Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude: pena - reclusão, de quatro a dez anos, além da pena correspondente à violência”. § 3º “Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.”

Como se percebe, esse dispositivo criminalizou condutas acessórias à prostituição, menos significantes, na contramão na tendência contemporânea de proteção à liberdade sexual. Em consonância com esse pensamento está o insigne jurista Cezar Roberto Bitencourt, que expõe crítica sobre as alterações feitas pelo legislador no presente artigo, a saber: O falso moralismo impediu o legislador contemporâneo de excluir do ordenamento jurídico brasileiro um tipo penal completamente superado e absolutamente desacreditado, em razão de sua (praticamente) inaplicabilidade ao longo de quase sete décadas de REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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vigência. Contraditoriamente, para um legislador que pretende proteger a liberdade sexual individual, que é a finalidade que esse texto se autoatribui (Lei n. 12.015/2009, criminaliza, ao mesmo tempo o exercício dessa liberdade. Com efeito, tratando-se de prostituição entre adultos, sem violência ou grave ameaça, temos dificuldades em aceitar que o legislador infraconstitucional tenha legitimidade para criminalizar exatamente o exercício livre da sexualidade de cada um(art. 5º, X e XLI).10

Apesar disso, deve-se reconhecer um ponto positivo na diferenciação entre a prostituição e a exploração sexual, pois, anteriormente, o caput de tal dispositivo só se referia à prostituição, como se prostituição e exploração sexual fossem institutos idênticos. Na verdade, é fundamental que se faça a distinção entre prostituição e exploração sexual, notadamente porque, em geral, se dá o mesmo significado a esses conceitos, o que acaba contribuindo com a intensificação do preconceito e da marginalidade da atividade prostituinte. A exploração sexual é o aproveitamento ilícito ou o comércio da atividade sexual de outrem para obter benefícios para si. É o ato de um terceiro intermediar a prestação de serviços sexuais de mulheres com vistas à obtenção de algum tipo de pagamento. A prostituição, na acepção desta pesquisa, consiste na livre prestação de serviços sexuais, com ou sem intermediários, em troca de uma contraprestação pecuniária. Por sua vez, o artigo 229 versa sobre a casa de prostituição: “Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.” A principal modificação nesse artigo foi a substituição do termo “casa de prostituição ou lugar destinado a encontro para fins libidinosos” por “estabelecimento em que ocorra a exploração sexual”. Muitas críticas são formuladas pelos doutrinadores, pois, no que concerne à prostituição de adultos, é contraditório que se permita o seu exercício, mas que seja proibido o funcionamento de local onde ela ocorra de forma livre, porque nem sempre a prostituição acontece vinculada à exploração sexual. Sobre a real situação desse crime no Brasil, versa Rogério Greco:11 A existência de tipos penais como o do art. 229 somente traz descrédito e desmoralização para a Justiça Penal (Polícia, Ministério Público, Magistratura, etc), pois, embora sendo do conhecimento da população em geral que essas atividades são contrárias à lei, ainda assim o seu exercício é levado com efeito a propagandas em jornais, revistas, outdoors, até mesmo em televisão, e nada se faz para tentar coibi-lo. [...] Acreditamos que o controle social informal, praticado pela própria sociedade, seria suficiente para efeitos de conscientização dos males causados pela prática de 254

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determinados comportamentos que envolvem a prostituição, não havendo necessidade de sua repressão por parte do Direito Penal, que deve ser entendido como extrema ou ultima ratio.

Greco confirma a inaplicabilidade dos dispositivos referentes ao meretrício. Por fim, o dispositivo 230 refere-se ao rufianismo, aduzindo: “Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa”. § 1o “Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa”. § 2o“Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima: pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena correspondente à violência”.

O artigo 230 trata de quem aufere alguma vantagem daquela que exerce a prostituição. Assim, faz-se mister explicitar a diferença entre rufianismo ativo e passivo. O rufião ativo é o que participa diretamente dos lucros obtidos pela prostituta, caracterizando uma relação de trabalho, em que o agente funciona como agenciador ou empresário da prostituta; o rufião passivo, a seu turno, é aquele que se faz sustentar pela prostituta, sendo vulgarmente conhecido como “gigolô”. Em relação a esse tipo penal, parte da doutrina critica sua permanência no Código Penal, alegando que o princípio da intervenção mínima, como explicita Nucci: No Brasil, permanece-se atrelado a uma figura típica ultrapassada: pune-se quem tira proveito da prostituição alheia sem examinar se o quadro merece intervenção penal, vale dizer, o simples agenciamento da prostituição alheia pode ser altamente interessante para pessoa prostituída, consistindo em medida natural para a repartição de lucros com quem presta auxílio. Não fosse a questão moral, tratar-se-ia de uma prestação de serviço a quem presta serviço. Ilustrando, o agenciamento de modelos para desfilar em uma passarela provoca lucros e tanto a modelo quanto o agenciador os repartem. Qual a diferença no tocante a prostituta e o rufião? Para responder a essa indagação, deve-se abstrair a questão moral (prostituição é imoral) e não se leva em conta qualquer ato constrangedor (para tanto, a intervenção penal é justa). Assim fazendo, parece- nos difícil sustentar a existência do delito previsto no art. 230, caput, do Código Penal.12

Nesse panorama normativo, deve-se destacar que um elemento essencial REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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para o conceito jurídico de prostituição é a habitualidade. Com efeito, para que se configurem os crimes preconizados nos artigos supracitados, a prostituição deve ser exercida com frequência e habitualidade, sendo possível aferir que o exercício esporádico da atividade prostituinte não pode ser caracterizado como prostituição. Nesse tocante, é interessante analisar a conceituação, dada por alguns juristas, ao termo prostituição, a exemplo de Luis Régis Prado13: “Prostituição, elemento normativo extrajurídico, consiste no exercício habitual do comércio do próprio corpo para a satisfação sexual de um número indeterminado de pessoas.” No mesmo sentido, manifesta-se Rogério Greco14 ao definir prostituição: “[...] Percebe-se, portanto, mediante as lições dos renomados autores, que a prostituição, como atividade profissional do sexo, somente se configura com o requisito da habitualidade.” De acordo com as explanações, é possível destacar algumas características essenciais para a caracterização do exercício da prostituição, quais sejam, a habitualidade, o fim lucrativo, o número indeterminado de pessoas para quem se presta os serviços sexuais e a precindibilidade do contato físico. Deve-se esclarecer, por oportuno, que, não obstante a opção do legislador brasileiro pelo abolicionismo, predomina entre as prostitutas o sentimento de ilicitude de sua atividade. Esse fator decorre tanto da conexão da prostituição com os crimes acima citados como - e, sobretudo - do preconceito social que ainda impera na sociedade brasileira, fruto de muitos anos de condenação moral intensa e reiterada. [...] o reflexo resultante da conjugação desses fatos históricos trouxe a consolidação de um senso comum em que a prostituta passou a ser representada como sendo uma mulher desprovida de alguns traços mais distintivos do gênero feminino. É como se nela estivesse incorporada uma anomalia no sistema de gênero: a mulher que possui uma maneira peculiar de exercer a sua sexualidade, ou seja, o faz de forma pública é desprovida de laços afetivos e, pelo fato de experimentar o sabor da transgressão sexual, não é merecedora da vivência conjugal, familiar e, sobretudo, da maternidade. Esse modo de representar a mulher prostituta, atribuindo-lhe características transgressoras, presentes no senso comum, incide na percepção que ela faz de si mesma. Ao mesmo tempo interfere nas interações que ela terá, seja no momento de exercer a profissão, seja no momento de buscar serviços médicos ou mesmo em diferentes âmbitos da vida íntima e social.15

A adoção do sistema abolicionista e esse preconceito social fazem que as profissionais do sexo encontrem dificuldades para efetivar direitos fundamentais. Com efeito, o fato de a prostituição não ser regulamentada pela legislação brasileira e a natureza marginal que é dada à prostituta são circunstâncias que prejudicam essas mulheres no exercício e na concretização de seus direitos mais básicos. Consideradas “criminosas” pela sociedade, as prostitutas são constantemente violadas em sua dignidade, não lhes sendo assegurada igualdade com 256

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os homens, liberdade (compreendendo a liberdade de expressão locomoção, pensamento etc), segurança, moradia digna, saúde, lazer e tampouco proteção no mercado de trabalho. Na verdade, essas profissionais são diariamente vítimas de discriminação de gênero, sendo, muitas vezes, humilhadas e tratadas como meros objetos sexuais, como se a atividade que exercem possuísse o condão de retirar-lhes a natureza humana e a dignidade. No Brasil, são vários os casos concretos de violência e desrespeito diário aos direitos fundamentais das prostitutas, como se pode depreender dos exemplos elencados a seguir: Em São Paulo, um jovem de 24 anos foi preso sob suspeito de atear fogo a uma garota de programa em São José dos Campos, a 91 km da Capital. A vítima, de acordo com a polícia, teve queimaduras de 1º e 2º graus do joelho para baixo. Em outro caso, no Rio de Janeiro, rapazes que espancaram uma empregada doméstica em um ponto de ônibus, na madrugada de 23 de junho, tentaram justificar a violência afirmando que acharam que se tratava de uma prostituta. Na mesma madrugada, uma prostituta foi agredida em outro ponto de ônibus. Um dos rapazes que espancou a doméstica também foi reconhecido pela prostituta como um de seus agressores.16

Com apenas dois exemplos, afigura-se possível perceber a transgressão a vários direitos fundamentais das prostitutas, como os direitos à vida, à dignidade, à integridade física e moral, ao livre exercício da atividade prostituinte e à igualdade, entre outros. Tais matérias jornalísticas registram e divulgam os atos de violência perpetrados contra as prostitutas e refletem o desrespeito a seus direitos fundamentais, demonstrando como tais mulheres continuam sendo vítimas de intenso preconceito social. Em razão desse cenário, entende-se que o regulamentarismo aparece como a melhor alternativa para que os direitos fundamentais das prostitutas sejam assegurados. Isso porque, ao invés de ignorar (abolicionismo) ou proibir (proibicionismo) a prostituição, essa corrente trata a atividade prostituinte como um fator social, merecedora de respeito e proteção estatal como qualquer outra profissão, resguardando às prostitutas todos os seus direitos fundamentais. Primeiramente, deve-se ressaltar que as prostitutas são seres humanos como todos os demais, dotadas de plena capacidade para o exercício da cidadania. Não se pode admitir a exclusão das prostitutas como sujeito de direitos apenas em razão da prática da atividade prostituinte, sob pena de afronta aos princípios humanitários e à Constituição Federal de 1988. “A Profissional do Sexo, como qualquer outra pessoa, é sujeito capaz de Direitos e Obrigações na ordem civil. O nosso Código Civil ampara, sem distinção entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos Direitos Civis”17.

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Em segundo lugar, com a regulamentação da prostituição, seria possível a garantia de vantagens trabalhistas e previdenciárias às prostitutas, como a carteira de trabalho, a aposentadoria, o seguro desemprego etc. Indubitavelmente, a regulamentação dessa atividade traria benefícios óbvios para as trabalhadoras do sexo, as quais, ao terem seus direitos reconhecidos, poderiam lutar contra a discriminação e o abuso de que são vítimas, facilitando, também, a denunciação daqueles que as ameaçam. Outrossim, é importante ressaltar que, com a regulamentação da prostituição, o Estado brasileiro, além de garantir a dignidade das profissionais do sexo, poderia angariar contribuições por meio dos impostos, tornando mais eficaz o combate aos crimes que envolvem a exploração da prostituição. As críticas ao sistema regulamentarista podem advir, dependendo do tipo de regulamentação proposta, se tiver a concepção higienista agregada, podendo ser, assim, considerada conservadora, obrigando as profissionais do sexo a exames de saúde compulsivos, locais determinados e limitados ao exercício de tal atividade, e toda a espécie de requisitos ou de condições limitadora direcionadas ao exercício da prostituição. Por último, é imprescindível ressaltar que a prostituição já é reconhecida como atividade pela Classificação Brasileira de OcupaçõesCBO -, documento que normatiza e nomeia os títulos e os conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro. A atividade reconhecida pela CBO é a de profissionais do sexo, sob o número 5198-05. Portanto, pode-se aferir que, apesar de abolicionista, o Brasil caminha em direção à regulamentação da prostituição. 3 METODOLOGIA DA PESQUISA No presente artigo, utilizou-se do método dedutivo, partindo da análise geral acerca da prostituição e dos direitos fundamentais das profissionais do sexo para o exame específico das prostitutas do Ceará. Foi utilizada a pesquisa bibliográfica, a partir da consulta de livros, normas, artigos jurídicos e documentos sobre o tema, complementada por pesquisa de campo, que se desenvolveu mediante a aplicação de questionários estruturados com prostitutas de três municípios do Ceará, a saber, Fortaleza, Caucaia e Sobral. Foram ouvidas 13 (treze) profissionais do sexo, com a faixa etária de 18 a 40 anos de idade. 4 ANÁLISE DOS RESULTADOS - ENTENDENDO AS PROFISSIONAIS DO SEXO: RELATOS DE PESQUISA DE CAMPO REALIZADA NO CEARÁ Partindo dessa premissa [regulamentarismo como opção mais favorável à concretização dos direitos fundamentais das prostitutas], por meio de pesquisa de campo, buscou-se entender qual a concepção das prostitutas 258

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acerca da regulamentação da sua atividade e a percepção das profissionais em relação à prostituição. Inicialmente, indagou-se sobre a prostituição ser considerada como profissão: 54% (ciquenta e quatro por cento) das prostitutas afirmou que encaram a atividade como profissão e 46% (quarenta seis por cento) asseveraram que não. Portanto, a maioria considerou a prostituição como atividade profissional, como se pode verificar no gráfico abaixo:

Empós, indagou-se se a prostituição transgride a dignidade humana ou a integridade física e a moral de quem a exerce. Nesse caso, 38% (trinta e oito por cento) disse que a prostituição fere a sua dignidade ou a sua integridade física e moral, e 62% (sessenta e dois por cento) afirmou que não:

É importante destacar que as justificativas das prostitutas que responderam afirmativamente a questão acima estavam diretamente relacionadas ao preconceito de que são vítimas. São exemplos dessas justificativas: “sim, por causa dos preconceitos das pessoas”; “sim, porque fere a Constituição”; “por causa do preconceito e do afastamento dos amigos; ”sim, pois [a prostituta] é mal REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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vista pela família e pela sociedade”; “sim, porque sou vítima de preconceito”. Após analisar as respostas das prostitutas, percebe-se que o preconceito de que elas são vítimas é um dos maiores problemas enfrentados por essas mulheres, ferindo diretamente os direitos fundamentais à igualdade, à liberdade e ao livre exercício profissional. Em seguida, indagou-se como as entrevistadas se sentiam em relação a sua profissão.

A maioria representada por 54% (ciquenta e quatro por cento) aduziu que se sente satisfeita e nunca foi explorada; 23% (vinte e três por cento) se sente satisfeita, mas já foi explorada sexualmente; e 23% (vinte e três por cento) não se sente satisfeita, pois já foi ou é vítima de exploração sexual. Diante disso, inquiriu-se se as prostitutas escolheriam uma atividade distinta da prostituição.

Eis que 69%(sessenta e nove por cento) das prostitutas escolheria outra profissão, e 31% (trinta e por cento) permaneceria exercendo tal atividade. Diferentes profissões alternativas foram apontadas, a saber, advogada, professora, gerente e secretária. Essa resposta apresenta certa contradição com as demais: nas primeiras questões, a maioria das entrevistadas se mostrou 260

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satisfeita com a profissão, ao passo que, ao responder este questionamento, elas revelaram certa vontade de mudar de atividade. Por fim, foi feito um questionamento com as profissionais do sexo acerca da regulamentação da atividade, intencionando entender o seu comportamento mediante a aplicação da corrente regulamentarista.

E 62% (sessenta e dois por cento) aferiu concordar com a regulamentação da prostituição, enquanto 38% (trinta e oito por cento) não aquiesceu à ideia de regulamentar a prostituição. Das prostitutas que justificaram esta questão, uma delas explicou que “traria muita discórdia na família” e outra afirmou “sim, para as pessoas respeitarem mais a gente”. Como se percebe, nas duas afirmativas, sobressai-se a questão da discriminação tanto por parte da família como por parte da sociedade. De acordo com as respostas obtidas na pesquisa de campo, é possível aferir que incomoda às profissionais do sexo a imagem do crime associada à atividade que praticam bem como o fato de serem vítimas constantes do preconceito da sociedade machista que mantém um modelo de família patriarcalista, em que os direitos fundamentais das mulheres são os mais restritos possíveis. Analisando tais respostas em conjunto com o aporte teórico, é possível concluir que a regulamentação da prostituição seria muito benéfica para as prostitutas, as quais teriam seus direitos fundamentais reconhecidos e poderiam conviver de forma harmônica com a sociedade, sem serem vítimas de constantes preconceitos. O regulamentarismo possibilitaria à mulher a liberdade de dispor de sua sexualidade sem as restrições do pudor social. 5 CONCLUSÃO O Brasil tem como fundamento do seu Ordenamento Maior os direitos fundamentais, que asseguram ao ser humano direitos básicos a uma vida digna, como a cidadania, a saúde, a liberdade, a igualdade e o livre exercício de qualquer tipo de trabalho. Entretanto, na contramão do Constitucionalismo, o Brasil é signatário da corrente abolicionista, que não criminaliza nem regulamenta a prostituição. Essa atividade já é uma prática antiga e intrínseca a todas as sociedades, e o seu não reconhecimento legal finda por contribuir com a marginalidade da prostituição. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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O Estado brasileiro deveria regulamentar a atividade prostituinte para, assim, proporcionar uma maior efetividade dos direitos fundamentais das prostitutas. Essa regulamentação proporcionaria acesso a direitos constitucionais básicos, como a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade sexual, o livre exercício do trabalho, os direitos previdenciários, dentre outros, levando as mulheres a exercerem sua atividade com amparo no Estado Democrático de Direito, que cumpriria seu papel de assegurar a dignidade da pessoa humana de todo o povo brasileiro. Ademais, a regulamentação da prostituição facilitaria o combate de crimes relacionados ao meretrício, a saber, o turismo sexual e o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Outrossim, o Estado poderia cobrar tributos para auxiliar no custeio dos benefícios estendidos às profissionais do sexo, contribuindo para o fim da exploração, pois o dinheiro que hoje é pago àqueles que auferem algum tipo benefício ilegal com a prostituição se destinaria ao Estado brasileiro. Portanto, a regulamentação da prostituição só traria benefícios ao Estado brasileiro, notadamente no que concerne à concretização dos direitos fundamentais das profissionais do sexo. Essa mudança contribuiria, sobretudo, para o início da quebra de um tabu que marginaliza a prostituição com arrimo em uma moral atrelada a crenças e a interesses restritos e ultrapassados, fruto da discriminação de gênero ainda arraigada na sociedade brasileira. A regulamentação seria, pois, um passo firme em direção a construção de uma nova visão de mundo, menos preconceituosa e mais harmoniosa com o Estado Democrático de Direito e com os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Glauco. Jovens acham que prostituta é saco de pancada. G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/JOVENS+ACHAM+QUE+PROST ITUTA+E+SACO+DE+PANCADA.html>. Acesso em: 11 out. 2010. BARRETO, Luciana . Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamento no contexto de Belo Horizonte. UFMG. Disponível em: <www.fafich. ufmg.br/npp/.../dissertacao%20leticia%20barreto.pdf.>. Acesso em: 26 Jun. 2010. BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 4. DIMENSTEIN, Gilberto. Países ricos decidem legalizar a prostituição. Folha Online. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/.../gd210703a270703.htm>. Acesso em: 20 abr. 2010. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, v. 3. GUIMARAES, Katia; MERCHAN-HAMANN, Edgar. Comercializando fantasias: a representação social da prostituição, dilemas da profissão e a construção da cidadania. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 13, n. 3, Dec. 2005. Disponível 262

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A regulamentação da prostituição e a efetividade dos direitos fundamentais das profissionais do sexo

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Como ensina Ana Maria D`Ávila Lopes, direitos fundamentais são princípios constitucionais legitimadores do Estado, que refletem a dignidade humana de uma sociedade, em um determinado período: “Os direitos fundamentais, como normas principiológicas legitimadoras do Estado – que traduzem a concepção da dignidade humana de uma sociedade -, devem refletir o sistema de valores ou necessidades humanas que o homem precisa satisfazer para ter uma vida condizente com o que ele é. Com efeito, os direitos fundamentais devem exaurir a idéia de dignidade humana, porém não mais uma idéia de dignidade associada a uma natureza ou essência humana entendida como um conceito unitário e abstrato, mas como um conjunto de necessidades decorrentes da experiência histórica concreta da vida prática e real” (LOPES, Ana Maria D`Ávila. Os Direitos Fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Fabris, 2001, p. 39). Sobre o conceito de direitos fundamentais, ver também: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. REVERÓN, Nayine. Prostituição: exploração sexual e dignidade humana. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 25. RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 23. LEITE, Gabriela Silva. Estigma, gênero e prostituição. Consciência.net. Disponível em: <http://www. consciencia.net/comportamento/leite.html>. Acesso em: 20. Set. 2010. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte especial. 8. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2010, v. 2, p. 647. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, v. 3, p. 574. DIMENSTEIN, Gilberto. Países ricos decidem legalizar a prostituição. Folha Online. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/.../gd210703a270703.htm>. Acesso em: 20 abr. 2010. SANCHEZ, Angela Gênova. Prostituição: entenda esse fenômeno social. Oblatas. Disponível em: <www.oblatas.org.br/artigos_detalhes.asp>. Acesso em: 05 Maio 2010. BARRETO, Luciana. Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamento no contexto de Belo Horizonte. UFMG. Disponível em: <www.fafich.ufmg.br/npp/.../dissertacao%20leticia%20barreto. pdf>. Acesso em: 26 ago. 2010. BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 4, p.152. GRECO, op. cit., p.584-585. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte especial. 6. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2009, p. 854. PRADO, op. cit., p.649. GRECO, op. cit., p.582. GUIMARAES, Katia; MERCHAN-HAMANN, Edgar. Comercializando fantasias: a representação social da prostituição, dilemas da profissão e a construção da cidadania. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 13, n. 3, Dec. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 Out. 2010. ARAÚJO, Glauco. Jovens acham que prostituta é saco de pancada. G1. Disponível em: <http://g1.globo. com/Noticias/Brasil/JOVENS+ACHAM+QUE+PROSTITUTA+E+SACO+DE+PANCADA. html>. Acesso em:11.Out.2010. SILVA, Mario Bezerra da. Profissionais do sexo e o Ministério do Trabalho. Âmbito Jurídico, Rio Grande. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5233>. Acesso em: 29 set. 2010.

THE REGULATION OF PROSTITUTION AND THE EFFECTIVENESS OF THE BASIC RIGHTS OF FEMALE PROSTITUTES. ABSTRACT Regardless of the evolution in the field of the assurance of fundamental rights of women in Brazil, female prostitutes are still victims of gender discrimination and social prejudice, which reflects in the lack of effectiveness of their fundamental rights. This situation is exacerbated by the adoption of the abolitionist system by the Brazilian juridical order, which neither regulates nor criminalizes prostitution, but only considers illegal some behaviors related to the activity. In this sense, the aim of this paper is to show how the regulation of the prostitution activity could help to enforce fundamental rights of Brazilian female prostitutes. Keywords: Prostitution. Regulation. Fundamental Rights. 264

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INTENÇÃO TRANSPARENTE DO TEXTO E AFASTAMENTO JUDICIAL DE ESCOLHAS LEGISLATIVAS: O CASO DA DEMISSÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS Tércio Aragão Brilhante* RESUMO O regime disciplinar dos servidores públicos, constante dos Títulos IV e V da Lei n.º 8.112/90, estabelece, em seu artigo 128 o necessário respeito à individualização e proporcionalidade da penalidade a ser infligia. Por sua vez, o artigo 132 da Lei n.º 8.112/90 estabelece uma relação fechada entre determinadas faltas e a atração da penalidade de demissão. O controle judicial exercido sobre os atos administrativos que veiculam a demissão, segundo orientação jurisprudencial da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, pode afastar o apenamento, por critérios de proporcionalidade, mesmo nos casos em que os fatos apurados sejam daqueles enquadráveis na enumeração do artigo 132. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal possui orientação jurisprudencial que mantém o apenamento, caso seja respeitada a equação fato – tipo – pena, calcada no artigo 132. Neste trabalho, enfrentar-se-á essa questão, analisando criticamente as orientações jurisprudenciais, opinando-se sobre como deve ser interpretada/aplicada a legislação e os princípios da proporcionalidade e individualização da pena. O mote do estudo é a defesa de um controle judicial amplo, mas que não constitua substituição de escolhas legislativas, sem a devida declaração de inconstitucionalidade. Palavras-chave: Legalidade. Escolhas legislativas. Escolhas judiciais. 1 INTRODUÇÃO Muito se evoluiu no Brasil em relação à práxis administrativa e ao exame judicial dos atos aplicadores de penalidades disciplinares, especialmente após a promulgação da Constituição da República Federativa de 1988. Os círculos de imunidade, entendidos como os atos dos poderes públicos impassíveis de controle judicial, foram sendo restringidos passo a passo, pela atuação do Judiciário. *

Mestre em Direito Constitucional (UNIFOR). Professor de Hermenêutica e aplicação do Direito da Faculdade Christus. Procurador Federal. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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O paradigma dessa evolução é o acórdão do Mandado de Segurança n.° 20.999, do Plenário do STF, relatado pelo Ministro Celso de Mello. Naquela oportunidade, sob os ares da recente redemocratização, a Corte Suprema assentou que: A Constituição brasileira de 1988 prestigiou os instrumentos de tutela jurisdicional das liberdades individuais ou coletivas e submeteu o exercício do poder estatal – como convém a uma sociedade democrática e livre – ao controle do Poder Judiciário. Inobstante estruturalmente desiguais, as relações entre Estado e indivíduos processam-se, no plano de nossa organização constitucional, sob o império estrito da lei. A rule of law, mais do que simples legado histórico-cultural, constitui, no âmbito do Estado Democrático de Direito e fator de contenção do arbítrio daqueles que exercem o poder. É preciso evoluir, cada vez mais, no sentido da completa justiciabilidade da atividade estatal e fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito conseqüencial, a interdição de seu exercício abusivo.

Desde então, o controle judicial vêm ganhando em amplitude e intensidade. E é justamente essa a questão a ser enfrentada. Até onde pode ir o Judiciário em seu exame da licitude da demissão aplicada? A ferramenta do princípio da proporcionalidade autoriza que forma de tomada de decisão? Esta segunda pergunta se justifica por ser a proporcionalidade ou desproporcionalidade da pena disciplinar argumento recorrente nos arestos sobre a matéria. Ao longo do texto, serão trazidos para o debate, além dos pertinentes acórdãos do STF e do STJ, autores nacionais e estrangeiros, que tratem do tema específico sob análise e que enfrentem questões outras vinculadas ao estudo. 2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: ORIENTAÇOES DIVERSAS O Supremo Tribunal Federal, ao utilizar a proporcionalidade no exame das sanções disciplinares, toma posicionamento mais contido do que o posicionamento da Terceira Seção do STJ, uma vez que labora sob o raciocínio de que a proporcionalidade estaria respeitada se tiver sido respeitada a equação “fato-tipo-penalidade”, tal qual estatuída legalmente. Cite-se, a título exemplificativo, decisão da Primeira Turma sobre o assunto que foi proferida no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n.° 24.956, Relator Ministro Marco Aurélio. Assentou, então, a Corte Suprema a existência de uma equação entre tipo e pena administrativa, que aponta para a atração de determinada penalidade para determinado tipo disciplinar. Presente a equação, não caberia ao Poder Judiciário, em substituição à autoridade do Poder Executivo 266

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competente para aplicar a pena administrativa, rever demissão fundamentando-se no princípio da proporcionalidade. Eis o trecho pertinente da ementa: PROCESSO ADMINISTRATIVO - ACUSADOS DIVERSOS - PENA - ABSOLVIÇÕES. Uma vez presente, a equação “tipo administrativo e pena aplicada” exclui a tese da ausência de proporcionalidade. Enfoques diversificados, tendo em conta os envolvidos, decorrem da pessoalidade, da conduta administrativa de cada qual.

Outro é, como se demonstrará, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. O estudo das decisões do STJ sobre o controle judicial da penalidade disciplinar aponta para o Mandado de Segurança n.º 6.663, Terceira Seção, Relator Ministro Antonio Gonçalves, DJU de 02/10/2000, como acórdão paradigmático da jurisprudência que se firmaria na Terceira Seção do STJ sobre a proporcionalidade como possibilitadora do afastamento, sem declaração de inconstitucionalidade, da penalidade disciplinar. Lê-se na ementa desse aresto que: Na aplicação de penalidade, a par da estrita observância ao princípio da proporcionalidade, ou seja, a devida correlação na qualidade e quantidade da sanção, com a grandeza da falta e o grau de responsabilidade do servidor, impõe-se à autoridade administrativa, em decorrência dos comandos insertos na Lei nº 8.112/90, máxime em se tratando de demissão, a verificação da natureza da infração, os danos para o serviço público, as circunstâncias atenuantes ou agravantes e os antecedentes funcionais do servidor.

No ano de 2009, esse posicionamento ganhou notas de prevalência ampla nos arestos da Terceira Seção do STJ. Mais: o posicionamento do STJ descrito acima vai de encontro ao entendimento adotado pela Advocacia-Geral da União. A Corte se mostrava alheia a essa discordância, até então. Nesse ano, a orientação jurisprudencial de afastamento da penalidade expulsiva por critérios de proporcionalidade se consolidou na Terceira Seção, o que deve ter ocasionado um trabalho mais atencioso dos membros da AGU na elaboração das informações em mandado de segurança e nos recursos pertinentes. Os pareceres normativos foram invocados expressamente, e, enfim, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre eles. Por exemplo, eis trecho do acórdão proferido no Mandado de Segurança n.° 12.991, pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, relatoria do Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe de 03/08/2009: 3. São ilegais os Pareceres GQ-177 e GQ-183, da AdvocaciaGeral da União, segundo os quais, caracterizada uma das infrações disciplinares previstas no art. 132 da Lei 8.11290, se torna compulsória a aplicação da pena de demissão, porquanto contrariam REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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o disposto no art. 128 da Lei 8.11290, que reflete, no plano legal, os princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade, de extrato constitucional. 4. O ideal de justiça não constitui anseio exclusivo da atividade jurisdicional. Deve ser perseguido também pela Administração, principalmente quando procede a julgamento de seus servidores, no exercício do poder disciplinar. 5. A conduta do impetrante, que participava de gerência de empresa privada, embora reprovável, não afasta a possibilidade de aplicação da pena mais branda, diante da natureza e gravidade da infração cometida, dos bons antecedentes funcionais e da lesividade ao erário. Do cotejo entre seu histórico funcional e o ilícito administrativo praticado, impõe-se seja anulada a pena de demissão, sem prejuízo da aplicação de outra, de acordo com juízo da autoridade impetrada, diversa da demissão.

Os pareceres normativos números GQ – 177 e GQ – 183, da AdvocaciaGeral da União, foram afastados expressamente pelo STJ, por considerá-los ilegais. Na dicção da Corte, a ilegalidade apontada caracteriza-se pela injustiça1 e pela irracionalidade decorrentes da aplicação da pena de demissão em todos os casos enquadráveis no artigo 132 da Lei n.° 8.112/90. Do corpo do voto do Ministro Relator, colhemos o seguinte: A fiel observância dos pareceres em discussão não permite que a autoridade julgadora atue de forma racional, justa, no exercício do poder disciplinar. Impede que a Administração observe os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. O ordenamento jurídico pátrio não se alinha com atos administrativos desproporcionais, desprovidos de razoabilidade, que prestigiam soluções incompatíveis com os valores consagrados em nossa legislação e mesmo na Constituição Federal. Se, conforme estabelecido no âmbito do Poder Executivo, a demissão é compulsória quando caracterizada infração prevista no art. 132 da Lei 8.11290, parâmetros de valoração eqüitativa dos atos praticados pelos servidores são desprezados, dando margem ao cometimento de excessos pela Administração. É oportuno registrar que o princípio da legalidade não se mostra prestigiado quando se busca solução que se harmonize com interpretações isoladas, no caso, do disposto no art. 132 da Lei 8.11290. A fiel observância da lei reside na busca de soluções coerentes com o sistema normativo como um todo e, no presente caso, há flagrante contrariedade à regra contida no art. 128 da Lei 8.11290, conforme exposto.

No mesmo sentido do acórdão acima, inclusive considerando ilegais os pareceres da AGU: MS n.° 13.523, Terceira Seção, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe de 04/06/2009. Ainda no mesmo sentido e com menção farta a precedentes: ROMS n.° 28.487, Quinta Turma, DJe de 30/03/2009. 268

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O Mandado de Segurança n.° 12.991, constitui um caso de controle jurisdicional da substância2 mesma do ato administrativo. O Superior Tribunal de Justiça, além dos aspectos formais do processo disciplinar, analisou a essência da decisão, ponderando as variáveis do caso e entendendo - diferentemente do juízo da autoridade administrativa - que não se tratava de infração administrativa atrativa da penalidade de demissão, apesar de estar enumerada no rol do artigo 132 da Lei n.° 8.112/90. Não considerar que nesse caso houve controle da essência do ato administrativo, seria laborar em pudor ou respeito a uma noção vetusta da separação de poderes. Afinal, se o que há de mais substancioso e decisivo no processo disciplinar é a análise dos fatos para a extração da pena cabível, e é justamente a pena escolhida que é considerada como desproporcional, não haveria razões para se negar que o exame da essência do ato foi efetivado. Em síntese: a análise é da essência do julgamento administrativo, e pode, sim, o Judiciário, em razão da configuração contemporânea das funções do Estado, por decisões motivadas e racionais, sempre atento à Constituição, proceder a essa espécie de controle. A impossibilidade desse tipo de controle deve compor apenas a historiografia das ideias jurídicas, até porque o controle judicial dos atos administrativos se daria em razão da juridicidade, e não apenas da legalidade estrita. Além dos aspectos legais stricto sensu, também os aspectos principiológicos seriam objeto do crivo do Poder Judiciário, o que possibilita revisão mais ampliada.3 Esclareça-se: não há, neste trabalho, qualquer intenção de imunizar os atos administrativos do controle judicial. Não estamos a tratar aqui – e isso nos parece ser depreensível de trechos outros deste estudo – de uma disputa dística entre “pode haver o controle” ou “não pode haver o controle” da penalidade disciplinar. O tema do controle é enfrentado sobre outro aspecto. Está-se a um passo – ou a vários saltos – além dessa disputa, que parece datada e superada. Não é um trabalho sobre a possibilidade do controle. Enfrenta-se a questão e são propostas ideias sobre como esse controle deve ser exercido. Cuida-se de um trabalho sobre quais seriam os fundamentos do controle, sobre como deve ser seu discurso racional-justificativo, sobre até sobre que ponto o controle deve recair, sobre o avanço do exame sobre o substrato fático subjacente à querela, sobre o crivo sobre as conclusões extraídas administrativamente das provas colhidas. São essas as questões. Especificamente, o princípio, a regra, a máxima ou o parâmetro da proporcionalidade, a depender de sua intensidade, dá ensejo à reconfiguração plena dos papéis exercidos pelos Poderes do Estado, alçando o julgador ao papel de protagonista, um papel ascendente, como observa Paulo Bonavides:4 “Debaixo de certos aspectos, a regra de proporcionalidade produz uma controvertida ascendência do juiz (executor da justiça material) sobre o legislador, sem chegar todavia a corroer ou abalar o princípio da separação de poderes.” Afora isso, frise-se que não há discricionariedade na aplicação de pena disciREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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plinar prevista no regime da Lei n.° 8.112/90. Não há, portanto, mérito no sentido de oportunidade e conveniência. Não devemos tomar a indeterminação dos tipos e a margem de conformação existente na quantidade de dias da penalidade suspensiva como precedidos por juízo de conveniência. Essa espécie de juízo, no que toca às penalidades disciplinares, só existe na eventual conversão da penalidade suspensiva pela multa, pois eventuais acúmulo de serviço ou capacitação específica do servidor punido podem conduzir à decisão de mantê-lo na prestação de serviço.5 Entretanto, não se deve levar a amplitude do controle judicial do ato punitivo disciplinar a paroxismos descabidos, evitando-se a mera substituição da decisão administrativa pela decisão judicial. No caso da anulação judicial de pena de demissão, pode ocorrer a substituição do critério de proporcionalidade da lei pelo critério do órgão julgador, sem que se divise no ato administrativo qualquer pecha suficientemente dimensionada a ocasionar sua nulidade, a conclusão judicial de o julgamento administrativo não estar a cumprir o princípio da proporcionalidade, o bom senso ou o ideal de justiça, pode caracterizar subjetividade exagerada. Houve uma escolha de ordem legislativa pela pena de demissão para determinados tipos disciplinares. Identificado processualmente o cometimento de condutas enquadráveis nesses tipos, seria desbordar do sistema normativo e aplicar norma específica e sem respaldo no ordenamento. Exemplo: foi cometida a prática de improbidade administrativa. Todavia, apesar da previsão do artigo 132 da Lei n.° 8.112/90, entende-se que a demissão é desproporcional ou injusta para o caso, anula-se a decisão. Ora, em um sistema democrático, mesmo com o forte colorido dado às funções jurisdicionais, o afastamento de uma norma, no julgamento de um mandado de segurança, deve ser feito ou pelo resultado de estudo de conflito aparente ou pela declaração de inconstitucionalidade incidental. A leitura dos arestos do STJ, contudo, conduz à caracterização de um controle de proporcionalidade e razoabilidade das escolhas que couberam ao legislador, e cujo afastamento mais se relaciona com preferência de soluções do que com o exame de parâmetros jurídicos. 3 PRINCÍPIO DA JURIDICIDADE, OU LEGALIDADE CONSTITUCIONAL, OU LEGALIDADE RAZOÁVEL OU PROPORCIONAL A atuação dos entes públicos, nomeadamente em sua atuação de ordem administrativa, é informada pelo princípio da legalidade. A Constituição da República de 1988 assegurou natureza constitucional ao princípio da legalidade, enumerando-o como princípio da Administração Pública, ao lado dos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (este último em texto emendado). A noção do princípio da legalidade como a necessária atuação da administração pública pautada e vinculada ao ordenamento jurídico como um todo, e não apenas à lei no sentido mais estrito e formal da expressão, já constava das obras de autores como Miguel Reale,6 para quem, ao se tratar de respeito 270

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á legalidade: “Será mais preciso afirmar que a Administração não executa leis, mas sim o ordenamento jurídico, que é a ‘legislação in acto’ [...]”.7 Todavia, não é por isso que está autorizada a negação de marcada ressignificação que as noções contemporâneas de legalidade como juridicidade ou legalidade constitucional ou legalidade razoável ou proporcional têm. Mesmo podendo haver uma relação entre ambas as perspectivas, mesmo encontrando autores d’antanho que já mencionavam legalidade como respeito ao ordenamento, e não apenas como respeito à lei formal, não são idênticas as compreensões. E muito menos assemelhadas as práticas administrativas e judiciais. Hoje, se trabalha muito mais com os princípios e normas constitucionais do que antes. A exigência de respeito ao ordenamento é muito mais real e menos livresca do que parece ter sido até o início da redemocratização brasileira e das alterações paradigmáticas que o neoconstitucionalismo proporcionou. Essa redefinição da legalidade, essa mudança paradigmática, ganha especial repercussão e destacada importância no controle exercido pelo Judiciário sobre os atos da Administração Pública. Como bem anota Germana Oliveira de Moraes:8 A assunção pelo princípio da legalidade desses novos conteúdos: de legalidade constitucional, ao ordenar e regular o Poder Legislativo, e o de juridicidade, ao ordenar e regular o Poder Executivo, repercutirá diretamente sobre a compreensão teórica da discricionariedade e a amplitude do controle jurisdicional da atividade administrativa [...].

Todavia, não se perca de vista que a legalidade – ainda e também - é respeito à lei. Decerto que não apenas à lei ou qualquer lei. O respeito a que se deve ser tributário é o respeito à lei constitucional. Mas o alcance de como irão os intérpretes atuar em cima dessa ideia merece alguma atenção. Colhamos um exemplo oriundo de artigo publicado por membro de alto escalão do Poder Judiciário, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon:9 O nó górdio da questão está na resposta à seguinte indagação: até que ponto o Judiciário pode avaliar a proporcionalidade e afastar as razões técnicas e concretas do legislador? Não resta dúvida que tem a magistratura de fazer um exame macro da situação para não cometer o erro de privilegiar um princípio em detrimento, tendo sempre a ideia de que o administrador age de acordo com a lei e, no limite do que decida, pode-se sacrificar a lei em nome de um princípio maior, cujo ápice está no princípio da dignidade da pessoa humana.

Para se considerar juridicamente lícito o sacrifício da lei em nome de um princípio, entende-se que esse sacrifício deve ser o resultado da técnica de controle que o sistema constitucional brasileiro outorga ao Judiciário: o controle de constitucionalidade. Ao resolver uma questão, o julgador deve encontrar REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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solução que se adéque ao texto legal e ao princípio constitucional aplicáveis. Caso seja impossível tal solução, caso seja necessário o “sacrifício da lei”, essa lei há de ser declarada inconstitucional.10 Eros Roberto Grau,11 em tom assertivo, escreve que o intérprete, equivocadamente, acaba por excluir situações da esfera de incidência de uma norma, baseado na proporcionalidade. Promovida, assim, a substituição do controle de constitucionalidade pelo controle de proporcionalidade ou razoabilidade: Aqui a transgressão é escancarada, praticando-a freqüentemente os tribunais para excluir determinadas situações da incidência das normas do sistema. Os textos a que correspondem essas normas, que sobre essas situações incidiriam, são interpretados a partir da proporcionalidade e/ou da razoabilidade, consumando-se então tal exclusão.

A chamada legalidade razoável ou proporcional é isso mesmo: uma ideia de legalidade sem absurdos ou desmesuras desviantes. Não se deve extrair da legalidade razoável/proporcional quaisquer justificativas para a imposição daquilo que o intérprete/aplicador crê ser razoável em detrimento daquilo que o legislador entendeu sê-lo. Em um quadro, em uma moldura – para ficarmos com a expressão kelseniana – de possibilidades; cabe ao Legislativo a escolha das repostas ou da resposta que pode vir a ser enquadrada. Ao Judiciário, cabe afastar a entrada indevida do que não pode ser enquadrável. É o verdadeiramente irrazoável ou desproporcional que há de ser coartado. Coartação feita à luz dos parâmetros normativos dados. O juízo há de ser: essa aplicação é respeitadora dos parâmetros legais e constitucionais do ordenamento. O juízo não há de ser: esta aplicação não me parece ser tão boa quanto aquela. Por isso, prefiro aquela a esta. Para aquela escolha, imponho minha censura. Para esta escolha, rendo meu plácito. A decisão judicial que anulasse essa penalidade teria que afastar, por inconstitucionalidade, o dispositivo correspondente do artigo 132 da Lei n.° 8.112/90. Esse afastamento não é encontrado em qualquer dos arestos estudados. O que nos parece mais adequado é que o controle da pena disciplinar, especialmente quando examinada a substância da mesma, seja direcionado para a avaliação de seus motivos. Existentes e juridicamente corretos os motivos legais e fáticos, mantido deve ser o ato. No caso do regime da Lei n.° 8.112/90, a correlação tipo – pena deve ser respeitada pelo Judiciário como limite ao avanço de seu crivo institucional. Afinal, essa correlação é de ordem legislativa. Seu afastamento é indevido, salvante situações de aplicação timbradas pela pecha de inconstitucionalidade. Essa pecha há de ser motivadamente demonstrada e decisoriamente declarada de forma incidental ao caso concreto sob destrame. 272

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A não aplicação do dispositivo legal, por consideração de razoabilidade ou de absurdidade, sem que haja a necessária declaração incidental de inconstitucionalidade, além de incorreta, fere não só o ordenamento em sentido material, como em sentido procedimental, pois fere a necessária cláusula de reserva de plenário. 4 INTENÇÃO TRANSPARENTE DO TEXTO: DEMISSÃO É DEMISSÃO Mesmo escolas arrojadas de hermenêutica, encontram no texto um dado que não pode ser esquecido. O intérprete o fertilizará, construirá sentidos, criará, enfim. Entretanto, sempre que fizer isso, haverá de fazê-lo em cima do texto, partindo do texto. Na lição de Gadamer,12 o juiz, ao proceder à “complementação produtiva”, não deixa de se sujeitar à lei. É o que Friedrich Müller13 assevera ao reconhecer ser insubstituível a função explicativa e estabilizadora do texto literal da norma. Umberto Eco,14 sob perspectiva diversa, vinculada à semiótica, chega à mesma conclusão, apresentando a bela figura da “intenção transparente do texto”: [...] a intenção do texto é evidente e, se as palavras têm significado convencional, o texto não diz o que aquele leitor – que obedece a algum impulso íntimo – acreditava ter lido. Entre a inacessível intenção do autor e a discutível intenção do Leitor, está a intenção transparente do texto que contesta uma interpretação insustentável.

A palavra demissão possui significado próprio. Dentro da Lei n.º 8.112/90, não há qualquer plurissignificação, vaguidade ou ambigüidade do termo. Demissão é demissão, e só. Não pode significar outra coisa, não pode significar outra penalidade. Não existe demissão pela metade ou demissão e meia, razão pela qual não nos parece correto modular o que a lei não modula. Não parece correto romper a fronteira estabelecida pelo texto normativo. 5 O ARGUMENTO DO ARTIGO 128 DA LEI N.º 8.112/90 Respeitar o texto legal não é se aferrar a um único dispositivo, negando o restante das normas e o caso concreto. Respeitar o texto legal é saber que durante o processo hermenêutico, com atenção aos elementos a serem levados em consideração, pode-se defrontar com uma barreira instransponível ao resultado que supúnhamos, subjetiva e aprioristicamente, mais adequado. Konrad Hesse chamou essa barreira de “limite inultrapassável”.15 Barreira essa que, em um Estado Democrático de Direito, tem o respaldo de ser fruto das escolhas legislativas. Fruto das escolhas dos representantes eleitos do Povo. Enriqueça-se a análise, trazendo para o debate alguns outros dispositivos da legislação pertinente. Logo após a enumeração das penalidades disciplinares aplicáveis aos servidores públicos (art. 127), a Lei n. 8.112/90 estabelece critérios a serem levados em consideração pela autoridade administrativa ao tempo REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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da inflição da penalidade disciplinar. Reza o artigo 128 da Lei n.º 8.112/90: “Art. 128. Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.” Esse dispositivo é invocado por arestos do STJ, como justificativa legal para a aplicação do princípio da proporcionalidade, a fim de afastar a penalidade demissória, apesar da tipificação em uma das hipóteses do artigo 132. O dispositivo do artigo 128 foi expressamente invocado, por exemplo, no paradigmático acórdão proferido no Mandado de Segurança n. 6.683, deflagrador do entendimento da aplicação do princípio de proporcionalidade pelo STJ.16 Seria o artigo 128 o reflexo, “[...] no plano legal, dos princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade [...]”,17 para o processo administrativo disciplinar. À primeira vista, o argumento do artigo 128 parece fazer ruir a tese acima exposta de que a inaplicação da penalidade demissória a casos em que as condutas foram enquadradas nos tipos enumerados no artigo 132 constituiria um afastamento indevido do regime legal aplicável e um desapego às escolhas legislativas. Afinal, também foi escolha legislativa normada a enumeração de critérios condutores da aplicação das penalidades, os quais poderiam servir de razão para a anulação de penalidades expulsivas. Por esse fio condutor de raciocínio, a tese desenvolvida nesta dissertação, sem sombra de dúvida, ser tachada de formalista-literal. Ter-se-ia esquecido de fazer uma necessária leitura total da Lei n.º 8.112/90, aferrando-se em apenas um de seus artigos, esquecendo-se dos demais. Todavia, essa contra-argumentação não convence. É que a lei estabeleceu uma modalidade de penalidade específica, a qual não pode deixar de ser aplicada pela autoridade administrativa, mesmo tendo em mente os critérios do artigo 128, que podem, em casos tais, servir de guia para a classificação, ou não, dos fatos em tipos passíveis de demissão; mas não podem servir para o afastamento da penalidade relacionada ao tipo disciplinar. Se for a penalidade de advertência o caso, essa penalidade será aplicada. Se for o caso de suspensão, será suspensão a punição, com o juízo sobre a quantidade de apenação, uma vez que é a suspensão a penalidade mais plástica. Da mesma maneira, se o caso for de demissão, se o caso for daqueles previstos no artigo 132, da Lei n.º 8.112/90, será a penalidade de demissão aplicada. Pense-se analogicamente nos processos criminais. Existe, sem dúvida, o princípio da individualização da pena estatuído legalmente no artigo 59 do Código Penal. Todavia, não é correto defender que, para um crime a que se destina apenas a pena de prisão, seja, em respeito ao princípio da individualização da pena, aplicada uma multa. Ou, ainda, que seja aplicada uma pena de prisão inferior ao mínimo legalmente estabelecido.18 Válido lembrar que o artigo 59, I, do Código Penal, por termos expressos, limita a individualização às penas cabíveis: Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento 274

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da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas

O mesmo raciocínio pode ser transposto para a esfera disciplinar. O princípio de individualização da pena, os critérios de apenamento estatuídos no artigo 128 da Lei n.º 8.112/90, devem trafegar dentre as bitolas legais, não podendo implicar o afastamento da correlação entre fato e penalidade. Não se perca de vista que a penalidade de demissão não pode ser graduada. Se for apurado em processo disciplinar a ocorrência dos tipos previstos no artigo 132, é a penalidade de demissão que há de ser aplicada, não outra penalidade.19 6 CONCLUSÃO A Lei n.º 8.112/90 estabelece, em seu artigo 132, faltas administrativas que são atrativas da penalidade de demissão. Durante o último lustro, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento que considera possível, em respeito à proporcionalidade, o afastamento dessa sanção, mesmo nos casos em que a lei a destina para os fatos apurados e sem a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo em que se embasou o ato administrativo. O Supremo Tribunal Federal, ao utilizar a proporcionalidade no exame das sanções disciplinares, toma posicionamento mais contido do que o posicionamento da Terceira Seção do STJ, uma vez que labora sob o raciocínio de que a proporcionalidade estaria respeitada se tiver sido respeitada a equação “fato-tipo-penalidade”, tal qual estatuída legalmente. Entende-se que houve uma escolha legislativa sobre a adequação entre os fatos apurados e a penalidade por eles atraída. Apenas se houver a declaração incidental de inconstitucionalidade, respeitada a cláusula de reserva de plenário, o Poder Judiciário pode afastar a aplicação de norma que estabelece a correlação entre falta e a penalidade expulsiva. Isso não implica o amesquinhamento das funções judicantes ou uma tomada de posição autocontida. Entende-se que o escrutínio judicial sobre as penalidades disciplinares deve ser amplo. O juízo de proporcionalidade, sem declaração de inconstitucionalidade, pode servir para afastar a punição, em razão da análise de sua base empírica, acaso não seja encontrada a lesividade necessária para a configuração da falta legalmente estabelecida. Todavia, se essa configuração estiver presente, apenas a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal embasador da punição pode dar margem à sua anulação. O artigo 128 da Lei n.º 8.112/90, tal qual o artigo 59 do Código Penal, veicula a individualização e proporcionalidade da pena, mas dentro dos demais parâmetros legais. Não há, portanto, sobre posição desse dispositivo sobre a enumeração do artigo 132 da Lei n.º 8.112/90.l

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Intenção transparente do texto e afastamento judicial de escolhas legislativas: o caso da demissão de servidores públicos federais

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O aresto aproxima proporcionalidade, racionalidade e justiça. Além do voto do Ministro Relator, foi pronunciado voto pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que seguiu o do Relator e o elogiou, nos seguintes termos: “Sr. Presidente, o voto do eminente Relator, na minha percepção, foi antológico e pedagógico. Antológico porque põe no cenário devido a cautela que a Administração tem de ter ao exercer esse terrível poder de punir. Pedagógico porque ensinou como deve ser aplicada a sanção pela autoridade administrativa. Gostaria de ter escrito este voto”. O Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (2009, p. 176) demonstrou coerência com sua produção de ordem doutrinária, em que, também, aproxima proporcionalidade e justiça: “O princípio da proporcionalidade na aplicação da norma é, sobretudo, a realização da justiça no caso concreto.” Mais uma vez para evitar confusões conceituais e terminológicas, fez-se a escolha de não se utilizar o termo “mérito do ato administrativo” neste item do trabalho, utilizando os termos substância e essência. A motivação foi a doutrina que considera serem apenas os atos administrativos discricionários aqueles que possuem mérito administrativo. Cf., por exemplo, Fagundes (2005, p. 180). Noutro sentido - que nos parece mais adequado –, há autores que esmaecem a divisão de atos administrativos em vinculados e discricionários, por considerarem que discrição e vinculação são componentes do ato, existindo aqueles que sejam predominantemente discricionários e aqueloutros que sejam predominantemente vinculados, (MORAES, 1999, p. 37). MORAES, op. cit., p. 19-25. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 399 Conforme artigo 130, § 2º, da Lei n.° 8.112/90: “Quando houver conveniência para o serviço, a penalidade de suspensão poderá ser convertida em multa, na base de 50% (cinquenta por cento) por dia de vencimento ou remuneração, ficando o servidor obrigado a permanecer a prestar o serviço”. Na doutrina estrangeira, colha-se o exemplo de Entrena Cuesta (1974, p. 117), para quem também, o respeito à legalidade é o respeito ao ordenamento como um todo. Ao utilizar-se do termo “lei”, o autor faz questão de demarcar que está a se referir ao conceito em seu sentido mais amplo possível. Miguel Reale (1968, p. 21). MORAES, op. cit., p. 23. CALMON, op. cit., p. 8. Raciocínio semelhante se colhe do magistério de Germana de Oliveira de Moraes sobre o controle dos atos administrativos, sob o color do princípio da proporcionalidade: “A rigor, no Direito Brasileiro, o controle jurisdicional dos atos administrativos, à luz do princípio da proporcionalidade, corresponde, em última análise, a um controle desconcentrado de constitucionalidade das leis.” (MORAES, op. cit., p. 130.) GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 299. GADAMER, Hans-Georg. In: MEURER, Flávio Paulo (Trad.). Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. v. 1, p. 432. MÜLLER, Friedrich. In: NAUMANN, Peter; SOUZA, Eurides Avance de. (Trad.). Teoria estruturante do direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 203. Umberto Eco (2008, p. 91). HESSE, Konrad. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires (Trad.). Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 117. Referência colhida no texto intitulado “A interpretação constitucional”, traduzida por Inocêncio Mártires Coelho. Mas, o texto da norma como limite da interpretação se encontra em diversas passagens da obra de Konrad Hesse, sendo uma das características de sua doutrina. Por exemplo, a mesma ideia pode ser encontrada em seu livro “Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha”, traduzido por Afonso Heck. (HESSE, 1998, p. 69). No mesmo sentido, amalgamando o artigo 128 e os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade: “[...] no exame da razoabilidade e da proporcionalidade da demissão da impetrante, verifica-se que a autoridade coatora se distanciou de tais postulados, pois, consideradas as particularidades da hipótese em apreço, aplicou penalidade desproporcional à conduta apurada, em desobediência ao comando do art. 128 do Regime Jurídico dos Servidores Federais” (MS n.º 8.693, Terceira Seção, Relatora Ministra Maria Thereza Assis Moura, DJe de 08/05/2008). MS n.º 13.523, Terceira Seção, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 04/06/2009. Na seara do direito penal, a tese de aplicação de pena abaixo do mínimo legalmente estabelecido, especialmente frente a atenuantes, foi agitada na comunidade jurídica brasileira depois da promulgação da Constituição de 1988. Para sumariar a jurisprudência consolidada sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, em 1999, editou a Súmula n.º 231: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.

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19 Em sentido contrário, considerando possível o abrandamento da penalidade demissória em razão do artigo 128, da Lei n.º 8.112/90, mesmo percorrendo a mesma senda analógica com o direito penal: Unes, 2007, p. 83-88. Em sentido concorde: Farias, 2004, p. 69-70 e Furtado, 2007, 990-991. Ambos, entretanto, consideram presente a discricionariedade na aplicação da penalidade suspensiva, em razão do artigo 128, da Lei n.º 8.112/90, o que discordamos; por acreditar que a margem eletiva de dias de apenação não será informada pela discricionariedade.

CLEAR INTENTION OF THE LEGAL TEXT AND THE JUDICIAL AVOIDANCE OF LEGISLATIVE CHOICES: THE CASE OF THE DISMISSAL OF FEDERAL CIVIL SERVANTS ABSTRACT The disciplinary system of civil servants, found at Titles IV and V of Act 8.112/90, includes, in Section 128, the need of government authorities to respect the principles of individuality and of proportionality as penalties are defined. On the other hand, Section 132 of Act 8.112/90 indicates that it is necessary to exist a close link between certain violations and the possibility of dismissal of civil servants. Judicial control over administrative acts that define the dismissal of civil servants may, however, reject the dismissal penalty, as the Third Panel of the Brazilian Higher Court of Justice (STJ), using proportionality criteria, indicates in their judgements, even when facts deemed as illicit are included in the list presented at Section 132. The Federal Supreme Court (STF), however, stands by the dismissal, every time the relation fact – type of offense – penalty, evident in the content of the Section 132, is respected. In this paper, the author intends to examine the confrontation found in the opinions of Brazilian higher tribunals, critically assessing the case law involved and presenting his own opinions on how the law on the subject should be interpreted and applied and on the principles of proportionality and individualization of penalties. The inspiration of this study is the defense of a broad judicial control regarding the dismissal of civil servants, limited, however, to the obligation of not replacing legislative choices without counting with the relevant unconstitutionality statement. Keywords: Legality. Legislative choices. Judicial choices.

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REAPRECIAÇÃO DA AUTOPOIESE DO DIREITO NA PÓS-MODERNIDADE Willis S. Guerra Filho* RESUMO O presente artigo visa abordar a adequação da concepção sistêmica de Luhmann (e outros, como Teubner), para descrever a ordem jurídica dos chamados estados (democráticos) “periféricos” sob as presentes condições históricas, pós-modernas, que conduzem à globalização da sociedade (pós-industrial). Ao final, há uma saudação à “disjunção” (Entzweiung) virótica do mutualismo rizomático, a unidade que é múltipla em si mesma, uma vez que (autopoieticamente) criada no meio de pólos antagônicos. Palavras-chave: Direito. Política. Globalização. Estados democráticos periféricos. Autopoiese. Pós-modernidade.

O presente artigo visa abordar a adequação da concepção sistêmica de Luhmann (e outros, como Teubner), para descrever a ordem jurídica dos chamados estados (democráticos) “periféricos” sob as presentes condições históricas, pósmodernas, que conduzem à globalização da sociedade (pós-industrial). Trata-se de uma reelaboração da apresentações feitas em 1994 no Instituto Internacional Oñati e no mesmo ano no Congresso Mundial de ISA em Bielefeld, as quais traduzi e publiquei em 1997, juntamente com algumas entrevistas com NiklasLuhmann, como livro, no Brasil. Como pano de fundo nós vamos encontrar a questão central colocada pelo encontro onde o presente trabalho foi apresentado, qual seja, que tipo de relação há em tal concepção nos estudos críticos sócio-jurídicos, especialmente no chamado pós-estruturalismo, como em Derrida. Mas antes de tratar estes problemas (no item IV) e questões (item V), é a descrição desta sociedade (item I) e as características da sua ordem jurídica (item II), bem com um esboço de minha compreensão daquela teoria (item III). Uma “sociedade pós-industrial” não a entendemos, por exemplo, no sentido original proposto por Daniel Bell, de uma sociedade que se encontra em estágio de desenvolvimento onde a economia do setor de serviços é predominante. A perspectiva aqui é a da emergência de sociedades onde um novo, *

Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUCSP e da Universidade Candido Mendes (Rio de Janeiro, RJ). Doutor pela Universidade de Bielefeld, Alemanha. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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“quarto” setor é desenvolvido, uma vez que essas sociedades se baseiam, fundamentalmente, na circulação e na troca deinformação – e de uma forma cada vez mais intensa e sofisticada. (Nesse sentido, cf. v.g. Baudrillard2). Estas são sociedades onde os processos cibernéticos de informação tornam-se absolutamente necessários para a produção tanto de bens quanto do conhecimentotecnológico (ou das tecnologias do conhecimento). Eles representam o principal fator de aceleração e circulação do capital, causando a “flexibilização” da acumulação que é típica da fase presente do capitalismo “pósfordista” (cf. David Harvey3). A grande quantidade de informação disponível – e a velocidade de sua circulação –, com sua substituição cada vez mais rápida por novas informações, devido à maneira com que elas são transmitidas pelas mídias, além da natureza mesma de tais informações, fazem-nas incompatíveis com a preservação da memória e dos valores individuais e coletivos. É por isso também que é impossível ocorrer qualquer coordenação ideológica da ação num “sentido histórico” determinado. Assim, nós vivemos na “condição pósmoderna” quer dizer, num mundo altamente complexo e diferente daquele de um passado recente, onde não há mais lugar para “Grandes Teorias” ou “grandes narrativas” (grandrécits), fórmulas simples para resolver qualquer problema social baseadas numa pretensa verdade científica (ou crença religiosa). Hoje, a falta de confiança nas falsas pretensões dos que afirmam ter acesso privilegiado à realidade e a uma (única) solução certa para as questões complexas com as quais estamos lidando, é o que requer a assunção de uma perspectiva epistemológica “democrática”. Isto significa que temos de promover umamplo debate para incluir o maior número de posições, sem excluir vertentes ideológicas, pois assim nós podemos reunir os aspectos coerentes de cada uma, de molde a construir as respostas apropriadas às nossas questões. E tais respostas virão expressas na forma de narrativas, sim, mas sem levantar a pretensão de se aplicarem para além das circunstâncias que a produziram – uma “pequena narrativa” (petitrécits), nos termos valorizados pelo “giro narrativo” (narrativeturn), tão bem representado pelo trabalho de Jerome Brunner,4ou “narrativa menor”, para ecoar a noção de Deleuze/Guattari5, de “literatura menor”.6 Esta é a literatura sempre política e necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem, “desterritorializados”, a ponto de empregarem para fazer literatura a linguagem do “colonizador”, dos que exercem o domínio político e lingüístico no território em que habita o povo dominado – lembremos, aqui, que em sua origem romana, o territorium é o local onde se demarca o dominium pelo exercício do terror. E não seria esta a situação em que nos encontramos todos, na sociedade mundial em vivemos? II Como bem observou Habermas7, uma mudança na consciência moral moderna superou a rígida separação entre os campos da lei, da moral, da política etc., que agora se rearticulam em outro nível, sem perder suas autonomias. Esta nova consciência diferencia normas, princípios justificadores e procedimentos 280

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para (auto-)regular e (auto-)controlar suas correlativas adequações. Assim, a legitimidade do direito passa a depender sobretudo dos procedimentos que institui (e, correlativamente, o instituem), tanto quanto seus resultados precisam coincidir com um dos possíveis conteúdos dos seus princípios e demais normas, para estar de acordo com valores básicos tais como racionalidade, participação democrática, pluralismo ou eficiência econômica, que são já perseguidos no momento mesmo em que são instituídos os procedimentos. Nesse passo, há de se mencionar enfaticamente o filósofo do direito frankfurtiano R. Wiethölter8, a quem Habermas segue, de acordo com quem nas sociedades pós-industriais encontramos como característica mais distintiva do direito, justamente, sua “procedimentalização” (Prozeduralisierung). Isto significa que a tese de M. Weber9 sobre o direito na sociedade moderna ser essencialmente formal, com a prevalência de normas abstratas gerais – em contraste com o tipo de direito mais substantivo das sociedades pré-modernas –, não é mais adequada à descrição do direito na atual sociedade, que por simetria temos de classificar como pós-moderna, desde que seu maior problema não é a proteção da liberdade individual em face da ação arbitrária do Estado, mas a efetivação de interesses coletivos pelo Estado e a sociedade civil organizada. Na persecução desses interesses coletivos, há também que se respeitar interesses públicos e individuais, o que é bastante difícil – senão impossível – de ser totalmente atingido pelas normas jurídicas, gerais e abstratas, objetivamente positivadas. Neste contexto, evidencia-se que a magistratura se torna de importância central para a eficiência da ordem legal nas presentes sociedades com organização política democrática. A legislação não mais se adequa às linhas mestras a um tratamento judicial satisfatório das questões, como estas que vimos referindo, da sociedade pós-moderna, hiper-complexa, trazidas à luz após as determinações do ordenamento jurídico. E isto também indica uma ênfase na importância das leis processuais, por regularem o exercício do poder judiciário. Tal conceito de “procedimentalização” é congenial à tese de Luhmann10 da “legitimidade pelo procedimento” e pode muito bem ser entendida como um “chamado à responsabilidade judicial” (Drucilla Cornell11). Deve-se, então, passar a uma consideração contextualizada, caso a caso, pois como diria Rawls12, o melhor que podemos fazer, pelo direito, é assegurar um procedimento isento, de modo a alcançar decisões aptas a equalizar todos os interesses e/ou valores em conflito. Isto ocorre principalmente pela “ponderação” (Abwägung) destes interesses e/ou valores de acordo com o “princípio da proporcionalidade” (Grundsatz der Verhältnismäigkeit), tal como apontado por Ladeur13, em sua concepção teórica do direito por ele mesmo qualificada de pós-moderna. Nós podemos considerar este um bom exemplo do “loop hierárquico” de Hofstadter, enquanto tal princípio, que tem assento constitucional, é localizado no mais alto nível da hierarquia legal, mas pode ser aplicado para decidir conflitos concretos e problemas legais, trazendo harmonia para as múltiplas possibilidades de soluciona-los, inclusive de modo que não esteja previamente REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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regulado. Isto significa que este princípio é válido, não somente devido ao seu status constitucional, mas também porque valida a solução que é oferecida à regência do caso específico, da situação concreta, por meio de um concerto entre as diversas possibilidades, muitas vezes dissonantes, por conflitantes os princípios que nela incidem. Pode-se dizer que assim, em termos de teoria de sistemas sociais autopoiéticos,o principio da proporcionalidade vai realizar a função de um oscilador,14 necessária para alterar em ambas as direções, de hetero-referência para auto-referência, algo que é vital para o sistema autopoiético. Aqui a distinção relevante, ao invés daquela epistêmica, de verdadeiro/falso, ou ética, entre justo/injusto, melhor seria algo como a alternância entre “para cima/para baixo” (flip/flop), como certa vez foi apontado por Luhmann.15 Assim, parece ser através desse princípio que, ao leva-lo “para cima”, tem-se o mais próximo que pode chegar o sistema legal da fórmula contingente da justiça, enquanto um código de hierarquia alta, quer dizer, a unidade da diferença no “metacódigo” justo/injusto e também um “sobre-conceito” (Überbegriff) - mas não um protoprograma que é o direito interno (como parece ser para Derrida16 em seu livro sobre Marx) -, sem chegar a propriamente pertencer a ele. Mas o princípio da proporcionalidade, ao mesmo tempo, também é responsável pela introdução de uma exceção no sistema, no que o puxa perigosamente “para baixo”, levando-o próximo à negação do direito, pela violência e arbitrariedade. Estas circunstâncias tornam tentadora a concepção da proporcionalidade como a melhor candidata a ocupar o lugar da legendária “Grundnorm” kelseniana, especialmente se se levar em consideração sua última versão, enquanto norma ficcional (“einefingierte Norm”) no sentido vaihingeriano, através da qual a ilusão de (conhecer) a justiça e satisfação dos direitos fundamentais como ilusão necessária para o fechamento operacional para/com o ambiente ser facilmente evocada enquanto a abertura cognitiva para o futuro é mantida. III Na verdade existe, de acordo com Luhmann17, uma dependência entre judiciário e legislativo, que é claramente perceptível como na regra do art. 97 da Constituição Federal da Alemanha: “O juízes são independentes e se sujeitam somente às normas do direito”. Isto significa que são livres da tarefa política de fornecer as regras de conduta em geral de uma sociedade dada e não podem ser politicamente responsabilizados pelas suas decisões, que apenas impõem tais regras. De outro lado, são livres para operar com o direito, na medida em que usem apenas argumentos jurídicos para resolver problemas sociais que são trazidos à sua consideração. Somos aqui confrontados com o que Luhmann18chamou “o paradoxo da coerção que se torna liberdade”, uma vez que os juízes são submetidos à legislação mas não aos legisladores, tanto quanto cada lei aprovada pelo legisladores é submetida à interpretação dos juízes – mesmo as regras como aquela mencionada acima, do art. 97 da Constituição Alemã, onde “ norma de 282

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direito” (Gesetz) é entendida como sendo de “direito” no sentido mais amplo (Recht), para incluir assim, por exemplo, regras e princípios constitucionais. Estas circunstâncias fazem do judiciário a unidade do sistema legal que por definição opera recursivamente (i.e., por retroalimentação e relação autoreferenciada), somente com elementos desse sistema, criando um sistema “funcionaldiferenciado”. Embora nele apareçam elementos que são encontrados no ambiente e que também pertencem a outros sistemas – de moral, econômicos, políticos etc. –, namedida em que eles são usados pelo judiciário para justificar decisões, quando por uma espécie de “toque de Midas” eles são convertidos em elementos do sistema legal: o sistema é fechado com, não para o ambiente. É por isso que se postula que a magistratura ocupa o centro de um sistema jurídico que seja autônomo ou “auto-produzido” (= autopoiético – Maturana/Varela19), enquanto o legislativo, juntamente com outras unidades, é periférico. IV A teoria dos sistemas sociais autopoiéticos desenvolve uma moldura conceitual para ser aplicada nos estudos das sociedades que alcançam uma condição histórica particular, a qual pertencem de antemão, a característica democrática das instituições políticas e o domínio dos valores econômicos capitalísticos nessas sociedades. O processo de globalização nos leva a perceber o mundo todo como uma sociedade, a “sociedade mundial” (Weltgesellschaft– cf. Luhmann.)20 Considerando esta sociedade como um sistema, nós também teremos nesse sistema um “núcleo” (ou “centro”) e uma “periferia”. “Central” deve ser a (participativa) parte avançada da sociedade mundial democrática e capitalista, enquanto as outras permanecem “periféricas”, até que atinjam sua integração na “sociedade econômica mundial” (wirtschaftlicheWeltgesellschaft). Não se deve pensar aqui em termos de países, desde que o centro e a periferia podem ser fisicamente qualquer lugar, na medida em que suas características são percebidas. Mas se seguirmos as indicações de Luhmann21 em seu grande trabalho final de 1997, quando ele afirma que os protestos sempre advém da periferia contra o centro, pela pretensão de estarem fora da sociedade, então nós chegamos à conclusão que enquanto a “sociedade de sociedade” autopoieticamente se dobra sobre si mesma, então a distância entre os desejos e as satisfações tendem a desaparecer, algo que as conferências de Kojève sobre a “Fenomenologia do espírito” de Hegel poderia apoiar, onde encontramos a idéia (Herderiana) de “geistigeTierreich”, ou seja, “reino animal do espírito” (cf. Forster). Como se vê, na sociedade mundial na qual vivemos, com sua hipercomplexidade e multicentralidade, como descrito pela teoria social dos sistemasautopoiéticos, há a necessidade de investigar a presente diferenciação do sistema nessa sociedade. Um desses sistemas é o legal, no qual é ao mesmo tempo separado earticulado com os outros, de modo que as irritações mútuas são absorvidas através dochamado “acoplamento estrutural” entre o centro e REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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a periferia recíproca, de modo amanter sua estabilidade e simultaneamente favorecer o seu crescimento no ambiente, autonomamente. Sistemas legais e políticos são conectados através de um meio particular de operatividade fechada chamado constituição do Estado. As Supremas Cortes Constitucionais emergem do núcleo do sistema legal e dessa forma pertencem ao centro desse sistema, mas nós podemos muito bem postular que elas estão atravessando por algo como uma migração para a periferia, pela forte tendência a se deslocarem para o centro do sistema da política, ocasionando uma espécie de entrelaçamento (Verkettung) brunniano de dois elementos, portanto, uma dobra desses sistemas sobre si mesmos– numa espécie de fita de Möebus, a transformar o dentro e o fora de dois em um, no sentido explorado por Lacan, e também naquele que Deleuze toma de Leibniz, por possibilitar outros mundos, novos planos, imanentes. Estas cortes se tornam co-responsáveis pela operação do código binário de ambos os sistemas, ou seja, o código da licitude ou ilicitude no caso do sistema legal, e o de sobreposição - dos detentores de poder (machtüberlegen) - ou submissão (machtunterlegen), a partir da diferença entre governo e oposição, no caso do sistema político. Isto se dá graças à centralidade das definições acerca da constitucionalidade nas normas jurídicas tanto no sistema legal quanto no político. Portanto, agora devemos nos confrontar com a questão do risco que tais desenvolvimentos apresentam, como Luhmann22 (1997) advertiu, referindo-se ao livro de Dieter Grimm sobre o futuro das Constituições. Está em causa a manutenção da autopoiese no sistema global, se nós considerarmos o sistema legal como proposto por Luhmann23 (1993), ou seja, como um tipo de sistema imunológico da sociedade, com a tarefa de vaciná-la contra as doenças dos conflitos através da representação desses conflitos como prescrições a serem seguidas pelas cortes, concebidas como imunes contra a política. E o principal risco aqui parece ser o da auto-imunidade, no sentido trabalhado por Derrida24 – primeiro em uma entrevista sobre as drogas e então mais amplamente em trabalhos como “Traços” – e, com base nele, por autores como Andrew Johnson, Protevie Nass25. V Tal concepção obriga à mudança da proposição lógica, dentro versus fora, para um lógica diferencial das potencialidades que promove a sobreposição e oposição de “sistemas”. Protevi explica a importância de tal mudança: A tarefa do sistema imunológico é a de ler, espionar e contraespionar. O jogo final das doenças auto-imunes – especialmente quando o alvo é o sistema imunológico em si – é aquele de realizar a tarefa impossível de desfazer os erros cometidos pela polícia interna, que confunde a própria polícia interna dos agentes externos mascarados de polícia interna dedicados a eliminar os agentes externos mascarados de polícia interna (...). Para a imunologia, nunca 284

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se trata do problema do interno e externo, mas da distribuição econômica entre a ingestão, assimilação ou rejeição e excreção. A unidade do organismo, o corpo autopresente é explodido nos intercâmbios sistêmicos, um ponto de troca de forças, em outras palavras, a imunologia estuda a instituição de corpos políticos. O fora é também o dentro, em relação com o dentro, a regulação desse intercâmbio é o trabalho do sistema imunológico.26

A auto-imunidade é uma aporia: aquilo que tem por objetivo nos proteger é o que nos destrói. O paradoxo da autopoiese do direito terminando em autoimunidade revela a inevitável circularidade do Direito e suas raízes políticas nas constituições. Uma constituição é um estatuto legal de definições. Uma constituição enquanto conjunto de leis cria um vocabulário estrutural e portanto co(-i)nstitui seu próprio jogo de linguagem lógico. O que é contra a constituição é, por definição, ilegal. O uso da lógica, enquanto a mobilização de estratégias-imunes divergentes, é um mecanismo de poder com o intento de se proteger a priori. A política não passa de uma estrutura específica da linguagem. Eis como se mostra ser a política que fornece a estrutura da lógica binária do sistema legal, da licitude/ilicitude. Derrida27 acredita que o conceito de auto-imunidade, ao perturbar este mau uso tradicional e prevalente das definições, pode abrir possibilidade para novos tipos de pensamento político. É apenas se abrindo ao outro, com a ameaça da auto-destruição, que o organismo tem a chance de receber o outro e se tornar outrem, de modo a permanecer o mesmo, i.e., vivo. Isto explica a solução que ele propõe sob o nome de hospitalidade, a qualidade hóspede, que é “gramatologicamente” ao mesmo tempo similar e antitético a refém e hostilidade, uma circunstância também referida por Lyotard28 em seus “escritos políticos”, quando ele apresenta uma hospedagem secreta como aquela “para a qual cada singularidade é refém”. Isto se deve à problemática analogia na sua origem comum: hostis. A hospitalidade carrega dentro de si o perigo da hostilidade, mas igualmente toda hostilidade retém uma chance de hospitalidade. Se a hospitalidade carrega internamente sua própria contradição, a hostilidade, ela não é capaz de se proteger de si mesma e é atingida por uma propensão auto-imune à autodestruição. Somos aqui confrontados com a verdade exposta por Walter Benjamim29 no ensaio de 1922, “Kritik der Gewalt”, onde Kritik significa tanto crítica como fundamentação,quanto Gewalt significa tanto a violência quanto o poder oficial do estado. Lá, ele argumenta, assim como Nietzsche30 antes dele em seu polêmico tratado “Sobre a genealogia da moral” (Segunda dissertação, secção 17), que a lei não pode se estabelecer sem um ato original de violência, assim como não pode ser mantida e preservar a ordem social sem uma violência contínua. A intenção da lei é proteger os cidadãos da violência, mas sua estrutura inerente implica que sua autoridade seja tanto fundada pela/quanto mantida com a violência. A violência seria como um câncer ou uma doença auto-imune, como a AIDS, REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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secretamente implicada no próprio conceito de Direito. E em se adotando a tese ainda mais radical de René Girard31, a violência, tal como se apresenta entre os humanos, de maneira gratuita, é mimética, causada pelo terror que acomete um ser que se desvia do sentido estabelecido por uma ordem natural para buscar um apaziguamento, segurança e certeza na unanimidade de todos contra uma vítima que excluída, separada, depois de massacrada, torna-se sacra, sagrada, fundando o interdito, ritos e mitos. Nos termos de Luhmann, a distinção original entre lei e violência resulta na negação, mas se o negado não é cancelado, ela se mostra uma denegação, mantendo o que não é indicado como atualizável para a próxima seleção, sendo o operador da potencialização na seleção mesma dos sistemas sociais. Como resultado fica claro que a relação da violência com a lei é auto-imune. A lei não pode se definir em oposição à violência, porque é inteiramente dependente dela. A fundação do direito e do estado são exibidas nesta reversão auto-imune. O entendimento mais próprio do que seja para Luhmann a denegação é aquilo que abre à co-origem da atualidade e possibilidade, assim como aquela do direito e da violência: direito atual é violência potencial, afastada com ela pelo direito. Carl Schmitt32 iria então num tom hobbesiano advogar, em um livro bastante elogiado por Benjamin, que proteger e preservar a lei requer soberania, a qual preserva o privilégio de quebrá-la (supostamente) se necessário. Se nós lembrarmos que a etimologia da palavra imunidade vem do latim immunis, que literalmente significa isento, então para imunizar adequadamente a lei não deve haver barreiras, limites, isenções, as quais a lei não pode, por definição, ultrapassar. Assim a violência é o parasita da lei, quer dizer, se a comunicação pode ser vista como o esforço mútuo de exclusão do terceiro indesejado, existe um ruído ou paradoxo que deve ser ultrapassado de modo a produzir significado, como Luhmann33 colocou em sua opus magnumde 1997 citando “A lógica dos sentidos” de Deleuze, e se este é o parasita, então é lícito vê-lo como o operador que reabre a comunicação pela interrupção na contra-corrente dos fluxos de informação descarregando-as na correnteza de uma maneira distorcida e menos definida (na proposta de Michel Serres34). Tornar-se imune a este parasita mostra-se letal para os sistemas sociais, uma vez que são definidos por Luhmann precisamente como sistemas comunicacionais. A morte do parasita possibilita uma espécie de segunda morte depois da ressurreição de Deus e do homem, desde que em sua fala polêmica proferida na conferência em Frankfurt para discutir a herança crítica da Escola local (“Eu vejo algo que vocês não vêem”), Luhmann35 nomina o parasita de Serres para substituto do sujeito da observação do observador. Como nós podemos concluir com Badiou36 (e Kojève, como Pluth37 convincentemente demonstrou), o homem com seu acesso a idéias como as de justiça e verdade é o parasita da eternidade que foi inoculada nos animais mortais que vivem no humano, e este é um ato antropogênico de auto-criação do homem sobre o suporte material do animal homo sapiens, como sugerido por Kojève em seu livro sobre fenomeno286

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logia do direito (v. o § 34). Deve ser nesse sentido que Kojève escreveu que o “homem é uma doença fatal do animal” (cf. Agamben38, 2003). Assim, na sua leitura de Hegel ele claramente sugere que a auto-consciência é uma espécie de desordem ou doença. E, na verdade, o sistema legal e sua contraparte mais próxima, a política, estão longe de ficarem fortes na “sociedade da sociedade”, como Luhmann39 acaba se referindo à presente sociedade mundial. Nós encontramos aqui tanto os limites quanto o potencial crítico da idéia de direito como um sistema social autopoiético na contemporânea sociedade mundial: a divisão ambígua que separa a ameaça política da promessa política, quando todo poder executivo usa da exceção para definir sua autoridade excedendo e ultrapassando o direito, que assim se torna fraco enquanto meio que falha incrivelmente em alcançar seus fins e atualizar sua potência, na medida em que, literalmente, se torna sem significado – e significar, para Luhmann, lembremos, é a unidade da distinção atualidade/potencialidade, como ele elegantemente definiu em simpósio ocorrido em Montpellier, França, em 9 a 11 de maio de 1984 (ou, expressis verbis, “Significado é o elo entre o atual e o possível: não é um ou outro”). Não é de admirar que os eventos do 11 de setembro no início desta década, que agora chega ao fim, ilustrem tão bem as contribuições precedentes de Giorgio Agamben40 à filosofia política, seguindo os passos de Foucault, Hannah Arendt e acima de tudo, o mencionado entrelaçamento das idéias nos trabalhos de Carl Schmitt e Benjamin sobre a prioridade da exceção sobre a normalidade. Esperemos que as predições deste último, em sua décima primeira tese sobre a filosofia da história, seja plenamente alcançada, e então nós veremos como “o ‘estado de emergência’ no qual nós vivemos não é a exceção mas a regra (sendo nossa tarefa) fazer surgir um real estado de emergência, e isto melhorará nossa posição na luta contra o Fascismo”. Infelizmente, o que é mais visível agora é a generalização desta última idéia, de partidarismo, a qual borra a linha que divide inimigo/amigo, dominante/submisso, lícito/ilícito, e assim o inimigo pode ser qualquer um. A desconstrução do estado, feita por Derrida41 à luz da crítica de Benjamin (cf. Força do direito) provê a crítica necessária às muletas do estado enquanto segurança contra a violência. Não tivéssemos nós atingido o ponto onde todos são, de facto, um inimigo de estado, ao menos à luz daquelas regras da Diretiva Presidencial de Segurança Nacional dos Estados Unidos– é de se destacar a coincidência do acróstico, em inglês, com a sigla do Partido Nazista, nos termos originais, ou seja, NSDAP). Não somos agora todos policiados? Desde que podemos ser atacados por inimigos internos, todos são potencial e eminentemente um inimigo atual. Schmitt42 assevera que isto é propriamente uma despolitização, enquanto para ele a essência da política reside na distinção dos amigos e dos inimigos. Ao contrário, para Derrida, na política partidária, o inimigo interno é realmente nossa corrente saturação na superpolitização. O conflito partidário é a real essência do sintoma da autoimunidade de uma guerra civil mundial em anREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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damento. Derrida, na verdade, quer, reconhece e postula a despolitização (outro nome para a desconstrução como é para a pós-modernidade de Lyotard, ou um sinal do abandono democrático como sugerido por S. Žižek43?), especialmente nesta época de superpolitização. Ademais, ele patrocina um novo conceito de política, um conceito a-político de política, em suma, ele demanda um novo conceito de democracia. Esta é, com certeza, a “democracia por vir”, dentro de uma “política por vir”, através de uma “amizade por vir”. É possível? A resposta de Derrida44: talvez. Na sua conhecida fórmula, somente é possível enquanto impossível. Esta impossibilidade é a condição da possibilidade. Luhmann não negaria esta com-possibilidade no mundo humano, que ele concebe sob as condições da dupla contingência. Do meu ponto de vista, poderíamos dizer com Leibniz e Kant que, se é necessário, deve ser (feito) possível. Por ora nós só podemos afirmar que a Política não é mais apta a manter pela imposição de uma ordem legal a irredutível oposição entre o que é interno e o que é externo a ela enquanto sistema, o qual sob tais condições tende a se “dediferenciar”, desintegrando no ambiente. O aumento do desrespeito aos direitos humanos nos estados de direito tradicionais é muito sintomático. E eles são negados sem qualquer compensação tangível, nem mesmo uma ilusão da (segurança do) contato com o ambiente. Poderá a sociedade mundial resistir a tal colapso de ambos os sistemas, legal e político, um no outro? E se for, poderá um dia se tornar um lugar melhor para se viver ou ainda pior do que já é? Estamos diante da dissolução dos estados nacionais pela sua absorção num império mundial?” É o “katechonde Schmitt” (J. Hell45), o mais poderoso inimigo, o adversário par excellence, o Anticristo, retendo a paz perpétua doEstado universal impossível de surgir (ao menos, para Schmitt46, em “O conceito do político”)? O aumento da violência ultrapassará o estado, o direito e a moral humana que ela mesma forjou (nos termos de Nietzsche47)? E novamente, pode tal desenvolvimento fazer surgir o ultrapassamento da espécie humana ou o retorno ao desumano? Nós definitivamente devemos aprender a pensar em termos da distinção de “cima/ baixo” (flip/flop). E autores como Drucilla Cornell,48 Peter Sloterdijk49 e Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos50 estão definitivamente certos, quando estabelecem conexões entre Luhmann e Derrida, contra a vontade do pós-luhmanniano Teubner51, pois o próprio Luhmann52 fez a desconstrução equivalente à sua observação de segunda ordem, finalmente considerando-a “a mais pertinente descrição da auto-descrição da sociedade moderna” – enquanto pós-moderna ou, para respeitar sua opção, “pós-catastrófica” (catástrofe aqui entendida no sentido da teoria matemática de René Thom53). Então, temos que enfrentar uma mudança não somente dentro do paradigma, mas na forma mesma que se estabilizam os estado-de-coisas e imputamos significado aos eventos, após sua explosão fragmentária, que resulta na perda do único-e-o-mesmo mundo ao qual devotamos o que Husserl54 chamou na seção 104 das suas Ideias a “crença primária” (Urglaube) ou “Protodoxa” (Urdoxa) em sua tentativa de expressar “o pano de fundo intencional de todas as modalidades de crença”. Isto nos faz lembrar o que Luhmann55 em seu livro anterior sobre sociologia do direito se 288

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refere como a ‘dimensão material’ das expectativas sociais, as quais Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos56dispõe como o reconhecimento da necessária comunidade do mundo de modo a dar ensejo às expectativas, que aparecem na forma da necessidade de um consenso fictício no qual a confirmação e limitação recíproca das expectativas é exercido”. Compreende-se então o alerta dado por Luhmann57 a todos aqueles que pensam o universal como os Frankfutianos ainda fazem, ao dizer a eles algo que eles não vêem, ou seja, que eles não percebem, na medida em que assumem “que vivem em um e mesmo mundo e que isto é uma questão de se referir coerentemente a este mundo”. Voltamos a pensar que na instantânea e catastrófica destruição do World Trade Center, quando desabaram não apenas uma mas as duas torres, ou seja, a real e seu clone simulacro, pode ter causado um impacto duradouro devido à materialização feita na perda de nossa confiança em uma realidade crível, uma vez que é tão mutável quanto um vírus. Então, temos que realizar o luto pelo parasita consensual de modo a parar de esperar pela alergia das alergias (como diria Lévinas, de acordo com Bojanic) e saudar a “disjunção” (Entzweiung) virótica do mutualismo rizomático (Deleuze &Guattari58– aqui é útil lembrar, com M. Zahani59, quando em uma entrevista com Didier Eribon, Deleuze, se referindo a Mil platôs, assinalou que o que ele e Guattari “chamam de rizoma é também um exemplo de sistema aberto”), produzindo o “diferendo” (Lyotard60), a unidade que é múltipla em si mesma, uma vez que (autopoieticamente) criada no meio de pólos antagônicos. Como nós aprendemos de uma recente contribuição para o pensamento social de um estudioso de Luhmann e Baudrillard, “A persistência da forma-binária somente pode ser assegurada pela produção dosada de algum ‘outro’-simulado, não mais disponível em sua forma ‘natural’” (René Capovin61). Se é assim, tenhamos esperança na vinda no sistema societal mundial de vírus como o da AIDS - a primeira doença importante a receber uma sigla como nome, conforme destacou Susan Sontag62, e uma sigla com um significado em inglês, ambíguo, antitético mesmo -, um vírus que realmente ajude a dar fim à sociedade desumana e ao nosso (duplo) vínculo contraditório (doublebind) de amor/ódio com a natureza (Carla Pinheiro63), operando uma auto-imune apocatástase. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. In: HELLEN-ROAZEN, Daniel (Trad.). Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. 1998. _______. The Open: Man and Animal, 2003. _______. In: ATTELL, Kevin (Trad.). State of Exception. 2004. BADIOU, Alain. Logiques des mondes. 2006. BAUDRILLARD, Jean. A l’ombre des majorités silencieuses ou la fin du social. 1978. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Texto elaborado a partir do trabalho apresentado no encontro anual da “Conferência de Crítica Jurídica” (Critical Legal Studies), no painel organizado por Andreas Philippopoulos-Mihalopoulossobre Autopoiese Crítica, em 11 de setembro de 2010, na Universidade de Utrecht. Agradecimentos a Belmiro Patto pela primeira versão do original em inglês para português BAUDRILLARD, Jean. A l’ombre des majorités silencieuses ou la fin du social. 1978. HARVEY, David. The Condition of Postmodernity: an enquiry into the origins of culturalchange. 1990. V., para uma excelente exposição, com a vantagem suplementar de abordar a temática também no campo jurídico, do A.. La Fábrica de Historias. Derecho, literatura, vida, México: Fondo de Cultura Económica, 2003. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. In: GUIMARÃES, Castañon Júlio (trad.). Kafka. Por uma literatura menor. 1977. Em Kafka. Por uma literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977. Para uma extensão desse conceito de “literatura menor”, para com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. WINQUIST, Charles E. Desiring Theology. Chicago/Londres: Universityof Chicago Press, 1995. HABERMAS, J. WieistLegitimitätdurchLegalitätmöglich? In: KritischeJustiz, n. 20, 1987. WIETHÖLTER, R. Proceduralization of the Category of Law. In: CH. Joerges; D. M. Trubek (eds.). Critical Legal Thought: An American-German Debate. 1989. WEBER, Max. In: G., Roth; C., Wittich (eds.). Economy and Society. 1978. LUHMANN, Niklas. Legitimation durchVerfahren. 1969. CORNELL, Drucilla. Philosophy of the limit. 1992. RAWLS, John. A Theory of Justice, 1972. LADEUR, Karl-Heinz - `Abwägung’ - einneuesRechtsparadigma? Von der Einheit derRechtsordnungzurPluralität der Rechtsdiskurse. In: ArchivfürRechts- undSozialphilosophie, n. 69, 1983. SPENCER BROWN, G. Selfreference, Distinctions and Time. In: TeoriaSociologica, v. 1, n. 2, 1993. LUHMANN, Niklas. Why Does Society Describes Itself as Postmodern? In: RASCH, W.; WOLFE, C. (eds.). Observing Complexity. 2000. DERRIDA, op. cit. LUHMANN, op. cit. LUHMANN, Niklas. Die Stellung der GerichteimRechtssystem. In: Rechtstheorie, n. 21, 1990. MATURANA, H.; VARELA, F. De maquinas y seres vivos. 1973. LUHMANN, Niklas. Die Weltgesellschaft. In: ArchivfürRechts- und Sozialphilosophie, n. 57, 1971. Ibid. LUHMANN, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft. 1997, v. 2. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. 1993. DERRIDA, op. cit. NASS, Michael. “One Nation…Indivisible”: Jacques Derrida on the Autoimmunity of Democracy and the Soverignty of God. In: Research in Phenomenology, v. 36, 2006. PROTEVI, JOHN. Political Physics: Deleuze, Derrida, and the Body Politic, 2001. PROTEVI, op cit., p. 102. DERRIDA, op. cit. LYOTARD, Jean-François. La condition post-moderne. 1979. BENJAMIN, W. “Critique of Violence”. In: BULLOCK, M.; JENNINGS, M. W. (Eds.). Selected Writings. (1913-1926). 2004, v. 1 NIETZSCHE, F. In: DIETHE, Carol (trad.). ANSELL-PEARSON, Keith (ed.). On the Genealogy of Morality. 1994. GIRARD, René. In: GAMBINI, Martha (trad.). Coisas ocultas desde a fundação do mundo: revelação destruidora do mecanismo vitimário. São Paulo: Paz e Terra, 2008. SCHMITT, Carl. In: SCHWAB, G. (trad.). The Concept of the Political, 1996. LUHMANN, op. cit. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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THE REAPPRAISEMENT OF LAW AUTOPOIESIS IN POSTMODERNITY ABSTRACT This paper intends to examine the adequacy of the systemic perception Luhmann, Teubner and other theorists use to describe the juridical order of the socalled peripherical democratic States in the present historical postmodern context, which is leading to the globalization of postindustrial society. In the conclusion, 294

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the author salutes the virotical separation (Entzweiung) of rizomatic mutualism, a unity which is multiple in itself, as it is autopoietically created amidst opposite poles. Keywords: Law. Politics. Globalization. Peripherical democratic States. Autopoiesis. Postmodernity.

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PARECER AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº. 4252 Requerente: Procurador-Geral da República Requerido: Governador e Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina Relator: Ministro Celso de Mello Amicus Curiae: Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses – FEEC e Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental da UFSC - GPDA 1 CONSULTA O Procurador-Geral da República ajuizou, em 16 de junho de 2009, ação direta de inconstitucionalidade – ADI 42521, após representação do Ministério Público Estadual, invocando a inconstitucionalidade do art. 28, incisos XV, XVI, XVII, XVIII, XX, XXII, XXXX, XL, XLVIII, LX, LXV e LXIV e §§ 1º, 2º e 3º, art. 101 a 114, com todos seus incisos e parágrafos, art. 115, §§1º e 2º, art. 115 e 116, com todos seus incisos, art. 118, inciso X, art. 121, parágrafo único e, por fim, o art. 140, §1º e incisos da Lei nº. 14.675, de 13 de abril de 2009, que instituiu o Código Ambiental catarinense. Diante da relevância da discussão para as condições ecológicas do Estado de Santa Catarina, a FEEC e o GPDA pleitearam o ingresso na referida ADI na condição da amicus curiae, pedido deferido pelo Ministro relator. Com o intuito de contribuir com o julgamento, expõem-se argumentos técnicos e científicos, no âmbito do Direito, a fim de responder aos seguintes quesitos formulados pelo amicus curiae: (i) De acordo com a Hermenêutica Jurídica, a lei impugnada fere o Estado de Direito Ambiental? (ii) Quais os fundamentos utilizados pela Hermenêutica Jurídica Ambiental no caso da ADI? 296

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Ação direta de inconstitucionalidade nº. 4252

2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TEMA Ao analisar a citada lei, extrai-se que os dispositivos invocados pelo PGR afrontam a Carta Magna em cinco dimensões distintas, porém complementares na fundamentação do Estado de Direito Ambiental: a) competência legislativa concorrente em matéria ambiental (art. 24, §§ 1º e 2º, CF); b) direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, CF); c) princípio da solidariedade e valor sustentabilidade (arts. 1º, III; 3º, I, IV; 225, CF); d) princípio do mínimo existencial ecológico (art. 1º, III e art. 225, CF); e) princípio da proibição do retrocesso ecológico (art. 1º, III e art. 225, CF). Os pontos destacados serão tratados, a seguir, sob a visão de uma Hermenêutica Jurídica Ambiental. 2.1 A utilização de uma Hermenêutica Jurídica Ambiental para a efetivação do Estado de Direito Ambiental Hodiernamente, vive-se em uma sociedade de risco, utilizando a expressão de Beck2, marcando a falência da era moderna, oriunda das incertezas científicas, o que se coaduna com a crise ecológica. Existem riscos que podem ser controlados pela sociedade industrial, enquanto outros escapam da racionalidade humana. A realidade é inexplorável em todos os ramos de conhecimento, mas a questão se torna ainda mais evidente quando se trata da problemática ambiental, fortalecendo o princípio da precaução. Se há uma nova dimensão de direitos fundamentais, em especial, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF), são constituídas novas condições jurídicas protetivas ao homem para se ter uma sadia qualidade de vida. É de se notar que o direito ao meio ambiente se irradia por todos os direitos fundamentais e pela ordem jurídica em geral, desencadeando o fenômeno da Ecologização. Se não há ambiente sadio, não há vida. Como conseqüência, muitos institutos jurídicos são renovados e outros são criados dentro do ordenamento para atender ao novo olhar conferido à tutela jurídica ambiental. Diante disso, o Estado e o Direito precisam se transformar para atender aos efeitos emergenciais da crise ecológica em prol da sobrevivência da humanidade, justificando a necessidade de um Estado de Direito Ambiental. Não há dúvida de que, por outro lado, a construção de um Estado Ecológico implica em mudanças profundas na estrutura da sociedade e na atividade estatal, com o objetivo de apontar caminhos em resposta aos novos pilares de uma sociedade de risco. Ao adotar o paradigma do Estado de Direito Ambiental, é preciso um novo modo de ver a ordem jurídica, com uma pré-compreensão diferenciada do intérprete, na medida em que a hermenêutica filosófica comprova que o sentido a ser captado da norma jurídica é inesgotável. As normas precisam ser interpretadas de forma a concretizar o Estado de Direito Ambiental. Por mais que a Constituição e as normas infraconstitucionais tenham muitos pontos inalREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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terados, o intérprete deve perceber o movimento dialético do Direito, formado por raciocínios jurídicos não apenas dedutivos, mas também indutivos, o que justifica a importância de uma Hermenêutica Jurídica Ambiental. A particularidade de uma Hermenêutica Ambiental se fortalece, ainda, pelo fato de o conceito de bem ambiental ser globalizante, o que faz surgir a idéia de macrobem.3 As condições físicas e químicas que cercam a sadia qualidade de vida (art. 3º, da Lei nº. 6.938/81, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente), estão em constante transformação. Assim, o bem ambiental é um conceito juridicamente indeterminado, ou seja, é uma moldura deôntica que será preenchida no caso concreto pelo intérprete, de acordo com as situações específicas. Nunca será, pois, um conceito engessado. Uma Hermenêutica Jurídica específica para lidar com juridicidade ambiental, portanto, objetiva orientar e guiar o intérprete com o intuito de captar sentidos da ordem jurídica ambiental que sejam convenientes com os ditames e postulados do Estado Ecológico. Notadamente, analisar-se-á a Lei nº. 14.675/09, objeto da presente ADI, por meio de princípios interpretativos próprios de uma juridicidade ambiental, em resposta aos quesitos inicialmente formulados na peça de amicus curiae. 2.2 A invasão de competência legislativa concorrente e a violação do princípio do mínimo existencial ecológico Ao tratar da competência concorrente para legislar sobre matéria ambiental, o constituinte optou por conferir à União, nos termos do art. 24, §§ 1º e 2º, a competência para legislar sobre normas gerais, atinentes a questões ambientais de todos os níveis de federação. O órgão legiferante estadual só pode se manifestar de forma residual, ou seja, no caso de omissão de normas gerais pela União ou para tratar de questões jurídicas específicas. Caso a União venha a editar posteriormente referida norma geral, a lei estadual anterior terá sua eficácia suspensa no que contrariar a normatividade federal. Ponto interessante que merece ser mencionado é que, segundo a peça exordial, “a concorrência legislativa não pode servir de fundamento para um processo de deterioração do regime de proteção, como ocorre nessa hipótese”. No entanto, caso a lei estadual venha a criar condições mais favoráveis de proteção ambiental, entende-se que, ao utilizar o princípio da ponderação, o equilíbrio ambiental terá um peso maior em relação à segurança jurídica, validando a lei estadual. Foi o que aconteceu, recentemente, no julgamento de liminar da ADI 3937, quando da constitucionalidade de lei paulista que proíbe o uso de qualquer produto que utilize amianto no estado em detrimento da norma geral. O STF mudou radicalmente entendimento fixado anteriormente, pois o vício formal restou absorvido pela sustentabilidade ambiental, amadurecendo o Estado de Direito Ambiental. 4 A lógica da competência federativa ambiental se baseia, ademais, na 298

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proteção do princípio do mínimo existencial ecológico, que é feita na edição de normas gerais pela União. Assim, o que se encontra previsto na legislação geral é o mínimo para se propiciar uma sadia qualidade de vida, conteúdo essencial do direito fundamental ao meio ambiente (art. 225, CF). Trata-se de uma limitação formal e material à função legiferante estadual, haja vista que não se podem criar normas que violem as condições gerais previstas pela União. O Estado tem a obrigação de implementar políticas públicas que propiciem uma condição de vida digna para todos e que garantam fatores mínimos de sobrevivência ao ser humano, ou seja, o mínimo existencial.5 Isto se deve pela dimensão prestacional de vários direitos fundamentais que exigem atividades positivas do Poder Público, como é o caso do direito fundamental ao meio ambiente que possui dupla dimensionalidade. Parece óbvio que a dignidade da pessoa não se materializa se um mínimo para a existência humana não for garantido, pois ambos estão diretamente ligados, podendo, inclusive, confundir-se. No entanto, no paradigma do Estado Ambiental, o princípio do mínimo existencial toma uma nova dimensão para incluir um mínimo de equilíbrio ambiental. Ou seja, além dos direitos já identificados pela doutrina como integrantes desse mínimo existencial (saneamento básico, moradia digna, educação fundamental, alimentação suficiente, saúde básica, dentre outros), deve-se incluir, dentro desse conjunto a qualidade ambiental, com vistas a concretizar “uma existência humana digna e saudável, ajustada aos novos valores e direitos constitucionais da matriz ecológica”. 6 Não existe dispositivo expresso no Texto Constitucional que trate do referido princípio, mas é inconteste que sua previsão é captada indutivamente da dignidade da pessoa humana, conforme o art. 1º, III, da CF, coração de todos os direitos fundamentais, assim como do art. 225, CF. É, assim, um dos princípios estruturantes do Estado de Direito Ambiental. No caso em tela, a temática já se encontra abordada na Lei nº. 4.771/65 (que criou o Código Florestal), na Lei nº. 7.661/88 (que instituiu o Plano Nacional do Gerenciamento Costeiro), na Lei nº. 9.985/00 (que cuida das unidades de conservação) e na Lei nº. 11.428/06 (que trata da proteção à Mata Atlântica), todas sendo normas gerais, além de resoluções do CONAMA. O art. 28 da lei catarinense, entretanto, cria e altera o sentido de vários institutos legais já determinados pela União, como banhado de altitude, campos de altitude, campo de dunas, canal de adução, coprocessamento de resíduos, corpo d´água, corpo receptor, floresta, dentre outros. Na mesma linha, os arts. 101 a 113 invadem a esfera da União ao tratar do âmbito de proteção da Mata Atlântica, assunto já normatizado em norma geral. O art. 121 aborda a compensação das áreas de preservação permanente (APP´s) de forma diferenciada do disposto também em norma geral. Por fim, o art. 140 da lei impugnada também invade a competência da União, na medida em que ousa cuidar das unidades de conservação (UC´s). REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Contata-se, pois, à luz de uma Hermenêutica Jurídica Ambiental, que a lei catarinense extrapola a competência legislativa prevista no art. 24, IV, §§ 1º e 2º, da CF, e, conseqüentemente, viola o princípio do mínimo existencial ecológico, captado indutivamente dos arts. 1º, III e 225, CF, que se revela como um dos princípios estruturantes do Estado de Direito Ambiental. 2.3 A violação do direito fundamental ao meio ambiente sadio e a afronta ao princípio da proibição do retrocesso ecológico É importante lembrar que os direitos fundamentais têm natureza principiológica, à luz do pós-positivismo, de caráter prima facie e de suporte fático amplo. Outrossim, todo direito fundamental possui um conteúdo essencial que precisa ser resguardado, em íntima ligação com a dignidade da pessoa humana, ao entrar em rota de colisão com outros direitos fundamentais. Referido núcleo é relativo, pois será delimitado pelo intérprete de acordo com o caso concreto. Ao se tratar do direito ao meio ambiente, o conteúdo essencial é a sadia qualidade de vida (art. 225, CF). Com as conquistas jurídico-sociais oriundas da evolução dos direitos fundamentais, fica resguardada uma espécie de patrimônio existencial do homem que deve ser mantido, não se podendo voltar atrás de forma desfavorável. Ou seja, a cada conjunto de situações jurídicas benéficas aos homens, como concretização da dignidade da pessoa humana, referido conjunto deve continuar a existir, só se redimensionando a cada roupagem de gerações e nunca piorando. Essa é a idéia do princípio da proibição do retrocesso, intrínseca à própria natureza dos direitos fundamentais, em especial, aos direitos de caráter prestacional. O objetivo é vincular o legislador infraconstitucional ao poder constituinte, na direção de que a norma infraconstitucional não retroceda no que concerne aos direitos fundamentais declarados e assegurados pela Constituição. Segundo Sarlet, referido princípio encontra guarida no princípio da segurança jurídica, no princípio da proteção da confiança ou mesmo na previsibilidade do enquadramento normativo das relações jurídicas, podendo nela se enquadrar as garantias constitucionais do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, assim como as limitações materiais do poder de reforma constitucional, pilares do Estado de Direito. 7 Notadamente, referido princípio busca proteger os titulares dos direitos fundamentais da atuação do legislador, vez que este não pode elaborar uma norma infraconstitucional que venha a retroceder nas garantias e nas tutelas jurídicas já existentes no momento da sua elaboração. Além da impossibilidade de se retroceder para piorar as condições jurídicas dos indivíduos, a proibição do retrocesso deve buscar garantir o mínimo existencial, que é vinculado, por conseqüência, ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Trata-se de uma “garantia constitucional do cidadão contra o órgão legislador no intuito de salvaguardar os seus direitos fundamentais consagrados pela Constituição, 300

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aos quais o legislador deve atender na maior medida possível”.8 No mesmo sentir é que a doutrina ambientalista aponta a existência do princípio da proibição do retrocesso ecológico, captado implicitamente da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e do art. 225, raiz ecológica do ambientalismo brasileiro. Logo, a tutela normativa do meio ambiente deve operar de modo progressivo no âmbito das relações jurídicas com o objetivo de ampliar a qualidade de vida existente “hoje”. Busca-se, pois, a materialização da dignidade da pessoa humana, não podendo, assim, retroceder a um nível de proteção inferior àquele visualizado neste mesmo “hoje”. Molinaro, um dos entusiastas da temática no Brasil, prefere chamar de “princípio da proibição da retrogradação socioambiental” em vez da proibição do retrocesso ecológico, como a maioria da doutrina jusambiental aponta, na medida em que, segundo o autor, “retrogradar expressa melhor a idéia de retroceder, de ir para trás, no tempo e no espaço”, principalmente quando se trata da proteção ao meio ambiente. 9 Importante mencionar que a proibição do retrocesso ambiental não pode deixar de ser cumprida sob a alegativa da “reserva do possível”, ou seja, “não há possibilidade, sob pena de negar-se a qualidade do Estado-Socioambiental, alegar a carência de recursos materiais e humanos para concretizar a vedação da degradação ambiental”. 10 O princípio da proibição do retrocesso ecológico possui natureza material, ao impor limites à função legiferante, assim como instrumental, ao orientar o intérprete na tomada de decisões ambientais. Nessa linha, leciona Canotilho que a proibição constitucional de retrocesso ecológico-ambiental é utilizada como instrumento de critério de avaliação do risco global, devendo ser utilizado, para tanto, a ponderação e o balanceamento dos bens envolvidos.11 Portanto, o principio da proibição do retrocesso ecológico significa que, a menos que as circunstâncias de fato se alterem significativamente, não é de se admitir o recuo para níveis de proteção inferiores aos anteriormente consagrados, implicando, pois, limites à adoção de legislação de revisão ou revogatória, assim como no que concerne às cláusulas pétreas. Sobre a importância edificadora deste princípio, esclarece Fensterseifer: [...] o princípio da proibição do retrocesso ambiental guarda importância ímpar na edificação do Estado Socioambiental de Direito, pois busca estabelecer um piso mínimo de proteção ambiental, para além do qual as futuras medidas normativas de tutela devem rumar e ampliar-se, contemplando sempre um nível cada vez mais amplo de qualidade ambiental e salvaguarda da dignidade humana, sem deixar de lado a nossa responsabilidade para com as gerações humanas vindouras.12

Como se vê, o princípio da proibição do retrocesso ecológico se qualifica REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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como um dos estruturantes do Estado de Direito Ambiental, imprescindível para efetivar os postulados e as metas do novo paradigma estatal, haja vista que objetiva alcançar condições de vida sustentada não só para a presente geração, mas também para aquelas que ainda estão por vir, em consonância com a solidariedade e com a justiça ambiental. É de ressaltar, entretanto, que o estudo do referido princípio ainda é embrionário no seio da doutrina, o que não o torna menos precioso em relação aos demais. Ao contrário, é importante o seu amadurecimento no âmbito da pesquisa jurídica, a fim de que a proibição do retrocesso ecológico seja efetivamente um guia material e instrumental para o Poder Público na adoção de suas políticas públicas, assim como no seu controle realizado pelo Judiciário, como no caso da presente ADI. No seio da discussão em tela, visualiza-se que a lei catarinense contém, além das inconstitucionalidades citadas anteriormente, ofensa direta e imediata ao direito fundamental ao meio ambiente e, ainda, ao princípio da proibição do retrocesso ecológico. Ao observar os dispositivos invocados pelo PGR, constata-se que o Código Ambiental catarinense relativiza e flexibiliza o sistema de proteção ambiental já disposto em normas gerais, assim como em resoluções do CONAMA, de forma a retroceder para condições ambientais mais degradantes. O legislador estadual parece não demonstrar preocupação com a problemática ambiental, deixando nitidamente prevalecer interesses econômicos em detrimento dos interesses difusos ambientais, o que não se coaduna com o Estado de Direito Ambiental. É o que se vê no §1º do art. 28 da mencionada lei, ao ampliar o conceito de “interesse social”, que atua diretamente no regime protetivo previsto no Código Florestal brasileiro. Ademais, o §2º do mesmo dispositivo confere ao órgão ambiental estadual, a indicação de medidas mitigadoras de proteção, que o exercerá no âmbito de sua discricionariedade administrativa, violando a tripartição de funções (art. 2º, CF). Ainda nessa linha, o §3º do art. 28 diminui o âmbito jurídico de proteção ambiental ao prever as atividades desenvolvidas em pequenas propriedades rurais. Ao continuar caminhando pela lei ora impugnada, depara-se com o art. 114, que restringe a seara de proteção ambiental das matas ciliares e das faixas marginais ao longo dos rios, cursos d´água, banhados e nascentes, conceitos já previstos pelo Código Florestal e pelas Resoluções 303/02 e 396/06 do CONAMA. Reduz-se, pois, as medidas de APP´s. Na mesma linha, os arts. 115, 116 e 121 da legislação estadual buscam também relativizar o sistema de proteção de áreas de preservação permanente. Ponto culminante ocorre, por fim, com o art. 118, X, ao consolidar situações constituídas, ainda que em flagrante desobediência ao sistema legal de proteção. Seria uma espécie de direito adquirido à deterioração ambiental, o que macula de uma vez por todas a ordem jurídica ambiental e, por conseqüência, 302

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o Estado de Direito Ambiental. Notadamente, a lei catarinense dispõe de forma que restringe o conteúdo essencial do direito ao meio ambiente, sacrificando-o em detrimento de interesses econômicos, vez que não aplicou os princípios do sopesamento e da proporcionalidade de forma adequada. Ao comprometer o seu conteúdo essencial, atinge-se a dignidade da pessoa humana e o valor justiça, razão de ser do Direito. Vê-se, desse modo, que analisando a lei impugnada sob a ótica de uma Hermenêutica Ambiental, há violação clara do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF) e do princípio da proibição do retrocesso ecológico (art. 1º, III e art. 225, CF), pois o Código Ambiental catarinense cria condições desfavoráveis à qualidade ambiental, comprometendo não apenas a atual geração, mas também as que estão por vir. 2.4 A ofensa ao princípio da solidariedade e ao valor sustentabilidade Na edificação de um Estado de Direito Ambiental, constata-se que o princípio da solidariedade é o marco teórico-constitucional, assim como a sustentabilidade releva-se como o fundamento axiológico-constitucional do novo paradigma estatal. Ambos são utilizados como orientação hermenêutica do novo intérprete constitucional. A CF/88 trata do princípio da solidariedade como objetivo da República, em seu art. 3º, I, ao prever a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” No inciso IV do mesmo artigo, visualiza-se outro objetivo que comprova a preocupação do constituinte originário com a solidariedade, ao estabelecer a “erradicação da pobreza e da marginalização social e a redução das desigualdades sociais e regionais”. Como se vê, os dispositivos estabelecem um novo marco normativo-constitucional, ao consolidar a solidariedade como princípio da Carta Magna. A solidariedade deve se dar entre todos os seres humanos da atual geração, entre todas as formas de vida, assim como entre aqueles que ainda estão por vir. Como manifestação do princípio da solidariedade, extrai-se a sustentabilidade, que se mostra como um valor básico do Estado Ecológico, captado indutivamente da crise ambiental e da sociedade de risco. Na há dúvida de que a preocupação com as gerações futuras “amplia temporalmente os braços” do Direito Ambiental.13 A materialização da sustentabilidade deve ser ponderada no caso concreto seguindo o tripé do princípio do desenvolvimento sustentável, qual seja, equidade social, desenvolvimento econômico e equilíbrio ambiental. Ao observar o Código Ambiental catarinense, verifica-se ofensa direta ao princípio da solidariedade, que funda o Estado Ambiental, pois há total descaso à equidade intergeracional e a todas as formas de vida, à luz de um antropocentrismo alargado. Ademais, a lei catarinense não pondera os inteREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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resses envolvidos da sustentabilidade, priorizando, de forma clara e absurda, o desenvolvimento econômico. 3 RESPOSTA AOS QUESITOS Diante da fundamentação jurídica desenvolvida, pretende-se responder de forma objetiva aos quesitos formulados pelo amicus curiae: (i) De acordo com a Hermenêutica Jurídica, a lei impugnada fere o Estado de Direito Ambiental? A lei catarinense despreza toda a fundamentação teórica em torno do Estado de Direito Ambiental, haja vista que, seguindo os cânones interpretativos de uma Hermenêutica Jurídica específica, os dispositivos invocados violam: a) o princípio federativo que dispõe sobre a competência legislativa concorrente em matéria ambiental (art. 24, §§ 1º e 2º, CF); b) o princípio do mínimo existencial ecológico (art. 1º, III, CF e art. 225, CF); c) o direito fundamental ao meio ambiente sadio (art. 225, caput, CF); d) o princípio da proibição do retrocesso ecológico (art. 1º, III, CF e art. 225, CF); e) o princípio da solidariedade e o valor sustentabilidade (arts. 1º, III; 3º, I, IV; 225, CF). O legislador estadual atua de forma alheia aos postulados do Estado de Direito Ambiental, na medida em que interpreta equivocadamente a ordem jurídica ambiental preexistente ao criar o Código Ambiental catarinense. Assim, ao afrontar referidos dispositivos, constata-se que a lei impugnada fere os princípios fundantes e estruturantes do Estado de Direito Ambiental. (ii) Quais os fundamentos utilizados pela Hermenêutica Jurídica Ambiental no caso da ADI? A Hermenêutica Jurídica Ambiental é proposta por meio de princípios de interpretação que objetivam a busca de soluções justas e constitucionalmente adequadas para a interpretação de normas ambientais. Ao se tratar da Lei nº. 14.675, objeto da ADI, utilizam-se os princípios fundantes e estruturantes do Estado de Direito Ambiental, assim como os princípios de interpretação especificamente constitucional, além das técnicas exegéticas adequadas para a colisão de direitos fundamentais. Percebe-se que os princípios da razoabilidade, da ponderação, da proporcionalidade e da precaução são o início e o fim da Hermenêutica Jurídica Ambiental, na medida em que o princípio da precaução tem natureza material e instrumental, manifestando-se, ainda, em in dubio pro ambiente, que não é absoluto. É um ás na manga do intérprete ecológico, pois, na medida em que este se vê impossibilitado de usar outros instrumentos hermenêuticos, utilizará o princípio in dubio pro ambiente como forma de garantir o mínimo existencial 304

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ecológico, especialmente na colisão do direito ao meio ambiente com outros direitos fundamentais. In casu, o legislador catarinense violou diversos princípios estruturantes do Estado de Direito Ambiental que compõem a ordem jurídica esverdeada, além do direito fundamental ao meio ambiente sadio (art. 225, CF). Cabe, pois, a intervenção do Judiciário, que utilizará a Hermenêutica Jurídica Ambiental de forma a captar sentidos convenientes com o Estado Ecológico. 4 CONCLUSÃO Verifica-se, à luz de uma Hermenêutica Jurídica Ambiental, total desprezo e abuso do legislador catarinense em relação à ordem constitucional ambiental, com graves violações formais e materiais. A temática é emergencial, na medida em que os danos causados ao meio ambiente são de difícil reparação, principalmente considerando as condições específicas do Estado de Santa Catarina. Outrossim, um dano ambiental não fica limitado ao local de sua realização, fazendo com que os impactos oriundos da aplicação do Código Ambiental catarinense ultrapassem as limitações territoriais, políticas e econômicas, atingindo, assim, todo o povo brasileiro. A Suprema Corte pátria, guardiã da Constituição, deve atuar como legislador negativo em prol da harmonização do sistema constitucional. O STF tem legitimidade constitucional para efetivar os direitos fundamentais, principalmente quando se trata do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, luz que irradia os demais direitos fundamentais. Sem dúvida, o STF é o principal guardião da Constituição Ecológica, exercendo importante papel no controle de constitucionalidade das normas em obediência aos fundamentos teóricos do Estado de Direito Ambiental. Por fim, o intérprete constitucional ambiental deve analisar a evolução social, própria da dialética do Direito, preenchendo as molduras deônticas dispostas na Constituição de acordo com o contexto social, realidade esta traduzida em uma sociedade de risco e em uma crise ecológica, totalmente desconsiderada pela lei catarinense em questão. 5 REFERÊNCIAS BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. BENJAMIN, Antonio Herman. A Natureza no Direito Brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. In: CARLIN, Volnei Ivo (org.). Grandes Temas de Direito Administrativo: homenagem ao Professor Paulo Henrique Blasi. Campinas: Millenium, 2009. LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extraREVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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patrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. CLÉVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 54, p. 28 – 39, jan./mar., 2006. FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2008. MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004. Eis o parecer. Fortaleza, 08 de setembro de 2009. ________________________________________ Germana Parente Neiva Belchior Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará Pesquisadora do Projeto Casadinho (CNPQ-UFC-UFSC)

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O andamento da ADI, assim outros pareceres na qualidade de amicus curiae, podem ser visualizados no site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <www.stf.jus.br>. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998, p. 24. LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 79 e 84. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 3937 / SP. Liminar indeferida pelo Pleno. Julgado em 04 de junho de 2008. CLÉVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 54, p. 28 – 39, jan./mar., 2006, p. 38 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2008, p. 264. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 438-442. FENSTERSEIFER, op. cit., p. 259.

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MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 67-68. Idem, p. 112-113. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 183. FENSTERSEIFER, op. cit., p. 263. BENJAMIN, Antonio Herman. A Natureza no Direito Brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. In: CARLIN, Volnei Ivo (org ). Grandes Temas de Direito Administrativo: homenagem ao Professor Paulo Henrique Blasi. Campinas, Millenium, 2009, p. 59.

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ANALYSE DE LA JURISPRUDENCE DU CONSEIL CONSTITUTIONNEL SUR LES DROITS FONDAMENTAUX Véronique Champeil-Desplats* Pour livrer une analyse de la jurisprudence du Conseil constitutionnel sur les droits fondamentaux, comme d’ailleurs sur d’autres aspects de sa jurisprudence, il semble opportun de partir d’un rappel simple et pourtant souvent négligé : contrairement à d’autres cours constitutionnelles, le Conseil constitutionnel français n’a pas été créé pour protéger les droits et libertés. Il a avant tout été conçu comme un instrument de rationalisation du parlementarisme destiné à contenir les excès dans lesquels les parlements de la IIIème et de la IVème République ont pu sombrer. C’est ainsi qu’en 1958, les fonctions essentielles du Conseil constitutionnel étaient de s’assurer que le parlement respecte la répartition nouvelle qu’opère la constitution entre le domaine de la loi défini à l’article 34 et le domaine réglementaire, de contrôler la constitutionnalité des règlements intérieurs de chacune des assemblées parlementaires, de veiller à la régularité des opérations électorales nationales (élections présidentielles, législatives, sénatoriales et référendum) et de contrôler certains aspects du statut des parlementaires (compatibilité des fonctions, déchéance…). Sous les Républiques antérieures, ces dernières fonctions ne faisaient l’objet d’aucun contrôle ou étaient assurées par le parlement lui-même… Ainsi, non seulement le Conseil constitutionnel n’a pas été créé pour garantir les droits et libertés, mais pire, souffrant d’une méfiance endémique à l’égard du contrôle de constitutionnalité vécu comme une remise en cause de la souveraineté parlementaire et comme un mécanisme de censure de l’expression de la volonté générale, il n’est pas d’emblée une institution légitime. Au gré des aléas politiques dans lesquels il a rendu ses décisions, il a supporté les critiques peu enviées de « chien de garde de l’exécutif » puis, sitôt après sa grande décision du 16 juillet 1971, de « gouvernement des juges » ou d’ « organe politique ». Aujourd’hui parfois encore, si peu évoque l’idée de supprimer le Conseil constitutionnel, un climat de suspicion à l’égard de cette institution resurgit dès lors qu’une décision relative à des dispositions législatives sensibles emporte le mécontentement. Et ce mécontentement est politiquement inévitable puisque les décisions du Conseil constitutionnel porte sur une loi, par définition, soutenue par la majorité et critiquée par l’opposition. C’est donc soit la majorité censurée qui crie au gouvernement des juges, soit l’opposition qui n’a pas été suivie qui met en avant l’absence de courage et le conservatisme des juges. Finalement, au regard de cette situation, on peut affirmer que l’histoire du Conseil constitutionnel est celle de la construction de sa légitimité. Dans un premier temps, c’est dans l’image d’un juge protecteur des droits et libertés que le *

Professeur de droit public à l’Université de Paris X-Nanterre

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Analyse de la jurisprudence du conseil constitutionnel sur les droits fondamentaux

Conseil constitutionnel a trouvé une source de légitimation (I). Mais sans renoncer complètement à cette image, pour plusieurs raisons qui seront analysées, le Conseil constitutionnel a été contraint d’en limiter les effets. Bien plus, depuis la fin des années 1990, on voit se dessiner une nouvelle ère de l’action du Conseil constitutionnel dans laquelle la protection des droits et libertés est gagnée par la timidité et s’incline plus facilement qu’auparavant devant d’autres exigences (II). I L’IMAGE DU JUGE CONSTITUTIONNEL, PROTECTEUR DES DROITS ET LIBERTES Après avoir montré comment le Conseil constitutionnel a conquis son image de gardien des droits et liberté (A), on exposera les caractéristiques de la protection des droits et libertés (B). A. La conquête de l’image de gardien des droits et libertés La figure du juge gardien des libertés apparaît comme un des premiers moyens de légitimation de l’initiative prise dans la décision du 16 juillet 1971 de contrôler les lois par rapport au préambule de la Constitution française, et en particulier par rapport à des droits ou libertés qui n’étaient pas expressément formulés dans le texte de ce préambule. On le rappelle, dans cette grande décision que beaucoup de constitutionnalistes français comparent à la décision Marbury v. Madison de la Cour suprême des Etats-Unis, le Conseil constitutionnel a considéré que la liberté d’association était un principe fondamental reconnu par les lois de la République. Or, si l’expression « principe fondamental reconnu par les lois de la République » est bien inscrite à la fin de la première phrase du préambule de la Constitution du 26 octobre 1946 auquel renvoie le préambule de la Constitution du 4 octobre 1958, il n’existe aucune précision quant au contenu de cette catégorie. En déclarant contraire à la constitution une loi qui restreignait la liberté d’association en soumettant la création des associations à une autorisation préalable du préfet, le Conseil constitutionnel a ainsi fait « d’une pierre deux coups » : il conférait une valeur constitutionnelle au préambule de la constitution de 1958 et enrichissait sa liste de droits et libertés. A cette époque cette liste comprenait les droits et libertés collectives et sociales énumérés dans le préambule de la constitution de 1946 (droit d’asile, égalité des sexes, liberté syndicale, droit à l’emploi…) et la Déclaration des droits et du citoyen de 1789, textes auxquels le préambule de 1958 renvoie. Les commentaires de J. Rivero au lendemain de la décision du 16 juillet 1971 sont très éloquents sur l’effet qu’elle a produit sur l’institution : « La place que le Conseil vient ainsi de s’assurer parmi les organismes protecteurs des libertés rendent désormais plus difficiles les accusations politiques parfois formulées contre lui. Quelle majorité se réclamant de la tradition libérale oserait, après ce coup d’éclat, supprimer une institution dont l’efficacité pour la défense des droits de l’homme vient de s’affirmer ?1 ». REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Alors que, comme on l’a rappelé, le Conseil constitutionnel n’avait pas initialement été créé pour cette fonction, la protection des droits et libertés de l’homme s’est progressivement imposée comme la principale source de légitimité de son action. La mission première du Conseil constitutionnel devient désormais, pour le bonheur d’une doctrine quasi-unanime, de soumettre les pouvoirs publics, et notamment le législateur, à des droits et libertés exprimées au plus haut degré de la hiérarchie des normes. Pendant longtemps, les membres du Conseil constitutionnel se sont largement appuyés sur cette source de légitimation de leur activité normative. Pour G. Vedel par exemple, le Conseil constitutionnel est le gardien « du trésor des droits de l’homme »2. Cette image naissante du juge constitutionnel protecteur des libertés s’est en outre progressivement imposée aux yeux d’autres acteurs juridiques. Elle a ainsi largement été présente lors des débats d’octobre 1974 sur la révision constitutionnelle qui allait permettre à 60 députés et 60 sénateurs de saisir le Conseil constitutionnel. Certains s’en sont notamment servis pour justifier l’initiative de la révision, en minimisant parfois les craintes et les critiques qu’avait pu susciter auparavant le Conseil constitutionnel3. Par la suite, l’image du juge protecteur des droits et libertés a été d’un indéfectible soutien tant pour hisser le Conseil constitutionnel au rang des grandes Cours constitutionnelles européennes et du monde que pour faire face au courroux des majorités parlementaires censurées. Il suffit d’évoquer l’implacable défense dans le journal Le Monde de Robert Badinter, Président du Conseil constitutionnel de l’époque, alors que le Premier ministre avait jugé utile d’engager une révision de la Constitution pour prendre le contre-pied de la désormais célèbre décision du 13 août 1993 au sujet du droit d’asile. Ainsi affirme R. Badinter : « du droit d’association au droit d’asile, [le Conseil constitutionnel] a toujours veillé au respect des libertés publiques et des droits fondamentaux de l’homme et du citoyen »4. Sans succomber à un excès de personnalisation, on peut d’ailleurs souscrire à l’idée de D. Rousseau d’une « jurisprudence Badinter »5 en matière de droits et libertés, porteuse d’un âge d’or de l’institution. Evacuation faite de l’appréciation que l’on peut subjectivement porter sur la protection apportée par le Conseil constitutionnel aux droits et libertés et, donc, en dépit des regrets que certains peuvent formuler sur le degré de protection de certains droits (constitutionnalisation lacunaire des droits des étrangers ou reconnaissance imparfaite d’un droit constitutionnel au logement), l’image du gardien des droits et libertés est jusqu’à cette époque, c’est-à-dire le milieu des années 1990, restée un vecteur essentiel des décisions et de l’action de l’institution. B. Les caractéristiques de l’action du juge protecteur des droits et libertés La mission affichée par le Conseil constitutionnel de protéger les droits et libertés présentent plusieurs caractéristiques. Elle tend tout d’abord à un usage maximal des catégories ouvertes, c’est-à-dire des catégories de droits et libertés 310

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qui n’ont pas un contenu prédéfini. Il s’agit de la sorte d’élargir la garantie des droits et libertés au profit des individus. Ainsi, au cours de la première décennie de l’exercice du contrôle de constitutionnalité par rapport au préambule, le Conseil constitutionnel n’a pas hésité, par l’intermédiaire de la catégorie des principes fondamentaux reconnus par les lois de la République a énoncé de nouveaux droits et libertés qui ne sont pas été expressément énoncé dans le texte de la Constitution : liberté d’association (1971), droits de la défense (1976), liberté individuelle, liberté d’enseignement, liberté de conscience (1977), indépendance des professeurs d’université (1984), compétence du juge judiciaire en matière de protection de la propriété privée immobilière (1989). Bien plus, le Conseil constitutionnel s’est référé à des catégories de droits et libertés qui n’étaient pas prévues dans le texte de la constitution. Tel est le cas de la catégorie des « principes et règles à valeur constitutionnelle » et de celle des « objectifs à valeur constitutionnelle » apparu à la fin des années 1970 et au début des années 1980. Ce faisant, le Conseil constitutionnel manifeste un double pouvoir créateur : il crée la catégorie et les principes, droits ou libertés qu’il y inclut. Le Conseil constitutionnel a pu ainsi considérer comme « principes à valeur constitutionnelle », la liberté d’aller et venir, la liberté contractuelle, la protection de la vie privée, la liberté d’entreprendre, le droit au recours, le principe de responsabilité ou encore le principe de la dignité de la personne humaine. Il a considéré comme objectifs à valeur constitutionnelle, le pluralisme de la presse ou l’accès à un logement décent. Autre signe caractéristique de l’action du juge protecteur des droits et libertés, la formulation de ces droits et liberté est entourée de très peu de justification (du moins jusqu’à la fin des années 1980). Tout se passe alors comme si le but d’élargir la protection des droits et libertés était autosuffisant, et qu’il ne nécessitait pas de plus amples explications ou précautions. Un des points d’aboutissement de cet activisme du juge en faveur de la protection des droits et liberté est sans nul doute la création d’un régime de protection renforcée pour des droits que le Conseil constitutionnel qualifie de « droits fondamentaux constitutionnels ». Alors que la qualification de fondamentale s’agissant de droits ou libertés n’apparaît pas expressément dans le texte de la constitution, le Conseil constitutionnel va progressivement y procéder. La première référence apparaît dans la décision n° 81-132 DC du 16 janvier 1982 sur les nationalisations. Cette décision affirme « le caractère fondamental du droit de la propriété ». En 1984, est qualifiée de « liberté fondamentale » la liberté de communication des pensées et des opinions (décision n° 84-181 DC, 10 et 11 octobre 1984). En 1994, sont ainsi qualifiées les libertés d’écrire, d’imprimer et de parler (décision n° 94-345 DC, 29 juillet 1994). Entre temps, près avoir fait référence aux «libertés et droits fondamentaux de valeur constitutionnelle reconnus à tous ceux qui résident sur le territoire de la République» sans préciser les libertés et droits dont il s’agit (décision n° 89-259 DC du 22 janvier 1990), le Conseil y inclut les droits de la défense, le droit d’asile, la liberté individuelle et la sûreté, la liberté d’aller et venir, la liberté du mariage, le droit de mener une vie familiale normale, (décision n° 93-325 DC REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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du 13 août 1993). Enfin, le Conseil se réfère aux droits et libertés fondamentaux reconnus aux employeurs et aux salariés parmi lesquels figurent notamment, la liberté proclamée par l’art. 4 de la Déclaration de 1789, dont découle « la liberté d’entreprendre, l’égalité devant la loi et les charges publiques, le droit à l’emploi, le droit syndical, ainsi que le droit reconnu aux travailleurs de participer à la détermination collective des conditions de travail et à la gestion des entreprises » (décision du n° 98-401 DC du 10 juin 1998 relative à la loi d’orientation et d’incitation à la réduction du temps de travail). Les « droits fondamentaux constitutionnels » se présentent ainsi comme une catégorie ouverte dont le Conseil constitutionnel livre le contenu au cas par cas. Surtout, si dans un premier temps le Conseil constitutionnel n’a tiré aucune conséquence particulière de ce travail de qualification, il va singulariser le catégorie des « droits fondamentaux constitutionnels » par un régime spécial et renforcé de protection : le législateur ne peut réduire leur niveau de garantie. En d’autres termes, le législateur ne saurait intervenir que pour les rendre plus effectifs6. Ce régime est connu des constitutionnalistes sous le nom d’« effet cliquet » ou d’ « effet anti-retour »7. Enfin, l’action du juge protecteur des droits et libertés se caractérise par une absence de crainte ou d’hésitation à sanctionner des mesures polémiques et politiquement sensibles. Pour ne prendre que quelques exemples, en 1971, le Conseil constitutionnel n’a pas hésité à censurer, dans un climat très tendu, la loi qui restreignait la liberté d’association essentiellement pour faire barrage à l’organisation et à l’expression de groupes d’extrême gauche. Il s’agissait en effet à l’époque de passer outre une décision du tribunal administratif de Paris qui avait annulé le refus du préfet de la Seine d’enregistrer une association de soutien à un journal maoïste (« La cause du peuple ») qui avait fait l’objet d’une interdiction de publication. L’association en question était symboliquement présidée par Simone de Beauvoir. En juillet 1977, le Conseil constitutionnel n’a pas non plus hésité à déclarer contraire à la liberté individuelle une loi qui autorisait de façon quasiinconditionnelle la fouille des véhicules par les agents de polices. Officiellement la loi était justifiée par la lutte contre le terrorisme ; officieusement, comme le confie un membre du Conseil constitutionnel, il s’agissait d’accroître les pouvoirs des maires des communes situées en bord de plage pour écarter des individus jugés indésirables en procédant à une fouille systématique de leur véhicule8. Enfin en 1993, le Conseil constitutionnel n’a pas hésité non plus à censurer plusieurs dispositions législatives relatives au droit des étrangers, à s’engager dans un débat public avec le Premier ministre à propos du droit d’asile, et à s’exposer à la convocation du pouvoir constituant pour contrecarrer sa décision prise sur une conception humaniste radicale et intransigeante du droit d’asile. Il ne fait donc aucun doute que le Conseil constitutionnel s’est bâti une image de protecteur des droits et libertés et que celle-ci reste un important facteur de légitimation de sa jurisprudence. Pourtant, divers facteurs tendent à montrer que ce rôle de protection des droits et libertés est en proie à certains infléchissements. 312

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II. LIMITES ET EFFACEMENT DE L’IMAGE DU JUGE PROTECTEUR DES DROITS ET LIBERTES Il est toujours possible d’être mécontent, au nom d’une conception exigeante ou militante des droits de l’homme, du niveau de protection de ces droits par le Conseil constitutionnel. Ainsi, au milieu des années 1980, au moment même où tout le monde saluait l’action libérale du Conseil constitutionnel, non sans provocation, D. Lochak signait un article dans la revue Pouvoirs sur le mode interrogatif chargé de sens : «Le Conseil constitutionnel, protecteur des libertés ?»9. Pour l’auteur la généralité, le flou des dispositions à partir desquelles le Conseil constitutionnel justifie ses décisions ne garantiraient aucunement qu’il oriente sa jurisprudence vers une meilleure protection des droits fondamentaux. Souvent même, ses décisions seraient lacunaires, en trompe-l’œil et entachées de conservatisme. Il n’exercerait qu’une « vigilance à éclipses ». Mais ce n’est pas ce type de critiques fondées sur le sentiment subjectif que le Conseil constitutionnel remplit mal ou imparfaitement sa mission de gardien des droits et libertés qui retiendra mon attention ici. On peut en effet également montrer une forme de recul ou d’atténuation de l’action menée en faveur de la protection des droits et libertés par le Conseil constitutionnel à partir de facteurs « objectifs » ou « structurels ». Cela est possible en mettant en perspective que la protection des droits et libertés n’est pas le seul objectif poursuivi par le Conseil Constitutionnel, et que d’autres exigences semblent gagner en priorité. Le Conseil constitutionnel a ainsi tout d’abord été préoccupé par le fait de montrer qu’il n’est pas maître du bloc de constitutionnalité (A), et sa ensuite engagé une forme de repli technicien de l’exercice de son contrôle (B). Les effets de ces deux facteurs sur la protection des droits et libertés par le juge constitutionnel ne sont pas identiques. Tandis que l’image d’un juge non maître du bloc de constitutionnalité ne remet pas fondamentalement en cause la protection des droits et libertés mais en atténue certains effets, le repli technicien au contraire tend à manifester un changement d’orientation plus profond de la jurisprudence du Conseil constitutionnel. A. Le Conseil constitutionnel, non maître du bloc de constitutionnalité Dans un premier temps, l’image de protecteur des droits et liberté a été atténuée par celle du juge non maître du bloc de constitutionnalité, promue par le doyen Vedel lorsqu’il a intégré le Conseil constitutionnel en 1980. L’idée que le Conseil constitutionnel n’est pas le maître des sources du droit qu’il impose au législateur est formulée de façon la plus éloquente dans un article publié en 1984 sur « le précédent en droit public français »10. « la plus sûre garantie de la stabilité, sinon de la pérennité de la jurisprudence constitutionnelle », nous dit-il, « se trouve dans le fait que le Conseil constitutionnel, largement mis en garde contre le danger du “gouvernement des juges”, ne s’estime pas maître des sources du droit constitutionnel ». Le doyen Vedel écarte toute référence de REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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part du Conseil constitutionnel au « droit naturel », à des « principes inscrits dans la conscience des justes », ou « appel à un “ordre politico-social” »11. Une fois son mandat achevé, il précisera de façon encore plus intéressante pour nous que le Conseil constitutionnel a pris garde d’échapper à la dérive de l’image d’un juge gardien des libertés12 ; il rappelle que « juridiquement le Conseil constitutionnel n’est pas le gardien des droits de l’homme mais est avant tout le gardien de la Constitution »13. Toutefois, pour nuancer quelque peu ces propos, comme on l’a évoqué, l’image d’un juge non maître du bloc de constitutionnalité ne remet pas définitivement en cause celle de protecteur des droits et liberté ; elle en atténue la portée et les effets. D’ailleurs, ces deux images sont tout à fait compatibles. Il suffit de considérer que la première garantie de la protection des droits et libertés constitutionnels réside dans la simple opération d’application par le juge des droits qui ont posé dans texte constitutionnel. En revanche, il est vrai que ces deux modèles d’action légitime du Conseil constitutionnel achoppent sur la question de la création normative. En d’autres termes, le modèle d’un juge protecteur des droits et libertés permet de justifier l’énonciation de nouveaux principes constitutionnels qui viennent enrichir le catalogue de droits et libertés protégées par le Conseil, énonciation qui s’accommode mal du modèle d’un juge non maître des sources du droit constitutionnel. Après avoir étudié les caractéristiques de la politique jurisprudentielle auxquelles mène ce nouveau modèle (2), nous tenterons d’expliquer ce qui a pu conduire le Conseil constitutionnel a lui apporté crédit et à atténuer son rôle de gardien des droits et libertés (1). 1. Caractéristiques : le retour au texte. Le modèle d’un juge non maître du bloc de constitutionnel est par-dessus tout marqué par une foi démesurée mais inébranlable en la force des textes et des références aux textes dans le fonctionnement du droit. La seule et simple référence au texte est considérée comme un rempart contre l’arbitraire des décisions et comme un facteur de contraintes et d’obligations pour le juge. La source écrite s’impose comme une « source de la légitimité »14, de nature à conférer à la jurisprudence du Conseil constitutionnel « un surcroît de crédibilité et d’autorité »15. Pris d’une véritable « obsession textuelle »16, non seulement le Conseil constitutionnel s’évertue dorénavant à justifier ses décisions et l’énonciation de nouveaux principes ou objectifs de valeur constitutionnelle par la citation de textes juridiques, mais il affirme rétrospectivement, par la voix de ses membres ou de son Secrétaire Général, la rareté des cas où les principes utilisés ne peuvent se rattacher à des textes. Ainsi les membres du Conseil constitutionnel, parfois aidé par la doctrine, s’engagent dans un véritable travail de reconstruction a posteriori du fondement textuel de droits et libertés qui avaient pourtant été énoncés sans justification particulière. Le nombre de cas où le Conseil a énoncé 314

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des principes ou objectifs de valeur constitutionnelle sans texte à l’appui est volontairement minimisé : ou bien des textes sont après coup retrouvés, ou bien est mise en avant l’évidence de l’existence du principe. Ainsi, le rapport d’Ankara de 1990 présenté au nom du Conseil constitutionnel insistait ainsi sur le fait que certains principes énoncés sans référence voient dorénavant leur origine textuelle précisée. Est donné en exemple –au demeurant peu contestable -, le principe de la séparation des pouvoirs d’abord énoncé sans justification (décision n°79-104 DC du 23 mai 1979) mais « par la suite, rattaché directement à l’article 16 de la Déclaration des droits de 1789 »17 (décision n° 88-248 DC du 17 janvier 1989). On peut aussi citer la liberté d’aller et venir d’abord qualifiée de principe à valeur constitutionnelle sans justification particulière puis rattachée à l’article 2 de la Déclaration des droits de l’Homme. Plus généralement, depuis les années 1990, lorsqu’il énonce de nouveaux principes, droits ou libertés, le Conseil constitutionnel s’efforce systématiquement de les présenter comme découlant des textes constitutionnels préalables. Par exemple, dans sa décision sur les lois « bioéthique » de 1994, le principe de la dignité de la personne humaine est rattaché à la première phrase du préambule de 1958 tandis que l’objectif à valeur constitutionnelle d’accès à un logement décent à lui-même est réputé découler du principe de dignité et du préambule de 1946. Aujourd’hui, les articles 2, 4 et 16 de la Déclaration des droits de l’Homme et du Citoyen rencontrent un succès particulier dans cette entreprise « de retour au texte ». Le Conseil a pu leur rattacher le respect de la vie privée, la liberté contractuelle, la liberté d’entreprendre, le droit à un recours effectif… Mais un des symboles essentiels de ce modèle où le support textuel apparaît comme le remède à l’arbitraire du juge reste l’effort du Conseil constitutionnel d’encadrer et de verrouiller les conditions de production des principes fondamentaux reconnus par les lois de la République. Alors que cette catégorie était dans les années 1970 l’un des principaux ressorts de l’action du Conseil constitutionnel en faveur des droits et libertés, depuis une décision du 20 juillet 1988, celui-ci défend dorénavant une conception stricte de cette catégorie. Pour qu’un droit ou une liberté soit érigée en principe fondamental reconnu par les lois de la République, il exige que le principe ait été énoncé dans au moins une loi issue d’un régime républicain antérieur l’entrée en vigueur de la Constitution de 1946, et qu’il ait été reconnu de façon continue sans avoir souffert d’exception. Résultat : depuis cette décision seuls deux nouveaux principes fondamentaux reconnus par les lois de la République ont été consacrés, celui de la compétence du juge judiciaire en matière de propriété immobilière (1989) et celui spécificité de la justice pénale applicable aux mineurs (2002), tandis que d’innombrables principes invoqués par les auteurs de saisines étaient rejetés. Le cas des principes fondamentaux reconnus par les lois de la République est révélateur d’une tendance plus générale de la prudence et de la mesure du juge qui s’estime non maître de ses sources à l’égard de la formulation de nouveaux principes, droits ou libertés. Rien ne se fait plus sans texte. La référence au texte juridique est devient le gage du caractère « authentiquement » et REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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incontestablement juridictionnel du contrôle exercé. A tort ou à raison, c’est ainsi en comptant sur ses appuis textuels que le Conseil constitutionnel entend démontrer à ceux qui le rabattent au rang d’organe politique qu’il est un véritable juge, une véritable juridiction, quitte à sacrifier à la marge son action en faveur des droits et libertés. Celle-ci ne s’effectue plus que dans la stricte mesure où les droits et libertés qui fondent sont formulés dans un texte juridique. 2. Hypothèses explicatives Au-delà de l’influence d’une membre, même aussi prestigieux et respectés que le doyen Vedel, comment expliquer l’atténuation des conséquences liées à l’image d’un juge protecteur des droits et libertés et l’intégration progressive de la nécessité de montrer que le juge constitutionnel n’est pas maître du bloc de constitutionnalité ? Avant d’envisager les facteurs explicatifs proprement dit, il convient de relever que, dans la configuration du système constitutionnel et politique français, la protection des droits et libertés par le Conseil constitutionnel se heurte à un dilemme. En multipliant les décisions créatrices de nouveaux droits et libertés et en censurant l’action du législateur alors que les acteurs politiques n’en avaient ni l’habitude, ni le désir (l’initiative, on le rappelle, provient du Conseil constitutionnel lui-même), le Conseil a rapidement été suspecté de gouvernement des et d’« usurpation du pouvoir constituant »18. Ainsi, s’interrogent par exemple à l’époque, MM. Avril et Gicquel, « l’éthique démocratique promue de la sorte à la dignité constitutionnelle, ne constituet-elle pas l’arme du gouvernement des juges ? »19. Tel est donc le dilemme auquel se heurte le Conseil constitutionnel animé par la protection des droits et libertés : alors que celle-ci justifie et légitime sa création normative qui en retour parfait cette protection (cercle vertueux), cette création ne peut toutefois s’effectuer de façon incontrôlée au risque de discréditer l’autorité du Conseil constitutionnel et de s’attirer non seulement les réactions de la doctrine, mais surtout celles des autres acteurs juridiques et, entre tous, le pouvoir constituant (cercle vicieux). Autrement dit, la création normative, même justifiée par la protection des droits et libertés, ne peut s’effectuer de manière inconsidérée. Cette limite à l’action du Conseil constitutionnel met en évidence la nécessité à laquelle s’est heurtée cette institution de composer avec d’autres modèles d’action perçus comme légitimes. C’est ce qu’exprime particulièrement bien la remarque de D. Turpin à propos du recours aux principes fondamentaux reconnus par les lois de la République : « L’État de droit risquait de tourner au gouvernement des juges, et beaucoup souhaitaient que le Conseil constitutionnel s’en tienne davantage au texte même de la Constitution (certes “interprété” par lui), y compris bien sûr de son préambule, pour censurer les lois liberticides »20. A l’aune du rappel de cadre général, trois types de facteurs permettent d’envisager les raisons d’une atténuation de l’action du juge en faveur des droits 316

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et libertés et notamment de son interprétation extensive du bloc de constitutionnalité : a) l’intériorisation de la critique doctrinale, b) l’évolution de la composition du Conseil, c) l’interdépendance des acteurs. a) L’intériorisation de la critique doctrinale Un premier facteur explicatif de l’atténuation de l’activisme du juge notamment en matière de protection des droits et libertés peut être recherché dans la réception et l’intériorisation de la critique du gouvernement des juges. Comme le souligne notamment D. Rousseau, la légitimité du Conseil constitutionnel repose en partie sur la reconnaissance et l’acceptation de sa jurisprudence par ce qu’il appelle « la communauté des juristes » c’est-à-dire une « la communauté des professionnels intéressés - universitaires, hommes politiques, journalistes spécialisés »21. Cette reconnaissance suppose que les membres de cette communauté « puissent avoir l’impression véritable de participer au processus d’interprétation en retrouvant - parfois - dans la motivation des décisions, tout ou partie de leur argumentation »22. Cette explication est d’autant plus tentante que peu après sa nomination, G. Vedel faisait état d’une prise en compte des critiques doctrinales, à propos même de la production de nouveaux principes constitutionnels : « Le Conseil constitutionnel, largement mis en garde contre le danger du “gouvernement” des juges, ne s’estime pas maître des sources du droit constitutionnel »23, déclarait-il. Plus tard, il précisait également: « tout effort critique de la doctrine engendre un effort d’autocritique du Conseil constitutionnel et donc est précieux pour celui-ci »24. Toutefois, la limite principale à laquelle se heurte cette hypothèse explicative réside dans le fait qu’elle ne permet pas de comprendre les raisons pour lesquelles le Conseil constitutionnel se trouve véritablement contraint de modifier son action en fonction de l’opinion de la doctrine. La finesse et de la force des argumentations doctrinales ne sont pas toujours suffisantes pour influencer le Conseil constitutionnel. L’intériorisation de l’opinion de la « communauté des juristes » repose donc in fine sur une simple bienveillance du Conseil constitutionnel qui peut sans grand risque passer outre cette opinion. Par ailleurs, cette explication présuppose que « la communauté des juristes » émette des opinions convergentes. Or, cela est loin d’être le cas. Il est alors possible au Conseil constitutionnel de jouer sur les divergences pour finalement poursuivre librement sa route. En revanche, l’hypothèse change de nature, si la critique est partagée ou reprise par des autorités qui, elles, disposent de moyens juridiques pour agir contre le Conseil (voir c)). b) La composition du Conseil constitutionnel et la logique du processus délibératif L’atténuation de l’expression du pouvoir normatif du Conseil constitutionnel en matière de droits et libertés trouve une deuxième explication dans REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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les effets que peut avoir sur le contenu des décisions, et en particulier sur les motivations, la composition du Conseil constitutionnel25. Cette explication se décline en deux hypothèses nullement incompatibles. Une première hypothèse susceptible d’expliquer la réduction des références à des principes non explicitement inscrits dans le texte de la Constitution, ainsi que le silence souvent observé quant à l’origine de ces principes, réside dans la diversification de la composition du Conseil. Celle-ci engendrerait « des débats plus serrés » et imposerait « de ne pas utiliser dans la délibération, et donc a fortiori dans la motivation des décisions, des principes impossibles à fonder de manière contraignante. (…) Obligés plus que jamais de camoufler leurs préférences derrière une argumentation juridique, [les membres] devraient rendre celle-ci plus convaincante par un “retour au texte” »26. La seconde hypothèse est liée à la « présence accrue de juristes professionnels (…). Plus à l’aise pour découvrir dans les textes eux-mêmes un sens propre à justifier les solutions retenues par le Conseil, ils imposeraient une certaine manière de les motiver, parce qu’eux-mêmes exploiteraient dans les débats toutes les ressources de l’interprétation »27. Pour être vérifiée cette hypothèse nécessite que soit montrées à la fois une corrélation entre la qualité de juristes et la récurrence de certains arguments (notamment la nécessité de faire valoir que l’énonciation de nouveaux principes constitutionnels n’est que le produit des textes juridiques euxmêmes), et une prédominance des arguments des juristes dans les délibérations. Faute d’avoir accès aux procès-verbaux des délibérations du Conseil constitutionnel, rien ne peut être prouvé mais rien n’est non plus invraisemblable. L’intérêt de ces deux hypothèses est qu’elle offre un point de passage entre une explication s’attachant à des facteurs subjectifs (la formation personnelle des membres, leur habitus professionnel) et une explication en termes de contraintes d’action extérieures à la volonté des acteurs. Elles attirent en effet l’attention sur l’existence de contraintes inhérentes au processus délibératif des institutions qui tiennent à inscrire leur décision dans un cadre juridique et juridictionnel. Au sein de ces institutions, ces contraintes favorisent les modes d’argumentation des juristes. En associant un changement de conception qu’ont les juges de leurs propres pouvoirs à des contraintes argumentatives, ces deux hypothèses dépassent donc la simple prise en considération des facteurs extra-juridiques que constituent la pression doctrinale et son corollaire la bienveillance des membres du Conseil constitutionnel pour suggérer que les évolutions jurisprudentielles se détachent parfois de la seule et simple volonté de ceux qui les initient. c) L’interdépendance des acteurs Un troisième type d’hypothèses explicatives de l’atténuation de l’action du juge constitutionnel en faveur des droits et libertés peut être fournie par une théorie des contraintes juridiques, c’est-à-dire des contraintes qui pèsent sur les acteurs juridiques et qui sont le produit de la configuration du système 318

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juridique28. La jurisprudence constitutionnelle est soumise ainsi à un ensemble de contraintes liées à l’appartenance du Conseil constitutionnel à un système juridique dans lequel sont présents d’autres acteurs qui peuvent agir contre lui, ou qu’il convient de persuader d’agir dans un sens voulu. Cette interdépendance des acteurs conduit à ce qu’aucun d’entre eux, quand bien même ils en auraient la possibilité, ne puisse totalement et durablement agir dans la démesure. Elle donne à l’auto-limitation et au respect des prescriptions de la Constitution, non l’aspect d’une bienveillance ou une sagesse, mais le caractère d’une contrainte extérieure à la volonté du juge et qui influe sur ses décisions et son action. Comme le suggère les travaux de N. Élias29, l’acteur juridique, comme tout autre acteur, se situe dans un réseau d’interdépendances qui règle et limite ce qui lui est possible de décider ou de faire. Le « tissu d’interdépendances à l’intérieur duquel l’individu trouve une marge de choix individuel » lui impose, en même temps, « des limites à sa liberté de choix »30. Pour illustrer cette hypothèse, N. Élias s’appuie sur une analogie avec le jeu d’échec. « Comme au jeu des échecs, toute action accomplie dans une relative indépendance représente un coup sur l’échiquier social, qui déclenche infailliblement un contrecoup d’un autre individu (…) limitant la liberté d’action du premier joueur »31. Les décisions des acteurs sont donc soumises aux possibilités qu’ont les autres de réagir, de s’opposer à eux ou d’agir conformément à leur volonté. Dans ce cadre d’analyse, le choix de décider de telle ou telle manière dépend « des réactions possibles qu’il peut déclencher »32 de la part des autres acteurs. Dans le cas du système juridique, les réactions possibles dépendent des compétences, des moyens qu’octroient les textes juridiques pour agir contre les autres acteurs, étant entendu que ces textes sont interprétés par les acteurs en fonction de la capacité supposée de rétroaction des autres acteurs juridiques. La principale réaction à laquelle peut se trouver confronté le Conseil constitutionnel est la révision de la Constitution. Celle-ci peut être déclenchée pour priver d’effets une décision ou pour réduire les compétences du Conseil constitutionnel, en excluant par exemple expressément le préambule des normes pouvant servir de référence à son contrôle, voire, dans un cas extrême, pour supprimer l’institution. Les décisions du Conseil sont donc toujours soumises à un possible contrecoup du constituant, la probabilité de ce contrecoup dépendant des chances qu’a la procédure de révision d’aboutir au résultat voulu par ceux qui en prennent l’initiative. Dans un contexte de recherche de légitimation, d’entretien et de consolidation de l’autorité et de crédibilité de ses décisions, ce sont précisément les contrecoups que le Conseil constitutionnel cherche à éviter…., sauf à considérer, comme cela a sans doute été le cas en 1993 au sujet du droit d’asile, que le Conseil aille volontairement au conflit avec le constituant, dans le but précis d’afficher ses priorités d’actions (en l’occurrence l’attachement au droits de l’homme et au droit d’asile) face aux contingences politiques. Au constituant alors de prendre ses responsabilités politiques et d’afficher un visage conservateur. REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Ces contraintes juridiques pesant sur l’activité normative du Conseil constitutionnel dessinent alors un cadre qui délimite les marges à l’intérieur desquelles celui-ci peut agir. Il met en perspective quelques facteurs qui ont conduit le Conseil constitutionnel à contenir les effets de sa recherche légitime de protection des libertés, alors que rien « hors contexte » ne lui interdisait de continuer à poursuivre cette fin. S’il a été possible de rationaliser dans un cadre explicatif de type juridique la façon dont le Conseil constitutionnel en est venu à concilier son image de gardien des droits des libertés avec celle d’une juge non maître de la Constitution, l’entreprise est sans doute moins facile avec la deuxième tendance, plus récente encore (fin des années 1990-début 2000) qui vient atténuer l’action protectrice des droits de l’homme du Conseil constitutionnel. Cette tendance au repli technicien ressort, semble-t-il, moins de contraintes juridiques objectivables que d’une véritable politique et volonté jurisprudentielle d’infléchir l’action du Conseil et de modifier ses priorités au détriment de l’image d’un juge protecteur des droits et libertés. Le repli technicien du Conseil constitutionnel Repli technicien, timidité, routine : un vent nouveau semble souffler sur la jurisprudence du Conseil constitutionnel depuis le début du nouveau millénaire. Le Conseil présente un nouveau visage. On perçoit, tout d’abord, une baisse tendancielle du nombre de censures fondées sur des droits et libertés (excepté peut-être le principe d’égalité). Le Conseil pointe dorénavant davantage des inconstitutionnalités « techniques » : usage inadéquat du droit d’amendement, cavaliers budgétaires ou sociaux, irrespect de la procédure législative, incompétence négative du législateur. Il préfère s’appuyer sur ce type d’arguments pour déclarer inconstitutionnelles des dispositions législatives plutôt que de prendre position sur le fond, c’est-à-dire sur le fondement des droits et libertés constitutionnels. La récente décision n° 2007-557 DC du 15 novembre 2007 portant sur la loi relative à la maîtrise de l’immigration, à l’intégration et à l’asile, en offre une illustration très nette à propos de dispositions permettant de procéder à des statistiques sur la base de données ethniques. Cette disposition, comme d’autres d’ailleurs de la loi, était au centre de nombreuses polémiques. De façon très caractéristique de son attitude actuelle, le Conseil constitutionnel préfère sanctionner le législateur sur le fondement de motifs techniques plutôt que sur terrain des droits et libertés. Ainsi, la loi ouvrait la possibilité aux institutions publiques de traiter des « données à caractère personnel faisant apparaître, directement ou indirectement, les origines raciales ou ethniques des personnes ». Pour déclarer cette disposition inconstitutionnelle, le Conseil a trouvé un argument de procédure imparable, lui évitant de sanctionner la loi sur le fond et donc de prendre position. Conformément à une jurisprudence constante et de plus en plus stricte sur le droit d’amendement, le Conseil constitutionnel a relevé que l’article 63 résultait d’un 320

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amendement « dépourvu de tout lien avec les dispositions qui figuraient dans le projet dont celle-ci est issue ». Il est déclaré pour cette raison contraire à la Constitution. Toutefois, le Conseil apporte au préalable une importante précision qui devrait conduire le législateur à réfléchir avant de reprendre l’initiative de ce type de mesure. Ainsi nous dit le Conseil constitutionnel, « si les traitements nécessaires à la conduite d’études sur la mesure de la diversité des origines des personnes, de la discrimination et de l’intégration peuvent porter sur des données objectives, ils ne sauraient, sans méconnaître le principe énoncé par l’article 1er de la Constitution, reposer sur l’origine ethnique ou la race ». Outre que les censures du Conseil constitutionnel repose sur des arguments de plus en plus techniques, on observe une baisse tendancielle du nombre de déclaration d’inconstitutionnalité. Certes, on pourrait se réjouir de ce diagnostic soit au nom du respect de la souveraineté parlementaire, soit parce qu’il pourrait traduire une amélioration de la prise en compte en amont des exigences de la jurisprudence constitutionnelle. Il reste que certaines « non censures » ou timides réserves d’interprétation en ont laissé beaucoup dubitatifs. C’est par exemple le cas s’agissant des décisions n°2003-467 DC du 13 mars 2003 relative à la loi pour la sécurité intérieure, n°2004-492 DC du 2 mars 2004 dont les quelques déclarations « chirurgicales » d’inconstitutionnalité, n’entame pas l’essentiel du dispositif de la loi portant adaptation de la justice aux évolutions de la criminalité (terrorisme, criminalité organisée, lutte contre l’immigration clandestine…). On peut aussi mentionner la décision n°2005527 DC du 8 décembre 2005 par laquelle le Conseil rejette le recours contre la loi sur le traitement de la récidive des infractions pénales au moyen d’un habile travail de qualification de la nature juridique de la surveillance judiciaire des prisonniers par port d’un bracelet électronique. Tandis que beaucoup de professionnels de la justice estimaient que cette surveillance constituaient une véritable sanction pénale rétroactive contraire à l’article 8 de la Déclaration des droits de l’Homme et du citoyen, le Conseil constitutionnel estime qu’imposer le port d’un bracelet électronique n’est qu’« une modalité d’exécution de la peine, de caractère non punitif » qui peut « donc être rendue applicable aux personnes déjà condamnées sans contrevenir au principe de non rétroactivité des peines et des sanctions résultant de l’article 8 de la Déclaration de 1789 ». Ou encore, on peut évoquer la décision n°2005-532 DC du 19 janvier 2006 sur la lutte contre le terrorisme et portant dispositions diverses relatives à la sécurité et aux contrôles frontaliers. La censure de quelques mots de la loi est fondée sur la séparation des pouvoirs. Pour le reste, le Conseil n’y a rien vu à redire, pas même sur la mise en place du dispositif automatique de lecture des plaques minéralogique et de photographie des passagers du véhicule au sujet duquel l’avis du 26 octobre 2005 de la Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés s’était montrée très réservée. A cet effet d’accumulation de l’absence de censure, s’ajoute le très faible nombre de consécration de nouveaux droits et libertés constitutionnels. Dans ce contexte, on peut alors relever la « quasi-audace » que représente la formulation REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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d’un nouveau principe fondamental reconnu par les lois de la République en matière de justice des mineurs (décision n°2002-461 DC, 29 août 2002). Plutôt que de consacrer de nouveaux droits et libertés, le Conseil constitutionnel a préféré entreprendre un travail de redéfinition des fondements de droits et libertés déjà consacrés, notamment en les rattachant autant que possibles aux articles 2, 4 ou 16 de la Déclaration des droits de l’Homme. Les rares nouveaux principes produits ont une tonalité nettement technique et sont destinés à encadrer la rationalité de la production législative : intelligibilité, accessibilité, clarté, normativité de la loi33. Pour finir, le Conseil constitutionnel rappelle dorénavant de façon quasisystématique la nécessité de procéder à une conciliation des droits et libertés non seulement entre eux (ce qui n’a rien de surprenant) mais aussi avec d’autres exigences constitutionnelles moins libérales souvent non expressément écrites dans le texte constitutionnel. A dire vrai, le Conseil veille au respect d’une telle conciliation depuis la fin des années 1970, s’agissant tout particulièrement de la liberté individuelle et de l’ordre public. Toutefois la systématisation de la nécessité de procéder à des conciliations ainsi que la nette valorisation de certaines des exigences constitutionnelles opposées aux droits et libertés, notamment l’intérêt général, confère une envergure nouvelle au phénomène. Les voeux pour 2006 du Président du Conseil constitutionnel sont significatifs : « L’intérêt général, en matière sociale, c’est n’envisager un nouvel avantage ou une nouvelle prestation qu’en en assumant la contrepartie en terme de coûts, d’organisation administrative ou d’effets secondaires » (…°). « Dans le domaine des libertés publiques, l’intérêt général consiste à concilier avec réalisme les droits potentiellement en conflit, sans oublier que la défense trop intransigeante d’un droit peut compromettre la protection des autres » (…) « L’intérêt général, en matière d’immigration, est de mener de pair une intégration chaleureuse et volontariste des étrangers établis sur notre sol et la stricte application de notre législation sur l’entrée et le séjour des étrangers»34. Cet appui sur l’intérêt général est ambiguë ou habile, c’est selon. Il conduit à mettre face à face l’ordre civique dans lequel s’insère le concept d’intérêt général, et non plus seulement un ordre sécuritaire ou répressive exprimé par la notion d’ordre public, contre l’ordre humaniste des droits et libertés. Tandis qu’il est aisé aux humanistes de s’opposer à un ordre sécuritaire, l’opposition est plus délicate face aux valeurs civiques qu’ils partagent assurément. Leur reste alors la critique, éculée mais inévitable, de l’instrumentalisation du standard qu’est l’intérêt général. L’ordre public et l’intérêt général ne sont pas les seules exigences constitutionnelles non écrites avec lesquelles les droits et libertés doivent être conciliés. Parfois, comme cela a été récemment le cas dans la décision précitée portant sur la loi relative à la maîtrise de l’immigration, à l’intégration et à l’asile (décision n° 2007-557 DC du 15 novembre 2007), c’est la nécessité de lutter contre la fraude qui est opposée aux droits et libertés. En l’occurrence, un amendement déposé par un député (M. Mariani) imposait le recours à des tests d’ADN pour prouver la filiation des enfants de famille d’immigrés candidate au regroupement familial. La 322

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brutalité de cet amendement avait provoqué de très vives controverses. Devant les doutes sur la constitutionnalité de cet amendement et de sa conformité à la Convention Européenne des droits de l’Homme, la majorité a fait machine arrière tout en souhaitant symboliquement conserver le principe du test. La version finale de l’amendement en présentait donc une forme édulcorée. Elle permet les tests mais à condition qu’ils soient réalisés à la demande expresse de la personne qui souhaite obtenir un visa, pour établir une filiation à l’égard de la mère et avec le consentement des personnes concernées. Cette mesure est instituée à titre expérimental pendant une période d’au maximum 18 mois pour des pays dont la liste doit être définie par Décret en Conseil d’Etat après avis du Comité consultatif national d’Ethique. Les requérants estimaient que ces dispositions portaient entre autre « atteinte au principe d’égalité », ne respectaient « pas le droit au regroupement familial, le droit au respect de la vie privée et le principe de la dignité humaine ». Pour déclarer conforme à la constitution ce dispositif, le Conseil constitutionnel déclare de façon très caractéristique des formes, des justifications et des tournures nouvelles qu’adopte son contrôle, « qu’en limitant la nouvelle faculté de preuve à l’établissement d’une filiation avec la mère et eu égard aux finalités qu’il s’est assignées, le législateur a adopté une mesure propre à assurer une conciliation qui n’est pas manifestement déséquilibrée entre le droit à une vie familiale normale, le respect de la vie privée de l’enfant et du père et la sauvegarde de l’ordre public, qui inclut la lutte contre la fraude ». Enfin, on signalera que c’est notamment sous couvert des difficultés d’articuler sa jurisprudence sur « l’effet cliquet » avec la nécessité de concilier les normes constitutionnelles entre elles que le Conseil a annoncé, au début des années 2000, avoir renoncé à cette première. L’idée est qu’il serait difficile de ne pas diminuer le niveau de protection des droits lorsqu’on procède à des conciliations. On peut néanmoins répliquer que s’agissant des droits constitutionnels fondamentaux qui bénéficiaient de l’effet cliquet, il n’existe aucune nécessité de les concilier avec d’autres objectifs ou même avec d’autres droits et libertés (beaucoup vont même jusqu’à associer conceptuellement le caractère fondamental et le caractère absolu des droits et libertés). Cela suppose alors d’assumer une hiérarchie sinon formelle du moins axiologique entre certains droits et libertés et des exigences constitutionnelles non libérales, et éventuellement entre des droits et libertés. *** Le Conseil constitutionnel du nouveau millénaire semble avoir des difficultés à imposer l’image de gardien des droits et libertés à laquelle certains n’ont peut-être jamais totalement cru, mais qui a amplement contribué à assurer sa légitimité au sein des institutions françaises. Cette légitimité était pourtant loin d’être acquise. Déjà écornée par sa volonté de ne pas apparaître maître du bloc de constitutionnalité, l’image de gardien des droits et libertés est aujourd’hui brouillée par un repli technicien de la part Conseil constitutionnel. Sur le plan REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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institutionnel, ce repli pourrait être analysé comme une bonne nouvelle pour le Conseil constitutionnel. Il pourrait être la marque d’un luxe suprême qui montrerait que le Conseil a enfin trouvé sa place dans la vie institutionnelle française. Il n’a plus besoin de justifier son existence ni sa jurisprudence par un ancrage constant et systématique de ses décisions dans le cadre hautement légitimant de la protection des droits de l’Homme. Sans renoncer totalement à la protection des droits et libertés, le Conseil peut, si l’on peut dire, « passer à autre chose ». Il reste qu’au regard d’une conception intransigeante de l’Etat de droit et du rôle du juge constitutionnel dans sa construction, une négligence trop marquée de la protection des droits et libertés peut à terme s’avérer problématique. L’observation des décisions futures d’un Conseil constitutionnel en formation renouvelée (nominations de trois nouveaux membres en février dernier dont un nouveau Président auxquelles s’ajoute la présence inédite de deux anciens Président de la République) devrait permettre de mesurer si les inflexions jurisprudentielles entamées à la fin des années 1990 se confirment et, si tel était le cas, jusqu’où, institutionnellement et politiquement, pourrait aller un « service minimum » en matière de droits et libertés. C’est alors peut-être moins sur le Conseil constitutionnel que l’on apprendra que sur l’évolution des exigences de la classe politique et de la société française à l’égard de la protection droits de l’homme. RÉFÉRENCES D. Lochak, «Le principe de légalité. Mythes et mystifications», A.J.D.A., 1981. _______, « Le Conseil constitutionnel, protecteur des libertés ? », Pouvoirs, n° 13, 1986. D. Rousseau, «Une résurrection : la notion de Constitution», R.D.P., 1990. _______, Sur le Conseil Constitutionnel : la doctrine Badinter et la démocratie, Paris, 1993, Descartes et Cie. D. Turpin, «Le juge est-il représentatif ? Réponse, oui», Commentaire, n° 58, 1992. _______, Les libertés publiques, Paris, Dunod, 1993. _______, «Le juge est-il représentatif ? Réponse, oui», Commentaire, n° 58, 1992. F. Goguel, «Objet et portée de la protection des droits fondamentaux. Conseil constitutionnel français», in Cours constitutionnelles et droits fondamentaux, Economica, 1982. F. Luchaire, «Le conseil constitutionnel et la protection des droits et libertés du citoyen, Mélanges Waline, LGDJ, 1974. _______, «Procédures et techniques de la protection des droits fondamentaux », 324

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in Cours constitutionnelles et droits fondamentaux, Economica, 1982. G. Vedel, «Doctrine et jurisprudence constitutionnelles», R.D.P., 1989. _______, «Le précédent judiciaire en droit public français», R.I.D.C., Journées de la Société de législation comparée, 1984, vol. 6. J. Favre, B. Tardivel, « Recherches sur la catégorie jurisprudentielle de ‘libertés et droits fondamentaux de valeur constitutionnelle ‘ », R.D.P., n° 5, 2000. J. Meunier, Le pouvoir du Conseil constitutionnel. Essai d’analyse stratégique, Paris, L.G.D.J., 1994. J. Rivero, note sous DC 23 juillet 1975, A.J.D.A., 1976. _______, Note sous la décision du 16 juillet 1971, A.J.D.A., 1971. L. Hamon, Les juges de la loi, Paris, Fayard, 1987. M. Troper, «La Constitution et ses représentations sous la Vème République», Pouvoirs, n° 4, 1978. _______, V. Champeil-Desplats, C. Grzgorczyk, (dir.), Théorie des contraintes juridiques, Paris, L.G.D.J., 2005. MM. Avril et Gicquel, «Chronique constitutionnelle française», Pouvoirs, 1977, n°1, P.U.F., N. Élias, La société de cour, Paris, Flammarion, 1985. V. Champeil-Desplats, « La notion de droit ‘fondamental’ et le droit constitutionnel français », D., 1995, chr. 323. _______, « Les nouveaux commandements du contrôle de la production législative », in L’architecture du droit, mélanges offerts en l’Honneur de Michel Troper, Paris, Economica, 2006. Vedel, «Doctrine et jurisprudence constitutionnelles», R.D.P., 1989. 1 2

J. Rivero, Note sous la décision du 16 juillet 1971, A.J.D.A., 1971, p. 539 G. Vedel, «Le Conseil constitutionnel, gardien du droit positif ou défenseur de la transcendance des droits de l’homme», op. cit., p. 253. Ce dernier écrivait alors qu’il appartenait encore à l’institution : «Le trésor des droits de l’homme s’accroît au long des siècles et des décennies, mais aucunes des gemmes qui le composent n’en est retirée pour faire place à une autre. Le juge constitutionnel est gardien de ce trésor. Il doit accueillir de nouvelles richesses mais ne rien perdre des anciennes».Voir aussi les déclarations ou articles d’autres anciens membres du Conseil constitutionnel, F. Luchaire, «Le conseil constitutionnel et la protection des droits et libertés du citoyen, Mélanges Waline, LGDJ, 1974, p. 563 ; F. Luchaire, «Procédures et techniques de la protection des droits fondamentaux », in Cours constitutionnelles et droits fondamentaux, Economica, 1982, p. 65 ; F. Goguel, «Objet et portée de la protection des droits fondamentaux. Conseil constitutionnel français», in Cours constitutionnelles et droits fondamentaux, Economica, 1982, pp. 225 et s.. 3 Lors des débats, le garde des Sceaux J. Lecanuet déclarait ainsi devant l’Assemblée Nationale : “Le Conseil constitutionnel est au plus haut niveau le gardien des droits. (…) Après seize années d’expérience, il apparaît que l’existence du Conseil constitutionnel a été bien acceptée et qu’il a pris dans le fonctionnement de nos institutions la place de tout premier plan qui lui revenait”, cité in L. Hamon, Les juges de la REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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loi, Paris, Fayard, 1987, p. 173 Le Monde, 23 novembre 1993, p. 1 D. Rousseau, Sur le Conseil Constitutionnel : la doctrine Badinter et la démocratie, Paris, 1993, Descartes et Cie, Décision 84-181 DC, 10 et 11 octobre 1984 ; décision 93-325 DC, 13 août 1993 ;décision 94-345 DC, 29 juillet 1994.. Voir V. Champeil-Desplats, « La notion de droit ‘fondamental’ et le droit constitutionnel français », D., 1995, chr. 323 ; J. Favre, B. Tardivel, « Recherches sur la catégorie jurisprudentielle de ‘libertés et droits fondamentaux de valeur constitutionnelle ‘ », R.D.P., n° 5, 2000, p. 1420. Entretien cité in J. Meunier, Le pouvoir du Conseil constitutionnel. Essai d’analyse stratégique, Paris, L.G.D.J., 1994., p. 88 D. Lochak, « Le Conseil constitutionnel, protecteur des libertés ? », Pouvoirs, n° 13, 1986, p. 41. G. Vedel, “Le précédent judiciaire en droit public français”, R.I.D.C., Journées de la Société de législation comparée, 1984, vol. 6, p. 283, p. 283 Ibid., p. 287 Voir G. Vedel, “The Conseil constitutionnel : problems of legitimization and interpretation”, op. cit., p. 346. Propos rapportés du Colloque de Rennes des 20 et 21 septembre 1996, La légitimité de la jurisprudence du Conseil constitutionnel. Ibid. 15 D. Lochak, «Le principe de légalité. Mythes et mystifications», A.J.D.A., 1981, p. 389 D. Turpin, “Le juge est-il représentatif ? Réponse, oui”, Commentaire, n° 58, 1992, p. 389 “Normes de valeur constitutionnelle et degré de protection des droits fondamentaux”, op. cit., pp. 324325 J. Rivero, note sous DC 23 juillet 1975, A.J.D.A., 1976, p. 47 ; voir également J. Rivero, «Les principes fondamentaux reconnus par les lois de la République, une nouvelle catégorie constitutionnelle ?», op. cit. MM. Avril et Gicquel, “Chronique constitutionnelle française”, Pouvoirs, 1977, n°1, P.U.F., p. 219 D. Turpin, Les libertés publiques, Paris, Dunod, 1993, p. 24 D. Rousseau, “Une résurrection : la notion de Constitution”, R.D.P., 1990, p. 17 Ibid. G. Vedel, “Le précédent judiciaire en droit public français”, op. cit., p. 287 G. Vedel, “Doctrine et jurisprudence constitutionnelles”, R.D.P., 1989, p. 14 Voir J. Meunier, op. cit., pp. 155-156 ibid. ibid. Voir, M. Troper, V. Champeil-Desplats, C. Grzgorczyk, (dir.), Théorie des contraintes juridiques, Paris, L.G.D.J., 2005 En particulier N. Élias, La société de cour, Paris, Flammarion, 1985 N. Élias, La société de cour, op. cit., p. LXXI N. Élias, op. cit., pp. 152-153 M. Troper, “La Constitution et ses représentations sous la Vème République», Pouvoirs, n° 4, 1978, p. 70 Voir V. Champeil-Desplats, « Les nouveaux commandements du contrôle de la production législative », in L’architecture du droit, mélanges offerts en l’Honneur de Michel Troper, Paris, Economica, 2006. www.conseil-constitutionnel.fr

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ENTREVISTA COM PROFESSOR DOUTOR ARNALDO VASCONCELOS Por Tércio Aragão Brilhante Arnaldo Vasconcelos é Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito. É autor de inúmeros trabalhos, entre livros, capítulos de livros e artigos. Como docente universitário, função que exerce desde a década de 1960, contribuiu para a formação de diversas gerações de operadores do Direito no Ceará. Teoria da Norma Jurídica; Direito, Humanismo e Democracia; Direito e Força, Teoria Pura do Direito: repasse crítico de seus principais fundamentos são livros de autoria do Professor Arnaldo Vasconcelos, cuja leitura a Opinião Jurídica recomenda. Nesta entrevista, a Opinião Jurídica foi representada por Tércio Aragão Brilhante, ex-aluno do Professor Arnaldo no curso de mestrado em Direito Constitucional. E, como ele quer que se destaque, ex-aluno apenas no Mestrado, pois continua a se considerar aluno do Professor. Sem mais delongas, eis a entrevista: Professor Arnaldo me recebeu para esta entrevista em seu gabinete universitário. Jocoso que é, ao perceber que, em vez de um gravador contemporâneo, eu portava um daqueles gravadores que ainda demanda fitas cassete, olhou para mim e fez um mofa memorativa sobre um fotógrafo que teria ido retratar uma tela de sua propriedade e que se esquecera de pôr filme na máquina. Teria eu, indagou-me o Professor, cometido o mesmo deslize? A partir dessa brincadeira, a entrevista teve início: Já que o senhor falou de tela, falemos de Arte. Em suas obras e também em sala de aula, o senhor faz muitas alusões à Literatura e à Arte em geral. Essa não é uma postura muito comum dos professores de Direito. Como se dá essa relação? É necessário o contato com as artes para quem estuda o Direito? O Direito é uma ciência humana, e o que é humano deve interessar de perto ao jurista. Não só a ciência, como a filosofia, como a própria arte. A arte é uma expressão da cultura do homem, como o Direito também o é. Por outro lado, o Direito é também estudado como arte. Há uma arte no Direito. Alias há um livrinho escrito pelo Carnelutti, que é uma obra prima, chamado justamente “A arte do Direito”. Já que o senhor falou em ciência humana, eu peço que trate um pouco sobre REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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a cientificidade do Direito em contraponto à idéia de que apenas as ciências exatas seriam ciências, verdadeiramente, ciências por excelência... Não há nada que seja por definição ciência, não há nada que seja por definição filosofia. Qualquer objeto pode tanto ser estudado como ciência quanto como filosofia e, inclusive, pode ser apreciado do ponto de vista do senso comum e do ponto de vista da teologia. Evidentemente, as ciências exatas seriam as ciências por excelência de um ponto de vista que contemplasse um maior grau de segurança e certeza. Já as ciências humanas encontram sua excelência por dizerem respeito ao homem: à dignidade do homem, à vida do homem em sociedade. Há graus de excelência em cada tipo de ciência, não é que haja um tipo de ciência excelente e outro não. As duas são excelentes por razões diversas. Da epistemologia sigamos para a Teoria do Direito. O senhor é conhecido como defensor do Direito Natural. Até que ponto o senhor realmente carrega esse facho e o que poderia falar do embate: Direito Natural versus Direito Positivo? Esse traço distintivo de minha vida é uma conseqüência lógica de quem não se ateve exclusivamente do Positivismo. O Positivismo, que quis fazer do Direito uma ciência da natureza, afastou a metafísica e, consequentemente, o Direito Natural; mas, quando você vai fazer ciência do Direito, há pelo menos dois capítulos imprescindíveis: o capitulo do fundamento e o capítulo da legitimidade. Esses temas só podem ser vistos pelo ângulo da metafísica. E a metafísica inclui, necessariamente, o Direito Natural. O reducionismo implica uma distorção do objeto focalizado. Os positivistas são reducionistas. Eles reduzem o Direito ao Direito Positivo e o Direito Positivo à lei. Duas reduções. Seu livro, “Teoria Pura – repasse crítico dos seus principais fundamentos”, ganhou recente segunda edição. Fale-nos um pouco do livro, que já foi chamado de duelo com Hans Kelsen *. Esse livro decorreu da necessidade de fazer a tese de doutorado e era, na ocasião, o tema sobre o qual tinha mais fichas escritas, mais anotações feitas. Kelsen é o maior filósofo de Direito do século XX. Apesar disso, as omissões, as reduções, as insuficiências da teoria do Kelsen são gritantes e alarmantes. Eu chego a dizer no livro, parafraseando Voltaire sobre o Sacro Império RomanoGermânico, que a Teoria Pura do Direito nem é teoria nem é pura e nem é do Direito. O Direito, para ele, é norma, norma pensada. A pureza, tal como ele *

A expressão “duelo” para caracterizar o embate intelectual entre Arnaldo Vasconcelos e Hans Kelsen é do Professor Humberto Cunha, autor de excelente resenha sobre a obra do Professor Arnaldo. Cf. CUNHA FILHO, F. H. O último duelo de Kelsen. Leis & Letras, Fortaleza - Ceará, p. 50 - 51, 12 jun. 2008.

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Entrevista com Arnaldo Vasconcelos

quer, não existe. Uno puro, sem mistura, só Deus. Teoria é propensão, projeção. Teoria é predição, é algo para o futuro. Já a ciência de Kelsen é uma ciência descritiva, com fundamento em premissas idealistas de inspiração hegeliana. A que o senhor deve todo o incensamento que Kelsen teve durante o século XX? Kelsen teve uma sorte extraordinária. Ele viveu muito, deu aula durante muitos anos, adotou uma só temática e passou a vida toda tentando aperfeiçoar sua teoria. Mais: lutou em todas as frentes para defender a teoria dele, que teve discípulos tanto no Ocidente como no Oriente. Nenhum outro teórico conseguiu essa abrangência; por isso, a imensa divulgação do seu nome. Há pouco, quando falávamos de Direito Positivo, veio a lume a legitimidade. Em seu “Teoria da Norma Jurídica”, o senhor trata das instâncias da norma: instâncias de validade e instâncias de valor. Exatamente isso, é aí onde se define, de modo claro, minha posição antipositivista, porque o Positivismo não aceita valor. É ponto de honra do Positivismo que Direito não tem nada a ver com valor. Kelsen diz, por exemplo, que o Direito nada tem a ver com justiça, ao tempo em que parece identificar legitimidade com validade. Essas questões são metafísicas e são repelidas pelo Kelsen justamente por isso. Porque ele é positivista e quer ser um positivista de um positivismo estreme de toda impureza. A distinção das instâncias das normas, em instância de validade e de valor, levou-me à projeção de uma teoria que denominei tridimensionalismo axiológico, segundo a qual o Direito é o jurídico, o justo e o legítimo. É um dado original dos seus escritos. Acho que sim. Não tenho notícia de ninguém que, antes, tenha proposto algo semelhante. Do mesmo modo que o estudo da norma jurídica sob o prisma de instâncias de validade e instâncias de valor. Na sua obra “Direito, Humanismo e Democracia”, o senhor enfrenta, dentre outras questões, a democracia entre os gregos antigos. Seu estudo aponta peculiaridades e promove desmistificações como, por exemplo, a afirmação de que não era direta a democracia antiga. A democracia grega é algo de historicamente extraordinária. E o que é mais extraordinário é que a democracia grega foi comandada por tiranos, para REVISTA OPINIÃO JURÍDICA

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Por Tércio Aragão Brilhante

depois ser aperfeiçoada por democratas, que se tornariam tiranos. Péricles, no segundo discurso da guerra do Peloponeso, chega a declarar que a democracia grega, na verdade, é uma autocracia. Outro aspecto interessante é esse que você mencionou. Os autores geralmente afirmam ter havido democracia direta na Grécia, e o exemplo que eles dão de democracia direta é a experiência ateniense. Ora, em Atenas, não houve democracia direta. A democracia ateniense foi semi-direta, porque entre os órgãos de elaboração das leis, que são os instrumentos principais e definidores da democracia, havia a Assembléia que era dirigida pelo povo na Ágora e o Conselho dos Quinhentos, que era formado por representantes das dez tribos. É justamente aí que se configura a representação política. Portanto, o poder legislativo na Grécia era, numa parte, democracia direta, Assembléia do povo, e noutra, democracia indireta, o Conselho dos Quinhentos, que era órgão representante por excelência e que atuava, inclusive, como revisor da Assembléia. Outros dados característicos da experiência grega são a conceituação de cidadania e a inexistência de direitos individuais. O conceito de liberdade grego é completamente diferente do conceito de liberdade dos modernos. A liberdade dos gregos era a liberdade de ser cidadão, de servir o Estado, era uma liberdade em prol do Estado. A liberdade dos modernos é uma liberdade do cidadão ser autônomo, é uma liberdade contra o Estado. Então, o cidadão grego era aquele que se dedicava exclusivamente aos negócios públicos, se dedicava ao Estado, que estava pronto a dar sua vida por ele. O cidadão moderno, não. O cidadão moderno quer que o Estado assegure a ele as condições da sua vida, dentre as quais: a liberdade individual apenas limitada pela lei. Essas diferenças me trazem à mente a necessidade de um Estado que possa garantir essa demanda, que tenha força para isso. Voltemos, portanto, à Teoria do Direito, para enfrentarmos tema mui caro ao senhor e que mereceu livro próprio, intitulado: “Direito e Força”. Professor Arnaldo, eu pergunto: qual é o papel da coação no Direito? A coação não está dentro do Direito, está fora. Ela é o instrumento por meio do qual o Estado tenta assegurar o direito judicialmente apurado. Sua função é tentar garantir a execução da sentença. Só isto. Fora daí, se existir alguma coisa parecida com coação no Direito, é força, é violência, Direito é que não é.

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Entrevista com Arnaldo Vasconcelos

Direito, então, não é força, não é poder, não é império. Absolutamente, não. Mas o emprego da força, excepcionalmente, pode ser autorizado pelo juiz com vista à garantia do Direito. O senhor, no livro, chega a dizer que, se fôssemos achar que o Direito fosse força, teríamos que achar que todos da sociedade seriam maus e a desobediência seria inerente a essa maldade, apenas refreável pela força. Exatamente. O homem não é um ser mal, o homem não é um ser bom, o homem é um ser com propensões para o bem e para o mal. Ele pode agir no sentido do bem e no sentido do mal. Com muita propriedade, diz Nietzsche que o homem é uma ponte entre dois extremos. Uma ponte que ele percorre com perigo. O senhor falou antes do papel da metafísica para a Ciência e do caráter reducionista do Positivismo. O senhor se destaca, dentre os professores de Direito, como um defensor da metafísica. Eu peço, portanto, que encerremos com considerações suas sobre a metafísica. As pessoas pensam geralmente que metafísica é algo de extraordinário, fora do comum, exclusiva do âmbito dos grandes juristas, dos grandes filósofos. Mas, não é assim. A metafísica é um modo de ser do ser do homem comum. O homem faz metafísica como respira, já foi dito por Gusdorf. Faz metafísica naturalmente, faz metafísica toda vez que deixa o mundo dos sentidos à procura de justificação, alguma razão, algum fundamento, alguma legitimidade para o mundo das coisas sensíveis. E isso ele faz, quer seja letrado, quer não o seja, quer tenha escolaridade, quer não a tenha. Todo homem pensa além do que vê, todo homem pensa além daquilo que se coloca diante dele como realidades do mundo sensível. Ele conjectura a respeito do mundo inteligível, daquilo que devia ser, daquilo que podia ser. E o Direito não é nada mais, nada menos do que um ser para ser, um ser que deve ser. Eis a razão principal de eu lembrar aos alunos que a metafísica é fundamental: a metafísica é uma postura natural do homem, do ser humano que possui o dom do pensamento.

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NORMAS DE PUBLICAÇÃO 1 LINHAS DE PESQUISA

Os temas poderão receber abordagens variadas, tanto de natureza mais dogmática, quanto teorética. São admissíveis leituras históricas, políticas, jurídicas, metodológicas e interdisciplinares. É facultado aos autores abordar apenas aspectos específicos no contexto maior da linha de pesquisa escolhida. São elas: 1) Constituição, Estado e Sociedade 2) Direitos Humanos e Fundamentais 3) Teoria Política e do Direito 4) Estado Democrático de Direito

2 ESTRUTURA GERAL DO ARTIGO CIENTÍFICO ( 15 a 30 PÁGINAS) Elementos pré-textuais:  Título e subtítulo (se houver), separado por dois pontos;  Nome do autor (e do co-autor, se houver), acompanhado de breve currículo que o qualifique na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica e endereço eletrônico (em nota de rodapé);*  Resumo na língua do texto: sequência de frases concisas e objetivas, e não uma simples enumeração de tópicos, de 150 a 250 palavras, espacejamento entre linhas simples. Seguem-se as palavras-chave, representativas do conteúdo do trabalho, separadas por ponto e finalizadas por ponto (de 3 a 5 palavras). * A submissão do artigo, sem qualquer menção de autoria, para os pareceristas, ficará a cargo da Editora-responsável.

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Elementos textuais: Modelo A: 1 Introdução 2 Referencial Teórico 3 Metodologia da Pesquisa Modelo B: 1 Introdução 2 Referencial Teórico 3 Metodologia da Pesquisa 4 Análise dos Resultados (deve conter a análise dos dados obtidos) 5 Conclusão Elementos pós-textuais:  Agradecimento (não é obrigatório)  Referências  Notas de fim, após referências, em Times Nem Roman 10

3 FORMATAÇÃO DO ARTIGO O título deve estar centralizado, em negrito e em caixa alta, sendo escrito em tamanho 14. Logo abaixo do título do trabalho devem constar o(s) nome(s) completo(s) do autor, do(s) co-autor(es) recuados à direita, acompanhados de breve currículo que os qualifiquem na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica e endereço eletrônico (em nota de rodapé identificada com asterisco).

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Exemplo: TÍTULO DO ARTIGO João J. João* Pedro P. Pedro** Maria M. Maria*** O texto deve ser digitado com letra Times New Roman, tamanho 12, usando espaço entrelinhas 1,5 e espaçamento entre parágrafos de 0 pt antes e 06pt depois. O espaço da primeira linha dos parágrafos é de 1cm. As citações de mais de três linhas, as notas de rodapé, as referências e os resumos em vernáculo e em língua estrangeira devem ser digitados em espaço simples. O formato do papel a ser utilizado, tanto na versão eletrônica quanto na impressa, deve ter formato A4 (210 mm x 297 mm), com as seguintes margens: superior e esquerda - 3,0cm; inferior e direita - 2,0 cm. O trabalho deve estar obrigatoriamente digitalizado em Word.

4 REFERÊNCIAS As referências devem ser constituídas por todas as obras citadas no artigo e devem ser listadas de acordo com a norma ABNT-NBR-6023/2002, conforme exemplos abaixo: Livros ALVES, Roque de Brito. Ciência Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1995. BANDEIRA, Manuel (Org). Gonçalves Dias: poesia. 11. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983. Artigos em periódicos MONTEIRO, Agostinho dos Reis. O pão do direito à educação... Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 24, n. 84, p. 763-789, set. 2003. * ** ***

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Breve currículo Breve currículo Breve currículo n. 11 - 2009


O MELHOR de dois mundos. Após, São Paulo, ano 1, p. 24-25, fev. 2003. Artigos em revistas, jornais etc. MONTEIRO NETO, Armando. Desoneração da folha salarial. Estado de Minas, Belo Horizonte, n. 22.368, p. 9, 26 mar. 2003. Sites CONY, Carlos Heitor. O frágil lenho. Folha online, São Paulo, 19 jan. 2004. Disponível em: <www.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult505u135.shtml>. Acesso em: 19 jan. 2004.

FREIRE, José Bessa. O patrimônio cultural indígena. In: WELFORT, Francisco; SOUZA, Márcio (Org.). Um olhar sobre a cultura brasileira. Brasília: Ministério da Cultura, 1998. Disponível em: <http: // www.minc.gov. br/textos/olhar/patrimonioindigena>. Acesso em: 20 jan. 2004.

5 CITAÇÕES As citações deverão ser feitas da seguinte forma (NBR 10520): citações de até três linhas devem estar contidas entre aspas duplas; as citações de mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4cm da margem esquerda, em Times New Roman 10, sem aspas. Para enfatizar trechos da citação, deve-se destacá-los indicando essa alteração com a expressão “grifo nosso” entre parênteses após a chamada da citação ou “grifo do autor”, caso o destaque já faça parte da obre consultada. A referência da citação será feita em nota de fim, após as referências do texto.

6 ABSTRACT E KEYWORDS Após as referências, seguem-se as notas de fim; após as notas de fim, culminando todo o trabalho, deve-se fazer constar o título do artigo, o resumo e as palavras-chave em versão para o inglês, com recuo de 4cm, em espaço simples.

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Este número da revista foi composto na fonte GoudyOlSt BT, corpo 11. O miolo foi impresso em papel AP 75 g/m2 e a capa em cartão supremo 250 g/m2. Impresso pela Gráfica LCR.


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