Catálogo – 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco

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Governo do Estado de Pernambuco Governador

Eduardo Campos

Presidente

Vice-governador de pernambuco

João Lyra Neto Tadeu Alencar

Diretora de Gestão

Diretor de Gestão do Funcultura

Emanuel Soares de Lima

Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco Secretário

Diretor de Gestão de Equipamentos Culturais

Célio Pontes

Diretora de Preservação Cultural

Fernando Duarte

Célia Campos

Secretário-executivo

Diretor de Produção

Beto Silva

Fernando Augusto

Diretores-executivos

Vinícius Carvalho e Beto Rezende Diretor de Políticas Culturais

Carlos Carvalho

coordenador de artes visuais

Felix Farfan

Diretor de Articul ação Institucional

Claudemir Souza

Diretor de Formação

Félix Aureliano

Diretor de Gestão

José Mário Duarte Coelho Diretora de Pl anejamento

Amara Cunha

Gestoras de Comunicação

Michelle Assumpção e Olívia Mindêlo

apoio

Severino Pessoa Sandra Simone dos Santos Bruno

Secretário da Casa Civil

apoio i n st i t u c i o n a l

Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe)

re alizaç ão


Recife, 2012


S161q Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (47.: 2012: Recife, PE) 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco/Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco; coordenadora geral Luciana Padilha. – Recife: Zoludesign, 2012. 256p.: il.

ISBN 978-85-60411-05-4

1. artes plásticas – exposições – catálogos. 2. artistas plásticos – brasil. I. Secretaria de Cultura de Pernambuco. II. fundarpe. III. Padilha, Luciana. IV. Título. PeR – BPE 12-0165

cdu 73 cdd 730


apresentação página 6 o 470 salão de artes plásticas de pernambuco luciana padilha PáGINA 10 uma homenagem a jairo arcoverde PáGINA 16 RAul córdula PáGINA 29 bolsas e prêmios PáGINA 38 amanda melo PáGINA 40 bianca bernardo PáGINA 48 celina portella e elisa pessoa PáGINA 56 cia de foto PáGINA 64 deyson gilbert PáGINA 72 dominique berthé PáGINA 82 fabiano gonper PáGINA 90 fabio okamoto PáGINA 98 graziela kunsch PáGINA 106 izidorio cavalcanti PáGINA 114 jeims duarte PáGINA 122 joana d'arc de souza lima PáGINA 130 joão castilho PáGINA 144 jonathas de andrade PáGINA 152 jura capela PáGINA 160 marcos costa e carlos mascarenhas PáGINA 168 maria eduarda belém PáGINA 176 matheus rocha pitta PáGINA 184 pedro david PáGINA 192 sofia borges PáGINA 200 tatiana devos gentile PáGINA 208 processo de orientação PáGINA 216 luisa duarte PáGINA 218 luiz camillo osorio PáGINA 222 maria do carmo nino PáGINA 226 ricardo basbaum PáGINA 228

prêmio de fomento de intercâmbios em arte/educação PáGINA 234




Com formato herdado das grandes exposições realizadas na França desde o século XIX, os salões de arte se espalharam pelo mundo e cambiaram seu papel ao longo da história. Se no início cumpriam a tarefa primordial de apresentar um panorama numeroso da produção plástica de determinada época, submetendo-o a um dado julgo estético, hoje sua função – ou suas funções – tende a estender tal atribuição. Buscando se adequar às exigências da arte contemporânea, o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco é um exemplo disso. Criado em 1942 como um salão de pintura, num terreno fértil de criatividade artística, o evento vem mudando suas feições desde então. Ao longo das últimas décadas, recebeu e premiou trabalhos de artistas que viraram referência dentro e fora da cena pernambucana. É o caso de Jairo Arcoverde, o homenageado desta edição. Mesmo com alguns hiatos, o Salão tornou-se uma instância de maior importância na exposição e na consagração das artes plásticas do Estado – talvez até a principal.

ista da entrada da V exposição no Museu do Estado de Pernambuco.

Hoje, destaca-se por procurar estimular a criação visual em todo o seu processo, contemplando os artistas com bolsas de pesquisa, e não apenas com prêmios que chancelam a obra de arte em seu formato “final” – como tradicionalmente acontece nos salões. A 47ª edição, resultante de um trabalho iniciado em 2008, chega em 2011 para consolidar tudo isso; chega para apresentar um panorama artístico que vem sendo acompanhado desde o seu embrião, quando ainda estava no plano das ideias, fervendo na mente 8


inquieta de jovens artistas. A 47ª surge ainda com a missão de dar continuidade a um esforço de renovação, cujo pontapé veio no início dos anos 2000, com a criação das bolsas. Apresentando o seu resultado final em dois espaços – o Museu do Estado de Pernambuco (Mepe) e o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) – e ainda em um denso material editorial, composto de catálogo e cadernos, o Salão desponta como fruto de um edital aberto para todo o Brasil. O saldo está na seleção de bolsistas das mais diferentes linguagens e também de premiados nas áreas de grafitagem, intercâmbio em arte-educação e ensaio teórico. Para ampliar e aprimorar seu formato, o Salão buscou atender a uma solicitação do próprio setor de artes visuais, que participou como cogestor da elaboração de um novo formato de edital. O resultado desse percurso deve não somente ser apreciado, como servir de exemplo para o que está por vir nos próximos anos. Por isso, parabenizamos todos os artistas, gestores e produtores que ajudaram a dar fôlego ao Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, tornando sua continuidade possível. Secretaria de Cultura de Pernambuco ista da entrada V da exposição no Museu de Artes Moderna Aloisio Magalhães.

Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) 9


o 47o salão de artes plásticas de pernambuco Em 2008, o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco lançava a sua 47ª edição, na continuidade das diretrizes inauguradas em sua 45ª edição (2002), vislumbrando um formato alternativo de Salão, trazendo, como coluna vertebral, um Programa de Bolsas de Pesquisa e Produção. Constituído a partir de um edital público, o 47° Salão de Artes Plásticas de Pernambuco teve alcance nacional e ofereceu 45 bolsas e prêmios distintos, distribuídos em oito categorias. Apostando na relevância dos processos de criação, em detrimento de valorizar apenas obras concluídas (como habitualmente ocorre nos formatos tradicionais de salão, conforme estabelecidos desde o século XIX), o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco selecionou, em seu Programa de Bolsas de Pesquisa e Produção, 21 projetos. Essas bolsas foram distribuídas ao longo de 10 meses, período no qual os bolsistas puderam desenvolver um projeto inédito de pesquisa. Os projetos contemplados nesse Programa de Bolsas apresentaramse a partir de campos distintos, que, entretanto, se entrecruzaram: foram oferecidas dez bolsas para projetos de pesquisa e produção em artes plásticas, cinco bolsas para projetos de pesquisa e produção em fotografia, uma bolsa para projeto de pesquisa sobre artes visuais em Pernambuco, uma bolsa para projeto de videodocumentário sobre artes visuais no Estado e quatro bolsas para residências artísticas realizadas em Pernambuco. Assim, com ênfase na criação em artes plásticas, na fotografia, na teoria e história da arte, no videodocumentário ou na experiência de se envolver criativamente com algum contexto específico (as residências), os bolsistas se dedicaram a processos de criação em aberto, ao longo dos meses de pesquisa. Os projetos inventados e vividos pelos artistas demonstraram a complexidade da criação na atualidade. As bolsas oferecidas permitiram abordagens das mais diversas, desde o estabelecimento de relações aparentemente tradicionais de pesquisa até mais experimentais, como esforços de diluição de autoria, de dissolução da obra de arte, ou de projetos que ocorrem entre campos distintos da criação e do conhecimento. Os processos criativos reverberaram, portanto, em formas igualmente variadas de (re)apresentação, 10


desde obras de arte a revistas, textos ou vestígios de algo que foi vivenciado, mas cuja reencenação no contexto de uma exposição se faz impossível. Durante os 10 meses de pesquisa, assim como ao longo dos meses seguintes de concepção dos trabalhos que viriam a integrar as exposições realizadas pelo 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, os artistas contaram com a interlocução de críticos/ artistas/curadores. Convidados por esta edição do Salão como orientadores, Luisa Duarte, Luiz Camillo Osorio, Maria do Carmo Nino e Ricardo Basbaum acompanharam a produção dos bolsistas, lançando um olhar colaborativo e crítico sobre suas pesquisas e engajando-se numa interlocução criativa partilhada nos textos publicados neste catálogo, nos quais esses interlocutores se debruçam sobre os trabalhos produzidos pelos artistas que acompanharam. Além do Programa de Bolsas de Pesquisa e Produção, esta edição do Salão de Artes Plásticas ofertou também prêmios com o intuito de fomentar outras abordagens de pesquisa: foram premiados quatro ensaios teóricos sobre a produção pernambucana de artes visuais, quatro projetos de grafitagem e cinco prêmios para um programa de intercâmbio em arte/educação, instituindo pesquisas no âmbito da teoria da arte e das intervenções urbanas, como também trazendo e valorizando discussões sobre a educação no campo das artes. Distribuídos em duas grandes mostras realizadas entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012, todos os premiados e bolsistas desta edição do Salão trouxeram a público alguns resultados e vestígios de suas produções e seus processos de pesquisa. As exposições ocorridas no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe) e no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) representam um fundamental momento de diálogo entre o público e os processos criativos que, em torno do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, se desenrolaram desde 2008. As mostras apresentaram obras, mas sobretudo processos de criação. Os trabalhos teceram uma conversa de múltiplos sotaques, reunindo artistas advindos de diversos lugares, com os mais variados 11


interesses – agrupados não apenas pelas estratégias e linguagens que porventura tenham em comum, mas por haverem partilhado de uma experiência processual de criação, o 47º Salão. A reunião desses trabalhos representou, a um só tempo, a conclusão de um processo de pesquisa e o início de um novo ciclo de discussões e experimentações, revelado em algumas de suas complexas facetas. O conjunto de ações contempladas neste edital reforça um modelo de gestão participativa da sociedade civil, buscando uma política pública de cultura que redefina e consolide a importância de fomentar as artes visuais numa ação efetiva do Governo do Estado. Como resultado desse diálogo, em 2009, ao longo do processo de pesquisa dos bolsistas/premiados do Salão, foram realizadas três exposições que integraram também a programação desta 47ª edição: Narrativas em Madeira e Muro: Presença da Xilogravura Popular nas Obras de Samico e Derlon (curadoria de Adriana Dória Matos, realizada entre janeiro e fevereiro, no Museu do Estado de Pernambuco), O Lugar Dissonante (cocuradoria de Clarissa Diniz e Lucas Bambozzi, realizada entre junho e julho, na Torre Malakoff) e Macunaíma Colorau (realizada em dezembro, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco). As mostras trouxeram importantes contribuições para se discutirem as relações entre arte e cultura popular, arte e tecnologia e arte e ativismo – enquanto, em suas pesquisas individuais, os bolsistas punham à prova os limites das práticas artísticas, o Salão discutia publicamente esse transbordamento de fronteiras, apontando também para questões tão prementes quanto a diluição da autoria, a relação homemmáquina, o desafio da colocação política da arte no século XXI, dentre outras. As três exposições contaram com catálogos e cadernos educativos, outra relevante atividade do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, constituindo o Educativo do 47º Salão, que atuou em todas as exposições realizadas – recebendo escolas e público espontâneo, bem como realizando laboratórios e oficinas para um público bastante diversificado, além de atividades paralelas, como seminários e lançamentos de publicações –, publicando, em todas 12


elas, um caderno dedicado a atividades e discussões relativas a pontos centrais de cada mostra. É também no sentido de contribuir para a história da arte de Pernambuco que o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco retoma a prática – presente em edições antigas – de homenagear artistas pernambucanos e, assim, reverencia o artista Jairo Arcoverde, presença fundamental na arte local desde os anos 1960 e que, como tantos artistas de Pernambuco, constituiu uma obra que precisa ser sempre revisitada e pensada criticamente. Como parte das homenagens, este catálogo traz páginas dedicadas ao trabalho de Jairo Arcoverde, bem como foi adquirida, para a coleção do Governo do Estado de Pernambuco, uma pintura do artista. Dessa forma, o 47º Salão compreendeu a si próprio como uma atividade em processo, distribuída no espaço-tempo que se estendeu do lançamento de seu edital público, em 2008, à realização de suas exposições finais e ao lançamento das publicações (Caderno de ensaios, Caderno do prêmio de grafitagem e Catálogo), no início de 2012. Atuar em múltiplos campos – criação, história e educação, por exemplo – foi um dos nortes desta edição do Salão, cuja complexa rede de atividades diz do compromisso do Governo do Estado de Pernambuco com as artes visuais, fomentando-as e difundindo-as. A intensa e rica experiência de concepção e realização deste 47º Salão já reverbera em sua 48ª edição, que incorpora transformações sugeridas ao longo da realização desta edição, bem como abre espaço para novas proposições, experimentos de um salão de artes plásticas que busca disposição e estratégias para estar, junto à arte, sempre em processo de (re)criação. Processo em aberto, e a ser continuado, pelo que agradecemos a todos os envolvidos no 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Luciana Padilha Coordenadora-geral do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco

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uma homenagem a jairo arcoverde


Jairo arcoverde

Jairo Arcoverde (Recife, PE, 1940) Vive e trabalha no Paulista. Realizou cursos na Escola de Belas Artes do Recife e na Escola Técnica Federal de Pernambuco. Dentre suas participações em mostras coletivas, destacam-se Panorâmica da Pintura Pernambucana, no Clube Náutico Capibaribe (Recife, 1966); coletiva no Museu do Estado de Pernambuco (parceria do Instituto Goethe Bahia e do Consulado Geral da Alemanha, Recife, 1976); Panorâmica da Arte Atual em Pernambuco, na Galeria Lula Cardoso Ayres (Recife, 1981); Projeto ArcoÍris, no Instituto Nacional de Artes Plásticas (Inap, Rio de Janeiro, 1981); Recife e Porto na Arte, no Centro Unesco do Porto (Portugal, 1993). Realizou mostras individuais na Galeria Casa Holanda (Recife, 1970), no Salão Negro do Congresso Nacional (Brasília, 1979), na Galeria Macunaíma (Funarte, Rio de Janeiro, 1982), na Artespaço Galeria de Arte (Recife, 1988, 1990, 1992), no Espaço Cultural Bandepe (Recife, 1996), no Museu do Estado de Pernambuco (Recife, 2008) e no Museu do Barro (Caruaru, 2008), dentre outras. Recebeu prêmios diversos, como os prêmios das edições 25º, 32º, 34º, 35º e 39º do Salão do Museu do Estado de Pernambuco (Recife, 1966, 1979, 1981, 1982 e 1986), do 1º Salão Nacional de Arte Universitária (Belo Horizonte, 1968), do 1º Salão de Arte Global de Pernambuco, Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC, Olinda, 1974), do Salão Nacional (Rio de Janeiro, edições de 1983, 1984, 1986 e 1988) e do Salão de Arte Contemporânea de Pernambuco (categoria de Arte-mural em Caruaru e Nazaré da Mata, respectivamente nas edições de 1987 e 1988).


Na intenção de ser uma contribuição para a memória das artes visuais produzidas em Pernambuco, o 47o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco homenageia o artista Jairo Arcoverde. Sua obra dialoga com as pesquisas abstratas levadas adiante por artistas de Pernambuco, contemporâneos seus – como Anchises Azevedo, Montez Magno, Adão Pinheiro, Raul Córdula, dentre outros –, delineando-se como uma relevante investigação no sentido de uma abstração não construtivista, centrada na exploração do caráter expressional e lírico das formas não objetivas, interesse nutrido pela obra de artistas como Kandinsky e Paul Klee. Além da aquisição de uma pintura de Jairo Arcoverde para a coleção do Governo do Estado de Pernambuco, a homenagem se completa neste Catálogo, que traz uma seleção de obras de períodos diversos da produção do artista e um texto inédito de Raul Córdula, crítico e artista que há décadas acompanha o trabalho do homenageado. Também a identidade visual desta edição do Salão é inspirada na obra do artista, apropriando-se de seus grafismos, bem como de cores presentes em seus trabalhos. Em sua trajetória, Jairo Arcoverde não se filiou a grupos de artistas ou movimentos, cultivando uma concepção independente e pessoal de arte. Partilhando da ideia de que “pintura não se aprende”, Jairo Arcoverde esteve sempre pouco afeito aos modos institucionalizados de estudar e, sobretudo, de pintar. O artista – que se muda para o Recife ainda na infância – havia, no princípio dos anos 1960, cursado Desenho Técnico de Arquitetura e Móveis na Escola Técnica Federal de Pernambuco, mas, descontente com as possibilidades da arquitetura, passa a pintar após conhecer o artista Luiz Notari, que o estimula. Quando Jairo Arcoverde ainda se encontrava em seus primeiros experimentos sobre tela, Notari o convence a enviar trabalhos para uma mostra competitiva da cidade e, após haver sido premiado e ter vendido os três trabalhos que enviara para a exposição, entusiasmase para seguir dedicado à pintura. Decidido a ser artista, matriculase na Escola de Belas Artes do Recife, onde encontraria um rico ambiente de trabalho e interlocução, alimentado por professores 17


como Reynaldo Fonseca e Vicente do Rego Monteiro; alunos como Ismael Caldas, Roberto Lúcio, João Câmara; dentre muitos outros. Cursando livremente as aulas da Escola, onde também dispunha de um ateliê, Jairo Arcoverde amadurece seu trabalho e, aos poucos, torna-se um pintor reconhecido no Recife. Suas primeiras exposições e vendas lhe possibilitaram, entre o fim da década de 1960 e o princípio dos anos 1970, criar, em Olinda, um ateliê com Ismael Caldas e José Maria, assim como casar-se com Betty Gatis. Jairo Arcoverde 1992 Acrílica sobre tela, 100 x 34 cm

Nesse período, através de Jether Peixoto, Jairo e sua esposa – também artista – entram em contato com a cerâmica. A relação 18


com uma nova linguagem, o distanciamento dos métodos acadêmicos e o diálogo estabelecido com a pintura de artistas como Paul Klee, Joan Miró e Wassily Kandinsky criaram um terreno propício à reinvenção da pintura de Jairo Arcoverde, que, então, dá início a um processo de transição entre um trabalho figurativo (marcado pela representação de sobrados do Recife) e seus primeiros experimentos abstratos, envoltos em liberdade e lirismo. Momento-chave em sua trajetória, Jairo Arcoverde demarcava, em meados dos anos 1970, um lugar para sua pintura. Sua abstração antieconômica e desordenadora o distanciava das expectativas burguesas que inicialmente queriam ver no artista um “discípulo” da 19


obra tardia de Lula Cardoso Ayres, demonstrando ser um caminho fértil para sua personalidade inventiva e provocadora. As pesquisas de Jairo e Betty Gatis – que fundiam, na cerâmica, a abstração, a lógica decorativa e as referências estéticas populares – levaram o casal a se estabelecer no Alto do Moura, em Caruaru, onde construíram uma oficina de cerâmica. Inseridos num amplo contexto de valorização da cultura popular e de afrouxamento das fronteiras que queriam hierarquicamente distinguir da outrora chamada cultura erudita – contexto do qual, com intenções e métodos bastante diversos, faziam parte ações como as do Movimento Armorial e da arquiteta Janete Costa, por exemplo –, Jairo Arcoverde e Betty Gatis permaneceram por 16 anos em Caruaru, desenvolvendo um trabalho que encontrou ressonâncias local e nacional. Ao fim dos anos 1990, o casal e seus filhos retornaram a Olinda, onde inauguraram, na Rua do Amparo, uma loja que vende trabalhos produzidos por toda a família – à época, alguns dos filhos do casal já se iniciavam na arte e no design. Esse período marcou outra forma de dedicação de Jairo Arcoverde à sua pintura, quando retoma um modo mais intimista e concentrado de trabalho, evidenciado nas múltiplas experimentações com nanquim sobre papel. A virada para os anos 2000 e, em 2006, a mudança do artista para a casa-ateliê na Praia do Janga assentaram o mais maduro período da pintura de Arcoverde, cuja anarquia ideológica tomou, de uma vez por todas, sua obra. À revelia do que ocorre com grande parte dos artistas após muitas décadas de trabalho, a obra recente de Jairo não repete os esquemas inventados em sua trajetória, mas recria-os com muita experimentação e liberdade. Com menos compromissos – com o público, o mercado, a crítica, etc. – e, portanto, especialmente concentrado em sua criação, Jairo Arcoverde não pestaneja quando diz: “Eu pinto para mim mesmo. Eu só pinto um quadro quando olho para ele e me dá prazer”.

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Jairo Arcoverde 1993 Acrílica sobre tela, 67 x 48 cm coleção antônio amaral

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páginas 22 e 23 Jairo Arcoverde 1982 Óleo sobre tela, 61 x 69 cm coleção museu do estado

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2 006 AcrĂ­lica sobre tela, 90 x 43 cm

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Jairo Arcoverde 2002 Guache e nanquim sobre canson, 62 x 42 cm 2 000 Nanquim e aquarela sobre canson, 4 2 x 30 cm

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2 003 Nanquim e aquarela sobre canson, 4 2 x 30 cm 2 003 Nanquim e aquarela sobre canson, 4 2 x 30 cm

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Jairo Arcoverde 1978 Acrílica sobre juta sobre eucatex, 66 x 62 cm coleção lucídia jordão

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estranhas maravilhas A arte de Jairo Arcoverde me interessa desde quando descobri um quadro seu pendurado na parede de um banco da parte antiga de João Pessoa, no início da década de 1970. Já tinha ouvido falar dele, pois na cidade existiam alguns parentes seus e, na época, tudo lá era ainda menor. Mas meu encontro com sua pintura, embora apenas com aquela tela, foi marcante. Eu era um artista com poucos diálogos além dos limites cotidianos e ingênuos de qualquer província, e não havia nada além dos deslumbramentos que me provocavam os poucos e raros livros de arte que me chegavam às mãos ou as conversas e instigações com os meus pares jovens artistas. A pintura de Jairo então me revigorou e revigorou as atitudes de alguns amigos pintores. Não que nós não tivéssemos informações sobre uma arte livre de cânones acadêmicos e eivada do inconsciente com símbolos ancestrais, como era e continua sendo a pintura de Jairo – eu mesmo sempre me aninhei nessa vertente dos sonhos onde Jairo coexiste –, mas também porque aqueles tempos foram especiais. A década de 1970 foi especial e estranha. Vista de longe, perdese num emaranhado de interfaces como se fosse um filme sem roteiro, mas, se analisamos em detalhes, encontramos encalhadas naquelas tramas enferrujadas algumas ilhas de pensamentos organizados e lembranças de acontecimentos racionais resultantes da procura do sentido perdido na absurda realidade política e social em que vivíamos. O artista da época lutava em duas frentes: para suportar a frustração do seu ego político ferido e para sobreviver na dura realidade do dia a dia. Muitos de nós nos dispersamos, alguns por opção, outros por desencanto, mas outros resolveram enfrentar o poder abusivo usando sua arte como suporte para a ideologia política. Não só a arte, mas as próprias atitudes se modificaram. Assolou-nos a idéia do “viver perigosamente até o fim”, inspirada pela Godard da década passada em Acossados. Ele foi um dos ícones da época, cujos filmes compartilhavam com o mundo a atmosfera de uma Paris que se rebelava, um misto de existencialista e maoísta. Para muitos de nós, que vivíamos ecos beatniks, o álcool e a maconha falavam ao pé do ouvido, como pequenos demônios de desenho 29


animado, prometendo-nos infernos e paraísos. Vivíamos a utopia do heroísmo e desobedecíamos à ordem instituída. Daí o meu diálogo com a arte de Jairo. De início, foi uma fala solitária e distante, mas com a esperança de encontrá-lo, conhecê-lo, trocar idéias, negociar territórios de linguagens que nos eram comuns. Nossa conversa começou ali, naquele banco, bem antes de eu encontrar sua figura batava nas ladeiras de Olinda e saturar minhas retinas com seus quadros iluminados pelo sol. Na casa de Humberto Magno, encontrei-o um dia bebendo rum na roda de amigos. Na parede, um quadro seu com figuras saídas de uma fantasia branca, azul e laranja, figurinhas bizarras pintadas por um homem que trazia consigo o sentido do maravilhoso. Maravilha, eis a palavra que traduz a obra de Jairo, maravilha no sentido de algo que pertence a uma dimensão onde as coisas, os objetos comuns que circulam naturalmente, os animais, os insetos, os viventes grandes e pequenos estão carregados de uma beleza incomum e assustadora, algo que só pode ser concebido num estado de consciência avançado. Muitas coisas me identificam com isso. Uma delas é meu interesse pela garatuja; pelas anotações nos cadernos de recados ao lado dos telefones; pelos símbolos rabiscados nos muros, como vaginas, falos e corações; pelos insetos, peixes, tartarugas, centopeias. Um grande poeta paraibano chamado Luis Correia escreveu nos anos 1960: “No lugar onde mora Amélia Reis / o tempo é tão imoto e sem aragem / que sobre o corpo dela as unhas crescem / como crescem nas árvores as bagens. / No lugar onde mora esta menina / o tempo tem raízes tão mortais / que pra frutificar eu estrumei-o / com os mansos e dejetos animais”. Esse clima surrealista, onírico, esquizoide é para mim uma das traduções de maravilhoso. Os artistas irmãos Aprígio e Frederico, aliás, também são ligados a significados das garatujas, como na arte de Jairo. Por exemplo, nos anos 1980 eles fizeram frotagens das marcas deixadas nas calçadas por pedreiros ou pelo povo enquanto o cimentado da calçada estava secando. Com isso, Aprígio editou na Oficina Guaianases um álbum de litogravuras intitulado Das Calçadas de Olinda. Essas marcas humanas são minha obsessão há muito tempo. Em 1965, 30


Antonio Dias escreveu no folheto de uma exposição que fiz na Galeria Verseau, em Copacabana, estas palavras: “Procura no muro a indicação para o registro: não estará escrito ali ‘Abaixo a ditadura’? Não estará desenhado ali um coração atravessado por uma flecha? E principalmente aquelas manchas, não serão elas semelhantes aos personagens desse drama, deformadas marcas de abandono?”. Os sinais que Jairo dispõe judiciosamente em suas obras são certamente memórias da infância que ele desenfreadamente marca nas telas e papéis e, ao mesmo tempo, com isso, é levado a uma sabedoria madura. Faz-me lembrar uma famosa anedota sobre Lacan: Contam que o grande psicanalista, num jantar em sua homenagem em Beirute, foi assediado por uma bela mulher que se dizia totalmente seduzida por ele. Ele então lhe disse: “Senhora, vou contar-lhe um segredo, eu só tenho 5 anos”. Às vezes, Jairo tem 5, mas outras vezes ele tem 100. Uma arte assim, que evoca o inconsciente, segue uma vertente que, no período modernista, se alinhava com o surrealismo, embora a história nos aponte Bosch, Bruegel, Archimboldo e Goya muito antes dele, entre os séculos XIV e XVII. O crítico de arte mineiro Frederico Morais, que também atuou na área da educação artística, desenvolveu um esquema para classificar as correntes da arte moderna e, para isso, usou o cartaz como meio. Ele dividiu as correntes artísticas em três: Construção, Caos e Inconsciente. Na Construção, ele colocou toda a arte de tendência cerebral, desde Da Vinci e outros renascentistas, passando por Cézanne, até o cubismo e as escolas construtivistas, como o neoplasticismo de Mondrian, o suprematismo de Malevitch e o concretismo e neoconcretismo brasileiros. Na corrente do Caos, ele vem com Goya e passa por Van Gogh, Munch, pelos expressionistas e depois pelas correntes da arte abstrata, como a action painting de Pollock e De Kooning, o tachismo, a nouvelle figuration e a pop art. Entre uma corrente e outra, estavam os Inconscientes, como os naïfs, o surrealismo, o dadaísmo e movimentos como o grupo CoBrA – Copenhague, Bruxelas e Amsterdam – e artistas como Paul Klee e Joan Miró. Muitos artistas de nossa geração tiveram forte influência de Klee e Miró, e Jairo é 31


um deles, apesar do fato de não ter tido contato direto com as obras deles. Nosso olhar para esse tipo de arte nasceu mesmo dos livros que víamos. Mas, por exemplo, Karel Appel, Corneille e Alechinsky, do Grupo CoBrA, ainda hoje influenciam jovem artistas. Começamos a pintar ainda adolescentes, na fase da vida em que tudo é importante, tudo é crítico, tudo marca para sempre. Jairo escolheu seu caminho na adolescência, quando estava no curso livre da Escola de Belas Artes. Suas paisagens urbanas retratando sobrados da cidade antiga eram vendáveis, e, com isso, ele se profissionalizou precocemente, vivendo cedo de vender pintura. A Escola mantinha um currículo básico que os alunos – jovens artistas que não quiseram se submeter ao curso superior e que foram, curiosamente, os que mais cresceram como artistas – tinham que acompanhar. Jairo, porém, se recusou às regras curriculares. Destacando-se desde o início aos olhos de Lula Cardoso Ayres, ele trabalhava na Escola livremente e conseguiu com Laerte Baldini, pintor gravador e diretor da Escola, um espaço só para ele. Passaram pelos cursos livre e superior da Escola, artistas como Ismael Caldas, Roberto Lúcio, José Tavares, João Câmara, Roberto Amorim, José de Barros, Arlinda Maciel, Isabel de Albuquerque, Marisa Lacerda, Sylvia Pontual e Silvia Barreto. A Escola funcionava na Rua do Benfica, e nela ensinava um time de professores luminares da arte da época, como Reynaldo Fonseca, Vicente do Rego Monteiro, Fernando Barreto e Murillo La Greca, que somente ministravam aulas no curso superior, e ainda Reginaldo Esteves, Laerte Baldini, Roberto Correia, Raquel de Lima e Lula Cardoso Ayres, que também cuidavam do curso livre. As paisagens pintadas por Jairo nessa época já anunciavam o artista maduro, já se via nelas resolução de problemas pictóricos maduros, como a composição espacial e a textura em harmonia com a cor. Jairo Arcoverde 2008 Acrílica sobre tela, 130 x 100 cm

A marca do talento de Jairo ficou gravada nas casas onde viveu com a família no Recife, em Caruaru e em Olinda, territórios marcados por crônicas de famílias de artistas. Nossa cidade dupla RecifeOlinda é pródiga em famílias de artistas como a dele – mais de 32


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Recife do que Olinda –, onde a arte é ofício familiar há gerações, desde os ofícios artesanais até os criativos que chamamos arte, especialmente, muito especialmente, a arte da pintura. Em Olinda, por exemplo, estão José Cláudio com seu filho Manoel Cláudio (Mané Tatu), ambos pintores; Gilvan Samico com seu filho pintor, Marcelo Peregrino, sua mulher, Célida, e sua filha Luciana, ambas dançarinas; as pintoras Tereza Costa Rêgo e Laura Gondim, mãe e filha; o pintor Roberto Lúcio e sua filha escultora, Marina Mendonça; Maria Carmem e a filha Vera Bastos; Thiago Amorim e seu irmão Marcos; os irmãos Aprígio e Frederico Fonseca; Giuseppe Baccaro e seus filhos, o pintor Matheus e o fotógrafo Francisco; o pintor Humberto Magno, sua ex-mulher, Isa do Amparo, e seus filhos Paulinho do Amparo, pintor e músico, e Catarina Dee Jah, artista visual e DJ; Liliane Dardot e Marilá Dardot, sua filha. Eu mesmo sou casado com Amélia Couto, designer, ceramista e fotógrafa, e venho de uma família de artesãos e artistas. No Recife, Ariano Suassuna é um desenhista importante, exprimindo graficamente seu universo armorial, e sua esposa, Zélia, é gravadora e pintora. Eles são pais do pintor e ceramista Dantas Suassuna, sogro e sogra do pintor e gravador Alexandre Nóbrega e tios do pintor Romero Andrade Lima. Temos também Wellington Virgolino com seu irmão Wilton de Souza; e os irmãos Vicente, Fédora e Joaquim do Rego Monteiro, da geração moderna de 1922. Isso é também uma característica no meio dos artesãos, e Jairo viveu entre ceramistas em Caruaru, onde construiu uma casa no Alto do Moura, o lugar dos artesãos do barro, onde viveu e trabalhou Mestre Vitalino, artista e músico. Ele tocava pífano, e toda sua família faz os seus bonecos até hoje. No Alto do Moura, Betty Gatis, mulher de Jairo, desenvolveu cerâmicas com delicados desenhos tirados do imaginário popular e com uma qualidade material sem par. Lá, Jairo também sentiu a força do desenho puro, sintético, lacônico, que dá forma às imagens criadas pelos artistas e reproduzidas pelos artesãos, que são às vezes os mesmos artistas, como foi o caso de Vitalino, Manuel Eudócio, Zé Caboclo e Galdino e suas famílias, todos praticantes de uma 34


maneira econômica de criar algo neolítico em sua simplicidade técnica e complexo no sentido sociológico do Agreste que traz esses objetos simbólicos. O encontro de Jairo e Betty com a cerâmica se deu por influência do mestre artesão Jether Peixoto. Inicialmente ele construiu um forno a lenha e passou a trabalhar em todas as etapas do processo cerâmico, desde a preparação do barro até a queima. Os dois se envolveram totalmente com a cerâmica. Portanto, sua presença em Caruaru, um artista moderno entre naïfs, teve todo o sentido e resultou em circunstâncias importantes para sua obra. No Alto do Moura, o casal criou seus filhos vendo arte todo dia e aprendendo com eles e os amigos artesãos que ocupam inteiramente o lugar. Marisa diz sobre seu aprendizado: “Tivemos a iniciação artística em casa sob a batuta de papai e mamãe, nossos pais-mestres. Eles não deixavam por menos, nada de coisa feia ou malfeita, pois o domínio da técnica só se adquire através do treino, do trabalho repetitivo, o exercício nunca termina. Com estas palavras, papai nos incentivava: ‘Se o resultado de seu trabalho for bonito, cuide para sempre melhorar; se não, comece tudo de novo’. Com eles, frequentamos exposições, ateliês de artistas amigos, museus e galerias. Tivemos de conviver com outros artistas e outros tipos de trabalho e ler, ler muito. Desenvolvemos nosso gosto artístico, mas conhecendo e respeitando o gosto dos outros”. Nos anos 1960, quando Olinda estava sendo descoberta pelos artistas, ele teve ateliê com o pintor Ismael Caldas. É importante esta referência, Ismael sempre foi um artista possuidor de um espírito independente e crítico, assim como Rodolfo Mesquita. Fecho o firo com Humberto Magno, tão independente quanto os dois. De forma alguma, quero fazer uma crítica comparativa, até porque este texto para mim é uma crônica, não crítica, mas considero os quatro artistas ligados em suas criações. Eles parecem olhar o mundo do mesmo ângulo, com os mesmos símbolos e sinais, embora suas pinturas sejam tão diferentes. O autorretrato de Jairo, em que com uma mão ele abre um olho e com a outra aponta para esse olho aberto, é um enigma. De um certo ponto, ele parece dizer “Não 35


brinquem comigo, eu tenho os olhos abertos”; mas, de outro, ele estaria dizendo “Ponham aqui uma gota de colírio”. Essa forma de ironia plástico-gráfica se exacerba em Rodolfo Mesquita, e seu livro Crítica do Horror Puro é um exemplo fantástico de contestação. Já Humberto Magno, mais sereno do que Rodolfo e Ismael, esteve na vanguarda nos anos 1960 e transgrediu a ordem do belo e do barroco com uma geometria gritante nas ruas tortuosas de Olinda. Eis um recorte da criação de artistas da mesma geração que passaram pela ditadura eivados de paixão pela liberdade. Mas como seria uma vida de artista? Uma fogueira de vaidades? Um frenesi de compromissos sociais? Ou se pautaria por uma disciplina monástica, sacerdotal, ascética? Nada disso: a vida dos artistas é como a vida de qualquer cidadão, uma constante mistura de trabalho e reflexão. O artista estuda, cresce, se casa, tem filhos, educa os filhos, faz feira, adoece, paga imposto, se desloca na cidade e conhece a felicidade e o sofrimento, como todo mundo. A vida de Jairo é exatamente assim: acorda e vai pintar; ouve música erudita e jazz e vai pintar; rega o jardim, arruma qualquer coisa e vai pintar... Na verdade, nós vivemos num eterno agora e num infinito aqui. Raul Córdula

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Raul Córdula(Campina Grande, PB, 1943) Vive e trabalha em Olinda. Artista e crítico de arte. Foi diretor fundador do Museu de Arte Assis Chateaubriand (Campina Grande, 1967). Coordenou o Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba (NAC, João Pessoa, 19791985). Foi curador do I Salão de Artes Plásticas do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA, Salvador, 1994), do Prêmio Pernambuco de Artes Plásticas – Novos Talentos (Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, Olinda, 1999), e do 44o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (Recife, 2000). Participou de diversas exposições coletivas no Brasil, na França e na Alemanha, e vem realizando, desde os anos 1960, mostras individuais. É autor dos livros Fragmentos: comentários sobre artes plásticas (João Pessoa: Fundação Espaço Cultural da Paraíba, 1998) e Memórias do olhar (João Pessoa: Editora Linha d’Água, 2009), dentre outros.



bolsas e prĂŞmios


amanda melo

Amanda Melo (São Lourenço da Mata, PE, 1978) Vive e trabalha entre o Recife e São Paulo. Graduada em Licenciatura Educação Artística/Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007). De suas participações em exposições coletivas, destacam-se Os Primeiros Dez Anos, no Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2011); 32º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM, 2011); e Rumos de Artes Visuais, no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2006). Realizou mostras individuais no Centro Cultural do Banco do Nordeste (Fortaleza, 2011), no Centro Cultural São Paulo (São Paulo, 2010), no Instituto Cultural Banco Real (Recife, 2007), entre outras. Participou do programa Bolsa Pampulha, no Museu da Pampulha (Belo Horizonte, 2008).


prêmio para projetos de pesquisa e produção

Neste projeto, o deslocamento assume grande importância, na medida em que pode ser encarado como um pretexto para a repetição da ação de desenhar enfrentando a água em movimento. É justamente através do deslocamento que coloco em questão a sua própria necessidade. Dessa forma, cria-se um procedimento complexo não somente por revelar certa ambiguidade, mas também por conter em si mesmo as várias questões com que nos deparamos ao tentarmos realizar trabalhos que lidam com especificidades espaciais ou situacionais. A homogeneização no desenho é constantemente reafirmada e, assim, revela que a ação é a camada fundamental do trabalho. Sal é Mar também pode questionar ou afirmar a tendência – ao mesmo tempo, pode ser considerado por alguns como sendo dela “produto” – das itinerâncias e residências artísticas. Realizado mediante premiação do Salão de Artes de Pernambuco, contando com a estrutura do evento, foi possível dar início ao trabalho. No entanto, vendo que a experiência acrescentou muito à minha produção como um todo, percebi a necessidade de continuar por mais tempo e estou realizando outras viagens para percorrer os demais estados e finalizar essa “cartografia” incompleta. Com Sal é Mar, confirmei a percepção de que me alimento dessas ações/performances para conseguir levar adiante os trabalhos. Nesse caso, posso identificar três ações para vídeo, realizadas antes e durante a viagem, que também fizeram esse papel. Na primeira, filmada em 2007 (antes de conceber o projeto), fico em cima de arrecifes com um salto alto. A experiência me levou a pensar em enfrentar essas ondas com desenhos. Existe o vídeo Diamante Sal (2008), realizado em parceria com Cristiano Lenhardt, no qual ele entra no mar para me filmar por trás, assim, do mesmo jeito submetido ao impacto das ondas. Nesse vídeo, acontece algo muito importante: ao reunirmos nossas poéticas com esse trabalho, percebi a potência da experiência de se trabalhar em parceria. Depois, influenciada também por Diamante Sal, desenvolvi a terceira ação, que resultou no vídeo chamado Esplendor (2011). Para essa videoperformance, vou novamente para um arrecife da Praia 41


prêmio para projetos de pesquisa e produção

de Boa Viagem, usando uma roupa/armadura toda coberta de espelhos pequenos que refletem a luz do sol. Pouco a pouco, vou tirando essa roupa, e o movimento coincide com o desaparecimento do sol. No final, volto as costas para a orla, olhando para o horizonte, já sem roupa alguma. Essas ações para vídeo parecem formar uma narrativa paralela para uma espécie de saga do corpo, história provocada pelo deslocamento.

ista da montagem de V Sal é Mar no Museu do Estado de Pernambuco. páginas 43 a 45

Acho que foi assim que Sal é Mar conseguiu deixar mais claro que todos os embates e confrontos apresentados desde o início da minha trajetória podem se organizar por uma lógica regida por esses acontecimentos corporais. Esse projeto esclareceu bastante como se dá o meu processo criativo. Confirmou a real necessidade da experiência para que as coisas apareçam. Amanda Melo

Amanda Melo Sal é Mar , 2008-2009 Livro de desenhos Lápis aquarelável sobre papel, 44 x 32 cm

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sal é mar: desenhos com cheiro Marcamos um encontro no Rio de Janeiro, depois de Amanda Melo ter passado por algumas praias no Sul e no Sudeste do Brasil para realizar seus desenhos-performances inseridos em seu projeto de pesquisa do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Na hora marcada, ela chegou em minha sala na PUC-Rio carregando um volume pesadíssimo de livros artesanais. Começou a folhear cada um desses livros, e paisagens foram se descortinando para o meu olhar. Paisagens ao mesmo tempo sutis e fortes. Havíamos já conversado várias vezes por e-mail sobre seus trabalhos e sobre esse projeto específico, mas vê-los ali foi surpreendente. A proposta é aparentemente simples. Com um livro artesanal nas mãos – como já disse, pesado e resistente – e uma lista de praias ao longo da costa brasileira previamente definida, ela vai “mergulhar” em cada uma dessas paisagens. Da ponta sul ao Nordeste brasileiro. Mergulhar na paisagem, no caso, é e não é metafórico. Seus desenhos são feitos de dentro da água, junto às ondas, ao sal, ao movimento do mar, à desestabilização radical dos pés, das mãos e do olhar. Dali de dentro vai nascendo a paisagem. A linha, na sua inscrição rigorosa na folha, é instável, e as batidas do mar vão criando borrões que sangram pela página. A linha volta para a sua tarefa de recortar o visível, e as ondas retornam como desejo de caos. De um lado, a precisão de um desígnio gráfico que quer falar do que está fora; do outro, o movimento do corpo animado e sacudido pelo mar trazendo um registro imprevisto que acaba nos fazendo ver toda uma atmosfera interior. Desenho e performance; obra e processo; exterioridade e interioridade; mão-olho e corpo-mar. Na tentativa de capturar a paisagem lá fora, mas sem os elementos que garantem essa apreensão, o que vai se mostrando é um movimento interior, o contrafluxo de um inconsciente gráfico. É como se a onda do mar batendo no corpo que desenha, ao desestabilizar o gesto e borrar a página, fizesse aparecer o que a mão tende a bloquear. Os livros-objetos detêm autonomia, ou seja, folheando-os vamos percebendo os desenhos, a forma gráfica em sua luta por uma 46


presença em si. No limite, eles até poderiam ser retirados dos livros e emoldurados. Todavia, eles deixam entrever o movimento de criação, o processo no qual a luta pela forma é ainda viva e intensa. A força dos desenhos vem da sequência, do virar as páginas, da surpresa de uma narrativa visual que não se desenvolve em direção a um fim, mas que é movimento constante, uma espécie de eterno retorno do ato gráfico entre o caos e a forma. O papel é de gramatura considerável, bruto, sua textura se entranha na linha do desenho. As páginas trazem as marcas do mar. São desenhos com cheiro. Colocá-los sobre pequenas mesas obriga o “visitante-leitor” a se dispor a folheá-los, chegar mais perto, ganhar intimidade. Esse movimento é necessário para trazer o tempo intensivo de um processo de criação para o ato da recepção. Transferir a concentração, que é o que dá intensidade temporal à criação, para o lado do espectador. Ali sentado, sem muito conforto, vai se entrando em outro universo, conquistando paisagens que estão, ao mesmo tempo, visíveis e insinuadas. etalhe da montagem D de Sal é Mar no Museu do Estado de Pernambuco.

Luiz Camilo Osorio

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bianca bernardo

Bianca Bernardo (Rio de Janeiro, RJ, 1982) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Sou artista-etc., mãe do Bento, escritora em horinhas de descuido. Gosto de receber e visitar os amigos em casa, de olhos que conversam e sorrisos amanhecidos. Aos 10 anos, lembro de ter escrito meu primeiro livro, um pequeno romance ilustrado com desenhos feitos a lápis de cor. Chamava-se A Gota de Orvalho. Sua história conta o encontro, tão intenso quanto breve, entre uma gota de orvalho e uma flor. O vapor d'água se condensa e cai lentamente em chuvinha miúda até encontrar pouso na delicada pele da flor. A noite de orvalho passa-se como uma doce madrugada de sonhos, até a chegada da alvorada, quando, nos primeiros raios de sol, a gota evapora. Na despedida, a-gota-vapor-desprende-se-da-pele-da-flor. A flor permanece no jardim. Vista do alto, é só mais uma bela flor brilhante ao frescor da manhã. Ao olhar para cima, procura encontrar a sua gotinha de orvalho e pensa entre pétalas: lá foi, viver para desaparecer...


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

92 dias Nada como uma estratégia específica. Ou a estratégia de não ter uma estratégia específica, ser a arte de uma estratégia sem o alcance de um fim determinado. Naquele dia, sentada no café com Ricardo, eu não tinha mesmo muita ideia do que viria a fazer em Fernando de Noronha. Algumas imagens me perseguiam, ou era eu a perseguir certas imagens. Precisava primeiro e antes de tudo chegar lá, estar lá, confiante de que, do encontro e convívio com a Ilha, o trabalho pudesse naturalmente ser elaborado. No Recife, dia 3 de março de 2009, avistei, da pequena janela do avião, o continente se afastar e diminuir pouco a pouco, cada vez mais longe, até já não haver mais. Seguiu a travessia pelo oceano. Azul, azul. Tanto azul às vezes assusta. De repente, como perdida em cor líquida, Noronha ergueu-se. Respiro É verdade que o aspecto da visão turística de Fernando de Noronha é radicalmente transformado por uma vivência cotidiana. A película quimérica é rasgada, e, na profundidade da superfície imagética, encontramos um estado de crise que atinge várias camadas do seu tecido social. O desamparo institucional sentido na falta de um planejamento urbano que atenda às necessidades do efetivo crescimento populacional noronhense (descendentes naturais e imigrantes) ao longo dos últimos anos promoveu situações precárias de moradia. O que a princípio deveria ser provisório, um alojamento temporário, emergencial, alonga-se pelo tempo, tornase permanente. Conheci algumas dessas famílias que vivem em condições delicadas. Visitei suas casas, ouvi suas histórias. Logo nos meus primeiros dias em Noronha, fui visitar a escola, conversar com seu corpo docente, conhecer as crianças que a frequentam. Lembro bem quando um dos professores me contou que havia observado em muitos estudantes o sentimento do aconchego doméstico abalado pelo sentimento de “falta de lugar” dentro do seu próprio lar. Como muitas casas na ilha foram transformadas em projetos de “pousadas domiciliares” com objetivo de geração de renda local, para que as pequenas moradias possam oferecer hospedagem é preciso deslocar a família residente para cômodos menores, anexos e compartilhados. 49


O lar, em todo o seu campo de afetos e pertencimentos, é fortemente fissurado, evidenciando um ambiente pouco acolhedor aos que nele habitam porque sua economia é voltada para o estrangeiro. Durante o tempo de minha residência, tive duas moradias. A primeira, o alojamento para pesquisadores, na Vila do Boldró, quarto 31. A Vila do Boldró é formada por um antigo complexo de estalagem e base militar americana, construída durante uma ocupação insular após a Segunda Guerra Mundial. Chamadas de Iglus dos Americanos pelos noronhenses, essas construções serviram depois como cárcere para presos políticos até o final da ditadura brasileira, quando houve um período de abandono, até serem novamente resgatados para integrar o primeiro grande hotel de Fernando de Noronha, o Esmeralda do Atlântico.

Bianca Bernardo Série Dourados , 2011 10 Fotografias, 60 x 45 cm

Enfileirados ao longo da larga rua de terra batida, os iglus estão dispostos em proximidade, um ao lado do outro, como um pequeno condomínio. Sua arquitetura avulta na paisagem, penso em Mario Merz. No segundo momento da minha residência, um iglu foi minha moradia. De longe pareciam abandonados. Mas havia gente vivendo ali, nos varais estendidos, no cheiro de roupa secando ao sol, nas vassouras varrendo as folhas de outono todas as manhãs. Uma família aqui, outra ali, um iglu reformado, banheiro que virou cozinha, sala que virou quarto, tudo apertado. 50


– Não temos muito espaço, como você pode ver. – Você gosta de morar aqui? – Não. Sinto saudade dos meus filhos. – Onde eles estão? – No continente. – E você gosta de morar aqui? – Não. – Por quê? – Muitos ratos passam por aqui à noite. Os galhos dessa velha gameleira sempre quebram sobre meu telhado. Uma vez, quase caiu sobre mim. Tenho medo. Eu moro aqui porque não tenho outro lugar.

Iglu , 2011 Fotografia, 20 x 30 cm

Seu Silvio, conhecido como “Meu Querido”, é um morador antigo dos iglus. Ao seu lado vive a família de Tita. Logo à frente, Dona Graça. A vizinha da direita de Dona Graça é Luzia, senhora que trabalha na secretaria da Escola Arquipélago. Luzia era contadora do Hotel Esmeralda do Atlântico. Quando o hotel fechou, assim ela me contou, não tinha lugar para ir, então ficou por ali mesmo. 51


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

Meu Querido trazia bem claras as lembranças do Hotel Esmeralda. Cheio de muitas histórias enquanto me conduzia pelo caminho que leva ao Clube do Pico. A construção, que atualmente se encontra fechada, serviu como recepção do hotel, grande salão e restaurante. O clube das grandes festas, das noites de baile dourado. Meu Querido participava da decoração do salão, cuidadosamente preparado para receber a banda e os convidados. Hoje, tudo está parado no tempo. Passei muitas tardes lá dentro, caminhando pelo espaço e imaginando as noites inesquecíveis. No fundo dos meus olhos podia ouvir as músicas, o salão rodeado por entusiastas dançarinos, o som riscado dos sapatos, o tilintar das taças, risadas alegres, luzes, burburinho... Dias seguidos de chuva. Quando chove, a ilha é silêncio. Mergulho meu corpo. Todo movimento externo é demorado, trabalhoso. Passo a maior parte do tempo dentro de mim mesma, sentindo algo que cresce e expande meu corpo em peso e volume. Dentro da água, o corpo fica mais leve. Dentro do meu corpo, água. Realidade íntima. Pulsa. Vivo um estado de contenção do corpo. Rito de passagem que mobiliza um processo de transformação integral, experiência inseparável do meu devir artista. Estranho a cidade. Estranho seu barulho, ar pesado, tempo que parece correr mais rápido. Uma ilha é cercada pelo mar. O sol poente ao meu lado direito, a estrada de asfalto, a pista de pouso, o porto, poucas luzes na extensão verde e montanhosa. Podemos mapear os agenciamentos que se formam nas fronteiras de um território, para fora e dentro dele mesmo? Como uma visão à distância, Fernando de Noronha me fez pensar nas cidades em que vivemos. Em como vivemos. Como se a Ilha inteira coubesse dentro de mim. O sal da pele. O querer forte. O coração suspenso. Bianca Bernardo

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Bianca Bernardo Frame do vĂ­deo Barriga , 2011 VĂ­deo digital (2' loop)

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prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

Bianca Bernardo desenvolveu, como bolsista, um período de residência no Arquipélago de Fernando de Noronha, em que pôde experimentar com intensidade a confluência entre as demandas de sua pesquisa e a urgência do tempo do corpo e da vida: ali, em meio às questões investigativas (pois chegou à ilha movida por suas inquietações em relação à arte contemporânea), vivenciou os meses finais do processo de gravidez de seu primeiro filho. Aquele território, visto como clichê do paraíso para o turista-consumidor, é desmontado pela artista, que ali vive a história e as entranhas do lugar, os arquivos de outro momento geopolítico do País e do mundo – e também momentos decisivos de sua vida pessoal.

ista da montagem de V Viver para Desaparecer no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

É interessante perceber como um tempo tão intenso para a artista, de mergulho em si mesma, portador do exercício de interiorização próprio do processo investigativo-sensível – na travessia de quase um devir-ilha –, se viu reforçado pelo processo de gravidez: a experiência de perceber a vida sendo gerada e se desenvolvendo dentro de seu próprio corpo produziu resultados de pesquisa em que a utilização da fotografia e do vídeo desempenha papel decisivo. Foi preciso cercarse da possibilidade – conquistada pelos atuais padrões tecnológicos e surpreendentemente já tão familiar – de produzir imagens no calor de cada vivência e processo, concretizando impressões ali, naquele exato momento. Ao mesmo tempo – e isso se deve ao olhar posto em prática pela artista em sua atenção com o entorno exterior –, esta temporalidade é radicalmente revirada quando confrontada com referentes concretos, ruínas e monumentos das transformações 54


históricas e econômicas da paisagem de Fernando de Noronha, como se indicasse a dura negociação de limites do mundo interiorizado com os obstáculos materiais do terreno, do território. As fotografias e vídeos exibidos na instalação final, entretanto, abandonam certas marcas da intensidade dessa vivência, evitando propor ao visitante também um percurso de recolhimento tão direto e imediato: se o convite para olhar, andar, percorrer o espaço se apresenta a partir do tempo do próprio corpo da artista – está ali a pulsação de sua respiração –, a experiência que se torna finalmente compartilhada, pública, é já portadora de diversas modalidades de distância: resultam de um aprendizado referente às relações entre imagem e espaço, em que a pulsação da técnica é também administrada e revertida para o uso que se quer, a favor da intervenção proposta. O que me parece mais surpreendente na pesquisa de Bianca Bernardo reside precisamente na intensidade do reviramento experimentado pela artista, no esforço de obter as medidas da transformação de si e do corpo próprio em ambiente novo, cuidadosamente explorados e mapeados (ambos: corpo e lugar).

Ricardo Basbaum

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celina portella e elisa pessoa

Celina Portella (Rio de Janeiro, RJ, 1977) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Estudou design na Pontifícia Universidade Católica (PUC, RJ, 1997) e artes plásticas na Universidade de Paris XVIII (Paris, 2001). Foi residente no Centre International Les Récollets (Paris, 2009), no Labmis (Museu da Imagem e do Som – São Paulo, 2009), na Galeria Kiosko (Bolívia, 2009) e no Crac Valparaíso (Chile, 2008). Foi contemplada com bolsa de criação no Núcleo de Arte e Tecnologia da EAV Parque Lage (Rio de Janeiro, 2009) e premiada no II Concurso de Videoarte da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj – Recife, 2008). De participações em mostras coletivas, destacam-se Nova Arte Nova, no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo, 2009); 60º Salão de Abril (Fortaleza, 2009); Coletiva, na Galeria A Gentil Carioca (Rio de Janeiro, 2008); e 15º Salão da Bahia (Salvador, 2008). Elisa Pessoa (Rio de Janeiro, RJ, 1976) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Cursou Graduação em Ciências da Educação e Artes Plásticas na Universidade de Paris XVIII (Paris, 2002). Em 1997, iniciou seu trabalho com fotografia, super-8 e vídeo. De suas participações em exposições, destacam-se Portaretrato, na Galeria A Gentil Carioca (Rio de Janeiro, 2007); Nova Arte Nova, no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo, 2009); Em círculo, na Galeria do Lago do Museu da República (Rio de Janeiro, 2008); Arco 08 (Madrid, 2008). Foi residente no Centre International Les Recollets (Paris, 2009). Recebeu, em 2010, o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea, com a exposição 1/4.


prêmio para projetos de pesquisa e produção

Em 2008, meu trabalho com Elisa acabava de entrar em uma nova etapa. Após trabalhar durante um longo período com filmes super-8, começamos a gravar o corpo em vídeo digital e projetá-lo em proporções reais sobre os mesmos lugares onde havíamos gravado. A partir desse experimento, desenvolvemos uma intensa pesquisa sobre textura, volume e temporalidade, sobre a relação da imagem com arquitetura e espaço urbano, apresentando, entre outros aspectos, um forte questionamento sobre a representação do corpo e a noção de “realidade”. Primeiro, surgiu o projeto Sobreposições, no qual eu me colocava frente à projeção e interagia com minha própria imagem e com elementos arquitetônicos de fachadas, ocupando o interior e o exterior do ambiente. Realizando esse trabalho em diferentes cidades, surgiu a ideia inicial para o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco: gravar, projetar e regravar uma situação repetidas vezes no mesmo lugar, gerando finalmente uma imagem que teria seis camadas. Com o decorrer do tempo, a ideia das camadas foi explorada extensivamente, e o desenvolvimento do trabalho excedeu essa proposta. Começamos a criar videoinstalações para espaços interiores, compostas de múltiplas projeções que se relacionavam através de uma continuidade temporal. Além de complexificar a ideia de site specific das anteriores Sobreposições, esses trabalhos intensificaram um questionamento sobre a imagem através da proposta de uma relação espacial e temporal minuciosa entre corpos projetados, objetos e sons reais. A partir desse formato, descoberto e elaborado durante a bolsa de pesquisa e produção do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, criamos Proxémia. A incerteza quanto às datas e ao espaço de exposição da obra final e as múltiplas mudanças de planos na organização do Salão impossibilitaram a criação de um trabalho com tanta complexidade em sua relação com o espaço. Ainda assim, a ideia carregou a complexidade técnica adquirida, na qual todo o processo de criação é atrelado ao conhecimento anterior dos equipamentos, das distâncias e superfícies de projeção. A escolha foi, então, criar a partir da ideia de um espaço convencional de exposição. 57


Proxémia é composta por quatro projeções sobre duas paredes opostas. Eu e Elisa transitamos de um quadro a outro, aparecendo ora frente a frente, ora lado a lado. Uma linha separa cada duas imagens como um limite entre dois ambientes diferentes. A dinâmica entre os dois corpos na sala envolve o espectador, colocando-o dentro da ação e provocando nele uma reflexão sobre sua relação com o espaço no meio social. Celina Portella

Celina Portella e Elisa Pessoa Proxémia , 2009-2011 Videoinstalação, 20' Foto: Maria Mazzillo

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

Quando começamos a trabalhar para o projeto do Salão, eu e Celina trabalhávamos em dupla. Celina vinha da dança, do trabalho com o corpo, e eu vinha do vídeo, do filme super-8, trabalhava com imagens em movimento depois de ter passado pela fotografia. Vínhamos desenvolvendo um trabalho em parceria por oito anos, com filmes super-8, em seguida com o vídeo e, por fim, com a videoinstalação. O projeto apresentado para o Salão intitulava-se 6x e era o desdobramento de um tipo de dispositivo que estávamos desenvolvendo com projeções superpostas nas superfícies de origem. Consistia em investigar as interfaces possíveis entre corpo, espaço e luz e produzir múltiplas projeções registradas em vídeo, resultando finalmente em um vídeo com seis camadas. Durante o período do Salão, nossa pesquisa foi caminhando em outras direções. No final de 2008, realizamos uma exposição intitulada em círculo, na qual nos apropriamos do espaço interno da galeria para construir novos espaço e temporalidade. Quatro projeções interligadas reproduzindo e desconstruindo o espaço expositivo. Luisa Duarte viu esse trabalho, e, a partir dele, fomos pensando em como adaptar o trabalho do Salão a essa nova abordagem – do espaço tridimensional. No meio de 2009, encerramos nossa parceria e, com isso, tivemos que repensar o trabalho para o Salão e a sua exposição prevista para o final de 2009. Ao conversar com Luisa e tentar apresentar cada uma um trabalho individual, tivemos uma resposta negativa por parte do Salão, pois havíamos sido selecionadas como dupla. Celina e eu pensamos, então, em elaborar a separação nesse trabalho (essa é a minha interpretação), utilizando um dispositivo formal no qual trabalhávamos para espelhar algo subjetivo. Selecionamos um vídeo que havíamos produzido juntas – no qual cada uma entra e sai de quadro em frente a uma parede com uma quina –, que seria projetado em escala real sobre uma parede da mesma dimensão da do vídeo. Celina propôs duas projeções, uma ao lado da outra (eu e Celina projetadas), separadas por uma faixa preta, onde as quinas ficariam grudadas. Ora encostamos nessa faixa, ora a empurramos. Às vezes, só nos aproximamos. 59


Celina Portella e Elisa Pessoa Proxémia , 2009-2011 Videoinstalação, 20' Foto: Eduardo Pessoa istas da montagem de V Proxémia no Museu do Estado de Pernambuco.

Eu imaginei duas projeções dessas mesmas imagens, mas uma em frente à outra, como num exercício de face a face, uma encarando a outra com distância. Resolvemos associar essas duas ideias de forma que pudéssemos ora estar lado a lado, ora frente a frente, sempre separadas – ou por uma linha preta ou pela distância imposta pela projeção em paredes opostas. Cada uma editaria sua parte dentro de certos critérios para que a videoinstalação funcionasse. E o que acontece é, de certa forma, um acaso: se vamos ficar mais tempo nos encarando ou mais tempo nos relacionando lado a lado ou se estaremos sempre saindo de quadro quando a outra entra, como em uma espécie de fuga, não sabemos. Proxémia. Elisa Pessoa 60


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proximidade e distância “Proxémia” é um termo proveniente da antropologia que serve para designar medidas de distância ou proximidade entre pessoas, sempre dependendo da circunstância social na qual elas estejam ou compartilhem. Proxémia, trabalho de Elisa Pessoa e Celina Portella, é uma videoinstalação composta por quatro projeções sobre duas paredes opostas. Nessas projeções, surgem duas pessoas – as artistas – caminhando em um espaço neutro de paredes brancas. As duas transitam de um quadro para outro, ora aparecendo de frente uma para outra, ora lado a lado, ora sozinhas ou ainda em momentos nos quais ambas saem de quadro. Em cada uma das paredes, há uma linha vertical que separa cada projeção, sublinhando um limite de forma que as duas nunca se tocam e parecem nunca habitar, de fato, o mesmo espaço. Proxémia é o último trabalho das artistas enquanto uma dupla. Depois dessa obra, a parceria se desfez, e cada uma prossegue sua pesquisa individualmente. Diante desse fato, temos aqui, a um só tempo, uma obra que traz a marca da investigação própria ao trabalho da antiga dupla e também traços que podemos ler como uma espécie de metáfora do estágio de separação. Celina Portella e Elisa Pessoa sempre tomaram a arquitetura ou o espaço público como ponto de partida para a criação de suas videoinstalações, buscando fazer da exibição de seus trabalhos um momento no qual cada um recorde de maneira intensa o lugar que ocupa. O jogo de aparição e desaparição de cada corpo, bem como a mudança constante de lugar das duas no espaço, nos faz duvidar do que estamos vendo. Essa tensão entre o que é real e aquilo que é fruto do artifício passível de ser criado na captação, edição e projeção das imagens está no cerne do trabalho, mobilizando o espectador, fazendo-o duvidar do que vê e chamando-o a se movimentar constantemente em busca de uma continuidade da ação inexistente. Nunca é possível ver o todo dessa unidade, somente pedaços, trechos. O tempo e o espaço estão fragmentados, 62


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o que contribui para um estado de incerteza que, por fim, nos faz tomar consciência tanto da nossa presença física, muitas vezes recalcada em locais destinados à arte, quanto das ilusões que atravessam o nosso olhar. Em nenhum momento, estamos em uma posição meramente contemplativa, passiva. Ao contrário, somos chamados a ter parte do controle da cena. Proxémia se trata de uma experiência na qual ainda reside o núcleo central da pesquisa da dupla, qual seja questionar, por meio de trabalhos que lidam com performance, vídeo e relações diretas com o espaço, aquilo que entendemos por espaço e tempo; infiltrar um ruído na percepção deflagrando, assim, um questionamento acerca da realidade do que vemos. As constantes trocas de lugar de ambas no espaço nos deixa neste permanente estado de dúvida construtiva, ou seja, a dúvida como estágio fundamental para a construção de toda e qualquer certeza. Por fim, o jogo de proximidade e distância posto em cena no trabalho, jogo no qual as duas personagens jamais se encontram, se tocam, se aproximam efetivamente, tal jogo não deixa de ser uma sublimação do estágio de separação que significa esse trabalho final da dupla. Sem deixar de lado as questões que sempre nortearam sua investigação, o par se separa olhando-se de frente, próximo, mas revelando a impossibilidade do encontro total. Luisa Duarte

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cia de foto

Cia de Foto (São Paulo, SP, 2003) Coletivo baseado em São Paulo. Desenvolve trabalhos em várias direções, aproximando linguagens e, assim, questionando o espaço das imagens e seu entendimento. Colabora na organização de seminários, publicações e festivais sobre fotografia, a exemplo da cocuradoria da exposição Histórias de Mapas, Piratas e Tesouros, no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2010). De participações em exposições coletivas, destacam-se E:CO (Washington, EUA, 2011), Carnaval (Photoquai 2011, Paris) e Geração 00 (Sesc Belenzinho, São Paulo, 2011). Realizou mostras individuais no New York Photo Festival (Nova York, 2011), na Galeria Vermelho (São Paulo, 2010), no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2008), no Museu da Imagem e do Som (MIS – São Paulo, 2007), dentre outras. ciadefoto.com.br


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Natureza Naquele breve privilégio, no pequeno instante em que a imagem desencontrou o objeto, constituiu-se a experiência de potência das imagens que chegam aos nossos olhos não por um critério de verdade ou identidade, mas segundo o critério da duração. Na defasagem, infiltrara-se a virtualidade: surgindo e desaparecendo num tempo menor do que o mínimo do contínuo pensável; nessa efemeridade, no entanto, afirmava-se o tempo sobre o espaço. Tais imagens continham o invisível o real sem ser atual. cláudia linhares sanz

Como conclusão da pesquisa incentivada pelo 47º Salão de Artes de Pernambuco, optamos por expressar algumas palavras sobre o espaço que nos foi cedido. No caso, uma parede no Museu do Estado. Natureza é um ensaio que percorre um paradoxo do efeito produzido por um ambiente aparentemente intocado, com alguns de seus elementos fundamentais: água, luz, comida e morada, agora codificados em fotografias. A nossa interferência nesse espaço é discreta, pautada pelo desejo que atravessa toda experiência com o gênero histórico da pintura de paisagem, o de devolver essa natureza a um estado natural originário. Os objetos que perturbam esse estado tendem a se apagar, como se apaga a própria presença de quem construiu essa cena que acreditamos ver com os próprios olhos. As imagens estabelecem, nesse trabalho, um recorte contemplativo, parecido com aquele olhar imposto à nossa história pelos primeiros viajantes que relataram a exuberância de nossa terra à curiosidade daqueles que viriam a nos dominar. Toda parede é um agente de distância que anuncia um lugar, definindo-lhe como próprio ou controlado. Entre paredes, preservase o que é íntimo, delineiam-se cômodos que nada deixam passar além de som e imaginação. Mesmo quando projeta fronteiras, uma parede tem um viés anímico. Esta que nos foi cedida, por exemplo, é o verso de nossa obra, cúmplice da ideia de devolver ao cômodo desta exposição a ilusão de natureza. E isso se faz no pequeno instante em que a imagem desencontra-se do objeto e, virtualmente, transforma-se em um fragmento de mundo natural. 65


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É esse lapso entre o que é natural e virtual que propomos com as fotografias de Natureza. Uma fotografia serve para fixar experiências que terminam nos fornecendo uma certa adaptação ao mundo. Porém, no ato de fixar experiências, elas também nos fornecem uma suspensão que devolve movimentos manifestados por recordações, projeções e desejos que reprogramam a atualidade. Assim, vivemos entre um mundo íntimo, onde tudo é devir, e um outro, quase um contraponto, fornecido por nosso intelecto, que nos permite prever, simular e controlar eventos. Este último repartese em cômodos, onde até o tempo se torna uma medida. Uma fotografia tem, entre suas rebeldias, a capacidade de reconfigurar as intenções que lhe fizeram existir. Por exemplo, nunca parar a vida mesmo quando se apresenta estática. Uma imagem comporta, sempre, subentendido, e é ele o mérito de um processo artístico: o dispositivo de fazer, de uma concepção, algo para além de um entendimento exato. As imagens servem a isso e, podemos supor, até a um pouco mais. Este Salão é uma medida cultural, e a arte é um cômodo. Construímos cômodos para a nossa sobrevivência. A vida, por exemplo, pode ser entendida por uma organização de imagens interligadas que fazem o mundo funcionar em uma frequência entre o que é atual e virtual, entre o que é memória e o que é vontade. E a nossa inteligência age nos cercando em paredes. Para vivermos, é preciso delimitar o real em função das nossas necessidades, o que nos faz pensar em uma certa aplicação vital da fotografia em nossa existência. Nós criamos quadros para dominar o mundo. Natureza, por exemplo, é uma estratégia de domínio para um mundo virtualmente natural, anunciado na parede deste Museu. Cia de Foto

etalhe da montagem D de Natureza no Museu do Estado de Pernambuco.

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ler imagens A paridade entre natureza e cultura é objeto para o pensamento ao longo de séculos e séculos. Mas talvez em uma época como a nossa, na qual se avista a possibilidade real de até mesmo o que se entende por humano estar sujeito a mudanças devido àquilo que é produzido pela cultura, pela ciência, em uma época como essa, tal paridade se torna ainda mais complexa. O coletivo Cia de Foto toca nessa questão em seu trabalho Natureza. Um imenso papel de parede nos mostra a montagem de uma imagem fotográfica com uma paisagem verde, plantas, árvores, ou seja, um ambiente supostamente natural, permeado por elementos como água, luz, comida e índices de uma futura moradia. Tais elementos, que poderiam também ser “naturais”, surgem, a um só tempo, claramente “artificiais”, ou seja, como produção da cultura, da civilização – bem como aparecem camuflados em meio à grande massa de verde. Verde que surge como similar do intocado, da natureza. Em meio à cena “natural”, um bebedouro, um prato com resto de comida, pequenas lâmpadas enroladas em um tronco. Vestígios da presença humana. A paisagem maculada. Ao escolher fotografar esses fragmentos de “natureza” domesticada, a Cia de Foto, sem impor uma narrativa literal, toca de forma aguda na questão. Mas é preciso notar outra escolha feita pelo coletivo: expor justamente essa obra no Museu do Estado de Pernambuco. Ao saber que ali seria o repouso de seu trabalho, o ensaio Natureza ganhou sentidos até então inauditos.

páginas 68 e 69 Vista da montagem de Natureza no Museu do Estado de Pernambuco. Fotografia impressa em papel de parede, 3,5 x 12,15 m

Para além de uma primeira camada na qual podemos notar o ruído entre uma iconografia “natural” e os índices humanos/urbanos, trata-se também de pensar esse trabalho na parede de um museu: lugar destinado à cultura e à arte. Note-se que estas são instâncias diversas, a cultura tende à repetição, àquilo que unifica, aplaina tudo e todos, servindo para identificar um tempo ou um povo; a arte, por sua vez, é o ponto fora da curva, a surpresa, o não previsto, a singularidade aguda que possui a capacidade de tocar o universal. O ensaio fotográfico Natureza, posto dentro de um museu, ganha ainda mais contraste justamente por estar dentro de um contexto 70


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completamente avesso a tudo que é “natural”, sendo que nele mesmo, no ensaio, internamente, o paradoxo já existe, ao jogar com a ambiguidade entre o verde e os índices intrusos da ação do homem naquele lugar – bem como na própria linguagem da fotografia. Tal linguagem traz consigo a dimensão do que Villem Flusser chamou de falsa objetividade da fotografia. As fotografias querem nos enganar, nos fazendo crer que aquilo que vemos seja uma cópia fiel do “real”. É preciso saber interpretar uma imagem para não cair nessa falsa objetividade. Aquilo que em uma primeira e breve visada parece natureza não possui, na verdade, absolutamente nada de natural. Trata-se de um parque no meio da cidade de São Paulo repleto de índices da passagem do homem. Sendo que a própria foto é mais uma camada que nada tem de aleatória, “natural”, sendo intencional, fruto de um olhar que faz escolhas e produz uma imagem, que por sua vez não é uma cópia do “real”, mas um olhar sobre este. Assim, a Cia de Foto nos coloca o desafio de criar uma nova alfabetização, aquela que saiba interpretar não um texto, pois isso o Ocidente ensina desde a Grécia Antiga. Mas a reprodutibilidade técnica é coisa muito recente se comparada com o universo dos textos escritos. Os textos na forma de imagem nos enganam, soam naturais, quando são sempre fruto de artifícios criados pelo homem. Natureza é um ensaio sobre a própria natureza da imagem fotográfica e o desafio intrínseco que ela nos coloca: o de aprendermos a ler imagens. Parece natural, mas não é. Luisa Duarte

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deyson gilbert

Deyson Gilbert (São José do Egito, PE, 1985) Vive e trabalha em São Paulo. Vinte e seis anos após seu nascimento, deixou de pular da Ponte dos Suicidas no Parque Buttes-Chaumont, em Paris.


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Deyson Gilbert

Deyson Gilbert Sem título , 2011 Nanquim sobre papel, 23 x 33 cm

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páginas 74 e 75 Vista da montagem das obras Estado, Guerrilha e 1.1.2.2.3.3.4.4.5.5.6.6.7.7. (o eco de Samiel), no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

Deyson Gilbert Estado , 2011 Linha, pregos e motor, dimensões variáveis Guerrilha , 2011 Linha, pregos e motor, dimensões variáveis

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Deyson Gilbert Still do filme Imagem II , 2010, 2'49'' Imagens Elsie Wright e Frances Griffiths

1.1.2.2.3.3.4.4.5.5.6.6.7.7. (o eco de Samiel) , 2011 Corpo de rifle e arara de metal, 95 x 120 cm

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Deyson Gilbert se inscreve entre os artistas que se interessam pela construção da dúvida dentro da própria ação de olhar: as imagens são sempre confrontadas com limites claros, submetidas a veementes procedimentos metodológicos em que o discurso quase se emancipa, aparentemente corroendo o que os olhos se apressaram em ver. Percebe-se a força das opções de formalização adotadas, apontando para procedimentos situados no limiar do senso comum, na direção daquilo que se torna quase óbvio, reconhecido por todos em gestos quase automáticos, aparentemente não requerendo qualquer esforço especial; mas, ao mesmo tempo, fortalece-se a impressão de que o trabalho se compraz mesmo na realização de pequenas e precisas manobras, indicativas de que “isto” que nos é oferecido como experiência deverá ser algo mais do que aquilo que automaticamente se apresenta. Curiosamente, nas experiências propostas – e este é um traço que as singulariza e as traz para a atualidade –, o gesto de duvidar do que se olha (tão presente em algumas vertentes da arte do século XX) é mobilizado com uma temporalidade bastante particular, que o comprime no espaço e o destitui do tempo de hesitação, próprio do pensamento: a possibilidade de uma oscilação qualquer (ir e vir, entre cada um dos polos) é deliberadamente anulada, e nos percebemos envolvidos em eficiente mecanismo de captura. Parece não haver, supreendentemente, investimento de valor na experiência de duvidar, pois os trabalhos se desdobram em uma proposição quase autoritária (a possibilidade do jogo está efetivamente por um fio): o visitante se vê, subitamente, sob fogo cruzado, intimidado pela autoridade da obra, e, simultaneamente, destituído do tempo de ação e pensamento. Qualquer reação deverá se dar no sentido de anular, resistir à proposta – embora seja quase sempre tarde demais. A operação proposta por Deyson Gilbert investe na desconstrução de resistências do corpo e da percepção, colocando-nos sob o fogo cruzado da experiência da arte contemporânea. Para isso, se detém em uma retórica própria do campo (referências a procedimentos da arte conceitual e experimental) e se move de maneira consciente através de elementos capturados em outras 80


áreas de ação, como teatro, música e arquitetura. O artista sabe que precisa mobilizar a percepção do espectador, hoje submetido a uma variedade imensa de estímulos sensoriais que o conduzem para um déficit de atenção, a uma apreciação rápida de tudo. Trata-se não apenas de ver, mas de apontar enfaticamente um lugar em que essa ação é indicada ao visitante como o único gesto possível, opção imperativa, saída de emergência. Cada proposta se afirma pela evidência da matéria quase bruta, mas sob engenharia cuidadosa, às vezes sutil – para o artista, é preciso desencadear uma operação lógica, em que verdadeiro e falso serão sempre resultado de uma batalha, produto de contínua e interminável negociação. De modo consciente, e com precisão, esses trabalhos reconhecem a importância – hoje – de se ter como principal área focal a vocação de produtor incansável que se atribui ao espectador, arrancado-o de qualquer inocência sensível, sensorial: é preciso que o público perceba o quanto trabalha, o quanto sua energia e presença de fato fazem as coisas se moverem; é imensa a sua responsabilidade, e é preciso que seja induzido a se perguntar sobre o que fazer ali, com ela. Ricardo Basbaum

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dominique berthé

Dominique Berthé (Brest, França, 1962) Vive e trabalha no Recife. Radicada em Pernambuco há aproximadamente dez anos, desenvolve trabalhos a partir de linguagens diversas, sendo reconhecida sobretudo por sua produção em fotografia. Estudou na Escola de Belas Artes de Paris, graduandose em escultura (França, 1991). A participação é estratégia recorrente em seus trabalhos e experimentações: “Vocês são convidados a intervir no universo dela, quase sempre aquático, e o mundo não permanece exatamente igual. O tempo é suspenso, e vocês podem perceber seu reflexo modificado substancialmente...” (Nadia Ouis).


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3.500 caracteres para 26 letras do alfabeto e mais de 3.500 km percorridos De A – Água Branca, Alagoas – a Z – Zabelê, Paraíba – vaguei descobrindo lugares do Nordeste, sem saber bem no início o que iria achar, com o que me confrontaria... Essa ideia de abecedário iniciou-se anos atrás para catalogar, selecionar e editar minhas fotografias do Brasil desde a minha chegada. Ela foi se elaborando sobre o tema da água, com regras e percurso no mapa determinados para a bolsa de pesquisa em fotografia deste Salão: Abecedário Nordestino, Exercício de Estilo. Ao final de tudo, foram as letras e as regras para me guiar, as palavras para brincar, as cidades para me (des)encantar, as pessoas para me estimular, as águas para me repousar e os olhos para me chamar. Algumas letras direcionaram meu trabalho, como mostram as anotações do Abecedário. Ainda bem que, vagando quieta em Quixelô, Ceará, na beira do Açude Óros, meu olhar parou e enquadrou duas palavras mágicas: “que quiser”. “Que quiser” confirmou minhas escolhas de liberdade, “que quiser” foi como essa fruta não mencionada na receita, essa pimenta cheirosa, o sorriso do dia, o fim do quebra-cabeça, sem quebra-quebra comigo mesmo, livre no quebra-luz, sem precisar de quebra-pedra, somente um quebra-peito e um quebra-queixo (achei tudo na feira) (Quixelô, julho de 2009).

Há, porém, duas letras que se fortaleceram, se impuseram sobre as demais: o A, da fiel companheira água, e o O, do olhar e do olho. O rio foi como um caminho aonde voamos… perto da água, sobre a água aprendemos a vagar nas nuvens, nadar no céu. A água nos convida à viagem imaginária 1 gaston bachelard, L’Eau et les Rêves, 1942

1  “La rivière fut comme un sentier sur lequel nous volions… C’est près de l’eau, c’est sur l’eau qu’on apprend à voguer sur les nuages, à nager dans le ciel. L’eau nous invite au voyage imaginaire.”

Da primeira visão idílica do início das viagens: Águas Borbulhantes, Cristalinas, Desordenadas, Elemento Festivo, Gargalhadas Hilariantes, Imitando Jatos Límpidos, Marés Nítidas, Oceanos Plácidos ou Revoltos, São Testemunhas Únicas a Vagar... Water... Xuá... Y... Zás!!! Inspirado, sem dúvida, por Bachelard, o encontro com João Cabral de Melo Neto, no livro O Cão sem Plumas (1950), e com a desolada 83


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realidade do tratamento das águas fez minha visão se deteriorar: Águas onde Bóiam Cumulados Detritos, Elemento Fétido, Gangrenada pela Humanidade, Imundice, Jato Limitado, Marés Nauseantes, Oceano Putrificados e Revoltos, São Testemunhas Únicas a Vomitar. Water... Xô... Y... Zás!!! […] no fundo da matéria, cresce uma vegetação escura; na noite da matéria, florescem flores pretas. Elas já têm o veludo e a fórmula do seu perfume 2 2  “[…] au fond de la matière pousse une végétation obscure; dans la nuit de la matière fleurissent des fleurs noires. Elles ont déjà leur velours et la formule de leur parfum.”

gaston bachelard, L’Eau et les Rêves, 1942).

As fotografias não são, de maneira alguma, uma ilustração das palavras deles, é um simples diálogo e um encontro espontâneo 84


para complementar o meu prazer. Desde o período da Escola de Belas Artes, eu trabalho sobre o tema Água. Li, reli e estou lendo ainda, sem me cansar, o livro citado de Bachelard; inconscientemente, imperceptivelmente palavras, metáforas e imagens se constroem. Aqui, meu olhar se afundou nesses Olhos, resgate do tempo, das intempéries ou mesmo o sol e seu calor não evaporaram esses olhares, agora congelados no papel. Dominique Berthé

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páginas 84 a 87 Dominique Berthé Emergências de olhos d'água em um abecedário nordestino , 2009

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ista da montagem V de Emergências de olhos d'água em um abecedário nordestino no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

A execução do projeto ABCdário nordestino, exercício de estilo consistiu em registrar, ao longo de um itinerário preestabelecido, as impressões de uma série de viagens pelo Nordeste brasileiro. Essas notações se deram, no entanto, dentro de determinadas condições, em que a concepção lúdica baseada no exercício de estilo surgiria como uma vontade de encontrar, para cada letra do alfabeto, uma imagem que pudesse ser representativa das afinidades eletivas advindas das impressões sensoriais da paisagem, dos encontros com as pessoas de cada lugar e de suas condições de vida. Ao final, terse-ia um material a ser estruturado como um dicionário amoroso, composto pelos (des)afetos de uma artista de origem francesa que acolheu nossa região como local de morada. Várias referências vieram à tona e apontaram primordialmente para o seu amor pela linguagem e pelo jogo, como indica a referência ao livro de Raymond Queneau, de onde ela tomou emprestado o título, e também ao Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland 88


Barthes. Isso tudo sem esquecer a figura do flâneur, delineado por Baudelaire como o artista de espírito independente, investido do poder da observação apaixonada, e que se compraz em eleger o estado de eterna movência, numa forma de sentir-se em casa, à vontade, onde quer que esteja. Elemento recorrente em suas obras, a água foi o fio condutor de todo o processo, e a artista avidamente recorreu a Bachelard como fonte eterna de inspiração para todas as sutilezas que concernem a esse poderoso signo. Em suas diversas manifestações – lago, poço, rio, riacho, açude –, a água funciona como o símbolo do espírito ainda inconsciente, que encerra os recônditos da alma, e o olho, em contrapartida, funciona como o símbolo da percepção intelectual. No olho-d’água, a complementaridade dos dois termos remete à ideia de fonte, nascente, metáfora da própria criação. Maria do Carmo Nino 89


fabiano gonper

Fabiano Gonper (João Pessoa, PB, 1970) Vive e trabalha em São Paulo e João Pessoa. Fez oficinas de escultura na Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Funesc, 1989) e foi artista residente na Escola Superior de Artes Visuais de Genebra (Suíça, 1999). Das participações em exposições coletivas, destacam-se Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM, edições de 1999 e 2005); VIII Bienal de Cuenca (Equador, 2004); O Corpo, no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2005); Geração da Virada, no Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2006); 17º Festival Videobrasil, no Serviço Social do Comércio (Sesc Belenzinho – São Paulo, 2011); e Caos e Efeito, no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2011). Realizou exposições individuais na White Project (Paris, 2011), na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj –Recife, 2003) e na Galeria Sesc Paulista (São Paulo, 2001), dentre outras.


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Em 2008, eu estava envolvido com os desenhos da série O Manipulador, que tratava da manipulação entre os sujeitos. Pesquisar a ideia de reconfiguração do sujeito me parecia um aprofundamento dentro desse universo do poder, da manipulação e da própria linguagem do desenho. Contudo, com o passar do tempo, a pesquisa me levou a outras poéticas, outras preocupações. Acho interessantes esses novos caminhos que percorri, permitindo aprofundar e entrar em contato com novas ideias, repensar linguagens. Toda pesquisa que fazemos tem um se perder e um se descobrir em novas coisas e lugares que é fundamental ao processo de investigação. A partir das minhas intenções iniciais, buscava investigar a reconfiguração do sujeito relacionada ao modo de vida contemporâneo: os sistemas, as massas, as induções, as regras e tudo aquilo que está no nosso entorno e que influencia de alguma forma a padronização, a sistematização, a mutação e as novas formas de controle e de formatação dos indivíduos. Em contraposição a isso, busquei trabalhar uma nova visualização do desenho dentro da minha produção a partir da criação de ficções, de mitologias e de adaptações das experiências no próprio ateliê. Dentro desse campo, me interessei em fazer pequenos vídeos, pequenas narrativas, pequenos contos que traziam uma memória, imagens que se aproximam do desenho, da xilogravura, do estêncil (graffiti) e comecei a perceber o que seria abordado, de onde viriam e para onde iriam esses desejos. Construir e desconstruir, a partir do uso de imagens que já circulam em outros meios – esse foi o caminho. Em paralelo a isso, comecei a me apropriar de imagens e de vídeos da internet para desenvolver a primeira série RDS Do Sujeito. Do Poder. Da Política, onde construí os primeiros videodesenhos e as obras gráficas. São cenas de políticos/executivos que distorço e transformo, trazendo à tona apenas uma memória de um sujeito/situação. Faço isso a meu modo, permeado por meios dos quais lanço mão – como o digital (meios de comunicação web/ TV/rádio) e o impresso (jornais, revistas, etc.) – para ter acesso a esses “modelos” (se antes já me utilizei de modelos vivos para a produção em ateliê, hoje uso “modelos vivos” que circulam nos 91


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meios virtuais). A imagem assim é construída dentro do trabalho, evocando situações, propondo uma experiência estética. A experiência com o vídeo e com novos meios e procedimentos me possibilitou desenvolver uma série de fotografias (Obra Gráfica) e vídeos (Videodesenho) abordando a ideia de sujeito/indivíduo, corpo, sociedade, sexo, política, tendo todas elas uma relação direta com a questão do poder (o que não teria uma dimensão de poder?). As séries Do Sujeito. Do Poder; Estudo para Nu Masculino; e Do Poder. Da Arte foram desenvolvidas em torno desse universo. Em alguns casos, busquei mais o estranhamento, o ruído, a desconstrução, para criar, evidenciar, saturar essa ideia de sujeito. Quais sujeitos são esses, quem são eles, quais espaços ocupam, como habitam nossos imaginários, como influenciam nossas singularidades. Apresento, então, na exposição, parte desse processo, uma série de Videodesenhos, onde exibo novas proposições dentro da minha produção, criando e carregando as próprias imagens que circulam sobre esses sujeitos a partir de experiências cotidianas. Utilizei equipamentos diversos, como o retroprojetor, o projetor de vídeo, a luz strobo e os áudios (via YouTube e também captados pela cidade). Os Videodesenhos foram construídos a partir do uso de uma webcam, em alto contraste (p&b), e de forma que não fosse necessária uma edição; tudo era feito e pensado como experiência que teria que se resolver ali, naquele momento de realização. Fabiano Gonper

Fabiano Gonper RDS – Do Sujeito. Do Poder, 2009 Fotografia, dimensões variadas

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fabiano gonper – Reconfigurações e proliferações Os trabalhos de Fabiano Gonper lidam constantemente com uma exterioridade que atravessa o que seria a substância pura e determinante de algo: o sujeito, a arte, a política, a imagem. Na verdade, não se trata de mera contaminação, mas do modo como o fora e o dentro, o sujeito e o mundo misturamse e se copertencem. Não há uma subjetividade constituída autonomamente, isolada do mundo. O que somos e nos tornamos se dá através das memórias, dos traumas, da educação, da sociabilidade, das expectativas. Nossa subjetividade se faz junto a essas inscrições e se inventa a partir daí. Não se trata de um sujeito constituído de fora, mas de uma subjetividade constituinte que se produz nesse embate com o fora, com o mundo. Os desenhos se tornam vídeos, o ato gráfico é simultaneamente criação e captura. As figuras que brotam e proliferam não trazem um traço de identidade, normalmente não têm fisionomia, a impessoalidade reina imprensada entre a linha e a mancha, o claro e o escuro. Curiosamente, guardadas todas as diferenças de motivação e contexto, lembraram-me algumas gravuras de Oswaldo Goeldi, onde as figuras derivam em uma cidade noturna e sombria. A sensação de solidão e constrangimento não impede a insinuação de uma resistência calada, como se essas figuras estivessem, pela renúncia de si, recusando-se a participar de um jogo de cartas marcadas do sistema produtivo.

páginas 94 e 95 Fabiano Gonper RDS – Do Sujeito , 2009 Vídeodesenho, 2'12" Frame de vídeo

O terno e a gravata são um traço de distinção. A máscara de macaco, um recuo animalesco. Sentado, concentrado, digita rapidamente no teclado do computador. O texto é sonoro, e o som é ruído, percussão. A violência é, ao mesmo tempo, cultural e natural. Um macaco kafkiano na academia. De terno, ele é máquina e rotina. Pelo som, ele é pulsão e instinto. Esses dois mundos são parte do sujeito, ou melhor, a subjetivação é um trânsito contínuo entre pulsão e sublimação, maioridade e menoridade, cultura e natureza, razão e instinto, executivo e macaco. A projeção isolada remete ao sujeito destacado diante de uma natureza indefinida e absorvente. Ele está sentado, mas alerta, como se estivesse sendo convocado por um espetáculo comovente. 96


Não há, todavia, monumentalidade. O que convoca é forte, porém sereno. A absorção produz uma sensação de pertencimento sem que aquele seja um ambiente ao qual ele seja familiar. É como as figuras na paisagem impressionista que ali chegaram: contemplam o entorno, estão absorvidas pelo que veem, mas não são daquele lugar, são da cidade, e não do campo. Esse sujeito contemplativo é estrangeiro no espaço e no tempo; assim como não há mais um lugar natural, não há mais um tempo para que possamos parar e olhar. O som traduz bem essa sensação de estar sem ser – o silvo dos pássaros vem junto com o ruído de uma cidade, a natureza está junto com a cidade.

ista da montagem de V Desenhos em Projeção / Reconfiguração do Sujeito no Museu do Estado de Pernambuco.

Videodesenhos são uma combinação entre ver e fazer, entre a mão, o olho e a máquina. Diante deles, ficamos instantaneamente seduzidos. Nosso olhar é capturado pelo movimento rápido das manchas e da luz. As figuras nascem e proliferam pelo contraste. Não há tempo para que a imagem se fixe. As figuras, assim como nossa subjetividade, constituem-se em movimento, junto a uma exterioridade desnorteadora. As perguntas são: para onde vamos? O que queremos? Estamos abrindo horizontes que nos potencializam ou estamos à deriva, sendo puxados por mecanismos de poder? Lost in translation, nos reconfiguramos e proliferamos. Luiz Camillo Osorio 97


fabio okamoto

Fabio Okamoto (São Paulo, SP, 1979) Vive e trabalha em São Paulo. Graduado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP, 2002), realizou seus primeiros trabalhos no Laboratório de Fotografia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP, 1998). Dentre suas participações em exposições coletivas, destacam-se a do Museu de Arte Contemporânea de Nagoya (Japão, 2009); Veracidade, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM, 2006); e no Prêmio Porto Seguro de Fotografia (São Paulo, 2005). Realizou mostras individuais na Galeria Virgílio (São Paulo, 2009), no Centro Cultural São Paulo (São Paulo, 2008) e na Fundação Nacional de Artes (Funarte – Rio de Janeiro, 2006), dentre outras. Possui obras nos acervos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, da Fundação Rômulo Maiorana (Belém, PA) e da Pinacoteca de Santo André (SP). Também desenvolve trabalhos como designer.


prêmio para projetos de pesquisa e produção

MARCAS O projeto Marcas foi realizado entre novembro de 2008 e setembro de 2009 e teve como principal motivo a discussão da representação dos espaços urbanos pela fotografia e suas possíveis relações com o desenho e a pintura. Primeiramente, pesquisei por obras de pintores, artistas plásticos e fotógrafos que circularam por essas três linguagens, procurando por alguns aspectos que poderiam auxiliar no desenvolvimento do trabalho. Ao final dessa investigação, selecionei seis artistas – David Hockney, Aaron Siskind, Francis Bacon, Richard Diebenkorn, Josef Sudek e Anselm Kiefer – que apresentaram obras bastante peculiares, muitas vezes subvertendo códigos preestabelecidos e criando linguagens próprias e muito marcantes. Na segunda etapa, desenvolvi um projeto experimental fundamentado principalmente na fotografia, porém com a busca de uma aproximação ao gesto da pintura e do desenho. Estas duas últimas técnicas foram escolhidas pois possuem um tempo de construção mais longo e são capazes de proporcionar uma percepção do espaço extremamente rica e muito diferente do tempo da fotografia. Assim, o projeto procurou por diálogos entre essas instâncias para gerar uma linguagem e uma identidade próprias, pretendendo com isso romper com o “olhar da câmera fotográfica” – racional, neutro e verossímil. Ao longo desses onze meses, percorri diversas possibilidades com desenhos de observação, monotipias, fotografias, colagens e intervenções sobre imagens. Durante esse percurso, um elemento bastante presente nas cidades estudadas – tais como São Paulo, Rio de Janeiro, Barcelona, San Sebastian e Nova York – ganhou destaque: os muros. Eram eles que interrompiam a visão das cidades e impediam qualquer chance de se enxergar um horizonte. Vistos como verdadeiras barreiras intransponíveis, eram os responsáveis pela sensação de labirinto, de espaços excludentes e a cada dia mais vazios. Nesse instante, os muros passaram a ser o principal motivo do trabalho. Uma longa série com esse tema foi realizada, sobretudo após a vigoração da Lei Cidade Limpa, em São Paulo, quando os muros foram “limpos” e pintados de cinza para encobrir antigas propagandas políticas e publicitárias. Desgastadas pelo tempo, as frágeis pinturas se partiram, revelando camadas, marcas, cores, 99


formas, textos, etc. Documentei essas “pinturas espontâneas”, que foram lapidadas pelo tempo e cultivadas com o olhar de quem acompanhava semanalmente o estado de cada mancha. Dessa forma, as fotografias ganharam certas características que eu procurava, estabelecendo uma interlocução com a pintura abstrata, as monotipias e, sobretudo, com os desenhos e as anotações que realizei durante a evolução do projeto. Para a edição final, selecionei alguns momentos importantes e alinhados com a ideia da barreira/obstáculo que tanto me inquietou durante a pesquisa. O projeto da exposição foi pensado para mostrar esse percurso, apresentando tanto imagens que guardam certas características da fotografia – como a verossimilhança e a perspectiva –, assim como fotos totalmente abstratas. Um vídeo ainda completou a mostra, com alguns cadernos de desenhos, anotações e experiências que fizeram parte do processo de criação. Fabio Okamoto 100


Fabio Okamoto Tapumes , 2009 Fotografia, 350 x 110 cm Sem tĂ­tulo , 2008-2009 Caderno de artista, 42 x 13 cm

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Fabio Okamoto Quebra mar , 2009 Fotografia, 125 x 86,5 cm

Inflรกvel , 2008 Fotografia, 125 x 86,5 cm

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Francis Bacon , 2008 Fotografia, 125 x 86,5 cm

Ferida , 2008 Fotografia, 125 x 86,5 cm

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

A execução do projeto intitulado simplesmente de Marcas constituiu, para o artista paulista, a possibilidade de prosseguir com um processo artístico que ele já desenvolve habitualmente. Okamoto alia seu virtuosismo na pintura e no desenho a uma análise minuciosa do ambiente urbano e da sua arquitetura, que ele registra também fotograficamente, a fim de detectar, de forma lenta e meticulosa, segundo seu olhar, as referências identitárias de grandes cidades em seus espaços e os detalhes mais avessos ao observador desatento. O resultado do embate dessas formas de aproximação, que demandam ritmos diferentes de uma realidade necessariamente dinâmica, fornece os meios para que ele confira à fotografia uma autonomia criativa que encontra diversos paralelos com a prática pictórica. A tensão entre os limites das linguagens aparece também nos temas das imagens, nos quais se percebem palimpsestos, sobreposições, acúmulo de texturas – dimensões estas que o artista associa ao que seria característico da própria atmosfera de grandes cidades. ista da montagem de V Marcas no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

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O tempo no processo de trabalho de Okamoto é um tempo que não pode ser condensado; ele faz parte de uma experiência fenomenológica de acumulações de pequenos saberes adquiridos pela vivência, reiterada nos lugares escolhidos. Tanto o vídeo de um de seus cadernos de anotações quanto as imagens em grande escala apresentadas tematicamente se referenciam ao desgaste do próprio tempo sobre a matéria, mas de certa forma acusam seus próprios limites ao dar a ver essa diversidade temporal que é inalienável da experiência do fazer em Okamoto. Metódico e disciplinado, o artista se entrega ao que ama, visando, em primeiro lugar, o próprio prazer da dimensão sensorial desse ato, em seu corpo a corpo repetitivo e cotidiano, onde a nossa contemplação atenta pode fazer justiça à sua dedicação. Maria do Carmo Nino

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graziela kunsch

Graziela Kunsch (São Paulo, SP, 1979) Vive e trabalha em São Paulo. Além de seus projetos em performance e vídeo, a artista assume os papéis de editora, curadora e professora como formas de sua prática artística. Como editora, além da revista Urbânia, é cocriadora do projeto editorial da revista Contraespaço, ainda inédita, e editora da Imprevista, que circulou na forma de e-mails em 2002 e pode voltar a existir a qualquer momento. Desde 2007, orienta a produção de relatos críticos do Fórum Permanente. Neste momento, lança o website naocaber.org, que irá reunir toda a sua produção textual e alguns de seus projetos. Dentre as suas exposições recentes, destacam-se a 29a Bienal de São Paulo (São Paulo, 2010), All That Fits (Inglaterra, 2011) e The Grand Domestic Revolution (Holanda, 2011).


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a revista urbânia A revista Urbânia nasceu, em 7 de março de 2001, da necessidade de compartilhar as ações e reflexões do Núcleo Performático Subterrânea. As performances do Subterrânea aconteciam sempre sem planejamento, sem registro e, principalmente, sem serem anunciadas como arte, como uma reação à atuação cotidiana das pessoas, nas ruas, dentro do metrô e em outros espaços. A nossa ideia de performance era criar situações de agora a partir da criação de um aqui inseguro.

1  Aí foi criado o lema da minha editora independente, a Editora Pressa: “todos os direitos reservados são públicos”. Vale lembrar que nesse momento ainda usávamos pouco a internet e nem sequer existia o formato PDF. 2  A impressão foi feita com recursos do Edital Conexão Artes Visuais, o que possibilitou páginas coloridas e uma tiragem maior, de 1.000 exemplares. A distribuição teve a colaboração de movimentos sociais como o Movimento Passe Livre (que ficava com 50% da venda e retornava os outros 50% como poupança para o próximo número) e dos próprios autores de textos e projetos apresentados (que não haviam sido remunerados por seu trabalho e, caso optassem por vender as revistas, poderiam ficar com o valor da venda como uma ajuda de custo simbólica), entre outras estratégias experimentadas. A maior parte das revistas foi distribuída gratuitamente, especialmente para bibliotecas.

O segundo número da revista foi lançado em abril de 2002. Originalmente, a Urbânia era feita em fotocópias preto e branco, em uma tiragem pequena, de 300 exemplares. Mas tinha uma distribuição inteligente: eu enviava um envelope com aproximadamente dez cópias da revista para coletivos de artistas e centros sociais espalhados por diferentes cidades brasileiras. Como a revista tinha uma licença de livre reprodução, que estimulava que as pessoas a copiassem e distribuíssem, a tiragem inicial acabava se multiplicando1. A contracapa dos dois primeiros números trazia um poema que justificava o surgimento e a existência da revista: “Mesmo que nossos versos nunca sejam impressos, eles lá terão sua beleza, se forem belos, mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir, porque as raízes estão debaixo da terra, mas as flores florescem ao ar livre e à vista. Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir”. O Núcleo Performático Subterrânea nunca decretou seu fim, mas, aos poucos, cada um de seus membros escolheu caminhos diferentes. Todos ainda nos sentíamos parte desse projeto, talvez como uma filosofia de vida, mas a revista deixou de ser uma necessidade vital de expressão. O que começou como um projeto coletivo estava dependendo muito de mim para acontecer. E pensei que, se a Urbânia não era mais um projeto coletivo, não fazia mais sentido. Mas a verdade é que nunca abandonei a vontade de fazer a revista e acabei assumindo a edição do terceiro número, lançado somente em 2008, no contexto do projeto Arte e esfera pública2. Nesse momento o tema da revista já não era a performance, mas ações de produção e transformação do espaço urbano, como a pintura de ciclofaixas no asfalto por ciclistas ou o uso público de lotes vagos e privados 107


Na pesquisa para a Urbânia 4, realizada com a bolsa do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e a orientação generosa de Ricardo Basbaum, o desafio foi pensar as cidades em outra escala. Se antes interessavam pequenas ações urbanas, aqui a ideia foi retomar projetos utópicos de cidades; foi tentar entender esse movimento de se imaginar uma cidade inteiramente nova desde um traço no papel, ou a partir das necessidades de uma comunidade; e debater projetos alternativos para as redes de transporte e educação e as violentas operações urbanas promovidas em parcerias públicoprivadas na atualidade. Conforme a pesquisa avançou, a revista assumiu a forma de um website3, de modo que possa ser sempre repensada e alterada, como um projeto; ou como as cidades estudadas – que se transformam a partir das ações das pessoas e dos diferentes projetos/ideais de cidade em conflito.

apas da revista C Urbânia 3  Ver <http://urbania4. org>. O arquivo do website é organizado em três seções, tomando emprestada a estrutura do manuscrito de Constant Nieuwenhuijs, New Babylon – Esboço para uma cultura, 1963–65, que apresentava o projeto da cidade de New Babylon de três modos: modelo de sociedade e cidade (textos), atlas (imagens – maquetes, desenhos) e crítica cultural radical (a contraposição entre o modelo vigente de cultura e a cultura imaginada por Constant).

A primeira atividade do projeto editorial foi o evento internacional Esboço para novas culturas: projetos de cidades em debate (Programa Cultura e Pensamento, 2010) 4, que gerou os primeiros conteúdos da revista. Ao longo de toda a exposição do 47º Salão – e mesmo após, quando já existirem as revistas Urbânia 5, Urbânia 6, Urbânia 7 etc. –, o website da 4 seguirá sendo alimentado e transformado, com a colaboração de coletivos editoriais de outras publicações de arte e/ ou arquitetura, que foram convidados como coeditores e têm login direto no website. Eles devem reagir ao projeto editorial a partir de suas próprias pesquisas, discussões e redes de colaboradores. Ao menos esse é o desejo atual do projeto; o que terá de fato sido feito dele, só saberemos no futuro. Graziela Kunsch

4  Ver <http://urbania4. org/debates>.

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urbânia 4.org projeto editorial  Graziela Kunsch e Paulo Miyada, convidado design gráfico  Vitor Cesar, em diálogo com Graziela Kunsch Um dos projetos presentes na revista Urbânia 4: Ciudad Roca Negra é um projeto de transformação territorial empreendido pelo MTD Lanús, pela Frente Popular Dario Santillán e pelo arquiteto Ariel Jacubovich nos prédios de uma antiga fábrica, localizada na Grande Buenos Aires.

webdesign  Roberto Winter atividades especiais no 47º salão  Conversa com o artista pernambucano Edson Barrus sobre a revista Nós contemporâneos e a Má impressão editora; acolhida do lançamento da revista Tatuí 12 (PE), em conjunto com as revistas Avoante (CE), Dazibao (SP), LAB (PR) e Reticências (CE); e uma ação do Laboratório de Inteligência Artística (i!) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), coordenado por Gentil Porto Filho, que estuda, entre outros temas, a Internacional Situacionista. O educativo do Mamam preparou atividades relacionadas ao processo de urbanização do Recife nos últimos anos.

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páginas 110 e 111 Vistas da instalação da Revista Urbânia 4 no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães.

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Editora Pressa: todos os direitos reservados são públicos No espaço expositivo do Mamam, foram dispostas mesas e bancos do ateliê do museu. O website da revista foi projetado em uma das paredes, podendo ser acessado por meio de um computador, conectado à internet, posicionado sobre as mesas. Nesse contexto, compartilhei livros da minha biblioteca pessoal sobre projetos de cidades, utopias e de crítica ao urbanismo, além de uma série de revistas. A maioria eram revistas brasileiras independentes, como as históricas Arte em São Paulo, Arte em revista, Cine-Olho, Item e Caramelo, e revistas atuais, como Nós contemporâneos, Tatuí, Piseagrama e Refil, lado a lado com números anteriores da revista Urbânia e de revistas estrangeiras, como Internacional Situacionista e Smile, do neoísta Stewart Home. Uma máquina de xerox permitiu que esses materiais fossem copiados e mesmo rearranjados, recriados, na forma de fanzines. Ao lado das mesas, foram instalados um monitor de TV, um aparelho de DVD, um pufe e uma estante com uma seleção de filmes e vídeos ligados ao projeto editorial da Urbânia 4, como: Brasília: contradições de uma cidade nova (Joaquim Pedro Andrade, 1967), New Babylon de Constant (Victor Nieuwenhuijs e Maartje Seyferth, 2005), Os atos fundamentais: Vida Educação Cerimônia Amor Morte (Superstudio, 1973–1974 e 2010), Uma cidade em Chandigarh (Alain Tanner, 1966), Em comparação (Harun Farocki, 2009), Contos curtos (Henry Eric Hernandez, DVD do livro Otra isla para Miguel, 2008) e excertos do Projeto Mutirão (desde 2007). Sobre as mesas, havia ainda carimbos da Mesa de projetos, desenhada por Vitor Cesar, parte fundamental do projeto gráfico da publicação, além de algumas plantinhas, para lembrar que esse espaço precisa ser cultivado. 111


prêmio para projetos de pesquisa e produção

Graziela Kunsch traz para o espaço expositivo a prática de produção editorial enquanto processo: em que consiste a tarefa de publicar? Como se constrói o percurso de agregar autores, o procedimento editorial? O interesse é produzir, publicar, tornar viável a estrutura de compartilhamento, de modo que o processo editorial ultrapasse os limites físicos da publicação e incorpore em sua rede aquele que, antes, era apenas o leitor: agora, se oferece a oportunidade de que qualquer um interessado se aproxime e desenvolva outras formas de contato com o que antes seria apenas uma reunião de textos, ensaios e entrevistas. À artista, interessa, de fato, a construção de contato: produzir proximidade é distribuir fios e linhas para que se compartilhem não apenas os tópicos de cada conteúdo, mas o sentido da construção de grupo e troca de ações e gestos. Ser editor, nesse contexto, é organizar a possibilidade de conversas e falas em relacionamento direto. A instalação aqui proposta afirma esses gestos de forma aberta, sempre pública, em contato direto com aqueles imediatamente interessados – o leitor é potencializado, recebido como um colaborador fundamental no efetivo processo relacional colocado em movimento. Uma revista se faz de muitos modos – não apenas com papel impresso, nem sempre nas gráficas. Graziela Kunsch concebeu Urbânia 4 na amplitude maior do gesto editorial: como projeto que busca sua materialidade para além do formato convencional do veículo impresso – a aventura se constrói também enquanto instalação, proposição de contato, publicação a se refazer através das condições de cada momento, em maleabilidade conversacional – e também digital. Assim, intensificando o processo de convivência editorial, o local da instalação passa a funcionar como ponto de encontro, sede de reuniões ou ambiente de conversas, estendendo a compreensão da tarefa de distribuição própria da copiagem múltipla: território de aprendizados gráficos, sonoros, verbais, em troca constante. Trata-se de acreditar que os procedimentos ligados à produção da obra de arte – metodologias, ferramentas, lugares de encenação, agentes envolvidos em seus papéis e agendas de negociação próprias – 112


constituem plataformas a que se pode recorrer quando a aposta se faz no trabalho conjunto, na produção da comunidade, do comum, das superfícies de compartilhamento. Se o circuito de arte é também ferramenta de máximo interesse para os propósitos corporativos (em suas ações dominantes de entretenimento e sedução efêmera), é fundamental que os procedimentos em que a tomada de posição comunitária alinha suas práticas e meios – demonstrando força e potência de intervenção – também ocupem espaços institucionais e deflagrem ações de tipo agregador, coletivo: não se trata de mero jogo ou diversão, mas de sociabilidade viva e direta. Esse é um dos objetivos aos quais Graziela Kunsch tem se dedicado, em uma série de práticas que já indicam um corpo de questões e problemas, investigados ao longo dos anos e reforçados em sua intervenção no 47º Salão: apresentar a produção de conhecimento como convívio real, campo de conversas e trocas, área de intervenção em grupo. onversa com Edson C Barrus sobre a revista Nós Contemporâneos, 13/01/2012 Foto: Juliana Teles

Ricardo Basbaum

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izidorio cavalcanti

Izidorio Cavalcanti (Gameleira, PE, 1966) Vive e trabalha no Recife. Formado em desenho arquitetônico pelo Liceu de Artes e Ofícios de Pernambuco (1997), fundou e integra o grupo Mamãe e participa do coletivo Branco do Olho. De suas participações em exposições coletivas, destacam-se Viva Cultura Viva do Povo Brasileiro, no Museu Afro Brasil (São Paulo, 2006); projeto Além dos Limites, na Fundação Nacional de Artes (Funarte – Rio de Janeiro, 2007); IV Bienal de Valência (Valência, Espanha, 2007); Céu, no Museu Bispo do Rosário (Rio de Janeiro, 2007); Bienal do Recôncavo (São Félix, BA, 2007); Rumos Artes Visuais 2005/2006, no Instituto Itaú Cultural (São Paulo); Verbo, na Galeria Vermelho (São Paulo, 2006). Foi convidado como artista articulador no SPA das Artes (Recife, 2008) e realizou residências na 16a Bienal de Cerveira (Cerveira, Portugal, 2011), no projeto Residências em Fluxo, no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), no Pátio de São Pedro, Recife; e na Usina Cultural Energisa (João Pessoa, 2010). Realizou exposições individuais na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj – Recife, 1997) e na Galeria Dumaresq (Recife, 2010).


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

Ato ou efeito de conhecer; ideia, noção; informações, notícias, ciência, prática da vida, experiência; discernimento, critério, apreciação; consciência de si mesmo. A posição, pelo pensamento, de um objeto como objeto, variando o grau de passividade ou de atitude que se admitam nessa posição. A apropriação do objeto pelo pensamento, como quer que se conceba essa apropriação: como definição, como percepção clara, apreensão completa, análise, etc. izidorio cavalcanti, a partir do verbete conhecimento do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

Minha pesquisa foi desenvolvida no Sertão do Moxotó (PE), composto por sete municípios, dos quais visitei Arcoverde, Custódia, Ibimirim, Inajá, Manari e Sertânia. Arcoverde, considerada o portal do sertão, passou a ser minha base diante das outras cidades. Primeiramente, fiz uma pesquisa sobre a geografia e a história da fundação de cada cidade citada e entrei em contato com os Secretários de Cultura desses municípios. Vi que seus hábitos e seus costumes não convergem na representação da sua economia, que, por exemplo, no caso de Sertânia, é a caprinocultura. Como comentam as bibliotecárias da Biblioteca Pública Municipal Professor Ubirajara de Azevedo Chaves, de Sertânia, o artesanato que representa a cidade não traz – como se esperaria – cabras, mas mulheres da seca. Segundo elas, considerando que a localidade vive da caprinocultura, a escultura de cabra representaria melhor aquela cultura. Ainda no campo da representação das cidades, fiquei surpreso ao ver poucos bustos espalhados nas praças, o que guardava um mistério quanto ao passado daqueles lugares... A economia dessas cidades foi um aspecto decisivo na escolha delas, já que era a característica que melhor as diferenciava. Percebi que esses locais têm arquiteturas muito parecidas, sendo a economia sua maior distinção. Assim, para produzir os sete vídeos e as 1.200 fotografias, realizados ao longo do período da residência, explorei praças, mercados públicos, fachadas de casas e campos. Para construir 115


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

o trabalho, foi preciso convidar atores – pessoas comuns que me remetiam à informalidade, aspecto que atravessou todo o período de pesquisa no Moxotó. A partir da residência, criei trabalhos como: EX (fotografia). Essa palavra foi colocada nas placas enquanto eu ia de uma cidade à outra, observando que essa placa informava alguma coisa que, no entanto, não existia. Em seus locais de origem, as placas significam e dão nomes a rios, a pontes, a cidades. Desgarradas, a caminho de algum lugar, o que significam?

Izidorio Cavalcanti EX , 2008 Fotografia digital sobre PVC, 30 de 20 x 25 cm Teceram meu coração , 2008 Vídeo, 5'

Teceram Meu Coração (vídeo). Esse trabalho é um redimensionamento de outro anterior, chamado Sagrado Coração de Izidorio (2007). Na residência, visitei um matadouro e percebi a diferença na relação com a morte, que em cidades maiores não parece tão natural. Todo aquele universo tratava da morte que se torna nosso alimento de cada dia. O coração estava presente por ser o último órgão a morrer. O sofrimento, o som, o riso e o diálogo formam um fundo 116



musical que tem a intenção de envolver as pessoas. Coloco o Sagrado Coração... para que as pessoas revejam a costura que foi feita por alguns dos trabalhadores – chamados de marchantes –, que, mesmo sem intenção, têm uma base estética intuitiva.

Izidorio Cavalcanti Pintura do Concretismo da Arquitetura Nordestina , 2008 Vídeo, 5'

Pintura do Concretismo da Arquitetura Nordestina (vídeo). Chamo esse vídeo de Obra do Acaso. Sempre observei esse tipo de construção, comum nos arruados. Convidei um pintor (Sr. Sandro Roberto) para pintar a fachada de uma dessas casas – um pintor artista que, como muitos, não foi curado, escolhido, descoberto, e que transfere a sua vontade de ser artista para a filha. As fachadas das casas me remetiam à fotografia de Ane Mariane, que revela o concretismo dessas arquiteturas. No passado, essas casas eram sinônimo de status, ainda que fossem comuns. Fiz um vídeo que remete à pintura, intencionando trazêla para meu trabalho do Salão. 118


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

Rasgando a Bandeira (intervenção e vídeo). Fiz a intervenção na Praça da Bandeira de Arcoverde buscando relacioná-la à cidade e envolvendo três atores locais. Após distribuir uma peça de tecido branco dizendo às pessoas: “Rasguem a bandeira”, o que se deu foi uma espécie de dança, que culminou em rasgar o tecido e buscar, entre os curiosos/espectadores, pessoas para criar fitas a partir dele. Ao final, foi erguida uma placa dizendo “Vende-se esta obra de arte”.

Rasgando a bandeira , 2008 Intervenção e vídeo, 5'

Desenrola (intervenção). Realizada no mercado público de carne, a intervenção contou com a participação do público que frequenta o lugar, que foi atravessado por um tecido branco. As pessoas que estavam fazendo compras passaram a se relacionar com a intervenção, mesmo aparentemente não compreendendo o que estava acontecendo. A ação foi fotografada e filmada. Izidorio Cavalcanti 119


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

Em Alhures: a informalidade na arte, o artista Izidorio Cavalcanti encontra as condições de – com sua concepção de arte, antes de mais nada – professar um ato de fé. Em seu processo, gerou um número considerável de vídeos, fotografias e depoimentos que corroboram com os conceitos básicos orientadores da proposta: a informalidade e a precariedade, que já vêm sendo pertinentemente trabalhados por ele há alguns anos. Na sua concepção, a arte está inserida na própria vida, entremeada a todas as pessoas e matérias que constituem o próprio tecido onde nos encontramos e sobre o qual nos movemos, sem hierarquias desnecessárias que possam perturbar esse estado de coisas. Trata-se de algo que vai bem além da questão entre o erudito e o popular: aponta para o problemático questionamento do tênue limite atual entre arte e vida. Trata-se de um artista eminentemente intuitivo e que traz naturalmente consigo uma espontaneidade na escolha das situações que se apresentam e que são potencializadas por ele como obras ou como um modo de relacionar-se com o outro, investindo na dimensão poetizada do cotidiano. Para Izidorio, a arte se autorreferencia a partir do próprio questionamento em torno do lugar onde ela acontece e de quem a propõe e a frui. Izidorio tem se mantido de forma muito coerente ao longo de sua trajetória, e o conjunto de trabalhos e situações que ele apresentou o confirmam como um artista que permanece fiel na sua premissa de valorização dos momentos da existência, quaisquer que sejam eles. O pintor que caia de branco a fachada de uma modesta casa, as fortes imagens captadas em um açougue ou ainda o conjunto de placas de sinalização, cujas intervenções foram registradas em seus deslocamentos na vigência da bolsa, atestam sua crença de que hoje, mais do que nunca, a estetização da vida no que ela tem de cotidiano, anódino, é possível. ista da montagem V de EX no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

Maria do Carmo Nino

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jeims duarte

Jeims Duarte (João Pessoa, PB, 1975) Vive e trabalha no Recife. Após uma juventude vitimada por bullying e HQs, gradua-se em Licenciatura Educação Artística/Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2001) e conclui o mestrado em design pela mesma universidade (2008), sendo absorvido pelo mercado de trabalho via Departamento Estadual de Trânsito de Alagoas (Detran/AL). Parafraseando a artista Bete Gouveia, hoje se apresenta como “servidor público da UFPE e artista plástico não profissional”. Dentre as atividades desempenhadas como servidor, desde 2008 é curador da Galeria Capibaribe no Centro de Artes e Comunicação (CAC/UFPE). De suas participações em exposições coletivas, destaca-se Rumos Artes Visuais 2002/2003, no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2003). Realizou mostras individuais na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj – Recife, 2002) e no Instituto Cultural Banco Real (Recife, 2008). Coleciona rolhas de vinho e garrafas lacradas de azeite extravirgem.


prêmio para projetos de pesquisa e produção

falhar melhor; tanto pior? Relatar uma pesquisa implica atentar a seu percurso, independentemente das discussões mais ou menos necessárias sobre seus resultados. Um cenário como parece ser o nosso, que valoriza processos em detrimento de obras, apenas acentuaria tal primazia dos meios, à revelia dos fins. No limite, os frutos de certas reflexões pontuais poderiam, sem prejuízo, maturar “mais tarde”. Tudo parece se colocar, enfim, como incerto demais para que nos fiemos em planejamentos rígidos. Paradoxo atual: apesar de tal fascínio pelo imprevisível, o artista (por ser humano) segue atrelado à visualização inerente aos projetos. Nesse sentido, Urbólides nasce como um “prognóstico de embate com o imprevisível”. Partiríamos de premissas “fluidas”, passando por um processo “descentrado” e “descontínuo”, a fim de chegar a resultados, por favor, “imprevisíveis”. Essa busca por um acaso programado pode ser entrevista num excerto de nosso projeto inicial: Urbólides [...] serão objetos móveis, construídos a partir de materiais industriais e depositados em áreas específicas [...] do Recife, objetivando a itinerância de tais objetos, acompanhada através de monitoramento por GPS. Baseados nos bólides de Hélio Oiticica, Urbólides serão incrustações errantes, no tecido urbano, de refugo dos materiais que constroem nossa realidade aparente. [...] Com esses bólides urbanos, pretendemos investigar o uso eventual que a população pode dar a tais objetos, ao se deparar com eles longe das diretrizes institucionais que enquadram e protegem a arte em lugares usuais, como museus e galerias. Dispersos no seio da realidade cotidiana [...], os Urbólides poderão ser ignorados, deslocados, reciclados ou destruídos. Acima de tudo, estarão sujeitos ao imprevisível.

Antevendo esse suposto espectro de direcionamentos do olhar – e simulando de antemão todo um rol possível de seus desdobramentos –, restringíamos ao imprevisível sua abertura. Ignorávamos o quanto estávamos munidos de pressupostos, mesmo que propensos a questioná-los. Por exemplo, vários testemunhos já nos advertiam de que a grande cidade está submersa em imagens – e insensível a seu turbilhão. Verificamos certamente que pessoas ignoraram os Urbólides enquanto imagens. Contudo, pela observação direta, vimos 123


que, se o fizeram, não foi apenas (ou nem tanto) por sua condição de cosmopolitas saturados de “informação”. No caso observado dos catadores de material reciclado, entendemos que eles VIRAM nos Urbólides, primeiramente, COISAS (a serem trocadas por dinheiro; ou seja, por subsistência). O imprevisível excesso simbólico, nosso grande fantasma, empalideceu diante do imprevisto de TAMANHA carência material, à margem de qualquer economia, tradicional ou nova.

ista da montagem de V Urbólides no Museu do Estado de Pernambuco.

Entendemos agora que, quaisquer que tenham sido os pressupostos desta pesquisa, desde os “estímulos estéticos” ingenuamente utilizados (como a cor), passando pela consciência de recorte da amostragem (estatisticamente irrisória em se tratando de seis casos), as reais conclusões vieram basicamente da observação direta, ainda que jamais ingênua. Vimos ser possível atrair o olhar, mas percebemos o quanto este é imponderável, insondável e incontrolável em sua conexão simultânea com pensamento, sentimento e ação. Por outro 124


lado, se nos contentamos em “olhar o olhar”, nossa observação terá certamente um valor per se, corroborando ou não hipóteses de trabalho prévias. Como exemplo, um catador específico de material reciclado enriqueceu, sobremaneira, nossa acepção de reciclagem: após recolher uma cadeira por nós “estetizada”, livrou sua estrutura, posicionando-a sobre sua charrete qual “improvável” trono, ao menos por alguns instantes. Era por algo assim que, quixotescamente, ansiávamos, sem o saber: sermos surpreendidos pela previsivelmente imprevisível ação do homem enquanto animal simbólico, por mais carente ou abarrotado de simbologias que esteja; tanto a amalgamar quanto a destrinchar CENTAVOS e VISÕES, tão fugidios quanto vitais – ambos. Jeims Duarte 125


prêmio para projetos de pesquisa e produção

Jeims Duarte Urbólide 1 , 2009 Madeira, vidro e metal, 60 x 60 x 40 cm

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Urbólide 4 , 2009 Pneu automotivo e rodízios, 60 cm de diâmetro

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inurbólides Duas questões me parecem fundamentais nesse projeto de Jeims Duarte, intitulado Urbólides. Primeiramente, sua opção em deslocar o objeto artístico para fora das fronteiras institucionais, deixando-o contaminar-se pela imprevisibilidade do que se passa no espaço público. Segundo, a decisão de atuar no limite do artístico, na interseção entre o poético e o utilitário, na indefinição entre a surpresa e a função. Essas duas características merecem uma análise mais cuidadosa. Os Bólides, de Hélio Oiticica, traziam, para a cor, a materialidade tátil do real, o ruído elementar dos pigmentos minerais junto a recipientes precários e apropriados entre os resíduos do mundo funcional: caixas, gavetas, recipientes de formas e materiais variados: madeira, vidro, plástico. Essa apropriação de objetos e coisas vinha, desde Marcel Duchamp, servindo como uma estratégia poética fundamental na renovação das possibilidades criativas no limite da indiferença e da não arte. A indecidibilidade vinha acompanhada pela abertura de novas potências relacionais que ressignificavam a natureza da arte. De um modo geral, essa tensão vinha problematizar os meios expressivos tradicionais; sabendo-se, todavia, que a possibilidade de existir um quadrado branco de Kasimir Malevich no interior das possibilidades da pintura se dava dentro dessa mesma aventura poética moderna. A torção de Oiticica era mais um passo nesse mesmo regime, deslocando, agora, a questão óptica da cor. Uma cor que se desloca do olho para a mão sem perder a capacidade de agir na superfície visual do mundo das coisas. O desdobramento dos Urbólides, de Jeims Duarte, no seguimento de uma série de exemplos que remetem ao tensionamento experimental dos anos 1960, vai desdobrar a inquietação ontológica para o espaço extramuseológico, assumindo que a capacidade apropriativocriativa não é exceção do gênio, mas potência viva de qualquer um. Realizado a partir de resíduos aproveitados de antigos utensílios, acrescentando materiais heteróclitos advindos, na sua maioria, de lixo industrial, esses Urbólides são uma espécie de móveis alegóricos. Largados na rua e tendo neles inserido um GPS, ficam à espera 128


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de um olhar apropriador que o recolha, para depois reinventá-lo. Começa aí a segunda etapa do projeto. Acompanhar os novos usuários e seus novos horizontes. Se os ready-mades deslocavam para o museu um objeto utilitário, ressignificando-o pelas novas relações e pela desfuncionalização, os, Urbólides fazem um caminho complementar e inverso, devolvendo ao mundo a surpresa do que é indeterminado, sem função óbvia e sem nome. Mais do que um objeto ansioso, trata-se de um objeto insólito, inquieto, nômade, desejante. Ali, parado no meio da rua, fica à espera de um olhar cúmplice que insira nele possibilidades intrínsecas de uso, mobilizadoras do desejo de pegá-lo e deslocá-lo para casa. Nesse novo ambiente, com suas novas relações, vai adquirindo outros elementos e ganhando novas funções – que vão do decorativo ao utilitário, ou ambos. Acompanhando o processo e servindo como estratégia complementar de refuncionalização, é pedido a um detetive que o rastreie e produza relatórios descritivos das suas novas potencialidades. Fecha-se, assim, todo o círculo: produção, circulação, deslocamento, refuncionalização, acompanhamento, descrição e, finalmente, exibição. Nesta última etapa, ele volta para o ambiente de origem, o mundo da arte, requalificado e transformado. O objeto insólito se torna documentação, registro e obra. Nasce um híbrido, uma alteridade poética, ou melhor, mantém-se na indecisão entre a arte e o utensílio. Luiz Camillo Osorio

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JOANA D'ARC DE SOUZA LIMA

Joana D’Arc de Souza Lima (São Paulo, SP, 1966) Vive e trabalha no Recife. Doutora em história cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2011). Coordenou o Setor Educativo do Instituto Ricardo Brennand (Recife, 2002/2008), foi contemplada com o Programa Rumos Educação, Cultural e Arte 2008/2010, e com o Bolsa Funarte de Produção Crítica em Artes Visuais (2010). Desde 2011, é orientadora do Coletivo Acervo em Diálogo (CAD), coletivo de pesquisa em História da Arte do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam – Recife); e do Coletivo Parangolé: Arte Cultura Educação. Nos últimos anos, sua trajetória profissional se dá na fronteira entre instituições culturais e museais.


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Nomadismos e estratégias artísticas no Recife dos anos 1980: entre a tradição e o novo Não nutro nenhuma nostalgia pelo passado. Reconhecer a crise e as hesitações de nossa época tem como objetivo estar à altura dos desafios do presente. camillo osorio

Começar com essa epígrafe é reiterar a recusa “nostálgica pelo passado”, lançando os olhos para um presente cujos desafios, dúvidas, incertezas e crises podem ser enfrentados sem o sentimento que nos impele a considerar o passado melhor do que os dias em que vivemos. Compartilhando essa ideia, optamos por outra postura quando decidimos mergulhar no passado recente da década de 1980. Por meio de narrativas de memória, depoimentos analíticos, levantamento de documentação de época, análise de parte de uma produção crítica sobre o período e de trabalhos artísticos disponíveis, procuramos acessar uma época, falar de experiências comuns e construir sentidos. No Recife, a década de 1980 foi um período de proliferação de grupos de artistas, formação de ateliês coletivos e agenciamentos diversos – estáveis e efêmeros –, exposições ou eventos de Artes Plásticas, e de construção de estratégias artísticas que possibilitaram práticas interdependentes no campo das artes, em diálogo com as instâncias legitimadoras que articulavam o sistema da arte. Os salões eram espaços de visibilidade da produção local, uma vitrine onde se viam as mais diversas linguagens, dos artistas estabelecidos aos outsiders, das experiências tradicionais às conceituais. A contaminação das linguagens ainda era tímida; a pintura, a gravura, o desenho e a escultura davam a tônica dos fazeres e dos cursos livres de arte oferecidos em ateliês de artistas e na Oficina Guaianases de Gravura. Verificam-se experiências ligadas ao conceitual, sobretudo nas ações dos artistas Paulo Bruscky e Daniel Santiago. Nos campos político e social, essa década trouxe mudanças significativas: a transição democrática do regime de ditadura militar imposto ao País em abril de 1964 e, decorrente de manifestações sociais de rua em todo o Brasil, o movimento por eleições presidenciais diretas de 1984. 131


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Nesse percurso, é imperativo desnaturalizar o discurso crítico historiográfico referente à Geração 80 e entender que esse rótulo produzido na época pela crítica de arte não deu conta das diversidades e singularidades de experiências construídas em outros cantos do Brasil, nem mesmo em São Paulo ou no Rio de Janeiro. No Recife, surgiram estratégias artísticas que provocaram deslocamentos e produziram uma “nova pintura”, que, embora com muitas permanências, criou singularidades na produção pictórica conhecida até então. O experimentalismo que se concretiza em ações, hibridismos, grandes formatos, narrativas inspiradas em quadrinhos, intervenções urbanas, pintura em paredes e muros são procedimentos e poéticas justapostos e sobrepostos à linguagem pictórica – é isso que estamos denominando Nova Pintura. Nem só de pintura vivemos Era julho de 1979. Hélio Oiticica estava no Recife para participar do II Festival de Inverno na Universidade Católica de Pernambuco, cujo coordenador de Artes Plásticas era o artista Paulo Bruscky, de quem partiu o convite a Hélio Oiticica. Segundo Bruscky, Oiticica deu uma palestra sobre sua trajetória e fez uma performance com dez Parangolés das Capas no Recife em dois espaços da cidade, no pátio da universidade e no Pátio de São Pedro. O episódio, que compõe a cena artística do Recife do final dos anos 1970, aparece em quase todas as narrativas dos artistas veteranos – que, à época, já eram conhecidos e legitimados –, assim como nas de artistas jovens, lembrado como um acontecimento que inseria o Recife no rol das metrópoles culturais brasileiras de vanguarda, mesmo que nem todos o tenham vivido. A pergunta que fica é: por que tantas referências ao acontecimento se apenas alguns desses artistas vivenciaram a experiência? Considerando o significado que hoje tem a obra de Hélio Oiticica no meio artístico nacional e internacional, lembrar essa proximidade – real ou suposta – com ele e/ou com seu trabalho é, de certa forma, redimensionar o lugar que se pode – e se quer – ocupar no circuito 132


orrespondência do C artista Daniel Santiago destinada à II Exposição Internacional em Outdoor. Nem só de pintura vivíamos no Recife. O fio do conceitual era também uma das tradições locais: das experimentações de Vicente do Rego Monteiro ao cinema experimental, passando pela produção do super-8, atravessando as construções do poema-processo; dos carimbos de José Cláudio às irreverências poéticas de Jomard Muniz de Britto, com as realizações multiartísticas dos Tempos e Espaços dos Abismos, expostas na Galeria de Arte Metropolitana do Recife (atual Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães) – para ficarmos apenas nesses exemplos. Sem contar com as inquietudes provocativas das ações, performances e atitudes artísticas da equipe Bruscky e Santiago. Foto: Acervo particular Daniel Santiago

das artes. Esses relatos podem ser entendidos como acontecimentos que inserem uma cidade do Nordeste do País – distante dos principais centros urbanos de produção, difusão e mercado da arte brasileira – no contexto nacional da produção artística, introduzindo “o Recife na rede internacional”, como comenta Paulo Bruscky em entrevista concedida à autora. As experiências ligadas à nova sensibilidade produzida nos anos 1970, construída sobre a esteira do experimentalismo e de poéticas sensoriais e participativas – que chamamos de fio conceitual na arte –, ganham dimensão pública e visibilidade nacional nos anos 1980 com a Exposição Internacional de Arte em Outdoor/Artdoor, organizada por Bruscky e Santiago. A primeira edição da mostra ocorreu em 1981, apoiada pela Prefeitura do Recife, e reuniu artistas locais e internacionais, com trabalhos de colagens, textos, poemas, pinturas e desenhos, entre outras linguagens. As obras foram montadas em suportes de outdoor e espalhadas pela cidade, transformando-a em espaço expositivo, museu a céu aberto a ser apreciado e sentido pelos transeuntes de uma forma diferente da cotidiana. Nessa nova experiência, um artista que pinta em dimensão pequena, no suporte tradicional do tecido – o que era o comum na cidade –, muda o suporte, a escala e a matéria, e a visibilidade da obra é em grande dimensão; o aspecto do coletivo também é um dado: além de fazer publicamente a obra, o artista pode fazer coletivamente o trabalho. A oportunidade relocaliza-o no campo e lhe propõe um novo enfrentamento com seu trabalho – alimento para essa Nova Pintura que surgirá na cidade, sobretudo na segunda metade da década de 1980. 133


A narrativa crítica produzindo imagens e práticas

xposição show do E grupo Formiga Sabe que Roça Come na Praia de Boa Viagem, 1989. Formiga Sabe que Roça Come foi uma iniciativa de artistas que provocou, no meio artístico local, diálogos entre linguagens, fazeres e modos de pensar as artes na cidade. Dentre as ações do grupo, destacam-se também a exposição festa realizada no edifício Chanteclair (Bairro do Recife, 1989) e uma mostra no Museu do Estado de Pernambuco (1989). Foto: Acervo particular Herbert Rolim

A versão consagrada sobre os anos 1980 no campo das Artes Plásticas reza que foi uma década marcada por uma revitalização da pintura, trazida por jovens artistas, leitura que dá conta de uma dinâmica que é apenas um dos traços da produção e da postura dos artistas vinculados à Geração 80. Ainda que fruto de um discurso construído pelos escritos críticos durante aquela década e no início da seguinte, a versão se generalizou e consolidou sentidos restritos à dinâmica e às potências produzidas então – uma crítica unidirecional. Ao nos apropriarmos de parte dos textos críticos produzidos no período, percebemos que houve uma rapidez, uma pressa em dar respostas às mudanças pelas quais passava o campo das artes naqueles anos, classificando e nomeando uma geração, práticas, ações e trabalhos que foram imediatamente considerados fenômenos emergentes e urgentes de uma época. A escrita crítica do campo das Artes Plásticas talvez tenha tomado a dianteira desse processo. Assim, por Geração 80 ficaram conhecidos artistas jovens que se dedicavam quase exclusivamente à chamada Nova Pintura. Com

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formação universitária, viviam na cidade de São Paulo ou no Rio de Janeiro, mantinham fortes laços com galerias de arte e com o emergente mercado que se estruturava – situação talvez inédita no Brasil. Organizou-se ainda uma série de eventos que apresentavam esses artistas ao público, e, numa rápida captura pelos meios de comunicação de massa, eles se tornaram precocemente ícones pop de uma época. A tendência a proclamar a emergência de uma nova produção de pintura que atingia jovens artistas – que, consequentemente, pautavam muito de seu fazer pela crítica e por uma série de exposições que os acolheram como “emergentes no sistema” – rapidamente garante-lhes visibilidade e atribui-lhes rótulos logo capturados e vendidos pelo mercado. Os textos críticos da primeira metade da década de 1980 – prioritariamente focados na análise do contexto específico do eixo São Paulo-Rio e portanto implicados no lugar e no olhar de onde a fala emerge – circunscreviam conceitualmente a geração. Essa festejada produção caracterizava um momento das Artes Plásticas brasileiras que cultivava a liberdade, as sensações, certo descompromisso com a razão em favor da emoção e um despojamento em relação aos materiais e suportes tradicionalmente utilizados na pintura. É possível que esses primeiros textos tenham sido responsáveis pela performance – maneira de se colocar no sistema – de uma parcela de artistas considerados da Geração 80. Pode-se inferir que, num primeiro momento, esses escritos tenham contribuído na formação dos artistas jovens, desencadeando seu gosto pela pintura. Brigadas Artísticas

1  Do deputado federal Roberto Freire, do deputado estadual Hugo Martins e do advogado Carlos Eduardo Pereira, candidato a vereador.

O entrecruzamento do campo político com o artístico resulta, em 1982, na organização das Brigadas Artísticas, proposta surgida em comitês eleitorais1. Nas vésperas de eleições governamentais, um grupo de artistas plásticos estava pronto, empunhando pincéis e baldes de tinta, para invadir as ruas do Recife e ocupá-las livremente, com pinturas de grandes dimensões em muros cedidos por moradores. 135


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2  O núcleo formador inicial da Brigada Portinari eram os artistas Alves Dias, Bárbara Kreuzig, Cavani Rosas, Clériston Andrade, Lourenço Ipiranga, Luciano Pinheiro, Maria Betânia e Sérgio Lemos. A maioria eram pintores, gravadores e exímios desenhistas. 3  A Brigada Portinari serviu de exemplo à organização de outras brigadas e ações artísticas, como Amar Olinda, Gregório Bezerra, Miguel Arraes, Cristina Tavares, Lula Cardoso Ayres, Egidio Ferreira Lima, Arthur Lima Cavalcanti, Compressora, Ecológica e Henfil (1988), esta mais próxima dos candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT). 4  Outros lugares, eventos e grupos também aquecem o debate e o circuito artístico da década, como a Oficina Guaianases de Gravura (1974, 1979–1995), o Núcleo da Iputinga (1980), a Exposição Internacional de Arte em Outdoor/ Artdoor (1981–1982), o Movimento de Arte Tátil (1982), o Movimento de Arte e Cultura do Nordeste (1983), o Grupo Aloisio Magalhães de Artes e Ofícios, o Grupo Astrobelo (1982), o Ateliê do Poço da Panela (Cavani), o Ateliê Aurora (Luciano Pinheiro e Cavani), o grupo Carasparanambuco (1986), o grupo Formiga Sabe que Roça Come e o Ateliê Coletivo de Olinda (1989), entre outros agenciamentos.

As cenas contavam das condições de vida em nossa sociedade ao narrar o cotidiano dos trabalhadores, de moradores da cidade, de acontecimentos conjunturais e de referências muito singulares da vida cultural nas cidades do Nordeste. Muitas vezes, misturavam o urbano e o rural, quase que sem distinção ou fronteira. Mesmo sendo uma ação coletiva, as temáticas sociais apareciam de muitas maneiras, conforme a singularidade estética de cada artista, e, em meio à figuração, diziam aos leitores também dos candidatos ao pleito eleitoral. As ações desencadearam nas ruas – lugar de aproximação e confraternização, espaço público concebido como um campo de possibilidades do acaso, da participação e da conversa – um sentido de festa. As ruas foram ocupadas numa atitude nômade, e lá se descortinavam novas e inusitadas formas de viver a cidade. Formou-se uma nova atitude diante da pintura, tendo a pintura coletiva – as muitas mãos que, sem disputar os espaços brancos do muro, dialogam na sobreposição de imagens e retoques – a troca e a participação como dinâmicas instituídas nesse processo. A primeira dessas brigadas, a Brigada Portinari2, representa a construção de uma Nova Pintura no Recife, inspirando a realização de diversas outras3. Um espaço mediado pela política que possibilita a experimentação da pintura sem cavaletes, sem regras, sem dimensões, sem os procedimentos rigorosos que normalmente esses artistas tinham no ateliê4. Carasparanambuco, Formiga Sabe que Roça Come e Quarta Zona de Arte: desejo de mercado, profissionalização e estratégias mais autônomas e nômades Os artistas do Recife, na segunda metade da década de 1980, revelam singularidades, proximidades e distanciamentos em relação à chamada Nova Pintura, tão festejada no Brasil. Os grupos Carasparanambuco, Formiga Sabe que Roça Come e Quarta Zona de Arte construíram estratégias artísticas que foram se legitimando no campo da arte de forma independente, com diferentes atuações e experimentos que tinham a pintura como linguagem principal, variando os suportes, o repertório e os gestos. 136


artaz de C exposição do grupo Carasparanambuco no centro Adalgisa Falcão, 1989. Grupo Carasparanambuco ganha espaço na mídia e no campo das artes, firmando-se nesse cenário com sua ironia e ousadia, assim impactando as construções de conceitos entre a escrita jornalística local e os fazeres do grupo. Entre a tradição das belas artes e as referências aos modos de fazer popular, o Carasparanambuco reatualiza criticamente as tradições da cultura, demonstrando também um desejo de inserção no mercado local e no circuito nacional. Foto: Acervo particular José Patrício artaz na mostra C Inútil Útil, realizada no Quarta Zona de arte (1994). Lembrada recorrentemente, nos relatos de memória dos jovens artistas da época, como um marco no contexto artístico local de então, a exposição Inútil Útil talvez seja um epílogo da vida ativa do Quarta Zona de Arte no Recife. Foto: Acervo particular José Paulo

Eram todos bem jovens, e a maioria havia buscado formações alternativas – o curso de extensão com o artista José de Barros (UFPE), a Oficina Guaianases de Gravura, o Ateliê Aurora e o do Poço da Panela. Queriam expor seus trabalhos, quase sempre figurativos, mas com tendências para a diluição e a deformação da figura. Normalmente, assumiam de forma integral a produção e a divulgação de suas mostras e tinham, no limiar dos temas dos trabalhos, a visualidade local da cultura popular; para alguns, a cena urbana era a referência narrativa central, e todos tinham uma dose de erotismo e sensualidade, além do entrecruzamento entre arte e política. Carasparanambuco e Formiga Sabe que Roça Come Em 1986, formaram o grupo Carasparanambuco sete jovens artistas: Alexandre Nóbrega, Eduardo Melo, Félix Farfan, João Chagas, José Patrício, Mauricio Silva e Rinaldo. O nome do grupo era uma menção explícita a “cara”, modo por que se tratavam então, remetendo também, numa leitura livre, às muitas caras de Pernambuco. Essa referência diz das produções da época, muito próximas aos signos da cultura popular pernambucana, visitados e ressignificados por artistas do grupo – pela apropriação de materiais, pela manutenção da tônica artesanal e dos temas recorrentes –, não se configurando como resistência, dogma da tradição ou de uma intencionalidade proclamada, mas antes como marco de uma produção nova de artistas formados numa tradição de valores pautados por referenciais locais. 137


ncontro de artistas da E geração 1980 do Recife. Da esquerda para a direita, Eduardo Melo, Maurício Silva, Dantas Suassuna, Márcio Almeida, Paulo Meira, Maurício Castro, José Paulo, Flávio Emanuel e Fernando Augusto. Uma nova cartografia das artes insinuava-se por meio de novas linhas de atuação, espaços e redes que começavam a se esboçar na segunda metade dos anos 1980, no diálogo entre os artistas já consagrados e os mais novos. Relações tensas, de amizade e por vezes mais afetivas davam a tônica do que iríamos viver nos anos seguintes. Foto: Acervo particular José Paulo

5  Os artistas Herbert Rolim, Luiz Avanzi, Jobalo e Marinaldo formaram o Formiga Sabe que Roça Come.

Mesmo com a efervescência do Recife, sentia-se uma escassez de atividades e, em meio às carências de então, as principais motivações para um agenciamento dos artistas parecem ter sido a vontade de profissionalização e o desejo de inserção no mercado, construído como oportunidade de estar no cenário das Artes Plásticas. O desejo mobilizador era a possibilidade de se juntar para ficar mais forte e, assim, entrar no mercado local e nacional, buscar novas inserções, novos diálogos e, sem dúvida, uma profissionalização. Naquele momento, sem o modelo de política cultural institucionalizada, próprio aos anos 1990, a dinâmica do mercado local era animadora para os jovens, oferecendo uma real possibilidade de se viver da venda dos trabalhos. O grupo Carasparanambuco abre espaço para novos agenciamentos de artistas. Nessa esteira, o efêmero e ousado Formiga Sabe que Roça Come causou outros deslocamentos nômades e hibridismos nas ações. Proclamar o Formiga Sabe como grupo já é imprimir-lhe uma identidade, negada por seus próprios integrantes5, para os quais o Formiga não era um grupo, mas uma ação resultante de uma mostra coletiva organizada no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC-PE). Destacam-se o caráter itinerante das ações e a opção por locais não convencionais de exposição. De caráter efêmero, esses 138


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acontecimentos deslocavam pessoas para o Edifício Chantecler, no Bairro do Recife, normalmente não visitado por frequentadores de museus ou artistas, mas, naquele contexto, ocupado como espaço da vida cultural da cidade. Misturavam-se Artes Plásticas, música, registros em vídeo e os mais diversos públicos – artistas plásticos, jornalistas, profissionais da publicidade e da TV, músicos, habitués da noite do bairro, trabalhadores do sexo, entre outros. A exposição e a festa, posteriormente transferida para a Praia de Boa Viagem e acompanhada por um show musical, também eram algo inusitado para a época. O Formiga termina sua efêmera existência expondo no Museu do Estado de Pernambuco – com a participação do Quinteto de Sopro da Orquestra de Câmara do Recife –, também com uma estratégia: depois desse nomadismo, voltar ao espaço consagrado das Artes Plásticas. Por fim, ainda promoveu a exposição chamada Cem Depois (1990). Quarta Zona de Arte: nomadismos e estratégias artísticas experimentais Quarta Zona de Arte foi um espaço cultural de produção, formação, exposição e difusão da arte contemporânea no Bairro do Recife. As ideias e os comportamentos dos fazeres do grupo Quarta Zona de Arte – como experimentações reveladas em atitudes ousadas, contestatórias e libertárias face à Nova Pintura – são vistos como ações individuais de cada sujeito do coletivo e também como respostas-propostas ao processo histórico da época. O intuito não era manter um ateliê de artistas, mas ampliar o coletivo. Os fundadores, José Paulo e Maurício Castro, ocuparam o prédio em 1988 e, aos poucos, convidaram outros jovens artistas para compor o coletivo6. Na galeria, nos cursos e nas oficinas, bem como em festas e feijoadas memoráveis, ocorriam debates acalorados sobre a situação política do País. 6  Fernando Augusto, Humberto Araújo, Aurélio Velho, Flávio Emanuel e Márcio Almeida.

A maioria dos artistas do Quarta Zona eram pintores, com experiência na gravura e nas artes gráficas. Quase todos se 139


Matéria Quarta Zona – exposição eclética na cidade, de José Manoel Jr., publicada no Jornal do Commercio, a 6 de junho de 1991. Na imprensa local, o Quarta Zona de Arte passa a ter espaço e credibilidade. Ganha as manchetes do caderno de cultura. Nesse sentido, a escrita da crítica de arte, feita sobretudo nesse meio, é afetada pelas ousadias que os jovens quartazonistas desencadeiam, produzindo cumplicidades entre escrita crítica e narrativas estéticas. ivulgação do Arte D na Barbearia, Olinda, carnaval de 1991. Ecos das experimentações da segunda metade dos anos 1980 adentram os anos 1990. Arte na Barbearia foi uma iniciativa, de artistas, que guardava tais referências. A contaminação das ações que incorporaram o meio artístico do Recife produziu desejos agenciadores de novas e inusitadas ações de ocupação e movimentos de territorialização e desterritorialização de grupos com caráter mais autônomo, libertário e sem as atuais tutelas institucionais. O exemplo inesquecível presente nas memórias dos artistas foi o Arte na Barbearia, de Seu Isnard, em Olinda. Em um pequeno espaço de barbearia, daquelas tradicionais de cidade de interior, mais de cinquenta artistas organizavam uma exposição que acontecia sempre nos carnavais, daí basta imaginar o que de profano acontecia. Saudades de Seu Isnard. Foto: Acervo particular José Paulo

conheceram na Universidade Federal de Pernambuco, oriundos sobretudo dos cursos de Arquitetura, Desenho Industrial, Comunicação Visual e Artes Gráficas. Entre os fazeres da arte e da política – na maior parte das vezes, uma respondia à outra harmonicamente –, os artistas transformaram o espaço num laboratório de pintura coletiva da Brigada Henfil. A experiência resultou na produção de pinturas de grandes dimensões, painéis coletivos expostos numa mostra no MAC-PE (1988). A Brigada volta às ruas em 1989, nas eleições presidenciais, apoiando o então candidato do PT Luiz Inácio Lula da Silva, numa ação que, segundo os participantes, foi marcante para todos: espectadores e artistas que pintavam painéis nos muros da Escola Parque, em Piedade. O percurso do Quarta Zona, desde a fundação até o processo de fragmentação, mudança e dissolução, em 1994, coincide com as transformações no campo das Artes Plásticas na década de 1990: institucionalização da cultura via leis de incentivo, surgimento de instituições vinculadas ao poder econômico privado (sobretudo bancos), de novas autoridades que legitimam as tendências da 140


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arte, os próprios artistas e as exposições, entre outros aspectos percebidos no meio artístico da cidade. I nterior do ateliê do Quarta Zona de Arte. Exercícios experimentais, trocas entre integrantes e visitante – ações situadas entre a formação, a produção artística e o experimentalismo. Certamente, mudanças e deslocamentos ocorreram no fazer da arte na cidade. Uma nova pintura desenhava-se em muitos suportes, numa narrativa pictórica ousada, visceral e política. Pintura cujas características dialogavam com sua época, seus meios e com as intenções da geração 1980. Foto: Acervo particular José Paulo

Entretanto, essa experiência – de autonomia, socialização de espaços coletivos, ocupação do Bairro do Recife, participação na mudança de seu perfil social e cultural, experimentação das linguagens e, sem sombra de dúvida, de crítica social –, possibilitou essa escrita. Imagino que diversas atitudes e iniciativas de artistas acontecessem ao mesmo tempo e que não estejam registradas aqui, mas certamente estarão inscritas na experiência histórica e na memória de muitos pernambucanos brasileiros. Joana D'Arc

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os anos 1980 no recife A possibilidade de participar do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco com um trabalho teórico é algo a ser celebrado. Não apenas pelo inusitado de vermos uma pesquisa histórica contemplada junto com projetos de artistas, mas pela aposta numa linha de convergência – jamais de indiferenciação – entre a produção teórica e o fazer artístico. Essa convergência, tão cara à cena contemporânea, aponta para uma contaminação recíproca em que a dimensão reflexiva entra na fatura do artista e a potência criativa atravessa a indagação crítica. A monografia realizada por Joana D’Arc de Souza Lima, intitulada Nomadismos e Estratégias Artísticas no Recife dos Anos 1980: entre a Tradição e o Novo, busca analisar a arte pernambucana dos anos 1980 a partir do esforço de contextualizá-la junto aos debates críticos mais amplos da cena brasileira e internacional daquele período. Tendo em vista um distanciamento histórico de quase 30 anos, faz-se possível uma análise menos temperada pelo calor dos acontecimentos e mais atenta à complexidade das muitas chaves de leitura para uma cena tão singular como a pernambucana. A opção de iniciar a monografia com a aproximação e o diálogo tardio entre Paulo Bruscky e Hélio Oiticica não tem nada de imparcial. Enfatiza um compromisso com a tradição experimental, que, para além de multiplicar as possibilidades de ação poética, foi fundamental para a própria renovação dos meios expressivos tradicionais, como a pintura, tão destacada na avaliação dos anos 1980. Se, no interior do debate crítico dos anos 1980, fazia sentido – especialmente político e comercial – separar e antagonizar o “retorno à pintura” e o cerebralismo conceitual/experimental das duas décadas anteriores, do ponto de vista da análise histórica, constituída sob a ótica do presente, essa oposição é desnecessária e redutora. Por um lado, aquela oposição deixava de lado uma série de artistas, coletivos e atuações poéticas decisiva na caracterização mais alargada da década. Isso tanto na cena do Recife como na das demais capitais brasileiras e do circuito internacional – exceção à transvanguarda italiana e ao neoexpressionismo alemão. Cabe ressaltar, por exemplo, no caso brasileiro, que foi nessa década que amadureceram as produções de artistas como Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Tunga, Milton Machado, José Resende, Fajardo, 142


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para não falar do aparecimento de artistas como Jac Leirner e Ricardo Basbaum, claramente filiados às vertentes conceituais. Além disso, foi também nessa década que a fotografia assumiu de fato potência experimental, problematizando sua função documental. Por outro lado, não menos importante, apostar naquela disjuntiva entre pintura e experimentação reduziria a intensidade crítica da própria pintura, o que não faz jus ao tônus reflexivo do fazer pictórico. Nesse aspecto, toda a discussão desenvolvida no capítulo 2 da monografia, pondo em foco a produção crítica daquela década, privilegiando as leituras feitas principalmente por Aracy Amaral e Ricardo Basbaum, é bastante proveitosa. Ambos, guardadas as diferenças de perspectiva e geração, ampliam as possibilidades interpretativas daquele contexto histórico. Os capítulos 3 e 4 focam mais concentradamente na cena pernambucana, tratando de analisar os diversos aspectos que compuseram a cena dos anos 1980 – desde a dimensão institucional ainda muito incipiente até as articulações independentes protagonizadas pelo desejo de artistas e coletivos de darem visibilidade às suas ações e obras. A dinâmica mais politizada do começo dos anos 1980, reverberando o próprio momento do País, é analisada através da presença de artistas como Abelardo da Hora, Paulo Bruscky, Daniel Santiago e do coletivo Brigada Portinari. Era um momento de conquista e ampliação de territórios. No capítulo 4, deslocando-se para a segunda metade da década, a luta se torna mais interna ao próprio mundo das artes, uma luta pelo fortalecimento institucional, visando uma maior articulação e profissionalização da cena do Recife. Destacam-se aí grupos tais como Carasparanambuco, Formiga Sabe Que Roça Come e Quarta Zona de Arte. Enfim, todo um percurso da arte pernambucana na década de 1980 foi analisado e atualizado à luz de uma interpretação contemporânea, fortalecendo a compreensão do circuito local e suas articulações globais – o que, certamente, é um dos objetivos do Salão. Luiz Camilo Osorio 143


joão castilho

João Castilho (Belo Horizonte, MG, 1978) Vive e trabalha em Belo Horizonte. Mestre em artes visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2010). De suas participações em exposições coletivas, destacam-se Encubrimientos no festival PHotoEspaña, no Instituto Cervantes de Madri (Madri, 2010); e Geração 00 – A Nova Fotografia Brasileira, no Sesc Belenzinho (São Paulo, 2011). Realizou exposições individuais na Zipper Galeria (São Paulo, 2011), na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj – Recife, 2010), no Oi Futuro (Rio de Janeiro, 2008), na Celma Albuquerque Galeria de Arte (Belo Horizonte, 2011) e no Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte, 2006). Recebeu os prêmios Projets de Création Artistique (Museu do Quai Branly – Paris, 2011) e Conrado Wessel de Arte (São Paulo, 2008), entre outros. Publicou os livros Peso Morto (Conexão Artes Visuais, 2010) e Paisagem Submersa (Cosac Naify, 2008).


prêmio para projetos de pesquisa e produção

sutura/suturas Meu projeto para o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco girava em torno de certas ações que queria realizar visando um resultado (sutura) que seria fotografado. Seriam objetos cortados, rasgados, quebrados, fendidos, fissurados, rachados, nos quais eu interviria suturando, costurando, colando. Esse projeto nasceu de uma vontade de ampliar meu universo “fotografável”. Durante muitos anos, fui um fotógrafo documentarista, que se interessava em contar uma história, mesmo que de uma forma um pouco despregada da realidade. Assim foram feitos trabalhos como Paisagem Submersa, Redemunho, Marie Jeanne, Chão é Céu, entre outros. Os trabalhos que resultaram da bolsa dada pelo Salão foram um políptico de nove imagens de 40 x 60 cm cada uma, intitulado Suturas, e uma fotografia de 80 x 120 cm intitulada Sutura. A ideia de levar a cabo esse projeto surgiu desse desejo de mudança, em que eu passaria a fotografar ações realizadas por mim sobre alguma coisa. Nesse “lugar” onde decidi trabalhar, eu não queria encontrar os objetos nos quais eu atuaria já “danificados”. Queria que tanto o ato de suturar quando o de provocar o dano fossem feitos por mim. Trabalhei nos entornos da cidade de Belo Horizonte e em pequenos parques e praças pouco movimentados. É importante dizer que, paralelamente ao trabalho realizado com o recurso da bolsa, desenvolvi uma pesquisa de mestrado sobre a obra fotográfica do artista norte-americano Robert Smithson. Considero que essa pesquisa teórica guarda vários pontos de contato com os trabalhos aqui apresentados, além de outros mostrados em outras oportunidades. Smithson foi um pioneiro ao utilizar a fotografia como forma de perpetuar ações efêmeras feitas por ele na natureza. Esses trabalhos se inseriam em um programa maior que visava sempre uma tentativa de tornar visível a entropia. Mas enganase quem pensa que as fotografias de Smithson seriam simples registros de obras feitas na natureza, elas eram mais que isso. Olhando meu conjunto de fotografias, podemos perceber que as suturas funcionam de forma alegórica. Elas são sugestões, não funcionam de fato, não cumprem uma função. Poderiam cumprir, 145


prêmio para projetos de pesquisa e produção

mas não cumprem. A ideia é evidenciar o ato de desconstrução e reconstrução; as suturas se colocam, assim, em relação com os movimentos da vida. Cada etapa e cada processo de uma vida são passagens que sempre deixam marcas e perdas. Por mais que tentemos fechar um buraco, por mais que tentemos reparar um dano, as coisas nunca serão como antes. Há sempre uma fissura silenciosa, invisível, querendo ser alargada, aprofundada, inscrita na espessura do corpo. A fissura quer tornarse visível, quer tudo engolir. Por isso está na borda, na fronteira, por isso não é nem interior nem exterior. Tentar evitar que uma fissura se aprofunde e se efetue dificilmente seria possível, pois é nela que estão, ao mesmo tempo, o lugar e o obstáculo do pensamento. Forçar uma conexão entre duas partes que outrora foram indivisíveis se processa após um ato (sutura) que soa tão traumático quanto o gesto que causou a separação. Dor que tenta curar a dor. Incisão para cortar, incisão para costurar. João Castilho

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Jo達o Castilho Sutura , 2009 Fotografia 80 x 120 cm C print

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Jo達o Castilho Suturas , 2009-2011 9 fotografias 40 x 60 cm (cada) C print

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ista da montagem V de Suturas no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalh達es.

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

Em Confluências, João Castilho procura estabelecer os parâmetros e os limites de uma interface muito particular entre a pintura e a fotografia, onde se verifica que a criação das imagens é acompanhada sempre por sua própria intervenção no meio natural. Esta parece ser uma postura poética assumida habitualmente em sua trajetória e apresenta sinais evidentes de amadurecimento intuitivo e intelectual. O caminho empreendido pelo artista mineiro para explorar as possibilidades de renovação da prática pictórica a partir da sua conjunção com a fotografia e, ocasionalmente, com o vídeo, utiliza um repertório de formas em que os próprios títulos escolhidos por ele – Frestas, Suturas, Linhas, etc. – evidenciam seu status indiferenciado – ou múltiplo – entre processo, registro e obra acabada. Ao criar sulcos, quebrar, fragmentar, recompor em uma nova ordem e finalmente registrar, Castilho evidencia ainda mais o caráter já indicial da fotografia, acusando o estado de realidade alterada pela mão humana, procurando, assim, estabelecer elos entre a cena natural e sua própria presença, onde o aspecto quase ritualístico se acha ainda mais enfatizado pela efemeridade das criações, o que lhe confere uma nova dimensão estética. Ao observarmos as fotografias, torna-se patente o fato de que a natureza lhe fornece o material e o cenário, mas o protagonismo da cena captada é totalmente investido na realidade reinventada a partir de suas sensíveis, minuciosas e oníricas intervenções plásticas. O grafismo da cor e o contraste entre texturas lhes conferem a dimensão de verdadeiros acontecimentos pictóricos, alterando o ambiente, onde a evidência da passagem de um estado de natureza para o estado da cultura fica então eminentemente potencializada, uma vez que ele não “naturaliza” a intervenção humana. Maria do Carmo Nino

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jonathas de andrade

Jonathas de Andrade (Maceió, AL, 1982) Vive e trabalha no Recife. Graduado em comunicação social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007). Dentre suas participações em exposições coletivas, destacam-se 12ª Bienal de Istambul (Turquia, 2011); 32º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM, 2011); Sharjah Biennial 10 (Emirados Árabes, 2011); 7ª Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2011); e 29ª Bienal de São Paulo (2010). Realizou exposições individuais na Galeria Vermelho (São Paulo, 2010), no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2008) e na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj – Recife, 2008). Participou de residências artísticas na Townhouse Gallery, associada à Fundação Made in Mirrors (Cairo, 2011), e em Gasworks (Londres, 2011). De bolsas recebidas, destacam-se a Bolsa em Artes Visuais (Funarte, 2009) e o Prêmio Marcantonio Vilaça (2011).


prêmio para projetos de pesquisa e produção

condução à deriva [2008] 1. Proponho fazer uma viagem de reconhecimento de território e sentimento pela América Latina buscando assimilar até que ponto uma ideia de unidade latinoamericana ainda faz sentido. 2. Usarei a fotografia como suporte de apoio para criar o que viria a ser uma coleção de memórias de um personagem localizado em um passado impreciso, latinoamericano, um personagem anônimo e desconhecido. Como se, durante essa viagem, eu encontrasse, ao acaso, uma sacola perdida em algum matagal ou casa abandonada e, dentro dela, encontrasse memorabilia pessoal diversa – fotografias e pequenos objetos – e coubesse a mim voltar dessa viagem com esse material, tratando seus fragmentos como documentos históricos. 3. Os objetos encontrados dão pistas não só sobre quem os colecionou e reuniu – o personagem –, mas também sobre uma atmosfera do tempo a que eles se vinculam e estão submetidos. Esse tempo, procurarei desenhar de forma suspensa, vinculado a um passado impreciso, a uma memória perdida. 4. Essas ideias de suspensão no tempo e no espaço dizem respeito a um sentimento de latinidade que carrego que é pautado pela descontinuidade histórica, por um estado de dormência, de diluição política, constrição poética, de condição periférica. Trazer esses sentimentos à tona como objeto de trabalho me parece inevitável neste momento histórico atual, em que minha geração tem o niilismo como saída existencial e política. Não vejo outra resposta que não a arte como lugar onde eu possa experimentar, admitir que a América Latina não resolveu suas ditaduras; que elas não acabaram e que atuaram nas gerações pós-1960 sedimentadas como trauma histórico até hoje. Sinto meu corpo descontíguo, como se geneticamente minhas células tivessem desaprendido a reagir, a se conectar com o desejo e a criar respostas. 153


prêmio para projetos de pesquisa e produção

[...] [2009]

Jonathas de Andrade HoyAyer , 2011 Colagem de papel sobre fotografia, 24 peças, 1,14 x 7 m (cada) Imagens cedidas pelo arquivo Fotostiftung Schweiz/Emil Schultess O trabalho consiste numa colagem de recortes de 24 páginas do livro Chile Ayer Hoy com 24 peças da sequência fotográfica que registra um sol que nunca se põe, do fotógrafo suíço Emil Schultess.

[...] confesso que fiquei frustrado em encontrar uma Buenos Aires tão amansada, tão apaziguada e em ordem em relação àquela cidade em vertigem reativa que encontrei em 2002 e que me acendeu para uma latinidade antes nunca sentida. Voltei ali e tateei os lugares como quem tenta faísca em fósforo molhado, como quem busca a própria história em estado de amnésia. A história, a oficial, do livro, passava ali a ser também minha. Aquilo que percorro me constitui? Funciona como pergunta e resposta. O que unia os dois tempos era o drama, que estava em toda parte: nas pessoas, nos jornais, na luz da cidade, no "olho no olho", na rua que funciona como tiros, tempero e taquicardia. Parece existir uma pulsão social da revolta, da reclamação, do drama; uma disposição para o confronto que parece disseminada em vários níveis e em todos os setores sociais e que, agregada a um letramento médio alto e a uma relação íntima e cotidiana com a leitura, faz da Argentina um país peculiar. Porém, a crise maior parece ser não saber o que fazer com essa pulsão que se carrega dentro nem com a própria criticidade. [...] Paralelismo histórico. Vivemos vários tempos de compreensão e fruição da história e da política no mesmo tempo, dependendo de como se situe o próprio corpo. Ativar a energia contestatória que está nesse lá e cá é caminho de escolha e conquista para esse corpo. 154


ista da montagem V de PacĂ­fico no Museu de Arte Moderna Aloisio MagalhĂŁes.

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[...] Estou confuso e me sinto mergulhado num caldo ideológico em que estupidamente não sei me posicionar. Além disso, sou confundido com um gringo explorador na rua só por ser branco (sou???), e isso me desanima de acreditar no tipo de projeto de criticidade em curso. Me sinto meio idiota, e já é hora de viajar. [...] Cheguei a Cusco depois de atravessar, equilibrando-me pela sua estrutura de ferro, uma ponte de madeira queimada pelos manifestantes para impedir o trânsito de carros e pedestres. Queriam atenção internacional para a questão. O ônibus no qual vim era inteiro de ex-soldados israelenses que, depois de servir às forças armadas, ganham uma bolada de dinheiro e viajam pelo mundo com os amigos. Não sei o que pensar sobre eles, sobre Israel nem sobre o mundo árabe. Mas, na Amazônia peruana e nesta América Latina que venho tateando, sinto que o Brasil tem forte presença cultural e semi-imperialista. É bastante estranho ser estrangeiro brasileiro e culturalmente dominante. O discurso dos mais fracos, a boa vizinhança, a tropicalidade, a capacidade de lidar com situaçõeslimite, a beleza, a pobreza, a leveza das raças, a riqueza e a felicidade que fazem a alma brasileira se arrepiar de orgulho e emoção quando cantam o Hino Nacional viraram escudo ideológico de camaradagem para o projeto do Brasil neopotência internacional. [...] Jonathas de Andrade

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

Jonathas de Andrade 4000 disparos , 2010 Frames de filme super8 digitalizado, 60' loop Um rolo de super8 composto, quadro a quadro, por imagens de rostos aleatórios de homens anônimos, capturadas nas ruas de Buenos Aires. A exibição em looping percorre esse arquivo com ciclos de tensão sonora crescente, pautados por urgência e passado; ontem e hoje; obsessão e repetição do gesto.

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Jonathas de Andrade Pacífico , 2010 Frames de filme de animação super8 digitalizado, 12' Um grande terremoto atinge a Cordilheira dos Andes, separando o Chile do continente sulamericano. Como consequência, o mar é devolvido à Bolívia, a Argentina ganha costa dupla para os oceanos Atlântico e Pacífico, e o Chile se transforma em uma ilha flutuante, oceanos afora.

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

Condução à deriva fez parte de um projeto maior empreendido pelo artista, denominado Documento Latinamerica – condução à deriva, com o qual esteve em seis países da América Latina numa aventura que se impôs como um momento pautado pela necessidade de refletir sobre a noção de pertencimento a partir do ponto de vista de sua geração e sobre questões de ordem social, política e suas implicações estéticas na América Latina de hoje. Ele não definiu aprioristicamente uma metodologia, apenas muniu-se de material suficiente para vagar por esse desconhecido território, registrando em super-8 ou em fotografias, tomando apontamentos dessa errância aberta tanto a encontros como a desencontros, em um ritmo ditado pelas necessidades do momento para, em etapa posterior, refletir sobre o material coletado. Dessa rica experiência, algumas orientações entrevistas se confirmaram: Jonathas é um artista para quem a identidade latinoamericana se coloca como um problema que merece ser pensado cada vez com mais insistência. A vocação ficcional da fotografia é posta em evidência naquilo que ela traz de passado fragmentado, duvidosas referências de uma memória inventada, onde o contexto – seu studium, segundo Barthes – se reconstrói segundo as circunstâncias do momento. Jonathas abre frentes para questionamentos socioeconômicos e políticos, porém sem que por conta disso precise ceder às exigências de ordem estética. No vídeo 4.000 disparos, somos tomados por uma incômoda e fascinante avalanche de rostos de transeuntes, anônimos, e, no entanto, tão reais, tão concretos em sua aparente neutralidade que poderiam ser qualquer um de nós. Pacífico se volta para, como em uma brincadeira fantasiosa de criança, refletir sobre desejos e sentimentos enrustidos em uma dita verdade histórica, aceita às vezes passivamente, mas com fortes consequências para o corpo social. Maria do Carmo Nino

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JURA CAPELA

Jura Capela (Recife, PE, 1976) Vive e trabalha entre o Recife e o Rio de Janeiro. Idealizador do festival de cinema Sapo Cururu (desde 2005). Integrou o grupo Canal 03 (Pernambuco, 1996). Entre 1997 e 2006, integrou o coletivo Telephone Colorido, com o qual codirigiu o curta Resgate Cultural – O Filme (2001), premiado em diversos festivais nacionais de cinema. Junto ao grupo Telephone Colorido, realizou as exposições Estéreo, na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj – Recife, 2000); e Quebrem um Ovo no Seu Pau, no 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (Recife, 2003). Dentre os filmes que dirigiu, destacam-se o média-metragem Shemberguianas (2005) e o longa-metragem documentário Paranã-Puca – Onde o Mar se Arrebenta (2010), vencedor do Troféu Redentor de melhor filme na mostra Novos Rumos, no Festival do Rio de Janeiro (2010). Em 2011, finalizou o longa-metragem musical Jardim Atlântico.


prêmio para produção de videodocumentário sobre artes visuais em pernambuco

Nascemos sem saber falar e morremos sem ter sabido dizer... fernando pessoa

A pesquisa do Panorama das Artes Plásticas de Pernambuco sobrevoa do século XX até os dias atuais. As entrevistas dos artistas e pesquisadores de gerações distintas que tive de fazer sempre terminavam num bom bate-papo, num cafezinho e com um convite para voltar mais vezes. Foram destacados grupos, ateliês, episódios que marcaram a arte local, focando sobretudo no que chamamos de “movimentos artísticos de Pernambuco”, usando a memória dos artistas entrevistados como uma cronologia de acontecimentos das artes plásticas no Estado. A cidade de Olinda, onde passei a minha infância e adolescência, é um lugar que exala arte. Andar pelas ladeiras de Olinda é como caminhar no imaginário de um tempo passado posto em prática nos tempos de hoje. Como um transeunte sem destino, entre uma ladeira e outra, acabava passando por ateliês e espaços de arte, como a Galeria Três Galeras, no Alto da Sé; os domingos no Mercado da Ribeira, na Rua de São Bento, no Bar Esperança; e, logo ali embaixo, na Praia dos Milagres, o estrondoso Molusco Lama, onde fiz as minhas melhores amizades. Para mim, ficaram marcados também os corredores do Shopping Center Recife, onde todas as crianças se divertiam com as lindas mulheres de concreto feitas por Abelardo da Hora. Subíamos e descíamos nos lindos peitos largos e nos quadris generosos que acolhiam toda aquela pequena geração que ali se encontrava. Era um verdadeiro parque de diversões passear por aquelas esculturas. Acredito que foi a partir dali que tive a primeira oportunidade de observar uma escultura. No documentário fruto da pesquisa Panorama das Artes Plásticas de Pernambuco, intitulado Paranã-Puca – Onde o Mar se Arrebenta (2010), fui guiado pela excitação entre o real e as lembranças do passado. De tanto me relacionar com o meu conhecimento e com o dos outros, no processo de montagem tudo se converteu em sonho, um legado de lembranças que, do presente instante, nos projeta para o futuro de nossa arte brasileira. 161


Muitas vezes apertava o botão do rec da câmera para gravar sem querer filmar uma imagem perfeita, mas para buscar um devaneio externo, deixando que o objeto em foco me fizesse festa, como se fosse criança ouvindo e capturando tudo aquilo que a palavra não vê e a imagem exibe, em busca de uma clareza traduzida numa eterna relação entre conteúdo e forma que deságua nesta pesquisa. Lembro que a produção da Telephone Colorido nos anos 1990/2000 era muito fértil e que sempre nos deparávamos com poucos meios de exibição. Para esse documentário, o YouTube foi utilizado na montagem, como uma ponte entre o público e as obras expostas: o YouTube como o maior museu e vitrine das artes visuais atualmente. páginas 162, 165 e 167 Vista da montagem da instalação Panorama das Artes Plásticas em Pernambuco no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

Acredito que nenhuma linha do tempo pode abarcar por completo os acontecimentos artísticos do Estado de Pernambuco. Sempre faltaria alguém ou algum ato artístico que só ficou por ali, na esquina do tempo. 162


prêmio para produção de videodocumentário sobre artes visuais em pernambuco

Também nos anos 1990 tivemos a grande explosão do Mangue Beat. Somos uma geração com sorte por ter vivido de tão perto aquele movimento que abrangeu vários meios artísticos: musical, cinematográfico, literário, moda e artes plásticas... Um momento em que éramos contemporâneos de nós mesmos. Momento moderno e desafiador. Ninguém sabia como fazer, e isso era muito bom, pois não tínhamos nenhuma amarra acadêmica ou ideológica. Tudo valia, tudo era permitido, e era possível sua realização. O processo de produção do documentário me levou a algumas escolhas: eu não queria montar uma equipe com muitas pessoas, mas buscar a intimidade que tinha na adolescência, a de conversar sobre arte ou qualquer outra coisa. Pela experiência de outros documentários, sabia que se conseguisse ir minimamente armado, com pouco equipamento, teria uma grande liberdade. Só assim conseguiria me aprofundar na intimidade das memórias dos entrevistados. Um set vazio deixaria o ambiente mais dócil, em vez dos constrangedores e interrogadores canhões de luz, cabos, boom, equipe e equipamentos. Em sua entrevista, Fernando Peres fala que “Pernambuco é um lugar cheio de artistas e produtores espalhados por tudo que é lado”. Concordo, e é justamente por isso que não podia filmar muitos artistas. De nenhuma forma queria filmar os artistas da classe alta, e sim os artistas que de certa forma têm uma ligação com o social ou que fizeram parte de algum movimento social-artístico. Sabia que essas pessoas são de gerações diferentes e que seria inevitável que elas falassem de outros artistas e de movimentos de importância para as anteriores e posteriores gerações. Realizar esse documentário foi como sobrevoar a herança cultural construída pelas artes plásticas do Estado durante o século XX. Jura Capela

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Jura Capela Isa do Amparo Frame do filme Paran達-Puca Fernando Peres e sua mobilete roubada Frame do filme Paran達-Puca Jos辿 Claudio Frame do filme Paran達-Puca

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prêmio para produção de videodocumentário sobre artes visuais em pernambuco

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prêmio para produção de videodocumentário sobre artes visuais em pernambuco

Paranã Puca – onde o mar se arrebenta foi executado em parte como atendimento ao projeto do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Porém, no processo, esse projeto inicial de um vídeo de 20 minutos, que constitui o panorama das artes visuais no Estado de Pernambuco, amplificou-se e se tornou um longa-metragem de 65 minutos, abarcando o período dos anos 1930 até os dias atuais, e foi premiado em um festival internacional do Rio de Janeiro. O filme apresenta, em clima de informalidade, depoimentos de alguns artistas, ateliês, produtores e curadores, que rememoram episódios marcantes da nossa vida cultural. Inicialmente morador de Olinda, Jura deve o despertar de sua sensibilidade artística aos numerosos ateliês e artistas que habitam a cidade, e o filme é permeado por esta sensação de nostalgia de alguém que se sente à vontade e entre amigos. Em seus aspectos técnicos, o realizador optou por um corpo a corpo com seus entrevistados, utilizando-se do mínimo de equipamentos possível, inserindo-se dentro de uma tendência estabelecida por diretores como Eduardo Coutinho. Na montagem do filme, ele lançou mão de footage, realçando a informalidade adotada pelo rastreamento de imagens do YouTube, de filmes de outros realizadores, sequenciados de modo não linear e fragmentariamente, dinamizando a narrativa e tornando a experiência de assisti-lo bastante lúdica. A apresentação na mostra se deu dentro do contexto de um espaço interativo, pensado especificamente como um local ao mesmo tempo pessoal – pleno de obras, livros, troféus do próprio Jura – e aberto para o diálogo com os amigos, quase como uma extensão do que se vê na tela em seu clima pontuado de informalidade, o que aponta para a intenção de socializar por parte do autor. Vários artistas importantes para a sua formação, direta ou indiretamente, cederam suas peças para compor o ambiente, e o visitante pôde sentir-se à vontade para assistir a projeção em um colchão com fotos e imagens dos participantes do filme. Maria do Carmo Nino 166


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marcos costa e carlos mascarenhas

Marcos Costa (São Paulo, SP, 1966) Vive e trabalha no Recife. Graduado em Licenciatura Educação Artística/Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2003). Realizou mostras individuais na Galeria Amparo 60 (Recife, 2008) e na Fundação Joaquim Nabuco (Recife, 2004). Recebeu os prêmios Tokyo Video Festival (Tóquio, 2006) e Bandepe Valor Pernambucano Arte e Cultura (Recife, 2002). Atualmente, chefia o Setor de Imagem do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (Recife). Dos filmes que dirigiu, destacam-se Manta de Rio (2006) e Vende-se Este Rio (2005). Carlos Mascarenhas (Crato, CE, 1966) Vive e trabalha no Recife. Com formação em psicologia, atua como psicanalista a partir da proposição que vem concebendo como “clínica da hospitalidade”. É doutor em teoria literária pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007), compositor de canções e, nas artes plásticas, vem desenvolvendo – em parceria com o artista Marcos Costa – projetos calcados na “poética da hospitalidade”.


prêmio para projetos de pesquisa e produção

libreto da ópera crua As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior, que nega os deuses e ergue as rochas... Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz. albert camus, em O Mito de Sísifo

Pelo viés da “poética da hospitalidade” é que, às vezes, se escuta um som que vem de alhures... desembocando pelas ruas em tom de apelo, na voz de alguém ofertando produtos e serviços vários. Hospitalidade de cantos e lugares por áridas vozes que transitam sob o refletor do sol, atravessando ruas e olhares, talvez nem tão atentos, assaltados por outras “urgências” de uma cidade que, não por acaso, também estampa, na própria carnação do nome, um nome de pedra... Sabe-se que a causa central que levou Sísifo a se tornar o eterno operário dos deuses infernais foi não aceitar a morte e afirmar sua paixão pela alegria de viver. Conta-se, aliás, que por duas vezes conseguiu enganar a morte. Numa delas, chegou a acorrentá-la, inclusive. Tal provocação aos deuses resultou na sua condenação e no castigo de se submeter ao trabalho infindável de carregar uma pedra ao topo da montanha, de onde ela desabaria rolando de volta à base, obrigando-o a trazê-la novamente ao cume, e toda a operação recomeçar novamente. Claude Lévi-Strauss não cansou de reconhecer a presença dos mitos subsistindo muito vivamente na pele da vida moderna. A Ópera Crua encena o drama da voz cotidiana suando e soando entre o canto e a fala: cantares nômades da sobrevivência, ou melhor, no sol a sol da subvivência. Donde é possível pensar numa paisagem musical em que esses cantares são como pedras incessantes a rolar das ladeiras da voz, como se estivessem a indagar “Será que alguém está aí, ouvindo e vendo o que há, através dessa geografia humana, da América Indígena à América Indigente?”. Tal como em Bergson, Ópera Crua tem a intuição como método, pondo em ação o verouvir da escuta pelas ruas da cidade ReSísifa para, 169


prêmio para projetos de pesquisa e produção

precisamente aí, reconhecer uma história coletiva que transcorre inscrevendo-se sob os passos de quem canta em movimento. Como não entrever, nesse espaço movediço do cantar, sem lugar, quase feito só de tempo, cada passo, à revelia de qualquer descaso e ausência de hospitalidade, despontando com todo o vigor na encenação diária do que poderíamos chamar o Teatro da Necessidade? Outrora, e com saudade, já lamentara o pernambucaníssimo Senhor de Apipucos, Gilberto Freyre, que o Recife tornou-se célebre no Brasil inteiro pelos seus pregões [...] Outros pregões recifenses desapareceram porque a venda dos doces ou dos artigos que eles anunciam tornou-se melancolicamente silenciosa na capital de Pernambuco. Abafados pelas buzinas dos automóveis e dos alto-falantes: duas pragas terríveis. Dois inimigos de morte dos pregões dos velhos dias coloniais Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife, 1934.

O caráter híbrido dessa Ópera-instalação, sisifamente, também ergue e lança uma pedra conceitual inédita no plano da arte contemporânea, na ambição de demonstrar um instante ao menos de superação que, enfim, dê a-Deus aos impasses e aporias, ainda ferrenhamente insistentes, em meio às nostalgias e aos messianismos da América Indigente. Mas, em suma, dito isso, ouso não poder deixar de sublinhar que a Ópera Crua, não obstante as motivações imaginárias evocadas, é, sobretudo, uma operação intertransfônica implicadamente tecida e voltada ao plano simbólico da linguagem. Ópera-instalação esta cuja operação incide mesmo bem no coração dos trópicos medievais, feudais, sentimentais, etc., etc. e etc. 1º ato: Chegada dos ambulantes A rua se adentra pelo teatro através dos ambulantes entoando seus pregões, dialogando com a música erudita, que já vem sendo executada pelos músicos que os aguardam solenemente no palco. Os músicos sinfônicos, portanto, também são personagens que, ao contracenarem com os ambulantes, compõem a expressão 170


amalgamada do encontro que encena e materializa a fusão e interação entre o erudito e o popular. 2º ato: Entrada da cantora lírica Momento em que o fio da canção popular, pela voz da cantora lírica, teatraliza musicalmente o drama e, ao mesmo tempo, prepara o tecido em que se entrelaçam todas as vozes em atmosfera polifônica. 3º ato: A maçã e o riso O riso da Consu(maçã)o. Carlos Mascarenhas

ista da montagem V de Ópera-instalação no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

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Marcos Costa e Carlos Mascarenhas Ă“pera Crua , 2011 Frames do video, 12'36''

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

Marcos Costa e Carlos Mascarenhas se movem entre os espaços do que se convenciona denominar cultura popular e erudita – colocando a sonoridade das ruas em contato direto com a arquitetura e a formalidade do teatro, da ópera. Os artistas expressam interesse em aproximar campos que historicamente se constituíram de modo mutuamente excludente, percebendo, nesse processo de formação, homologias com a estrutura que se impôs no processo colonizatório: subjugando as populações locais ao colonizador europeu, condenando o popular a uma vivência inferiorizada. Conforme escrevem no Libreto da Ópera Crua, o interesse do trabalho é reconhecer o “drama da voz cotidiana suando e soando entre o canto e a fala: cantares nômades da sobrevivência, ou melhor, no sol a sol da subvivência” para, então, encená-lo. A escolha da formalização operística pretende construir um gesto de grandeza e contundência em que se recupera a vocação de importância do que estaria recalcado e incorretamente representado nas relações de força e poder da sociedade em suas formações culturais oficiais. Haveria aí um drama que poderia ser encenado quase como missão, a se cumprir o messianismo de um mito de origem que inverteria o desastre que nos levou da “América Indígena à América Indigente”. Que isso se processe através do cinema, das convenções da canção popular ou do ambiente operístico – com o formato final de uma instalação de arte contemporânea – serve, sobretudo, para reforçar a indicação da dupla de artistas de que qualquer fronteira entre esses universos deve ser rompida, dissolvida: os processos importantes e significativos da arte e da cultura se dão em fluxo, de maneira anticonvencional, horizontalizando o corpo de colaboradores no ambiente do reconhecimento mútuo das singularidades e dos percursos. Assim, produz-se um ambiente onde o “espaço movediço do cantar” conversa diretamente com os “músicos sinfônicos”, os cantos popular e lírico estabelecem trocas: instaura-se “uma operação intertransfônica implicadamente tecida e voltada ao plano simbólico da linguagem. Ópera-instalação […]”. É inegável a importância do projeto, em seu esforço de religação de universos, construção de outros grupos e conjuntos de produção, em que os participantes envolvidos no processo têm resgatadas 174


as singularidades de suas ações culturais. Sobretudo, a Ópera Crua não nos deixa esquecer que não se trata de lados iguais, subitamente trazidos para um limiar de equilíbrio e convívio estável: para os artistas, parece haver um desígnio (seria este o Teatro de Necessidade que propõem?) no sentido de restaurar, recuperar vocações anteriores, reprimidas. Seria importante, hoje, advogar e agir na direção das misturas de universos culturais, na fuga de purezas perigosamente propagadoras de totalitarismos. Percebe-se, na Ópera Crua, a sugestão de uma costura cuidadosa e uma aproximação de vertentes que correm em diversas direções, encenadas em reforço mútuo, agregando valor às estratégias de combinação e contato de diferentes meios e repertórios. Há, nesse debate, também a promessa da invenção de outro papel para o artista e para o intelectual contemporâneos.

Ricardo Basbaum

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maria eduarda belém

Maria Eduarda Belém (Recife, PE, 1972) Vive e trabalha no Recife. Desenvolve pesquisas e trabalhos em artes plásticas, atualmente com ênfase na relação entre memória e arquitetura. É mestranda em design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, Recife). Entre os seus trabalhos, destacam-se as concepções da exposição coletiva de arte sonora E.C.O, realizada na Estação Cultural Senador José Ermírio de Moraes (Jaboatão dos Guararapes, PE, 2011), e A Outra Vertigem (Prêmio Curatorial Amplificadores), no Museu Murillo La Greca (Recife, 2009).


prêmio para projetos de pesquisa e produção

luisa duarte entrevista maria eduarda belém luisa duarte  Como foi o processo de pesquisa para o trabalho que hoje vemos no 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco? maria eduarda belém  Interessava-nos principalmente essa iconografia dos séculos 18 e 19, sobre a qual não tínhamos domínio e que queríamos entender. Afinal, quantas leituras estavam perdidas para nós e para os outros, pairando sobre a cidade? Mensagens emitidas para gente que não poderia decodificá-las. Além do mapeamento e registro fotográfico dessa iconografia arquitetônica, ao longo de dois anos de pesquisa e desenvolvimento de trabalho, foram realizadas inúmeras conversas formais e informais com arquitetos, artistas e pessoas em geral, além de leituras guiadas tanto pelo método como pela intuição e que compuseram o repertório que determinou a forma e o conteúdo do trabalho apresentado no Salão. ld  Como você descreveria o trabalho decorrente dessa pesquisa? O que ficou na depuração ao longo do tempo e que foi mostrado, enfim, na exposição? meb  Desde o começo, a proposta era realizar um site specific. Estávamos tratando de aspectos da arquitetura da cidade e, para nós, era fundamental, portanto, que o trabalho estabelecesse uma relação real com o local no qual seria exposto. Pensado para acontecer inicialmente no Liceu de Artes e Ofícios e depois na Estação Central da Cidade do Recife, o trabalho sofreu algumas mudanças em função de seu caráter site specific. Quando finalmente fui apresentada ao espaço reservado ao projeto, fiquei superdecepcionada. Não fazia sentido. Mal tinha uma parede. Aliás, era um corredor aberto. Podiam-se construir paredes falsas. Mas de que me adiantava aquilo? Não existia uma referência arquitetônica real que remetesse ao repertório do que fora pesquisado e com a qual pudesse relacionar o trabalho. A essa altura, Nicolás Robbio – parceiro inicial no projeto – não mais estava envolvido no processo. Era, pois, um recomeço – e, para o trabalho, do zero. 177


Como trazer toda aquela carga simbólica ali pra dentro? Como contextualizá-la, ressignificá-la em uma parede branca e lisa? Surgiu, então, a ideia de me desapegar do contexto mais racional e catalogador do trabalho. Num determinado ponto entre as pesquisas, havia feito uma descoberta que havia me sensibilizado particularmente. Para além da iconografia presente nas casas, havia ainda inscrições simbólicas em seu entorno, como, por exemplo, as centenas de acácias encontradas em casas e calçadas de toda a cidade. Descobri, em conversa com uma amiga, por acaso – e depois me certifiquei com pesquisa –, que a existência de uma acácia no jardim de uma casa ou na calçada à sua frente sinalizava que o seu proprietário era maçom. Na maçonaria, além de ser o símbolo da Grande Iniciação, a acácia representa a pureza e a imortalidade, além de significar a ressurreição na tradição de árabes e hebreus.

páginas 178 a 181 Vistas da montagem de Amarelo – Inscrição Ativa no Museu do Estado de Pernambuco.

Resgatei, então, o repertório da minha memória afetiva. Entendi por completo a razão pela qual minha mãe, neta de maçons, cobria, no ano-novo, a mesa da sala de casa com cachos amarelos de acácia, que, apesar de já murchos no dia seguinte, traziam, segundo ela, boa sorte. 178


Fechei minha gestalt. O Salão vai finalmente acontecer no fim do ano, quando todas as acácias da cidade florescem e trazem consigo os sinais de renovação. Resolvi, então, trazê-las para dentro do museu, para aquela parede branca, e, a partir das linhas por elas determinadas, desenhar os símbolos que, do lado de fora, por toda a cidade, poderiam ali, naquela parede, por suas flores ser tocados e, a partir dessa “ativação”, renascer. ld  Que relações entre a cidade atual e aquela da época dessas construções são traçadas pelo trabalho? meb   A relação é estabelecida pela reinscrição desses símbolos hoje, num contexto diferente, com um propósito diverso. Num primeiro momento, eles podem proporcionar uma leitura regida pelo acaso – composta, em parte, pela minha eleição e disposição instintiva dos elementos e, em parte, pela capacidade particular de cada um de decodificar um ou outro símbolo conforme repertório próprio. Mas também há uma intenção de esvaziamento desses significantes, de transformar tais símbolos em forma pura, para que então eles possam vir a, magicamente, renascer, plenos de outros significados. 179




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o encontro de tempos numa flor de acácia Não é possível escrever sobre Amarelo – Inscrição Ativa, trabalho de Maria Eduarda Belém, sem mencionar o processo de pesquisa que o precedeu. Tendo apresentado ao 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco o projeto Arquitetura do Símbolo na Cidade do Recife, em dupla com o artista Nicolás Robbio, a artista finalizou o processo de maneira individual, mas sabendo, a um só tempo, manter as bases da pesquisa e formular novos e incontornáveis caminhos para o trabalho final, diante do contexto em que se encontrava. O projeto inicial tinha como objetivo pesquisar uma iconografia presente em edificações ainda existentes da cidade do Recife, mas construídas entre os séculos 18 e 19. Esse trabalho foi realizado através de fotografias, mapeamento, conversas com arquitetos e representantes da sociedade civil que convivem com essas edificações e seus símbolos, mas que, na maior parte das vezes, ignoram seus significados ou mesmo sua existência devido à ausência de preservação da memória – triste marca de nossa cultura –, bem como à pressa com que o homem citadino vive o seu dia a dia, incapaz de parar e olhar com atenção para aquilo que está à sua volta diariamente. Assim, estavam postas em jogo a recuperação de uma memória e a relação desses símbolos, de toda uma iconografia passada, com os dias de hoje. Como é possível ativar, dar vida, atualizar algo vivo, mas que nos parece morto? Para edificar tal premissa, a dupla levava em conta ter como espaço para a mostra final o Liceu de Artes e Ofícios da Cidade do Recife, cuja arquitetura carregava em si mesma os índices da pesquisa. Dessa forma, o lugar de exposição seria um campo ativo, abrigo de intervenções feitas diretamente no espaço. Após o longo intervalo entre a pesquisa e a mudança do local destinado à mostra – tendo sido realizada, por fim, no Museu do Estado de Pernambuco, cujas paredes brancas destinadas ao trabalho em nada tinham a ver com o contexto anterior –, a dupla se desfez, e o trabalho final precisou ser repensado do início. Amarelo – Inscrição Ativa é uma projeção em vídeo na qual vemos uma árvore repleta de acácias amarelas sob um céu azul. Na parede 182


sobre a qual a imagem é projetada, foram feitos desenhos, todos muito delicados, de símbolos tais como aqueles encontrados ao longo da pesquisa do projeto. Cada desenho teve o seu início deflagrado a partir do desenho dado pela forma da acácia projetada, em uma relação que mescla a precisão e a racionalidade dos símbolos arquitetônicos com a espontaneidade e a organicidade de cada flor. Assim, a artista traz, de maneira metafórica, para dentro do ambiente limpo e asséptico do museu, a vida encontrada ao ar livre pelas ruas da cidade e, junto com elas, os símbolos da Recife antiga.

etalhe de Amarelo D – Inscrição Ativa no Museu do Estado de Pernambuco.

Nessa operação, Maria Eduarda Belém ativa os símbolos destinados à desaparição por conta da amnésia coletiva que acomete a vida contemporânea diante de sua iconografia pública do passado, bem como dá para essa mesma iconografia não um lugar de preservação cristalizada, mas, sim, uma nova configuração, uma segunda pele que pode fazer uso dessas estruturas para o tempo de agora. Amarelo – Inscrição Ativa é realizada no interior do museu, mas está atravessada pelo signo daquilo que se renova e floresce, a cada ano, todos os anos, nas ruas da cidade. Falando assim, simultaneamente, de passado, presente e daquilo que está por vir. Luisa Duarte 183


matheus rocha pitta

Matheus Rocha Pitta (Tiradentes, MG, 1980) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Estudou história na UFF (2001) e filosofia na Uerj (2005). Recebeu os prêmios Itamaraty de Arte Contemporânea (1º lugar de Fotografia, Brasília, 2011); Illy Sustain Art Prize (Madri, 2008); e a Bolsa Iberê Camargo (2007), por meio da qual realizou residência na Universidade do Texas (EUA, 2007). De suas participações em exposições coletivas, destacam-se Rendez-vous (Institut d’Art Contemporain de Lyon, França, 2011), 29ª Bienal de São Paulo (2010) e Trienal Poli/Gráfica de San Juan (Porto Rico, 2012). Realizou mostras individuais na Sprovieri (Londres, 2011), no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro, 2012) e na Novembro Arte Contemporânea (Rio de Janeiro, 2006), entre outras.


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O partido conceitual do projeto Drive Thru # 2 é explorar o desmanche de carros como um ato escultórico e a duplicação como ato econômico. Quando ganhei a bolsa do Salão, estava bastante claro esse propósito. Desde 2007, vinha pesquisando imagens de apreensão policial e os circuitos econômicos marginais que os engendram. O primeiro resultado dessa pesquisa foi o projeto Drive Thru # 1, no qual um carro “apreendia” o território. # 2 aqui não é somente índice de continuação, mas também da própria questão do duplo: dois carros são desmanchados e superpostos, atravessando (driving thru) um ao outro. Uma série de escolhas se colocaram. Qual carro? Eu queria um carro que trouxesse algum significado (a princípio, pensei no Fiat Uno, pra ter dois unos). Cheguei ao Escort, por ser o típico carro de playboy da década de 1980, ou, pelo menos, essa era minha percepção da infância. Outro fato de importância capital é que ainda existem Escorts nas ruas que por enquanto não viraram vintage – como o Fusca ou o Chevette, que se tornaram símbolos da década de 1970, da qual uma classe média jovem se apropria como se estivessem fora de um circuito de consumo atual. O vintage é a forma mais segura de consumir o passado. A segunda questão era a cor. Quaisquer que fossem as cores escolhidas, trariam uma significação alheia ao meu campo de trabalho – como, por exemplo, preto e branco poderiam conotar uma questão racial. Prata e dourado foram uma alternativa fora da questão específica da cor, pois são metais que, no máximo, denotam valor. Por uma coincidência feliz, consegui os dois carros com o mesmo dono, que encontrei através de um anúncio gratuito na internet. Começamos a desmontá-los em uma oficina na Praça da Bandeira, em janeiro de 2009. Nossa “linha de desmanche” funcionava da seguinte maneira: primeiro filmava-se a retirada das peças, que, em seguida, eram fotografadas (para o livro Stereodemo) e, finalmente, eram “emparelhadas” (postas em par) com fita adesiva. Em menos de uma semana, o material bruto estava pronto. 185


Matheus Rocha Pitta Spread do livro Stereodemo , 2009 62 fotografias montadas, laminadas e encadernadas, 30 x 45 x 6 cm

É interessante escrever sobre o trabalho quase três anos depois. Percebo que a maior parte das questões me veio depois de executado o trabalho e o quanto ele me deu para processos futuros. Foi a primeira vez que fiz um livro de artista: Stereodemo é o catálogo das peças retiradas dos carros. É a minha primeira aproximação mais direta ao universo da publicidade, mais especificamente da fotografia de produto. É também uma investigação sobre a relação de mercadorias com o nosso corpo (um paralelo entre as peças de um carro e órgãos do corpo, o carro como uma prótese, etc.), o que abriu um campo enorme de trabalho para mim. Matheus Rocha Pitta

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Drive thru #2 , 2009 Vídeo HDV, 17'17''

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Matheus Rocha Pitta Spread do livro Stereodemo , 2009 62 fotografias montadas, laminadas e encadernadas, 30 x 45 x 6 cm

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desmanche1 Matheus Rocha Pitta vem construindo, ao longo dos últimos anos, uma pesquisa sólida, amalgamada de trabalho em trabalho, que investiga de maneira crítica as relações de troca (compra e venda) características do capital. Sem se tornar narrativo ou panfletário, e ainda assim tocando questões caras à disciplina, como política, economia, sociologia e filosofia, sua obra é um conjunto de operações que pensa como a arte entra nesse circuito de trocas e, para além disso, como – quem sabe? – a arte mesma pode deflagrar quebras e torções, mesmo que sutis, nesse circuito. Em Drive Thru # 2, vê-se a projeção de um vídeo que mostra o desmanche de dois carros Escort, produzidos na década de 1980, e a sobreposição de um no outro. As peças internas dos automóveis são retiradas – tal e qual uma operação de desmanche – para que sejam vendidas separadamente em um mercado paralelo. O registro dessa cirurgia – podemos, sim, fazer um paralelo com o corpo – nada tem de meramente documental, sendo intencionalmente borrado por um modo de captar e editar as imagens que amplifica o sentido da troca e do duplo. Dois homens trabalham nessa operação, e o que vemos são rastros desse movimento estritamente físico por um lado e generosamente simbólico por outro. Além do vídeo, faz parte de Drive Thru # 2 um livro de artista – Stereodemo –, no qual estão publicadas imagens feitas pelo próprio artista de peças dos dois carros, as peças “gêmeas” sempre emparelhadas. Trata-se de uma espécie de catálogo de vendas de natureza publicitária, mas que transmite o mesmo grau de ruído das imagens em movimento do vídeo, ficando entre o apontamento para o objeto comercial e uma resistência quando mostra que resulta no oposto da permeabilidade do mundo da mercadoria pura e simples. 1  Acepções – Dicionário Houaiss. Desmanche s.m., 1. Ato ou efeito de desmontar, de desmantelar mecanismos, engenhos ou máquinas; 1.1. Derivação: frequentemente, desmonte de carros para fins ilícitos. Ex.: oficina de desmanche.

Notemos as escolhas que permeiam o trabalho. Não se trata de qualquer carro, mas, sim, do Escort, carro usado por playboys nos anos 1980: os anos dos yuppies, a década na qual é empreendida em larga escala a ideologia neoliberal. Quando afirmamos que o trabalho de Rocha Pitta se volta de maneira reincidente para questões como a circulação de mercadorias no mundo do capital, e também para as suas consequências no registro das trocas humanas 190


e na própria arte, torna-se significativa a escolha de um carro símbolo de uma época na qual triunfou justamente a ideologia que deixa na mão do mercado grande parte da regulação da vida em sociedade. Trinta anos depois, estamos vendo o ápice desse modo de operar e suas consequências. É o Estado quem paga a conta nesse momento. O duplo diz respeito àquilo que multiplica, que reproduz, ou seja, à premissa de uma economia baseada na multiplicação incessante. O ato de retirar o que está dentro dos carros, formar pares e fotografar as peças juntas faz com que possamos pensar que uma aniquila a utilidade da outra, em uma conta na qual a soma, ao final, dá zero.

ista da montagem V do livro Stereodemo no Museu do Estado de Pernambuco.

2  Ver texto Apontamentos para uma Nova Economia Política, de Moacir dos Anjos, sobre a obra de Matheus Rocha Pitta.

Fazer essa operação, decidir mostrar o ato do desmanche e toda a sua fisicalidade, retirar as peças, expor as mesmas em um catálogo, deixar a carcaça do carro (somente a vitrine) é também o início de uma investigação sobre as relações das mercadorias com o corpo humano que ressoa até hoje em sua obra. Transformar aquilo que é símbolo maior do consumo, desfazê-lo literalmente e trazê-lo de volta para o mundo como uma mercadoria, um trabalho de arte – mas agora atravessado por uma crítica, esta nunca literal –, doandolhe uma singularidade antes impensável, tudo isso faz parte de apontamentos para uma nova economia política2, que desmantela certos mecanismos e engendra outros, encontrados na obra de Matheus Rocha Pitta. Luisa Duarte 191


pedro david

Pedro David (Santos Dumont, MG, 1977) Vive e trabalha em Belo Horizonte. Graduado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/MG, 2011), cursou o Programa de Pós-graduação em Artes Plásticas e Contemporaneidade na Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG, 2002). Publicou, com os fotógrafos João Castilho e Pedro Motta, o livro Paisagem Submersa (Cosac Naify, 2008). De suas participações em exposições coletivas, destacam-se as realizadas no Ex-Teresa Arte Actual (México D.F., 2011), Noorderlicht Photogallery (Groningen, Holanda, 2008), na 5ª Bienal de Fotografia e Artes Visuais de Liége (Mammac – Liége, Bélgica, 2006). Realizou mostras individuais no Museu da Imagem e do Som (MIS, São Paulo, 2011), no Centro Cultural São Francisco (João Pessoa, 2011), no Centro Municipal de Fotografía de Montevideo (CDFM, Uruguai, 2008) e no Palácio das Artes (Belo Horizonte, 2008), dentre outras. Recebeu os seguintes prêmios: Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger (2011), Prêmio União Latina – Martín Chambi de Fotografia (2010) e Prêmio Porto Seguro Brasil de Fotografia (2005).


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

homem pedra Sendo que a importância de uma coisa ou de um ser não é tirada pelo tamanho ou volume do ser, mas pela permanência do ser no lugar. Pela Primazia. Por esse viés do primordial é possível dizer então que a pedra é mais importante que o homem. manoel de barros. A Rã – Memórias Inventadas – A Infância

Homem Pedra é o resultado de uma busca sobre resquícios de uma relação harmoniosa entre o homem e seu meio ambiente. São fotografias realizadas a partir da observação de situações em que o homem, ainda numa fase pré-industrial, negocia com a natureza o seu lugar e as suas atividades. No ambiente rural, esses resquícios são mais presentes que nos centros urbanos. E, em regiões onde a natureza parece ser mais hostil, esses testemunhos de tempos idos, ou romantizados, podem se mostrar ainda mais intensos e notáveis. A relação do homem com a natureza e com seu meio ambiente é um dos principais fios condutores de minha abordagem em trabalhos como Rota: Raiz e o trabalho coletivo Paisagem Submersa, ambos realizados no sertão mineiro. Homem Pedra é um projeto sem fim, que teve início durante uma viagem solitária pelo sertão pernambucano em 2008. Foi contemplado, no mesmo ano, com uma das bolsas de residência artística concedidas pelo 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, que possibilitou uma nova viagem à região em 2009. Essa segunda viagem, também solitária, foi realizada de carro, ao longo de dois meses, por caminhos tortuosos e pouco objetivos, traçados pelos interiores de Minas Gerais, da Bahia, de Pernambuco e da Paraíba. Para a exposição do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, editei, junto com imagens da série Homem Pedra, algumas fotografias de outra série realizada nas mesmas viagens, que recebeu o título Impureza. São 193


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fotografias que anunciam uma outra postura do homem perante a natureza. Indicações de mudanças de comportamento, de materiais. Uma relação distanciada que parece ter se instalado gradativamente a partir do desenvolvimento econômico. Também presente na exposição está a instalação audiovisual Birutas. Uma experimentação sobre outros suportes para a fotografia, onde sequências de fotografias digitais captam, em stop motion, o tremular de restos de sacolas plásticas, que se fundem a retratos de pessoas que encontrei durante a viagem. Pessoas se fundem ao lixo, enquanto suas falas, lendas e confissões sobre perdas como a memória para histórias, trabalhos extintos e cantos de pastoreio são misturadas a um crepitar frenético. O fogo apaga tudo. Pedro David Pedro David Birutas , 2009-2011 Instalação audiovisual, pedras e móvel de madeira, 4'05''

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Fonte , 2008-2009 Da série Homem Pedra Fotografia. Impressão por pigmentos minerais sobre papel de algodão, 100 x 100 cm Pirâmide , 2009 Da série Impureza Fotografia. Impressão por pigmentos minerais sobre papel de algodão, 100 x 100 cm

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Pedro David Espantalho , 20082009 Da série Homem Pedra Fotografia. Impressão por pigmentos minerais sobre papel de algodão, 100 x 100 cm

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Árvore , 2009 Da série Impurezas Fotografia. Impressão por pigmentos minerais sobre papel de algodão, 100 x 100 cm

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pedro david: retratos sem tempo ou educação pela pedra A possibilidade oferecida pelo Salão de Artes Plásticas de Pernambuco de uma obra-pesquisa deve ser sublinhada e destacada. Estimulou-se, assim, o mergulho no experimental, no não sabido, no risco que abre novas fronteiras poéticas e existenciais. Pedro David assumiu esse compromisso. As séries Homem Pedra e Impureza nasceram aí. Sertão brasileiro, dois meses de viagem percorridos entre Minas Gerais, Bahia e Paraíba. A câmera vai registrando a atmosfera inóspita com a qual o homem se depara, se mistura, transformando-se nela e com ela se reinventando. O tempo dessas imagens é dilatado, devastado, imemorial. Parece que nada convida ao repouso e nada sugere movimento. As cores, através da luz, expulsam os contornos, o volume, o abrigo. Esse registro segue o impulso de Euclides da Cunha e de João Cabral: Educação pela Pedra. Pedra que guarda água, que se enraíza no solo seco, que se mistura aos galhos, aos cactos, ao plástico. Mundo-pedra. Contraditoriamente – e esta é a própria condição da obra –, há nessa paisagem sem-tempo uma abertura ao tornar-se outro, à inscrição de uma possibilidade insuspeitada. É como se, no sertão, o acontecimento surgisse descolado da ideia de novidade e se desse junto ao eterno retorno do mesmo – a angústia, a ruína... a morte. É trágico, mas é de dentro da tragédia que experienciamos a diferença, a experiência do que se vive por si só e que ninguém pode viver por nós. Esses registros do sertão nos mostram um Brasil arqueológico, originário, sem glamour, nada cordial, desprovido de sensualidade, atravessado pela necessidade de ser, pelo singular. As fotografias da série Impureza revelam uma vontade de intervir sem a presença da História. O que é criado, o artifício, o mundo, veio a ser por conta própria. Não traz memória nem projeta uma esperança. É a própria constituição do estranho, o estranhamento feito coisa, escultura, pessoa, flor. Algo que não está em casa, que não pertence ao ambiente, não é familiar, mas que marca um lugar, constrói uma interferência que abre uma fenda no sem-tempo. 198


O registro humano aparece sempre em isolamento, solitário, como se fora um cacto ou uma pedra. Seria interessante compará-lo às imagens de Robert Frank com os americanos, onde a pobreza não retirava uma ansiedade existencial, um querer minimamente político. Aqui, nesses sertanejos, parece que a Geografia é mais contundente que a História, a terra mais veemente que o mundo, a morte mais potente que a vida. Outra vez: são trágicos sem serem propriamente tristes, pois é como se o sentimento estivesse em suspenso, mineralizado, homens-pedra.

ista da montagem V de Homem Pedra no Museu do Estado de Pernambuco

No vídeo Biruta, há uma simbiose entre a expressão impessoal das fisionomias e a vibração quase emotiva do plástico. Plástico que é flor e lixo, vida e morte, lirismo e impureza. Há nele como que uma fusão das duas séries, como se o homem-pedra se alimentasse com o resíduo poluente e a “impureza” se espiritualizasse diante da secura ardente do sertão. Pedro David reuniu, nessas séries de fotografias e vídeo, uma parte significativa de nossa complexidade cultural, revelando um país profundo que poucas vezes se faz visível. Nossa riqueza vem junto com a nossa miséria na medida em que combinamos tempos e espaços heterogêneos que vivem em conflito e que não podem ser reduzidos a uma contemporaneidade banal. O sem-tempo dessas fotos, essa expressão do anacrônico que vem da pedra e do plástico, serve como registro de um território avesso à aceleração e mobilizado pela necessidade anterior à História. “O sertanejo é um forte.” Luiz Camillo Osorio 199


sofia borges

Sofia Dellatorre Borges (Ribeirão Preto, SP, 1984) Vive e trabalha em São Paulo e Ibiúna. Graduada em artes plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Dentre suas participações em exposições coletivas, destacam-se A Nova Fotografia Brasileira no Sesc Belenzinho (São Paulo, 2011), Eu Me Desdobro em Muitos no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro, 2011) e Rumos Artes Visuais 2008/2009 no Instituto Itaú Cultural (São Paulo, 2009). Realizou exposições individuais na galeria Artur Fidalgo (Rio de Janeiro, 2011), na Galeria Virgílio (São Paulo, 2009 e 2011), no Centro Cultural São Paulo (São Paulo, 2009), entre outros. Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Prêmio Destaque da Bolsa Iberê Camargo (2009) e o Prêmio Porto Seguro Fotografia (2009). Integrou a edição 2011 do Clube de Colecionadores de Fotografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo.


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O projeto desenvolvido para esta exposição teve como ponto de partida a vontade de criar um corpo de trabalhos que investigasse acerca da construção da paisagem e a museificação do objeto. Para isso, houve uma conjugação entre trabalhos que fizeram parte das minhas duas últimas individuais: as exposições Pré-História (2011) e Estudo da Paisagem (2011); bem como imagens feitas entre as décadas de 1930 e 1950, retiradas do acervo de imagens do Museu de História Natural de Nova York1 que registravam a construção dos dioramas desse museu. Os mesmos dioramas que em 2010 fotografei para criar a série Estudo da Paisagem. Constituída por vinte fotografias de paisagem, toda a série Estudo da Paisagem é formada por recortes fotográficos tirados dos fundos dos dioramas do museu. São fotos de cenários pintados que, por intermédio da fotografia, retornam parcial (e ficticiamente) a uma condição de lugar, de isto foi. Na exposição de mesmo nome, que fiz em junho de 2011 na Galeria Artur Fidalgo (Rio de Janeiro), foram mostradas 12 dessas fotografias em cor, e o vínculo entre os trabalhos se deu pela reincidência de um mesmo assunto (a coleção de paisagens). Já na exposição Pré-História, realizada em abril do mesmo ano na Galeria Virgílio (São Paulo), a intenção era a de investigar a respeito das formas de representação e dos modos de construção do retrato. Contudo, o resultado foi a conjugação de imagens de naturezas distintas: algumas eram fotos apropriadas; outras, reinterpretações fotográficas de imagens existentes; e, outras, fotografias comuns. A relação entre figura e fundo e a condição de “pose” sugerida pelos objetos e sujeitos retratados convergiam a exposição para uma ideia de apresentação; ou de representação da apresentação.

1  As fotos da série Museu de História Natural (abreviadas como M.H.N) foram encontradas no site da Biblioteca de Pesquisa do Museu Americano de História Natural de Nova York.

Assim como em Estudo da Paisagem, também pode-se dizer que PréHistória se tratava de uma coleção. Ainda que por estratégias bastante distintas, ambas as exposições apresentavam uma coleção de imagens de um outro tempo que não o do “instantâneo fotográfico”. Ou, por outro lado, apresentavam uma coleção de objetos (ou assuntos) destituídos de história, sem tempo narrativo através do qual fosse possível inserir as imagens entre um antes e um depois. 201


A relevância de tentar resumir neste texto as orientações conceituais que, para mim, definiram estas últimas duas individuais, se dá porque considero a exposição Tema um prolongamento das questões abordadas nas exposições que a antecederam. A escolha de relacionar em Tema grupos de trabalho distintos surgiu da vontade de propor um assunto que não fosse da ordem do “retrato versus paisagem” ou da “cor versus pb”; mas, sim, da ordem do referente versus superfície ou da apresentação versus representação.

Sofia Borges Pepita , 2011 Jato de tinta s/ papel de algodão, 100 x 160 cm M.H.N #1 , 2011 Jato de tinta s/ papel de algodão, 20 x 25 cm

A pesquisa que resultou em Tema teve, novamente, como ponto de partida, uma reflexão sobre como a conjugação entre trabalhos pode construir um outro assunto que esteja para além da vocação individual de cada imagem. A vontade era a de criar um corpo de trabalhos, de objetos, de imagens cuja síntese colaborasse para uma ausência temática. Ainda que suas conjunções consigam propor diversas direções interpretativas, não há um direcionamento conclusivo. Para isso, selecionei quatro fotografias da série Estudo da Paisagem e duas fotografias de Pré-História (Pepita e Coruja) para dialogar com as imagens encontradas no arquivo do Museu de História Natural. Ao todo, seis imagens de exposições anteriores dialogando sempre 202


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em pares com seis imagens do acervo do museu. Excepcionalmente para essa exposição, as quatro imagens de Estudo da Paisagem foram impressas em preto e branco; e Coruja, originalmente pb, foi produzida em grande formato. Das 12 imagens da exposição, só uma é colorida. Em tons de verde e dourado, a imagem Pepita, não por acaso a maior fotografia da exposição, interrompe uma discreta coerência entre as demais imagens. Pepita, ao mesmo tempo que propõe um desequilíbrio, também sugere, junto com Coruja, um equilíbrio entre assunto e contra-assunto. Sofia Borges Estudo da paisagem #6 , 2010 Jato de tinta s/ papel de algodão, 80 x 120 cm M.H.N #2 , 2011 Jato de tinta s/ papel de algodão, 20 x 25 cm

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Sofia Borges Estudo da paisagem #15 , 2010 Jato de tinta s/ papel de algodão, 80 x 120 cm M.H.N #5 , 2011 Jato de tinta s/ papel de algodão, 20 x 25 cm

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Coruja , 2010 Jato de tinta s/ papel de algodão, 100 x 140 cm

Nota para a série M.H.N. As imagens intituladas M.H.N. são apropriações feitas a partir de fotografias originais que integram o acervo do Museu Americano de História Natural (American Museum of Natural History, Nova Iorque), publicadas no site www.amnh.org.

M.H.N #6 , 2011 Jato de tinta s/ papel de algodão, 20 x 41 cm

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prêmio para projetos de pesquisa e produção

uma narrativa sobre a contranarrativa É notório o debate que toca a produção em arte contemporânea realizada nas últimas duas décadas e o excesso de temas que habita parcela dessa mesma produção. O que gera tal debate? O que isso significa? Significa dizer que o tema seria o momento no qual um trabalho de arte serve como pretexto para ilustrar um assunto que lhe é externo, não dando conta do assunto nele mesmo. Não se trata de formalismo, de dar conta de um tema no corpo da obra, da proposição. Assim, uma temática excessiva seria aquela que transborda para o exterior da obra, fazendo com que tenhamos de ir buscar em outros lugares, que não nela mesma, o caminho para a sua compreensão ou para que tenhamos uma experiência completa do fenômeno. No lastro dessa discussão sobre a presença do tema na arte, chegase a uma discussão muito cara à estética e ao estudo da linguagem, qual seja a diferença essencial entre apresentação e representação. Walter Benjamin foi um grande estudioso dessa questão. Para o filósofo, a linguagem deve apresentar ideias, e não representar ideias – uma filosofia cartesiana, fundada no cogito, representaria ideias. A filosofia contemporânea, por sua vez, irá fazer uma crítica à noção de representação e afirmar que a filosofia deve apresentar as ideias na linguagem, e não através da linguagem. Nessa mudança do através para o na está o ponto essencial que vale também para o estudo da arte. Quando tomamos a linguagem como mero instrumento, ela se torna um veículo para transmitir algo que lhe é externo; quando se faz da linguagem a morada da ideia, ou seja, quando conteúdo sensível e conteúdo inteligível convergem, aí, sim, o que temos é uma apresentação, e não uma representação. Este início serve para que nos aproximemos da mostra de Sofia Borges cujo título é, justamente, Tema. A artista vem, desde o começo de seu percurso, realizando séries de fotografias que esvaziam de sentido aquilo que é fotografado. Não se trata de ausência de assunto, mas, sim, de narrar uma não narrativa, uma não tematização, um contra-assunto, exercendo assim, nas entrelinhas, uma crítica à facilidade com que o meio fotográfico alça o referente ao tema, procurando uma via oposta, a do esvaziamento, da subtração. 206


A série de imagens que forma a exposição é proveniente de dois grupos de trabalhos realizados anteriormente pela artista, um deles chamado Pré-História e o outro, Estudo da Paisagem. A maior parte das imagens é feita por fotografias tiradas pela artista de dioramas presentes no Museu de História Natural de Nova York. Os dioramas são pinturas que simulam uma paisagem tridimensional que, por sua vez, retrata um ambiente inexistente naquele lugar. Tanto forma quanto conteúdo evocam o falso, o que produz ilusão de uma realidade inexistente. Ao fotografar essas pinturas, temos à nossa frente algo que remete à prática pictórica na sua textura, mas não o é de fato, ao mesmo tempo que escapa da fotografia, pois dá à foto um caráter de objeto e pintura, que também não são a sua realidade. Ou seja, sinalizando para todos esses lados, Sofia termina por esvaziar a imagem e nos deixar em suspenso, sem respostas, mas com uma série de indagações.

ista da montagem de V O Variável no Museu do Estado de Pernambuco.

Às fotos dos dioramas, juntam-se imagens do arquivo do museu e outras duas. A primeira delas, que abre a mostra, revela uma pepita de ouro sobre um fundo verde; a última traz uma coruja empalhada. A desconexão das imagens que abrem e fecham o ensaio em relação ao todo é intencional. Ambas são fotos que chamam para perto, seduzem, mas não entregam facilmente o motivo de sua presença ali. Em uma narrativa sobre a contranarrativa, início e fim não poderiam rimar facilmente, tampouco explicar o que surge em meio à travessia... Sofia Borges escolhe fazer uma soma que, ao final, nos entrega algo que sempre nos escapa. Daí nossa incessante volta para essas imagens na esperança de desvendá-las. Mas, quem sabe?, se trate de uma esfinge sem enigma, cujo segredo esteja na superfície mesma da obra. Luisa Duarte

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tatiana devos gentile

Tatiana Devos Gentile (Rio de Janeiro, RJ, 1977) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Estudou cinema na Universidade de Paris VIII (França, 2002). Graduada em dança pela Faculdade Angel Vianna (Rio de Janeiro, 2008). Dirigiu o curtametragem Meu Avô, o Fagote (2011), premiado no Panorama Carioca do Curta Cinema 2011. Recebeu o Prêmio Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura (Funarte, edições 2008, 2009 e 2010), através do qual, em parceria com Laura Tamiana, tem desenvolvido o projeto Retrato: Substantivo Feminino (2009–2011). Realizou alguns trabalhos em videodança, como FF>> (2007), viabilizado pelo Rumos Itaú Cultural Dança (2006–2007), e participou de diversos festivais no Brasil e no exterior.


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

mire veja: você dança pra mim? O senhor [...] Mire veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. joão guimarães rosa em Grande Sertão: Veredas.

No Mire Veja:, convido as pessoas para dançarem pra mim, seja por convite ou por anúncios espalhados pela cidade. Cada pessoa escolhe um som “seu” (para ouvir num walkman) e um lugar “seu” pra dançar pra mim. Os filmes dançados, de aproximadamente 3 minutos (filmados em super-8 ou em câmera digital fotográfica cybershot), são exibidos numa estrutura similar à de uma câmera lambe-lambe, onde uma pessoa por vez pode ver outra dançando pra ela. Durante os 5 meses de residência do 47º Salão, nas cidades do Recife e de Olinda, no período de janeiro a junho de 2009, filmei pessoas que quiseram dançar para mim. Fui construindo o trabalho aos poucos, em parceria com aqueles que aceitavam o meu convite. Nesse processo de construção do trabalho, contei com a generosa orientação de Ricardo Basbaum. Tive algumas danças em resposta ao meu convite e aos anúncios espalhados em vários lugares da cidade. O anúncio dizia: “Procuro pessoas que queiram dançar pra mim no projeto Mire Veja:”. Espalhei os anúncios em lugares como uma banca de xerox, um carrinho de som no Mercado de São José, um bar aqui, outro ali, numa esquina no centro da cidade, num quiosque na praia, nas ladeiras de Olinda, em teatros, escolas, galerias, estúdios de dança, pontos de ônibus, entre outros lugares. Tive algumas respostas. Umas se concretizaram, outras não. Cada pessoa escolheu um lugar “seu” pra dançar. A gente marcava uma hora para o encontro, ela dançava e eu filmava. Assim fui conhecendo a cidade. Lugares como um riacho no Poço da Panela, a sala de uma casa em Candeias, a Praça da Preguiça em Olinda, uma ponte no Recife, a praia, a escadaria do Palácio da Justiça, entre outros. Chamei esses lugares de lugares dançados. Com eles, criamos juntos um “mapeamento dançado” e afetivo das cidades do Recife e de Olinda. Durante o processo, contei com a colaboração de Saulo Uchoa na construção e elaboração do dispositivo de exibição. 209


prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

No último mês da residência, junho de 2009, realizei ações em alguns lugares – escolhidos, na sua maioria, por serem não lugares, lugares de passagem. A ação consistia em, durante duas horas, estar em um determinado lugar da cidade mostrando os filmes dançados numa estrutura similar à de uma câmera lambe-lambe. Uma pessoa por vez poderia ver outra dançando para ela. Como a pessoa tinha dançado para mim nas ações, através do dispositivo de exibição ela agora ia dançar só para outra pessoa. Passar pela rua e esbarrar com um lambe-lambe e um convite. A possibilidade de entrar na câmera lambe-lambe e ver uma pessoa dançando só para você. O privado dentro do público, um momento de suspensão. O que me interessa como artista é o encontro, é essa relação que se estabelece entre, entre o eu e o outro, entre meu eu e a pessoa que dança para mim, entre o filme dançado e aquele que vê e ainda entre mim e a pessoa que vai ver a dança no lambe-lambe. O que acontece nesse espaço? Nesse entre? O Salão estava previsto para acontecer no final de 2009, o que não ocorreu. Nesse tempo de espera, de dois anos, realizei o Mire Veja: em mais dois lugares, ainda em 2009, na cidade de São Paulo, no CorpoInstalação do Sesc Pompeia e, em 2011, na Bienal Sesc de Dança em Santos (SP). Como o trabalho é acumulativo, vou colecionando danças, mostro aqui o resultado da residência no Recife e em Olinda e das ações em São Paulo e Santos. Para a exposição no Salão, além do lambe-lambe com os filmes dançados, apresento também três monitores com imagens das ações e dos lugares dançados vazios. Esses lugares dançados também estarão espalhados em monóculos em alguns pontos da cidade, num ir e vir entre a rua e a galeria. Tatiana Devos Gentile

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créditos concepção  Tatiana Devos Gentile concepção do dispositivo de exibição  Saulo Uchoa e Tatiana Devos Gentile revelação e telecine  Estúdios Mega supervisão de finalização  André Lavaquial dançarinos  Mire Veja: só é possível graças à colaboração das pessoas que dançam pra mim. recife e olinda  [Bolsa de Residência Artística do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, 2009] Helder Vasconcelos, Maria Clara Rodrigues Vasconcelos e Silva, Liliane Rovaris, Nanego Lira, Anais Tinoco Beaugrand, Aguinaldo Roberto da Silva, Maria Acselrad, Loi Lira, Cleto Campos, Laura Tamiana, Cintia Mendonça, Francisco Rodrigues Vasconcelos e Silva, Tainá Barreto, Wolder Wallace e Maíra Bruce.

são paulo  [4ª edição do CorpoInstalação no Sesc Pompeia, 2009] Maria Eugênia, Gabi Gonçalves, Rita Mendonça, Dora Selva, Luís Kitamura, Lucas Valente, Luanna Gimenez, Rita Tatiana, Cristina Bernardo Tatiana Devos Gentile Mire Veja: , 2009-2011 Registro de anúncio em poste do Recife, junho de 2009. Mire Veja: , 2009-2011 Registro de anúncio no Parque 13 de maio, Recife, junho de 2009.

Mendonça, Fernando Timba, Letícia Sekito, Natália Mendonça, Marílio Gonzalez, Marina Abib, Cynthia Domennico, Maurício Adinolfi, Cristiane Santos, Luciana Ramim, Anderson Santana, Júnior Lima, Marcos Villas Boas, Israel Soares, Mônica Augusto, Leo Nabuco, Thais Ushirobira, George Sander e Yara Vaneau.

santos  [Bienal Sesc de Dança, 2011] Ana Terra, Natália Freire Motta, Marina Guzzo, Gabriela Canale, Stéfanis Caiaffo, Maria Lúcia, Alexa Kiany, Jacquie Lima, Isis Stelmo, Elza do Churros, Bentinho, Bboy Júlio, Laerte, Maíra de Souza, Bboy Ralf e Dvike e Rafaela Camargo.

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Tatiana Devos Gentile Mire Veja: , 2009-2011 Frames do video Você dança pra mim?, 3'. Mire Veja: , 2009-2011 Ação na Rua da Imperatriz, Recife, junho de 2009. Mire Veja: , 2009-2011 Ação no Alto da Sé, Olinda, junho de 2009. Mire Veja: , 2009-2011 Ação na Praça do Diário, Recife, junho de 2009.

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prêmio para residências artísticas no estado de pernambuco

Tatiana Devos Gentile desenvolveu um interessante dispositivo de exibição de imagens, que combina os recursos do audiovisual digital (DVD) com o tradicional modelo da máquina fotográfica tipo lambelambe, presente em praças e outros espaços públicos. Mas é curioso perceber que o impulso para tal desenvolvimento não se dá apenas pela vontade de produção da imagem: para chegar a ela, sob a forma de vídeo (mas também com desdobramentos fotográficos), a artista igualmente construiu um cuidadoso mecanismo de aproximação e contato, que torna, enfim, possível a produção da imagem. Para a gravação dos vídeos, Tatiana Devos Gentile convidou pessoas previamente conhecidas e também desconhecidas – através de estratégia de contato que incluiu anúncios, folhetos, comunicação telefônica e por e-mail – a “dançarem para ela”. Ao aceitar o convite e posicionar-se em frente à câmera da artista, cada convidado sabia haver ali um olhar especial, dedicado a acompanhar seu jogo de corpo, ao mesmo tempo que o registrava. Cada convidado escolhia sua música e dançava ao seu modo, apresentando uma evolução corporal qualquer – dançar como quisesse, inventar passos, gestos, reviramentos, rebolados, etc. A ambiguidade da situação proposta, naquele momento, se dava pela presença do dispositivo de captação de imagem: ao dançar para a artista, dançava-se para a câmera, ou seja, para quem, em outro momento, estivesse vendo as imagens finalizadas – modo de enviar aquele instante para, outro “aqui e agora”, no futuro. É na exposição – momento de apresentação pública da pesquisa – que finalmente, muito tempo depois, o espectador pode se relacionar com aquelas imagens: se antes havia um protocolo estabelecido entre a artista e seu convidado, desta vez a dinâmica do contato deve se dar com a presença do público – o jogo de alteridades é menos permeado pelas sutilezas do encontro, e o visitante irá agora se relacionar com dispositivos técnicos, máquinas de reprodução de imagens. Como construir alguma aproximação especial em ambiente atravessado pelas regras institucionais, por protocolos expográficos e museológicos? A solução encontrada pela artista é trazer seu dispositivo para o centro do jogo de imagens, convidando o visitante 214


a posicionar seu corpo junto do lambe-lambe: assumindo a postura de quem iria tirar uma fotografia – produzir imagem diretamente –, o espectador, na realidade, assiste, enfim, aos vídeos pré-gravados em que alguém dança livremente, inventa coreografias a partir de sua canção favorita em local de escolha própria. Afinal, completa-se o circuito proposto pela artista: ninguém “dança para ela”, mas, sim, para o visitante qualquer, o espectador que deambula pela exposição – aquela que manipulava a câmera e magnetizava a performance desaparece no corpo de muitos. Ao oferecer os vídeos de volta ao público, a artista propõe que cada visitante seja, a partir de agora, aquele para quem se dança, construindo a possibilidade de um olhar carregado de afeto e ritmo, enfatizando proximidade e contato.

ista da montagem V de Mire Veja:Você dança pra mim? no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

Há, ainda, mais uma ação envolvida no projeto: além de mostrar os vídeos, produzidos durante os últimos três anos, a artista distribuiu pela cidade pequenos monóculos trazendo imagens dos “lugares dançados”: cada imagem, associada aos nomes dos que dançaram e às respectivas datas, reconstitui de modo inverso as ações já gravadas, ao deslocar a atenção para áreas agora vazias, mas portadoras de uma memória de corpos e movimentos, músicas e silêncios. As ações propostas pela pesquisa – e isso é fundamental para a proposição – retornam à cidade, trazendo de volta suas questões, indagações e tempos afetivos. Ricardo Basbaum 215



processo de orientação


luisa duarte

Luisa Duarte (Rio de Janeiro, RJ, 1979) Vive em São Paulo. Crítica de arte e curadora independente, é mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2010). Compõe o conselho consultivo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e trabalha como crítica de arte no jornal O Globo. Lecionou na graduação de artes visuais da Faculdade Santa Marcelina (São Paulo, 2008–2009), coordenou o ciclo de conferências A Bienal de São Paulo e o Meio Artístico Brasileiro – Memória e Projeção (28ª Bienal de São Paulo, 2008), e integrou a comissão curatorial do Programa Rumos Artes Visuais (Instituto Itaú Cultural, 2005/2006) e o grupo de críticos do Centro Cultural São Paulo (CCSP, 2007–2010). Dos trabalhos como curadora em exposições coletivas, destacam-se Um Outro Lugar (MAM, São Paulo, 2011), Solo Projects Focus América Latina (ARCO, Madri, 2011) e Travessias, em parceria com Daniela Labra e Fred Coelho (Galpão Bela Maré, Favela da Maré, Rio de Janeiro, 2011).


47o salão de artes plásticas de pernambuco – um percurso acidentado, mas enriquecedor O 47o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco começou de forma promissora: inovando no formato tradicional dos salões, deixando de lado somente a seleção, exibição e premiação de trabalhos, apostando em um tempo mais dilatado de trabalho, no qual uma ênfase no processo, e não somente no evento, fosse posta em prática. Cada crítico/curador ficou incumbido de acompanhar o processo de criação e pesquisa de alguns artistas – no meu caso, cinco, sendo duas duplas e um coletivo – ao longo de um ano. Para esse trabalho, tanto o crítico/curador quanto o artista ganhavam uma bolsa. Ao final desse processo de troca e desenvolvimento de uma pesquisa, seria, então, realizada a exposição, fruto desse caminho no qual tanto artista quanto crítico/curador traçam um percurso que inclui conversas, trocas, indicações de bibliografias, referências, um olhar para a produção que pode se ater não somente ao projeto pensado para o Salão, mas à trajetória do artista como um todo. Ou seja, o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco surge no panorama da arte do País como uma chance não só de realizar mais uma exposição de arte – existem muitas hoje no circuito brasileiro dedicadas à chamada geração emergente –, mas, sim, um processo que enriquece tanto crítico/curador quanto artista, dando a chance de um debate franco e prolongado acerca do projeto, admitindo idas e vindas, dúvidas, revisões, leituras conjuntas, etc. No caso dos artistas que eu já conhecia, tratou-se de um trabalho mais focado no projeto para o Salão; no caso daqueles com os quais travei um primeiro contato, foi a oportunidade de conhecer a obra e realizar diálogos ampliados sobre o corpo de trabalho como um todo e questões levantadas por aquela determinada produção. Neste ponto, vale lembrar que trabalhamos com artistas de diferentes estados do País. Para a próxima edição, cabe pensar na viabilização de encontros presenciais entre críticos/curadores e artistas. Nesta edição, não houve verba para tais encontros, ficando a condução da “orientação” prejudicada, pois foi feita, na sua maior parte, via Skype, e-mail, etc. A parte negativa de uma proposta positiva como essa do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco foi a grande descontinuidade do projeto após o período de pesquisa – cerca de dois anos – e atrasos 219


no pagamento de algumas bolsas durante o primeiro ano. O imenso intervalo de tempo entre o período de pesquisa e troca e aquele de exibição do trabalho, fruto da pesquisa “orientada”, em uma mostra foi ruim em diversos aspectos. Em alguns casos, afetou a relação estabelecida entre crítico/curador e artista, pois, naturalmente, ocorreu um afastamento e um corte na conversa que havia sido alinhavada; os projetos passaram a ser realizados pelos artistas de outras maneiras, ou seja, a bolsa do Salão viabiliza projetos que ganham corpo em outros espaços e locais, e o que é mostrado ao final no Recife são – em alguns casos, não todos – outros projetos, sobre os quais não nos debruçamos no período de pesquisa. Claro que, sendo o mesmo artista, o que é apresentado surge com um lastro daquilo que foi trocado durante o período da bolsa, mas já é uma outra coisa; e, tanto para o artista quanto para o crítico/ curador, tal intervalo foi um entrave para uma organicidade maior dos trabalhos na exposição. O vazio de dois anos, inevitavelmente, gera uma falta de credibilidade e uma série de dúvidas sobre a forma de condução da próxima edição do Salão. Se tivemos um ótimo número de inscritos e uma grande qualidade nas inscrições, zelar pela continuidade dessa qualidade é possível a partir do momento em que se realiza um projeto com êxito, e tal êxito é transmitido aos demais, que passam, assim, a querer fazer parte desse processo. Sabemos da triste tradição brasileira de ter projetos importantes na área da cultura vinculados ao Estado e estes possuírem uma vida espasmódica. Vivem um tempo e, com a troca de comando na política, somem do mapa ou mudam completamente seu formato. É preciso, mais que tudo, criar bases sólidas para a gestão do Salão, que garantam o seu acontecimento no cronograma correto, com um formato que atenda às novas demandas de um circuito de arte brasileiro em franca transformação e expansão, sendo sempre repensado. Quem sabe tendo para isso uma comissão que pense o formato do Salão e indique seu júri de críticos/curadores/orientadores? Essa comissão pode mudar, durar a cada duas edições do Salão, por exemplo. Mas, de alguma forma, é preciso que esteja nas mãos de pessoas com um notório saber – de diferentes cidades do Brasil, não só do Recife – a garantia da qualidade 220


do Salão na sua concepção, cabendo ao Poder Público compreender a sua importância e zelar pelo seu bom encaminhamento em termos de envio de recursos e cumprimento de prazos e locais estabelecidos. Pernambuco, e o Recife mais especificamente, possui uma tradição nas artes visuais do País, tendo uma cena contemporânea instigante, viva, que possui importantes atores no circuito de arte do Brasil, artistas, curadores, críticos, instituições, produtores, toda uma gama de agentes fundamentais para a engrenagem da arte que nasce no Estado e vive no Recife, cidade que pulsa cultura e pensamento. Esse lugar de Pernambuco no mapa da arte do Brasil será mantido caso a troca com o restante do País permaneça ocorrendo e projetos como o Salão tenham uma vida sólida, com sua realização sendo feita de maneira séria, sem os erros graves da atual edição. Edição que, ao final, é preciso também dizer, foi realizada, contou com duas exposições e terá um catálogo, tendo sido conduzida de maneira competente, com apoio e estrutura, pela produção responsável. Foi preciso um trabalho de fôlego por parte de todos, em um espaço curto de tempo, para que fosse erigido um projeto que já estava quase esquecido por aqueles que faziam parte dele. Esse trabalho foi feito, e, graças a ele, temos hoje a memória desse caminho – tortuoso, mas, sem dúvida, enriquecedor. O trabalho com os artistas Matheus Rocha Pitta, Sofia Borges, Maria Eduarda Belém, com o coletivo Cia de Foto e com a dupla Elisa Pessoa e Celina Portella justifica todo o processo, bem como a chance de contribuir para a troca com a cena do Recife e ser contaminado por sua verve toda específica e fundamental para a pulsação da arte neste Brasil de hoje e naquele de amanhã. Luisa Duarte

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luiz camillo osorio

Luiz Camillo Osorio (Rio de Janeiro, RJ, 1963) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. É professor de Estética do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM – Rio). Foi crítico de arte do jornal O Globo entre 1998 e 2007. É autor dos livros Flávio de Carvalho (Cosac Naify, São Paulo, 2000), Abraham Palatnik (Cosac Naify, São Paulo, 2004), Razões da Crítica (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005) e Ângelo Venosa (Cosac Naify, São Paulo, 2008). Realizou diversas curadorias em instituições do Brasil e do exterior.


um novo e promissor modelo de salão O Salão de Artes Plásticas de Pernambuco continuou a ser repensado nesta última edição, buscando renovar sua missão e estratégias de desenvolvimento. Para além de uma mera exposição, com critérios tradicionais de seleção, exibição e premiação, optouse, oportunamente, por apostar e estimular processos poéticos experimentais, garantindo investimento na pesquisa e realização de projetos originais. Viabilizou-se, inclusive, o acompanhamento crítico de cada um dos artistas. Formaram-se grupos de cinco artistas para cada crítico, de modo que o debate fosse acontecendo paralelamente aos processos de criação. Pontos a serem evitados em futuras edições são a descontinuidade ao longo do caminho e os cortes no financiamento do Salão. Isso ameaçou seriamente sua realização. Estar condicionado às contingências políticas, sem ter se constituído como programa do Estado para o desenvolvimento do circuito de artes, é algo a ser superado imediatamente. É um projeto sério e que demanda fortalecimento, jamais poderia ter sofrido as ameaças que sofreu. Esta possibilidade de acompanhar artistas ao longo do desenvolvimento de seus projetos merece algumas reflexões. A primeira delas é o quanto esse diálogo faz-se relevante para o olhar do próprio crítico em relação aos processos criativos e aos modos como a produção vai amadurecendo em ato. Mantive um diálogo, ora mais intenso, ora mais rarefeito, com quatro artistas e uma historiadora. Cabe sublinhar a aposta inovadora do Salão em contemplar também trabalhos teóricos e críticos, mostrando a contaminação das práticas reflexivas e produtivas. Foram os autores: Amanda Melo, Fabiano Gonper, Jeims Duarte, Pedro David e Joana D’Arc de Souza Lima. Cada um dos artistas, em função de suas personalidades, de seus processos e linguagens – muitas vezes híbridos, misturando fotografia, performance, vídeo, instalação, desenho, texto, etc. –, exigiu um tipo de articulação e diálogo próprio. Todos, entretanto, muito receptivos a essa interlocução, mesmo que a distância. Esta, por sinal, uma sugestão para a próxima edição. Que seja prevista a realização de pelo menos um encontro presencial com cada artista ao longo do processo, de modo que se possa ver mais de perto o que 223


está sendo feito e a atmosfera de trabalho do ateliê. Com conversas via Skype ou via e-mail, a troca se torna muitas vezes abstrata, carecendo da proximidade física fundamental para o convívio crítico. A visita ao ateliê serve também para ver trabalhos anteriores, muitas vezes menos relevantes para o artista, mas que iluminam, aos olhos do crítico, novos horizontes de interlocução. Considerando esses pequenos ajustes, cabe apoiar esse projeto inovador do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, exigindo sua continuidade e seu fortalecimento. Que a cena cultural e artística do Recife é uma das mais poderosas do Brasil, já não tínhamos dúvida. Somando-se à atuação de instituições locais já legitimadas, como o Mamam e a Fundaj, o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, mantendo esse modelo inovador, tem tudo para se firmar como um exemplo nacional de renovação dos salões. Fazia tempo que se exigia alguma alternativa àquele padrão criado pelas academias de belas-artes. Que o Salão se torne, o quanto antes, uma política pública consolidada e que não fique preso às contingências dos interesses e desinteresses de governos passageiros. Luiz Camillo Osorio

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maria do carmo nino

Maria do Carmo Nino (Triunfo, PE, 1955) Vive e trabalha no Recife. Artista plástica com ênfase em fotografia e curadora. Graduada em arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1980) e doutora em artes plásticas pela Sorbonne – Paris 1 (França, 1995). Professora concursada do curso de graduação em Artes Visuais e integrante dos programas de pósgraduação em Artes Visuais (PPGAV), Comunicação (PPGCOM) e Letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


um pouco de memória Fui convidada para participar como debatedora, entre 05 de março e 02 de maio de 2002, do Seminário de Ações Contemporâneas, uma iniciativa da Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR). Em 18 encontros, cerca de 30 artistas, entre convidados e selecionados, falaram sobre seus projetos de criação – já executados ou em andamento – e puderam exercitar um modo de explicitação de seu trabalho diferente daquele com que usualmente se confrontam em uma exposição. Essa experiência me proporcionou a possibilidade de constatar que a compreensão de pesquisa e processo criativo para uma parte dos artistas é vaga e imprecisa. Alguns anos depois, felicito a iniciativa do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco de proporcionar uma bolsa supervisionada para a execução de um projeto, pois ela segue uma tendência atual de valorização do processo que eu acredito que seja muito pertinente para a compreensão das poéticas atuais em artes visuais. A possibilidade de acompanhar e trocar ideias com um artista durante a execução de um projeto depende muito da disponibilidade dos agentes implicados, exige confiança, sensibilidade e generosidade de ambas as partes e, realmente acredito, pode ser muito enriquecedora para todos. Se a preferível situação do contato presencial nem sempre é viável, ela pode ser evidentemente contornada de outras formas, mas é preciso ter em mente que, antes de seguir um modelo que possa ser aplicável em todos os casos, é o próprio caminhar que define o trajeto da aventura, caso a caso. O resultado final mostrado ao público permanece, como é de se esperar, aquém da experiência vivenciada pelos protagonistas – artistas e curadores – ao longo de suas trajetórias. Ele não dá conta de todas as potencialidades entrevistas, e certamente se desdobrará em outras circunstâncias para artistas e curadores, mas é importante que o público possa compreender que o processo de escolhas e negociações em várias escalas faz parte de todo empreendimento. Maria do Carmo Nino 227


ricardo basbaum

Ricardo Basbaum (São Paulo, SP, 1961) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Artista, escritor, crítico e curador. Leciona no Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e na Faculdade Santa Marcelina (Fasm). Participou da Documenta 12 (Kassel, Alemanha, 2007) e da 7ª Bienal do Mercosul (2009). É autor de Além da Pureza Visual (Editora Zouk, 2007) e Ouvido de Corpo, Ouvido de Grupo (Universidade Nacional de Córdoba, 2010). Entre as exposições individuais recentes, estão Conjs., Re-bancos*: Exercícios & Conversas, no Museu de Arte da Pampulha (MAP, 2011), Vibrosidades&vibrolução, na galeria A Gentil Carioca (Rio de Janeiro, 2011), e Membranosa-entre (NBP), na Galeria Luciana Brito (São Paulo, 2009).


Iniciativas como a do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco são importantes no cenário brasileiro por proporcionar um campo de produção e de trocas relevante, permitindo que processos de trabalho sejam discutidos e intensificados e contribuindo para o desenvolvimento de metodologias de pesquisa: repertórios e referências críticas são reprocessados e gerados também no terreno formal e institucional dos salões, e esta é uma dinâmica que contribui para o debate da arte contemporânea brasileira – no Brasil de hoje, os salões são ainda um mecanismo importante de entrada de jovens artistas no circuito de arte. A partir do apoio financeiro a um período de produção de artistas em processo inicial de pesquisa, permite-se que práticas e processos sejam experimentados e depois compartilhados em público – e mais, com o estabelecimento do processo de orientações, torna-se possível para cada bolsista o desenvolvimento de uma longa conversa com seu interlocutor, de modo a debater as principais posições e questões críticas experimentadas, contribuindo para que se incremente também a consciência conceitual/institucional das práticas adotadas. Compreende-se, assim, a significação do projeto que agora se conclui: criou-se a oportunidade de pesquisa, interlocução e exibição, possibilitando, para os artistas envolvidos, um importante período de imersão em sua própria prática. Deve-se elogiar também a abrangência do programa, por contemplar artistas de todo o País, que, ao final do processo, trazem suas pesquisas para o Recife, ao encontro do público e do circuito locais – gesto afirmativo de rejeição ao provincianismo, reforçando a presença da cidade e suas instituições no circuito contemporâneo do pensamento em arte. Os atrasos no repasse de recursos, assim como o longo adiamento do processo de finalização do Salão, devem ser – claro – fortemente rejeitados na sua indicação de como os compromissos na área cultural podem se tornar secundários, não somente frente a outras agendas, mas, sobretudo pelo desconhecimento, por parte do aparato estatal, do funcionamento e da relevância do campo da arte contemporânea. Este catálogo, enquanto documento final do evento, procura, ao contrário, afirmar o quanto os processos da arte se constituem 229


como ferramentas de trabalho e problematização do presente, alimentando o pensamento na atualidade. Durante o período de vigência da bolsa (2009), o processo de orientação atravessou variações e oscilações, como é de se esperar, de acordo com o ritmo de desenvolvimento do trabalho de cada bolsista. Tive a oportunidade de dialogar com Bianca Bernardo, Deyson Gilbert, Graziela Kunsch, Tatiana Devos Gentile e a dupla Marcos Costa e Carlos Mascarenhas, artistas comprometidos com questões e procedimentos ricos e diversos. Em processos de interlocução desse tipo, há sempre o momento de se estabelecer o contato inicial e compreender os traços por onde se desdobra a pesquisa. Sendo impossível estar fisicamente presente em todas as etapas para acompanhamento direto – neste grupo particular, havia bolsistas residentes em São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói e Recife –, as conversas tiveram necessariamente de se desenvolver de modo remoto e intermitente, com a utilização de e-mail, Skype ou telefone. Da parte do orientador, há a busca do estabelecimento de diálogo, no sentido de se compreender as questões implicadas nas pesquisas, para que se possa construir comentários e relações que sejam úteis no desdobramento do trabalho; sobretudo, procurar organizar perguntas que possam problematizar cada pesquisa para lançá-la mais à frente, portando outras e novas questões. Para que o processo de orientação possa resultar de fato em conversa e diálogo, entretanto, é preciso que também o artista tenha interesse na interlocução, acredite que a voz do orientador – efetivamente exterior e estranha ao processo – possa de algum modo ser assimilada no calor da prática de pesquisa: para cada um, o período de trabalho como bolsista do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco demarcou um período pontual e particular em sua trajetória, e isso indica um breve percurso de alguns meses (menos de um ano) de atividade. Foi preciso que, nesse pequeno intervalo de tempo, os procedimentos de pesquisa se colocassem em linha com a conversa constante de problematização e abertura crítica. 230


Nem todos os bolsistas reagiram com igual interesse ao processo de interlocução proposto: para alguns, a possibilidade de conversa se tornou uma ferramenta interessante para ser agregada ao trabalho, e foi possível construir um diálogo mais ou menos constante; para outros, as conversas aconteceram de modo localizado, na presença de certos impasses ou problemas ou mesmo demandas específicas do processo do Salão (relatórios, organização e finalização de propostas, etc.). E ainda houve casos que revelaram pouco ou nenhum interesse no desenvolvimento de qualquer tipo de conversa, não manifestando curiosidade em propor temas de troca ou mesmo comunicar resultados durante o desenvolvimento da pesquisa. Deve-se considerar, com clareza, que, no relacionamento entre bolsista e orientador, este deve esperar sinais de interesse por parte daquele, que é quem efetivamente pode viabilizar e atribuir importância à possibilidade de conversa. É o artista quem de fato deve assinalar se há disponibilidade de incorporação dessa voz exterior à sua pesquisa – trata-se de processo que não funciona de modo impositivo e que deve escapar a qualquer armadilha burocrática de construção de um diálogo meramente protocolar. Sem esquecer, é claro, que a abertura para tal processo de trocas deve também se colocar para o orientador, que igualmente deve aceitar ser ali transformado, no sentido de compreender seu papel de interlocutor funcionando como mais uma região sensível da atividade intelectual proposta: no limite entre os papéis de “deflagrador” e “problematizador”, cabe ao orientador tornar as situações produtivas, em escuta atenta do que é tramado e proposto pelos artistas em seu trabalho de pesquisa. Não há possibilidade do desenvolvimento de práticas artísticas sem algum tipo de interlocução – há sempre modalidades de formação comunitária diante das quais a obra de arte é um tipo de sintoma do organismo coletivo que está em movimento, objeto indicativo de processos de intelecção social, em uma de suas formas mais agudas. As bolsas de pesquisa do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco proporcionam uma possibilidade de formalizar esse processo, ao viabilizar um expressivo período de trocas e conversas. 231


Espera-se, é certo, que os resultados de uma tão rica dinâmica não se coloquem simplesmente no âmbito de uma conversação privada entre orientador e artista: está em jogo – e isso me parece o mais importante, em se tratando do campo da arte contemporânea – a elaboração de metodologias de trabalho em que a construção da obra de arte é tomada como momento de articulação de sensação e conceito, objeto de debate que se coloca exterior àquele sujeito que é nomeado “criador”, lançado ao espaço da articulação colaborativa. É nesse sentido que a obra de arte se afirma enquanto atividade intelectual singular, capaz de atualizar e tornar agudos os problemas da atualidade e estabelecer conexões entre áreas de saber e procedimentos diversos. Acredito que cada um dos artistas com quem tive a oportunidade de desenvolver tal processo de encontros e conversas tenha incorporado algo desses exercícios relacionais: gostaria de imaginar que, em momentos específicos de suas pesquisas, a situação dialógica oferecida pelo Salão demarcou inflexões significativas, impulsionadoras das pesquisas em andamento. Entretanto, deve ficar claro que a principal responsabilidade na condução bemsucedida deste longo percurso – que resulta, finalmente, em exposição e catálogo – é de cada um dos artistas: é a eles que se deve atribuir a força dos resultados alcançados e o sucesso e compartilhamento público de suas investigações e pesquisas. Ricardo Basbaum

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prêmio de fomento de intercâmbios em arte/educação


programa de intercâmbio em arte-educação: considerações e encaminhamentos A partir de 2008, o Programa de Intercâmbio em Arte-educação passa a fazer parte do edital do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, com o objetivo de desenvolver propostas educacionais em parceria com o Setor Educativo do 47º Salão. Foram cinco prêmios distribuídos entre educadores – e equipe de educadores – de diferentes estados do Brasil. Os premiados foram selecionados a partir de seus portfólios e de propostas de metodologias possíveis para o desenvolvimento de ações educativas que contemplassem atividades de mediação com o público, encontros com educadores e proposta de material educativo. A princípio, o trabalho estaria vinculado aos projetos selecionados para as bolsas de pesquisa e produção em artes plásticas e fotografia. Para isso, o arte-educador premiado deveria manter intercâmbio com o Setor Educativo do 47º Salão para planejar, em parceria, o desenvolvimento e o cronograma para uma proposta em arteeducação que incluísse ações de mediação relacionadas aos artistasbolsistas, a participação em um encontro direcionado a educadores e a elaboração de material educativo. Além disso, o arte-educador não domiciliado em Pernambuco deveria disponibilizar o tempo mínimo de um mês de residência no Recife. Em contrapartida, o Setor Educativo do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco forneceria todos os conteúdos necessários para a elaboração da proposta em arte-educação dos premiados. Entretanto, o Programa de Intercâmbio em Arte-educação, por ser uma experiência pioneira, foi adaptado e ajustado de acordo com os processos por que passou o 47º Salão. Dessa maneira, assumiu um novo formato de trabalho, gerando novos resultados. As ações de mediação pensadas e os materiais educativos elaborados foram substituídos por encontros presenciais entre os premiados, o Setor Educativo do 47º Salão e o das duas instituições que abrigaram as exposições dos bolsistas – o Museu do Estado de Pernambuco (Mepe) e o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam).

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Nesses encontros entre educadores e instituições, foram vivenciadas trocas e experiências práticas, com a intenção de promover novos entendimentos sobre a arte-educação e a mediação cultural. No Mepe, foi realizado o laboratório-relâmpago dentro do espaço expositivo: uma atividade prática entre os premiados e educadores, que tiveram a oportunidade de tecer relações entre as obras expostas e pensar em ações de mediação para os diferentes públicos visitantes. Além disso, no Mamam, conversas com os artistas-bolsistas foram o ponto de partida para círculos de discussões, onde pontos-chaves relacionados ao “lugar” do educador nas instituições culturais foram discutidos. Tais pontoschaves podem ser compartilhados na conversa a seguir. Lucia Cardoso Coordenadora do Programa de intercâmbio em arte-educação

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remiados do Programa P de Intercâmbio em Arteeducação e EducAtivo Mamam conversam na instalação Panorama das Artes Plásticas em Pernambuco (2011), de Jura Capela. Foto: Carlos Lima


remiados do Programa P de Intercâmbio em Arteeducação conversam no auditório do Mamam. Foto: Carlos Lima


intercâmbio | troca ou colaboração lucia cardoso  Nós poderíamos falar do intercâmbio, e, a partir disso, as questões vão surgindo: o que vivenciamos estes dias? A experiência que estamos vivendo é um piloto do intercâmbio. Nós é que estamos fazendo acontecer. Ninguém nunca fez. Estamos experimentando. ana chaves  O que pressupõe o intercâmbio num momento em que nós teríamos contato com as pessoas, mas não um contato intenso, cotidiano? Seria uma troca? Questionamos a própria noção de troca, porque esta pressupõe apenas experiências que estão sendo, nesta ocasião, levantadas, escutadas e que aqui ficam. Ao contrário, o intercâmbio poderia estar mais próximo a uma colaboração de atitude, em que as pessoas participam de uma maneira – com outras perspectivas, experiências, situações – e produzem algo a partir disso. E o que pensamos quando fazemos intercâmbio de arte e educação? O que se deseja do intercâmbio? Que tenha o produto, o fruto de alguma coisa, de uma colaboração? Ou é um intercâmbio em que as pessoas vão apenas se conhecer (o que também pode ser interessante)? Será que tem diferença a residência em arte e educação e o intercâmbio em arte e educação? Eu acho que são projetos diferentes. Parece que, em nosso caso, a educação é pontualizada. Ela vai se localizar no momento em que estamos juntos e depois se dispersa. E a residência, de repente, traria para o cotidiano do contato, ali, em todos os momentos, não só a formalização, mas falar de educação, do nosso trabalho... renata azambuja  Não há como se alienar do fato de estarmos aqui pensando esta experiência. O que nós estamos fazendo, ou pensando em fazer, é pensar e falar sobre arte-educação a partir de uma situação-problema – o intercâmbio do 47º Salão –, e, de repente, essa situação-problema nos fez pensar sobre o que nós fazemos numa situação como essa. Eu acho que estamos aqui para pensar arte-educação sem exposição. E como ela seria sem estar atrelada a essa necessidade de falar das mostras? Dessa maneira, passaríamos para outro patamar, outra direção. Ao mesmo tempo, tem que se falar de arte-educação de várias outras maneiras. Pensando nas situações poéticas, por exemplo. A poética de arte-educação, como seria? 240


ana chaves  O intercâmbio é exatamente isso que você falou. Estamos atrelados a uma exposição: pensamos materiais e textos relacionados a determinados artistas que nem nós escolhemos. Não foi um intercâmbio entre os nossos pensamentos sobre a educação. Eu acho que precisamos inaugurar esse desatrelamento da educação com uma exposição, de estarmos a serviço sempre da curadoria, dos artistas, dos setores do museu. lucia cardoso  Uma das falhas do edital é vincular os premiados com os artistas-bolsistas. Deveria ter tido um prêmio para um projeto de arte-educação, assim como os bolsistas foram premiados por um projeto investindo em educação artística. O prêmio deveria ser de pesquisa e produção ou de sugestão de uma ação de arte-educação, e não estar vinculado à exposição. ana chaves  Estão na moda as palavras participação e colaboração em arte e educação. Qual a dimensão da troca e da colaboração? Eu considero que são ações que têm interseções. simone luizines  Na própria produção do material educativo, talvez o intercâmbio pudesse ter começado ali. Poderia ter existido uma troca para sabermos o que o outro estava pensando sobre os artistas e propor ideias. renata azambuja  Uma coisa que pensei em propor era que nós fizéssemos a curadoria do educativo. Que a gente escolhesse os artistas que vêm para nossa curadoria do educativo e pensasse num projeto integrado à poética. E aí tudo converge para isso. ana carolina campos  E o intercâmbio englobaria até o processo de curadoria? Elaboraria tudo junto? renata azambuja  Englobaria tudo, do começo ao fim. gleyce kelly heitor  Eu fiquei pensando em uma coisa que Graziela Kunsch falou. Em um momento na vida dela, ela tinha essa crise de não saber se o que ela fazia era educação, arte ou ativismo. Ela assume tranquilamente que o lugar de fala dela é o lugar do artista, mesmo quando o que ela está fazendo é ativismo ou educação. É uma intervenção. Ela falou que, como artista, 241


sente a responsabilidade em fazer avançar a história da arte. E aí eu anotei: o que nos resta? Quais são as responsabilidades do educador? Foi solicitado que escrevêssemos um projeto pra esse novo momento do Salão. Reconfiguramos o nosso projeto, propondo o intercâmbio entre os dois educativos. Então, refletimos sobre como juntar os dois, porque íamos embora e os dois educativos iam permanecer. E, pensando no dia a dia, num modus operandi, imaginamos uma possibilidade de fazer esse encontro ser um lugar onde fossem tensionadas as questões da educação e dessa poética: pensar na educação como uma linguagem.

o lugar do educador | mediação, criação e poder gleyce kelly heitor  Todos estavam muito preocupados com a educação no museu como serviço. Porém, somos nós que vamos atribuir sentido ao que o curador e o artista pensam? O educador confere sentido àquele pensamento que parece claro? Como pensar o lugar do educador como o lugar da intervenção? O que é uma intervenção pensada pelo educador dentro de uma instituição cultural, seja ela museu, equipamento ou outra nomenclatura? Qual o lugar do educador nesse complexo sistema das artes visuais? Está demarcado o lugar do curador e do artista, mas percebemos, conversando com alguns artistas, como a percepção deles sobre a função do educador são as mais diversas. Podemos presenciar que alguns artistas acham que o educador é fundamental no trabalho deles para ligar e desligar um aparelho (no caso de o trabalho do artista ser um vídeo ou uma instalação, por exemplo). Dessa maneira, como queremos avançar na discussão, pensar nossa intervenção como uma intervenção poética se nos deparamos com artistas que pensam a nossa existência como aquela que faz o seu trabalho existir tecnicamente, no ato de ligar ou desligar um aparelho? Esses acontecimentos deixam mais emergente a necessidade de aproveitarmos o momento de intercâmbio para pensar que linguagem ou que poética é essa da educação dentro de um 242


sistema que já definiu quem é o curador e o artista, mas que oscila muito no entendimento do que é o educador. renata azambuja  Mas, se eu for pensar dessa maneira, eu não trabalho nas instituições culturais, nas galerias de arte. Meu trabalho não poderia ir adiante. A arte está aí na internet, nas redes sociais, nos trabalhos dos meus alunos. Eu faço, eles fazem, nós fazemos, na medida em que começamos a pensar no que circula nesse sistema, nessa arte que está rolando em todos os lugares, independentemente de onde venha (está na decoração natalina, no cartaz, nas ruínas de Olinda, etc.). gleyce kelly heitor  Talvez a nossa questão seja: onde você quer ver a arte? renata azambuja  Pois é. E aí, como trabalhar? Eventualmente você pode bolar um programa para os artistas que estão aqui. Mas outra coisa é você atingir o início do processo executivo e se colocar. Nós estamos aqui, temos toda a categoria, todo o savoir faire (se não temos, estamos conquistando) para poder falar das produções, às vezes muito melhor do que os próprios artistas. Esse é o nosso trabalho também: estamos lendo, vendo, cheirando, sentindo, pensando o poético. gleyce kelly heitor  Imagina pensarmos em uma nova atividade? renata azambuja  Estamos refletindo sobre uma situação de pensamento na qual, neste momento, corremos muito mais à frente das instituições, que, com sua burocracia, não nos conseguem alcançar. E a sociedade não alcança também. Acaba se tornando uma espécie de ciclo, uma espécie de oroborus. gleyce kelly heitor  E o que achar de um artista que nos diz: “O meu trabalho só existe por conta do educativo”? simone luizines  “Porque, se vocês não estiverem aqui, o público não vai saber onde é que liga...” carlos lima  Então ele não precisa de um educador, precisa de um dedo. Um dedo resolve o problema... 243


lucia cardoso  E isso é uma coisa comum. simone luizines  As instituições são as mesmas, os problemas permanecem e as pessoas não avançam em determinadas questões. Diante disso, acho que deveríamos também começar a nos perguntar por que continuamos brigando pelas mesmas coisas. Qual foi o amadurecimento que tivemos diante das questões que ainda estamos pontuando? O educativo acaba assumindo uma responsabilidade que não é nossa, e não avançamos. Passam os anos, e o educador fica na mesma... ana chaves  Enquanto o educador não tiver seu lugar determinado, seu espaço demarcado, ele vai ser sempre aquele que assume esses problemas. Isso é uma luta que começa a se inaugurar e já vem acontecendo. Eu não sei no Brasil, mas, no México, há iniciativas mais autorais e autônomas de educativos em museus de não ser apenas aquele que está atrelado a essas demandas. O olhar para a educação é sempre visto a serviço do bem, do cultivo. Será que a educação é que tem que fazer esse cultivo, ter esse cuidado, para não deixar a “plantinha” morrer? simone luizines  Temos que começar a nos posicionar. carlos lima  O educador pode ser mais autoral, e não ficar tanto à mercê do hábito. simone luizines  A mudança inclui também o hábito de olhar para os mesmos problemas e discutir as mesmas questões esperando que o outro entenda o que você quer dizer. De uma certa forma, estamos sempre falando, mas o que dizemos não é ouvido, nem entendido, até por quem é da arte-educação ou sequer pelo artista e pelo curador. Entendo que estamos no momento de não mais levantar ou discutir essas questões. Precisamos sair dessa zona de conforto em que estamos (onde percebemos e apontamos os problemas, levantamos e discutimos questões institucionais etc) e, de fato, inaugurar as ações. carlos lima  O trabalho que o educativo faz não é muito diferente do que faz o curador. É um trabalho de criação também. 244


Da mesma forma que o artista não se repete, mas se recria, se renova, o educador também tem essa dimensão. Ele não investe só no trabalho do artista com que ele está dialogando, mas ele recria a partir daquilo, ele amplia questões. Ainda falta muito pra pensar sobre arte-educação. ana chaves  Então por que o educador não pode fazer uma intervenção? A gente já intervém, mas fica só na dimensão do discurso. A gente tem esse poder do discurso com as pessoas, mas está invisível. E isso é muito sério. lucia cardoso  O educador tem esse poder, e é justamente por isso que ele passa a não ser valorizado pelo sistema. Um professor numa sala de aula é capaz de fazer a cabeça de muita gente. E isto Paulo Freire já falava há muito tempo: o professor não é valorizado porque é uma profissão poderosa. E, dentro do campo das artes, no museu, nas instituições, na sala de aula ou onde quer que seja, temos esse poder; já intervimos, mas está invisível. carlos lima  Ao mesmo tempo, eu penso como podemos articular esse poder que temos dentro das intervenções. O que podemos fazer em relação aos trabalhos dos artistas, nos espaços institucionais, para não sermos invisíveis? O trabalho de um educador é um trabalho também político, ele também está criando política. renata azambuja  Tem coisas que são do nível da poética e outras que são do nível da prática. Eu fico pensando que temos que ficar no mesmo lugar da mesa, com um discurso nosso. Temos um objetivo diferente do do curador, por exemplo. E esse objetivo tem que ser colocado na mesa junto, da mesma maneira dos outros. É utópico? Não é assim que se chega? Mas tem que chegar. Eu acho que é uma ação política por excelência. Esse é o projeto. carlos lima  Eu acho que você deve observar o espaço onde você vai atuar com suas práticas. Existem instituições mortas, sem público, antes do educativo. Depois do educativo, esse espaço se enche, ganha vida. Entendemos o poder que o educativo pode articular no sentido de preencher o espaço, de ativar o espaço. O poder está muito nas mãos do educativo. 245


gleyce kelly heitor  O educativo no museu não tem que ser necessariamente o elemento dinamizador. Ou vamos produzir o conhecimento de uma nova linguagem, de uma nova poética – que é pensar outra educação, desaprender, deseducar –, ou vamos ser sempre o dinamizador. Isso é ótimo para os bancos financiadores e as estatais, porque o educativo entra como contrapartida social. Mas, para além da dinamização, o que queremos construir enquanto criação de linguagem ou de poética? carlos lima  Quando eu falo desse poder e de estar muito próximo do trabalho do artista, digo a respeito da criação dele, ao estado criativo em nós e no outro. E essa educação é também construir estados criativos, é fazer perceber que existe essa relação. Eu, particularmente, gosto da ideia de curadoria educativa; não pensando numa rivalidade com o curador, porque eu acho que o trabalho que o curador faz não é muito diferente do trabalho que o artista faz, de também promover esse estado criativo. E nós selecionamos, recortamos, temos esse poder também, do mesmo jeito que o artista, o curador, o educador. ana chaves  Quando eu falo em demarcar esse lugar, é muito uma estratégia política desse lugar. carlos lima  Eu acho que é muito delicado também tentarmos definir. O que faz o artista ser artista? Eu penso muito que, para você poder ver arte, é necessário ser artista. Você está vendo a pintura, a escultura, mas a arte está passando despercebida; da mesma forma que, se você não for um matemático, você vai ver os números, vai ver as fórmulas, mas você não está vendo a matemática. Então é por isso que eu digo que o trabalho dessas pessoas que articulam a arte dentro do sistema da arte se diferencia, mas que encontra semelhanças com o trabalho que o artista faz. Penso aqui na definição de artista desatrelada do conceito de artista profissional da arte. Um artista do ponto de vista do indivíduo que existe dentro de um estado criativo, podendo esse estado criativo ser desenvolvido em proposições, intervenções, objetos ou conceitos que podem vir a ser partilhados com o mundo ou mantidos no âmbito privado. 246


renata azambuja  Nós somos articuladores de pensamento o tempo inteiro, só que nos preocupamos com outras articulações a partir da nossa prática. ana carolina campos  Para resumir essa questão: nos tocamos – o artista, o curador, o educador – porque somos criadores, mas nunca seremos iguais. carlos lima  Eu acho que não devemos pensar que somos iguais em hora nenhuma no que diz respeito a esses lugares dentro do sistema da arte. Para que esse sistema possa existir, é necessário que existam esses lugares bem definidos. No entanto, quando considero que as práticas do artista, do curador e do educador não se diferem muito, me refiro ao fato de que todos estão inseridos em um estado criativo. ana carolina campos  Cada um em sua instância, mas criando. E você dá um nó tão grande na cabeça que você acaba querendo não definir mais nada. Se fizermos como todos esses acontecimentos que vieram com a arte contemporânea, de definir o que é objeto, o que é instalação, por exemplo, o resultado será, como hoje em dia: tudo é tudo e nada é nada, não dá pra definir. ana chaves  É porque as pessoas não querem, também, assumir lugares. ana carolina campos  Mas é importante você também definir esse lugar. carlos lima  Eu acho que é importante definir lugares, mas acho importante também perceber que as práticas não se distanciam tanto, não se diferenciam tanto. E isso é justamente para poder pensar nessa política do educador, porque a prática que nós realizamos não é muito diferente da que o curador e o artista realizam. Ela é tão importante quanto e articula esse estado criativo. gleyce kelly heitor  Quando você fala em diferença, eu penso em procedimentos, em linguagens. A importância e a hierarquia são outra coisa. 247


intercâmbio | encaminhamentos lucia cardoso  Eu gostaria de fazer uma pergunta, com a intenção até de abrir para os próximos intercâmbios: houve troca ou colaboração nesse nosso intercâmbio? ana chaves  Qual seria o método para esse intercâmbio? ana carolina campos  É uma boa pergunta, porque, como foi falado, nenhum intercâmbio vai ser igual ao outro. gleyce kelly heitor  Acho que podemos pensar que o intercâmbio não esteja atrelado às exposições, ele poderia ser uma pesquisa/prática em educação. simone luizines  Talvez pensar que o educativo não tenha um prêmio, mas uma bolsa de pesquisa, assim como os artistas; tenha, ao longo dos meses, um trabalho, um projeto de pesquisa. ana chaves  Que possa haver encontros presenciais. gleyce kelly heitor  E, se nós falamos em processo de criação, que haja esses encontros presenciais e que tenhamos tempo de um envolvimento. Deve existir um tempo de intercâmbio para trabalharmos. simone luizines  Não necessariamente aqui no Recife. Um intercâmbio sem ser tão territorializado aqui. carlos lima  Geograficamente, aqui. gleyce kelly heitor  Sim, mas uma troca entre instituições. lucia cardoso  O intercâmbio não deve estar atrelado aos bolsistas... Obrigada por vocês estarem aqui, está sendo uma experiência supergratificante.

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coordenação do educativo Lucia Cardoso (Recife, PE, 1968) Vive e trabalha em Recife. Graduada em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1990), pós-graduada em magistério do ensino superior pela Faculdade de Ciências Humanas Esuda (FCHE, 1999) e mestre em design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2010). Atualmente é Gerente de Serviços de Formação em Artes Visuais da Prefeitura da Cidade do Recife (desde 2011). Como professora, atua no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Ciências Humanas Esuda (FCHE, desde 1998), no Curso de Educação a Distância/Artes Visuais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (EAD/UFRPE, desde 2011), e no Curso de Design da Faculdade Maurício de Nassau (Recife, FMN, desde 2011). Nos últimos anos, realizou ações educativas e curadorias, das quais destacam-se as exposições ECO (Estação Cultural Senador Ermírio de Moraes, Jaboatão dos Guararapes, 2011) e Convivências (SESC, Petrolina, 2011).

educador núcleo de mediação Niedja Ferreira dos Santos (Recife, PE, 1967) Vive e trabalha no Recife. Especialista em Arquivo e Patrimônio Artístico, Histórico e Cultural Integrado pela Faculdade Universo (Recife, 2010). Especializanda do curso de Arte Educação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Graduada em Licenciatura em Educação Artística/Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007). Bolsista do Programa de Aperfeiçoamento em Gestão Pública de Cultura da Fundarpe. Tutora da disciplina de História da Arte do curso de Licenciatura em Artes Visuais Digitais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE, desde 2010). Atua como mediadora cultural em exposições de arte e pesquisa sobre mediação cultural na arte contemporânea, história do ensino do desenho e desenho infantil.


intercambistas Ana Carolina Campos (Recife, PE, 1982) Vive e trabalha no Recife. Especialista em Arte-educação pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap, 2009) e graduada em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007). Atuou como educadora em alguns centros culturais da cidade do Recife: Instituto Ricardo Brennand (2006–2008); Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj, 2005–2007); Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam, 2004–2005); Galeria do Sesc Casa Amarela (2003–2004). Atualmente leciona Artes Visuais no Colégio Ethos para os segmentos da Educação Infantil e Fundamental I. Também atua como formadora em Artes Visuais no Projeto de Formação de Professores De Mala&Cuia, financiado pela Lei de Incentivo à Cultura do Estado de Pernambuco (Funcultura). Ana Chaves (São Gonçalo, RJ, 1981) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Mestranda em História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2005). Integra, desde 2009, o Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) como educadora-pesquisadora. Coordenou, em parceria com a museóloga Maíra Dias da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o grupo de mediadores da exposição Helio Oiticica – Museu É o Mundo no Paço Imperial e na Casa França-Brasil, (Rio de Janeiro, 2010). Trabalhou no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como professora de Artes Visuais do Ensino Fundamental e orientou o estágio supervisionado dos alunos dos cursos de Licenciatura em Artes Plásticas e Desenho da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro (UFRJ, 2008–2009). Carlos Lima (Recife, PE, 1983) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Mestrando em Teoria da Arte pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é licenciado em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007). Integrou


a ação educativa do Instituto Ricardo Brennand (2005–2011) e atuou como professor de Artes na educação formal, com turmas de Fundamental I e II (2009–2010). Coordenou e produziu projetos no campo da Arte-educação, acessibilidade e videoarte. Atua como fotógrafo-formador. Gleyce Kelly Heitor (Recife, PE, 1982) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2007) e mestranda em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Desde 2005, trabalha com educação em museus, desenvolvendo ações de mediação cultural, pesquisas e formações sobre história dos museus e história da arte. Foi bolsista do Programa de Aperfeiçoamento em Gestão Pública de Cultura, da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe, 2009), e pesquisadora local, em Pernambuco, do Projeto Arte no Brasil: Textos Críticos no Século XX, componente brasileiro do programa Documents of 20th-Century Latin American and Latino Art. A Digital Archive and Publications Project, do Museum of Fine Arts (Houston, EUA). Atuou na ação educativa do Instituto Ricardo Brennand (Recife, 2006–2009) e coordenou o Núcleo de Arte e Educação do Museu Murillo La Greca (Recife, 2009–2011). Co-organizou, juntamente com Clarissa Diniz, o livro Gilberto Freyre (Coleção Pensamento Crítico. Rio de Janeiro: Funarte, 2010), coletânea da crítica de arte freyreana. Atualmente, é pesquisadora/educadora do Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Luiza Proença (São Paulo, SP, 1985) Vive e trabalha em São Paulo. Concluiu bacharelado e licenciatura em artes visuais pelo Instituto de Artes da Unesp (São Paulo, 2008), com intercâmbio realizado na Universidade Nacional de Cuyo, Argentina (2006). É cocuradora do Rumos Artes Visuais 2011–2013 (Instituto Itaú Cultural, São Paulo). Foi cocuradora das mostras À Sombra do Futuro (Instituto Cervantes, São Paulo, 2010) e Temporada de Projetos na Temporada de Projetos (Paço das Artes, São Paulo, 2009). Integrou o Grupo de Reflexão Interdisciplinar do Centro Cultural São Paulo (2009–2010). É membro do Grupo de Crítica e Curadoria da Universidade de São Paulo (USP).


Mara Pereira (Rio de Janeiro, RJ, 1978) Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Graduada em produção cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2002), possui Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ, 2008) e é mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desde 1998, desenvolve ações e pesquisas em produção cultural, história da arte, curadoria e educação em museus e centros culturais. Atuou como educadora em diversas instituições, como Paço Imperial (Rio de Janeiro, 1998-2002), Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC, 2000) e Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB-RJ, 2003-2006). Em 2010, coordenou as ações educativas do CCBB (Rio de Janeiro) e da exposição Arquivo Geral (Centro de Artes Hélio Oiticica e Centro Carioca de Design, Rio de Janeiro). Foi gerenciadora do Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ, 2008-2009), onde atualmente é Coordenadora de Ações e Conteúdo (desde 2010). Renata Azambuja (Porto Alegre, RS, 1964) Vive e trabalha em Brasília. Licenciada em artes plásticas pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Teoria e História da Arte Moderna e Contemporânea pelo City College of New York, New York University (CUNY), onde defendeu a tese Cildo Meireles: a Física do Espaço Social. É pesquisadora, curadora independente, crítica de arte e arteeducadora. Atuou como professora de disciplinas dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB, 1999–2011). É membro do Conselho Curador do Espaço Cultural Marcantonio Vilaça desde 2010. Atua na área de arte-educação regularmente desde o início da década de 1990, desenvolvendo projetos transdisciplinares para várias instituições públicas e privadas brasileiras, como o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), o Museu Vale do Rio Doce e a Tríade Patrimônio Turismo e Educação. Simone Luizines (Recife, PE, 1982) Vive e trabalha em Recife. Graduada em turismo (Unicap, 2002) é especialista em arte/educação pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap, 2009). Foi coordenadora do


Núcleo de Cursos e Projetos da Ação Educativa do Instituto Ricardo Brennand (IRB, 2009-2012) e assistente de galerista da Amparo 60 Galeria de Arte (2006-2008). Atuou como educadora na Ação Educativa do Instituto Ricardo Brennand (IRB, 2002-2006), na Galeria SESC Casa Amarela (2003), no 46º Salão Pernambucano de Artes Plásticas (2004) e no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe, 2005). É produtora cultural e, atualmente, coordenadora de produção da Galeria Janete Costa (Parque Dona Lindu) e integrante das equipes de coordenação do Projeto de Formação de Professores De Mala&Cuia (financiado pela Lei de Incentivo a Cultura do Estado de Pernambuco - Funcultura) e de gestão da Rede de Educadores e Instituições Culturais de Pernambuco (REMic-PE).


47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco Coordenadora-geral

Luciana Padilha

Coordenadora-executiva

Rosa Melo

Coordenação dos bolsistas

etapa I – Bebel Kastrup etapa II – Clarice Hoffmann Equipe de produção

Adah Lisboa Janaisa Cardoso Gustavo Neves

Molduras e mobiliários

Luizinho Molduras Marton & Marton [Sofia Borges] Iluminação

Light Switch Equipamentos de projeções

Tom Produções Sinalização

Ultrasign

Ampliações fotográficas

Paulo Melo Jr.

Atelier de Impressão [Dominique Berthé] Atmosphere [Pedro David] ClaroEscuro [Fábio Okamoto] Estúdio Lupa Serviços Fotográficos [Bianca Bernardo] Estúdio Zero [Jura Capela] Foto Varela [Izidorio Cavalcanti] Ilha de Tecnologia [Fabiano Gonper] LabTec [João Castilho e Matheus Rocha Pitta] MobStudio [Sofia Borges] Noivos Monóculos [Tatiana Devos Gentile] Tergoprint [Cia de Foto]

Fotografias Homenagem a Jairo Arcoverde

Impressão publicações

Produção-executiva

Cláudia Moraes (Página21) Assistente de produção-executiva

Leonardo Bouças

Coordenação editorial

Clarissa Diniz e Lorena Taulla Revisão de texto

Consultexto

Design de montagem e gráfico

Luciana Calheiros e Aurélio Velho (Zoludesign) Fotografias das exposições

Gil Vicente

Vídeodocumentarista

Lia Letícia

Pl anejamento de comunicação

Dani Acioli (Aponte Comunicação) Coordenação da ação de intercambistas de arte-educação

Lucia Cardoso

Educador núcleo de mediação

Niedja Santos Montagem

Estevão Mendes e Ivan Amorim Marcenaria Adequação de espaço expositivo

José Francisco dos Santos

MXM Gráfica e Editora Comissões de premiação Pesquisa e produção em artes pl ásticas, fotografia, grafitagem, residências artísticas e vídeo-documentário

Breno Laprovítera Luisa Duarte Maria do Carmo Nino Ricardo Basbaum Rodrigo Braga

Intercâmbio em arte-educação

Lúcia Cardoso Rejane Coutinho

Ensaios teóricos e projeto de pesquisa sobre artes visuais

Marco Polo Paulo Marcondes Soares


Acompanhamento e textos críticos

Luisa Duarte Luiz Camillo Osorio Maria do Carmo Nino Ricardo Basbaum

Críticos convidados

Nicole Cosh [Caderno de prêmio para projetos de grafitagem] Raul Córdula [Homenagem a Jairo Arcoverde]

Premiados 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco Projetos de pesquisa e produção em artes pl ásticas

Amanda Melo | Sal é Mar Deyson Gilbert | Dos conceitos e objetos Celina Portella e Elisa Pessoa | 6x Fabiano Gonper | Desenhos em projeção/reconfiguração do sujeito Graziela Kunsch | Revista Urbânia 4 Jeims Duarte | Urbólides Jonathas de Andrade | Condução à deriva Marcos Costa e Carlos Mascarenhas | Ópera Crua Maria Eduarda Belém | A arquitetura do símbolo na cidade do Recife Matheus Rocha Pitta | Drive Thru #2 Projetos de pesquisa e produção em fotografia

Cia de Foto | Caixa de sapato Dominique Berthé | Abecedário nordestino, exercício de estilo Fabio Okamoto | Marcas João Castilho | Confluências Sofia Borges | O Variável

Projeto de pesquisa sobre artes visuais em Pernambuco

Joana D'Arc de Souza Lima | Nomadismos e estratégias artísticas no Recife dos anos 80 – entre a tradição e o novo

Projeto de produção de videodocumentário sobre artes visuais em Pernambuco

Jura Capela | Panorama das artes plásticas em Pernambuco Residências artísticas no estado de Pernambuco

Bianca Bernardo | Viver para desaparecer Izidorio Cavalcanti | Alhures, a informalidade na arte Pedro David | Homem Pedra Tatiana Devos Gentile | Mire Veja: Fomento de intercâmbios em arte/ educação

Ana Campos, Carlos Lima e Gleyce Kelly Heitor | Sob pontes de fruição Ana Chaves e Mara Pereira | Intercessões: interdisciplinaridade na arte contemporânea e na educação Luiza Proença | Mediação em arte contemporânea: considerações e metodologias Renata Azambuja | Proposta para ação educativa Simone Luizines | Museu na caixa: o jogo no processo da ação educativa Fomento para projetos de grafitagem

Elaine Bomfim e Derlon Almeida | Conversa de pescador Elvis Almeida | Graffiti ativo Galo de Souza | Oferendas Wagner Porto Cruz | Terra da Lua Ensaios teóricos sobre a produção pernambucana de artes visuais

Eduardo Romero | A pose-rápida: considerações sobre o desenho e a construção da identidade cultural Júlio Cavani | Muros da libertação: a história da grafitagem no Recife Raíza Cavalcanti | Arte e política: paixão antiga Sebastião Pedrosa | O ensino da gravura na UFPE






apoio institucional

apoio

realização


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