Osvaldo Carvalho: "A Arte é inevitável" - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Osvaldo Carvalho: “A Arte é inevitável”

21 de março de 2023 | 11:41
Osvaldo Carvalho, diante da obra Cárites (2020), que integra Falsa Simetria, primeira individual do artista na Janaina Torres Galeria Osvaldo Carvalho, diante da obra Cárites (2020), que integra Falsa Simetria, primeira individual do artista na Janaina Torres Galeria

Pintor do aqui e agora — um aqui e agora que se estende no tempo e no espaço, abarcando fenômenos múltiplos da vida e da arte —, Osvaldo Carvalho reflete, nesta entrevista, sobre os fundamentos de Falsa Simetria, primeira individual do artista na Janaina Torres Galeria. Produzidas, em sua maioria, no período pandêmico, as obras trazem a síntese da marca singular do artista: uma atmosfera pop revigorada, povoada de cores, figuras, fraturas e contradições, exploradas por Osvaldo, a seguir.

Pergunta: Falsa simetria: o que é isso?

Osvaldo Carvalho: Refere-se, primeiramente, a uma série de trabalhos em que lanço mão do falso quadrado para as telas, perspectivas falseadas, uso de cores equivocadas, divisões em desequilíbrio, tudo “em plena harmonia”, sempre buscando fontes na própria história da arte, outros pintores, referências clássicas ou não. A isso se juntou o lado social das apresentações pictóricas: a ideia de que todos partem do mesmo lugar, do mesmo ponto de partida, que alcançam seus postos por seus méritos — uma falsa simetria de um sistema excludente por princípio, em que as oportunidades não são absolutamente as mesmas. Mesmo quando falo em meio ambiente, não aponto um dado exclusivo, aponto para a ponta do iceberg, lembrando que sob as águas estão camadas e camadas de algo muito maior que muitas vezes escapa aos olhos, algo cujas consequências, em geral, são devastadoras.

Por que “a arte é inevitável”, como diz seu status no WhatsApp?

Essa é uma afirmação de caráter muito pessoal, tem a ver com minha trajetória de vida e eu precisaria voltar muito no tempo, mais especificamente à 6ª série. Logo no primeiro bimestre de avaliação eu tirei D, uma nota vermelha, em artes. Em casa minha mãe exigiu uma explicação de “como alguém tira D em artes?”. A nota era relativa a uma escultura que todos tinham que fazer e entregar em alguns dias, e que serviria de avaliação de final de bimestre. O que eu fiz foi pegar um cofrinho de poupança, algo comum então, abrir, esvaziar e cortar a parte de trás com a silhueta de uma família e voltar para dentro do cofrinho. Havia nesse gesto uma ideia de que era impossível juntar moedinhas e comprar uma casa, algo que eu, mesmo criança, já tinha percebido. Senti uma alegria e confiança tão grandes com o que eu tinha criado que fui seguro de ser um “artista”. Contudo, a professora não achou nada satisfatório no meu “trabalho”, e me fez olhar as “esculturas” dos meus coleguinhas: vasinhos, carrancas, casinhas, etc. Juntando esse escárnio público e a ira de minha mãe, creio ter tido um trauma que simplesmente me causou repulsa pela arte. Anos depois, já formado, trabalhando numa empresa, executivo, em uma das minhas viagens a São Paulo, acabei estendendo um fim de semana na casa de amigos. Foi então que meu amigo me falou sobre “uma tal de Bienal” e para lá partimos na manhã seguinte. E tudo voltou. E tudo mudou. A Arte foi inevitável. Posso dizer que tive uma vida antes e outra depois desse reencontro.

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VIDEO I Osvaldo Carvalho fala sobre Falsa Simetria, em seu ateliê, no Rio de Janeiro

Falsa Simetria traz um artista sensível a seu entorno. De que maneira isso te inspira?

Sem dúvida isso pode ser percebido nos trabalhos atuais, reunidos na exposição, mas acredito que perpassa toda ela. Mas posso dizer que meu “entorno” é também o mundo. Ninguém precisa ser especialista para saber que se é afetado por fatos mundo afora, como temos no caso recente da guerra na Ucrânia. Em minhas pinturas abordo meu dia a dia pela cidade, meu bairro, tanto quanto acontecimentos em outras partes do mundo que me fazem refletir, seja pela fragilidade da vida, seja pela magnitude com que resistimos. Um fato marcante, sem dúvida, foi a pandemia e suas consequências. Nesse período de reclusão e afastamento entre 2020 e 2021, pude ver a cidade, os que não tiveram opção de se proteger, que tiveram que continuar sua jornada pelas ruas em busca de sua sobrevivência, naquele momento agravada curiosamente pela brusca diminuição de lixo reciclável pelas ruas, encontrei mensagens pelos muros, paredes, portões da cidade, mensagens que se perdem no dia a dia atribulado do trânsito, do trabalho, da correria. Pude ver uma cidade solitária, mas também solidária; pude ver cidadãos de bem em motocicletas envoltos em bandeiras nacionais atirando para o alto; pude ver cidadãos incógnitos distribuindo quentinhas. Do meu terraço vi o mundo e suas mazelas.

Ser negro: no que marca sua arte?

Nos últimos anos, isso vem sendo mais evidente nas telas que eu pinto, o corpo negro. No entanto, não é uma premissa. Ocorre que com a pandemia esses corpos, como era de se esperar, foram os corpos mais vistos pelas ruas, digo, pessoas em situação de rua. Essas cenas foram me trazendo reflexões que geraram as minhas pinturas. E a marca na arte, ponto importante de esclarecer a pergunta, não está propriamente no resultado final, naquilo que é visto, mas muito no que não é visto, não é implicado ao longo do percurso; ao contrário, é subtraído por se tratar de algo inconveniente, falar de racismo, de como ele opera, e o tremendo obstáculo que ele nos impõe. Comigo não foi diferente, sou um homem negro; a sociedade, de diversos modos, sempre deixou isso “claro” para mim. Durante a pandemia escrevi um artigo intitulado “Preta Imagem: Breve Reflexão Sobre a Pele Negra Por Trás da Máscara Branca em Tempos de Pandemia” para o X Seminário Ibero-americano sobre o Processo de Criação, realizado pela Universidade Federal do Espírito Santo. No texto, falo dos aspectos da produção e da visibilidade negras na arte contemporânea brasileira por meio de um diálogo entre um artista negro (eu) e um artista branco (amigo meu) durante a pandemia.  Enquanto as falas se desenrolam, são pontuados os discursos de racismo cotidiano, e como afetam artistas negros numa análise cujos argumentos desmascaram falácias perpetradas incisiva e ordinariamente ao longo de nossa história, mas que, felizmente, vêm sendo contestadas de modo inexorável por um fluxo cada vez maior de pensadores e escritores negros.

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