Renata Felinto, série Afro - Foto: Divulgação

"O Brasil vive uma revolução de gente, cores e paisagens"

No livro A Virada Decolonial na Arte Brasileira, a historiadora e crítica Alessandra Simões Paiva comenta esse novo tempo, entre desafios e mudanças

 21/12/2022 - Publicado há 1 ano

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Adrielly Kilryann

“Uma verdadeira revolução está em curso nas artes brasileiras. Trata-se da virada decolonial, fenômeno marcado pelo crescimento exponencial de poéticas que expressam questões como raça, etnia, classe, gênero e geopolítica articuladas de forma interseccional.” Alessandra Simões Paiva, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), mestre e doutora pela USP, apresenta e fundamenta uma nova realidade da cultura brasileira. O livro A Virada Decolonial na Arte Brasileira, lançamento da Mireveja Editora, vai muito além da teoria. Traz o cotidiano até então desconhecido ou ignorado da importância da arte indígena e das manifestações culturais afrodiaspóricas.

“Este livro representa meu mergulho no campo da decolonialidade e sua relação com as artes visuais no Brasil”, observa a autora, com três décadas dedicadas à crítica de arte. “Por que, nos dias de hoje, falamos tanto em decolonialismo? Por que usamos o verbo decolonizar e não descolonizar? Por que esse assunto se tornou tão urgente no campo das artes?”

A essas e outras perguntas, a autora busca responder com a sua realidade, experiência e pesquisas em onze artigos. Como ela própria avalia, a revolução parece acontecer entre as retomadas indígenas pataxó e tupinambá e nos movimentos afrodiaspóricos das periferias rurais e urbanas, entre outros.

“A vinda para o sul da Bahia mudou completamente minha perspectiva profissional”, conta Alessandra, em entrevista ao Jornal da USP. “A UFSB é uma universidade bastante decolonial, que tem currículos decoloniais e uma política de cotas avançada. Temos uma licenciatura interdisciplinar em Artes que não apresenta nenhum componente curricular da história da arte ocidental. É tudo invertido, temos matérias sobre estéticas dos povos originários, movimentos afrodiaspóricos, estéticas periféricas e assim por diante. Isso também gera problemas, como a dificuldade de inter-relação com a tradição ocidental, que também é importante. Mas, por outro lado, dialoga diretamente com nosso corpo estudantil, que é composto em sua grande maioria de pessoas negras, indígenas, quilombolas, moradores de assentamentos agroecológicos e da agricultura familiar, além de representantes de movimentos sociais os mais diversos. Ter virado professora aqui é ter virado aluna ao mesmo tempo.”

Alessandra Simões Paiva: "Arte é vida" - Foto: Rafael Botas

“O fenômeno da virada decolonial é uma realidade no Brasil, mas ainda imperam nas instituições culturais os reflexos históricos da desigualdade e segregação social e racial no País.”

A virada decolonial na arte brasileira, segundo aponta Alessandra, tem sido confirmada através de diversas exposições em todo o País, com a participação de curadores indígenas. Cita a Véxoa? Nós Sabemos, na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2020), Moquém_Surari: Arte Indígena, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2021), o Pipa, principal prêmio da arte contemporânea, que vem contemplando majoritariamente artistas decoloniais, além de grandes projetos de intervenção urbana, como Vozes Contra o Racismo, em São Paulo (2023), e Cura, em Belo Horizonte. Outro evento foi, em 2022, a Bienal de São Paulo, com os curadores Grada Kilomba, Manuel Borja-Villel, Diane Lima e Hélio Menezes.

“O fenômeno da virada decolonial é uma realidade no Brasil, mas ainda imperam nas instituições culturais os reflexos históricos da desigualdade e segregação social e racial no País”, salienta Alessandra Simões Paiva. “A relação entre o decolonialismo e as artes é bastante complexa. Uma base teórica multidisciplinar é fundamental para que se possa gerar conhecimento sistemático sobre esse tema, de modo a contribuir para o campo das artes, tendo como fim pragmático o combate às desigualdades e o fortalecimento da governabilidade democrática no campo da cultura.”

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O leitor vai compreender a importância do movimento decolonial e perceber esse novo tempo na arte produzida no Brasil e no mundo. Nas 240 páginas do livro, vai observar obras e artistas de grupos sociais que foram ignorados pela história e, agora, estão se tornando de vanguarda. Os povos originários, as pessoas negras e as mulheres, através de movimentos atuantes, estão em busca de mudanças estruturais em nossa sociedade. E a expectativa é ver o mundo mudando de cor, alargando a dimensão do ser humano nas artes, ciência, política, no meio ambiente e na vida.

Alessandra aponta a necessidade urgente de reparação histórica diante do apagamento de experiências e grupos que sempre estiveram à margem do mercado artístico. Destaca nomes como Denilson Baniwa, Kássia Borges, Coletivo Kókir, Ventura Profana, Paulo Nazareth, Renata Felinto, Aline Motta, Jota Mombaça e Castiel Vitorino, além do indiscutível legado de Jaider Esbell. São artistas cujas poéticas enfatizam questões ligadas a raça, etnia, classe, gênero e geopolítica.

“Serpenteando a mata a perder de vista, antes de desaguar no oceano a poucos quilômetros, o caudaloso rio guarda no silêncio e na névoa perenes os ecos dos quilombolas e dos povos originários que ali habitaram.”

“A vida é arte”, destacou Alessandra na noite do lançamento do livro, no dia 9 passado, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Um aprendizado que a professora compartilha também no capítulo “África-Brasil Museu Intercontinental: Espetáculo de Assombrações”, em que descreve o programa que fez com seus alunos da UFSB para visitar e viver a cidade de São Mateus, no extremo norte do Espírito Santo. “Como muitas dessas pequeninas cidades históricas, suas ruas e ladeiras sinuosas escondem, sob a aparente normalidade cotidiana, a monstruosa sombra do legado escravocrata”, descreve. “Desconhecida no ranking turístico nacional, São Mateus guarda ainda algum casario colonial, mas sua história pode ser sentida mesmo a partir da observação cuidadosa da vista para o imenso vale do rio Cricaré, contemplado de alguns pontos de suas ladeiras. Serpenteando a mata a perder de vista, antes de desaguar no oceano a poucos quilômetros, o caudaloso rio guarda no silêncio e na névoa perenes os ecos dos quilombolas e dos povos originários que ali habitaram.”

Outro capítulo, “A Ancestralidade Hightech dos Povos Originários”, aponta a relação entre tecnologia e os modos de vida das comunidades originárias. “É um dos temas recorrentes no panorama da decolonialidade”, explica a autora. “Quando se trata de processos artísticos, ela reflete a complexidade da sociedade contemporânea híbrida, múltipla e fragmentária. Não faltam casos de artistas indígenas no circuito nacional que abordam a temática, como Kadu Tapúya, que delineia em suas colagens digitais a proposta de um futurismo indígena, e Denilson Baniwa, que pintou imagens retratando indígenas utilizando celular e televisão.”

O prefácio assinado pela pesquisadora Alecsandra Matias de Oliveira deixa evidente a sua história pontuada pelo seu olhar sensível pesquisando, divulgando e ensinando os caminhos da arte brasileira. Professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Comunicação e Cultura da USP e articulista do Jornal da USP, Alecsandra apresenta o livro de Alessandra Simões Paiva. Lembra: “A gente não nasce negro, a gente se torna negro –  Com essa frase, Lélia Gonzalez nos ensina a sermos conscientes de nossa própria identidade. Quem, negro como eu, não se lembra daquele momento  em que cai a ficha – o exato instante em que se percebem as diferenças? É difícil esquecer o segundo em que se diz: sou negro”.

A Virada Decolonial na Arte Brasileira, de Alessandra Simões Paiva, Editora Mireveja, 240 páginas, R$  48,00


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