Priscila Ferraz Pasko: A insônia da margem e as tintas de Turner

“Que tipo de esforço é necessário empreender para enxergar ou mostrar o que não tem nitidez?”

Edição: Vitor Diel
Arte: Giovani Urio sobre reprodução

Desligo o chuveiro e, enquanto me enxugo fora do box, procuro a minha imagem no espelho acima da pia. O banheiro está tomado por uma névoa morna que atinge também o meu reflexo, ou o vestígio dele, na superfície oxidada. Uma mancha móvel, sem contornos definidos. 

Cogito, a partir de um exercício lúdico, inventar as minhas feições, os desenhos dos azulejos, agora borrados, ou os detalhes da toalha que mordisca os meus cabelos, mas desisto. Eu deixo de existir ao abandonar contornos ou me expando? Que tipo de esforço é necessário empreender para enxergar ou mostrar o que não tem nitidez? O que de mim concedo para buscar entendimento? 

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Essa imprecisão, o esforço, a confusão, me lembram o pintor, músico e aquarelista inglês William Turner (1775 – 1851) e da luminescência difusa de suas pinturas, nas quais, entre muitas outras características a serem destacadas, a luz e as trevas se confundem nas cores, as margens se diluem na agitação das formas e a instabilidade das cenas retratadas é uma constante. A associação não é gratuita. Turner foi um dos artistas mencionados em uma das disciplinas que faço no curso de História da Arte. 

Mas foi em 2021, por meio da poeta, ensaísta e dramaturga jamaicana Claudia Rankine, em seu livro Cidadã (2020), que o conheci – lamento ter levado quase 40 anos para este encontro, e celebro que tenha sido pelas palavras de Rankine. Entre um ensaio e outro, o livro trazia ilustrações de obras de diversos artistas, técnicas e períodos. E ali estava a pequena reprodução de um óleo sobre tela de Turner, de 1840: Navio Negreiro (Traficantes de escravos lançando ao mar os mortos e moribundos, tufão aproximando-se). A obra fazia uma denúncia da escravidão, a partir do caso do navio Zong, que, em 1781, traficava escravizados da África para a Jamaica. 

Após este episódio, fui atrás das obras do artista, que me provocaram — e ainda provocam — algo muito próximo à tontura. Um susto, uma confusão, um assombro, falta de ar. É o chamado sublime, não é? O inglês, que pertenceu ao período Romântico, imprimiu dramaticidade furiosa às paisagens, sobretudo ao retratar tempestades marítimas, incêndios, dilúvios. É quase inevitável se envolver no caos instaurado pelas suas tintas, um redemoinho de pinceladas pensadas em suspender a respiração de qualquer observadora de suas telas. 

The Slave Ship
Slavers Throwing overboard the Dead and Dying—Typhon coming on. Turner. Reprodução

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Os resquícios da água do banho ainda escoam pelo ralo quando duas obras de Turner — bastante representativas no âmbito do sublime, mas não as únicas, obviamente — me espreitam: Sombra e trevas – o crepúsculo do Dilúvio, e Luz e cor (teoria de Goethe) – a manhã após o dilúvio – Moisés a escrever o livro do Gênesis. Um provável díptico que data de 1843. São grandiosas, assustadoras. Margens diluídas me interessam, me encantam, me apavoram, me angustiam. O bi, o multi, o ambíguo, a frantumaglia¹

Agora, a neblina do banheiro se dissipa um pouco. Já é possível visualizar a forma do meu rosto sem que as linhas sejam salientadas. A margem do meu corpo é um borrão que se estende e se funde a outros objetos, somos quase um só. Talvez seja sensato deixar a porta do banheiro entreaberta, para amenizar o abafamento e o mal-estar. Há tinta escorrendo pelo chão. Ou luz. Quem sabe a minha cor. De qualquer maneira algo se forma, mas não desbota, apenas se agita. Não é urgente decifrar de imediato. Às vezes, para isso, leva-se o tempo de um dilúvio, ou de uma vida inteira.

¹ ou desmarginalização. Termo usado pela autora Elena Ferrante em seus textos biográficos e romances para denominar “um estado de mal-estar em que tudo que as constitui mostra-se subitamente destinado a se perder. É um contato dilacerante com a perda.”

Priscila Ferraz Pasko (1983 – Porto Alegre) é escritora, jornalista freelancer na área cultural e graduanda em História da Arte (Ufrgs) . É autora do livro de contos “Solo rachado por dentro” (Figura de Linguagem, prelo), “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019) – Prêmio Açorianos 2020 na categoria conto. Também integra a coletânea “Novas contistas da literatura brasileira” (Zouk, 2018). Paralelamente, Priscila se dedica à dança contemporânea e a experimentos em videodança. Se interessa ainda por artes visuais, pelo processo criativo/vivência de artistas mulheres e sonhos. Divide o teto com os seus dois gatos, a Pemba e o Arruda.

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