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    Museu realça obra pungente da escultora francesa Camille Claudel

    ISABEL JUNQUEIRA

    07/05/2017 02h00

    RESUMO A apreciação do trabalho da escultora francesa Camille Claudel sempre foi contaminada pela trajetória pessoal da artista, que incluiu uma relação malfadada com Auguste Rodin e uma internação de quase 30 anos em um hospital psiquiátrico. Um novo museu dedicado somente à obra dela tenta corrigir essa distorção.

    Até os anos 1970, a escultora e pintora francesa Camille Claudel (1864-1943) não constava em nenhum livro de história da arte. A brevíssima menção a ela num dicionário de artistas editado à época continha equívocos em informações básicas, como o ano de sua morte e seu gênero (Camille, na França, é nome unissex).

    O descaso se estendia às casas de leilões. "A Pequena Castelã", busto de 1896 descrito por um estabelecimento em Versalhes como um "mármore assinado por um certo Claudel ideal para decorar jardim", foi vendido na década de 1970 por menos de mil francos, valor irrisório.

    Dizer que o jogo virou é pouco. Embalados pelo interesse crescente no estatuário do século 19 e no trabalho de artistas mulheres, historiadores da arte redescobriram a obra de Claudel e começaram a publicar artigos e livros no início dos anos 1980.

    "Hoje não consigo mais acompanhar tudo o que sai sobre ela", conta Bruno Gaudichon, diretor do museu La Piscine, em Roubaix (norte da França), que assinou o primeiro catálogo da escultora em 1984 e a curadoria de várias exposições ancoradas na obra dela. O La Piscine adquiriu "La Petite Châtelaine" em 1996 por 4 milhões de francos, correspondentes a cerca de € 800 mil (R$ 2,8 milhões).

    Apesar da bem-vinda projeção, a tônica do burburinho em torno de Claudel ainda era, até recentemente, quase que exclusivamente biográfica (e machista). Páginas e mais páginas eram gastas para dissecar a relação tempestuosa da jovem aprendiz com o mestre e amante, o escultor Auguste Rodin (1840-1917), e o consequente declínio do estado mental dela.

    A lista de títulos acerca da artista é extensa. Inclui "Uma Mulher" (1982), biografia romanceada, e "Camille Claudel em Montdevergues - História de uma Internação" (2012), em que se examinam as fichas médicas relativas aos quase 30 anos que ela passou internada num hospital psiquiátrico.

    Esse período é o cerne do mais recente filme dedicado à escultora, de 2013 –houve um primeiro em 1988.

    É para transferir o foco desse rosário de infortúnios para a notável produção artística da personagem que acaba de ser aberto o museu Camille Claudel. A instituição funciona em Nogent-sur-Seine, cerca de 100 km a sudeste de Paris. Ironia ou não, o prédio foi inaugurado em meio às celebrações do centenário de morte de Rodin, que incluem grandes exposições na capital francesa e o lançamento de uma cinebiografia.

    "É injusto que a vida dela oculte a obra", afirma Cécile Bertran, diretora da instituição com o maior acervo de Claudel no mundo.

    TERRA

    Primogênita de uma família burguesa provinciana, Claudel nasceu no vilarejo de Fère-en-Tardenois, no norte do país. Quando ela tinha 12 anos, seu pai, funcionário do Ministério das Finanças, foi transferido para Nogent-sur-Seine. Ali afloraria a paixão da jovem pela escultura.

    Uma de suas primeiras criações em terracota, aos 14, foi um "Davi e Golias" que ela mesma destruiria anos mais tarde. Ao ver o trabalho pela primeira vez, o diretor da Escola de Belas Artes de Paris, Paul Dubois, exclamou, convicto: "Você teve aulas com monsieur Rodin!".

    Até aquele momento, ela nunca tinha visto o artista nem ouvido falar nele –os dois só se encontrariam em 1882, um ano depois de Claudel convencer o pai a deslocar o clã para Paris a fim de que ela pudesse continuar sua formação, agora na Academia Colorassi.

    Certo dia, Alfred Boucher, conterrâneo e primeiro tutor da jovem, precisou trocar as funções pedagógicas parisienses por uma residência artística em Roma. Foi substituído pelo criador de "O Beijo" e "O Pensador". Assim teria início uma década de fusão amorosa e artística sem final feliz.

    "Quando eles se conheceram, Rodin já tinha achado sua personalidade e estética. Durante a relação, no entanto, o tema da paixão carnal se intensificou [em sua produção]", explica Catherine Chevillot, diretora do Museu Rodin e curadora da retrospectiva do escultor em cartaz até 31/7 no Grand Palais, que incluiu obras de Claudel na sala dedicada a alunos e assistentes dele.

    A colaboração artística deixou marcas visíveis na prática da pupila, como a repetição obsessiva de figuras e temas ao longo da carreira, procedimento moderno em que Rodin fora pioneiro. Claudel também sofreu influência de outras correntes em voga no fim de século 19: o art nouveau (ao qual ela acena ao usar materiais semipreciosos e optar por formas arredondadas) e o simbolismo (que dá impulso a suas construções alegóricas).

    A cronologia da relação com o colega de ofício pode ser retraçada nas obras de Claudel. "A Valsa" apanha o amor no auge. Já "A Idade Madura" eterniza a dor da ruptura. O personagem no centro dessa composição (Rodin) caminha em direção aos braços da mulher mais velha (Rose Beuret, sua companheira de longa data), deixando uma jovem caída a seus pés (Claudel).

    A peça em bronze vai além da história pessoal. Funciona quase como um "vanitas" escultural, uma indagação sobre o caráter vão, frívolo de toda ação e todo sentimento, em vista do inexorável e surdo rumar para a velhice e a morte.

    Toda a obra de Claudel parece movida por esse tipo de inquietação existencial; é dessa maneira que ela acaba tecendo ensaios tridimensionais sobre o destino.

    Se a garotinha de "A Pequena Castelã" dá a impressão de fitar o futuro, a velha moira de "Clotho" (uma das Três Graças da mitologia grega, que determinavam a sorte de todos os seres) se enrosca nos fios da vida que ela mesma tece.

    INTROSPECÇÃO

    "Está vendo como não tem mais nada de Rodin", escreve Camille para seu irmão, o escritor Paul Claudel, em 1893, ano que marca o rompimento com o escultor.

    Apesar de seu trabalho ter colhido críticas majoritariamente positivas, a artista perdia o sono com a constante filiação a Rodin. A carta a seu parente trata dos esboços para algumas de suas obras menos rodinianas, como "Les Causeuses" (1893) e "Profonde Pensée" (1905), esculturas de pequena dimensão que viram as costas para temas mitológicos.

    A primeira retrata um grupo de meninas sussurrando um segredo, enquanto a segunda petrifica a imagem de uma mulher ajoelhada diante de uma chaminé. Numa tanto quanto na outra, a melancolia das protagonistas eleva essas cenas domésticas para além da anedota, atingindo um sentimento universal.

    "Claudel é muito representativa de sua época e do ateliê de Rodin. Ao mesmo tempo, diferencia-se por seu trabalho quase que exclusivamente de introspecção, traço ainda mais evidente nessa fase de independência. Ela anuncia os trabalhos de Frida Kahlo e Louise Bourgeois", analisa Bruno Gaudichon, do La Piscine.

    Na virada do século 19 para o 20, a saúde mental da artista se deteriora, o que se reflete em sua produção. "Perseu e Górgona" (1902), que mostra o filho de Zeus com a cabeça de Medusa (uma das três górgonas) na mão, depois de tê-la decapitado, é considerada sua última obra-prima.

    Ali, ela reutiliza modelos de obras antigas para compor os corpos das figuras-título. O rosto da Medusa leva os traços da própria Claudel.

    MUSEU

    No recém-inaugurado museu Camille Claudel, a visita começa pelo acervo do antigo museu Dubois-Boucher, incorporado ao conjunto de 43 estátuas da artista que a prefeitura de Nogent-sur-Seine comprou da neta de Paul Claudel.

    Nessas primeiras salas, rememora-se o "boom" da escultura no século 19: enquanto obras monumentais bancadas pelo Estado invadiam o espaço público, outras menores e menos caras, feitas com técnicas inovadoras para a época, decoravam os interiores burgueses.

    Os Laocoontes e Joana d'Arcs, entre outros personagens mitológicos e históricos dessa ala, contrastam com "Fauno e Ninfa" (1905), de Rodin, gesso que ilustra à perfeição o expressionismo característico do escultor.

    Longe do tratamento acadêmico rigoroso e do virtuosismo da época, a peça não se contenta em narrar e instruir. Emociona e faz refletir.

    Mais à frente, no corredor que leva o público à ala Claudel, instalada na casa onde ela morou durante três anos, duas vitrines explicitam a simbiose artística entre o casal de ases da escultura.

    A aluna rouba o tema da mulher de cócoras do mestre em "La Femme Accroupie" (1884-85), enquanto ele copia quase identicamente a pose da menina de "La jeune fille à la gerbe" (1886), de Claudel, em "Galatée" (1887) e "Frère et soeur" (1890). Cumplicidade inscrita na pedra.

    ISABEL JUNQUEIRA, 33, é jornalista

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