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Como foram as primeiras horas após o golpe militar de 1964 em Fortaleza
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Como foram as primeiras horas após o golpe militar de 1964 em Fortaleza

Chefe de Redação da rádio Dragão do Mar à época, Nazareno Albuquerque recorda os momentos tensos que viveu nos dias que marcaram a ruptura institucional
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GOLPE DE 64: Golpe militar de 1964: tanque do Exército nas ruas de São Paulo. Foto: João Marques/UH/Folhapress (Foto: João Marques/UH/Folhapress)
Foto: João Marques/UH/Folhapress GOLPE DE 64: Golpe militar de 1964: tanque do Exército nas ruas de São Paulo. Foto: João Marques/UH/Folhapress

A Rádio Dragrão do Mar, na Avenida Imperador, no Centro de Fortaleza, foi ocupada às 8h30min de 1º de abril de 1964, pelo Exército. O golpe se instalara no Brasil. Militares deram cinco minutos para que todos os funcionários da emissora se retirassem. "A Dragão noticiava os desdobramentos da crise nacional, com cobertura das marchas militares, ao tempo em que fazia proclamações em favor do Sr. João Goulart e conclamava o povo a pegar em armas e sair às ruas", lê-se em cores azuis, na dobra de baixo da capa da edição do O POVO naquela data.

O veículo radiofônico, propriedade do deputado federal Moysés Pimentel (PTB-CE), assumia linha progressista e era defensor das reformas de base de João Goulart. Aquela programação, inicialmente pensada pelo jornalista Blanchard Girão, em 1958, saiu do ar por cerca de cinco meses e retornou sob direção do general da reserva Almir Macedo de Mesquita. À época jornalista da emissora, Nazareno Albuquerque, jornalista da rádio O POVO CBN, foi preso com outros colegas de profissão. Foram levados ao 23º Batalhão de Caçadores do Exército (23-BC), na Avenida 13 de Maio.

Em conversa com O POVO, Nazareno, ex-chefe de redação da Dragão do Mar, revisita as memórias que culminaram no próprio cárcere. "A Rádio Dragão do Mar tinha um jornal matinal, de 6 às 7 da manhã, e eu era o editor e apresentador. O apresentador comigo era Camaleão Noronha. Então, nós estávamos no estúdio quando, de repente, 6 horas da manhã, nós vimos que o estúdio foi invadido e que a mesa de som estava ocupada. O operador se chamava Mauro Coutinho. O Mauro Coutinho foi retirado da mesa com a delicadeza, entre aspas, natural e uma 'coronhada' tirou a mesa do ar. E assim a rádio Dragão do Mar ficou sem fazer transmissão. Nós nos despedimos rapidamente do público, eles nos retiraram do estúdio e assim que foi silenciada a rádio Dragão do Mar".

Nazareno prossegue: "Quando a gente observou pelo lado de fora, percebemos que havia um caminhão carregado de tropa, mais ou menos um pelotão do Exército que fez todo esse trabalho de silenciar a rádio. E por que silenciar a rádio? Silenciar porque ela tinha a orientação política do seu líder e proprietário, Moysés Pimentel. Moysés Pimentel apoiava João Goulart, apoiava o PTB, enfim, tinha todo um posicionamento contrário àqueles que estavam realizando o golpe. Era um posicionamento muito forte, muito marcado no Ceará. Marcado por discursos, atuação política, filiação partidária. Ele foi um dos primeiros deputados federais a ser cassados no Brasil", explica o jornalista.

O apresentador de rádio acredita que o objetivo dos militares era não somente prender os jornalistas da rádio que "tinha audiência extraordinária", mas líderes sindicais que estariam na emissora para dar entrevistas. "Muitos líderes sindicais, diante das notícias da noite de que o golpe estava a caminho, foram até a rádio para que a gente fizesse entrevistas. Não deu tempo, porque as ações foram logo no início do jornal. Quando houve a movimentação dos militares, alguns deles pularam o muro de trás da rádio e conseguiram fugir e não foram presos", relata.

Conforme Nazareno, jornalistas começaram a ser presos logo no início de abril. "Estava em casa enquanto chega um grupo do Exército e me leva preso para o 23-BC, onde eu passei uns 40 dias preso como testemunha, afinal de contas era um jornalista credenciado, apesar da minha idade. Eu era o chefe de reportagem da rádio. Eu fui preso junto com outros jornalistas. Frota Neto também foi. Que eu me lembre Peixoto de Alencar era diretor-geral da Rádio, Blanchard Girão que era diretor artístico da rádio e o redator principal." Questionado sobre se foi alvo de violência nas dependências militares, ele respondeu que "os constrangimentos eram verbais ou emocionais".

Sinais da anomalia institucional foram registrados não somente no início do dia daqueles jornalistas, mas sentidos pelo restante da Cidade. As medidas militares eram ditas "apenas preventivas" e foram adotadas já no primeiro dia do triunfo golpista: suspensão das aulas na universidade; adiamento do reinício das aulas por tempo indeterminado nos colégios estaduais e municipais; proibição de passeata de trabalhadores marcada para aquela noite, fechamento dos bancos, além do empastelamento da própria rádio Dragão do Mar.

Mauro Benevides era presidente da Assembleia Legislativa e afirmou ao O POVO na época: "Lamentamos sinceramente que a Nação tão carecida de paz para poder desenvolver-se e progredir, viva instantes de inquietação e desassossêgo. Confiamos que prevaleçam, no final, os princípios democráticos e que ordem jurídico-constitucional manter-se-à inalterada." Naquele 1º de abrill, informou-se também que o Comitê de Imprensa da Assembleia Legislativa do Ceará emitiria posição sobre o "atual estado de coisas".

Em 10 de abril de 1964, as repercussões políticas diretas chegaram à Assembleia. Seis deputados estaduais perderam o mandato em sessão ocorrida na data. Amadeu Arrais, Anibal Bonavides, Blanchard Girão, José Fiúza Gomes, José Pontes Neto e Raimundo Ivan foram cassados sob pretexto de afronta ao decoro parlamentar. Todos foram presos no 23º Batalhão de Caçadores, na avenida 13 de Maio.

Na Câmara Municipal de Fortaleza, então no Centro, três vereadores perderam o mandato: Tarcísio Leitão (PST), Luciano Barreira (PST) e Manuel Aguiar de Arruda (PDC). Também foi cassado o título de cidadania fortalezense concedido ao ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, herdeiro direto do getulismo, aliado do presidente João Goulart e então deputado federal pelo PTB. Brizola era popular em Fortaleza. Com o País redemocratizado, em 1989, ele levou a melhor, entre os eleitores da capital cearense, sobre os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Fernando Collor de Melo (então no PRN).

"Liberdade restaurada" e "vitória da democracia", comemorou marcha após o golpe 

"Fortaleza virá às ruas para a marcha da família", anunciava a edição do O POVO em 16 de abril. "Os fortalezenses, em geral, desde as mais altas autoridades até os mais modestos operários vão comemorar, hoje, a partir das 16 horas, festivamente, pelas principais ruas da cidade, a vitória da Democracia". A seguir, a explicação: "É que se realizará hoje a 'Marcha da Família com Deus pela Liberdade Restaurada', promoção de alto serviço patriótico do Movimento Cívico da Mulher Cearense, liderado pela senhora Luísa Távora, primeira dama do Estado."

No dia seguinte à marcha, a repercussão também recebeu destaque no O POVO, em publicação segundo a qual o movimento não apenas correspondeu, mas ultrapassou todas as expectativas que sobre ele se criaram. "Milhares de pessoas numa demonstração pública sem precedentes expressaram a Deus os seus agradecimentos pela vitória democrática e testemunharam às Forças Armadas o seu reconhecimento pela atuação que tiveram nos últimos acontecimentos", publicou sobre a passeata.

No canto direito da mesma página 2 do dia 16 de abril de 1964, a notícia de que a primeira-dama Luiza Távora enviara duas canetas de ouro ao presidente Castello Branco. O governador de então, Virgílio Távora, ficou em vias de ser cassado pelo regime militar. O agrado certamente não foi desprovido de razões políticas.

"O Távora, embora fosse ligado a uma oligarquia tradicional do Ceará, tinha laços de amizade pessoal com João Goulart. Os dois haviam sido deputados nos anos 1950 no Rio de Janeiro. Você imagina dois jovens solteiros, no Rio de Janeiro nos anos 1950, deputados, os dois com prestígio, com dinheiro. Então, iam para as festas, bebiam juntos, conversavam, eram muito amigos. Então, apesar da diferença ideológica e política, essa amizade não acabou", afirma ao O POVO o históriador e escritor cearense Airton de Farias.

"Havia dúvidas da fidelidade do Távora à revolução. Nas horas seguintes ao golpe de 1964 o Távora balança muito. Vários grupos militares, especificamente no Recife, que é o grande núcleo político do Nordeste nos anos 1960. Era o centro político por excelência. Os militares no Recife prestam muita, mas bastante atenção para que o Távora seja derrubado do governo do Ceará. Então, o Távora balança muito nas horas seguintes ao golpe. Ele vai também reagir, vai se apegar ao tio, Juarez Távora, que conta com o apoio do Castello Branco que é cearense, portanto é uma questão aí de afinidade entre militares e cearenses".

Juarez Távora, ministro da Viação e Obras Públicas de Castello, intercedeu ao presidente pela manutenção de Távora no Governo do Ceará. "O próprio Távora teria viajado ao Rio de Janeiro — ainda o núcleo político do País, a capital era Brasília — para travar contato com vários meios partidários. E conseguiu escapar. Escapou, mas muito enfraquecido. Tanto que acontece com ele coisa rara na política do Ceará. Ele não participa do processo de escolha do sucessor. O sucessor dele seria o Paulo Sarasate. Na verdade, Paulo Sarasate queria ser o sucessor. Acabou sendo um deputado obscuro, Plácido Castelo, indicado por Paulo Sarasate, inclusive. Isso em razão da sua fragilidade e delicadeza com que ele ficou após o golpe de 1964", diz Airton.

"Marcas são profundas"

O professor Manuel Domingos Neto, doutor em História pela Universidade de Paris e ex-deputado federal, lançou em 2023 o livro O que fazer com o militar: anotações para uma nova defesa nacional (Gabinete de Leitura).

O POVO - Por que 60 anos depois do golpe de 1964 voltamos a discutir alguns temas referentes aos militares na política que pareciam ter sido sepultados?

Manuel Domingos - As marcas da ingerência militar na política são profundas e não desaparecem facilmente. Este ativismo recente foi catastrófico. Desorganizou o aparelho de Estado, provocou centenas de milhares de vítimas fatais, disseminou ideias ultra-conservadoras, favoreceu o crime organizado, afetou seriamente a preservação ambiental... isso não pode ser esquecido.

OP - A primazia da força terrestre — do Exército — sobre as demais forças já é, em si, uma distorção que favorece insubordinações no Brasil?

Domingos - Sim, porque sendo a força mais capilar e tendo ingerência sobre as polícias, que são "forças auxiliares", pode deter mais facilmente o controle sobre toda a sociedade. De quebra, a supremacia da força terrestre deixa o Brasil mais indefeso. A capacidade aeronaval é a mais importante para enfrentar eventual agressor estrangeiro.

OP - Que aspectos fundamentais das Forças Armadas induzem o militar à ambição política e careceriam de reforma?

Domingos - O aspecto mais relevante, o que deve ser levado mais seriamente em conta, é esta presunção de ter criado a sociedade nacional. Considerando-se "pai da pátria", o militar se acha autorizado a manter controle sobre a sociedade, vista cheia de defeitos e incapaz de definir seu próprio destino.

OP - Guerra do Paraguai (1864-1870); Proclamação da República (1889); Tenentismo (1920-1935); Revolução de 1930 (1930); Manifesto contra Vargas (1954); ditadura militar (1964-1985); Jair Bolsonaro (2018) ; Jair Bolsonaro tenta golpe (2022-2023). O que uma espinha dorsal comum a todos estes eventos históricos?

Domingos - O que une todas essas intervenções é o empenho em deter reformas sociais. Qualquer movimento reformista de maior peso deixa o militar indócil. As forças armadas já exerceram papel modernizador. Mas propiciou uma modernidade conservadora, como se diz. As estruturas sociais herdadas do colonizador foram mantidas.

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