Pessoas brancas: Eu não quero que você me entenda melhor, eu quero que você se conheça

Carolina Ramos Heleno
8 min readFeb 15, 2017

Tradução livre do texto de Ijeoma Oluo.

O mundo está abalado com o levante da negritude cansada de ser morta e encarcerada. A exaustão de um povo cria medo em seus algozes, impelindo a alguns dizerem que o racismo nunca existiu no Brasil por conta da nossa miscigenação e do mito da democracia racial. Esse argumento é uma tentativa frustada de desqualificar e esconder toda uma história de exploração e massacre, de invisibilizar a dor de ser negro, indígena, de cor em nosso país. A invisibilidade das pessoas de cor vem acompanhada da mais nova moda do racismo reverso. Curioso né?! Não existe racismo, mas existe-o contra brancos! Ijeoma nos brinda com um magnifico texto, que ousei em traduzir pela urgência do debate, chamando a atenção da branquitude, se o tempo é de problematizar o branco, vamos problematizar direito. O que a branquitude sabe sobre ela mesma? Deixo essa tarefa para Ijeoma e desculpa qualquer erro meu!

Opessoas brancas em meus inboxs, deixe-me responder aqui na esperança de nunca mais precisar responder tais perguntas.

Quase todos os dias recebo uma mensagem como a sua, de uma pessoa branca aleatória — no Facebook, Twitter ou e-mail — oferecendo-me a “perspectiva branca” que eles acham que meu trabalho sobre raça e feminismo está faltando. “Só para dar uma imagem mais completa”, eles vão explicar, ou “Tendo sido uma pessoa branca toda a minha vida, acho que a minha visão seria útil para você”, ou “Eu acho que posso ajudá-la a entender como este problema é visto pela sociedade branca.”

Ao que eu digo: Médico, cure-se a si mesmo.

Não, eu não sei de tudo. Eu não cubro todos os ângulos o tempo todo. Às vezes, estou errada. Mas aqui está a coisa: eu sei sobre cultura branca. Eu conheço a cultura branca melhor do que a maioria das pessoas brancas conhecem a cultura branca. Eu conheço a cultura branca, a história branca, a política branca. Eu sei disso melhor do que você, se você soubesse o real motivo de encher meu inbox você ficaria envergonhado. Por que conheço tão bem a cultura branca? Porque eu sou uma mulher negra. Enquanto isso eu e qualquer pessoa de cor que passou a vida em uma sociedade de supremacia branca, sabemos o suficiente sobre a cultura branca, sabemos tanto que dá para escrever um livro ou dois sobre a branquitude, já vocês não sabem quase nada sobre nós e menos ainda sobre vocês.

Por que esse desconhecimento? Porque você não precisa saber.

Não, eu não sei de tudo. Eu não cubro todos os ângulos o tempo todo. Às vezes, estou errada. Mas aqui está a coisa: eu sei sobre cultura branca.

Eu posso estar sendo arrogante, mas honestamente, eu estou apenas exausta.

Desde o momento em que nasci minha vida foi mergulhada na branquitude. Não apenas a MTV com a qual eu cresci ou os personagens da Disney que eu amava, mas a história branca que aprendi com os professores brancos, a arte branca que aprendi a reverenciar acima de tudo, os padrões de beleza que eu sabia que nunca alcançaria. Eu sei quais as músicas que vocês mais gostam, quais são suas maiores estrelas de cinema, como você consegue os penteados mais top em suas revistas, que moda você está se apropriando. Sei como é a sua família “ideal”, qual é a sua definição de “família brasileira”. Eu sei o que você acha engraçado e romântico. Eu conheço suas definições de sucesso.

Mas é mais do que isso, muito mais. Eu tive que aprender a conversar com meus professores brancos de uma maneira que não parecia “muito barulhento”, e eu aprendi porque o meu entusiasmo era perturbador mesmo sendo bem recebida por meninos brancos. Eu tive que aprender que nível de contato visual com os policiais parecia respeitoso, o que parecia evasivo e o que parecia desafiador. Tive que aprender porque os seguranças nos supermercados estavam me seguindo. Aprendi porque as mesmas pessoas brancas que escondem sua bolsa quando estou por perto vem correndo me ajudar quando tem uma moeda sobrando.

Eu sei o que “pessoa de bem” realmente significa. Eu sei o que “vândalo” realmente significa. Eu sei o que as palavras “guerra às drogas” farão a você e a nós. Eu tive que aprender porque um Presidente preto meteu tanto medo em muitos de vocês. Eu tive que aprender quantas vezes eu poderia expressar minha opinião em uma reunião de trabalho antes que eu fosse rotulada de “difícil.” Eu tive que aprender o quão alto eu poderia levantar a minha voz antes de ser rotulada como “agressiva.” Eu sei por que vocês querem tanto gritar “macaca” e sei também a cara que vocês fazem ao gritar isso comigo. Eu tive que aprender por que muitos de vocês acham que pessoas como eu são o motivo de vocês serem pobres. Eu sei por que você coopera com nossos movimentos. Eu sei porque você ainda espera um obrigado. Eu tive que aprender por que suas necessidades são padrão e unitária, mas as minhas são “divisionistas”. Eu tive que aprender a não ser suspenso por professores brancos, como não ser preso por policiais brancos, como não ser demitido por supervisores brancos.

Nesse exato momento sei que a maioria de vocês estão compelidos a me explicar que esse texto não trata sobre vocês e por isso estão repensando em continuar com a leitura.

Eu tive que aprender por que suas necessidades são padrão e unitária, mas as minhas são “divisionistas”.

E para saber tudo sobre vocês, tive que aprender como a raça foi inventada em função do capitalismo para justificar a brutalidade do genocídio e do trabalho forçado. Aprendi como a escravidão é reutilizada no complexo industrial da prisão e no trajeto destinado a escola-cadeia. Eu tive que aprender como a força de sua polícia foi criada para retornar povos pretos à escravidão e manter o controle das populações de cor para assim fabricar um falso sentido de segurança branca. Eu tive que aprender como a Estratégia do Sul[1] foi capaz de capitalizar o racismo que você não ousa ver em si mesmo, embora pudéssemos ver isso claro como dia. Eu tive que aprender como os irlandeses se tornaram brancos enquanto nós não pudemos. Eu tive que aprender como você poderia reivindicar legalmente possuir uma terra roubada e como você ainda pode hoje.

E para saber tudo sobre vocês, tive que aprender como a raça foi inventada em função do capitalismo para justificar a brutalidade do genocídio e do trabalho forçado.

Você não teve que saber estas coisas; mesmo se você estudou alguns desses tópicos na escola, você não precisa conhecê-los. As pessoas de cor, por outro lado, perderam muito ao errar essas lições. Fomos despedidos por usar o cabelo de maneiras que você não gosta, por não esconder nossos corpos que você decidiu hipersexualizar, por ter muitas opiniões, por responder honestamente demais, por usar nossos próprios sotaques e diálogo em vez do seu, por acreditar em você quando tu disse que não toleraria racismo em nosso ambiente de trabalho, por ensinar uma história que você se recusa a reconhecer, por celebrar nossa beleza que você não quer ver. Nós morremos por andar com um certo ar de arrogância, por mexer em nossos bolsos, por pedir ajuda, por falar com o tom errado, por dar um olhar ameaçador, por tocar nossa música muito alto, por não nos afastarmos, por nos afastarmos, por marchar em paz.

Sua sobrevivência nunca dependeu do seu conhecimento da cultura branca. Na verdade, é exigido a sua ignorância. A cultura dominante não precisa se ver para sobreviver, porque a cultura sempre muda para atender às suas necessidades. Esta mudança é mais barata e mais fácil quando você não olha como ela está sendo realizada — se você nunca perguntar quem está pegando o cheque. E não, você não nos conhece e nem nos vê — mesmo dizendo que nos ama. Você não pode; nós não existimos como pessoas na maioria dos lugares em que você procura informações.

Gostaria muito que você me enxergasse — assim como gostaria que o racismo sistêmico fosse simplesmente um problema de grupos diferentes que não se veem — mesmo assim, primeiro eu preciso que você se veja, realmente se veja. Esta é a prioridade máxima.

Porque eu e tantas pessoas de cor tivemos que ficar de pé e assistirmos vocês declararem que vivemos em um mundo pós-racista quando Obama foi eleito, ao mesmo tempo que pudemos ver como muito do legado da escravidão e da brutalidade ainda está alojado no fundo do seu coração. Eu tive que assistir o Tea Party se levantar a partir de seu medo de perder a promessa de séculos de que você sempre conseguiria mais porque sempre teríamos menos, tudo isso acontecendo enquanto você dizia que estávamos loucos. Eu tive que assistir vocês comemorando a uma eleição já ganha, pude ver que seus pais, seu tio, ou até mesmo sua esposa iriam votar para a Supremacia Branca, porque parte deles sabiam que ainda falta receber tudo de que merecem nessa vida, e que dentro de alguns anos eles não teriam os votos para proteger-los.

E quando a eleição para a continuação da Supremacia Branca foi ganha, eu tive que assistir vocês dizendo que não era Supremacia Branca, era, porém, a economia ou a política identitária ou era o legado de Clinton. E quando pessoas brancas em toda a América começaram a fazer saudações nazistas em ginásios e reuniões políticas, quando os brancos começaram a adicionar suásticas às suas fotos de perfil e pintaram suásticas nas paredes, eu tive que assistir vocês virarem para a pessoa mais próxima de cor e perguntar “Como isso aconteceu?”

E enquanto eu percebo como tudo isso aconteceu — entendo como a história inteira deste país racista, encharcado de sangue e de sua enraizada auto-ilusão nos desembarcou aqui — eu realmente ainda não sei o quanto vai demorar para que você também veja.

Porque temos tentado lhe mostrar, tentamos até alcançar a exaustão. Nada disto — nem uma única palavra que eu tenha escrito neste ensaio ou em toda a minha carreira — é novo. Pessoas de cor sempre imploraram para que você olhasse o que você está fazendo e por quê. Estamos implorando para que você veja de onde você veio e o verdadeiro legado que herdou. Pedimos que você veja sua bota em nossos pescoços que desde de muito tempo continua aqui.

Encontre-se pessoas brancas. Encontre-se para que você possa saber o que é a branquitude. Encontre-se para que você possa determinar o que você quer que a branquitude seja. Encontre-se de modo que você consiga parar seus amados de votar para uma definição da branquitude que não te representa. Encontre-se para que o racismo já não o surpreenda mais. Encontre-se para que talvez eu possa tentar escrever uma ficção ou um conto para variar um pouco.

Encontre-se para que da próxima vez que você me oferecer a “perspectiva branca”, você consiga dizer algo que realmente me surpreenda.

[1] Foi uma política norte-americana formulada pelo Partido Republicano, utilizada para ganharem apoio dos estados do sul que estavam ao lado do Partido dos Democratas. Para isso utilizaram como ferramenta o racismo contra os afro-americanos. Mais em: https://en.wikipedia.org/wiki/Southern_strategy

--

--

Carolina Ramos Heleno

A vontade de viver é tanta que sou pró de Ed. Física, trabalhadora da @oia.fia, feminista, maluca!