O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan

Arthur Tuoto
6 min readOct 24, 2019

O Sexto Sentido (1999) foi um filme bastante definitivo para a carreira de M. Night Shyamalan. Mais do que estabelecer o indiano como uma das grandes promessas cinematográficas da virada do milênio, o longa evidencia um dos maiores talentos do diretor: o sutil equilíbrio entre o drama da narrativa e a intimidade estabelecida entre seus personagens.

Mesmo que Shyamalan seja um diretor que trate de temas fantasiosos, não resta dúvida de que a base do seu método está, antes de tudo, no drama. Principalmente em como esse drama se dá através de relações de intimidade. Relações interpessoais entre conhecidos ou desconhecidos que possuem uma inocência implícita, uma ingenuidade na forma em que os indivíduos se aproximam um do outro; como eles, até mesmo, flertam com o desconhecimento através de uma singeleza.

Em poucas palavras, os filmes do diretor tratam sobre a descoberta íntima do outro e de si próprio. Não apenas uma descoberta sobrenatural, mas um autoconhecimento que se dá através de uma jornada que é tão mística quanto realista. A relação com os temas esotéricos e o cinema de gênero surgem, nos filmes do cineasta, como modos de se lidar com uma superação dramática que, de algum modo outro, sempre envolve o mundo material.

Da mesma forma que os protagonistas de Sinais (2002) e A Dama na Água (2006) fazem da jornada sobrenatural um meio para uma superação pessoal, em O Sexto Sentido encontramos isso não na figura do personagem de Bruce Willis, mas na de Haley Joel Osment. Malcolm Crowe, o psicólogo interpretado por Willis, atua justamente como esse elemento fantasioso que, indiretamente, ajuda o pequeno Cole a entender a sua mediunidade e, consequentemente, a restabelecer um vínculo familiar com sua mãe e com o mundo.

Os protagonistas de A Dama na Água, Sinais e O Sexto Sentido

O Sexto Sentido inverte, de certa forma, os papéis da jornada que Shyamalan estabeleceu nos filmes seguintes. O famoso plot twist do filme, ironicamente, se baseia nessa inversão. Passamos o filme inteiro pensando que a ideia de superação virá a partir da construção do personagem de Willis (até porque ele, querendo ou não, é o protagonista), porém o psicólogo acaba atuando muito mais como um meio. A superação de Willis passa mais por um entendimento da sua jornada de vida, inevitavelmente do final dessa jornada, do que exatamente por uma redenção dramática que restabelece seus vínculos com o mundo. Pelo contrário, a sua finalidade é justamente fechar esses vínculos.

Se muito do impacto do drama no longa, como também do twist final, vem da nossa crença nessa relação significativa entre o médico e a criança, isso se deve à minuciosidade com que esse vínculo é construído pelo diretor. Nesse aspecto, uma das principais características do filme é a força das suas cenas isoladas. Cenas aparentemente simples, mas que são vitais na construção de uma espontaneidade íntima entre os personagens.

Em um dos primeiros encontros entre Malcolm e Cole, o médico propõe um jogo simples. Sentado na sala do apartamento em que a criança mora, ele diz que vai tentar acertar os pensamentos de Cole. Cole, por sua vez, deve dar um passo para frente cada vez que o Médico acertar um pensamento e, seguindo a mesma lógica, um passo para trás cada vez que ele errar.

O encontro entre Malcolm e Cole

No início da sequência, ao tratar de elementos conscientes do seu paciente (o divórcio dos pais, por exemplo), o médico acerta seus pensamentos. A partir da metade, quando ele tenta entender mais intimamente a origem das perturbações da criança (a mediunidade), ele erra e Cole vai se distanciando.

Essa é uma cena chave porque exemplifica muito bem tanto uma simplicidade formal como uma complexidade dramática implícita em todo o cinema de Shyamalan. A sequência se passa em um cômodo, possui uma decupagem relativamente simples e conta com apenas dois personagens. Entretanto sua minuciosidade dramática revela uma fragilidade muito peculiar nesse encontro.

Os diretor estabelece uma dinâmica aparentemente simples e até irônica (o personagem de Willis faz um movimento caricato com as mãos, fingindo ser um vidente) para evidenciar um conflito dramático vital (o desconhecimento desse mundo fantástico por parte do médico) para a resolução da trama. Ou seja, o cineasta parte dessa ingenuidade, desse caráter do que é infantil (um jogo de ler a mente) para localizar o mistério que irá guiar seu filme inteiro. Um mistério que, uma vez assimilado, irá restaurar a paz na vida e na morte dos dois personagens.

O Sexto Sentido é cheio de cenas como essa. Pequenos momentos em que o enigma é sustentado por um drama íntimo. Outro momento de força absolutamente inquestionável é quando Cole, no carro com sua mãe, conta para ela sobre a sua capacidade de enxergar espíritos. A mãe não acredita, o menino fala detalhes sobre sua avó que só a mãe saberia, e eles se entregam a um dos abraços mais marcantes da história recente do cinema.

O diálogo no carro entre mãe e filho no final de O Sexto Sentido

Além do trabalho essencial com os atores, muito dessa potência é criada a partir de um naturalismo na maneira que o diretor filma. Shyamalan decupa muito pouco as suas cenas. O diretor resolve suas sequências com pouquíssimos planos e, algumas vezes, com apenas um plano sequência. Esse método, de certa forma, respeita a força do momento dramático. Não existe uma imposição pelo corte, mas sim uma assimilação completa do quadro que aceita a totalidade do acontecimento em cena.

A música, essa sim, determina uma atmosfera emocional mais do que a montagem. A fascinação por esses momentos isolados poderia ser resumida pela junção entre a forma íntima que os atores se expressam; os poucos e muito significativos planos, os sutis movimentos de câmera; e a maneira que a música lapida o tom final.

O icônico diálogo entre os personagens de Joaquin Phoenix e Mel Gibson em Sinais (2002), na cena em que, sentados no sofá, eles discutem como o mundo se divide entre pessoas crentes e descrentes, segue uma linha muito parecida.

Olhando para a carreira de Shyamalan, O Sexto Sentido soa como um filme relativamente tradicional. Enquanto que no decorrer da década de 2000 o diretor foi se engajando em uma desconstrução muito mais aberta das suas referências e das próprias definições do cinema de gênero (A Dama na Água e Fim dos Tempos tratam diretamente disso), o longa de 1999 se focava em um aspecto muito mais essencial das tradições do suspense.

Ainda assim, é impossível não perceber que boa parte das bases que, ainda hoje, sustentam os filmes do autor, já estavam, aqui, muito bem definidas. Seja por uma relação formal minimalista e envolvente que ele até hoje desenvolve (poucos planos aliados a uma atmosfera emocionalmente sedutora), seja por essa constatação de que a essência da narrativa não está apenas na dimensão sobrenatural das forças que atuam no filme, mas também na intimidade dramática que elas comovem.

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