Sincretismo religioso no Brasil: A miscigenação para além da cor da pele

pauli
5 min readJun 11, 2019
Objetos de diversas religiões à venda na loja de artefatos Caçula, no centro de Bragança Paulista.

Tanto a escravidão quanto a colonização europeia trouxeram marcas profundas para a cultura brasileira. Considerado um dos países mais miscigenados do mundo, o Brasil possui uma enorme mistura de costumes que se manifestam na culinária, arquitetura, cultura popular e é claro, no aspecto religioso.

Quem nunca ouviu alguém dizer que “o santo não bate” com o de outra pessoa ou nunca viu alguém pular ondas do mar na virada do ano para dar sorte? Tudo isso é fruto das tradições africanas que ficaram marcadas em nossa cultura. O termo “sincretismo religioso” é usado especificamente para definir a junção de dois ou mais elementos religiosos que formam algo novo.

Em cada região do continente africano vivia uma etnia diferente de negros, cada um com sua própria cultura, língua e crença. Quando os europeus viajavam para a África em busca de escravos, compravam pessoas de diferentes regiões do continente como uma estratégia para evitar fugas e revoltas, já que a língua distinta e o conflito cultural dificultavam qualquer comunicação ou ação em grupo.

Mesmo com as tentativas dos Senhores de dificultar a convivência entre os escravos, eles se organizavam e compartilhavam sua cultura uns com os outros. Isso resultou no formato de Candomblé e Umbanda dos dias de hoje: crenças originalmente brasileiras que cultuam mais de um orixá (santos africanos) e possuem elementos cristãos e indígenas.

Sincretismo como resultado da opressão

“O sincretismo religioso, para nós, nasce como um modo de nos oprimir”, afirma o babalorixá (sacerdote candomblecista) Pai Bil de Xangô. Segundo ele, não era permitido que os escravos manifestassem sua religiosidade nas senzalas, por isso eles começaram a associar seus orixás aos santos católicos que possuíssem características semelhantes, como por exemplo, Iansã, orixá dos raios e das tempestades, que no sincretismo é Santa Bárbara, também protetora dos raios. “Eles botavam a imagem de Santa Bárbara e davam louvação à Iansã, então o padre chegava lá, via a imagem de Santa Bárbara e não quebrava”.

Pai Bil de Xangô.

Mas a perseguição não era apenas contra negros. De acordo com o babalorixá, os judeus e os indígenas, principalmente, também sofreram opressão por parte dos cristãos e se refugiavam nos quilombos dos negros, que era um local religiosamente democrático. Isso também contribuiu para o aumento da mistura religiosa, que nada mais é do que uma consequência da história do Brasil. Mesmo assim, muitas pessoas ainda não reconhecem as referências africanas na cultura brasileira e as negam. “A escravidão ainda está viva, está aqui perpetuada entre nós. ” Afirma Pai Bil.

Umbanda e Candomblé: é a mesma coisa?

Dona Irene e as bananas de Oxóssi na cozinha dos santos.

Muitas pessoas se confundem com os dois termos. Apesar de ambas as religiões serem de matriz africana, elas possuem diferenças relevantes. Dona Irene, mãe de santo há 45 anos, aponta: “No candomblé puro tem a matança para o santo, o fundamento, tem o assentamento (…) Já a umbanda tem consulta, os guias vem, como o Preto Velho, Baiano, Caboclo (…)”. Além disso, ela afirma que o seu terreiro, ou illê, como prefere chamar a bonita chácara de Pedra Bela onde realiza seus feitos, é de “umbandomblé”, ou seja, possui práticas que pertencem tanto à umbanda quanto ao candomblé.

Maria “Conga”, Preta Velha de Dona Irene. É possível perceber os terços católicos pendurados na imagem.

É possível encontrar nos terreiros imagens de santos que também são usadas em ambientes cristãos. Na Umbanda isso é mais comum, pois o culto possui misturas cristãs, indígenas e espírita. Já o Candomblé pode ser considerado um culto afro-brasileiro mais “puro”, com seu próprio idioma e raízes de determinadas regiões do continente africano, além do conhecido sacrifício para os orixás.

Cristianismo e Cultura Popular

Não só nos ambientes da Umbanda e do Candomblé se encontram elementos cristãos, mas o contrário também acontece. A cultura popular, que foi adotada pela Igreja Católica do Brasil, agrega diversas festas com características vindas da cultura africana, como a Folia de Reis, a Congada e outras comemorações que homenagem santos que compõem o sincretismo, como por exemplo a festa de Nossa Senhora do Rosário em Minas Gerais.

“Cientificamente falando, há um sincretismo. Mas as pessoas que frequentam, não sabem. ”, explica o Padre João Ricardo. Segundo ele, a presença de elementos africanos e indígenas em festas católicas acontece por causa das misturas culturais do Brasil, e são importantes para criar o diálogo inter-religioso entre as crenças. O mesmo serve para fiéis que procuram benzedeiras ou outros ritos que vão além das missas e costumes católicos. “A igreja não condena a religiosidade popular”. Completa.

Mesmo com tantas referências africanas no cristianismo, é sabido que muitos fiéis ainda veem a Umbanda e o Candomblé com maus olhos, principalmente quando se trata dos sacrifícios de animais em terreiros. “A própria Igreja Católica celebra o sacrifício de Jesus Cristo. ” Lembra o Padre, alegando que existe a falta de conhecimento das pessoas e que a igreja deve educar a consciência do cristão.

Intolerância e preconceito

“O que nós temos no Brasil é racismo religioso”, afirma o jornalista e mestre em políticas públicas Felipe Brito. Frequentador do Candomblé há 21 anos, Felipe explica que a maior parte dos casos de intolerância religiosa são contra os cultos de matrizes africanas e às comunidades de terreiro, e que não acontecem apenas de maneira simbólica, mas também física. Segundo o balanço Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no ano passado foram registradas 537 denúncias de discriminação religiosa, sendo 144 referentes à Umbanda e ao Candomblé. As violências vão desde ofensas verbais até casos mais graves, como a queima, demolição e invasão de terreiros.

Este ano, o Supremo Tribunal Federal tornou constitucional a lei que permite o abate de animais nas religiões africanas. A medida causou inúmeras polêmicas e discussões, aflorando mais uma vez a intolerância e ignorância de muitas pessoas. Para Brito, isso é mais um exemplo de racismo institucional: “Eles não conseguem entender, não conseguem perceber que este ritual está inserido na religião judaico cristã. Então o preconceito se direciona para o Candomblé, para as religiões de matrizes africanas, justamente porque há um recorte racial”. Afirma.

Mesmo com toda a opressão e tentativas de apagamento, a cultura africana resistiu e continua deixando suas marcas tanto nos traços físicos quanto nos traços culturais do povo brasileiro, e não é preciso ir muito longe para enxergar tais identidades, mas apenas reconhecer a história do Brasil.

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pauli

Jornalista que gosta mais de música do que de jornalismo.