De oculto a cult — A vida secreta de Alcides Caminha ou Carlos Zéfiro

Saulo Pereira
8 min readNov 26, 2015

A incrível história do compositor de belos sambas da Praça Tiradentes que sem dinheiro e com muito talento se tornou o maior desenhista erótico do Brasil

Por Saulo Pereira Guimarães

Salão Thalia, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro

Não há nada mais carioca do que pedras portuguesas. Elas já estavam na Praça Tiradentes quando um Rolls-Royce preto conversível parava as suas rodas brancas com calotas prateadas ao lado da calçada para que um homem baixinho e rechonchudo descesse do carro rumo a uma escada estreita no número sete da rua Dom Pedro I.

Lá em cima, as pernas de Virgínia Lane esperavam Getúlio Vargas num camarote reservado perto do palco. Do outro lado do salão, o comunista do Mário Lago, um tricolor que estudou no Pedro II e se formou em Direito, podia falar maravilhas sobre uma tal Amélia para um tipo vindo de Miraí — interior de Minas — chamado Ataulfo Alves. Esse escurinho compôs o “Bonde de São Januário” — samba muito desaforado que mudou de letra com o Estado Novo — com um mulato de 1 metro e sessenta e cinco, feições finas e cabelos ondulados, que sofre tanto para escrever Wilson Batista quanto tem a maior facilidade de fazer samba. Todos frequentadores do Salão Thalia, templo da arte das 8 bolas vulgarmente conhecida como sinuca. Lar de toda essa gente e do ébrio Vicente Celestino, sucesso no cinema e na varanda, onde toca um tango que o Oscarito lá debaixo pode ouvir, já que nunca teve coragem de subir — mesmo quando encenava Morangos ao Leite no Carlos Gomes em 1932. O relato é de José Moreira, advogado e proprietário do atual Bilhar e bar Guanabara.

O bilhar era a casa do malandro e a rapaziada se divertia assim naquele tempo quando numa noite boêmia de 1956, numa mesa com pelo menos um copo de conhaque de alcatrão — bebida preferida de Nelson Cavaquinho — um homem qualquer escreveu num pedaço de papel:

Tire seu sorriso do caminho

que eu quero passar com a minha dor…

Essa é a história desse homem qualquer.

História contada por um sargento da PM aposentado há 14 anos que já levou três tiros e come uma pizza de calabresa com cebola num shopping em Vicente de Carvalho, subúrbio do Rio. Junto de Reinaldo está o primo Hélio, botafoguense e professor de história. Entre goles de cerveja, as lembranças vão surgindo no entardecer.

O pai de Reinaldo nasceu na Rua Bella, no bairro de São Cristóvão, em 26 de setembro de 1921. Na escola, Alcides Aguiar Caminha só desenhava navios e caravelas para as exposições de fim de ano. Entretanto, não chegou a completar o curso ginasial. “Sua primeira profissão foi marceneiro”, lembra Dico — apelido de família de Reinaldo. “Depois, foi até cantor de circo”, completa.

_ Respeitável público, ele: Gil Duarte! – seu nome no picadeiro. Alcides foi ainda goleiro do seu time do coração — o São Cristóvão -, estatístico e desenhista no hospital do Galeão, funcionário do Departamento Nacional de Imigração e datiloscopista no Ministério do Trabalho.

Às cinco da tarde, quando acabava o serviço, Alcides batia ponto no Salão Thalia na Praça Tiradentes. Lá, fez letras para sambas como “A Flor e o Espinho” – aquele do sorriso no meio do caminho — e “Capital do Samba” em 1956. “Notícia”, foi feito dois anos antes para uma amante sua que morava em Quintino, como conta Hélio — que ficou sabendo da história por um irmão de maçonaria…

Alcides se casou aos 25 anos com Dona Serrat em 1946. Na casa que desenhou e construiu com Dico na Rua Cardoso de Castro em Anchieta, ele era um típico funcionário público. Pai de cinco filhos, daqueles que se irrita quando passam em frente à TV quando ele está assistindo ou estão no banheiro quando ele quer usar, que come muitas frutas após as refeições que a vida toda só faz com o mesmo par de talheres pesados do tempo do hospital do Galeão.

Mas capaz também de fazer balões do tamanho da casa, ventiladores e trabalhos de escola que os professores dos filhos não querem devolver de tão bem feitos, de cantar “Meus tempos de criança” nas festas de família cheio de saudades da professorinha que lhe ensinou o bê-a-bá, além de uma canção de amor de quase dez minutos que Hélio não lembra — mas também não esquece – e levar Jamelão ao Sport Club Anchieta nos tempos em que era diretor. Capaz de saber tudo de história, ler muito, desenhar muito e não desistir de nada. E essa seria sua vida, não fosse um “bico” estranho que Alcides aceitou e que lhe renderia mais dinheiro do que os sambas e muito menos fama – como o novo ofício, aliás, exigia.

Tudo por conta da lei 1711, de 28 de outubro de 1952, ratificada pelo Estatuto do Funcionário Público, de 1º de novembro de 1952, que no capítulo V — artigo 207, inciso III — previa a demissão de funcionários públicos em casos de incontinência pública e escandalosa.

Ilustração de Carlos Zéfiro

Não se sabe ao certo como tudo começou. Hélio Brandão – o “Gordo” , primeiro editor e distribuidor — contava que as reuniões aconteciam à noite, numa loja em cima do Cine Presidente, na Editora Ouro. Lá, discutiam-se os roteiros e eram feitas duas histórias por semana. Segundo Alcides, a ampliação de revistas eróticas italianas a pedido do Caldas, um motorista do hospital do Galeão, foi o início de tudo. As versões não importam. Sobre um roupeiro velho no quarto, nascia Carlos Zéfiro.

Um esquema de gráficas de subúrbio, editores e mascates levava as revistinhas para todo país. “Havia outros desenhistas eróticos, mas nenhum tão conhecido como Carlos Zéfiro”, conta Adda Di Guimarães, dona de uma banca de revistas antigas em Ipanema. Nas páginas dos catecismos – nome paulista para as revistas em formato de quarto de papel-ofício -, a lenda devorava mulheres apetitosas e safadinhas do fim dos anos 40.

Moças que por 20 anos se recusaram a se entregar à primeira vista para logo se desfazerem em desmaios após transas intensas em 862 revistas com tiragem média de cinco mil exemplares – best-sellers, como Aventuras de João Cavalo, um capiau bem-dotado que demora a encontrar um chinelo velho para seu pé cansado, alcançaram 30 mil exemplares.

Contos guardados na memória afetiva de quatro gerações ávidas por se lambuzar com o herói das cabines de banheiro, seja no Brasil, Uruguai ou Argentina – para onde as revistas que deram mais dinheiro foram exportadas (sem legendas, pois Alcides não sabia castelhano) – e “até na França e na Espanha, onde já foram encontradas”, conta Hélio. Zéfiro virou mito: digno de inquérito militar durante a Copa de 70 para esclarecer quem era o subversivo da moral e dos bons costumes.

Era 10 de junho, dia de um 3x2 do Brasil em cima da Romênia em que Rivelino não jogou e Pelé fez um gol de falta aos 20 minutos. Enquanto isso, a Polícia Federal prendia “Gordo” com 50 mil catecismos na capital federal — suficientes para fazer a alegria de um estádio Jalisco inteiro. Tudo acabou bem, mas Hélio Brandão nunca mais editou Carlos Zéfiro.

Três anos depois, era Alcides quem se mudava para capital por questões de trabalho com Serrat e Cid – o filho mais novo. Ofereceram-lhe um apartamento em Brasília, mas ele só conseguia viver em casa. Na primeira noite em Sobradinho, ficou vagando pelo cerrado vazio com um revólver em punho.

“Brasília acabou com meu pai”, conta Dico. O diabetes, as revistas coloridas européias, o fim da era de ouro de Carlos Zéfiro. De bom, o diploma de conclusão do curso ginasial em 1979. “Dava aula para o chefe no trabalho”, esnoba o filho orgulhoso do pai autodidata, capaz de fazer sozinho os sapatos cavalos-de-aço que via na televisão.

Porém, Alcides ainda escondia seu lado Zéfiro. Ele temia pela sua aposentadoria. Tudo por causa da lei 1711, de 28 de outubro de 1952… “Ele tinha ela guardada em casa”, lembra Dico. Catecismos podiam ser “incontinência pública e escandalosa”.

Enquanto isso, intelectuais que colecionavam as revistinhas, como Ivan Lessa e Marcos Nanini, especulavam sobre quem poderia ser o autor. “Quem chegou mais perto foi o Sérgio Augusto, que disse que devia ser um velhinho, pai de família, cheio de netinhos em volta…”, reconhece Hélio.

Era 1991, um domingo na casa de Anchieta com direito a Fantástico, mesa posta e família reunida. “Como vocês querem que eu faça?”, Juca Kfouri pergunta. “Lê você mesmo”, respondem. Ele começa. É uma história bonita sobre um homem com medo. Dona Serrat começa a chorar. O homem fuma. Seus filhos, netos e noras ouvem atentos. Juca termina de ler. Aplausos.

Logo chegava às bancas a edição de novembro da Playboy, nº 196, com Ísis de Oliveira e chamada de capa que acabava com um mistério de 30 anos: revelada a verdadeira identidade de Carlos Zéfiro, o lendário autor de quadrinhos eróticos que enlouqueciam o país! Seguiu-se a isso uma série de entrevistas, premiações e homenagens ao ilustríssimo desconhecido. Para Dico, homenagens tantas que o pai não resistiu.

Numa sexta, 3 de julho de 1992, ele recebeu o prêmio HQ Mix pelas décadas de trabalho no mundo dos quadrinhos. No domingo, Alcides sentiu um mal-estar numa festa de aniversário. Ele morreu a caminho do hospital Carlos Chagas em Marechal Hermes com bem vividos 70 anos, nove meses e sete dias. Mas Carlos Zéfiro, esse continuaria vivo na lembrança de meninos eternamente gratos às suas lições.

Os desenhos logo voltariam, ilustrando Barulhinho Bom, disco de Marisa Monte de 1996. Dois anos depois, o trabalho estava nas vinhetas da MTV. Em 1999, Anchieta ganha uma lona cultural com o nome de um de seus anônimos mais conhecidos. “Já teve até sandália querendo os desenhos e cervejaria imitando na cara dura”, resmunga Dico. Não demorou para que A Cena Muda, banca de Adda Di Guimarães, se interessasse em voltar a publicar os catecismos.

Ela me diz que os distribuiu para 150 bancas do Rio de Janeiro. Mas reclama, dizendo que os jornaleiros misturavam os catecismos a “revistas nojentas” — “Eles não entendem o seguinte: Carlos Zéfiro é cult!”

Cult! Cult como o filme a ser rodado em 2012 e “Os catecismos segundo Carlos Zéfiro” — peça exibida no Solar de Botafogo sobre a história de sua vida. Cult como tudo aquilo que além da moda, está no campo da devoção. Cult como o samba, o sexo e as pedras portuguesas, que ainda hoje repousam discretas e ocultas na vida em preto e branco da Praça Tiradentes.

(Reportagem originalmente escrita em 2011 para disputa de vaga na edição 2012 do curso Rumos — Jornalismo Cultural, do Itaú Cultural. Todos os direitos reservados. Proibida a publicação ou reprodução para fins comerciais)

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