O Brasil na linha de J. Carlos

Andrei Reina
Revista Bravo!
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7 min readMar 24, 2017

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Desenhos para publicação em “Para Todos”, 1925 e 1923 (Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha/IMS)

A primeira metade do século XX no Brasil pode não ser rica de registros em foto ou filme. Mas o mesmo não pode ser dito das representações gráficas dos costumes, do dia-a-dia e da política da época. Em atividade entre 1902 e 1950, José Carlos de Brito e Cunha, ou simplesmente J. Carlos, produziu algo em torno de 50 mil desenhos, muitos deles publicados em veículos de imprensa do período.

Essa produção abarcou muitos formatos — como a charge, o cartum, a capa de revista, a tipografia e a publicidade — mas foi na caricatura que J. Carlos melhor retratou a sociedade brasileira e pôde aperfeiçoar seu traço. Cássio Loredano, pesquisador da obra do artista, o define como caricaturista “no sentido mais amplo e mais simples do termo, ou seja, aquele que critica valendo-se de desenhos.” No início, nos anos 1920, ele ainda utilizava materiais próximos aos de um artista plástico, como pincéis e aquarela. Mas logo se concentraria num traço cada vez mais econômico e expressivamente simples. Passou a deixar a cor, então, para as máquinas. Segundo Loredano, é quando “a linha passa a ser a alma do trabalho.”

Loredano somou esforços com Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires para organizar a exposição que abre neste sábado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, e que conta parte dessa história. O trio mergulhou nas mais de mil obras do acervo de Eduardo Augusto de Brito e Cunha (filho de J. Carlos), que desde 2015 está sob guarda do instituto, e selecionou 290 desenhos que dão uma generosa amostra da produção gráfica do artista. Concentrada nos originais que deixou, a exposição permite que se entenda melhor o processo que levou suas criações da prancheta de trabalho para as páginas de revista.

A mostra está dividida em quatro seções. A primeira delas é voltada para o trabalho tipográfico de J. Carlos e apresenta logotipos, vinhetas e letras elaboradas por ele. A segunda seção apresenta crônicas visuais do Brasil e, em particular, do Rio de Janeiro dos anos 1940 e 1950, indo da política de Dutra e Vargas ao Carnaval do período. Reações aos episódios da Segunda Guerra Mundial e um conjunto de trabalhos feitos para publicações infantis completam a exposição. O conjunto, na opinião de Loredano, revela que J. Carlos foi acima de tudo um “homem de imprensa”, colocando seus desenhos à “serviço da notícia, da opinião, da crônica.”

O cartunista Cássio Loredano comenta os originais de J. Carlos

O caricaturista Cássio Loredano, que já escreveu e organizou diversos livros sobre J. Carlos (como o perfil O Bonde e a Linha), enviou à Bravo! alguns comentários sobre a trajetória e o estilo do artista. Leia a seguir:

Homem de imprensa

Entre 1902, quando publicou seu primeiro desenho, e 1950, ano em que morreu, José Carlos de Brito e Cunha (1884–1950), o J. Carlos, publicou mais de 50 mil desenhos. Foram caricaturas, charges, cartuns, ilustrações, letras — capitulares, títulos, cabeçalhos –, vinhetas, adornos, peças de publicidade, enfim, tudo o que é possível fazer a lápis, caneta e pincel para ser impresso. Porque, com meia dúzia de exceções inexpressivas, tudo o que o artista desenhou em 48 anos de trabalho foi para ser publicado em revistas, jornais e livros.

J. Carlos foi dos grandes homens de imprensa surgidos no Brasil. Sua carreira cobre toda a primeira metade do século XX. Ele é o autor prolífico do minucioso registro da reurbanização e do saneamento do antigo Distrito Federal, cidade, aliás, de que nunca se ausentou e em que confeccionou sua obra de cabo a rabo. Ilustrou o alargamento de ruas e a abertura de largas avenidas, o desmonte do morro do Castelo, a eletrificação da iluminação e dos transportes. O caricaturista documentou ainda o advento do automóvel, do asfalto e da pressa, do avião, do elevador e da verticalização da cidade, do fogão a gás, do rádio, do cinema e da televisão; e a passagem de quase 50 carnavais. Também fez a cobertura política da República Velha e de seu fim — e das tragédias de duas guerras mundiais, do entreguerras e do início da Guerra Fria. Em suma, de tudo o que houve naquelas cinco décadas trepidantes e vertiginosas, entre o grande otimismo do início do século e a consternação sombria do final do período.

Do modernismo e art déco ao estilo próprio

O artista é dos primeiríssimos representantes do modernismo no Brasil, com a leitura — direta ou indireta — que fez do art nouveau e da art déco a partir da década de 1910. Isso está evidente nos desenhos que faz de arranha-céus, em seus interiores, móveis, luminárias, estamparia, nas roupas e nos corpos de suas melindrosas e afrodites. Base sobre a qual rapidamente desenvolveu um estilo completamente seu, inconfundível e inimitável.

Desenhos para publicação em “Careta”, de 1942 e 1950 (Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha/IMS)

Pau pra toda obra

No começo do século XX, tudo tinha que ser desenhado. A imprensa e a publicidade foram tendo necessidade cada vez mais vital da imagem como parceira da palavra em completo pé de igualdade. As oficinas gráficas tinham dado nos anos 1920 um salto enorme nos recursos, tornando-se capazes de imprimir peças de uma qualidade que até hoje impressiona. Mas a fotografia ainda engatinhava, era processo laborioso, moroso e muito caro — e sua reprodução impressa era, na grande maioria das publicações, bastante grosseira e exclusivamente em preto e branco. Resultado: a imprensa tinha que recorrer ao caricaturista para a crônica e o comentário visual da atualidade; e a publicidade, ao ilustrador, para dar ao público a imagem, se necessário colorida, dos produtos e serviços que anunciava.

J. Carlos era, nos departamentos de arte das revistas por que passou, o que se chama de “pau pra toda obra”. Fez milhares de vinhetas e as maravilhosas aberturas de textos em que as capitulares ou os próprios títulos, também feitos à mão, estão metidos na ilustração. Seu evidente lema é “se pode ser bonito, por que não sê-lo?” — num verdadeiro sacerdócio de amoroso apreço pelo olhar do público. O primeiro desenho publicado de J. Carlos é um retrato de Campos Sales, quarto presidente da recém-proclamada república, no semanário Tagarela, em 1902. Dali em diante, comenta tudo o que houve de importante na história do Brasil, até o principal episódio do ano de sua morte, 1950, o pesadelo do maracanazo. Passando por 28 anos de República Velha, a Revolução de 1930, o Golpe de 1937 e a ditadura e a censura do Estado Novo, e as derrotas do brigadeiro Eduardo Gomes — de quem o caricaturista era partidário — em 1945 para o general Dutra e em 1950 para Getúlio Vargas. Foram 48 anos em que ele testemunhou e, através de seu trabalho, registrou a transformação do Brasil rural em crescentemente urbano e o lento nascimento no país de uma sociedade industrial e de consumo.

Segunda Guerra Mundial

Na Segunda Guerra (1939–1945), J. Carlos volta a se posicionar contra os projetos expansionistas germânicos, como o fizera no conflito mundial de 1914. E é de importância inestimável ter já na primeiríssima hora o grande caricaturista brasileiro alinhado com as democracias aliadas contra o Eixo Berlim-Roma-Tóquio. Todas as semanas, em qualquer esquina do país, uma revista com o significado e a popularidade da Careta trazia na capa um comentário visual de J. Carlos, com tudo de agilidade de leitura que a imagem possui. E contrabalançando assim, com vantagem, a propaganda que arregimentou entre nós não poucos simpatizantes daqueles totalitarismos, gente mesmo dentro do palácio do Catete, como, por exemplo, os generais Dutra e Góis Monteiro, este chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, aquele, ministro da Guerra de Getúlio.

Eis aqui, retratados no ponto de vista de um brasileiro, todos os atores do que começa com a endêmica autofagia europeia e acabará por implicar o planeta todo. Hitler, Göring e Goebbels, depois Mussolini, celerados ridículos, facínoras patéticos. E mais Hirohito, que vai cutucar os americanos com vara curta no Pacífico. Vitório Emanuel, rei da Itália, e Selassiê, da Etiópia. E então Churchill e o agora aliado Stalin, traído por Hitler no pacto que com ele fizera. E Roosevelt. A coisa começa a virar: Itália em chamas e ruína; a Alemanha repete o erro de Napoleão, ir se meter no inverno russo; e no Saara escaldante. Tudo se precipita, é o desastre, não deu certo a pretendida nova ordem mundial megalomaníaca do Reich de mil anos, do “povo sem espaço vital”. Por último, as duas bombas vingando Pearl Harbor e mandando um recado para Moscou. E, com Truman substituindo Roosevelt, a Guerra Fria, que vai durar os próximos 45 anos, até o desmonte do bloco dos países comunistas e a queda do muro de Berlim.

Desenhos para publicação em “Careta”, de 1943, e “Para Todos”, de 1926 (Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha/IMS)

O ponto de vista infantil

Os desenhos infantis são — com o que J. Carlos fez para a publicidade e a ilustração de livros — a porção não jornalística de seu trabalho. Sobretudo, com os desenhos para o semanário infantil O Tico-Tico, o artista encarna completamente o ponto de vista da criança, estabelecendo com o público infantil um diálogo incrivelmente imediato e se utilizando dessa entrada aberta, dessa conquistada camaradagem, tanto para divertir como muitíssimo para educar. É a parte por assim dizer pedagógica do seu trabalho na imprensa.

J. Carlos: Originais

Abertura: 25/3, 18h. Visitação: de terça a domingo (11h/20h), até 22/10. Mais informações no site: www.jcarlosoriginais.ims.com.br.

Instituto Moreira Salles: Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea, Rio de Janeiro.

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