Por Memória Globo

Memoria Globo

Mulatas, malandros, sambistas, torcedores e uma cidade maravilhosa como pano de fundo. As ligações desses típicos cariocas com o Rio de Janeiro servem de fonte de inspiração para um certo italiano que chegou por aqui ainda criança e foi consagrado como um dos mais importantes caricaturistas do Brasil. Ao longo de sua trajetória profissional, Lan passou por jornais uruguaios, argentinos e brasileiros. No Brasil, seus trabalhos ganharam destaque no Jornal do Brasil e no O Globo, principalmente as caricaturas sobre mulheres e carnaval. Na Globo, o cartunista participou do processo de criação de vinhetas animadas para os intervalos —  as célebres plim-plim —  e criou cenário para o programa 'Fantástico'.

Nunca pensei na morte, porque se eu for embora antes dos 100 anos, eu parto à revelia. Pretendo trabalhar enquanto viver, procurando novas motivações e novos campos de trabalho.

O caricaturista Lan em sua casa em Pedro do Rio, 2015 — Foto: Acervo/Agência O Globo

Início da carreira

O nome é comprido, mas a assinatura tem apenas três letras: Lan, “puro e simples”. Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortelline Rossi Rossini nasceu na pequena cidade Montevarchi, na Toscana, próxima de Arezzo e Florença. O sobrenome extenso é uma homenagem às duas famílias, mas nos documentos, ele diz, divertindo-se: “cortei e coloquei Lanfranco Vaselli e assino Lan. Às vezes, quando me chamam de senhor Vaselli, eu pergunto ‘Quem, quem?’, fico meio na dúvida se sou eu”.

A primeira passagem de Lan pelo Brasil foi aos quatro anos de idade. Seu pai, que era músico, se integrara à Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e sua mãe, ao Instituto Dante Alighieri. Após a revolução de 1930, a família se mudou para o Uruguai. O pai aceitou o desafio de inaugurar a orquestra Sinfônica de Montevidéu. Foi lá que Lan passou a juventude e iniciou o curso de Arquitetura. Mais tarde, largou a faculdade para seguir sua vocação: o desenho.

Seu primeiro trabalho, ainda amador, saiu na revista Mundo Uruguayo em 1945. Em seguida, o primeiro emprego como caricaturista esportivo no jornal El País de Montevidéu. Três anos mais tarde, estreava em uma exposição em Punta Del Leste. Contratado pela imprensa argentina, Lan ganhava projeção internacional. Com apenas 23 anos, era colaborador de cinco jornais— entre eles, o Mundo Deportivo—, e duas revistas portenhas. Tinha uma vida intensa, ganhava bem e gastava muito. “Eu esbanjo até hoje, de forma que eu sou do consumo mesmo. O que vou fazer? Ninguém é perfeito”. Muito trabalho e muita boemia, mas a farra nunca atrapalhou o seu ofício, uma prioridade absoluta. Não que fosse “caxias”, mas tinha senso de responsabilidade: “Quantas vezes eu disse que Dorival Caymmi, ao meu lado, é operário-padrão?”. O cartunista teve como chefe, entre outros, María Eva Duarte de Perón, a Evita Perón, quando trabalhou na publicação argentina, Editorial Haynes. “Ela era baixinha, jeitosinha, não era uma beleza, mas era uma mulher muito charmosa. E, até hoje, lembro um detalhe que me chamou atenção, como hoje me chama atenção toda mão bonita de mulher me atrai terrivelmente, eu acho linda! E a mão dela era maravilhosa, linda. Disso me lembro bem”, recorda-se.

Paixão pelo Rio de Janeiro

Lan saiu de Buenos Aires, em 1952, com a intenção de fazer caricaturas e desenhos sobre temas folclóricos da América do Sul para a revista Caras e Caretas. Nesse mesmo ano, ao visitar seus colegas argentinos Honrado, Ares e Parpagnolli, que trabalhavam no jornal carioca Última Hora, sentiu uma paixão imediata pela cidade do Rio de Janeiro. Seduziram-no a paisagem, as mulatas, o Flamengo e a Portela. “Quando você se apaixona por uma mulher, pode conhecer uma outra mulher muito bonita, mas tem a preferência. Amor é amor e, nesse caso, pelo Rio de Janeiro, o qual eu nunca cometi o adultério de trair ele, não. Sou casado com o Rio de Janeiro”.

'O Corvo'

Logo depois, Lan foi para a redação do Rio de Janeiro onde lançou o tabloide semanário Flan. Nessa época, a caricatura ‘O Corvo’ retratando Carlos Lacerda, desafeto político de Samuel Wainer, notabilizou definitivamente o desenhista. Boêmio, o italiano não perdia uma noitada no Rio de Janeiro. Até que um dia, o diretor da Última Hora, Samuel Wainer, pediu que ele fizesse uma caricatura de Carlos Lacerda, que tinha comparecido a um velório parecendo um “papa defunto”. Ele conta: “Confesso que a primeira ideia foi o urubu. Eu lembrava da cara do Carlos Lacerda, mas não a cara do urubu. Corvo! Vai de corvo mesmo! No dia seguinte, aquele encargo de consciência: ‘Poxa, o Samuel pediu para caprichar e eu fiz aquela droga!’ Que, aliás, como desenho, até hoje, eu acho que é um dos piores que eu fiz na minha vida. Só que quando cheguei na redação, o Samuel estava junto com Danton Coelho, que era presidente do PTB, Eloy Dutra, do PTB, Baby Bocaiúva, que era do PTB, e naturalmente o jornal era getulista. Aí, o Samuel me disse: ‘Vem cá’ e eu disse: ‘Lá vem bronca’. Não: ‘Te apresento Danton Coelho’. Danton Coelho me deu um abraço, falou do trabalho psicológico, de profundidade, que eu tinha feito desencavando aquela alma torva. Aquela é uma caricatura e me marcou para o resto da vida como marcou o Lacerda com esse apelido o resto da vida. Só Nascimento Brito, que era muito delicado, chamava ele de ave. Passaram os anos e o Lacerda mandou a agência publicitária que estava fazendo a campanha dele para governador, para eu inventar ou criar um símbolo positivo, anti corvo. Falei: ‘Não posso inventar agora um beija-flor, um colibri, entende. Não posso voltar até porque o público me conhece como o autor do corvo. Vai pegar mal eu tirar tão descaradamente em função do dinheiro’. Essa é a história real do corvo. Corvo, vai de corvo mesmo”.

Imprensa

Três anos depois, em 1955, Lan começou a trabalhar em O Globo dividindo a seção de esportes com Otelo Caçador. No fim de 1956, passou dois meses entre Buenos Aires e Montevidéu. No retorno ao Rio, em 1957, foi contratado pelo Diários Associados. Trabalhou como freelancer fazendo capas de disco para artistas da MPB e fundou a filial brasileira da Prensa Latina no Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, foi eleito um dos cinco maiores desenhistas do mundo no anuário de caricatura realizado em Londres.

Em janeiro de 1963, retornou ao Jornal do Brasil. Um ano depois, exilou-se na Europa, passando dois anos em Roma e um, em Paris. No fim de 1966, recusou uma proposta da revista francesa Paris Match. A saudade do Rio de Janeiro e a anistia política o fizeram voltar para o Brasil em pleno carnaval de 1967. Lan, mais uma vez, foi para o Jornal do Brasil. Começou colaborando com uma charge diária e, mais tarde, ocupou uma página inteira da Revista de Domingo. Foi nesta publicação que começou a desenhar aquela que seria sua marca registrada: a mulata (ao lado da qual muitas vezes aparece um personagem baixinho, de bem com a vida, que Lan já admitiu ser seu álter ego).

Televisão

Em 1994, o caricaturista participou do processo de criação de vinhetas animadas para os intervalos da Globo. Do primeiro “plim-plim” feito por Lan, o corpo feminino não poderia ficar de fora. “Eu fiz aquele Pão de Açúcar, contrastando com o sol surgindo, e aparecendo uma mulata deitada, que, aliás, é como eu vejo o Pão de Açúcar. Eu vejo ele como uma mulher enorme, gigantesca.

Em fevereiro de 2000, após 39 anos de JB, Lan retornou às páginas de O Globo, mostrando cenas do cotidiano da cidade. Sua estreia foi no Caderno Carnaval, onde apareceram suas “cariocaturas” — maneira como gosta de chamar seus desenhos — tendo as mulheres curvilíneas em primeiro plano e o Rio de Janeiro como cenário. Em 2003, criou o cenário ilustrado do 'Fantástico'.

Plim Plim: Lan

Plim Plim: Lan

Fantástico: Cenário de Lan (2003)

Fantástico: Cenário de Lan (2003)

Lan por ele mesmo

Estilizando o corpo feminino ou os tipos do Rio de Janeiro, Lan mantém um estilo único: trata seu ofício com humor leve e pitoresco. Gosta de dizer que trabalho sem trégua, seja observando os passos e a postura das pessoas, seja os movimentos registrados apenas em sua memória. Nunca precisou de modelo. E explica o porquê:

“Velho paquerador, vocês podem imaginar quantas vezes olho uma mulher. Sem nenhuma intenção, mas tudo fica impresso. Eu não gosto de figuras paradas, meu desenho é dinâmico. Então, quando eu desenho uma mulher, ela deve estar fazendo alguma coisa, estar cozinhando, caminhando, correndo, deitada, sentada no sofá. Quer dizer, toda essa estilização corresponde a uma realidade. Não é que eu deteste homem. Mas o homem não me inspira, não é um “muso” para mim. Só para fazer as caricaturas dos políticos, dos jogadores de futebol. E outra coisa, estão acabando com as morenas. Pelo amor de Deus, não faça isso! Aqui nós temos um naipe maravilhoso. Você tem a Fátima, a Maria Beltrão, o que tem de mulher bonita. Lindo o time da Globo de locutoras e âncoras, fantástico! Renata Vasconcelos, exemplar de beleza. Eu falo de cadeira porque, afinal de contas, sou um cara que veio de fora, ficou no Brasil muito por causa da beleza delas e da música brasileira. São dois grandes fatores que me amarraram no Brasil, sua música e suas mulheres. E a cordialidade dos homens em geral pois sempre tive um ambiente muito bom nas redações com os amigos brasileiros. Enfim, muito bom”.

O caricaturista Lan, 1998 — Foto: Camilla Maia/Agência O Globo

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O cartunista morreu aos 95 anos, na noite de 4 de novembro de 2020, em decorrência de uma pneumonia, em Petrópolis, região Serrana do Rio de Janeiro. Ele estava internado havia dois meses em um hospital local.

FONTE:

Depoimento de Lan ao Memória Globo em 22 de novembro de 2004.
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