Resenha: Sem Dó
Romance gráfico de Luli Penna nos leva a um passeio pela condição humana
Quer receber novidades sobre histórias em quadrinhos? Inscreva-se!
Romance gráfico de Luli Penna nos leva a um passeio pela condição humana
Minha mãe tinha esse costume de ser guia pelas ruas que pareciam maiores do que realmente eram. Sua mão se colava com a minha como um pincel, o mesmo que a mão de uma artista que deseja e viaja no tempo. Sempre pensei em mãos dadas para atravessar avenidas, subir no ônibus, percorrer parques como recriação do que a vida merece. Um olhar cuidadoso e com afeto. Afeto é uma coisa que é gostosa quando há mais de uma pessoa, mas começa com apenas uma.
O afeto de que quero falar vem de um apartamento charmoso em São Paulo, de um escritório repleto de livros, de uma pilha de rascunhos, de potes de tintas secos e cheios. Um óculos que escorrega para encontrar a ponta do nariz revelando o sorriso de uma artista que será nossa guia por um pedaço no espaço tempo de uma São Paulo da década de 1920, quem sabe de1930. Criadora da obra que apresenta a cidade não como mero pano de fundo, mas como uma personagem viva que sempre teve mil dialetos, que demorei mais de duas décadas para pisar, como muitos imigrantes fizeram e seguem fazendo.
Sebastião pega o trem no interior para tentar a vida paulistana. Ele nos empresta os próprios olhos. Assim podemos ver a Estação da Luz, que antes eu só conhecia quando ouvia Nelson Gonçalves ou lia Guilherme de Almeida. Sebastião, Lola, Pilar e São Paulo. Quatro personagens que Luli Penna nos apresenta agarrada aos pincéis. Página em branco, nanquim, cola e tesoura. Nossa guia é assim, nos segura e diz: “Calma. Olha essa cidade, presta atenção como era amar nessa época que se pretendia tão moderna. Já reparou que as mulheres são assediadas mesmo no trabalho? Espia essa revista que a personagem lê no trajeto pela cidade. Olha como já havia um ideal de beleza, maternidade e comportamento feminino. Repara bem que a cidade de São Paulo antes de separar tanta gente com o avanço do capitalismo, também tinha uma esperança. Repara, por favor, que há uma história de amor para além dos ideários românticos. Há um amor próprio de tentar viver como se o sonho fosse real e, às vezes, era e é”.
Existe um filme brasileiro de 1931 chamado Limite, do diretor Mário Peixoto, que inspirou muito Luli durante a criação de Sem Dó (Todavia, 217), uma obra que hoje é muito fácil de encontrar, mas passou por muito tempo perdida. Lembrei que em um determinado momento da minha vida, quando andava com meus pais, os dois juntos, pelas ruas em dia de chuva, cada um segurava um dos meus braços e me levantavam orquestrados para pular as poças d’água do caminho. Assistir Limite foi encontrar um outro guia para simular que posso sempre voar pelas poças e caminhos arrasados.
Limite também coloca três pessoas juntas em um barco à deriva nas águas, mas do Rio de Janeiro. Com cenas que beiram a poesia, Mário mostra como essas criaturas já estavam à deriva antes do mar. Luli tem essa sensibilidade que Mário teve, sabe? De falar sobre a condição humana atrelada ao que é cidade, natureza, ao que nos escapa os planejamentos. Falar sobre o sofrimento e a solidão dessas personagens, mas contextualizar que essa dor vem do modo como a sociedade das décadas de 1920 e 1930 já se organizavam por aqui pelo Brasil. Em busca do que sabemos que são coisas em sua nascente falidas: progresso e capitalismo.
Como é possível Lola, uma simples arrumadeira, amar um imigrante negro que ganha a vida sem trabalho fixo? O racismo sempre foi uma paisagem que a gente se acostumou? Como é possível escapar da obrigação do casamento para ascensão social e financeira? Casar com o filho da patroa é a felicidade que espera no final do dia? Como se consegue ser feliz bordando um sonho e vivendo presa como Pilar? Mulheres tecem roupas que não lhe cabem. E se a cidade é um cartão postal dos enamorados é também aquela que, com suas grades e esquinas escuras, aprisiona, oprime.
E assim também fez Mário Peixoto na década que, possivelmente, viveram Lola e Pilar, ao falar sobre a condição humana em sua plena solidão e liberdade. Essa linha tão tênue que ainda nos sufoca neste ano pandêmico. O que resta para três personagens à deriva além de se permitirem olhar para si?
Dentro de casa, sem sair por quase um ano, me pego folheando sem dó o Sem Dó, passeando por São Paulo. Luli me deu o presente de ser o que a filosofia chama de flâneur: aquele sujeito que passeia pela cidade apreciando cada detalhe, mas não é um turista. Ele mora nela, é impactado por ela. Lola, uma arrumadeira sonhadora, que via São Paulo com esses olhos de chegada, sempre de chegada. Quem dera pudéssemos olhar para as cidades e para nossa realidade com esse olhar tão atento, e se deixar ainda encantar pela arte como Lola… Com os olhos brilhando frente a um filme ou a um postal.
As decisões talvez seriam outras e pudéssemos esquecer essa ideia tola de progresso (progresso para quem?) e nos ater ao que é revolucionário de verdade, à condição humana. Se morreremos todos sozinhos, não precisamos viver assim na desigualdade. Quem sabe um dia, os quadrinhos sejam um guia para as mãos solitárias que percorrem a vida. Sou dessas de ter esperança. Sou um pouco Luli Penna. Nisso, sou sim.
Monique Malcher é escritora, colagista, capista e pesquisadora de quadrinhos nascida em Santarém, no Pará, que reside em São Paulo. Tem um livro publicado pela Editora Jandaíra editado pela escritora Jarid Arraes, Flor de Gume (2020). Pesquisa quadrinhos feitos por mulheres desde a graduação, é mestre em Antropologia e doutoranda interdisciplinar de ciências humanas pela UFSC. Atualmente atuou como curadora da coletânea Trama das Águas pela editora Monomito Editorial, que reuniu 50 escritoras paraenses. Também é uma das curadoras do selo literário Preamar da mesma editora, que pretende publicar escritoras do norte do Brasil.
Quer receber HQs inéditas em primeira mão?
Clique aqui e apoie a Mina de HQ!