ROTERDÃ (Holanda) – Qual era o estado mental do norueguês Edvard Munch (1863-1944) ao pintar “O Grito”, uma das obras de arte mais famosas de todos os tempos? É isso o que o conterrâneo Henrik Martin Dahlsbakken tenta resgatar em “Munch”, cinebiografia que mergulha na mente do artista que capturou o desespero existencial da humanidade em uma única expressão.

O olhar aterrorizado da figura andrógina, com o pôr do sol na doca de Oslo ao fundo, simboliza a angústia, o medo e a solidão do homem contemporâneo. Sentimentos que Munch conhecia muito bem, agravados no seu caso por suas crises nervosas e pelo histórico familiar de transtornos mentais. O pai era depressivo e uma das irmãs foi internada em hospital psiquiátrico.

“Pelo que me lembro, sempre sofri de uma profunda ansiedade que tentei expressar na minha arte”, já dizia Munch, que é pouco conhecido, apesar de “O Grito” ser tão impactante. Até o emoji com a expressão de horror é baseado na pintura, que também serviu de inspiração para a máscara usada pelos assassinos da franquia cinematográfica “Pânico”. Sua bilheteria mundial soma cerca de US$ 745 milhões com cinco filmes.

Mesmo em sua terra natal, onde sua arte é reverenciada, como um motivo de orgulho para os noruegueses, pouco se sabe sobre a sua intimidade e os tormentos que Munch enfrentou. Logo na infância ele perdeu a mãe e a irmã, vítimas de tuberculose. Com uma saúde frágil, Munch cresceu tendo pesadelos sobre a morte e pensamentos suicidas.

Foi justamente para resgatar o homem por trás das pinturas que o cineasta Dahlsbakken assinou “Munch”, ainda sem data para estrear no Brasil. A produção é uma das atrações da 52ª edição do IFFR, o Festival Internacional de Cinema de Roterdã, que será encerrado hoje.

“Comecei a pensar em revisitar a vida de Munch há cinco anos, quando lia seus diários, suas cartas, suas anotações e as biografias escritas sobre ele”, conta o diretor. Embora o pintor faça parte da herança cultural da Noruega, Dahlsbakken ficou surpreso com aspectos fascinantes pouco conhecidos da trajetória do artista.

Munch Filme O Grito
O jovem Edvard Munch no filme de Henrik Martin Dahlsbakken (Foto: IFFR/Divulgação)

“Encontrei na minha pesquisa quatro períodos mais representativos de sua existência. Foram as fases que me mostraram o que mais o inspirava e o que mais o transformou ao longo da vida, como ser humano e artista”, contou Dahlsbakken, no palco do cinema Pathé Schouwburgplein, ao apresentar o filme.

Munch é revivido nas telas aos 21, 29, 45 e 80 anos – e não apenas com quatro atores diferentes (incluindo uma mulher), mas também quatro roteiristas distintos. Isso explica cada segmento seguir um estilo próprio, dando uma visão particular do artista e enfatizando seu estado de espírito naquele momento.

Apresentadas entrelaçadamente, as quatro seções priorizam as instabilidades emocionais do pintor, os obstáculos enfrentados no mundo da arte e as decepções amorosas. A estrutura é como um quebra-cabeça, que o espectador precisa montar sozinho para entender a psique de Munch e fazer as conexões entre os segmentos.

Aos 21 anos, quando Munch é interpretado por Alfred Ekker Strande, ele já se mostra um jovem atormentado. Suas dúvidas existencias ficam piores com as críticas do pai, que desdenha de sua veia artística. E a vida amorosa também vai mal, sobretudo por ele se envolver com uma mulher casada.

Munch, por sua vez, nunca se casou. Estudiosos acreditam que essa experiência negativa, por ser tratar aqui de seu primeiro amor, tenha provavelmente influenciado a relação de Munch com as mulheres ao longo de sua vida.

Uma cena do filme até faz referência à tela “Dance of Life”, realizada pelo pintor entre 1899 e 1900, em que um casal dançando desperta olhares de ciúmes nos demais. Em “Munch” é o próprio artista que passa por isso, ao ver a amada rodopiando nos braços de outro.

Aos 29 anos, pouco antes de pintar “O Grito”, Munch é interpretado por Mattis Herman Nyquist. O segmento destoa dos demais por ser ambientado nos dias atuais, apesar de refletir o que aconteceu com o artista no final do século 19.

Nessa fase, Munch se mostra mais determinado em vencer no mundo da arte. Mas a sua primeira exposição em Berlim é rejeitada, quando a sociedade de artistas locais chama o seu trabalho de “inútil”, fato ocorrido em 1892.

O golpe acaba desencadeando um período ainda mais obscuro na vida de Munch, instigando pavor, aflição e melancolia. E é em um momento desespero que o artista tem um forte impulso criativo, desenhando no chão uma imagem que se assemelha à de “O Grito”, que ele pintaria depois.

A tela realizada em 1893 é apontada como a precursora do expressionismo, o movimento de vanguarda europeu. Munch pintou mais três versões: a segunda também em 1893, a terceira em 1895 e a quarta em 1910.

Na faixa dos 40 anos, com o ator Ola G. Furuseth na pele de Munch e a fotografia do filme em preto e branco, vemos o protagonista sendo tratado em clínica psiquiátrica. Suas conversas com o terapeuta quase sempre giram em torno da criação artística. “A arte nasce da alegria e da tristeza. Principalmente da tristeza ”, diz o pintor, no filme.

A veterana Anne Krigsvoll encarna Munch nos seus últimos anos, quando o artista vivia recluso em Oslo, na Noruega ocupada pelos nazistas. Nessa parte da história, em que ele teme que seus quadros sejam confiscados e destruídos pelos alemães, o que mais interessa ao pintor é o seu legado.

Afinal, toda a sua vida foi dedicada à arte. “Espero que o público tenha um entendimento maior sobre suas pinturas com o filme”, conta Dahlsbakken, lembrando que Munch foi um dos os artistas mais produtivos de todos os tempos.

Só a coleção do Museu Munch, inaugurado em 1963, em Oslo, conta com 1.200 pinturas, 4.500 desenhos e 18 mil gravuras. O acervo inclui a versão de “O Grito”, de 1910. Mas a obra não fica em exposição o tempo todo, por ser um trabalho de têmpera sobre cartão, o que aumenta a sua fragilidade com a exposição à luz, à temperatura e à umidade. Só assim, resguardando a pintura, o museu pode garantir que “O Grito” continue impactando as futuras gerações.

Edvard Munch sala de estar
Edvard Munch em 1943 na sala de estar da sua propriedade em Ekely, na Noruega (Foto: Munch Museet/Divulgação)