A Moreninha: na contramão da “Geração 80”

Na década de 1980, o circuito artístico brasileiro passava por transformações com a abertura política, a ascensão do mercado de arte e a proliferação de galerias comerciais. Desde o final da década anterior, críticos já identificavam uma “redescoberta” da pintura, como Frederico Morais, ao escrever sobre o 11º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1979. Exposições como Entre a mancha e a figura – organizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1982 por Frederico Morais – e a emblemática Como Vai Você, Geração 80? – realizada em 1984 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, com curadoria de Marcus de Lontra Costa, Paulo Roberto Leal e Sandra Mager – serviriam como manifestos, contribuindo com a consolidação de um cenário que privilegiava a pintura, enquanto alguns discursos reducionistas tachavam o experimentalismo e o conceitualismo como decadentes, associando-os aos tempos da ditadura militar.

Embora a exposição realizada no Parque Lage não fosse de ou sobre pintura (havia também instalações, vídeos, performances, esculturas, etc.), grande parte dos trabalhos incluía-se nessa categoria, o que contribuiu para que a crítica e o jornalismo cultural da época considerassem a mostra um manifesto público da volta da pintura no Brasil. Além disso, o fato de ter acontecido numa escola de artes reforça seu aspecto jovem e a euforia por alvo novo, o que legitima a criação de um rótulo que diferenciasse aquela geração das anteriores. Dessa maneira, ganhava destaque o termo Geração 80.

No mesmo período, enquanto a figura do curador começava a se firmar, artistas tornavam-se fenômenos de mídia, figurando na TV, que cada vez mais se difundia nos lares brasileiros. A chamada Geração 80 foi também um fenômeno midiático e foram os veículos de comunicação os principais responsáveis por moldar sua imagem, com discursos que enfatizavam suposta atitude hedonista daqueles artistas, o prazer de pintar e outros clichês, em contraponto ao aspecto político e experimental da década anterior. Tal generalização causa estranhamento se considerarmos alguns artistas que surgiam naquele período, mas não se encaixavam num suposto “estilo” da Geração 80, como Márcia X, Alex Hamburger, Aimberê César, Leonora de Barros, Mario Ramiro, Elizabeth Jobim, Eduardo Kac, Ricardo Basbaum, Nelson Felix, e tantos outros, mesmo que alguns deles tenham participado da exposição no Parque Lage.

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3Nós3, Operação X-Galeria, 1979

Na contramão desse fenômeno surgiam iniciativas coletivas de artistas, responsáveis por criar circuitos paralelos ao circuito hegemônico (aquele formado por museus, galerias e outras instituições que se estabeleciam). Em São Paulo, desde pelo menos a década de 1970, já se via propostas desviantes como o grupo 3Nós3, que realizava intervenções em espaços públicos e mantinha postura crítica diante do mercado de arte. Uma de suas ações mais importantes, nesse sentido contestador, é a chamada Operação X-Galeria, realizada em 1979, na qual o grupo lacrou com adesivo as portas de galerias de São Paulo e deixou colado, como “rastro”, um papel mimeografado com a frase: “o que está dentro fica, o que está fora se expande”. Essa ação denuncia a insatisfação com o mercado e o sistema de arte e anuncia tendências que se tornariam cada vez mais comuns, a partir da década que estava prestes a iniciar.

No Rio de Janeiro esses circuitos heterogêneos (termo cunhado pelo artista e pesquisador Newton Goto) surgem com maior força na década de 1980, por meio de grupos como A Moreninha, que era formado, em grande maioria, por artistas que participaram da exposição Como vai você, Geração 80?, além do crítico Márcio Doctors.  Os integrantes do grupo acreditavam que a crítica local e a mídia privilegiavam o “retorno à pintura” e ignoravam a produção que não se encaixava nessa categoria. Portanto, os moreninhos – como eram chamados os membros do grupo – militavam pela tomada da palavra pelo artista, questionando o rótulo Geração 80, e desejavam mudar a imagem do artista como “funcionário” da galeria.

Seguindo e aprofundando o caminho aberto nos anos anteriores por agrupamentos como a Dupla Especializada (Ricardo Basbaum e Alexandre Dacosta) e o Grupo Seis Mãos (Basbaum, Dacosta e Jorge Barrão), A Moreninha realizou suas atividades entre 1987 e 1989 e o número de artistas participantes varia de acordo com cada ação, mas fizeram parte do grupo os seguintes nomes: Alexandre Dacosta, André Costa, Beatriz Milhazes, Chico Cunha, Cláudio Fonseca, Cristina Canale, Enéas Valle, Geraldo Vilaseca, Hamilton Viana Galvão, Hilton Berredo, João Magalhães, John Nicholson, Jorge Barrão, Lúcia Beatriz, Luiz Pizarro, Marcio Doctors, Maria Moreira, Márcia Ramos, Maria Lúcia Cattani, Paulo Roberto Leal, Ricardo Basbaum, Solange de Oliveira e Valério Rodrigues, entre outros.

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O Globo, 01/02/1987

Em sua primeira ação, os moreninhos promoveram uma maratona de pintura impressionista na ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o grupo homenageava o centenário de um suposto grupo de “pintores de domingo”, seguidores de Manet, também chamado A Moreninha, que no século XIX teria se reunido na mesma ilha para realizar pinturas ao ar livre. Mas essa história não passava de um factoide criado pelo grupo e enviado aos veículos de comunicação por meio de um press release. Jornais e emissoras de TV replicaram a falsa história e divulgaram a ação na qual artistas da Geração 80 celebrariam o centenário do grupo de pintores impressionistas que haveria passado por Paquetá. A história inventada foi propagada por veículos como o jornal O Globo, o Jornal do Brasil e o telejornal Fantástico. Dessa maneira, a mídia, que havia sido responsável por difundir clichês sobre a Geração 80, foi utilizada de forma tática por artistas que não se conformavam com tal rótulo e desejavam desconstruir aquele estereótipo. Após esta primeira ação, os moreninhos passaram a realizar encontros periódicos em seus ateliês, onde debatiam aspectos referentes às artes visuais, como os movimentos internacionais e questões do meio de arte brasileiro e, mais especificamente, carioca.

A Moreninha também realizava intervenções no circuito artístico, como o happening durante a palestra do crítico italiano Achille Bonito Oliva – principal teórico da transvanguarda, que ecoava nos discursos sobre a Geração 80 – na galeria Saramenha, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o crítico italiano buscava divulgar seu “novo” movimento artístico, uma espécie de desdobramento da transvanguarda chamado “Progetto Dolce”. Durante a ação, um aparelho gravador de Ricardo Basbaum provocava uma intervenção sonora no ambiente, tocando música sertaneja e fragmentos de escritos do filósofo Heráclito; Enéas Valle assistia ao discurso de Bonito Oliva de costas, segurando um espelho retrovisor, enquanto um grupo servia doces ao público e outro circulava pela galeria com orelhas de burro, em resposta ao discurso do crítico italiano.

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Jornal do Brasil, 20/02/1987

Tendo em vista que o Bonito Oliva era um crítico comprometido com os interesses do mercado de arte, a ação dos moreninhos visava incitar debates sobre isso. Contudo, as discussões que se seguiram ganharam outros sentidos. Além de reagir de forma agressiva ao happening, socando o aparelho gravador de Basbaum, Bonito Oliva fez declarações polêmicas, como a afirmação de que uma “cultura sambista” incentivou intelectuais brasileiros a se tornarem produtores de “obras folclóricas”. Na mesma entrevista, realizada pelo crítico Reynaldo Roels Jr. para o Jornal do Brasil, Bonito Oliva declarava que “só num país como o Brasil Jorge Amado é considerado um grande escritor” e que “Vinícius de Morais é um poeta menor. Sua fama é um paradoxo”, além de afirmar que após a morte de Mário Pedrosa, em 1981, a crítica brasileira havia se tornado “provinciana e medíocre na maior parte dos casos”. Suas investidas contra a cultura brasileira e a redução da identidade nacional a uma certa imagem carnavalesca e exótica provocou reações e debates entre críticos e artistas, como Chico Buarque, Guilherme de Figueiredo, Pietro Maria Bardi (então diretor do Museu de Arte de São Paulo) e Marcus Lontra (então diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage), alguns entre os diversos nomes que se posicionaram contra Bonito Oliva. Rubens Gerchman, rotulado pelo crítico italiano como um “replicante, o repetidor ao infinito dos modelos culturais desenvolvidos no exterior durante os últimos 20 anos”, respondeu a Bonito Oliva o chamado de “colonizador colonizado” e “um sujeito que chega aos trópicos para mamar aqui”. Já o crítico Frederico Morais, em resposta às declarações negativas de Bonito Oliva sobre a crítica brasileira, declarou:

“A grande época da crítica, tanto no Brasil como no exterior, foi a década de 50, quando ela era formada por pensadores que marcaram sua atuação pela ética e pelo distanciamento do mercado. Já Bonito Oliva é de uma geração mais nova, que não discute ou questiona o mercado de arte. E suas teses são por demais incorporadas ao mercado. O mercado pede uma nova moda a cada 6 meses, e ele está nesse jogo”.

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Jornal do Brasil, 25/02/1987
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Jornal do Brasil, 25/02/1987

Ações do grupo A Moreninha consolidavam a posição do artista como um sujeito ativo e crítico diante sistema de arte. Tornaram-se cada vez mais comuns agrupamentos de artistas que não se conformavam com a lógica do mercado de arte ou não se encaixavam no circuito estabelecido a partir da década de 1980 – que ganharia novas dobras na década de 1990 com a ascensão das megaexposições, do marketing cultural e o maior afastamento do Estado no fomento à cultura. Esses artistas tomaram o papel de empreendedores e agregaram-se a partir de afinidades e interesses em comum, adotando processos cooperativos, calcado na não-hierarquização e na participação criativa, gerando a partir dessas relações circuitos de trocas, circuitos independentes.

Iniciativas coletivas de artistas ganham maior projeção no Rio de Janeiro na década de 1990 com o surgimento de espaços como Galeria do Poste, Agora, Capacete – que mais tarde se fundiriam formando o Agora/Capacete – e na década de 2000, por meio de grupos como Atrocidades Maravilhosas e Imaginário Periférico. Tais iniciativas, por não terem no mercado a razão de sua produção ou adequação, se diferenciam do circuito institucional hegemônico – embora muitas vezes dialoguem com esse meio e não descartem parcerias. Colocam-se, sobretudo, como possibilidade crítica, experimental, vivencial, exercício de liberdade e instrumento instigador de debate.

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Jornal do Brasil, 27/02/1987

Para saber mais sobre esse contexto, acesse aqui o texto “Lugares do experimental no Rio de Janeiro: da década de 1970 ao Zona Franca”.

Veja aqui o dossiê sobre o grupo A Moreninha, organizado por Ricardo Basbaum e leia aqui o depoimento do artista sobre o grupo.

Leia aqui o artigo de Ivair Reinaldim sobre a ação do grupo A Moreninha na palestra de Achille Bonito Oliva.

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