Título: Fotografia de Obras de Arte. José de Figueiredo na formação do pioneiro Arquivo Fotográfico do Museu Nacional de Arte Antiga

Autora: Clara Moura Soares

Prefácio: Miguel Cabral de Moncada

Editor: Scribe

Design: Teresa Cardoso Bastos

Apoio: Cabral Moncada Leilões

Páginas: 127, ilustradas

Preço: 19 €

Enquanto decorria a campanha de restauro dos Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves, no Museu Nacional de Arte Antiga — uma ação só tornada possível pela dedicação mecenática ao património português lucidamente desenvolvida pela Fundação Millenium bcp —, preparava-se a publicação deste livro, que não lhe diz diretamente respeito mas com ela tem muitos pontos de contacto. A fotografia como divulgação global de obras de arte, a fotografia científica (reflectografia de infra-vermelhos e ultra-violetas, macro- e microfotografia) ao serviço do estudo pictográfico ou iconológico da pintura antiga e os arquivos fotográficos das instituições museológicas — e das leiloeiras de arte, como sublinha, com inteira razão, o prefaciador — entrelaçam-se hoje com naturalidade, mas um longo e fascinante caminho foi percorrido para que assim fosse. Em fase decisiva desse caminho esteve, precisamente, a campanha de intervenção nos Painéis que se seguiu à sua insólita descoberta no paço de São Vicente de Fora, em 1908, e integração no MNAA em 1913. Intervenção — também ela — custeada por mecenato, o do conde dos Olivais e Penha Longa, José Pinto Leite (1871-1956).

Graças a Joaquim Possidónio da Silva, por volta de 1850 Portugal foi razoavelmente lesto a perceber  — mas perceber não é agir… — quão relevantes poderiam ser os serviços da fotografia para a realização de levantamentos patrimoniais, num país em que a extinção das ordens religiosas trinta anos antes havia deixado ao deus-dará monumentos e acervos artísticos antigos de séculos. Missões de iniciativa particular e quase sempre de ingleses e franceses, como Charles Thurston Thompson e Jean Laurent, tiveram propósitos específicos (no segundo caso, um guia turístico por Alphonse Roswag, Madrid, 1879), enquanto a Casa Biel, do Porto, e a Casa Pardal, de Lisboa, também fizeram fotografias para reprodução comercial, como sucedeu na Publicação Photographica (1869-73). Em março de 1869, o mesmo Laurent exibiria na oficina fotográfica do sr. Plessis, na Rua Nova dos Mártires, em Lisboa, c. 600 fotografias dos “mais afamados quadros” e dos “mais ricos e curiosos objetos” do Museo del Prado (p. 108), e o marquês de Sousa Hostein aproveitou a presença do reputado fotógrafo para lhe encomendar a reprodução de quatro cartões de Domingos Sequeira da sua coleção pessoal.

Havia, portanto, algo que começava a mexer-se. Contudo, o primeiro grande projeto — “sem par em Portugal e raro à escala internacional”, diz Clara Moura Soares à p. 28 — coube a Carlos Relvas (1834-94), com mais de 500 clichés para a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola (Lisboa, 1882). O segundo volume do catálogo desta exposição — vendido “a benefício da Santa Casa da Misericórdia da Golegã” — é um álbum com 55 fototipias de remarcável excelência impressas por Joseph Leipold (1833-1916) e deve ser considerado como monumento fundador, enquanto objeto de memória histórica facilitando o estudo futuro da arte decorativa portuguesa. Sete anos decorridos, em 1889, Emílio Biel faria um álbum de homenagem a Soares dos Reis, com 35 fototipias de trabalhos do grande escultor portuense que se suicidara em Fevereiro.

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Eram casos pontuais, sem estratégia pública evidente, muito pelo contrário. Ramalho Ortigão podia, pois, lamentar-se, n’O Culto da Arte em Portugal (1896), que “no Museu Nacional [de Belas-Artes] de Lisboa, na arrecadação da Academia de Belas-Artes e nos demais depósitos do país, não há uma só fotografia registada pelo Estado, à semelhança do que se faz em todos os museus do mundo” (cit. p. 33; itálico meu). Treze anos depois, em 1909, ainda haveria de reivindicar em assembleia da mesma vetusta Academia “os meios necessários para a reprodução fotográfica desses quadros como processo lógico da sua boa identificação e classificação” (cit. p. 34). Pouco eco chegara até este “país de refugo” (disse-o Ramalho Ortigão) do impulso dado à criação de arquivos de arte pelo congresso internacional de fotografia reunido em Paris aquando da Exposição Universal de 1900, em que, de resto, Portugal tivera representação atribuladíssima, como não deixou de fazer notar o portuense José de Figueiredo, que voltaria a Lisboa no ano seguinte, com ambições muito claras de renovação e atualização do mundo dos museus no nosso país, como fez notar a biografia que Joana Baião lhe dedicou em 2016 (Caleidoscópio, 439 pp.) e que aqui recenseámos.

Os anos de Paris tinham dado a Figueiredo “modernos princípios museológicos” (p. 41) e um “moderno ideal de museu” (cit. p. 42). A polémica intervenção de Luciano Freire nas tábuas do Patriarcado, que colocara em primeiro plano como conservar e restaurar património pictórico, permitia-lhe defender a documentação fotográfica de todos os momentos da intervenção (chegada, limpeza completa, restauro concluído) como garantia de absoluta segurança do estudo das obras intervencionadas. Em 1910 publica Arte Portuguesa Primitiva: o pintor Nuno Gonçalves, com 21 fotogravuras, que a autora crê firmemente terem sido feitas sobre fotografias de João Carlos Coutinho, que já registara as tábuas para o artigo de Sir Herbert Cook publicado na prestigiada revista inglesa The Burlington Magazine, em Julho de 1909.

Parece ser este o primeiro trabalho do dono da Photographia de Lisboa, sediada na Rua Ivens, 43, para o diretor do MNAA. Reconhecido pela qualidade dos seus trabalhos, entre os quais praticamente todos os quadros de Columbano Bordallo Pinheiro, pelo convívio com artistas e críticos de arte, Coutinho era “socialmente muito bem relacionado, dividindo residência entre o Chiado e […] São João do Estoril” (p. 46). Curiosamente, foi editor da revista O Micróbio (1895), onde colaborou Raul Brandão e o caricaturista Celso Hermínio. O facto de ter sido chamado ao palácio de Monserrate para fotografar, em 1913, a coleção de pintura do magnata inglês Frederick Cook não deixa dúvidas sobre o seu estabelecido prestígio profissional. Passou o seu estúdio aos irmãos Maurice e Joseph Lazarus, quando estes se estabeleceram em Lisboa, vindos de Lourenço Marques, em 1908, e terá sido gravemente penalizado pelo incêndio no Teatro do Ginásio, em Novembro de 1921, que atingiu a sua residência na Rua do Mundo (hoje da Misericórdia) e lhe destruiu câmara escura e arquivo, em especial chapas respeitantes ao Museu e que “reproduziam muitos quadros antes de restauro”, e hoje constituiriam, por certo, testemunho aterrador do estado lastimoso a que o património artístico português havia sido votado, ainda que “um certo número de provas” (p. 65), não especificado, tenha chegado depois ao arquivo do Museu.

Por encomenda de Figueiredo — que, deve dizer-se, desconfiava da fotografia enquanto arte —, João Carlos Coutinho trabalhou amiúde com Luciano Freire (1864-1934), no atelier que este tinha no Convento de São Francisco da Cidade, onde Eduardo Portugal o retratou em 1924 (p. 58), muito antes, portanto, que o Museu abrisse em sede própria uma oficina de restauro e um laboratório de fotografia. Estava quase tudo por fazer: em 1922, Freire havia tratado 258 quadros pertencentes ao MNAA (p. 113). A fotografia ia documentando a par e passo, e muito expressiva é, de facto, a evolução do antes ao depois em quadros como O Imperador Heraclio conduzindo a Cruz às portas de Jerusalém, atribuído a Cristóvão de Figueiredo (p. 63). Outras vezes, por falta de verba ou excesso de confiança, imagens prévias foram evitadas, “por estar longe de calcular a surpresa que me estava preparada” (Freire, cit. p 64).

Se a fotografia das suas melhores obras em bilhetes-postais — os primeiros são de 1913, e desenhados, creio, por Raul Lino (v. fig. 92, p. 78), ainda que a autora o não diga ou saiba — podia fazer bastante pela propaganda dum museu e ter papel relevante na atração turística, as solicitações de reproduções por parte de historiadores da arte, museólogos e editores de livros, nacionais ou estrangeiros, ou a cedência de imagens fotográficas que salvaguardem peças de valor inestimável do risco inerente a viagens para grandes mostras noutros países, foram demonstrando as valências cada vez maiores que a fotografia iria ganhar na vida quotidiana dos museus. Face às “constantes restrições orçamentais” (p. 67), aos “orçamentos mesquinhos” e à “factura dispendiosíssima destas fotografias” (Figueiredo, cit. pp. 84 e 83), o suporte financeiro da associação Amigos do Museu — logo criada em 1912 — viabilizou a produção de centenas de clichés das obras de arte, e das salas, elemento hoje tido como indispensável para uma história crítica da disposição museográfica (hoje diz-se ‘design expositivo’), de que este livro dá bons exemplos, como as salas da Exposição de Arte Francesa na Sociedade Nacional de Belas-Artes e as do Museu Regional de Grão Vasco, em Viseu, ambas em 1934, ou a da Exposição Portuguesa em Paris, 1931 (pp. 86-87, 72 e 84), para além daqueles relativas ao próprio MNAA (pp. 92-93), embora Clara Moura Soares não se ocupe deste tópico, ou o desvalorize.

Octávio Bobone, Joshua Benoliel, Mário Novaes e Abreu Nunes também fotografaram para o MNAA no consulado de José de Figueiredo, mas nenhum deles mereceu tanto a confiança do diretor como João Carlos Coutinho, confiança que depois João Couto também lhe concederia. Essa competência também foi posta ao serviço da edição de dezenas de bilhetes-postais das grandes obras que se distinguiam no património deste museu nacional, como aquele magnífico pormenor do canto superior esquerdo da Adoração dos Reis Magos (então indicado como dum suposto “Mestre de São Bento”, mas que hoje sabemos ter sido pintado por Gregório Lopes e Jorge Leal) ou O Bom Pastor de Frei Carlos (pp. 79, 78).

Em 1929 o arquivo fotográfico do MNAA já dispunha mais de 1000 clichés, mas só em 1937-38 — mortos Figueiredo e Freire — o Museu conseguiria apresentar o seu catálogo-guia e um best of, intitulado Algumas Obras de Arte do Museu das Janelas Verdes. Constrangimentos financeiros à parte, a verdade é que graças ao cosmopolitismo de José de Figueiredo e à sua atenção aos avanços da museografia impulsionados por revistas da especialidade, congressos internacionais, construção de novos museus na Europa ou “apropriação das antigas residências reais” (cit. p. 94), a busca de boas soluções se fazia através de observação direta em visitas de estudo. Foi o que fez ou tentou fazer com o arquiteto Guilherme Rebelo de Andrade, a quem foi confiada o melhoramento e a ampliação do Museu, criando-lhe biblioteca e sala de conferências e instalando em edifício contíguo, construído de raiz, oficinas de restauro e um “laboratório científico para o exame de obras de arte”. Ao congresso de Madrid, em 1934, levou também o pintor-restaurador Luís Ortigão Burnay (1884-1951). A colaboração do diretor do Institut Mainini, do Musée du Louvre, nos primórdios da capacitação laboratorial do Museu Nacional de Arte Antiga, certamente a ele se deve, e duma forma muito pessoal.

Razões mais que suficientes para pensarmos — aqui e agora — que a escolha dum diretor de museu nacional não pode submeter-se a caprichos políticos de momento, antes exige visão de futuro e confiança no grande espírito de serviço duma boa geração de historiadores de arte, que temos, e que ministro algum pode pretender destratar, desvalorizar ou enfraquecer.