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Brasil Conte algo que não sei

Ciça Fittipaldi, autora e ilustradora: ‘Aprendi a desenhar com os índios’

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"Tomo sempre o cuidado de respeitar o pensamento indígena e a história que está sendo contada, sem alterar os elementos estruturais dessa narrativa", explica a ilustradora. Foto: Shala Felippi / Divulgação
"Tomo sempre o cuidado de respeitar o pensamento indígena e a história que está sendo contada, sem alterar os elementos estruturais dessa narrativa", explica a ilustradora. Foto: Shala Felippi / Divulgação

“Sou mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás, professora de Ilustração e Design Editorial e consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e do MEC na área de educação indígena em arte e comunicação.”

Conte algo que não sei.

Para a maior parte dos povos indígenas da Amazônia, a Humanidade não evoluiu dos animais, mas, sim, o oposto, os animais é que eram pessoas no passado. Essa concepção tem implicações em todo modo de ver a natureza e o sobrenatural, porque esses indivíduos que um dia se tornaram animais são os nossos ancestrais. Os xamãs, por exemplo, são capazes de ver, reconhecer e se comunicar com esses antepassados e extrair conhecimento disso.

Como essa concepção está aplicada no seu trabalho?

De um modo indireto. O antropólogo carioca Eduardo Viveiros de Castro introduziu o conceito de perspectivismo, que é uma forma de a pessoa se colocar o mais próximo possível no lugar do outro, buscando compreender o modo como ele vê o mundo. Os próprios índios fazem isso quando olham os animais, os inimigos e os estrangeiros, na tentativa de compreender os acontecimentos.

A senhora adota frequentemente a Antropologia e a cultura indígena nas suas ilustrações e histórias. Em que momento esses temas entraram na sua arte?

Quando era criança, eu me senti instigada pelo assunto. Nos primeiros anos da escola, tinha a ideia de que os povos indígenas existiram apenas em um passado remoto no Brasil. Só na minha adolescência, já nos anos 60, começaram a aparecer no noticiário os índios carajás, devido à transferência da capital federal para a Região Centro-Oeste, e só então pude perceber que esses povos ainda existiam no país. Desde então, minha curiosidade se aguçou muito. Quando fui estudar Arquitetura, em paralelo ao curso frequentava as aulas no Departamento de Antropologia, e passei a me interessar mais pelo assunto. Até que um professor da universidade conheceu meu trabalho como desenhista e me chamou para fazer parte de um projeto que ele estava desenvolvendo com os índios nambiquaras. Aceitei o convite na hora e tranquei a matrícula da faculdade. Assim, pude participar de uma experiência que mudou minha vida. Pensei, então, de que maneira podia aproveitar essa vivência com os índios, e decidi pela literatura infantil.

Como abordar esses temas para as crianças?

Escolhendo os contos adequados a elas. Tomo sempre o cuidado de respeitar o pensamento indígena e a história que está sendo contada, sem alterar os elementos estruturais dessa narrativa. Assim, a gente não precisa ficar explicando nada, basta que se deliciem com os lados poético e sensível que essas histórias contêm. Elas são uma observação do mundo, falam de sentimentos, de emoções, de formas de enfrentar os problemas, de que maneira podemos resolver a questão do viver. É isso que importa na literatura.

A senhora teve uma convivência estreita com indígenas e diz ter aprendido muito com eles. Como foi essa experiência?

Nos anos 80, fiz um trabalho para os ianomâmis. Ilustrei um manual de saúde direcionado a esse grupo indígena. Com isso, tive a oportunidade de conhecer três índios mais velhos que usavam o desenho para se expressar. Foi muito importante vê-los em atividade. Pude entender como o desenho brotava de pessoas que não estavam habituadas com essa forma de expressão.

Qual a lição que ficou ao ver esse processo de criação?

A atitude deles era muito diferente da minha vivência no ramo. Eu vinha de uma escola e, àquela altura, já era desenhista e ilustradora profissional, atuando na imprensa e fazendo capas de livros. Graças a eles, pude ver desenhos fluindo espontaneamente pelas mãos de pessoas que não tinham as ilustrações como recurso habitual de linguagem e faziam aquilo simplesmente para se exprimir. Essa foi a aula de desenho mais profunda, impressionante e transformadora que tive em toda a minha vida. Sempre digo que aprendi com os índios a desenhar e a entender de onde vem a energia para a ilustração. Graças a eles tive uma compreensão mais íntima do que vem a ser a palavra traço. Não é só ter uma habilidade e conseguir com dois ou três rabiscos representar algo. Na verdade, é o que vem sendo experimentado e vivido no interior da pessoa e que passa por um estado de consciência e energia que se transforma em traço. Trata-se de uma compreensão totalmente diversa daquela que eu praticava e conhecia das escolas onde estudei.