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Fotógrafa brasileira cria paleta com tons de pele retratados ao redor do mundo para provar que 'conceito de raça é uma construção'

Há nove anos Angélica Dass desenvolve o projeto Humanae; ela não quer colecionar cores, mas refletir sobre por que classificamos as pessoas em 'preto e branco' e propor diálogos sobre 'humanização e desumanização'
Humanae, colagem 6x6 Foto: Angélica Dass
Humanae, colagem 6x6 Foto: Angélica Dass

RIO — Angélica Dass lembra quando era criança e uma professora mostrou um lápis rosa, dizendo que era "cor da pele". Ela também aprendeu que os seres humanos se dividiam em brancos, pretos, vermelhos e amarelos, mas não era isso que via em casa ou na rua. Nascida em uma família "colorida", em Padre Miguel, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), ela queria mostrar a forma como percebia o mundo. Foi daí que surgiu a ideia do projeto Humanae.

A fotógrafa premiada de 42 anos, que vive na Espanha, começou em 2012 a fotografar a si mesma e a sua família para esse trabalho. Ela faz o retrato, pega uma amostra de cor do nariz, com a qual pinta o fundo e identifica dentro da paleta do sistema de cores Pantone. Hoje, já são mais de 4.500 fotos em 20 países e 36 cidades, retratando pessoas de origens ainda mais diversas. Nenhuma delas se encaixa nas nomenclaturas para tons de branco e preto desse sistema, ela conta.

O Humanae já foi apresentado em exposições em muitos países e atualmente está na Itália, no Canadá e nos EUA, incluindo o Museu Americano de História Natural, em Nova York. As próximas a serem inauguradas serão na Grécia e na Suécia. O projeto transcende os museus, e também está presente em oficinas nas salas de aula, sejam ministradas pela fotógrafa ou por professores, que usam o material oferecido por ela. Também já foram realizadas colaborações com prefeituras e escolas de diferentes cidades e com a Unesco.

Angélica Dass é uma das participantes do evento " UFRJ+100: desafios para o Brasil ", que irá promover uma série de palestras on-line, nos dias 8, 9 e 10 de setembro, sobre temas atuais como desigualdades, artes e mudanças climáticas.

Em todos os lugares em que fotografou, Dass encontrou a mesma dinâmica: as cores de peles escuras são associadas a adjetivos negativos, e as mais claras aos positivos. Em entrevista ao GLOBO, a fotógrafa conta que seu objetivo com o projeto, muito além de documentar cores, é propor diálogos. Ela quer provar que o conceito de raça é uma construção social, uma mentira, "construída para desumanizar seres humanos".

A fotógrafa Angélica Dass Foto: Kattia Zannetta
A fotógrafa Angélica Dass Foto: Kattia Zannetta

Quando você começou a trabalhar com fotografia?

Estudei Belas Artes na UFRJ, em 2005 vim para a Espanha estudar e em 2007 para morar em definitivo. A primeira vez que tive contato com a fotografia foi literalmente quando nasci, com meu pai fotografando o parto, então desde pequena essa tecnologia esteve acessível. Profissionalmente comecei quando vim para a Espanha, eu tinha um blog chamado Cajón Desastre . Depois trabalhei com revistas, fiz muito street style no em torno da semana de moda. Mas comecei a pensar que as fotos que fazia talvez estivessem estimulando estereótipos, e eu não me via nelas. Então fiz um mestrado em Fotografia e me comprometi que o mais importante seria que as fotos fossem significativas para mim. Em 2012 comecei o Humanae. Fui transformando esse meio de algo que era um hobby, virou uma profissão, e depois uma missão de vida.

De onde vem a ideia do Humanae?

Começa porque nasci em uma família muito colorida no Brasil. Me reconheço como uma pessoa afrodescendente, eurodescendente e descendente dos povos originários da América. Toda essa diversidade que via em casa não era importante para mim, mas nasci no Brasil, último país que aboliu o tráfico de seres humanos desde o continente africano e tem uma história duríssima de racismo que é estrutural e obviamente isso fez parte da minha experiência de vida. Também queria mostrar que o que eu tinha aprendido quando pequena, que os seres humanos se dividiam em branco, preto, vermelho, amarelo, as cores associadas ao conceito de raça, era uma grande mentira. Não era o que via na rua e em casa. Lembro da professora me dizendo que um lápis de cor rosa era cor da pele. Acho que venho pensando esse trabalho desde que tinha sete anos. Nasce dessas reflexões de como mostrar o que eu via e como percebia o mundo.

Como foram as primeiras fotos?

As duas primeiras foram minhas e do meu ex-marido, que tem a pele clara, cinco minutos no sol fica vermelho. Depois fiz minha família. E as conversas que fui tendo sobre como se viam, como etnicamente se encaixavam, para mim foi toda uma descoberta também. Depois me dei conta de que isso não era sobre mim, nem sobre minha família, era sobre nós. Então decidi fazer convocatórias, colocar no Facebook dizendo que estava no meu estúdio e queria provar que ninguém é branco ou negro, e um monte de gente começou a vir. Assim nasce o Humanae.

E como é feito o Humanae?

Eu faço a foto em fundo branco, pego um quadrado de 11x11 no nariz, pinto o fundo com essa cor e busco um correspondente em uma paleta industrial Pantone, que é uma linguagem de cores. Sei que têm vários códigos para a cor preta e a cor branca e posso assegurar que fui incapaz de encontrar qualquer ser humano que encaixe nessa nomenclatura de branco e preto. O objetivo é propor essa reflexão: por que a gente decidiu classificar as pessoas assim?

Mas depois de 4.576 fotos em 20 países e 36 cidades, com pessoas de muito mais países, talvez a informação mais importante seja a falta de informação. Não se sabe pelo retrato quem é o pobre ou rico, qual a orientação sexual, se a pessoa é cega, surda. A reflexão que quero propor é essa: vamos olhar primeiro um ao outro como humanos, com o que temos em comum. Porque já sabemos que cada um é único e diferente. Mas todos compartilhamos os antigos ancestrais, somos 99.9% geneticamente idênticos e todos somos a mesma espécie.

O Humanae é uma forma de usar a arte contra o racismo?

Sempre acho que para solucionar esse problema, que é o racismo, preciso entender o passado. Aprendo muito dos meus ancestrais, reconheço o opressor e o oprimido no passado, para agora no presente tentar provocar diálogos e reflexões para que no futuro a gente possa mudar essa narrativa. O Humanae é uma grande ferramenta para começar uma conversa, sobre você mesmo e sobre o outro. Como você é capaz de enxergar esse outro. Como o outro tem tanta similitude com você, mesmo não se parecendo nada. Esse é o objetivo: gerar diálogo. E é uma grande ferramenta para provar que o conceito de raça é uma construção social.

Você tem o objetivo de provar que o conceito de raça é uma construção social e questiona por que ainda é ensinado às crianças, mas destaca que não devemos esquecer o passado no qual se construiu esse conceito. Como fazer isso?

Tenho certeza de que você não iria aceitar se o professor entrasse na sala de sua filha dizendo que a terra é plana. Mas durante muitos anos se acreditou nisso. O conceito de raça é um paralelismo a isso. Temos que reconhecer que foi uma ferramenta construída para desumanizar seres humanos, não é realidade, mas é parte da nossa história. Assim como é parte da nossa história em algum momento ter achado que a terra era plana. O conceito de raça é uma construção social, mas limita a vida de muitas pessoas no presente. É uma mentira, uma construção que é parte do cotidiano de todos nós, mas não é uma realidade.

Qual a importância de retratar os mais diversos tons de pele pelo mundo?

Não é sobre a pele, é sobre o diálogo sobre humanização e desumanização. Meu objetivo não é colecionar cor, me perguntam quantas encontrei e não sei responder, não importa. Não é branco, não é preto, todos os aspectos do que somos como humanos é um monte de cinza, isso é a chave para mim.

Como foram as experiências fotografando em diferentes países?

No fundo, estou tendo as mesmas conversas retratando no Brasil, na Espanha, nos EUA, na China. A dinâmica é a mesma: as cores escuras são associadas a adjetivos negativos, e as mais claras a adjetivos positivos. Na Índia, que ainda tem a questão da casta, os tons escuros são considerados mais feios, miseráveis. Na Ásia, tanto na Coreia quanto na China, onde pude trabalhar, as pessoas não querem estar bronzeadas, porque quem está bronzeado é alguém que trabalha na rua, no campo, e isso significa que é alguém que tem um trabalho inferior. E nem preciso falar do colorismo no Brasil.

Quais histórias você encontrou enquanto fotografava?

Eu vou aprendendo com essas narrativas enquanto vou viajando e tenho o privilégio de contá-las, por ter a oportunidade de ser uma pessoa que querem ouvir. São histórias como a dessa pessoa que conheci quando estava na Índia, que quando era pequena odiava tanto ser escura que passou uma lixa na mão, para ver a parte branca da pele. Ou a que não podia brincar na rua, porque a mãe dizia que ela não podia pegar sol porque ficaria escura e não iria casar.

Seu trabalho tem sido usado por professores em sala de aula. Como funciona a parte educacional do projeto?

Nasce por uma curiosidade das professoras que entram em contato comigo para usar o trabalho. Eu pensei: o que gostaria que tivesse sido feito para mim quando tinha sete anos e a professora chegou com esse lápis dizendo ser cor da pele? Passei a fazer oficinas e oferecer materiais no meu site para que professores possam usar. É uma oficina de auto-retrato e começo celebrando a primeira família de Homo sapiens que migrou do continente africano. E então misturamos as cores primárias para criar diferentes tons de pele. O objetivo é que as crianças saibam que, da mesma maneira, como seres humanos a gente vem da mesma matéria, mas o resultado vai ser sempre diferente. A proposta é que as novas gerações entendam desde o princípio que somos únicos e ao mesmo tempo somos a mesma coisa.

O Humanae é um trabalho em andamento. Há um prazo para terminar?

No dia em que pelo assassinato de George Floyd todo mundo colocou um quadrado preto no Instagram eu também coloquei, mas só escrevi uma coisa na legenda: "talvez agora as pessoas possam entender porque eu não estou cansada de oito anos trabalhando com Humanae. O que estou esgotada é de 41 anos desumanizada pela cor da minha pele". Um dia talvez eu deixe de fazer foto. Mas parar de trabalhar com o Humanae só no dia que não me sinta mais desumanizada por quem eu sou. Eu adoraria não ter criado esse trabalho, ele só existe porque tem muita dor por trás. Mas já que passamos por essas experiências, vamos fazer o máximo possível para que futuras gerações não tenham que passar. Acho que com tantos braços que o Humanae tem hoje, com instalações, palestras, aulas, trabalho nas escolas, livro, ele já está vivo sem mim.

Você publicou um livro este ano, o "The Colours We Share". Como ele é, e há previsão para chegar ao Brasil?

Humanae, colagem 2x2 Foto: Angélica Dass
Humanae, colagem 2x2 Foto: Angélica Dass

O livro é para um público de cinco anos para cima. Foi uma aposta arriscada, mas decidimos que o primeiro tinha que ser infantil. Toda a reflexão do projeto está nele. Tem fotos de uma pessoa cheia de melanina e outra que não tem nenhuma porque é albina. Tem um jogo das pessoas com exatamente a mesma cor, mas que pertencem a grupos étnicos diferentes. A ideia é que as crianças possam refletir e adultos também. O livro foi publicado pela editora norte-americana Aperture, está disponível em inglês e é possível comprar pela internet, mas ainda estamos buscando uma editora brasileira para publicar em português. Quero muito essa versão, porque esse trabalho só existe porque eu sou brasileira.