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Brasil

Símbolo de biodiversidade, onças-pintadas vivem ameaçadas no Brasil

Felino tem população escassa por conta de caça e desequilíbrio ambiental; animal é alvo de ações de preservação
Em detalhe, onça-pintada da Amazônia: pacotes de turismo para observação do animal renderam 2,2 milhões em 2017 Foto: Divulgação/Roberto Lorenzo / Divulgação/Roberto Lorenzo
Em detalhe, onça-pintada da Amazônia: pacotes de turismo para observação do animal renderam 2,2 milhões em 2017 Foto: Divulgação/Roberto Lorenzo / Divulgação/Roberto Lorenzo

RIO - “Onça, elas também sabem muita coisa. Tem coisas que ela vê, a gente não, não pode. Ih! Tanta coisa...”, escreveu Guimarães Rosa em “Meu tio o Iauaretê”, um de seus contos mais famosos. As palavras de Rosa, o grande cronista dos sertões do Brasil, são de 1969. Passados quase 50 anos, ainda tem muita coisa que só a onça parece saber, a mais importante delas, manter a natureza em equilíbrio. O que já se tem certeza, porém, é que viva ela vale mais do que morta.

Transformada oficialmente este ano, por portaria do governo federal, em símbolo da biodiversidade do Brasil, a onça-pintada é nosso animal mais emblemático, com habitat da Amazônia às florestas do Sul. Só não ocorre nos Pampas, onde foi extinta. Está à beira de desaparecer na Mata Atlântica e na Caatinga. É vítima da perda de habitat e da caça, tanto dela própria quanto de suas presas, como porcos do mato, pacas e veados.

Se tornou um símbolo porque ocupa o topo da cadeia da alimentar dos biomas onde ocorre, representa força e resistência. Onde tem onça, tem natureza saudável, resume Ronaldo Morato, um dos maiores especialistas do país na espécie e coordenador-geral do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos (Cenap/ICMBio). Sem a pintada, as florestas que produzem água e regulam o clima, não funcionam como deveriam. É ela quem mantém em ordem a população de bichos que, por sua vez, são essenciais para o crescimento das plantas.

Filhote de onça do Parque Nacional do Iguaçu Foto: Divulgação/Carmel Croukamp Davies
Filhote de onça do Parque Nacional do Iguaçu Foto: Divulgação/Carmel Croukamp Davies

Como disse Rosa, onça “revira pra todo lado, mecê pensa que ela é muitas, tá virando outras.” E as onças no Brasil são poucas em número e muitas em diversidade. Há as onças anfíbias da Amazônia. Na várzea do Solimões, elas não migram nas cheias. Ficam empoleiradas nos galhos e caçam preguiças e macacos, conta Carlos Durigan, diretor da WCS-Brasil, que lidera uma aliança para a preservação da espécie.

Já as sertanejas são menores e encontraram um último refúgio nos boqueirões da Caatinga. A rara lombo-preto é a senhora das noites das dunas e chapadões do Jalapão. Há as onças musculosas caçadoras de jacarés do Pantanal. E as onças que resistem confinadas nos maiores fragmentos que restaram da Mata Atlântica.

Tornada símbolo, a onça ganhou este ano um dia nacional, 29 de novembro, lançado em Foz do Iguaçu. A cidade é o  principal centro de conservação da espécie na Mata Atlântica e onde está a maior população desse felino no bioma — 22 animais, segundo um censo de 2016, pouco mais uma esperança aos 11 que havia em 2009.

Em Foz produtos com a pantera representam mais da metade das vendas das lojas do Parque Nacional do Iguaçu. Uma cerveja artesanal chamada Jaguaretê (nome tupi da pintada) faz sucesso. E o secretário de Turismo, Indústria e Comércio de Foz, Gilmar Piolla, diz que a onça é um ativo fundamental do município, terceiro principal destino turístico dos estrangeiros que visitam o país.

— Aqui todo mundo é amigo da onça, tem paixão por ela. Ela ajuda a mover a nossa economia — afirma Piolla.

Onça e turismo

Mas é do Pantanal onde está a segunda maior população de onças brasileiras fora da Amazônia — cerca de mil animais — que vem o exemplo mais contundente do valor literal desses felinos. Uma pesquisa liderada por Fernando Tortato, da ONG Panthera, mostrou que a venda de pacotes turísticos para a observação de onças alcançou R$ 22 milhões em 2017. Os prejuízos causados pelos felinos com a predação de gado ficaram em R$ 400 mil.

Mamífero frequentemente é alvo de criadores de gado, que a caçam em retaliação a eventuais ataques ao rebanho Foto: Divulgação/Jayro Bardales
Mamífero frequentemente é alvo de criadores de gado, que a caçam em retaliação a eventuais ataques ao rebanho Foto: Divulgação/Jayro Bardales

— Já há pousadas que cobram US$ 900 de diária pelo turismo de observação de onças e a maioria dos turistas se diz disposta a pagar um pouco mais para ajudar a compensar criadores que tenham sofrido perdas. É possível criar mecanismos de compensação para os criadores, estabelecer uma política para isso e acabar com caça de retaliação. Já a caça esportiva, uma das maiores exibições de covardia e brutalidade que o ser humano é capaz de dar, tem que ser combatida com todo o rigor da lei — frisa Tortato.

No Brasil, de cada cem cabeças de gado mortas, apenas duas são predadas por onças, sendo o atolamento na lama e doenças infecciosas as principais causas de mortalidade do rebanho, diz Yara Barros, coordenadora-executiva do projeto Onças do Iguaçu. A onça é vítima, sobretudo, da falta de conhecimento, destaca Barros. O trabalho do projeto é justamente promover a coexistência entre onças e seres humanos. Tem tido sucesso. Conseguiu, por exemplo, que um produtor rural que perdeu uma vaca se tornasse defensor das onças.

O grupo ajudou Marcus Oliveira, do distrito rural de São Miguel, na borda do parque do Iguaçu, a colocar cerca elétrica, obter a melhoria das estradas e aprender a fazer queijo. Hoje ele vende um procurado Queijo da Onça e se tornou voluntário do grupo de conservação. A onça acabou sendo um ótimo negócio, salienta Barros. Segundo ela, os casos de ataques a seres humanos são extremamente raros e, quase sempre, causados por desequilíbrio ambiental.

Este ano houve dois ataques fatais de onças a pessoas no Xingu após anos sem casos. Uma das possibilidades, diz Durigan, é que o desmatamento no entorno do parque tenha levado as onças para perto das aldeias. A WCS, a WWFF e a Panthera apresentaram na conferência mundial de biodiversidade (COP 14), mês passado no Egito, uma proposta de preservação da espécie nos 18 países das Américas onde a pintada existe.

São diretrizes de ações conjuntas feitas pelos governos. Brasil, Argentina e Paraguai, por exemplo, já colaboram para proteger as onças da região do Iguaçu e têm alcançado bons resultados.

Nas florestas do Iguaçu, a caça é a grande ameaça. Ela é principalmente de retaliação a ataques contra animais de criação ou de abate a presas naturais da onça, como os queixadas, explica Ivan Baptiston, chefe do parque nacional. Segundo ele, a fiscalização tanto no lado brasileiro quanto no argentino tem diminuído a pressão e ajudado a aumentar a população de felinos.

Temida por séculos, ela foi considerada até enviada de Deus para punir os desatinos do homem “(...) que seria se muitas se unissem a vingar as injúrias que tinham cometido os homens contra seu Criador”, escreveu em 1752 o jesuíta Manoel da Fonseca em a “Vida do venerável padre Belchior de Pontes”. Porém, foi a onça que terminou vítima de alguns dos maiores pecados da Humanidade, como a luxúria, a covardia e a perversidade que movem a caça esportiva, frisa Baptiston.

Barros aposta no conhecimento sobre o felino para promover a conservação por meio da coexistência. O

— Queremos substituir o medo pelo encantamento. Coexistir é possível. Onça só quer ser onça — diz ela, que vai de feira rural a batizado de boneca para dar palestras sobre o felino na zona rural do Paraná.