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Cultura Artes visuais

Acervo do cartunista Claudius, com mais de 2,6 mil desenhos, é doado para o Instituto Moreira Salles

Convidamos cinco craques do cartum para entrevistar o artista de 83 anos, que foi um dos fundadores do 'Pasquim' e trabalhou com Paulo Freire durante seu exílio
Claudius, em seu apartamento em Copacabana: em atividade desde 1957 Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Claudius, em seu apartamento em Copacabana: em atividade desde 1957 Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

RIO — Se a história do Brasil a partir de meados do século XX pode ser contada pelas páginas de jornais e revistas, boa parte das últimas décadas também pode ser “lida” nos traços e cores de Claudius Ceccon. Gaúcho de Garibaldi, mas desde os 4 anos vivendo no Rio, o cartunista de 83 anos publicou seus primeiros desenhos no “Jornal do Brasil”, em 1957, quando ainda era estudante de Arquitetura. Nas décadas seguintes, esteve nas páginas dos principais veículos do país, como as revistas “Manchete” (onde publicou por 15 anos) e “Pif Paf” e jornais como O GLOBO, “Folha de S. Paulo” e “O Estado de S. Paulo”, além de “O Pasquim”, do qual participou da fundação, em 1969.

O acervo que guardava em seu apartamento, em Copacabana, ganhou nova casa recentemente: os 2.461 desenhos, documentos e cartas — incluindo as trocadas com Paulo Freire, com quem fundou o Instituto de Ação Cultural (IDAC) durante o exílio nos anos 1970, em Genebra — foram transferidos para o Instituto Moreira Salles (IMS), onde passam por um processo de higienização e catalogação. No departamento de Iconografia da instituição, as obras de Claudius ganham a companhia de outros mestres dos traços, cujos trabalhos já integram o acervo do IMS, como J. Carlos (1884-1950) e Millôr Fernandes (1923-2012), companheiro de Claudius no “Pasquim”.

— Ainda preciso me beliscar para acreditar que não estou sonhando quando penso que meu acervo estará na companhia desses dois monstros, J. Carlos e Millôr — comenta Claudius. — Espero que o IMS passe a considerar outros desenhistas de humor, tornando-se a principal fonte de informação, divulgação e pesquisa sobre o gênero.

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Coordenadora de Iconografia do IMS, Julia Kovensky destaca que a boa conservação e a forma como o material chegou organizado à instituição tem ajudado a equipe no trabalho de catalogação.

Obra do cartunista Claudius, que doou seu acervo para o IMS Foto: Claudius Ceccon/Acervo Instituto Moreira Salles
Obra do cartunista Claudius, que doou seu acervo para o IMS Foto: Claudius Ceccon/Acervo Instituto Moreira Salles

— A expectativa, como sempre, é de aproveitar o potencial deste acervo para exposição e publicações, mas é algo mais para o futuro. Até porque, trabalhando no material, várias ideias de novas abordagens vão surgindo — diz Julia.

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Para a entrevista com o artista, pedimos perguntas a outros craques do cartum: Chico Caruso, cartunista e chargista do GLOBO ; Aroeira; Jaguar (outro companheiro de Claudius no “Pasquim”); Reinaldo Figueiredo (um dos fundadores do “Casseta & Planeta”) e André Dahmer, que publica diariamente tiras neste Segundo Caderno.

Formação profissional, influências e lembranças de histórias vividas ao longo das décadas estão entre os temas abordados pelos cartunistas.

Chico Caruso

Como o estudo da arquitetura influenciou o seu trabalho? No meu caso, com a separação de funções, texto e imagem, reinos diferentes... E no seu?

Minha geração estava na Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio, no momento em que Brasília estava sendo construída. Eram anos JK, seu otimismo era contagiante, tudo parecia possível. Comecei a publicar meus desenhos no “Jornal do Brasil” e na “Manchete” quando cursava o segundo ano de Arquitetura. Era para mim quase um hobby, para me manter enquanto estudava. Em meados dos anos 1970, morando em Genebra, comecei um mestrado com Manuel Castells na École Pratique des Hautes Ètudes, em Paris. E foi ouvindo Castells que a ficha caiu, finalmente. Eu me interessava por arquitetura e planejamento urbano, mas não queria seguir uma carreira universitária. Minha praia era outra: falar por imagens o que tanta gente precisava de muitíssimas palavras para descrever. A arquitetura me permite até hoje viver esteticamente melhor e também me abriu os olhos para projetos de educação. A arquitetura me abriu possibilidades e desafios que talvez nenhuma outra profissão proporcionaria.

Jaguar

Você é um excelente cartunista desde a “Manchete”, onde começamos juntos, passando pelo “Pasquim”. Continua com suas publicações em veículos internacionais?Como vê as tendências do desenho de humor atual?

Lembro que uma vez nos encontramos na “Manchete” e você me mostrou cinco cartuns numa página, cada um desenhado com um estilo diferente e me perguntou de qual eu gostava mais. Eu escolhi um, sem hesitar, e você se surpreendeu: “Mas esse é meu estilo!”. Pois é, Jaguar, da “Manchete” você foi para a “Senhor”, onde encontrou espaço para desenvolver o talento e o estilo que te consagrou. Quanto aos veículos internacionais, eles precisam ser cultivados, eu acho. É tipo amor à primeira vista. Essa pergunta é boa para o Loredano ou o Rico Lins, que arrasam lá fora. O humor atual no Brasil tem uma belíssima safra de bons desenhistas, mas faltam jornais que os publiquem. É verdade que essa observação é típica de um pensamento passé . Tem a internet aí. Tem aplicativos que fazem a animação de uma charge. É outra linguagem. E, naturalmente, aí está a realidade brasileira, que parece regredir no tempo e cujos homens públicos concorrem deslealmente com os humoristas.

Aroeira

Você é mestre em várias atividades, do cartum à ilustração. E foi trabalhar com outro mestre, o Paulo Freire. Como foi isso?

Tive o privilégio de conhecer Paulo Freire em Genebra. Criamos, com amigos, o IDAC (Instituto de Ação Cultural), que trabalhou na Europa e nos EUA questões da educação, a partir do que podemos chamar de teorias de Paulo Freire. Nos anos 1970, Paulo e nós, sua equipe, fomos convidados a trabalhar na Guiné-Bissau, que se havia libertado do colonialismo português. Uma de nossas invenções foi usada, ao voltar ao Brasil, na Arquidiocese de São Paulo, com D. Paulo Evaristo Arns. Ele queria que as comunidades de base discutissem seus problemas e determinassem, sem ajuda dos bispos, o que deveria ser feito. Como na Guiné-Bissau, criamos séries de slides, desenhados diretamente com nanquim no papel vegetal, que eram projetadas e discutidas nas reuniões das comunidades de base. Era a melhor forma de ouvir o povo, na metodologia freireana. Dessa relação de trabalho surgiu o CECIP (Centro de Criação da Imagem Popular), que usava um novo meio, o vídeo. Isto abriu caminho para produzir kits audiovisuais, livros e processos de formação que duram até hoje. Paulo Freire está na origem de toda essa história.

Reinaldo Figueiredo

Você é um dos desenhistas de humor com o desenho mais bonito e mais artístico. Durante a sua carreira, teve vontade de fazer uma exposição numa galeria?

Pois é, devolvo a pergunta: os teus desenhos publicados no número 2 da “Expresso” são sensacionais. Vai ou não vai expô-los numa galeria? O (Carlos) Vergara, há tempos, sugeriu expormos juntos na galeria do Clube Marimbás. Eu meio que empaquei, ele acabou expondo sozinho. Quem sabe numa próxima? Uma amiga vive repetindo que eu deveria expor numa galeria e vender meus desenhos. O problema é que sou muito apegado aos meus desenhos. Eu os dou, de vez em quando, posso até doar o acervo todo ao IMS, mas tenho um certo bloqueio com essa coisa de vender.

André Dahmer

Claudius, você que é um mestre: qual é a influência de outro mestre, Saul Steinberg, na sua obra?

Steinberg me foi apresentado por um colega do pré-vestibular de Arquitetura, com o livro “The art of living”. Eu conhecia os cartunistas da época, Carlos Estêvão, Péricles, J. Carlos, o desenho despojado do Borjalo, os europeus. Mas o Steinberg me causou um enorme impacto. Fui colecionando tudo o que ele publicou, ele, que era arquiteto e teve uma vida fascinante que confundiu todos os críticos de arte. Por quê? Porque ele publicava na “New Yorker” aquelas coisas maravilhosas, e também fazia exposições em galerias de arte, para vender seus desenhos e, para completar, ainda fazia murais. Para mim, Steinberg é uma referência e uma inspiração, sobre o que é possível fazer quando se encontra uma revista sofisticada como a “New Yorker”. Mas, para trazer para o nosso terreiro essa conversa, sou fã há muito tempo das tuas tiras, André, onde você consegue divertir e fazer pensar.