Exclusivo para Assinantes
Cultura Artes visuais

Memória das ruas: o grafite e a preservação das obras

Decisão da Justiça americana de indenizar artistas que tiveram pinturas apagadas abre debate no Brasil
Carlos Bobi: grafiteiro levava print da lei no celular Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
Carlos Bobi: grafiteiro levava print da lei no celular Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

RIO — Berço do grafite, Nova York mantinha, até 2013, um verdadeiro museu a céu aberto dedicado a esta arte. Conjunto de prédios abandonados em Long Island, Queens, o 5Pointz passou a ser ocupado por grafiteiros e muralistas a partir da década de 1990, quando estes solicitaram ao proprietário, Jerry Wolkoff, permissão para cobrir com aerosol suas paredes. Logo, o espaço se tornou um ponto turístico e uma das principais referências globais para a arte de rua. Até que, há cinco anos, Wolkoff decidiu erguer um empreendimento imobiliário no lugar dos prédios e mandou pintar de branco, durante a madrugada, todas as obras do local. A decisão revoltou a comunidade artística e um grupo de 21 grafiteiros que tinha obras no 5Pointz abriu um processo contra empresário. Em novembro de 2017, um júri civil decidiu que o Wolkoff violou a Lei dos Direitos do Artistas Visuais, que data de 1990 e garante proteção ao direito moral dos autores sobre suas obras. Na semana passada, a Justiça de Nova York informou o valor da indenização: US$ 6,7 milhões (US$ 150 mil para cada um dos 21 artistas).

A decisão, que sobrepôs o direito moral ao de propriedade, levantou novas discussões sobre o valor da arte de rua e os direitos de grafiteiros e muralistas sobre suas obras. No Brasil — onde a arte é regulamentada pela Lei Federal 12.408, de 2011, pela qual não pode ser considerado crime “a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado, desde que consentida pelo proprietário” — artistas de diferentes gerações como Eduardo Kobra, Panmela Castro, Carlos Bobi e Rui Amaral esperam que a decisão da corte americana possa jogar nova luz sobre a preservação da arte em espaços públicos.

5Pointz em 2010, com os grafites intactos Foto: Wikimedia Commons
5Pointz em 2010, com os grafites intactos Foto: Wikimedia Commons

— No Brasil, a lei é ambiental e não de propriedade. É como se, em tese, a Justiça reconhecesse que o direito à fachada também envolve a coletividade. Mas como é necessária a autorização para a pintura, a lei garante ao proprietário o direito de remover as obras — observa Felipe Bernardo Furtado Soares, advogado e mestre em Direito pela UFMG, que já defendeu mais de 50 casos ligados à pichação e grafite na capital mineira. — Pela legislação brasileira, talvez fosse mais fácil conseguir a preservação de alguma obra representativa por uma ação civil pública.

Caso semelhante ocorreu com o paulistano Eduardo Kobra, que em janeiro teve o mural “Genial é andar de bike”, na rua Oscar Freire, removido da fachada da loja Schutz. O muralista conta que soube da remoção pelas redes sociais e que, apesar de já estar acostumado com tal situação, esperava ter sido consultado antes.

— A arte de rua tem natureza efêmera, mas não quer dizer que seja descartável. Quando um grafite cria uma identificação com a cidade, podemos sim pensar em formas de preservá-los. Em Nova York, é possível ver hoje intervenções do Keith Haring, faz parte da história da cidade. Remover é sempre a pior opção — observa Kobra, que gostaria de ver preservados nos muros paulistanos os grafites de Alex Vallauri (1949-1987), um dos pioneiros da arte no Brasil.

Mural de Eduardo Kobra, apagado em São Paulo Foto: Divulgação
Mural de Eduardo Kobra, apagado em São Paulo Foto: Divulgação

A grafiteira carioca Panmela Castro, que teve um mural removido em Sorocaba, em dezembro de 2017, após protestos de religiosos contra a figura de duas mulheres unidas por uma “flor-vagina”, acredita que as garantias dos artistas sobre as obras são maiores em se tratando de direitos autorais. A artista — que chegou a grafitar no 5Pointz, em Nova York — já fez acordos com empresas que utilizaram imagens de seus murais sem autorização.

— Hoje temos mais garantias, mas ainda nos deparamos com o preconceito. Como no caso de uma imagem do Bezerra da Silva que fiz na Lapa e, anos depois , decidi cobrir com uma representação feminina. Pintaram por cima da nova obra, tenho certeza que não fariam isso se fosse um símbolo masculino.

O advogado Daniel Campello Queiroz explica que a Lei de Direito Autoral, de 1998, protege obras de artes visuais em geral, o que incluiria projetos de murais ou grafites.

— Entre as garantias asseguradas, estão os direitos morais, como o de a obra não poder ser modificada, e os direitos patrimoniais, que proíbe a reprodução sem autorização dos autores — detalha Queiroz.

Ainda que amparada pela legislação, a relação da arte de rua com o poder público nem sempre é livre de conflitos. Um dos casos mais icônicos é o do início da gestão de João Dória na prefeitura de São Paulo, quando foram apagados os murais da Avenida 23 de Maio, em 2017. Para Rui Amaral, um dos curadores do espaço, os artistas até poderiam processar a prefeitura, já que as obras foram autorizadas pela administração anterior, mas o caminho foi o do diálogo.

Mural de Panmela Castro, posteriormente vandalizado na Lapa Foto: Divulgação
Mural de Panmela Castro, posteriormente vandalizado na Lapa Foto: Divulgação

— O discurso oficial seguiu o da elite que ainda associa o grafite e a pichação à violência e desordem urbana. Mas, ainda que tivéssemos respaldo na lei, preferimos não ir para o confronto e conseguimos, como contrapartida, levar projetos de grafite para jovens da periferia — destaca Amaral, um dos pioneiros do grafite em São Paulo.

No Rio, Carlos Bobi, dono da escola de grafite Espaço Rabisco, lembra de quando levava um print do decreto municipal 38.307, de 2014, no celular:

— Uma vez estava pintando em um poste e um guarda municipal me pediu para parar. Mostrei a ele a lei que permite o grafite em postes, colunas e tapumes, sem necessidade de autorização.

Segundo o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), órgão carioca de conservação, o caráter efêmero do grafite torna difícil a avaliação para fins de proteção, sendo mais comum o reconhecimento de murais em materiais cerâmicos. Na cidade, dois murais com tinta são tombados: as pinturas do Profeta Gentileza no Caju e o painel “Paisagem urbana”, de Ivan Freitas, na lateral da Escola de Música da UFRJ, na Lapa.

Obra de Rui Amaral na Avenida Paulista, que depois foi coberta de tinta Foto: Divulgaçao
Obra de Rui Amaral na Avenida Paulista, que depois foi coberta de tinta Foto: Divulgaçao

Um dos artistas com o maior número de obras espalhados pelo Rio — inclusive a mais alta da cidade, o mural de 75 metros que cobre a lateral do Hotel Marina, no Leblon — o baiano radicado no Rio Tomaz Viana, mais conhecido como Toz, conta que a forma de preservação de suas obras é mesmo o registro fotográfico. Embora nem sempre isso seja possível.

— Já passei a noite fazendo um mural e, quando voltei de manhã para registrar, um carro havia batido no muro e destruído a obra. Mas é essa incerteza que faz o grafite ser o que é — destaca Toz, que encerra amanhã a individual “Povo Insônia”, no Museu Chácara do Céu.

Enquanto a preservação física é debatida, o grafite pode ser eternizado ao menos na internet. É o que propõe o projeto “Google, don’t come here" (“Google, não venha aqui"), criado por amigos de São Paulo para que o carro do Street View não passe mais pela Oscar Freire, deixando como registro o mural de Kobra.

— Queremos mostrar que, num mundo hiperconectado, temos voz perante a sociedade. O Kobra é um exemplo, mas a ideia é estender o projeto à toda expressão de arte de rua — destaca o criativo publicitário Saymon Souza Medeiros, um dos idealizadores da campanha.

O Google não quis comentar a iniciativa, mas informou que desde 2014 o Street View tem um recurso de linha do tempo, no qual é possível ver imagens capturadas no passado.