Cultura

Centenário: Semana de Arte Moderna de 1922 é celebrada mas também passa por revisão crítica

Marco cultural do país é lembrado em lançamento de livros, exposições e no audiovisual, em ações que tentam incluir vozes não contempladas no evento original
Capa do livro 'Pau Brasil' (1925), de Oswald de Andrade; Colagem de Ge Viana, em cartaz na mostra 'Brasilidade pós-modernismo'; autorretrato de Wilson Tibério, que estará na coletiva 'Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil'; 'Praga', de Beatriz Milhazes (também de 'Brasilidade pós-modernismo) e 'O touro', de Tarsila do Amaral Foto: Reprodução
Capa do livro 'Pau Brasil' (1925), de Oswald de Andrade; Colagem de Ge Viana, em cartaz na mostra 'Brasilidade pós-modernismo'; autorretrato de Wilson Tibério, que estará na coletiva 'Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil'; 'Praga', de Beatriz Milhazes (também de 'Brasilidade pós-modernismo) e 'O touro', de Tarsila do Amaral Foto: Reprodução

Em 1952, Manuel Bandeira disse ser “perfeitamente dispensável” comemorar o trigésimo aniversário da Semana de Arte Moderna de 1922: “Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então sim”. Ainda que a blague desdenhasse da importância que o evento já tinha à época, seria difícil para o poeta — embora impedido de estar presente ao encontro, pela tuberculose, ele teve seu poema “Os sapos” declamado, entre vaias da plateia — dimensionar o quanto a Semana se consolidaria como um marco da cultura brasileira cem anos depois.

Mesmo passando atualmente por uma revisão histórica para incluir outros modernismos que ficaram de fora do evento organizado pela elite cultural paulista no Theatro Municipal entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, a Semana chega ao centenário como um dos pilares das transformações que o país atravessou, não somente pela aproximação com as vanguardas internacionais, mas por criar uma nova forma de pensar a sua sociedade.

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Celebrada (e tensionada) por exposições, livros e produtos audiovisuais, a efeméride suscita debates a respeito de seu legado e dos temas que começariam a ser abordados desde então.

— Uma pauta atual que já podíamos ver no modernismo é a questão da representatividade. (A pintora) Anita Malfati era uma mulher solteira que não vinha de uma família endinheirada. Tarsila do Amaral, que não participou da Semana mas era uma referência do movimento, era casada, se separou, foi para Paris com a filha, depois conheceu (o escritor) Oswald de Andrade — observa Gênese Andrade, organizadora da coletânea de ensaios “Modernismos 1922—2022”, da Companhia das Letras. — Além disso, a Antropofagia é uma das teorias culturais que mais circulam no mundo. Está no Cinema Novo, no teatro de Zé Celso, em Hélio Oiticica, nos tropicalistas. Não é uma herança engessada.

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Uma das exposições que tomam a Semana de 1922 como ponto de partida, “Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil” será inaugurada no dia 10, no Sesc 24 de Maio, na capital paulista. Assinada por sete curadores — Raphael Fonseca, Clarissa Diniz, Marcelo Campos, Aldrin Figueiredo, Divino Sobral, Paula Ramos e Fernanda Pitta —, a mostra reúne 600 obras de 200 artistas chegando até meados do século XX. Seu título é inspirado pelas fachadas de casas de Belém (PA) da década de 1950, nas quais a justaposição de azulejos quebrados criam formas geométricas que lembram setas e raios.

— Há uma lógica econômica para o evento ter acontecido na capital paulista na época. Mas hoje podemos pensar em representações que rompam com a perspectiva de centro e periferia, e que possam ir além de São Paulo e além dos anos 1920 — diz Raphael Fonseca. — A alusão ao raio-que-o-parta lembra como muitas expressões artísticas foram criadas a partir das “sobras” de um certo modernismo oficial.

Arquitetura ganha força

Entre os principais nomes presentes na Semana de 1922, o destaque foi para artistas plásticos, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Victor Brecheret; escritores, a exemplo de Mário e Oswald de Andrade, Graça Aranha e Menotti Del Picchia; além de músicos e compositores, como Heitor Villa-Lobos e a pianista Guiomar Novaes. A arquitetura teve apenas dois representantes, ambos imigrantes: o espanhol Antônio Garcia Moya e o polonês Georg Przyrembel. Embora os dois fossem adeptos do estilo neocolonial e a despeito da sub-representação do segmento, logo a arquitetura moderna iria se transformar em uma das maiores marcas da cultura brasileira no mundo.

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Poucos anos depois do evento, em 1928, São Paulo veria a construção da Casa Modernista, na Rua Santa Cruz, projeto de autoria do arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik (1896–1972), primeira obra do estilo no Brasil. Nas décadas seguintes, o país ganharia as primeiras edificações públicas modernas, como o Edifício Esther (São Paulo, de Álvaro Vital Brazil e Adhemar Marinho), o Palácio Capanema (Rio, de Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcelos, Jorge Machado Moreira e Oscar Niemeyer) e o Conjunto Arquitetônico da Pampulha (Belo Horizonte, de Niemeyer).

— A arquitetura saiu atrasada em relação às outras artes de 1922, mas em pouco tempo tomou a dianteira, projetando o Brasil internacionalmente. Em 1943, o MoMA (Nova York) realizou a histórica exposição “Brazil builds”, e muitas revistas estrangeiras de arquitetura estampavam projetos brasileiros na capa — destaca Guilherme Wisnik, escritor e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. — A Semana acelerou o processo que culminou com a construção de Brasília. Entre 1922 e 1957, ano do concurso para o Plano Piloto, foi um período muito curto, de 35 anos. É o tempo que leva a formação e o amadurecimento de uma geração de arquitetos.

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O ano de 1922 também é tomado como marco pela Flup (Festa Literária das Periferias), que será realizada entre os dias 11 e 18 no Museu de Arte do Rio (MAR ) e no Museu da História e Cultura Afro-Brasileira (Muhcab). No entanto, a efeméride lembrada não será a realizada no Theatro Municipal de São Paulo e sim a viagem de Pixinguinha e seu grupo, os Oito Batutas, para Paris, onde se encontraram com músicos negros do Sul dos EUA. Um dos eventos que revê a Semana de 1922, a Flup vai destacar os 100 anos do modernismo negro homenageando Pixinguinha, o escritor Lima Barreto e a dançarina Josephine Baker.

Imagem do conjunto Os Oito Batutas, que fez uma turnê em Paris em 1922 Foto: Reprodução
Imagem do conjunto Os Oito Batutas, que fez uma turnê em Paris em 1922 Foto: Reprodução

— Quando os Oito Batutas se encontram com músicos americanos em Paris e esse intercâmbio é celebrado na cidade como um grande acontecimento, se dá o primeiro encontro diaspórico da história em que artistas negros desfrutam de uma condição de dignidade — observa Julio Ludemir, idealizador da Flup. — Pixinguinha descobriu o saxofone na viagem, e ele e Donga, ao voltarem ao Brasil, criaram formações que mesclavam ritmos nacionais ao jazz. A antropofagia também se mostrava ali.

Espírito de renovação

A efeméride será lembrada, também a partir de uma revisão histórica, na Semana Preta de 22, evento selecionado pelo 17º Programa Oi de Patrocínios Culturais Incentivados e que irá ser realizado em junho, no Oi Futuro e em outros municípios fluminenses. O festival multiplataforma destacará a produção de artistas negros em áreas como poesia, artes visuais, fotografia, música e dança.

— Nós entendemos a Semana de 1922 historicamente, e o que ele significou dentro de uma sociedade de 100 anos atrás. Hoje estamos ampliando estes critérios e recortes para incluir outras vozes e expressões — ressalta o produtor Wesley Soares Cardozo, idealizador da Semana Preta de 22. — A ideia é promover um real protagonismo baseado na excelência de cada artista, a partir de produções que representem uma vivência relacionada às nossas raízes africanas.

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Autor de “Eu sou trezentos: Mário de Andrade: vida e obra” (Edições de Janeiro), vencedor do Jabuti de não ficção em 2016, e “A brasilidade modernista — Sua dimensão filosófica” (Ed. Ponteio), que ganha este mês uma nova edição, Eduardo Jardim vê na celebração do centenário uma possibilidade de debater o programa proposto pelos modernistas de 1922 em relação a questões contemporâneas, mas sem deixar de destacar a importância do evento original.

— Aquele grupo vocalizou um espírito de renovação estética muito forte naquele momento, se não fosse em 1922 em São Paulo aconteceria depois de qualquer forma. Pensando como um movimento de ideias mais amplo, o modernismo vai do final do século XX até a Tropicália — explica Jardim. — As questões lançadas na Semana e nas décadas seguintes não se esgotaram. Podemos pensar em pautas como o que seria a identidade nacional até hoje, trazendo outros olhares às visões modernistas sobre estes temas. ( Colaborou Ruan de Sousa Gabriel )