Cultura

Exposições e obra digitalizada marcam 100 anos da primeira individual de Lasar Segall

São Paulo abre duas mostras nesta sexta
Óleo sobre tela 'Encontro' (1924), de Lasar Segall. O autorretrato é o primeiro e mais forte símbolo da integração de Segall à vida brasileira Foto: Museu Lasar Segall / Divulgação
Óleo sobre tela 'Encontro' (1924), de Lasar Segall. O autorretrato é o primeiro e mais forte símbolo da integração de Segall à vida brasileira Foto: Museu Lasar Segall / Divulgação

RIO - Em março de 1913, o jovem russo Lasar Segall (1891-1957) desembarcou no Brasil com 21 anos de idade e um sonho na bagagem: realizar em São Paulo uma exposição só sua.

Municiado de coragem e ousadia, ele convenceu o então senador José de Freitas Valle, um poderoso amigo da família de sua irmã Luba, a alugar um salão na Rua São Bento, no bairro da Sé, e levou para lá 52 obras — a maioria de caráter impressionista. Como Freitas Valle era figura de prestígio, Segall encheu o salão logo no vernissage, vendeu boa parte das peças e despertou a atenção não só da classe artística — que gostou de seus temas e pinceladas — como também da imprensa brasileira. Dias depois, ganhava do crítico Abílio Miller o título de “pintor de almas”.

Para estudiosos da vida e da obra do artista russo naturalizado brasileiro em 1927, a primeira individual dele no país — que está fazendo 100 anos e motiva uma série de eventos nos próximos dias — foi fundamental não só para o crescimento profissional de Segall, mas também para os rumos da arte brasileira.

— A exposição de 1913 abriu o horizonte dos artistas daqui e pavimentou o caminho que levou Anita Malfatti (1889-1964) a fazer a exposição de 1917 e a impulsionar o movimento modernista brasileiro — diz Jorge Schwartz, que dirige o Museu Lasar Segall, em São Paulo. — É por isso que vamos comemorar muito esse centenário.

Na agenda das celebrações, destacam-se duas exposições que a instituição abrirá nesta sexta no bairro paulistano da Vila Mariana, onde fica sua sede. Na primeira, estarão 50 das 3 mil peças do acervo do museu. Entre elas, quatro dos 52 trabalhos exibidos na mostra de 1913: as pinturas “O violinista” (1909) e “Leitura” (1913), o pastel “Asilo de velhos” (1912) e o desenho “Volendam” (1912). Na segunda mostra, o museu tornará públicas 60 fotos do acervo pessoal de Segall. São cliques que retratam o cotidiano dele em família, seu ambiente de trabalho e a convivência com outros artistas, como Wassily Kandinsky e Paul Klee. No conjunto, chamam a atenção fotos que Hildegard Rosenthal (1913-1990) fez de Segall em seu ateliê enquanto ele pintava “Navio de emigrantes” (1939-1942), um dos maiores (2,3 metros x 2,75 metros) e mais importantes óleos do artista.

Ainda na sexta, o Museu Lasar Segall promoverá uma mesa redonda sobre o pintor e lançará oficialmente na internet seu acervo digitalizado .

— Com apoio de R$ 110 mil da Fapesp ( Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo ), montamos uma equipe e digitalizamos 6 mil documentos — conta a historiadora Vera d’Horta, que coordena o setor de pesquisa da instituição. — Vamos preservar o material, evitando contato físico com ele, mas, ao mesmo tempo, divulgá-lo em larga escala. A ideia é fomentar trabalhos em torno da figura e da obra de Lasar Segall.

No Rio, as comemorações acontecem na Caixa Cultural, que inaugura na segunda-feira a exposição “Lasar Segall — Percursos no papel”. São 61 obras (aquarelas, guaches e gravuras, entre outras técnicas usadas por Segall) vindas do museu paulistano e que retratam a prostituição no mangue carioca na primeira metade do século XX.

— Com tudo isso queremos mostrar que Lasar Segall foi um artista completo, multifacetado — afirma Schwartz.

Desde 2009, o Museu Lasar Segall trabalha para digitalizar e colocar na internet todo o seu acervo. Amanhã, o catálogo on-line da casa entra no ar, com cerca de 6 mil registros, entre imagens de obras, fotos, cartas e outros documentos, mas a tarefa de atualização será continua.

— Temos 6 mil documentos, e 80% deles são correspondências que Segall trocou com modernistas europeus — conta a historiadora Vera d’Horta. — Há cartas trocadas com Wassily Kandinsky, Otto Kix e Paul Klee. Entre os brasileiros, há missivas de nomes como Mario de Andrade e Tarsila do Amaral, por exemplo. Com todos, Segall sempre debate criação e arte, mostrando-se preocupado com a realidade artística e o crescimento profissional dos amigos.

Entre as cartas disponíveis no site museulasarsegall.org. br/als, chama a atenção, por exemplo, a que Cícero Dias escreveu a lápis para o pintor russo-brasileiro em 1928. Segall estava em Paris e, na visão de Cícero, precisava saber como andava o Salão de Belas Artes do Rio naquele ano. A crítica é ácida e questiona se “no mundo o que vale é agradar a uma elite”.

Outro ponto alto da coleção que ganha amanhã a internet são os cerca de 300 documentos escritos em íidiche e os cerca de 600 documentos em russo que fazem parte do acervo de Segall. Além disso, ele ainda falava alemão.

— Nosso esforço hoje em dia é fazer a tradução dos documentos que estão em íidiche e colocar na internet um resumo do que está sendo dito — diz Vera. — Para isso, contamos com a ajuda do professor de História Judaica da USP Nachman Falbel, que tem passado muitas horas conosco, descobrindo coisas muito valiosas.

Na lista de pérolas escritas em íidiche, Vera cita, por exemplo, uma carta enviada para Segall por seu irmão Oscar em 1915. Num texto caprichado, ele relata os horrores da entrada das tropas alemãs na cidade de Vilna, onde o pintor nasceu. A missiva não deixa dúvidas: a cidadezinha foi praticamente destruída.

— Para muitos especialistas em Segall, foi a partir dessa carta que ele resolveu voltar à terra natal e criar ao álbum de gravuras “Recordações de Vilna” (1917). Nesse trabalho, chocante e triste, estão refletidas, por exemplo, as viúvas e as crianças que definharam diante das desgraças da guerra.

No que diz respeito às curiosidades que o Museu Lasar Segall lança na web, Vera elenca o passaporte com nome falso que foi dado a Lasar Segall para que ele deixasse a Alemanha. O documento permitia sua saída, mas não seu retorno, já que o pintor era russo e também judeu — uma das piores combinações possíveis durante os conflitos da Primeira Guerra Mundial.

— Trata-se de um documento de frente e verso que foi entregue oficialmente a Segall quando ele estava confinado junto com outros estrangeiros na cidade alemã de Meissen. Mas foi com esse documento também que, em 1923, Segall se mudou para o Brasil e talvez graças a ele que não tenha voltado para a Alemanha quando sua primeira esposa, Margareth, resolveu se separar dele e retornar ao país — acrescenta a historiadora.

Aula de História

Vera d’Horta e Jorge Schwartz, o diretor do museu paulistano, dizem que navegar pela documentação é uma forma indireta de conhecer parte da história da Rússia czarista — já que, quando Segall nasceu, Vilna era a capital da Lituânia, então sob domínio do regime dos czares —, parte da história da Alemanha — uma vez que Segall estudou arte em Berlim e em Dresden — e ainda uma boa parte da história brasileira.

— A coleção é um convite ao aprendizado — diz Schwartz.

***

Leia trecho de carta de Cícero Dias para Lasar Segall (O pintor fala do Salão de Belas Artes do Rio, em 1928)

O salão deste ano já abriu-se. Uma verdadeira amostra de coisas bem feias! Não sei, amigo, como as paredes suportam semelhantes afrontas! Eu, se fosse parede dessa galeria de arte, estaria sempre com grandes buracos. É tudo assim? No mundo o que vale é agradar a alguma elite? Raramente um artista faz impor sua arte. Uns são mundanos e variam com os vestidos das mulheres. Outros se dizem comerciais. Outros verdadeiros porque sabem reproduzir bem o que veem! Mas antes destes existem, não sei, outros que veem bem diferente a natureza, o comércio e a moda! Estes morrem com seus quadros porque entre seus quadros e eles não há diferenças. Escreva-me!