Jorge tinha 7 anos quando serviu de consultor informal para “A arca de Noé”, longa de animação inspirado na coletânea de poesias infantojuvenis de Vinicius de Moraes (1913-1980). Na última década, o projeto passou por dificuldades orçamentárias, sofreu perdas internas, e agora, quando finalmente ganha formas, cores e as vozes de Rodrigo Santoro, Alice Braga, Marcelo Adnet, Adriana Calcanhotto e Chico César, entre outros, o pequeno conselheiro, filho do diretor e roteirista Sérgio Machado, se prepara para cursar Design de Animação.
— O Jorge era a minha cobaia quando escrevia o roteiro: eu contava as histórias das poesias e ele dava opiniões. É uma ideia tão antiga que meu filho já está adolescente. Quem sabe esse longo contato não o tenha inspirado a entrar no mundo da animação? — diverte-se Machado, durante uma pausa das gravações, em São Paulo. — “A arca de Noé” encantou e continua encantando gerações. Agora eu tenho uma nova fã de 8 anos como assistente, a minha filha Clarinha.
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Previsto para estrear em 2014, o desenho orçado em R$ 10 milhões tropeçou em problemas logísticos e financeiros ao longo do caminho. Em 2015, outro grande impacto na produção capitaneada pela Gullane Filmes e a Videofilmes: a morte de Suzana de Moraes, filha mais velha de Vinícius e mentora do projeto.
A história de Vini e Tito, os ratinhos inspirados no poeta e em Tom Jobim (1927-1994), ganhou um final feliz em 2019, quando as companhias brasileiras assinaram um acordo de coprodução com a Symbiosys Technologies, empresa de animação da Índia.
— Os indianos e os asiáticos, em geral, têm uma longa tradição em um tipo de animação de grande porte, de trabalho volumoso, que não temos no Brasil — explica o produtor Caio Gullane. — Foram anos de rascunhos para um lado e para outro, até chegar a um traço fresco para “A arca de Noé”. Queríamos fugir do 3D redondinho e do 2D autoral e estilizado. Optamos pela humanização dos animais, buscando essa identificação com os personagens.
Produtor e diretor planejam lançar “A arca de Noé” no primeiro semestre de 2023. Sonham em exibi-lo no Festival de Annecy, na França, um dos maiores do gênero. Um desfecho que promete ser luminoso para a trajetória dos versos com temas infantis, protagonizados por muitos animais, que começaram a ser escritos nos anos 1940, foram reunidos em livro nos anos 1970 (pela editora Sabiá), e convertidos em canções, em parceira com Toquinho, em 1980. O livro é um sucesso ainda hoje, e já vendeu mais de 600 mil exemplares sob a Companhia das Letras, onde está desde os anos 1990.
Toquinho lembra que alguns poemas do livro já haviam sido musicados por Paulo Soledade e Tom Jobim quando Vinicius lhe propôs musicar os demais.
— Aqueles poemas receberam ritmo e harmonias que provocam emoções que só a música pode proporcionar. — diz o compositor. — Com o disco, os bichinhos pularam das páginas do livro para as vozes das crianças, e daí para as salas de aulas. A as músicas perduram até hoje: aquelas crianças da década de 1980 tornaram-se pais e motivaram seus filhos, e cantam hoje com seus netos.
Para o cinema, Suzana priorizou os poemas que falavam de animais. “A arca de Noé” conta a história de dois ratinhos boêmios — um poeta meio medroso e um músico elegante. Eles testemunham o momento em que Deus ordena a Noé a construção de uma embarcação capaz de abrigar um macho e uma fêmea de cada espécie, para salvá-los do dilúvio que se aproxima. Como são solteiros, os dois se meterão em diversas confusões para garantir uma vaga na arca.
— É um projeto muito especial para nós, por ser uma ideia da Suzana — diz Maria Gurjão, a filha mais nova de Vinícius, que divide com a irmã Georgiana a direção da VM Cultural, administradora da obra literário-musical do poeta. — É uma história universal, contada por alguém com o dom da palavra, com um jeito amoroso, mas que tem um tom político também. A trama fala de duas arcas, uma com animais admirados por todos, e outra, por ratos, baratas e outros bichos desprezados. Há um momento em que a arca A está em perigo e quem salva o dia são justamente os passageiros da arca B.
'Não espere uma visão infantil fofinha'
Sérgio Machado, que tem como codiretor de animação do longa-metragem o peruano Alois Di Leo, revela que a obra não pretende conquistar apenas a criançada:
— Nossa intenção é fazer algo como o “Shrek”, um desenho animado capaz de agradar crianças e adultos — esclarece o diretor. — Desejamos falar com o jovem adulto contemporâneo, acostumado com a quantidade de informação, com a malandragem dos personagens. Como queria Suzana de Moraes, estamos sendo fiéis ao espírito do Vinicius, mantendo a irreverência e abordagem amorosa e delicada. Não espere uma visão infantil fofinha, porque tem muita coisa cruel e macabra nos versos dele.
Lançado em 1980, o primeiro LP com as versões cantadas dos poemas de Vinicius ganhou contribuição de diversos medalhões da MPB da época, como Elis Regina, Alceu Valença, Chico Buarque, Milton Nascimento, Moraes Moreira, Bebel Gilberto, Ney Matogrosso, Marina Lima e o quarteto MPB4.
Agora, além de Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet, que cantam em dueto a canção “A menininha” em inglês, o elenco de intérpretes da animação inclui Chico César (“O bode”), Larissa Luz (“A galinha d’Angola”), Céu (“Os insetos”), Mariana de Moraes (“A casa”), entre outros.
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Já a cantora e compositora Adriana Calcanhotto, viúva de Suzana, gravou semana passada a versão em inglês de “A corujinha”.
— Todos nós fomos formados pela “A arca de Noé”; uns têm mais intimidade com a obra, outros, não — entende Adriana, que gravou os versos de “As borboletas”, de Vinícius, no projeto “Partimpim”. — Vi tudo isso nascer. A Suzana tinha uma ligação muito forte com “A arca”, porque a origem dos poemas está na curiosidade dela e do irmão Pedro sobre as coisas, quando crianças. Ela dizia que cinema era a pior diversão, porque é demorado e caro. Tinha autoridade para dizer isso: teve um filme interrompido no meio no governo Collor. Mas ela adorava cinema, e estamos realizando o sonho dela.