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'Se você desenha bem, faça pior', aconselha brasileiro que virou diretor criativo na DreamWorks

Ennio Torresan, que fala nesta quarta no Rio, conta como deixou o Brasil em 1989 e virou responsável por storyboards de 'Madagascar' e 'Kung Fu Panda'
Torresan na exposição da DreamWorks no CCBB, na sala dedicada à criação de histórias e storyboards Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Torresan na exposição da DreamWorks no CCBB, na sala dedicada à criação de histórias e storyboards Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

RIO — Viver de animação no Brasil parecia tão fantasioso quanto animais falantes descobrindo a selva, um urso lutador de kung fu e uma abelha que quer processar a Humanidade. Por isso, quando Fernando Collor foi eleito, em 1989, o carioca Ennio Torresan, então com 24 anos, foi passar uma temporada fora do país.

Hoje, ele é o diretor criativo do Departamento de Histórias da DreamWorks, que fez animais falarem na selva em “Madagascar”, serviu de tatame para “Kung Fu Panda” e acompanhou angústias operárias em “Bee movie — A história de uma abelha”.

— Há 30 anos existiam pouquíssimos estúdios de animação no Brasil, o trabalho era esporádico. Essa garotada que nasceu nos últimos 20 anos já cresceu num cenário completamente diferente — comenta ele, que nesta quarta-feira ministra a palestra “A narrativa visual e seus processos de criação”, às 18h30m no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio, onde a exposição “DreamWorks — Uma jornada do esboço à tela” está em cartaz até 15 de abril.

Para quem sonha com uma trajetória internacional como a dele, o carioca aconselha a desenvolver projetos pessoais e divulgar nas redes sociais, já que é lá que muitos medalhões da indústria buscam talentos. Torresan, que codirigiu “Até que a Sbórnia nos separe” (2013), com Otto Guerra, desenvolve nas horas vagas, há quatro anos, o longa “Copacabana 2020”, ainda sem previsão de lançamento. Para ele, projetos independentes podem ser a passagem para os grandes estúdios.

— Se estivesse começando hoje, aos 20, criaria meus projetos e tentaria negociar diretamente. O mercado está em constante mudança, o streaming aumentou a demanda. Impossível prever o que será daqui a cinco anos — comenta. — O importante é fazer sentido para você. O dia em que fizer uma animação pensando no que as pessoas vão achar, você está morto.

Aos 54 anos, Torresan lembra a decisão de sair do Brasil naquela época:

— Eu já esperava pelo desmonte do cinema brasileiro quando o Collor se elegeu, e decidi ir para Londres ( onde trabalhou no estúdio Amblimation, fundado por Steven Spielberg) .

Formado pela Escola de Belas Artes da UFRJ, o carioca buscava um caminho profissional entre as artes visuais, a ilustração (ele desenhou para revistas como “Medo” e “Mad”) e a carreira acadêmica até que um curso de animação adicionou uma nova atividade à lista.

— A ideia era passar alguns meses e montar um estúdio quando voltasse. Fiquei quatro anos, e de lá recebi convites para trabalhar em Los Angeles — conta o diretor, que, nos EUA, fez parte da equipe de “Bob Esponja” na Nickelodeon. — Tinha outras propostas que até pagavam mais, mas era um projeto tão doido e fora da caixa que não dava para negar.

Após trabalhos na TV e na Disney, o carioca finalmente chegou à DreamWorks para integrar a equipe de criação de “Madagascar”. A sala da mostra dedicada ao seu departamento dá a dimensão do volume de trabalho: pilhas de blocos indicam o material produzido para longas como “Kung Fu Panda” (100 mil storyboards), “Como treinar seu dragão” (80 mil) e “Shrek” (45 mil).

Por ser a etapa intermediária entre o roteiro e a animação propriamente dita, Torresan classifica o trabalho como “descartável e, ao mesmo tempo, essencial”. Aos jovens que assistiam à sua palestra, o conselho era praticar o desapego: “Não se apaixone pelo seu trabalho. Se você desenha bem, por favor, faça pior”.

Quadrinho feito por Torresan publicado na década de 1980 Foto: Acervo pessoal
Quadrinho feito por Torresan publicado na década de 1980 Foto: Acervo pessoal


— Desde quando era moleque e fazia HQs, o que me interessa é contar histórias através de imagens. O storyboard é uma tentativa de descobrir o filme — observa.

Na noite desta segunda-feira, dezenas de jovens lotavam uma sala do CCBB para uma aula fechada a alunos da rede pública do Rio que participam do projeto Estúdio Escola de Animação. Durante duas horas e meia, donos de cabelos coloridos e piercings variados mantinham os olhos presos à tela e ao palestrante, que relatava sua experiência de três décadas na animação. Uma cena tão difícil de se ver por aqui antes de 1989 quanto animais falantes, pandas...

Para Torresan, criador de storyboards , o surgimento das leis de fomento  e de festivais como o Anima Mundi (em 1993) foi essencial para o amadurecimento do mercado no Brasil.

Veja o curta 'El macho'

— A tecnologia também mudou tudo — reconhece. — Meu primeiro curta, “El macho” (1993), foi desenhado à mão, tinha que fazer a arte pequena para economizar. Hoje é possível fazer uma animação de qualidade no computador de casa.