RIO — Quando alguém comenta o fato de Euclides da Cunha dever sua notoriedade à Guerra de Canudos , respondo que se deu exatamente o contrário: Canudos sobreviveu com intensidade na memória de nossa cultura graças a Euclides. Quantos movimentos desapareceram, reduziram-se a empoeirado registro de especialistas ou a simples nota de pé de página, pela ausência de um grande escritor que os salvasse do esquecimento?
À Guerra do Contestado , no Sul do país, não faltaram ingredientes trágicos: estima-se em 8 mil o número de mortos. Durou mais (1912-1916) do que a de Canudos (1896-1897); seu ideário era igualmente restaurador, antirrepublicano. O Contestado contou ainda com o combustível da figura mítica de um líder messiânico, o monge José Maria. A essa Guerra, porém, faltou algo: faltou um Euclides da Cunha.
Embora o escritor, de certo modo, tenha, com Os sertões (1902), elaborado a peça magna e definitiva sobre a Guerra de Canudos, à época vários outros relatos históricos e obras literárias circularam sobre o conflito, eclipsados, hoje em dia, pelo indiscutível prestígio e qualidade do texto euclidiano, há muito alçado à categoria de obra-chave no nicho das grandes interpretações do Brasil.
Um dos autores a tematizar o movimento foi o poeta baiano Francisco Mangabeira (1879-1904). Em 1897, participou diretamente do cenário da contenda, integrando a equipe médica do exército. Em 1898, estreara com "Hostiário", um dos primeiros livros do Simbolismo baiano. Postumamente, a família editou suas "Últimas poesias" (1906). Entre os dois títulos, situa-se, em 1900, T"ragédia épica — a Guerra de Canudos", que logrou nova edição pela ABL em 2010, a cargo de Aleilton Fonseca.
Ângulo diverso do de Euclides
Trata-se, a rigor, da mesma e de outra Guerra de Canudos, na medida em que ela é retratada sob ângulo diverso do adotado por Euclides. O poema se compartimenta em 20 cantos, de curta extensão, todos nomeados, antecedidos por uma carta e arrematados por “Notas”.
Curiosamente, a primeira nota, relativa a uma das seções do livro, profetiza o sucesso que Euclides haveria de obter, quando reunisse os dispersos artigos de guerra dirigidos a um jornal: “O 'Assalto à Artilharia' é uma espécie de tradução para o verso de uma belíssima carta que o Dr. Euclides da Cunha escreveu de Canudos para o Estado de S. Paulo, onde este meu saudoso amigo derramou tanta luz em belíssimas e magistrais correspondências, que, publicadas em livro, lhe garantiriam um triunfo literário”.
Se a literatura brasileira já contava com um defunto autor, o Brás Cubas machadiano, passou também a contar com um defunto leitor, pois o prólogo de Mangabeira se intitula “Carta a um morto”: no caso, seu amigo Joaquim Pedreira, caído em combate aos 18 anos, e a quem a obra é dedicada.
O grande vilão? A inépcia do governo
Na carta, declara o poeta, o grande vilão da história teria sido a inépcia do governo. Externa indignação pelo sofrimento e pelas mortes: “soldados e fanáticos”, mesmo em posições antagônicas no tabuleiro de guerra, foram “igualmente vítimas do mais lamentável erro político”. Condói-se dos soldados abatidos, mas igualmente dos revoltosos, que “lembravam leões” e “resistiram com uma bravura louca até o último instante, sem que jamais vergassem a espinha numa mesura de submissão e covardia”. Exprime “repulsa àquele monstruoso pesadelo da Pátria”, àquele “morticínio”.
Apesar de o poema se abastecer em eventos reais — alguns, inclusive, presenciados por Mangabeira —, devemos sempre considerar que o autor não aspirava a um registro documental, e sim a uma criação literária embasada em substrato histórico. A Tragédia épica permanece prazerosamente legível, ao contrário de várias tentativas similares que a antecederam em nossas letras, efetivas “tragédias” literárias a demandar esforço épico do leitor para atravessar suas quase intransponíveis e maciças páginas (A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães e Colombo, de Araújo Porto-Alegre).
Muito de seu interesse reside na habilidade com que o poeta desenvolveu a trama e em sua polifonia discursiva, conforme adiante se verá. O texto é modulado por um tom anticelebratório: além de dar voz aos vencidos, o autor acrescenta que, a rigor, não houve vencedores: existiram apenas derrotados, em diferentes graus, nos dois lados do conflito. A lente poética é multifocal, ora capturando a minúcia de uma agonia, ora alargando-se a um cenário coletivo de batalha.
Ao longo das seções, alternam-se ou mesclam-se enunciados narrativos, líricos, dramáticos, epistolares, à maneira do que bem mais tarde faria, guardadas as devidas proporções, o Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles.
Bichos desnorteados
Outra semelhança, aliás, aproxima as obras: em ambas, o penúltimo segmento do livro (em Cecília, o “Romance 84”, em Mangabeira, o canto 19) se desvia do périplo dos homens para flagrar a errância dos bichos, desnorteados pela morte de seus proprietários.
Se, no poema de 1953, “Eles eram muitos cavalos/.../ E jazem por aí, caídos”, no de 1900 os cães “Pensavam nos seus donos, que nessa hora/ Talvez morressem numa luta insana.../ E os cães (não acreditem embora)/ Tinham no olhar uma tristeza humana”. Aos animais, de acordo com as palavras da poetisa, é atribuído o sofrido papel de “testemunhas sem depoimento/ diante de equívocos enormes”.
Em versos decassílabos e alexandrinos, raras vezes heptassílabos, Francisco Mangabeira urde a “tragédia épica” da dor e do desamparo. Não lhe interessam as vitórias dos generais, o triunfo da república, mas o peso demolidor da insanidade bélica a incidir em cada miúda vida individual. Daí tantas vezes preterir a descrição das batalhas em prol de seus tormentosos legados: as crianças no desamparo, as mulheres viúvas, e as mães, órfãs ao avesso de filhos para sempre perdidos.
Carta de um soldado à mãe
O poema se inicia com o segmento “Adeus”, a despedida dos jovens em direção ao front. Na outra ponta extrema do texto, ocorrerá o retorno a casa, o reencontro familiar. De permeio, uma sucessão de flashes, ora incidindo na conversa entre os soldados, ora revelando os requintes da crueldade guerreira, ora reproduzindo a carta saudosa e lírica de um soldado à mãe.
O confronto atinge o clímax nos segmentos 12 (“O combate”) e 16 (“O incêndio”), num quadro adubado por vigorosas imagens a que não falta a ironia de uma cálida natureza como contraponto e moldura a inomináveis atrocidades: “Então a luz do sol, em uma labareda/ Voraz, incendiava a deslumbrante seda/ Da cúpula infinita, enchendo-a de esplendores, / Tornando-a um jardim de luminosas flores” — a eclosão da beleza no cenário do horror.
No canto 14, “Os dois cadáveres”, o narrador relata o inútil e tardio armistício entre os contendores: “Ei-los unidos.../ A irrisão da sorte/ Irmanou-os na fúnebre jazida./ Como é tocante a paz feita na morte!/ Como foi triste a guerra feita em vida!// Como se fossem grandes inimigos,/ Furiosos bateram-se na guerra.../ E agora dormem como dois amigos/ No seio maternal da mesma terra”.
Triunfo pelo fratricídio
O discurso de Mangabeira se nutre desse desejo da (impossível) conciliação. No segmento final, “Mater”, o poeta, que jamais rebaixou o nível de humanidade dos revoltosos em função de critérios étnicos ou culturais, delega em definitivo sua fala ao outro, ou melhor, à outra: à voz da mãe de um combatente que à casa retorna, acolhido sem júbilo. Cabe à mulher a fala conclusiva.
Ela recusa com firmeza o regozijo de um triunfo alcançado por meio do fratricídio: “São para mim tristes essas palmas, / Essas dragonas trêmulas e belas,/ Feitas de luto e dor de tantas almas/ Que eu preferia ver-te livre delas”.
Quatro anos depois da publicação do livro, foi a vez de os familiares do escritor se enlutarem. Em voluntário serviço médico no Acre, ajudando a salvar vidas, perdeu a sua: contraiu malária e morreu a bordo do navio que o trazia de volta ao solo baiano.
Quando se recordam os 110 anos da morte de Euclides de Cunha, que a ocasião seja propícia para conhecermos outros nomes que também contaram e cantaram Canudos, a exemplo desse talentoso, modesto e hoje esquecido poeta Francisco Mangabeira.
* Antonio Carlos Secchin é poeta, ensaísta, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras