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Cultura

Francisco Mangabeira, o poeta da Guerra de Canudos

No aniversário do fim do conflito, Antonio Carlos Secchin lembra o baiano que cantou o conflito em tom anticelebratório
Canudos, 1897. O General Artur Oscar (o segundo da esquerda para a direita ) e seu Estado-Maior em Canudos, após a vitória sobre os conselheiristas ou "jagunços", com eram chamados Foto: Flavio de Barros / Acervo do Arquivo Histórico do Museu da República
Canudos, 1897. O General Artur Oscar (o segundo da esquerda para a direita ) e seu Estado-Maior em Canudos, após a vitória sobre os conselheiristas ou "jagunços", com eram chamados Foto: Flavio de Barros / Acervo do Arquivo Histórico do Museu da República

RIO — Quando alguém comenta o fato de Euclides da Cunha dever sua notoriedade à Guerra de Canudos , respondo que se deu exatamente o contrário: Canudos sobreviveu com intensidade  na memória de nossa cultura graças a Euclides. Quantos movimentos desapareceram, reduziram-se a empoeirado registro de especialistas ou a simples nota de pé de página,  pela ausência de um grande escritor que os salvasse do esquecimento?

À Guerra do Contestado , no Sul do país, não faltaram ingredientes trágicos: estima-se em 8 mil o número de mortos. Durou mais (1912-1916) do que a de Canudos (1896-1897); seu ideário  era igualmente restaurador, antirrepublicano. O Contestado contou ainda com o combustível da figura mítica de um líder messiânico, o monge José Maria. A essa Guerra, porém, faltou algo: faltou um Euclides da Cunha.

Embora  o escritor, de certo modo, tenha, com Os sertões (1902), elaborado a peça magna e definitiva sobre a Guerra de Canudos, à época vários outros relatos históricos e obras literárias circularam sobre o conflito, eclipsados, hoje em dia, pelo indiscutível prestígio e qualidade   do texto euclidiano, há muito alçado à categoria de obra-chave no nicho das grandes interpretações do Brasil.

Um dos autores a tematizar o movimento   foi o poeta baiano Francisco Mangabeira (1879-1904). Em 1897, participou diretamente do cenário da contenda, integrando a  equipe médica do exército. Em 1898, estreara com "Hostiário", um dos primeiros livros do Simbolismo baiano.  Postumamente, a família editou suas "Últimas poesias" (1906). Entre os dois títulos,  situa-se, em 1900, T"ragédia épica — a Guerra de Canudos", que logrou  nova edição pela ABL em 2010, a cargo de  Aleilton Fonseca.

Ângulo diverso do de Euclides

Trata-se, a rigor, da mesma  e de outra Guerra de Canudos, na medida em que ela  é retratada sob ângulo diverso do adotado por Euclides. O poema  se compartimenta em 20 cantos, de curta extensão, todos nomeados, antecedidos por uma carta  e arrematados por “Notas”.

Curiosamente, a primeira nota, relativa a uma das seções do livro,  profetiza o sucesso que Euclides haveria de obter, quando reunisse os dispersos artigos de guerra dirigidos   a um jornal: “O 'Assalto à Artilharia' é uma espécie de tradução para o verso de uma belíssima carta que o Dr. Euclides da Cunha escreveu de Canudos para o Estado de S. Paulo, onde este meu saudoso amigo derramou tanta luz em belíssimas e magistrais correspondências, que, publicadas em livro, lhe garantiriam um triunfo literário”.

Se a literatura brasileira já contava com um defunto autor, o Brás Cubas machadiano, passou também a  contar com um defunto leitor, pois o prólogo de Mangabeira se intitula “Carta a um morto”: no caso, seu amigo  Joaquim Pedreira, caído em combate aos 18 anos, e a quem a obra é dedicada.

O grande vilão? A inépcia do governo

Na carta, declara o poeta, o grande vilão da história teria sido  a inépcia do governo. Externa indignação pelo sofrimento e pelas mortes: “soldados e fanáticos”, mesmo em posições antagônicas no tabuleiro de guerra, foram   “igualmente vítimas do mais lamentável erro político”. Condói-se dos soldados abatidos, mas igualmente dos revoltosos, que “lembravam leões” e “resistiram com uma bravura louca até o último instante, sem que jamais vergassem a espinha numa mesura de submissão e covardia”. Exprime “repulsa àquele monstruoso pesadelo da Pátria”, àquele “morticínio”.

Apesar de o  poema se abastecer  em eventos reais — alguns, inclusive, presenciados   por Mangabeira —, devemos sempre considerar que o autor não aspirava  a um registro documental, e sim a uma criação literária embasada em substrato histórico. A Tragédia épica  permanece prazerosamente  legível, ao contrário de várias tentativas similares  que a antecederam em nossas letras, efetivas “tragédias” literárias a demandar esforço épico do leitor para atravessar suas quase intransponíveis e maciças  páginas (A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães e   Colombo, de Araújo Porto-Alegre).

Muito  de seu interesse reside na habilidade com que o poeta desenvolveu  a trama e em sua polifonia discursiva, conforme adiante se verá. O texto  é modulado por um tom anticelebratório: além de dar voz aos vencidos, o autor  acrescenta que, a rigor, não houve vencedores: existiram apenas derrotados, em diferentes graus, nos dois  lados do conflito. A lente poética é multifocal, ora capturando a minúcia de uma agonia, ora alargando-se a um  cenário coletivo de batalha.

Ao longo das seções, alternam-se ou mesclam-se enunciados narrativos, líricos, dramáticos, epistolares,  à maneira do que bem mais tarde faria, guardadas as devidas proporções, o Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles.

Bichos desnorteados

Outra semelhança, aliás, aproxima as obras: em ambas, o penúltimo segmento do livro (em Cecília, o “Romance 84”, em Mangabeira, o canto 19) se desvia do périplo dos homens  para flagrar a errância dos bichos, desnorteados pela morte de seus proprietários.

Se, no poema de 1953, “Eles eram muitos cavalos/.../ E jazem por aí, caídos”, no de 1900 os cães “Pensavam nos seus donos, que nessa hora/ Talvez morressem numa luta insana.../ E os cães  (não acreditem embora)/ Tinham no olhar uma tristeza humana”. Aos animais, de acordo com as palavras da poetisa, é atribuído o sofrido papel de “testemunhas sem depoimento/ diante de equívocos enormes”.

Em versos  decassílabos e alexandrinos, raras vezes heptassílabos, Francisco Mangabeira urde a  “tragédia épica” da dor e do desamparo. Não lhe interessam as vitórias dos generais, o triunfo da república, mas o peso demolidor da insanidade bélica a incidir em   cada miúda vida individual. Daí tantas vezes preterir a descrição das batalhas em prol de seus tormentosos legados: as crianças no desamparo, as mulheres viúvas, e as mães, órfãs ao avesso  de filhos para sempre perdidos.

Carta de um soldado à mãe

O poema se inicia com o segmento “Adeus”, a  despedida dos jovens em direção ao front. Na outra ponta extrema do texto, ocorrerá o  retorno a casa, o reencontro familiar. De permeio, uma sucessão de flashes, ora incidindo na conversa entre os soldados, ora revelando os requintes da crueldade guerreira, ora reproduzindo a carta saudosa e lírica de um soldado à mãe.

O confronto atinge o clímax nos segmentos 12 (“O combate”) e 16 (“O incêndio”),  num quadro adubado por vigorosas imagens a que não falta a ironia de uma cálida natureza como contraponto e moldura a inomináveis atrocidades: “Então a luz do sol, em uma labareda/ Voraz, incendiava a deslumbrante seda/ Da cúpula infinita, enchendo-a de esplendores, / Tornando-a um jardim de luminosas flores” — a eclosão da beleza no cenário do horror.

No canto 14, “Os dois cadáveres”, o narrador relata o inútil e tardio  armistício entre os contendores: “Ei-los unidos.../ A irrisão da sorte/ Irmanou-os na fúnebre jazida./ Como é tocante a paz feita  na morte!/ Como foi triste a guerra feita em vida!// Como se fossem grandes inimigos,/ Furiosos bateram-se na guerra.../ E agora dormem como dois amigos/ No seio maternal da mesma terra”.

Triunfo pelo fratricídio

O  discurso de Mangabeira se nutre desse desejo da (impossível) conciliação. No segmento final, “Mater”, o poeta, que  jamais rebaixou o nível de humanidade dos revoltosos em função de  critérios étnicos ou culturais, delega em definitivo sua fala ao outro, ou melhor, à outra: à voz da mãe de um combatente    que à casa retorna, acolhido sem júbilo. Cabe à mulher a fala conclusiva.

Ela recusa com firmeza o regozijo de um triunfo alcançado  por meio do fratricídio: “São para mim tristes essas palmas, / Essas dragonas trêmulas e belas,/ Feitas de luto e dor de tantas almas/ Que eu preferia ver-te livre  delas”.

Quatro  anos depois da publicação do livro, foi a vez de os familiares do escritor   se enlutarem. Em voluntário serviço médico no Acre, ajudando a salvar vidas, perdeu a sua: contraiu malária e morreu a bordo do navio que o trazia  de volta ao solo baiano.

Quando  se recordam os 110 anos da morte  de Euclides de Cunha, que a ocasião seja propícia  para conhecermos outros nomes que também contaram e cantaram Canudos, a exemplo desse talentoso,  modesto e hoje esquecido poeta Francisco Mangabeira.

* Antonio Carlos Secchin é poeta, ensaísta, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras