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Luis Fernando Verissimo: ‘À masculinidade tóxica, antibióticos’

Escritor lança este ano seleção de textos e terá obra adaptada para o cinema
SC Rio de Janeiro (RJ) 11/04/2019 Luis Fernando Verissimo, escritor. Foto Ricardo Jaeger Foto: ricardo jaeger / Agência O Globo
SC Rio de Janeiro (RJ) 11/04/2019 Luis Fernando Verissimo, escritor. Foto Ricardo Jaeger Foto: ricardo jaeger / Agência O Globo

RIO - É quase um segredo de família. O título original de “O tempo e o vento” fazia referênca a uma arma que atravessa gerações na trilogia épica de Erico Verissimo: “O punhal de prata”. Essa e outras mudanças foram testemunhadas por um menino na sala de casa, em Porto Alegre, durante a escrita do livro. “Como eu tinha cabelo!”, brinca Luis Fernando Verissimo, o tal menino, ao ver a foto (abaixo) em que, aos 14 anos, aparece ao lado do pai com o manuscrito da obra — àquela altura intitulada “O vento e o tempo”.

Setenta anos depois da publicação do primeiro volume de “O tempo e o vento”, “O continente” (1949), o escritor e colunista do GLOBO emociona-se ao dar de cara com outro manuscrito do pai: o do livro de viagem “Israel em abril” (1969). Verissimo comprou-o de um asilo judaico na capital gaúcha e agora o repassará ao Instituto Moreira Salles, que abriga o acervo de Erico. “Meu pai escrevia à máquina deixando espaços para a revisão e os retoques”, conta. “É emocionante ver hoje esses traços da criatividade, como andaimes de uma construção. Com o computador, isso não existe mais”.

Investigador do comportamento humano e mestre no humor sintético, Verissimo lançará, no final do ano, uma nova seleção de textos pela editora Objetiva. Também vem por aí uma adaptação de um livro seu para o cinema: “Gula”, inspirado em “O clube dos anjos”, com elenco formado por Otavio Müller, Marco Ricca, Matheus Nachtergaele e Ângelo Antônio, e direção de Angelo Defanti, que ainda prepara um documentário sobre o autor.

Verissimo com o pai, Erico, e o manuscrito de “O vento e o tempo”, título provisório de “O tempo e o vento” Foto: Arquivo
Verissimo com o pai, Erico, e o manuscrito de “O vento e o tempo”, título provisório de “O tempo e o vento” Foto: Arquivo

Abaixo, os principais trechos da conversa em que Verissimo, 82 anos, falou sobre um Brasil “governado por Olavo de Carvalho”, lições de feminismo com a neta de 11 anos e alucinações com crianças vietnamitas e torcedores do Grêmio numa cama de hospital. Apaixonado pelo time rival, o Internacional, Verissimo diz: “Preferi os vietnamitas.”

Quando percebe o “cheiro” de uma boa crônica?

Às vezes a ideia vem logo, às vezes demora, às vezes não vem. Mas não há maneira de identificar a “boa”, depende da sorte. E a gente se engana. Muitas vezes a ideia “aproveitável” era uma porcaria. Pior é quando você guarda uma ideia certo de que não vai esquecê-la e na hora esquece. As melhores ideias são sempre as que a gente esquece.

Hoje boa parte dos colunistas se posiciona logo no título de seus textos, prevendo a repercussão. Como vê isso?

Acho ótimo que cada um deixe clara a sua posição. É importante que se ostente a liberdade de opinião, ainda mais agora, quando surgem prenúncios de macartismo cultural no ar.

O senhor acompanha debates nas redes sociais?

Minha relação com as redes sociais mistura admiração pela técnica alcançada e medo do que elas estão contribuindo para a imbecilização do mundo.

O que embasa esse seu medo?

Para um pré-eletrônico como eu, que ainda não entendeu como funciona isqueiro, esse mundo novo da comunicação fácil é um grande mistério. E é assustador, porque as pessoas estão comunicando o que tem de pior e usando a técnica mais moderna para botar pra fora seu lado mais primitivo. Estamos voltando à era do tacape, mas um tacape sofisticadíssimo.

Quem o senhor tem lido?

Tenho lido pouco por prazer, mas com algumas escapadas para respirar, como os ensaios do italiano Roberto Calasso. Não posso deixar de citar os contos sempre relidos da Clarice Lispector. Das mais novas, gosto bastante da Claudia Tajes.

Acompanha música atual?

Gosto muito de música, de preferência sambão e MPB, jazz, os barrocos italianos em geral e Bach em particular. Fui músico praticamente, tocava saxofone alto num conjunto de jazz. Parei por questão médica e, desconfio, pedidos do público.

O senhor foi um dos primeiros a criticar certas medidas da Lava-Jato. Como lidou com os ataques durante as eleições?

Recebo ameaças e cartas desaforadas desde a eleição do Collor. Me dou o trabalho de não ler.

O que tem achado do governo Bolsonaro?

Só posso dizer que jamais imaginei que um dia viveria num país presidido pelo Olavo de Carvalho.

Ainda se considera um “esquerdista desiludido”, como afirmou recentemente?

Qualquer comentário sobre a eleição do Bolsonaro deve ser prefaciado com os 60 milhões de votos que ele recebeu num pleito, até onde se sabe, limpo, apesar de desfigurado pela ausência do Lula. É para deixar qualquer um desiludido. Só não devemos nos desiludir com a democracia, pois aí estaremos todos perdidos.

Como vê a esquerda hoje?

A esquerda está como sempre esteve, dividida. Mas não tanto quanto a direita esquizofrênica no poder. Talvez seja só o caso de esperar que esse governo se autodestrua e só reste o Mourão de pé.

Vendo seu pai publicar livros, quando se deu conta de que também poderia escrever?

Até depois dos 30 anos, nunca tinha escrito nada, fora algumas traduções do inglês. Não tinha a menor intenção de ser escritor. O fato de ser um leitor onívoro desde garoto, além de ser filho de escritor e ter livros em casa, ajudou. Mas a vocação só se revelou tarde, quando comecei no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre. Fazendo, como já contei várias vezes, até horóscopo.

O que foi fundamental na sua criação para ser quem o senhor é?

Sempre fomos uma família unida que se gostava, e prezava essa união. Passamos isso para a família que a Lucia e eu formamos, com os filhos Fernanda, Mariana e Pedro, e agora os netos Lucinda e Davi. Obra principalmente, da Lucia, uma grande companheira.

Lucia diz que, como o senhor fala pouco, fica sabendo o que pensa em suas palestras, entrevistas...

Em casa, ela é que fala.

Como enxerga a nova onda feminista? Afeta a sua vida em algo? Talvez através da sua neta, Lucinda...

Estou mal informado sobre ondas feministas. Vou ter que ter uma conversa com a Lucinda. (Que tem 11 anos; o outro neto, Davi, tem 6.)

Que mundo deseja para ela?

Nossos filhos e netos tem a cabeça no lugar, são solidários, afetivos e criativos, cada um do seu jeito. Só desejo que o mundo que vem aí esteja à altura deles.

Como enxerga o homem contemporâneo diante do feminismo?

A relação homem/mulher mudou muito nestes últimos anos, talvez seja o que mais tenha mudado na história do relacionamento humano, e o feminismo é responsável por essa revolução. Diante disso, ao homem contemporâneo resta a cumplicidade ou a perplexidade.

O que acha de novos conceitos como “lugar de fala” e “masculinidade tóxica”?

Acho que qualquer nova liberdade para quem antes não tinha voz é uma conquista importante, seja qual for a causa. Quanto à masculinidade tóxica, antibióticos.

Ano passado, o senhor passou dias internado em estado grave. É verdade que teve uma experiência de quase-morte?

Só fiquei sabendo que quase morri quando tudo já tinha passado. Da longa estada no hospital, me lembro das alucinações. Me convenci que o centro de tratamento intensivo era, na verdade, um entreposto de crianças vietnamitas a caminho dos Estados Unidos. Minha internação também coincidiu com a inauguração do estádio novo do Grêmio e gremistas uniformizados rodeavam minha cama todas as noites. Preferi os vietnamitas.

Como encara a ideia da morte?

Como todo o mundo, tenho a secreta esperança que serei poupado.