A indumentária cangaceira — chapéus de couro adornados com signos-de-salomão, os bornais caprichosamente decorados, anéis, luvas e até enfeites de cabelo — sempre encantou o historiador Frederico Pernambucano de Mello. Provocado pelo crítico de arte Nelson Aguilar, ele resolveu, enfim, “teorizar” sobre a “estética do cangaço”. Generosamente ilustrado e com um prefácio assinado por Ariano Suassuna, o livro acaba de ganhar uma nova edição pela Cepe. A nova tiragem vem em boa hora: exemplares de “Estrelas de couro”, publicado em 2010, são vendidos por até R$ 1.499 na internet.
"Memórias sangradas": Inspirada pelo cangaço, viagem de mais de 11 mil quilômetros pelo sertão ecoa Gonzagão e Ariano Suassuna
Autor de títulos como “Guerreiros do sol: o banditismo no Nordeste brasileiro” e “A guerra total de Canudos”, Mello se interessa pelo cangaço desde menino. Adolescente, tornou-se afilhado de fogueira (tradição das festas de São João nordestinas) de Miguel Feitosa Lima, o ex-cangaceiro Medalha, que lhe contava suas aventuras no sertão. Entre 1972 e 1987, foi assistente de Gilberto Freyre na Fundação Joaquim Nabuco. Foi Mello quem revelou, pela primeira vez, o nome do soldado que matou Lampião: Sebastião Vieira Sandes. Durante suas pesquisas, se perguntou como é que cangaceiros conhecidos pela crueldade eram capazes de tamanho apuro estético. E por que bandidos se cobriram com tantos adornos brilhantes, correndo o risco de chamar atenção da polícia, em vez de se camuflarem na caatinga.
Ouviu de vários ex-cangaceiros que os adornos conferiam orgulho a quem ingressava no bando. Lampião promovia a chefe aqueles que sabiam costurar e bordar. Havia algum utilitarismo nisso: quem atravessa meses no sertão, de cidade em cidade, precisa saber pregar um botão e costurar os fundilhos de uma calça. Segundo Mello, os adornos também proporcionavam “blindagem mística” aos cangaceiros, “desligando-os da categoria da morte”. Os signos-de-salomão (ou estrela de Davi) que decoravam os chapéus de couro, por exemplo, serviriam para refletir de volta todo o mal desejado a eles.
Além do signo-de-salomão, os cangaceiros usavam símbolos como a flor-de-lis, emblema da dinastia de Avis (do desaparecido Dom Sebastião), e a cruz de malta de ordens religiosas portuguesas. A indumentária cangaceira, afirma o historiador, é expressão da arte popular brasileira, “como a cerâmica, a cestaria, as carrancas e os ex-votos”. Mas não só: costurar e bordar também eram práticas de “higiene mental”. Abrigados em fazendas de coronéis aliados, cangaceiros ocupavam-se com linhas e agulhas para desopilar.
— Caiu nas minhas mãos uma foto que mostra Lampião sentado diante de uma Singer, com a mão cheia de anéis no veio da máquina, passando o pano debaixo da agulha. Lampião era de pouco riso, mas nessa foto ele aparece com um sorriso de língua dobrada, como quem diz: “O cabra mais macho do Nordeste costura e borda, vai encarar?” — diz Mello. — A sensibilidade estética não exime Lampião da violência. Ele matava, castrava e torturava sem dó. Dominou o sertão na base do terror.
Irredentismo brasileiro
Mello compreende o cangaço não como luta de classes sertaneja ou rebelião dos despossuídos contra os coronéis latifundiários, como argumentaram os marxistas, mas como expressão do “irredentismo brasileiro”.
— O cangaço foi uma conspiração sertaneja para afirmar o sertão face ao poderia político, econômico e cultural do litoral. Assim como os indígenas e os quilombolas não aceitaram os valores do mercantilismo do colonizador. Não se trata de um ponto fora da curva na história brasileira — explica ele, ressaltando que não raro, coronéis e cangaceiros firmavam alianças. — O poder do coronel vinha da terra; o do cangaceiro, das armas. Como o coronel, o cangaceiro vivia à margem de disciplinas e patrões.
Mello é consultor da série do Globoplay “Guerreiros do sol”, inspirada na vida de Lampião, que deve estrear em 2023. Ele também negocia doar sua coleção cangaceira ao Museu do Homem do Nordeste, mantido pela Fundação Joaquim Nabuco. São cerca de 160 objetos (chapéus, joias, um punhal de Lampião, um vestido de Maria Bonita), 600 livros, 165 cordéis, 100 fotografias, manuscritos e entrevistas em áudio e vídeo com ex-cangaceiros. Parte da coleção foi exibida na “Mostra do Redescobrimento: Brasil+500”, realizada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em 2000.
“Estrelas de couro: a estética do cangaço”
Autor: Frederico Pernambucano de Mello.Editora: Cepe.Páginas: 304.Preço: R$ 120.