Não há quem tenha vivido a cultura brasileira na década de 1970 e não tenha, de algum modo, interagido com as páginas do semanário carioca O Pasquim. Principalmente durante seus primeiros anos, o que ocorria no tabloide transbordava para o debate público. Idealizado pelo gaúcho Tarso de Castro, e apoiado por uma geração de jornalistas cariocas que já vinham trabalhando em revistas da década anterior, um dos seus nomes mais famosos foi outro gaúcho: Luiz Carlos Maciel (1938-2017).
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Pensador de múltiplos talentos intelectuais, estudou filosofia e trabalhou com teatro na UFRGS, o que lhe deu uma bolsa de estudos para a Universidade Federal da Bahia, e se tornou professor após breve período nos EUA. Maciel chega ao Rio em 1964, quando continua atuando com teatro e entra definitivamente no jornalismo. Nessas andanças, criou laços com nomes do porte de Ruggero Jacobbi, Paulo José, João Ubaldo Ribeiro, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Lina Bo Bardi e muitos outros.
Essa introdução cronológica é importante para entendermos como Maciel entrou para a história do pensamento brasileiro a partir de uma coluna de jornal. Batizada de “Underground”, essas páginas deram ao leitor brasileiro, em plena ditadura civil-militar, acesso a um mundo de liberdade e transgressão: a contracultura. Maciel fez dessa porta de entrada uma porta da percepção. Seu sucesso era tanto que o colunista do “subterrâneo” era um dos recordistas de cartas recebidas pelo jornal.
Aqui, porém, é necessário um aviso: a contracultura que Maciel publicava, de matriz majoritariamente americana, ocorria no trânsito político entre novos pensadores, novos corpos, novos sons e novas substâncias. Ali, não se tratava apenas de difundir modismos hippies ou divulgar novas bandas de rock. Seus textos circulavam, em linguagem acessível, pensamentos complexos, de diferentes tempos e espaços. Cada coluna era uma plataforma para o filósofo e dramaturgo gaúcho explorar um rico campo intelectual. Ao falar sobre antipsicanálise, literatura beat, teatro experimental, práticas psicodélicas, revolução sexual e outros temas, Maciel sabia articular tais pautas com a realidade opressora do jovem brasileiro de então.
Pensador-artista
Como filósofo que era, Maciel sabia transformar o pensamento alheio — ou o disco, o livro, o filme — em uma conversa fluida e reflexiva. Tal capacidade de comunicação o transformou em um dos maiores intelectuais de sua geração. Quantos leram em suas páginas, pela primeira vez, nomes como Timothy Leary, Wilhelm Reich, Antonin Artaud, Simone de Beauvoir, Angela Davis e tantos outros?
É esse universo, de um pensador-artista que não só está nos bares (como rezava o modelo das outras gerações do jornal), mas também nas praias e nas festas, que o leitor tem acesso com o livro organizado por Claudio Leal. Trazendo uma seleção impecável de textos do período do Pasquim, o livro também vai além, ao agregar parte da fortuna crítica sobre teatro e textos publicado em outros periódicos independentes do período.
Após ser um dos que sofreram com o racha histórico do jornal carioca em 1972, quando Tarso de Castro, seu fundador, é retirado da publicação, Maciel passa a atuar em projetos fugazes como os raros Jornal de Amenidades e Flor do Mal. Há também textos de antes e depois dessa fase heroica (1969-1972) publicados em veículos como Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e Revista Bravo.
Em tempos de debates políticos acalorados, é curioso lermos hoje as colunas de Maciel. Escritas em um turbilhão político que engoliu as esquerdas de seu tempo, o jovem contraculturalista nunca perdeu de horizonte a desigualdade social do país e o marxismo. Sua saída, porém, foi pensar não apenas o aspecto material das revoluções, mas principalmente o aspecto espiritual.
Em um dos prefácios do livro, Caetano Veloso, amigo do filósofo, diz que ele “nunca abandonou a esquerda”. Trago essa informação para mostrar que Maciel viveu as facetas de profeta, de guru e de pensador contemporâneo, conseguindo fazer com que seus textos, mesmo que hoje sejam materiais de arquivo, ainda possam ser lidos como atuais. Afinal, pensarmos delírios e revoluções contra a cultura friamente economicista e autoritária que grassa em tempos de cólera ainda é um suspiro mais necessário do que nunca.
Fred Coelho é professor do Departamento de Letras da PUC-Rio
“Underground”. Autor: Luiz Carlos Maciel. Editora: Sesc. Páginas: 180. Preço: R$ 80. Cotação: Ótimo.