O termo “álbum” nunca caiu tão bem como para o livro “Grandes sucessos: música popular em quadrinhos”, que reúne, como em um disco, oito canções, só que adaptadas, como o título entrega, para a nona arte. Músicas como “Garota de Ipanema” e “Apenas um rapaz latino-americano” transformaram-se em gibis, cada história com oito páginas, totalizando oito faixas. E o álbum impresso ainda tem lado A e lado B, como um… álbum de vinil.
A curiosa ideia de criar uma “MPQ”, segundo Sandro Gomes, mais conhecido como Lobo, da editora Brasa, nasceu quando ele ainda era editor do selo Barba Negra, da Leya. Na época, ele queria adaptar para os quadrinhos as letras de Marcelo Yuka, mas infelizmente o projeto nunca viu a luz do dia. Muitos anos depois, Lobo conheceu o diplomata Igor Trabuco — hoje chefe do setor cultural da Embaixada do Brasil em Lima —, que, em 2019, desenvolveu em parceria com a Bienal de Quadrinhos de Curitiba um programa chamado “Brasil em Quadrinhos” com a finalidade de aumentar a projeção da HQ brasileira no exterior.
— Depois de muita conversa, uma ideia ganhou corpo. A gente faria um livro com quadrinhos inspirados em músicas brasileiras — explica Lobo. — Depois da felicidade de um projeto com interesses em comum, veio a pergunta: mas quais músicas? Qual seria o melhor plano pra fazer algo assim? Na minha cabeça, a fusão musical da Tropicália, unindo vanguarda e tradição, com uma mistura de gêneros musicais e sua explosão estética, seria o melhor começo.
Lobo diz que cada um fez uma lista e, juntos, criaram a coletânea inspirada em músicas conhecidas no exterior, pois o projeto também é usar o livro como instrumento de propagação da língua e da cultura brasileiras nas casas de cultura do Instituto Guimarães Rosa espalhadas pelo mundo. “Quadrinhos e música ensinando juntos”, frisa ele. Trabuco reforça a iniciativa:
— A temática dos quadrinhos vem sendo trabalhada por diversos postos que o Ministério das Relações Exteriores mantém pelo mundo, no âmbito de seus setores culturais. Várias iniciativas já foram desenvolvidas, como participação em feiras e festivais, realização de exposições, apoio à tradução de HQs brasileiras no exterior etc.
A rede de centros culturais do Itamaraty no exterior passou a se chamar Instituto Guimarães Rosa no ano passado, e a unidade de Lima capitaneou, segundo Trabuco, uma proposta curricular de ensino do português como língua estrangeira por meio dos quadrinhos.
— Já em 2023, o IGR-Lima começou a desenvolver uma nova proposta curricular, dessa vez para o ensino de português como língua estrangeira por meio da canção — explica o diplomata, fã de quadrinhos desde criança.— As propostas foram pensadas a partir da percepção de que quadrinhos e música são excelentes vetores de ensino de língua estrangeira. Se você fala inglês, muito possivelmente se valeu dessas linguagens no seu processo de aprendizado.
Segundo ele, a coleção proposta por Lobo acabou surgindo como uma ponte entre essas duas propostas curriculares, já que trabalha ambas as linguagens em uma só publicação:
— Além disso, os quadrinhos são, no fundo, uma composição de imagem e de texto. Para além de podermos ensinar o uso da língua em situações cotidianas, ainda teríamos a vantagem de as imagens auxiliarem no processo de difusão da própria cultura brasileira, já que as referências contidas na ilustração projetam nossa cultura de forma orgânica.
Curadora da Bienal de Quadrinhos de Curitiba e parceira do Itamaraty no projeto “Brasil em Quadrinhos”, Luciana Falcon diz que a ideia do projeto MPQ é desenhar músicas:
— O primeiro livro é um panorama de grandes sucessos, de músicas icônicas, mas, a partir do segundo volume, faremos por estilo. A ideia é que o próximo seja de samba.
Segundo ela, a seleção de quadrinistas levou em consideração a relação de cada um com determinada música.
— Tínhamos selecionado uma música da Rita Lee, por exemplo, e a autora sugeriu outra, com a qual ela se identificava mais — revela Luciana. — A ideia é apoiar os quadrinhos brasileiros e o maior número de pessoas da cadeia produtiva, desde autores e editores, com eventos e canais de divulgação, além do plano de um podcast.
Caipira no trenzinho
Autor da música, ou melhor, da HQ, que abre o álbum, o mineiro Lelis confessa, de Praia, capital de Cabo Verde, para onde viajou para uma exposição de seus trabalhos, que o escolheram para adaptar “O trenzinho do caipira”, de Heitor Villa-Lobos e Ferreira Gullar, por motivos óbvios.
— Essas coisas de caipira sempre sobram pra mim, sô! —diz, aos risos. — Minha mãe, lá em Montes Claros, trabalhava no Conservatório de Música Lorenzo Fernández. Como ela não tinha aonde me enfiar, me levava todos os dias, depois da aula, para seu trabalho. Nunca aprendi nenhum instrumento. Fugia para ficar desenhando pelos cantos do prédio. Mas ouvi muita música clássica naquele lugar. E um dos preferidos do povo de lá era o Villa. Me lembro bem. Gostava de ouvir os ensaios e comer pastel de carne moída com café.
Eloar Guazzelli, responsável por fechar o lado A do álbum com o clássico “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, diz que gaúchos como ele gostam muito do Rio de Janeiro, pois fogem do frio:
— Tenho memórias afetivas da cidade. Quando era pequeno, fui várias vezes ao Rio, e lembro da inauguração do Elevado do Joá, em 1972, com Flamengo campeão. Sou tão antigo que peguei a inauguração daquele negócio de concreto na encosta. Tinha dez anos.
Autor de “Brega Story”, HQ também lançada pela Brasa, Gidalti nasceu em Belo Horizonte, mas cresceu em Belém, daí ter ouvido bastante lambada na infância e, consequentemente, “Adocica”, música que lhe coube:
— A música paraense, assim como toda produção cultural do norte, tem esse distanciamento geográfico que acaba nos afastando dos grandes centros, né? Mas, nos anos 1980, a lambada, ritmo bastante influenciado pelo Caribe, estourou em todo o país. E o livro faz um recorte de cada pedacinho do Brasil.
Álvaro Maia, que abre o lado B com “Apenas um rapaz latino-americano”, de Belchior, foi um daqueles que pediram música. E, sem cerimônia, pediu ao editor, Lobo: “Tem como colocar uma do Belchior aí?”.
— Dez anos atrás eu e minha esposa nos aventuramos no México, onde vivemos por dois anos. Da pacata Palmas para a Cidade do México, uma das maiores do mundo — conta o quadrinista de Teresina, no Piauí. — Foi lá que a obra de Belchior e eu nos tornamos inseparáveis. Ninguém me compreendia melhor do que ele naquele momento. Durante esse período eu fui o rapaz latino-americano, o imigrante que saía do interior para a cidade grande.
Completam o álbum “Marinheiro só”, de Clementina de Jesus, por Roberta Nunes; “Balada do louco”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee, por Jéssica Groke; “Evidências”, de José Augusto e Paulo Sérgio, por Line Lemos; e “País tropical”, de Jorge Ben Jor, por Lila Cruz.