Nesses 135 anos de comemorações da abolição, nunca se falou tanto no protagonismo, na cultura e na ancestralidade negra. Mas, como ensina Exu, sempre há muitos lados de uma mesma questão. Historiador, professor e babalaô, Rogério Athayde, por exemplo, vê uma encruzilhada na crescente popularização das religiões de origem africana. Por um lado, isso difunde tradições historicamente silenciadas no Brasil e as apresenta a um público mais amplo. Por outro, acaba muitas vezes reforçando estereótipos e superficialidades.
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Em seu “Orunmilá”, Athayde vai em direção oposta. Com uma abordagem filosófica do orixá, o livro é um dos muitos títulos recentes que jogam luz sobre figuras das matizes afro-brasileiras e as redimensionam muito além dos clichês. Segundo o historiador, essa nova oferta editorial não aconteceu por acaso. Ela é produto de uma vasta produção acadêmica nos últimos anos.
— O orixá é hoje muito bem visto quando é uma coisa alegórica, bonita — diz Athayde, especialista na religião iorubá. — É quase como se tivesse ganhado um espaço apenas em nossas festividades, sendo aceito quando fica no carnavalesco, sem interferir no resto. É uma lógica perversa porque impede muita gente de conhecer de fato o que é um orixá em toda a sua profundidade. Por isso acho saudável que tenha aumentado o número de publicações, são elas que fazem o imenso conhecimento produzido nas universidades chegar ao grande público.
Uma das maiores autoridades em cultura afro-brasileira, o escritor e compositor Nei Lopes conta que ele se aproximou do candomblé atraído inicialmente pela música, pela dança e pelos trajes. Mas logo viu que havia muita coisa dentro da riqueza estética. Sua investigação na área rendeu diversos livros. O último, “Ifá Lucumí — O resgate da tradição”, explora uma vertente religiosa africana que vem sendo redescoberta no Brasil e em Cuba. Espécie de manual de vida que combina filosofia e arte, o sistema divinatório Ifá é um oráculo do povo iorubá intimamente ligado a Orunmilá.
— Ifá é uma fonte de saberes, através da qual qualquer pessoa pode, por meio de um intermediário devidamente capacitado, comunicar-se com outra dimensão da existência, mais especificamente, com determinadas divindades cultuadas na África e nas Américas — diz Lopes. — E essa prática, por razões principalmente históricas, é hoje mais ignorada do que esquecida. O oráculo, presidido por Orumilá, ensina tudo. Inclusive, na África, entre estudantes dos povos iorubás, seus saberes são matéria de ensino universitário.
Lançado este ano, “Exu: Um Deus Afro-Atlântico no Brasil” está sendo tratado por especialistas como obra “modelo” para falar de religiões afro-brasileiras. O livro do antropólogo e professor Vagner Gonçalves da Silva é fruto de 15 anos de pesquisas. Mas a obra foge do tom acadêmico e ainda inclui, de maneira lúdica, uma reunião de 183 mitos sobre Exu.
Um deles conta que, para confundir uma dupla de amigos, Exu usa um gorro com uma cor diferente de cada lado. Quando o orixá passa por eles, um dos homens vê o gorro como branco; o outro, como vermelho. Antes inseparáveis, os companheiros entram em desacordo e se agridem. Conclusão: a verdade tem vários lados, mas sempre a enxergamos do nosso próprio ponto de vista. O livro de Vagner se inspira na história para mostrar dois lados da demonização do orixá. No primeiro capítulo, conta como Exu virou demônio nos terreiros pela ótica cristã. No segundo, como o demônio virou Exu nas igrejas neopentecostais, onde vive baixando — e sendo expulso.
— Sou uma pessoa do terreiro antes de ser uma pessoa da academia — diz Vagner. — Talvez meu trabalho não tenha aquela sisudez, aquele academiquês. Acho que o caminho é tentar implodir a academia pela forma de conhecimento calcada no terreiro, que não se expressa apenas pelo ato reflexivo, mas também pelas experiências múltiplas. Sempre faço questão de levar meus alunos para os terreiros porque essa não é uma religião que se aprende pelo livro, mas pelo corpo. Tem que sentir o cheiro, a música, as cores...
Questão de identidade
Exu e outros orixás também são apresentados aos mais jovens no recém-lançado “Omo-oba”, com histórias de princesas e príncipes que resgatam mitos iorubás. Com texto de Kiusam de Oliveira e desenhos de Ayodê França, o livro mostra que por trás desses orixás conhecidos há um passado épico que ajuda a construir a identidade no presente.
— Meus livros são pautados pela ancestralidade — diz Kiusam. — Ela é fundamental para crianças, jovens e adultos pelo poder que tem de evocar a graça, o encantamento e o empoderamento que pretos e pretas tiveram no continente africano. Sofri racismo na infância e o que me salvou foi o contato com os conhecimentos africanos, as rainhas, as princesas, que eram negras como eu e me ajudaram a recuperar a minha autoestima.
- ‘Orunmilá’. Autor: Rogério Athayde. Editora: Pallas. Páginas: 208. Preço: R$ 49.
- ‘Ifá Lucumí: o resgate da tradição’. Autor: Nei Lopes. Editora: Pallas. Páginas: 224. Preço: R$ 49.
- ‘Exu’. Autor: Vagner Gonçalves da Silva. Editora: Edusp. Páginas: 672. Preço: R$ 146.
- ‘Omo-oba’. Autores: Kiusam de Oliveira (texto) e Ayodê França (ilustrações). Editora: Companhia das Letrinhas. Páginas: 64. Preço: R$ 54,90.